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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB TALITA CABRAL MACHADO TERRITÓRIO E IDENTIDADE NA GLOBALIZAÇÃO: ESTUDO DE CASO NA COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO MESQUITA NO MUNICÍPIO DE CIDADE OCIDENTAL (GO) Brasília 2007 TALITA CABRAL MACHADO 2002/94357

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB

TALITA CABRAL MACHADO

TERRITÓRIO E IDENTIDADE NA GLOBALIZAÇÃO: ESTUDO DE CASO NA

COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO MESQUITA NO MUN ICÍPIO

DE CIDADE OCIDENTAL (GO)

Brasília

2007

TALITA CABRAL MACHADO

2002/94357

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TERRITÓRIO E IDENTIDADE NA GLOBALIZAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO

NA COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO MESQUITA NO

MUNICÍPIO DE CIDADE OCIDENTAL (GO)

Monografia apresentada ao Departamento de Geografia do Instituto de Humanas da UnB,

para a obtenção do grau de Bacharelado-Licenciatura em

Geografia. Orientadora: Dra Marília Luíza

Peluso .

Brasília

2007

TERMO DE APROVAÇÃO

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TALITA CABRAL MACHADO

TERRITÓRIO E IDENTIDADE NA GLOBALIZAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO NA COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO MESQUITA NO

MUNICPIO DE CIDADE OCIDENTAL (GO)

Monografia de Prática e Pesquisa de Campo II, submetida ao Departamento de Geografia, do Instituto de Humanas da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Bacharelado-Licenciatura em Geografia. Banca examinadora: Orientadora: Dra. Marília Luiza Peluso (GEA- UnB) Examinador: Dr. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos (GEA- UnB)

Examinador: Dr. Neio Campos (GEA- UnB)

Brasília, julho de 2007

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Dedico à Sandra

Pela sua persistência na luta para a realização dos seus sonhos.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, em especial à minha mãe Geógrafa, à minha irmã Meline (futura Geógrafa) e ao meu pai pelo incentivo constante;

aos meus amigos, representados pela Jamille, a Raquel e o Rafael pelos anos de companheirismo na universidade;

aos companheiros dos projetos realizados na comunidade Mesquita, em especial a amiga Suelen;

à professora Marília Peluso, pela preciosa ajuda no delineamento e realização do trabalho;

aos participantes da banca, os professores Rafael Sanzio e Neio Campos.

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EPÍGRAFE

Para hacer esta muralla,

tráiganme todas las manos los negros, sus manos negras

los blancos, sus blancas manos.

Una muralla que vaya desde la playa hasta el monte desde el monte hasta la playa,

allá sobre el horizonte.

Al corazón del amigo: abre la muralla;

al veneno y al puñal: cierra la muralla;

al mirto y la yerbabuena: abre la muralla;

al diente de la serpiente: cierra la muralla;

al corazón del amigo: abre la muralla;

al ruiseñor en la flor…

(Quilapayún)

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RESUMO

O remanescente de quilombo Mesquita, localizado no município da Cidade Ocidental (Estado de Goiás), a 24 quilômetros da cidade de Luziânia e a 60 quilômetros do Plano Piloto, já reconhecido pelo Incra (em 2006), possui hoje uma pequena parcela do total de terras que possuía antes da construção de Brasília. No processo de titulação e demarcação da terra do remanescente de quilombo Mesquita, de um lado estão diversos atores interessados na apropriação do território, como fazendeiros e grileiros, que intensificam o processo de urbanização desenfreado do território quilombola e em grande parte do município. De outro lado está a comunidade, num cenário identitário em construção e em contradição, pois os valores tradicionais e a vontade de permanecer na terra são assegurados pelos mais velhos; enquanto a descentração e a vontade de sair da comunidade em busca de novas oportunidades prevalece entre os jovens; e o medo da titulação da terra, por falta de conhecimento e por pressões externas prevalece entre os adultos. É sobre um cenário mundial caracterizado pela globalização, modernização, consumo, e ao mesmo tempo de uma nova valorização dos costumes, que atualmente os quilombolas constroem sua identidade e sua relação com o território. A intensa expansão urbana, a agricultura e a pecuária modernas no território são os principais vetores antrópicos de ameaça da perda das terras do Mesquita. Podem-se classificar estes vetores em dois: urbanos ou rurais (monocultura e criação de gado). Os urbanos se subdividem em diretos e indiretos. Os diretos são os loteamentos, condomínios, e as terras para especulação imobiliária. Já os indiretos são o desenvolvimento da infra-estrutura no território Mesquita, que melhora a vida da comunidade, todavia valoriza mais a terra, atrai novos moradores e especuladores resultando assim, no aumento da perda do território quilombola. A atual organização espacial do remanescente de quilombo Mesquita é resultado das condições existentes no mundo pós-moderno, em que a utilização da terra toma um aspecto peculiar no mundo capitalista. Ela deve produzir e gerar excedentes, tornando-se um bem para ser especulado. A identidade pós-moderna dos quilombolas é influenciada por uma nova estrutura territorial, presente no processo de globalização, provocando as pressões sobre o território e conseqüentemente a perda desse e os intensos fluxos de pessoas – moradores que trabalham em cidades vizinhas do estado de Goiás e no Distrito Federal. Os remanescentes de quilombos são territórios social e politicamente demarcados, resultados de uma história de exclusão e resistência dos negros. Os quilombos devem ser vistos como espaços singulares que abrem a possibilidade para novas interações identitárias e representacionais. O território quilombola significa um “outro lugar” qualitativamente diferente e de combate ao processo de des-territorialização, forçado pelo modelo agrário e agropecuário implantado no Brasil, representando a reterritorialização, através da sua luta pela permanência nas terras. Para sua continuidade a identidade quilombola necessita do seu território, pois é a partir deste que ela é construída. Existe uma problemática no quilombo Mesquita como lugar de resistência pela divisão entre os moradores – enquanto uns já integraram no mundo pós-moderno, outros permanecem fiéis ao passado e às tradições. Esse dilema deve ser compreendido levando-se em consideração todas as escalas possíveis de análise: do local ao global.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1 Quilombo: passado e presente

1.2 Desenvolvimento do conceito de quilombo

2 A identidade na pós-modernidade

2.1 Construção da identidade

2.2 Espaço-tempo e a identidade

2.3 A identidade no local e no global

3 Território: processos de des-territorialização e reterritorialização

3.1 Território e identidade: a dialética materializada no espaço

3.2 Território quilombola, des-territorialição e reterritorialização

3.3 A luta pela terra: novas significações identitárias

4 Estudo de caso: comunidade remanescente de quilombo Mesquita no estado de

Goiás

4.1 Histórias do espaço

4.2 Pressões espaciais sobre o território da comunidade Mesquita

4.3 Paisagem: palco e ator das transformações ocorridas no modo de vida do

povoado

CONSIDERAÇÕES FINAIS

BIBLIOGRAFIA

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INTRODUÇÃO

O mundo pós-moderno, resultado de mudanças estruturais e institucionais e

caracterizado pela globalização, tem impacto sobre a formação da identidade cultural. Para

Stuart Hall (1997), a nova fase é caracterizada pela descentração da identidade do sujeito,

isto é, seu deslocamento, sua fragmentação e a perda de um “sentido de si” estável. O

sujeito não tem mais uma identidade fixa, pois ela está em constante reconstrução,

reordenando-se a partir das exigências do mundo contemporâneo.

A construção da identidade pós-moderna é resultado de fatores existentes no

mundo atual, como: a transformação da economia mundial na passagem do século XX; o

aumento de fluxos de pessoas, de mercadorias e de informações; a multiplicação dos

sistemas de representação e de significados; a mudança de apenas um centro existente para

vários centros e a transferência de pessoas que ocupavam espaços rurais para o urbano.

Todos esses fatores correspondem ao processo de globalização e tendem a reorganizar os

espaços com maior velocidade.

É sobre um cenário mundial caracterizado pela globalização, modernização e

consumo, que atualmente os quilombolas constroem sua identidade e sua relação com o

território. A condição de remanescente de quilombo sofreu uma reestruturação ao longo da

história e hoje é definida de forma ampla, indicando o sentimento de pertencer a um grupo

e a um lugar, que correspondem uma forma de expressão da identidade étnica e da

territorialidade, construídas sempre em relação aos outros grupos com os quais se

confrontam e se relacionam. As identidades quilombolas constroem-se a partir de uma

relação dialógica com o espaço mediatizada pela relação com o outro. Elas são construídas

e manipuladas constantemente a partir das relações sociais estabelecidas entre os diferentes

grupos com que o indivíduo convive em seu cotidiano. No caso dos quilombos, em que o

território do grupo é um elemento essencial para a identidade, os conflitos e as pressões

inerentes ao processo de titulação e demarcação de terras são fundamentais para

compreender as descentrações identitárias.

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O remanescente de quilombo Mesquita, localizado no entorno sul do Distrito

Federal, no Município de Cidade Ocidental, já reconhecido pelo Incra (em 2006), possui

hoje uma pequena parcela do total de terras que possuía antes da construção da nova

Capital. A implantação de Brasília atraiu um grande número de pessoas, de investimentos

imobiliários e agrícolas para território do DF e entorno responsáveis pela expulsão de

grande parte desta comunidade. O mapa 1 abaixo localiza o território Mesquita no entorno

do DF e mostra a área urbana estabelecida.

Mapa 1

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Hoje, parte dos moradores da comunidade mantém uma relação de trabalho diária

com as áreas urbanas vizinhas, atuando no circuito inferior (Santos, 1979), ou empregando-

se nas grandes fazendas localizadas dentro e ao redor do território quilombola. A

agricultura tradicional está se reduzindo devido à falta de investimentos e a concorrência

desleal dos latifundiários que utilizam técnicas modernas na produção.

No processo de titulação e demarcação da terra do remanescente de quilombo

Mesquita, de um lado estão diversos atores interessados na apropriação do território, como

fazendeiros apoiados pelo governo municipal, que vê neles o desenvolvimento do

município, e grileiros, que intensificam o processo de urbanização desenfreado do território

quilombola e em grande parte do município.

