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Estudos Feministas, Florianópolis, 15(1): 280, janeiro-abril/2007 153 A expansão do “ A expansão do “ A expansão do “ A expansão do “ A expansão do “feminino” no feminino” no feminino” no feminino” no feminino” no espaço público brasileiro: espaço público brasileiro: espaço público brasileiro: espaço público brasileiro: espaço público brasileiro: novelas de televisão nas décadas novelas de televisão nas décadas novelas de televisão nas décadas novelas de televisão nas décadas novelas de televisão nas décadas de 1970 e 80 de 1970 e 80 de 1970 e 80 de 1970 e 80 de 1970 e 80 1 Resumo esumo esumo esumo esumo: O texto retoma a literatura crítica e múltipla que, a partir de diversas perspectivas teóricas, com ênfase em diferentes períodos históricos e países, trata das relações entre meios de comunicação de massa e representações das relações de gênero. Essa revisão bibliográfica seleciona trabalhos sugestivos para a discussão que se segue sobre as principais convenções das novelas brasileiras, gênero de programação que articula elementos do documentário e da ficção, tratando da nação em termos melodramáticos. Análise de títulos relevantes exibidos nos anos 70 e 80 sugere que novelas pautaram o espaço público brasileiro em termos que expandem o domínio convencionalmente definido como feminino. Palavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave: televisão; telenovelas; gênero; nação. Copyright 2007 by Revista Estudos Feministas. 1 Este texto foi apresentado na forma de Conferência de Abertura do I Simpósio Brasileiro de Gênero & Mídia, em Curitiba, agosto de 2005. Agradeço às organizadoras do Seminário pelo convite e pela iniciativa de organizar o evento. O texto articula idéias e trechos presentes em outros trabalhos meus, especialmente em HAMBURGER, 2005, lançado na mesma época que o Seminário. 2 Nesse contexto, a cultura, usualmente concentrada no tratamento de questões discretas, reconhece o confronto entre fluxos transnacionais e identida- des locais persistentes, construí- Esther Império Hamburger Universidade de São Paulo Nos dias que correm, a dinâmica paradoxal de forças locais e transnacionais leva ao questionamento e à reestruturação de instituições convencionais como nações, estados, formas de governo, padrões de estruturação familiar e relações de gênero. Em meio a esse processo de reestruturação, tendências opostas convivem de maneira paradoxal. Uma tendência à homogeneização e à centralização da produção da indústria cultural convive, por exemplo, com uma vertente oposta – verificada nas mais diversas partes do globo –, uma tendência à afirmação de diferenças e subjetividades, à fragmentação. Identidades de gênero, étnicas e raciais subsistem em um mundo em que os contornos dos domínios público e privado, político e doméstico, masculino e feminino se redefinem, tornando insatisfatórios também os contornos das disciplinas interessadas nos fenômenos sociais. 2 Um movimento teórico interdisciplinar múltiplo pós-estruturalista

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Copyright 2007 by RevistaEstudos Feministas.1 Este texto foi apresentado naforma de Conferência deAbertura do I Simpósio Brasileirode Gênero & Mídia, em Curitiba,agosto de 2005. Agradeço àsorganizadoras do Seminário peloconvite e pela iniciativa deorganizar o evento. O textoarticula idéias e trechos presentesem outros trabalhos meus,especialmente em HAMBURGER,2005, lançado na mesma épocaque o Seminário.2 Nesse contexto, a cultura,usualmente concentrada notratamento de questões discretas,reconhece o confronto entrefluxos transnacionais e identida-des locais persistentes, construí-