De outro lado está a comunidade, num cenário identitário em construção e em

contradição, pois os valores tradicionais e a vontade de permanecer na terra são

assegurados pelos mais velhos; enquanto a descentração e a vontade de sair da comunidade

em busca de novas oportunidades prevalece entre os jovens; e o medo da titulação da terra,

por falta de conhecimento e por pressões externas prevalece entre os adultos. E por último,

o Governo Federal, representado pela Fundação Palmares, exige que a comunidade assuma

uma identidade negra quilombola

Já reconhecida como remanescente de quilombo, a comunidade Mesquita enfrenta

problemas tanto no que concerne à dificuldade de delimitação e desapropriação das terras

quilombolas, como à aceitação pela maioria dos integrantes da comunidade dessa

delimitação (proposta pela Fundação Palmares, como uma segunda etapa para a titulação da

terra). É nesse contexto que as inquietações, no que dizem respeito à relação entre

identidade e território, surgem.

O presente trabalho parte da hipótese de que as pressões e conflitos evidenciados

no território do remanescente de quilombo Mesquita, envolvendo interesses globais e

locais, vêm incorporando uma nova lógica de utilização do território e produzindo novas

territorialidades. Assim, ganham importância o fenômeno de reterritorialização e a resposta

para os seguintes questionamentos: poderá, nesse contexto de pressões externas e de

descentrações, a comunidade de remanescente de quilombo Mesquita permanecer em seu

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território sem delimitá-lo? Como se faria a delimitação das terras num território

materializado por identidades diversas e contraditórias? Qual a importância dessa

delimitação para a vida do quilombola?

Com o objetivo de identificar os vetores de pressão sobre o território Mesquita e

como esses influenciam na construção de uma identidade descentrada dos quilombolas e na

perda do território é que apresento ao leitor uma análise da realidade vivida hoje pelos

membros da comunidade Mesquita, a partir da relação entre identidade e território. Para tal,

o presente trabalho se divide em quatro Capítulos.

O primeiro capítulo trata-se do significado do termo remanescente de quilombo e

seu desenvolvimento na história. O segundo capítulo refere-se às bases teóricas para a

análise da realidade: de como se dá à construção da identidade pós-moderna, da relação

entre identidade e globalização. O terceiro refere-se ao conceito de território, dos processos

de des-terrirolialização e reterritorialização nos quilombos.

No quarto capítulo é apresentado o estudo de caso na comunidade Mesquita. No

primeiro subtítulo “Histórias do espaço da comunidade”, são abordadas as várias versões da

construção espaço-temporal da comunidade. No segundo, “Pressões espaciais sobre o

território da comunidade Mesquita”, são apresentados os processos locais que afetam a

permanência da comunidade em seu território, gerando as pressões territoriais. Na terceira

parte, “Paisagem: palco e ator das transformações ocorridas no modo de vida do povoado”

são abordadas a relação da construção dialética entre a identidade e a paisagem que

resultam em mudanças na materialização da cultura sobre o território. E por fim, é

apresentada a Conclusão, com intuito de responder as perguntas geradas nesta introdução e

desenvolvidas durante todo processo de produção do trabalho.

Espero assim, estar contribuindo para o desenvolvimento de uma análise da

realidade vivenciada pela comunidade remanescente de quilombo Mesquita, que como

tantas outras no território brasileiro se encontra num impasse no que diz respeito à titulação

de suas terras e ao encontro com sua identidade.

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O presente trabalho foi realizado, utilizando a seguinte metodologia: para a

compreensão do real baseou-se no método dialético de análise, através da revisão

bibliográfica sobre o tema; da análise, a partir de entrevistas (aos líderes comunitários,

representantes do governo municipal e outros moradores da comunidade); da vivência no

remanescente de quilombo Mesquita, trabalhando no Projeto de Comunicação Comunitária

desenvolvido pela Faculdade de Comunicação da UnB. Este projeto foi coordenado pelo

professor Fernando Paulino, tendo duração de um ano e foram realizados oficinas de teatro

com a juventude, palestras e o projeto de educação popular junto aos professores da escola

da comunidade ( projeto ainda em atividade) e do qual participei. O trabalho baseou-se

também nas conversas, palestras, seminários e encontros com membros de outras

comunidades quilombolas espalhadas por todo território brasileiro; e finalmente da análise

de imagens de satélites.

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1 Quilombo: passado e presente

Nos seus estudos sobre o Goiás, Mary Karasch (1996) comenta que os quilombolas

foram responsáveis pela descoberta de inúmeras lavras auríferas, as quais eram apropriadas,

posteriormente, pelos caçadores de escravos. Nas áreas de mineração – Goiás, Minas

Gerais, Mato Grosso e Maranhão -, muitos quilombolas se dedicavam à prospecção de

metais e pedras preciosas, para trocar clandestinamente com taverneiros por produtos

necessários à sua sobrevivência (armas, munição) e alforrias (Reis,1996). No artigo

publicado pelo professor João José Reis (1996), resultado de um projeto de PIBIC, afirma

que isolados ou integrados (dados às relações de produção ou da depredação), o objetivo da

maioria dos quilombolas não era demolir a escravidão, mas sobreviver, e até viver bem em

suas fronteiras. É um equívoco a idéia de que os negros, exceto talvez em alguns poucos

casos, queriam reinventar uma África nos territórios quilombolas, “obviamente que os

quilombos formados por africanos-natos aproveitaram tradições e instituições originárias da

África. Mas isso não era um movimento privativo dos quilombos” (Reis, 1996, p.19).

Para Reis, apesar do pouco que se conheça realmente da dinâmica interna dos

quilombos predominou a reinvenção e a mistura fina de valores e instituições diversas,

através da escolha, ou não, de recursos culturais trazidos por outros grupos étnicos

africanos que aqui já se encontravam entre os brancos e os índios e; possivelmente, assim

deve ter sido o processo de formação das várias culturas afro-brasileiras. No remanescente

de quilombo Mesquita foi assim. Eles retêm algo de culto religioso dos portugueses, mas

têm suas peculiaridade, como é o caso das duas grandes festas católicas tradicionais que

acorrem todo ano, a Folia de Nossa Senhora da Abadia e Folia de Reis, que mobilizam toda

a comunidade e recebem visitantes de vários lugares.

A mescla de culturas era um resultado da luta pela sobrevivência e do exercício de

sabedoria demonstrada pelos quilombolas de compor alianças sociais, as quais se traduziam

em transformações e interpretações culturais. É importante ressaltar que os quilombos

foram forçados a mudar coisas que não mudariam se não fossem submetidos à pressão

colonial e escravocrata, mas foi deles a direção de muitas destas mudanças, pois não

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permitiam se transformar naquilo que os seus donos desejavam, e que resultou na beleza de

culturas que os quilombolas possuem hoje. (Reis, 1995).

O desenvolvimento do conceito de quilombo se deu através de estudos sobre

Remanescentes de Quilombo, e esses atualmente, consideram mais as relações entre as

comunidades negras e as populações vizinhas para a formação da identidade quilombola.

1.1 Desenvolvimento do conceito de quilombo

A territorialização dos espaços negros traduz as várias origens possíveis das

chamadas “terras de preto”, o que é indispensável para a compreensão das muitas

realidades vividas pelos quilombolas. Várias terras foram doadas por antigos senhores a

escravos fiéis, nas quais os negros libertos se estabeleciam. Outras resultam da ocupação de

áreas devolutas logo após a Abolição ou foram terras compradas por antigos escravos que

ali já residiam com suas famílias.

A negociação da terra se deu de maneira diferente em cada lugar e momento

histórico. A terra apresenta-se como forma particular de apropriação, pois ao mesmo tempo

é terra camponesa e terra que o modo de produção capitalista tenta incorporar como

mercadoria. Por isso, não se pode cometer o equívoco de analisar os territórios quilombolas

sem situá-los na conjuntura internacional. Como bem colocou Ferreira “[...] pois hoje os

remanescentes de quilombos vivem um momento de sentido idêntico àquele do período de

escravidão, um momento de ruptura, quando grandes pressões transformam sua

realidade.”(Ferreira, 2000, p. 51).

A interpretação do que vem a ser um quilombo no período atual é uma das

problemáticas discutidas desde a formulação do Artigo 68 das Disposições Transitórias da

Constituição de 1989, que dispõe que "Aos remanescentes das comunidades de quilombos

que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado

emitir-lhes os títulos respectivos".

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Os quilombos foram sempre referidos no passado pela história brasileira. Isso se

deve a existência de uma sociedade racista que sustentou no seu discurso ideológico o mito

da democracia racial, negando a efetiva cidadania do negro. Esse por sua vez começou a

buscar sua visibilidade nacional através dos movimentos sociais negros. Portanto, só

recentemente, a visibilidade espacial das terras rurais negras (os remanescentes de

quilombos) pelos governantes e a sociedade começou a surgir. Esse fato foi evidenciado na

publicação do Prof. Rafael Sânzio Araújo (2000), responsável pela divulgação da

localização municipal das comunidades negras quilombolas em todo território brasileiro.

De acordo com os dados dessa obra, foram identificados 2.228 territórios remanescentes de

quilombo no Brasil e 26 no estado de Goiás. Atualmente, o governo está analisando

processos de regularização de terras de apenas 300 remanescentes de quilombo.

A diversidade das formas de constituição das terras de quilombos proporcionou a

retomada das discussões sobre o conceito de quilombo. Conforme determinou o Conselho

Ultramarinho de 1740, quilombo era “toda habitação de negros fugidos que passem de

cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões

neles." (Moura, 1981). Porém, pesquisas recentes mostram que existem outras formas de

origem de quilombos, entre elas: doações de terras por antigos proprietários aos seus

escravos, decadência da lavoura com a permanência dos escravos nas fazendas após serem

abandonadas por seus donos e terras doadas a santos.

Hoje a Associação Brasileira de Antropólogos admite que os remanescentes de

quilombos tenham mantido relações econômicas, políticas, sociais e culturais com outros

grupos, como explicitado na construção do conceito do termo Remanescente de Quilombo o

qual é tido como:

[...] não se refere a resíduos ou resquícios de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar. (ABA, 1994, p.2)

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As comunidades remanescentes de quilombos constituem grupos que

compartilham uma identidade que os distingue dos demais. A identidade étnica pode estar

baseada em diversos fatores como a auto-classificação, uma ancestralidade comum, uma

estrutura de organização política própria, um sistema de produção particular (inclui-se aí as

formas específicas de exploração e relacionamento com a terra), em características raciais,

em elementos lingüísticos e religiosos, ou em símbolos específicos.

Portanto, a discussão sobre territorialidade e identidade está baseada na

constatação das várias origens de quilombos no Brasil e nas diversas formas de defesas dos

quilombolas, que eram punidos e marginalizados durante o período escravista e mesmo

após ele. Como disse Almeida:

Admitir que era quilombola equivalia ao risco de ser posto à margem. Daí as narrativas místicas: terras de herança, terras de santo, terras de índio, doações, concessões e aquisições de terras. Cada grupo tem sua estória e construiu sua identidade a partir dela. (Almeida, 1988, p.12)

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2 Relação: globalização e identidade pós-moderna

2.1 Construção da Identidade

A identidade é um conceito do período moderno, no qual o sujeito indaga: “quem

sou eu?”. Num sistema hierarquizado e globalizado essa identificação se torna mais

complexa. Ela agrega o que foi afirmado como sendo “meu” e o que foi recusado como

sendo do outro. Toda identificação supõe um processo de diferenciação, o qual se constrói a

partir daquilo que leva em consideração e o que negligencia. Como argumenta Le Bossé:

Na medida em que o sentido psicológico da identidade significa consciência e singularidade, é preciso admitir que o “próprio” se apreende e se reconhece em uma troca dialética com aquilo que é entendido como o “outro”. Para o indivíduo ou para o grupo que tomam consciência de sua identidade, são necessários não apenas os elementos de reconhecimento mútuo e de solidariedade internas, mas também um outro grupo, um “eles” em relação ao qual se terá o “nós”, um “aqui” face a um “alhures” ou a um “além. (Le Bossé, 2004, p. 161-162)

Quando se referiu ao conceito de cultura, o segundo Editorial, apresentando o

primeiro número da revista Geographie et Cultures (Editorial, 1992, p. 4-5) afirma que:

[...] cultura é o conjunto de técnicas, atitudes, idéias e valores”, apresentando “componentes materiais, sociais, intelectuais e simbólicos”; é transmitida e inventada”; não sendo constituída pela “justaposição de traços independentes” mas, “seus componentes formam sistemas de relações mais ou menos coerentes”; sendo assimilada diferentemente pelos membros de uma sociedade, ela é “vivida individualmente. (apud Rosendall, Zeny; Corrêa, Roberto Lobato, 1999, p.52)

Não há cultura que esteja desvinculada dos aspectos materiais de vida e é ela que

media as relações com o meio ambiente e sua transformação. Os conceitos de cultura e

identidade serão vistos no presente trabalho como pertencendo a uma única categoria, ou

seja, ambos representam as formas com que se dão as relações entre indivíduo e sociedade,

indivíduo e meio, desde os componentes simbólicos construídos por ele para se relacionar,

até os materiais, representados pelos meios técnicos.

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A identidade é uma construção social, um produto da educação e da vivência e se

modifica (Almeida, 1998). A mudança se dá influenciada pelas condições gerais e

individuais e as internalizações são realizadas de forma imperfeita, diferentemente por cada

indivíduo. As identidades se repõem constantemente, elas adquirem novos processos

através das relações da estrutura social com o indivíduo. Porém, a sua perda total não

ocorre porque a biografia não muda, mas a visão que se tem dela se transforma (Ferreira,

2000).

Para Hall (1997), existem três tipos de concepções de identidade, organizadas a

partir do momento histórico na qual estão inseridas. A primeira, o Sujeito do Iluminismo,

em que o indivíduo era um ser centrado no “eu”, baseada numa concepção muito

individualista do sujeito. Depois, surgiu o Sujeito Sociológico, criado com a divisão de

classes e depois da Revolução Industrial, em que a identidade do indivíduo é formada na

interação entre o eu e a sociedade e é ela que costura o sujeito à estrutura. E nos dias atuais

surgiu a concepção de Identidade Pós-Moderna, a qual é caracterizada pela fragmentação e

pela descentração do sujeito. Agora, o indivíduo é composto não só de uma, mas de várias

identidades, algumas vezes contraditórias, afetadas tanto pelos processos de socialização

quanto de globalização dos meios de comunicação e informação. O sujeito não tem uma

identidade fixa, essencial ou permanente, por estar sujeito a formações e transformações

contínuas em relação às formas em que os sistemas culturais os condicionam. Para Hall:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (Hall, 1997, p. 13)

As identidades são formadas e reconstruídas pelo sujeito dependendo da forma que

esses são representados nos sistemas culturais que os rodeiam. No caso do rural brasileiro

(como em toda sociedade brasileira), elas são caracterizadas por combinações de valores e

códigos pré-modernos e modernos, muitas vezes contraditórias e desiguais (Araújo, 2000).

A sociedade em que vive o sujeito não é um todo unificado e monolítico, nem uma

totalidade que flui e evolui a partir de si mesma; ela está também constantemente sendo

descentrada e deslocada por forças externas.

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Não se pode pensar as identidades negras quilombolas como sendo fixas, mas

como “identificações em curso” (Boaventura Santos, 2000) resultados das transformações

ocorridas graças ao processo de modernidade, em que interagem velhos e novos processos

de particularização e recontextualização, fundamentais para a permanência em suas terras

(Schmitt; Turatti; Carvalho, 2002).

2.2 Espaço-tempo e a identidade

A globalização é responsável pelas novas características temporais e espaciais do

mundo, resultados da compressão da distância e das escalas temporais, gerando influências

sobre as construções das identidades. Ela é responsável pelos processos que atravessam

fronteiras nacionais, integrando comunidades e organizações, definindo assim, uma nova

combinação tempo-espaço, tornando o mundo mais conectado em realidade e em

experiência (McGrew, apud Hall, 1999). Essa integração se dá graças ao sistema atual de

técnicas uniformizadas mundialmente pelo avanço da ciência. Para Santos:

No final do século XX e graças aos avanços da ciência, produziu-se um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da informação, que passaram a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando ao novo sistema técnico uma presença planetária. (Santos, 2003, p. 22)

A técnica da informação, por meio da cibernética, da informática e da eletrônica,

acelera o processo globalizante e ao mesmo tempo é produzida e fortalecida por ele. Isso se

dá, porque a informação assegura o comércio, a comunicação entre as outras técnicas

existentes, permitindo sua unificação. Ela possui também um papel determinante sobre o

uso do tempo porque o padroniza, assegurando assim, a simultaneidade das ações e uma

influência transformadora no cotidiano das pessoas. No entanto, se a hora é a mesma,

convergem os momentos vividos e o conhecimento instantâneo do acontecer do outro e

torna o acontecer local um elo do acontecer global (Santos, 1997).

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A globalização é de certa forma o ápice da internacionalização do mundo

capitalista, porque a padronização do tempo permite aos mercados que funcionem em

diversos lugares durante o ano inteiro. E a técnica da informação, por sua vez, é produzida

por um número limitado de atores em função de seus objetivos particulares. Apropriadas

por alguns Estados e empresas hegemônicas as informações são manipuladas e se

apresentam como ideologia, agravando assim, as desigualdades.

A transformação da relação tempo-espaço tem efeitos profundos sobre a forma

como as identidades são representadas e localizadas. Diferentes épocas culturais possuem

diferentes formas de combinar o espaço e o tempo que, para Hall (1999), são coordenadas

básicas de todos os sistemas de representação. Assim, todo meio de representação traduz os

objetos em dimensões espaciais e temporais de uma geração.

Hoje a intensificação dos processos globais gera uma compressão espaço-tempo, o

que torna as distâncias mais curtas e permite um impacto imediato dos eventos em

determinado local sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância. David Havey

argumenta que:

Á medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia “global” de telecomunicações e uma “espaçonave planetária” de interdependências econômicas e ecológicas – para usar apenas duas imagens familiares e cotidianas – e à medida em que os horizontes temporais se encurtam até ao ponto em que o presente é tudo que existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de compreensão de nossos mundos espaciais e temporais. (Havey, 1989, p. 240)

A compressão tempo-espaço ocorre graças ao aumento da velocidade, porém,

como explica Milton Santos, essa velocidade está ao alcance de um número limitado de

pessoas e “segundo as possibilidades de cada um, as distâncias têm significações e efeitos

diversos e o uso do mesmo relógio não permite igual economia do tempo” (Santos, 1997, p.

41). Nesse contexto, os quilombos são considerados rugosidades no espaço nacional,

resultado da resistência e do abandono durante décadas desse mundo dito globalizado. Eles

representam o resultado da globalização desigual do planeta, que está ao mesmo tempo

presente e ausente em seus territórios.

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A intensa modernização ocorrida no campo brasileiro proporcionou uma abertura

maior das formas atuais ao capitalismo, tanto quanto nas cidades. As áreas agrícolas

tornaram-se um lugar de grande vulnerabilidade, enquanto nas cidades, lugar de resistência

e onde as irracionalidades se criam mais numerosas e incessantemente que as

racionalidades, sobretudo quando há, paralelamente, a produção de pobreza e dos espaços

marginalizados.

Nos quilombos situados em áreas rurais, local onde as racionalidades da

globalização difundem mais rapidamente e intensivamente (representadas pela expansão do

latifúndio) e onde a exclusão é o fator de expulsão dos marginalizados (Santos, 1997), a

perda do território se dá de forma intensa e é causa da perda também da Identidade coletiva.

2.3 A Identidade no local e no global

O processo de globalização possibilitou às organizações modernas conectarem o

local e o global e às sociedades de estarem em mudanças constantes, rápidas e permanentes.

Considerando, é claro, a “dialética espaço-lugar”, em que as iniciativas locais podem

alcançar uma escala global e vice-versa. Pois é um erro considerar somente a globalização

como causa das transformações do local.

Assim, a tendência à homogeneização global da cultura não é unitária, há uma

fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da “alteridade” (Hall, 1997).