Esther Império HamburgerUniversidade de São Paulo

Nos dias que correm, a dinâmica paradoxal deforças locais e transnacionais leva ao questionamento e àreestruturação de instituições convencionais como nações,estados, formas de governo, padrões de estruturaçãofamiliar e relações de gênero. Em meio a esse processode reestruturação, tendências opostas convivem demaneira paradoxal. Uma tendência à homogeneização eà centralização da produção da indústria cultural convive,por exemplo, com uma vertente oposta – verificada nasmais diversas partes do globo –, uma tendência àafirmação de diferenças e subjetividades, à fragmentação.Identidades de gênero, étnicas e raciais subsistem em ummundo em que os contornos dos domínios público eprivado, político e doméstico, masculino e feminino seredefinem, tornando insatisfatórios também os contornosdas disciplinas interessadas nos fenômenos sociais.2 Ummovimento teórico interdisciplinar múltiplo pós-estruturalista

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que se verifica entre antropólogos, estudiosos no campoda teoria literária e cinematográfica, da filosofia, dascomunicações e das ciências humanas procura reunirinstrumental adequado para explicar um panorama emrápida transformação. Nesse contexto, alguns temasaparecem de maneira recorrente, relacionadosespecificamente à problemática da representaçãomidiática. Dentre eles, destacam-se as implicações damídia na construção de representações nacionais, naredefinição dos contornos dos espaços públicos e privados,e na articulação das representações das relações raciaise de gênero.

As relações entre relações de gênero e mídiaconstituem uma problemática que alimenta umabibliografia extensa em várias línguas, a partir deperspectivas teóricas diversas e versando sobre meiostambém diversos, como filmes, seriados televisivos e ficçãopopular impressa. No Brasil, embora a articulação entremídia, especialmente novelas de televisão, e relações degênero esteja presente desde os primeiros trabalhos, o temapermanece sub-estudado. Vou procurar aqui alinhavaralguns estudos críticos de inspiração feminista, desde osprimeiros ensaios de Laura Mulvey, cineasta e ensaístainglesa, publicados em meados dos anos 70, até trabalhosmais recentes, que a meu ver ajudam a pensar as relaçõesentre mídia e relações de gênero em geral, sugerindoperspectivas interessantes para se pensar o caso brasileiro.Em seguida passo a considerações sobre a trajetória dasnovelas brasileiras, especialmente nos anos 70 e 80, comocaso específico de expansão da presença feminina noespaço público. Finalmente especulo sobre a situaçãocontemporânea e as relações entre novelas, como gêneroproto-interativo, e reality shows.

1 Cultura de massa e gênero1 Cultura de massa e gênero1 Cultura de massa e gênero1 Cultura de massa e gênero1 Cultura de massa e gênero

Abordo aqui estudos situados em diversas linhagensdo pensamento crítico, com graus diferenciados deacabamento e solidez teórica: do estudo arqueológico daoposição entre noções de cultura de massa e modernismono século XIX, de Andreas Huyssen, na tradição alemã, atrabalhos escritos no calor da hora, quase notas de camposobre fenômenos midiáticos, como a morte da princesaDiana. No caso dos estudos mais recentes, sobre fenômenoscontemporâneos, o tom ensaístico, permeado deimpressões pessoais, é sintomático dos dias que correm.Os autores e trabalhos aqui mencionados se articulam emfunção de questões postas em inúmeros estudos sobrenovelas dos quais participei ao longo dos últimos dez anos,

das através de idiomas culturaisparticulares, e assume novos signifi-cados controversos. Ver por exem-plo Marshall SAHLINS, 1995; JeanCOMAROFF e John COMAROFF,1992; e Arjun APPADURAI, 1996.

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A EXPANSÃO DO “FEMININO” NO ESPAÇO PÚBLICO BRASILEIRO

3 HUYSSEN, 1986.

com foco na recepção, na análise de texto e nomapeamento do processo de interlocução desigual emvigor na feitura desse gênero televisivo. A escolha daliteratura procura responder a questões colocadas napesquisa empírica. Não é fácil expressar essa dinâmica devai e vem entre a teoria e a prática de pesquisa e crítica.Porém esse será o meu esforço, começando com aexplicitação de abordagens sugestivas, as quais nãofiguram a priori no trabalho, mas às quais cheguei a partirde questões postas pelo próprio trabalho, que, de novo,sugeriu a centralidade das relações entre mídia e gênero.

Começo com Andreas Huyssen,3 cujo mapeamentodas maneiras pelas quais a noção de “cultura de massa”em si mesma emergiu como uma construção com gênerodefinido é bastante sugestivo. Para Huyssen, a noção decultura de massa surge como feminina em um contextoem que o feminino é também associado ao domínioprivado da casa e ao temperamento supostamenteemocional e incontrolável da mulher. A cultura de massapara Huyssen é o “outro” em relação ao qual o projeto dearte modernista pode ser entendido. Vale chamar aatenção para a fineza de interpretação do autor, queencontra a substância de dois universos usualmentetratados como distintos – e até opostos – justamente nessarelação de oposição que define e constitui a ambossimultaneamente.

O trabalho de Huyssen, histórico e conceitual,centrado no século XIX, compartilha a tese de outrosautores, abordados mais adiante, que aventam a hipótese,a meu ver, bastante sugestiva de que a exibição públicadesses repertórios em meios de comunicação queextravasam os limites do domínio privado possivelmentecontribuiu para estimular a redefinição dessas noções oraem curso – ou, mais precisamente, uma “expansão” douniverso usualmente definido como feminino. No plano maiscontemporâneo, autores identificam a cultura de massa –a televisão, a soap opera, ou ainda, no caso brasileiro, anovela de televisão – com o universo feminino usualmenteentendido como restrito a assuntos privados, próprios daesfera doméstica.

A partir de diferentes perspectivas teóricas, autorascomo Laura Mulvey, Tania Modleski, Nancy Fraser e MiriamHansen4 inscreveram as relações entre mídias audiovisuaisdiversas, como o cinema e a televisão, e representaçõesde gênero como uma dimensão necessária àcompreensão das maneiras contemporâneas de concebera vida social e, particularmente, à constituição dasubjetividade. Alguns desses trabalhos demonstram que,por não discutirem gênero, definições modernas da esfera

4 MULVEY, 1975 e 1986; MODLESKI,1984 e 1986; FRASER, 1990; eHANSEN, 1990.

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pública iludiram o pressuposto subjacente de que o espaçoda política e do trabalho foi pensado como masculino, aopasso que o espaço privado da casa, ao qual a televisãopertence, foi concebido como feminino. Ao chamar aatenção para o fato de que as diferenças de gênero sãopensadas como oposições subordinadas à oposição entreespaço público e privado, essa literatura contribuiu paracolocar em xeque e redefinir essas fronteiras conceituais.

Os primeiros trabalhos feministas sobre televisãoenfatizam as maneiras pelas quais os programas destinadosao público feminino reproduzem e reforçam noções depúblico e privado como associadas aos domínios masculinoe feminino. Laura Mulvey, cineasta e pensadora inglesa,pioneira da teoria cinematográfica feminista, define atelevisão como uma força privatizante, pois enquanto ocinema estimularia o desejo de sair de casa e tomar parteda vida pública, a televisão apelaria para se ficar em casa.Para Mulvey, a expansão da televisão nos Estados Unidosdo pós-guerra está associada ao retorno das mulheres aoespaço doméstico da casa. Nesse sentido, programasfemininos dos anos 50 são entendidos como parte doesforço de manter as mulheres confinadas ao espaçoprivado da casa e às responsabilidades domésticas efamiliares, enquanto os homens circulavam no espaçopúblico. Mulvey considera que a televisão se apropriou daspotencialidades redentoras do teatro e do melodramaliterário francês do século XIX e as encapsulou.5 Em sualeitura de textos televisivos, Mulvey associa o melodramacom a emergência do subúrbio americano e com a ênfasena vida cotidiana orientada para a família, que garante areprodução dos valores burgueses dominantes. O trabalhode Mulvey permanece uma referência, pois registra nexosentre produtos audiovisuais e relações de gênero,revolucionando os estudos da representação.