A globalização gera um interesse pelo local, no entanto, não considera esse local como um

lugar de tradições estáveis e nem de ausência das influências geradas e introduzidas, como

escreve Hall:

Este “local” não deve, naturalmente, ser confundido com velhas identidades, firmemente enraizadas em localidades bem delimitadas. Em vez disso, ele atua no interior da lógica da globalização. Entretanto, parece improvável que a globalização vá simplesmente destruir as identidades nacionais. É mais provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas identificações “globais” e novas identificações “locais”. (Hall, 1997, p. 78)

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Para Harvey, a renda monopolista necessária para a existência do capitalismo

precisa de sistemas que diferenciem os produtos para melhor monopolizá-los. É neste

contexto, que a cultura local se torna mercadoria, pois ela é utilizada pelo mercado para ser

o diferencial e gerar renda concentrada. Existe o interesse atual do sistema capitalista da

inovação cultural local, da ressurreição e invenção das tradições locais, as quais se

vinculam ao desejo de extrair e se apropriar das rendas monopolistas.

As diferentes formas de representação da identidade social presentes no espaço

local tendem a sucumbir à lógica hegemônica da globalização. Mesmo as formas de

resistência e de reafirmação da identidade local são absorvidas ou adaptadas pelos atores da

economia global. As relações sociais locais não são inteiramente homogeneizadas por esta

economia, entretanto as diferenças de constituição do ser identitário das relações sociais

presentes nos espaços locais, “exóticas ou não”, são adaptadas como produtos. Outro fato

que evidencia a inexistência do processo de homogeneização global como sendo único é

que a globalização não ocorre de maneira uniforme, mas desigual. Ela gera a chamada

“geometria do poder” (Doreen Massey, apud Hall, 1992), a qual está desigualmente

distribuída entre as regiões e entre diferentes estratos sociais da população.

A globalização é um processo desigual que, em certa medida, pode ser

considerado como a ocidentalização dos valores culturais de nossos tempos.

Paradoxalmente, a globalização vem fortalecendo a proliferação de identidades locais e,

ainda que pareça contraditório, a sociedade da informação também pode influenciar na

abertura de espaço na sociedade moderna das culturas geograficamente isoladas.

Pode-se afirmar que os povos modernos vivem a dialética da tradição e da

tradução e persistem na conservação de suas raízes, ao mesmo tempo em que buscam a

transferência de sistemas simbólicos de um lugar para outro. Essa transferência permite

acelerar o desenvolvimento social e cultural. As culturas híbridas constituem um dos

diversos tipos de identidade que estão surgindo na pós-modernidade.

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3 Território: processos de des-territorialização e reterritorialização

3.1 Território e identidade: a dialética materializada no espaço

O sentimento identitário permite que alguém se sinta plenamente membro de um

grupo em uma base espacial dotada e lançada numa realidade. Para Hall.

Todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço simbólico. Elas têm aquilo que Edward chama de suas “geografias imaginárias; suas “paisagens” características, seu senso de “lugar”, de casa/lar, de heimat, bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas. (Stuart Hall, 1997, p.76)

As transformações das cristalizações da identidade num território, isto é, da

realidade social, influenciam na construção de novas identidades, assim como crises

identitárias provocam freqüentemente uma modificação da relação do espaço. Portanto, a

relação entre território e identidade se dá de forma dialética, em que ambos estão em

constante transformação. Vê-se então, porque os problemas do território e a questão da

identidade estão ligados.

Para a compreensão dessa relação entre Identidade e Território, é importante

mencionar a existência, segundo Milton Santos, da psicoesfera e da tecnoesfera. Para

Santos, a tecnoesfera – depende da tecnologia e da ciência - constitui um dado local e adere

ao lugar como uma prótese, ela se instala substituindo o meio natural ou técnico que a

precedeu. A Psicoesfera – reino das idéias, paixões, valores e lugar da produção de um

sentido - também é local. A relação entre ambas se dá de forma dialética, em que:

O meio geográfico atual, graças ao seu conteúdo em técnica e ciência, condiciona os novos comportamentos humanos, e estes, por sua vez, aceleram a necessidade da utilização de recursos técnicos, que constituem a base operacional de novos automotismos sociais. (Santo, 1997 p. 204)

É a partir e através dessas duas esferas (a psicosfera e a tecnoesfera) que se dão os

processos de des-territorialização e reterritorialização dos territórios quilombolas.

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3.2 Território quilombola: des-territorialição e reterritorialização

Apesar do reconhecimento constitucional do direito de propriedade dos

remanescentes de quilombo (Art, 68 do ADCT)1, existe hoje uma enorme dificuldade de

titulação destas terras. Várias comunidades quilombolas estão ameaçadas de perderem suas

terras, muitas já perderam parte delas e outras totalmente. Isso acontece graças ao processo

de globalização desigual; e porque as forças hegemônicas do capitalismo exercem grande

influência sobre o território. Essas forças são representadas pelo latifúndio, pela

especulação com a terra e pelo atual modelo de desenvolvimento. Para Treccani (2006) esse

não leva em consideração a dimensão social e ecológica, somente a econômica.

Para compreender o território é necessário a análise das escalas local e global das

relações que ocorrem no espaço. Foucault se referiu ao espaço dizendo:

É surpreendente ver como o problema dos espaços levou tanto tempo para aparecer como problema histórico político: ou o espaço era remetido à ‘natureza’, à geografia física, ou era concebido como resistência ou expansão de um povo [...] o que importava era o substrato ou as fronteiras. Seria preciso fazer uma história dos espaços – que seria ao mesmo tempo uma história de poderes – que estudasse desde as grandes estratégias das geopolíticas até as pequenas táticas do habitat. (Foucault apud Vesentini, 2000, p.7)

Diante dessa colocação infere-se acerca da importância cotidiana do espaço e das

micro-territorialidades do dia-a-dia. As micro-escalas se inscrevem num determinado modo

de produção, que por sua vez ao ditar os ritmos da reprodução social também o fará no

nível da reprodução espaço-territorial. Uma análise mais aprofundada do cotidiano,

conseqüentemente levará à compreensão de como o capital e o poder agem no dia-a-dia,

com intuito de impor ao homem uma disciplina, para em seguida se reproduzir sem maiores

problemas.

As relações de poder estão intrinsecamente ligadas à construção de

territorialidades e, ao estudar o território, essas relações não podem ser negligenciadas,

1Art. 68 – “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”

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correndo-se o risco de comprometer o entendimento de uma determinada realidade (Souza,

2005). O território referido neste trabalho é fundamentalmente um espaço definido por e a

partir de relações de poder (Souza, 1996). Os territórios existem e são construídos nas mais

diversificadas escalas espaciais e temporais (Souza, 1996). A pesar da referência de um

território delimitado materialmente, que são os remanescentes de quilombos, o seu

movimento, as influências e as dinâmicas territoriais vão além desse limite físico.

Além do aspecto das relações de poder que constituem o território, é importante

também mencionar um outro entendimento de território, indispensável para a compreensão

da realidade territorial dos remanescentes de quilombos, o de “comunidade de lugares”

(Santos, 1996). Portanto ele é o conjunto da materialização da Identidade em um

determinado espaço. É nele que os grupos afirmam e reivindicam sua identidade cultural e

política. Para Brunet, “[...]o território diz respeito à projeção sobre um espaço determinado

de estruturas específicas de um grupo humano, que inclui a maneira de repartição, gestão e

ordenamento desse espaço.” (Brunet et al, 1993, p.436). O espaço é visto tanto como palco

e personagem, em que a sociedade e o território são simultaneamente ator e objeto da ação

(Santos, 2000).

O uso do território hoje é baseado numa lógica globalizada da economia. Para

Milton Santos:

A prática do neoliberalismo acarreta mudanças importantes na utilização do território, tornando esse mais seletivo do que antes e punindo, assim, as populações mais pobres, mais isoladas, mais dispersas e mais distantes dos grandes centros e dos centros produtivos. (Santos, 2001, p.302)

Com a difusão mundial do capitalismo, gerado pelo processo de globalização, a

concepção de terra é vista como mercadoria e não como valor de uso (E. Soja, apud

Correia, 1994). Isso gera uma lógica de apropriação baseada no uso imediato para a renda,

sem levar em consideração outros aspectos nela presentes. Como cita José de Souza

Martins (1991): na relação dos homens com a terra, mediada agora pelo capital, surge a

“terra de negócio” em oposição à “terra de trabalho”. Em conseqüência disso, os

camponeses foram aprisionados com expedientes espúrios, como a violência física direta e

do aparato judicial, que agiram no sentido de negar-lhes o direito legal a terra. Assim

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sendo, não se deve imaginar que os quilombos resistiram em suas propriedades porque se

encontravam isolados da sociedade, mas pelo contrário, sempre mantiveram relações com

seus vizinhos e o motivo de estarem ainda em suas terras (ou em parte delas) é porque

resistiram às várias formas de violência.

A globalização gera mudanças estruturais em objetos, em função das novas

subjetivações que dizem respeito às relações entre território e sujeitos. Isso se dá através do

processo de des-territorialização, o qual não significa aqui esvaziamento de uma área de

influência pela polarização de uma força hegemônica, mas reconstrução de novas

territorialidades, vistas como um processo de reterritorialização, como resultado de um

rearranjo territorial sobre condições de grande compressão tempo-espaço, em que as

transformações ligadas à distância tornam mais intensas as desigualdades do espaço. Para

Giddens:

A vida inteligível do ser é sempre, e em qualquer lugar, compreendida de um sistema de múltiplas camadas de regiões nodais socialmente criadas, uma configuração de locais diferencialmente e hierarquicamente organizados. As formas específicas e funções desta estrutura existencial espacial varia significativamente, em tempo e local. (Apud Soja, 1989, p.30)

Para compreender a mudança social e identitária observada nos quilombos como

uma dinâmica territorial é importante partir da tríade conceitual (T-D-R) de Haesbaert. Na

tríade, o continuísmo formado pela territorialização, que é fechada e enraizada em seus

territorialismos e possui como dimensões sociais fundamentais a política e a cultura; pela

desterritorialização – mais extrema e produtora da exclusão e cujas principais dimensões

sociais são a economia e a política; e pela reterritorialização, que configura uma forma de

resistência à exclusão.