Outra pensadora feminista, Tania Modleski, a partirdo referencial gramsciniano que procura detectarresistências à cultura hegemônica no momento darecepção de textos midiáticos, e que será discutido adiante,relaciona a soap opera americana ao ritmo fragmentadoda rotina doméstica. A autora procura entender a naturezado envolvimento feminino com o mais desprezado dosgêneros televisivos, cuja audiência seria composta de 90%de mulheres – associando o caráter repetitivo e lento danarrativa desses seriados à dispersão que é característicadas rotinas do lar. A autora identifica a correspondênciaentre a representação do universo doméstico inscrita nassoap operas e o que ela interpreta como a vivência darotina doméstica. Ao aprofundar a lógica interna danarrativa e da recepção, seu trabalho fornece chaves

5 O melodrama em si mesmoconstitui um vasto campo depesquisa. Para os propósitos dadiscussão aqui proposta, ésuficiente situar o debate edelinear as principais conven-ções formais do melodramatelevisivo, conjunto de caracte-rísticas que servirá à análise denovelas específicas a queprocedo na segunda parte dotexto. Para uma síntese dos usosdiversos associados ao modomelodramático, ver ChristineGLEDHILL, 1987; para o estudoliterário que inspirou os trabalhosfeministas, ver Peter BROOKS,1986; para o debate brasileirosobre a fil iação realista oumelodramática das novelas, verRenato ORTIZ, 1987, e RenatoORTIZ et al., 1988; para a contri-buição recente que demonstra aestrutura melodramática de umaminissérie, ver Ismail XAVIER, 2003.

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sugestivas para a compreensão da natureza doenvolvimento dos espectadores com o gênero.

Trabalhos feministas recentes enfatizam que, em vezde reforçar oposições e fronteiras previamente definidas,a cultura de massa e o melodrama televisivo em particularteriam contribuído para diluir esses limites imaginários, oupara difundir questões, uma vez definidas como públicas,políticas e masculinas, para o domínio privado, domésticoe feminino.6 Ao fazê-lo, esses estudos indicam mecanismosintrínsecos ou endógenos de produção e recepção demídia que poderiam ser pensados como forças demudança social.

Lynne Joyrich7 debate a abordagem do melodramatelevisivo proposto por Mulvey. Para ela, melodrama,televisão e consumismo se reforçam mutuamente, mas omelodrama televisivo difunde “conotações femininasabrindo contradições […] a serem extensamenteinvestigadas”. Ou seja, a diferença entre o público-alvofeminino, responsável pelo que a autora define como“conotações femininas” da programação, e o público maisamplo que acessa o repertório veiculado sugere aoportunidade de estudos que mapeiem interlocuções quenão necessariamente ocorrem conforme o previsto.

Em seu estudo sobre as representações quecercaram a televisão no momento de sua introdução nosEstados Unidos do pós-guerra, Lynne Spigel, como LauraMulvey, associa a difusão do novo meio de comunicaçãoà emergência dos subúrbios urbanos. Mas, para Spigel,em vez de reforçar o confinamento da mulher à esferadoméstica, a televisão teria trazido informações sobre osacontecimentos da esfera pública para o espaço privadoe isolado da classe média suburbana e para as mulheresque passavam o dia nesses bairros exclusivamenteresidenciais, afastados e de ruas desertas.

A partir de uma perspectiva diferente – distante,embora não alheia, à problemática feminista – JoshuaMeyrowitz8 sugere que a televisão realizou uma espécie dedeslocamento de repertórios, masculinos e femininos,infantis e adultos, públicos e privados, na paisagem emtransformação dos Estados Unidos da década de 1950.Meyrowitz utiliza uma metáfora arquitetônica para justificarseu argumento. Segundo ele, a televisão erode as paredesque separam os cômodos de uma casa. Assim, é tambémum meio que desloca repertórios, trazendo, por exemplo,o repertório masculino da notícia para o espaço femininoda casa, facilitando o acesso das mulheres a assuntosanteriormente restritos aos homens e ao seu espaçoespecífico de trabalho e lazer. Meyrowitz sugere que esseacesso generalizado a repertórios anteriormente mais

6 Ver especialmente Lynn SPIGEL,1992; Lynn SPIGEL e Denise MANN,1992; e Lynne JOYRICH, 1996.

7 JOYRICH, 1996, p. 229.

8 MEYROWITZ, 1984.

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exclusivos pode explicar mudanças inesperadas nasrelações de gênero, como a emergência do movimentofeminista ou a entrada da mulher na força de trabalho.