A des-territorialização gerada pelo processo de globalização pode significar dois

caminhos para as comunidades quilombolas: uma, a perda da terra, que gera uma perda

identitária, e a outra, a reterritorialização baseada na produção sustentável e competitiva,

sem a perda da identidade. Para Geiger, no processo de des-territorialização “[...]

permanecem vivas as relações tradicionais de populações com os seus territórios, mas elas

se encontram inseridas em processos universais mais amplos, comandados pela

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globalização” (Geiger, 1994, p. 255). A escolha de um desses caminhos depende no tipo de

ordenamento territorial que o Estado se propõe a desenvolver.

A dinâmica territorial - movimento de territorialização, desterritorialização e

reterritorialização - significa a mudança social. Ela representa “vida e morte dos territórios”

(Cara, 1994).

3.3 A luta pelo território: novas significações identitárias

A luta pela terra quilombola não deve ser compreendida como uma “volta ao

passado” nem como uma tentativa de preservar “resquícios bucólicos” ou de construir a

“utopia da comunidade agrária” (Carvalho, 2002). Ela tem de ser vista como um

movimento social e político responsável pelas transformações modernas da identidade. Para

Martins, “[...] a luta pela terra - como um processo social de resistência ao modelo

agropecuário implantado – se transforma numa luta política, social, cultural, pela

construção e realização da cidadania das populações rurais” (Martins, 1994, p.30).

A luta pela terra é um processo social de reforço de vínculos locais e de relações

de pertencimento a um determinado lugar. Ela provoca alterações da percepção da própria

identidade, possibilitando uma reconstrução da consciência do sujeito, baseada na conquista

do direito ao trabalho e no significado simbólico da produção.

O acesso a terra não é uma antítese à globalização e a seus processos de interação

entre o global e o local (Giddens, 1991), uma vez que a globalização provoca uma

revalorização da importância do lugar (Giddens, 1991). Há uma estreita integração entre o

global e o local em conseqüência do transporte em massa e da telecomunicação (Hall,

1999). A mobilidade social e geográfica, característica dessa globalização provoca um

processo de novas interações entre as duas escalas espaciais, recolocando a importância do

local, da territorialidade e da espacialidade na experiência cotidiana.

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A luta pela terra quilombola acontece em embates sociais e políticos contra a

concentração da propriedade fundiária e do latifúndio. As grandes extensões de terras são

como “não-lugares”, isto é, espaços que materializam ausências e são representados como

“vazios identitários” (Augé, 1994).

A partir do estudo da problemática da luta pela terra no Remanescente de Quilombo

Mesquita, constata-se a existência das várias identidades que convivem num mesmo

território e tempo.

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4 Estudo de caso: comunidade remanescente de quilombo Mesquita no estado de

Goiás

4.1 Histórias do espaço da comunidade

O remanescente de quilombo Mesquita está localizado no município da Cidade

Ocidental, a 24 quilômetros da cidade de Luziânia e a 60 quilômetros do Plano Piloto.

Possui pouco mais de três mil habitantes. O Arraial Mesquita foi formado, há mais de 150

anos, por uma população negra e descendente de escravos trazidos com o surgimento da

mineração do ouro no século 18 para a antiga cidade de Santa Luzia, hoje Luziânia (Reis,

1925).

Em 1763, o período áureo da exploração das minas de ouro, a antiga Santa Luzia

chegou a ter 16.529 habitantes, dos quais 12.900 eram escravos (Reis, 1925). A fartura do

ouro durou entre 1746 a 1775, período em que muitos escravos foram mortos pela dureza

da mineração e, especialmente pela febre nascida do Ribeirão do Inferno, hoje Santa Maria

(Reis, 1925). Com o fim do ciclo do ouro, muitos mineradores abandonaram Santa Luzia

ficando nestas terras alguns escravos.

Não existem documentos oficiais que provem a origem do Mesquita. Há várias

versões contadas pelos moradores. Segundo uma das versões, a mais difundida pela

comunidade, as terras da região foram entregues, por compra ou doação, a duas escravas:

Aloísia Pereira Braga e Inocência Teixeira Magalhães, escravas de um dito capitão Costa.

A versão que a terra foi comprada diz que o capitão deu 15 mil réis a cada uma delas. Elas

se juntaram e compraram as terras do sargento-mor José Corrêa de Mesquita, daí o nome de

Mesquita para o quilombo. As duas escravas se estabeleceram nestas terras com suas

famílias, porém não se tem conhecimento se elas já estavam casadas ou casaram depois da

compra das terras. Durante muito tempo as duas famílias mantiveram a etnia negra, de

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nação africana desconhecida. No entanto, nas duas últimas décadas intensificou-se a

miscigenação entre os negros e os novos moradores.

Uma outra versão diz que: quando as duas ex-escravas chegaram na atual região

do Mesquita, já existiam várias famílias morando no local, tratando-se de escravos fugidos

durante o período de mineração, que se estabeleceram em áreas de matas fechadas

escondidas, e de difícil acesso.

O remanescente de quilombo Mesquita possui grande riqueza cultural, resultado

de uma história como de tantas localidades do Brasil, de negros que estabeleceram valores

aos territórios. O Mesquita possui tradições e identidade étnica que foram essenciais para a

construção da cultura goiana e da cultura brasileira, como por exemplo, a Folia de Reis que

é uma festa religiosa muito famosa no Estado de Goiás, sendo a religiosidade característica

marcante da comunidade.

4.2 Pressões espaciais sobre o território do remanescente de quilombo

Mesquita

Depois do término do ciclo do ouro na região da antiga Santa Luzia, grande parte

das pessoas foi embora. O crescimento da população se estabilizou na área, que não possuía

mais a atração principal, o ouro. A maior parte das famílias morava na área rural e a área

urbana era muito pequena. Poucos anos depois houve a assinatura da Lei Áurea (em 1888)

que abolia a escravidão no Brasil. Segundo a versão de que nas terras doadas às duas

escravas já existiam negros fugidos que não eram alforriados, depois da abolição, eles

podiam sem medo manter relações com roçados, fazendas vizinhas e com a cidade de

Luziânia. Foi naquele território e a partir dessas relações, que a cultura, as tradições, as

festas, as identidades do quilombo foram se desenvolvendo e se difundindo.

Na segunda metade do século XX, em 1960, foi inaugurada a nova capital do

país, Brasília, a apenas 50 km de distância do Mesquita. Esse fato transformou a sua

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estrutura territorial, pois parte do território do Quilombo se encontrava dentro do

quadrilátero do DF. O território quilombola foi desconsiderado no processo de demarcação

do DF. A desapropriação das terras foi um dos processos que acompanhou a construção da

nova capital. Os quilombolas não conseguiram provar a titularidade de suas terras que

foram ocupadas por atividades públicas e para a construção das cidades satélites. Com

mostra a fala da moradora do Mesquita, Dona Antônia:

Nossa casa era perto da Marinha, mas lá era terra do governo né? Ai a gente teve que se mudar, compramos casa aqui mais perto, perto da casa da Sandra2. Lá a gente cuidava da criação (de gado), aqui agora tem plantação de mandioca (...) eu ajudo mais na hora de fazer a farinha né? (Antonia Pereira Braga, entrevistada em 10 de abril de 2006)

2 Sandra Pereira é a líder comunitária do Remanescente de Quilombo Mesquita, filha de João Antônio Pereira (o maior produtor de marmelo da comunidade)

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Mapa 2

O mapa 2 mostra que grande parte do território Mesquita estava localizado dentro

do DF, mas especificamente na RA de Santa Maria e outra menor no Goiás. Depois da

construção de Brasília e dos núcleos habitacionais no município da Cidade Ocidental houve

uma grande redução do seu território.

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Durante a construção de Brasília, o Mesquita possuía dois núcleos territoriais,

onde se concentravam as famílias e as produções de subsistência. Um deles, a oeste, se

localizava dentro de parte da atual RA de Santa Maria e o outro, a leste, de parte do atual

município de Cidade Ocidental e do território do Distrito Federal. Não se sabe o porquê da

existência desta descontinuidade territorial.

O Mapa 3 abaixo mostra os limites dos dois núcleos que eram divididos pelo rio

Saia Velha. Os quais mantinham contatos intensos entre si através da troca da produção

excedente e das festas religiosas.

Mapa 3

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Provavelmente, a perda total das terras do primeiro núcleo se deu com a criação da

área urbana e da RA de Santa Maria em 1993. Não se tem informação de que até esta data

existia de fato algum morador do Mesquita ainda praticando agricultura nessas terras. Este

ano, o Mesquita conseguiu provar judicialmente, com o auxílio da Fundação Palmares, que

parte desta RA estava localizada em seu território. Existem outras evidências, porém, ainda

não provadas, de que toda a RA de Santa Maria está localizada em seu território, segundo

informação da Fundação Palmares.

No segundo núcleo, onde ainda existe o remanescente do quilombo, as terras já

perdidas foram resultado de uma nova organização territorial desenvolvida a partir da

construção do Distrito Federal e da criação de núcleos habitacionais na Cidade Ocidental

que, em 1990, foi transformada em município. Estes fatos propiciaram uma intensificação

do processo de urbanização das áreas ao redor do território Mesquita e da valorização da

terra para a agricultura, devido sua proximidade com a capital. Ao norte e ao sul do

território as terras foram vendidas pelos quilombolas ou invadidas para dar espaço às

atividades de agricultura moderna voltada para a exportação e de pecuária. Ao sudeste, a

leste e a oeste, beirando o córrego Mesquita, a terra foi também vendida ou invadida para a

construção de núcleos habitacionais, condomínios, ou para a especulação imobiliária,

permanecendo as áreas vazias, improdutivas e abandonadas.

A intensa expansão urbana, a agricultura e a pecuária modernas no território

continuam sendo os principais vetores antrópicos de ameaça da perda das terras do

Mesquita. Podem-se classificar estes vetores em dois: urbanos ou rurais (monocultura e

criação de gado). Os urbanos se subdividem em diretos e indiretos. Os diretos são os

loteamentos, condomínios, e as terras para especulação imobiliária. Já os indiretos são o

desenvolvimento da infra-estrutura no território Mesquita, que melhora a vida da

comunidade, todavia valoriza mais a terra, atrai novos moradores e especuladores

resultando assim, no aumento da perda do território quilombola. Atualmente, os vetores de

pressão urbana correspondem à uma relevante ameaça para a perda da área do

remanescente.

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Mapa 4

O Mapa 4 mostra os pontos de expansão da pressão urbana. Novos loteamentos

estão sendo estruturados principalmente ao sudoeste do território. Eles seguem o curso do

rio e da estrada. Já os pontos da expansão agrícola e pecuária localizam-se ao norte das

terras quilombolas.

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No que diz respeito aos fatores indiretos (as infra-estruturas), o desenvolvimento

da malha viária (a construção de novas estradas) corresponde o de maior intensidade sobre

o território. A pavimentação (em 2006) da estrada que liga o Mesquita diretamente ao

Plano Piloto, representa um fator que determina a posição do fluxo do crescimento urbano

em direção ao Mesquita, ao mesmo tempo que foi implantada devido ao crescimento do

número de habitantes naquelas redondezas. Ali, passam vans e ônibus saindo do Mesquita

para o Plano Piloto.

Mapa 5

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O mapa 5 mostra a estrada asfaltada passando por dentro do Mesquita e ligando

diretamente à Brasília, fato esse que reforça o processo de intensificação da urbanização na

área.

Mapa 6

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Ao analisar o mapa 6 de uso do solo, numa escala de 1:250.000, pode-se concluir

que o território Mesquita está inserido totalmente numa área de pastagem e aos seus

arredores está uma área de cultivo geral. O território quilombola possui uma grande

potencialidade para tais atividades, graças a sua rica rede de drenagem, sua declividade,

tipo de solo e sua localização, gerando um maior interesse dos grandes agricultores e

pecuaristas sobre a terra.

Cada família do povoado é responsável por sua produção, o excedente é vendido

nas feiras da Cidade Ocidental, de Luziânia e no Plano Piloto; como o doce de goiaba, a

marmelada e a farinha de mandioca, que mantêm tradições de um Brasil Colonial. A

produção está se reduzindo devido à falta de investimentos e da perda da terra. A

cooperativa agrícola do povoado está enfraquecendo.

Pode-se inferir, a partir do discurso dos membros do governo municipal da Cidade

Ocidental e de suas atitudes, que o apoio financeiro é dado prioritariamente para os grandes

produtores rurais e pouco é investido na agricultura de subsistência e nas pequenas

agriculturas do município. Isso se dá porque as grandes produções são mais lucrativas num

período pequeno de tempo e os grandes produtores possuem uma significativa influência

sobre as decisões da administração municipal.

Existe um outro fator correspondente ao vetor de pressão agrícola, que atua através

das relações entre as classes sociais ali presentes: os grandes proprietários e os

trabalhadores rurais que são membros da comunidade Mesquita. Esse último fator

corresponde às pressões geradas pelos grandes proprietários sobre seus trabalhadores

quilombolas.

Depois de reconhecido como Remanescentes, em 2006, a luta agora dos membros

mais antigos da comunidade é a delimitação de suas terras, que se configura num grande

problema e em conflitos internos e externos. Externos, porque parte das fazendas vizinhas

que eram de posse do Mesquita serão desapropriadas pelo governo federal para restabelecer

os limites do Quilombo e aumentar o seu território, tarefa essa nada fácil. Já internamente,

porque a própria comunidade se divide: parte (liderada pelos mais antigos) é a favor da

delimitação e outra parte (os mais novos) é contra. O argumento utilizado pelos moradores

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contrários à delimitação é de que com a desapropriação das grandes fazendas vizinhas,

acabam-se também os empregos agrícolas proporcionados por elas. Parte dos moradores da

comunidade depende das fazendas para trabalhar: como temporários (época de plantio e

colheita) ou permanentes (alguns trabalham há muitos anos numa mesma fazenda). O

discurso da não desapropriação correspondente a uma parcela significativa de pessoas da

comunidade e se constrói a partir das relações com os fazendeiros, que são praticamente

todos contrários à delimitação e utilizam seu poder sobre aquele território para impor seus

interesses, combinado, é claro, com o não acesso às informações.

A maioria dos jovens tem medo de que com a delimitação das terras se estabilize o

“progresso” e a entrada de novas infra-estruturas; e que tenham de permanecer nas próprias

terras para o trabalho agrícola de subsistência. Percebe-se um crescimento da migração dos

mais jovens do povoado. Eles vão à procura de novas oportunidades de trabalhos e de

estudo nas cidades vizinhas (principalmente Brasília e Luziânia).

As várias posições dos quilombolas no que diz respeito à delimitação da terra

correspondem às distintas identidades dos seus membros. As identidades pós-modernas são

influenciadas diretamente pelas pressões locais surgidas a partir da estrutura econômica

global e pelas transformações dos desejos e pela curiosidade do novo e do urbano. Já as

identidades tradicionais correspondem a uma busca pelo passado sem, no entanto,

desconsiderar as mudanças do presente.

Com o objetivo de mapear as áreas prioritárias de conservação do Goiás, foi feito

um estudo pela AGMA (Agência Goiânia de Meio Ambiente) em parceria com a ONG

WWF-Brasil, no qual foram espacializadas as áreas com maiores pressões antrópicas no

Goiás, geradas a partir da integração das intersecções de buffers4 dos vetores de pressão ao

redor das UPs (Unidades de Planejamento) estabelecidas pela AGMA.

Ao analisar o resultado desse trabalho, conclui-se que o território da comunidade

remanescente de quilombo Mesquita localiza-se numa área que sofre grande influência de

4 Operação realizada pelo programa ArcView. É uma região (buffer zones) a partir da distância x de um ponto, linha ou polígono do mapa. Ex: buffer de 200 metros ao redor de uma propriedade. É usado para definir (ou excluir) áreas como opção para futura análise.

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todos os vetores analisados (numa escala de 1:250.000). Esses vetores foram: a mancha

urbana (área de uso irreversível, não é adequadas para a conservação da grande maioria das

espécies e trata-se de regiões intensamente ocupadas); a agricultura (as atividades agrícolas

geram ameaças à conservação da biodiversidade de diferentes formas como, por exemplo,

através da erradicação ou fragmentação de hábitat, no assoreamento de corpos d´água, na

contaminação por agrotóxicos, em mudanças micro e meso climáticas, etc); a malha viária

(gera o aumento da mortalidade de populações animais) e a pastagem.

Para se obter o objetivo final da pesquisa foi construído o shape de vulnerabilidade

das áreas do estado de Goiás. Considerando-se que quanto maior a vulnerabilidade de uma

área, maior a probabilidade ou eminência de erradicação dos objetos de conservação. Como

se pode observar no mapa 7, o Mesquita localiza-se em uma área de alta vulnerabilidade,

devido o alto grau de pressões sofridas pelo território.

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Mapa 7

O Mapa 7 mostra que o território Mesquita encontra-se numa área de alta

vulnerabilidade que sofre grande influência dos vetores de pressão agrícola, urbana, viária e

pecuária. As terras quilombolas estão numa área de intersecção de todos esses vetores.

No final deste Projeto (da AGMA e WWF-Brasil) foram definidas as áreas

prioritárias para conservação no Estado de Goiás, baseando-se agora não só nos fatores de

ameaças, mas também em metas quantitativas para os padrões de distribuição da

biodiversidade e utilizando como objetos de conservação as unidades fitogeomorfológicas,

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as áreas alagáveis e as espécies endêmicas. E o território Mesquita está localizado numa

área prioritária nesse estudo, com grande valor de biodiversidade.

Todas as pressões sobre o território mencionadas geram novas estruturas na

paisagem da comunidade Mesquita, estruturas essas que fazem surgir novas concepções

identitárias representadas pelos sujeitos pós-modernos.

4.3 A Paisagem: palco e ator das transformações ocorridas no modo de vida

do povoado

Os objetos espaciais são dotados de sentidos. Para Vygotsky (1987), sentido é a

soma de todos os eventos psicológicos que os objetos despertam na consciência. É um todo

complexo e fluido, que se altera dependendo do contexto. Aí se dá a apropriação do

território pelas identidades; e a paisagem é o resultado dessa relação.

A paisagem geográfica é uma marca, uma grafia que o homem imprime na

superfície da terra. Essa marca reflete a natureza da sociedade que realiza a grafia. Ao

mesmo tempo as marcas constituem condições para a existência e ação humana. Para

Berque:

[...] paisagem é plurimodal (passiva-ativa-potencial, etc), como é plurimodal o

sujeito para o qual a paisagem existe; [...] a paisagem e o sujeito são co-

integrados em um conjunto unitário, que se auto-produz e se auto-reproduz.

(apud Corrêa, Rosendahl, 1998, p. 10)

A paisagem é tanto uma marca que pode ser descrita e reinventada, como uma

matriz, porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e ação que canalizam

em um certo sentido a compreensão de uma sociedade. Ela é ao mesmo tempo a expressão,

o resultado da relação transformadora entre a sociedade e o meio natural mediada pela

cultura; e a condição que determina o olhar, a consciência, a estética, a moral, a política –

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ou seja, a cultura (Cosgrove, 1998). A relação entre paisagem e cultura se dá de forma

dialética, a partir de seus infinitos laços de co-determinação. As paisagens dispostas no

espaço fornecem uma fundamentação vital para a memória coletiva e para o imaginário

enquanto representação simbólica.

Numa mesma paisagem encontram-se as materializações de tempos distintos, onde

convivem num mesmo território as estruturas antigas e modernas. As casas antigas de barro

e as casas modernas de alvenaria e com antenas parabólicas localizam-se lado a lado no

Mesquita (veja fotos 1 e 2). A maior parte das habitações ainda se encontra dispersa sobre o

território (como em muitos distritos rurais), principalmente as residências dos moradores

mais antigos e de estruturas mais antigas.

Foto 1: Exemplo de construção antiga Foto 2: As novas casas construídas

As fotos 1 e 2 acima provam que é na paisagem que há a materialização do antigo

e do novo e eles convivem lado a lado num mesmo território. A foto 1 mostra a casa de

adobe mantida pelo morador como lembrança de seus pais. Já a foto 2 é um exemplo das

várias novas casas construídas de tijolo e cimento pelos quilombolas.

Foi feita uma busca de fotos antigas na comunidade, mas não foi encontrada

nenhuma porque os antigos moradores não tinham o costume de fotografar e nem possuíam

máquinas.

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Mapa 8

O mapa 8 mostra o centro do Mesquita, onde encontra-se a maior concentração de

residências e onde estão localizadas as infra-estruturas: a escola, o posto de saúde, a

cooperativa dos moradores, os mercadinhos, os bares, as igrejas, o campo de futebol. O

centro não é habitado em sua maioria pelos descendentes do quilombo, mas por pessoas de

fora. A maior parte dos lotes que ali se localizam foi vendido para moradores que vieram de

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fora e preferiram se estabelecer perto das infra-estruturas. Porém, o centro continua sendo

um ponto de convivência para todos os moradores do Mesquita, que se reúnem todo final

de semana nas igrejas e durante a semana nas infra-estruturas e na cooperativa, que

desempenha dentre outras funções, a de receber e distribuir todo dia as correspondências

dos membros da comunidade que moram mais distantes.

Ao norte do campo de futebol, localiza-se um canal de água construído há 100

anos pelos quilombolas (veja no mapa 8), que servia para levar água das nascentes para as

casas. Essa água era utilizada para beber e regar as plantações. Hoje, com a chegada da

água encanada e tratada, este canal serve apenas para regar algumas hortas e matar a cede

dos cães que ali vivem. Esta água encontra-se ainda em bom estado de conservação.

Ainda no mapa 8, as áreas onde se encontram remanescentes da vegetação

correspondem ao local das residência dos descendentes do quilombo Mesquita.

Foto 3: Antiga capela da igreja católica Foto 4: Construção da nova matriz

A foto 4 representa a construção da nova matriz que substituirá a capela antiga da

foto 3. O terreno foi doado pelo Senhor Benedito Antônio de 94 anos e morador do

Mesquita; e o dinheiro para esta obra foi todo arrecadado na própria comunidade.

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Foto 5: Estrada recém asfaltada Foto 6: Posto de saúde já em funcionamento

A foto 5 compreende a da estrada que corta o Mesquita e liga os núcleos

habitacionais à Brasília. A foto 6 é a do posto de saúde. Estas fotos representam a entrada

das infra-estruturas que atuam como transformadoras da identidades.

Foto 7: Cooperativa dos moradores Foto 8: Associação dos pequenos trabalhadores rurais do Mesquita

As fotos 7 e 8 representam a iniciativa de organização entre os moradores, a

materialização da resistência à lógica econômica na paisagem.

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Foto 9: Casa de farinha Foto 10: Canal de água construído no início do século XX

As fotos 9 e 10 correspondem as estruturas antigas que ainda estão presentes no

território Mesquita. A casa de farinha ainda é usada pelos mais antigos. A presença da

materialização da cultura do início do século XX permite entender que o tradicional ainda

está vivo no atual território.

Foto 11: Meio de transporte ainda utilizado Foto 12: Antenas parabólicas nas casas de difícil

acesso

As fotos 11 e 12 ilustram e reforçam a convivencia entre as materializações do

tradicional e do moderno. A foto 1 evidencia a existência de estrada asfaltada se

contrapondo a de um meio de transporte antigo (o cavalo). Já a foto 12 mostra casa que

mesmo de difícil acesso, possui estrutura moderna (antena parabólica).

Na paisagem da Comunidade Mesquita pode-se observar o passado, representados

pelas casas antigas, o canal artificial de água, a agricultura de subsistência, as estradas de

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terras, as moradias de difícil acesso, etc; e o presente, representado pelas novas

construções, pelas novas infra-estruturas, a estrada asfaltada, a parada de ônibus, a área de

pecuária extensiva, convivendo numa mesma área. Essa nova estrutura da paisagem

significa as várias identidades representadas pelas tradicionais (os antigos) e as pós-

modernas descentradas (os mais novos) convivendo também num só território.

Observa-se que a paisagem é marca das mudanças e é matriz de novas

transformações e novas identidades. Na paisagem, o estilo, a disposição e os materiais

refletem a presença de modos de vidas distintos num mesmo território. Uma correlação

estabelecida entre determinada cultura e sua paisagem serve para inferências sobre a cultura

a partir de tipos conhecidos da paisagem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atual organização espacial do remanescente de quilombo Mesquita é resultado

das condições existentes no mundo pós-moderno, em que a utilização da terra toma um

aspecto peculiar no mundo capitalista. Ela deve produzir e gerar excedentes, tornando-se

um bem para ser especulado. É nesse contexto que ocorre a perda do território quilombola.

A identidade pós-moderna dos quilombolas é influenciada por uma nova estrutura

territorial, presente no processo de globalização, provocando as pressões sobre o território e

conseqüentemente a perda desse e os intensos fluxos de pessoas – moradores que trabalham

em cidades vizinhas do estado de Goiás e no Distrito Federal.

Apesar das descontinuidades espaciais os quilombos não são ilhas, são territórios

social e politicamente demarcados, resultados de uma história de exclusão e resistência dos

negros. Os quilombos devem ser vistos como espaços singulares que abrem a possibilidade

para novas interações identitárias e representacionais. O território quilombola significa um

“outro lugar” qualitativamente diferente e de combate ao processo de des-territorialização,

forçado pelo modelo agrário e agropecuário implantado no Brasil, representando a

reterritorialização, através da sua luta pela permanência nas terras. Para sua continuidade a

identidade quilombola necessita do seu território, pois é a partir deste que ela é construída.

Existe uma problemática no quilombo Mesquita como lugar de resistência pela divisão

entre os moradores – enquanto uns já integraram no mundo pós-moderno, outros

permanecem fiéis ao passado e às tradições. Esse dilema deve ser compreendido levando-se

em consideração todas as escalas possíveis de análise: do local ao global.

Acredito que a luta dos quilombolas pela permanência em suas terras deve ser

vista associada aos novos valores e desafios, cabendo repensar o atual modelo de

desenvolvimento nacional, recolocando o rural em discussão como um lugar capaz de

produzir qualidade de vida. O território quilombola significa uma alternativa à realidade

em oposição às tendências de homogeneidade do espaço da modernidade. Ele é visto como

garantia de moradia, símbolo de fartura, de futuro e de liberdade.

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A demarcação das terras dos quilombos é o primeiro passo para garantir a

permanência produtiva da população em seus territórios e posteriormente é essencial que se

realize um Planejamento Territorial. Como deve ser feito esse Planejamento?

Essa é uma pergunta importante de ser discutida por todas as esferas da sociedade,

sendo de fundamental importância que se considerem dois fatores: o planejamento deve

partir da vivência local e ele deve ser realizado de forma participativa. Que a partir das

relações locais se estabeleça uma forma criativa de desenvolvimento no processo global.

A globalização gera a primazia do econômico sobre o político, do instrumental

sobre a finalidade e do dinheiro sobre o homem, sobretudo ela também gera o

desenvolvimento de técnicas que precisam ser usadas de outras maneiras, podendo

contribuir para a qualidade de vida da população quilombola.

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ANEXOS

1- Fotografias

2- Reportagens

3- Entrevistas

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1. 1 - Fotografias

Foto 13 - Estrada de acesso ao Povoado

Foto 14 – Pequena agricultura cultivada no povoado

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Foto 15 - Folia de Nossa Senhora da Abadia (janeiro de 2006) – Eduardo Kolody

Foto 16 - Folia de Reis (agosto de 2006)

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Foto 17 – Folia de Reis (agosto de 2006) – Herbert Carlos

Foto 18 - Folia de Nossa Senhora da Abadia (janeiro de 2006)

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Fonte das Fotos 15-18: Livro “Entorno que transborda: patrimônio imaterial da RIDE”. Coordenação de Maria Thereza

Ferraz Negrão de Melo, Brasília: Petrobras, 2006.

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1.1. 2 - Reportagens

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3 – Entrevistas Antônia Pereira Braga. Entrevistada em 10 de abril de 2006. Edith Gomes de Oliveira. Entrevistada em 20 de janeiro de 2006. Jerônima de Braga. Entrevistada em 12 de novembro 2005. João Antônio de Araújo entrevistado em 15 de novembro de 2005. José Roberto Meireles. Entrevistado em 30 de maio 2006.

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3.1 Entrevista com a líder comunitária e filha do presidente da Cooperativa de moradores. Sandra Pereira entrevistada 6 de abril de 2007

A: Sandra, quem foi a pessoa responsável pelos processos de reconhecimento do Mesquita como Remanescente de Quilombo?

Sandra: Essa foi um tarefa muito árdua, mas que conseguimos no ano passado e eu estava a frente deste processo.

A: Como se deu esse processo? Sandra: Foi um trabalho de auto-conhecimento que fizemos com a comunidade e que

demandou muito tempo. Esse trabalho consistia que a comunidade precisava se auto reconhecer como Quilombo, o que não foi fácil, porque muita gente daqui tem medo de se reconhecer como descendentes de escravos, primeiro porque a relação que temos com nossos vizinhos se dá de forma racista e eles tinham medo de que piorasse. Mas no final, trazendo sempre informações, nós conseguimos.

A: Na reunião com a Fundação Palmares para o reconhecimento, quem da comunidade estava presente?

Sandra: conseguimos reunir pra a reunião um grupo representado pelos mais velhos daqui e os que possuíam ainda a maior parte das terras, das tradições e das lembranças.

A: E como caminha agora a questão do limite do território? Sandra: esta caminhando. Mas muita gente daqui num sabe o quanto é importante a

demarcação do território. A: Por que? Sandra: muitos sofrem a pressão de fazendeiros e como não tem conhecimento, nem

informação, acham que tudo que eles dizem é verdade. Claro que eles estão de olho nas nossas terras, é de seu interesse porque o Mesquita fica a apenas 60 km de Brasília. O povo aqui ta dividido no que diz respeito a demarcação da terra. Os mais jovens acham que num deve demarcar, porque se não acaba, como dizem eles: “o progresso”.

A: O Mesquita já perdeu muitas terras? Sandra: Sim, muita mesmo, vc nem imagina o quanto. Meu pai, senhor João Antonio

Pereira, diz que a gente tinha ha pouco tempo o total de 162 alqueres. A: Você sabe qual era o limite das terras? Sandra: Num dá pra dizer bem exato, mas é algo muito interessante de procurar em

documentos e com os mais antigos. Eu sei que ao norte parte da marinha era nossa e ia até a Santa Maria, minha família tinha terra lá, nós ganhamos na justiça e agora seremos indenizados, graças a Deus.

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3.2 Entrevista com o secretario de agricultura – Cidade Ocidental João Antonio de Araújo entrevistado em 15 de novembro de 2005. Departamento de desenvolvimento agrícola e pecuária

B: A gente gostaria de saber sobre a produção do Mesquita. A: A produção deles é pouco, é a pocam que esta pouca, eles já foram grandes produtores

no passado, o problema lá é o seguinte: a medida que os velhos vão morrendo, aquilo vai acabando, vende tudo não produz não aumenta. Nossa preocupação para poder manter a cultura do marmelo por que ela realmente esta em decadência. Nos chegamos a trazer muda de enxerto lá de Minas, por que o marmelo aqui demora até quinze anos para poder dar fruto, como eles estão plantando em galha, fazendo a muda chega a oito anos, enquanto o enxerto em quatro anos eles estão tendo retorno. E tem nova técnicas também para eles produzirem.

B: Isso a prefeitura esta levando para eles? A: Isso a prefeitura já levou mas esta difícil deles darem continuidade, um dos grandes

problemas Intomoscoriose, olha isso aqui em grande problema do marmelo, e poder aquisitivos deles lá, vocês já foram lá? Vocês notaram que quem é de lá de origem, você vê que não tem, você vê a propriedade você quem não nada assim, o recurso deles é muito pouco. A mão de obra tem que ser em cada pé, tem que fazer a poda, aquilo preto que vocês viram no caule do marmelo, não sei se vocês observaram isso, é isso aqui: a Intomoscoriose

A: Tem duas feiras na quinta e no sábado, nos fazemos duas feiras e da um trabalho todo,

se eu não tiver um empregado lá em não dou conta, como é que o próprio produtor 3que não tem ninguém lá trabalhando, por que tem os filhos que trabalhando fora, ele tem condição de estar aqui o dia todinho a semana todinha no “Itaú” vendendo e dizer que o produto é dele é mentira. Existe um projeto para demarcar todas as terras de quilombolas, mas se eu não me engano ele ai não são não, eu sei que no Goiás tem muitos tem os Calungas que são, eles lá (no Mesquita), não tem muito estudo sobre isso, as próprias pessoas da comunidade não gostam que fale, tipo assim se você chegar e discutir com as pessoas alguns aceitam, outras não. Na verdade o que acontece por parte do governo é que, ele investe muito e não resolve nada, as pessoas que conhece que trabalham em Cavalcante e Teresina, diz que o que o governo gasta lá daria para dar, como diz uma qualidade de vida excepcional para o pessoal lá, mas não interesse. B: mas não existe nada que vá para lá (o Mesquita) para ajudar na produção agrícola? A: existe uma patrulha a disposição, mas eles têm de pagar 50% do valor da hora, daí eles ficam segurando, nos estamos na metade do mês de novembro, época do plantio muitos não fizeram o prepara do solo, cinco deles fizeram até agora e por que? Para não pagar uma taxa, tem o preço do diesel que aumenta também, eles tem de pagar uns R$ 25,00 a hora trabalhada. B: lá as mulheres produzem muito artesanato, mas não vendem aqui por que a prefeitura cobra. A: a feira é feira do produtor agrícola e artesanato, mas ele lá querem que a gente vai com o carro buscar, quem quiser vir pode por tudo na sacola e vir de ônibus, entende? Vocês que foram lá viram que é 4Km. E tem um problema também que ele querem valorizam muito o produto deles, é 4km ate a entrada até aqui mais 3, 7, mas lá eles querem valorizar de mais os

3 Os produtores aos quais ele se refere são três mulheres que montam uma pequena mesa em frente a agencia do Banco Itaú da Cidade Ocidental, elas comercializam hortaliças como cheiro-verde, alface, coentro e couve.

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produtos deles. Por exemplo quando tem a feira da agricultura o pessoal vende cheiro verde por exemplo 3 por R$ 1,00 aqui na feira, os de lá querem vender a R$ 0,70 cada. Não dá! Agora qual que é o problema? Não sabe quanto custa, também nunca parou para pensar, então esse é um atraso que tem que é difícil colocar na cabeça deles. Eles querem ganhar muito. Fica mais fácil comprar de R$ 0,30 e vendera R$ 0,70 do que produzir a R$ 0,10 e vender a R$ 0,30 ou R$ 0,40. Pés: As terras lá já foram muito valorizadas. Ainda são? A: ainda é, eu costumo dizer o seguinte: lá vai deixar de ser tradicional, o Mesquita vai acabar porque já tem gente de Brasília que comprou lá que esta comprando sabe! Vai acabando com aquela cultura que eles tem, vai chegar uma hora que só vai te a Festa da Nossa Senhora de Abadia. Por que o Marmele esta em decadência, né! A prefeitura esta tentando levantar de qualquer forma. Mas você não pode obrigara eles a produzir. Assistência técnica tem: tem técnica a disposição, tem os incentives da prefeitura, tem o maquinário. Hoje abrui a Feira do produtor para incentivar eles. Eles têm muita terra, vocês viram lá tem muita terra para ser executada. (pausa) A: a gente foi lá vê por que a produção de seu Severo caiu, ele ainda é um dos antigos que ainda mantém a produção estável, ele ainda tem pé de marmelo dos tempos do Bisavô dele, a produção é caseira, mas eles só enxergam eles ali, não vê que os outros lá tem... tem o Leopoldo, tem o tio do Leopoldo, que são grandes produtores, eles não incluem a produção deles. Só o Leopoldo hoje tem quatro mil pé de marmelo de enxerto, desse incentivo da prefeitura para cá, eles trouxe o caminhão dele para cá para buscar as mudas, ele é um dos que condições. Então a cidade do Mesquita produz muito pouquinho. (pausa) A: o próprio presidente da Associação é um dos maiores produtores de marmelo, ms do doce, se você for lá no sitio dele, se tiver 40 pé tem muito, ele compra a poupa de Minas, de Marmelopólis. Como é que ele pode querer resgatar se ele próprio não dá o exemplo, que é o João Nonato. A: Lá eles têm medo, como vocês viram é fabriqueta caseira, eles não pagam imposto, eles tem medo de dizer quanto produz, se você vai lá e pergunta eles jogam tudo por baixo. Eles não gostam que fala da origem preta deles. Se fala em restagar passado deles lá eles não gostam não.

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3.3 Entrevista com Sandra e as duas irmãs. Entrevistadas dia 20 de janeiro de 2006. A: como era a casa quando vocês eram crianças? B: Nosso quarto era assim: fazia de tecido a paca e colocava palha de arroz quer era o colchão que era o que a gente dormia, ai meu pai fazia uma cama que era para ela mais minha mãe e ai fazia uma para mim e a Sandra, por que nos éramos as primeiras, ai tinha o folgãozinho de lenha que fazia comida. Olha eu chorava mais chorava por que tinha raiva daquilo, mas dormia né. Eu fico pensando né... C: mas naquela época a gente sabia brincar. B: Não tinha energia, a gente usava aquelas lamparinas, ai colocava olho, Banho... a gente esquentava a água na lata e tomava banho de cuia, e assim a gente não tinha radio, não tinha televisão, não tinha geladeira não tinha nada. C: o lanche da escola a gente leva na cuia, vocês sabem o que é cuia né? Ai era assim a gente pegava a cuia cortava no meio e levava o lanche lá dentro coberto com um paninho dentro de um sacinho de açúcar, hoje em dia meus meninos têm tudo lancheira, não tem que ir no meio do mato buscar as coisas todo dia, ai eu digo que eles tem que se conscientizar mais, a gente fala, fala mais não adianta nada, a gente cuidava do nosso material... B: Por que a gente sabia que a gente ia precisar dele né? E quando quebrava a gente chorava... Sabia que se quebrasse não tinha outro, que se não fizesse a comida para levar não comia. C: e olha que eu pego coisas antigas e mostro para eles mas é difícil eu falo e eles nem liga, a mesma coisa na escola e levo e tento comparar a vida de antes com a de agora mais eles nem ligam. E sabe por que? Por que hoje eles tudo pronto, as mães dão tudo. B: para gente passar roupa a gente pegava aqueles ferros antigos e colocava sabugo dentro, assim que esquenta o ferro e passava a roupa, isso quando não cai aquela cinza que sujava a roupa toda. B: eu tenho aluna que diz que vai para a escola para não fazer as coisas de casa que diz assim: a professora minha mãe me coloca para lavar louça fazer a coisas, aqui não né. C: A gente tinha tarefa, meu pai não dava mole para gente não, uma semana eu que acendia o fogo, era contado de segunda a sábado, eu levantava acendia o fogo, fazia café e colocava o feijão para cozinha, como não tinha geladeira você tinha que cozinhar feijão todos os dias. Essa era minha tarefa uma semana ai na outra semana era ela. A gente lava roupa, eu lembro que quando minha mãe estava de resguardo do meu outro irmão, eu e Sandra ainda pequenas pegávamos o banquinho e colocávamos perto da pia e lavava, e a gente se virava e fazia arroz, feijão, com oito nove anos a gente já estava se virando. Hoje o povo tem tudo em casa e não valoriza, tem um fogão em casa pia tudo e não valoriza e ainda acha que é pouco. A: vindo para casa a gente vê quase uma cidadezinha....

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C: as casas que vocês viram no centro perto da escola era tudo mato. B: ali é tudo terra que foi vendida, eles não são daqui não, mais o pessoal foi vendendo, descendo aqui indo la para onde mora a dona Antônia tem muita chácara que ainda é Mesquita, é muito grande. D: A gente lá na Associação conseguimos dois projetos interessantes, primeiro foi o e trazer um agente de saúde e fazer a casinha de atendimento e outra é que a gente conseguiu esta semana conseguiu que a Brasil Telecom disponibiliza-se linhas de telefone pra cá por que não tinha.. C: Tem também as caixas postais, por que aqui não tinha endereço.