O autor sugere a relevância do que poderia serdescrito como “deslocamento temático”. Ou seja, assuntosque um dia foram confinados a grupos específicos depessoas, em situações específicas, podem, através datelevisão, passar ao largo de hierarquias estabelecidas eminstituições como a Igreja, a escola, a família, a política,tornando-se acessíveis indistintamente. Meyrowitz chamaa atenção, por exemplo, para a politização do universofeminino, ocorrido como conseqüência da penetração derepertórios definidos como masculinos no espaçodoméstico. Cabe também notar – e é nessa direção queavança o questionamento de Joyrich – que a televisãotambém realiza o movimento contrário, tornando a fofocada vizinha disponível a todos, na telinha.

Nesse sentido, o trabalho de Miriam Hansen, sobreo cinema norte-americano e a inclusão das mulheres naesfera pública daquele país no início do século XX, ésugestivo. Fundamentada em pesquisa histórica, a autorasugere que a presença inesperada de mulheres nas salasde cinema teria levado a indústria a produzir filmes cujasnarrativas, figurinos e astros procuravam atender àsexpectativas femininas. No Brasil, a consolidação daindústria televisiva firmou-se em uma programaçãocentrada na novela, gênero definido por produtores,anunciantes e telespectadores como feminino. Aconsolidação da indústria coincide, na história, commudanças demográficas como a entrada da mulher naforça de trabalho, a redução do número médio de filhospor família, o aumento do número de divórcios e a rápidaurbanização.9 No caso da televisão brasileira, a questão é:como as novelas captaram e expressaram esses processos?

2 Novelas de televisão no Brasil e2 Novelas de televisão no Brasil e2 Novelas de televisão no Brasil e2 Novelas de televisão no Brasil e2 Novelas de televisão no Brasil eredefinições nos contornos do espaçoredefinições nos contornos do espaçoredefinições nos contornos do espaçoredefinições nos contornos do espaçoredefinições nos contornos do espaçopúblicopúblicopúblicopúblicopúblico

Como mencionei anteriormente, os estudos pioneirosde recepção de novela levam em conta a naturezapresumidamente feminina desses programas. São estudosbastante ousados para a época em que foram feitos namedida em que combinam abordagem de recepção eatenção às relações de gênero, duas problemáticas deponta nos anos 80. É a partir deles, especialmente das tesesde Sonia Pessoa de Barros Miceli, Ondina Fachel Leal, JaneSarques e Rosane Manhães Prado,10 que é possível avançarpara pensar essa dimensão de gênero não como um dado

9 Para uma síntese das mudançasdemográficas recentes, ver ElzaBERQUÓ, 1998.

10 MICELI, 1974; LEAL, 1986;SARQUES, 1986; e PRADO, 1987.

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A EXPANSÃO DO “FEMININO” NO ESPAÇO PÚBLICO BRASILEIRO

a priori que circunscreve inclusive o público feminino comointerlocutor privilegiado das pesquisadoras, mas comonoção a ser problematizada. É o que tentarei fazer a seguir,procurando mostrar que as novelas captam e expressamessa expansão do universo feminino na medida em que seaventuram no espaço teoricamente definido comomasculino da política e do jornalismo.

“Novela é coisa de mulher.” Essa noção de sensocomum funciona nas várias etapas de produção erecepção do gênero, introduzido na programação datelevisão brasileira em 1951 como menor, e que de 1970até hoje, embora talvez com menor capacidade derepercussão, encabeça a lista dos programas maispopulares. No contexto da indústria de televisão comercial,as novelas constituem artefato cultural capaz de mobilizaruma audiência nacional – que até o início da década de1990 se manteve em patamares superiores a 50%.

Pesquisadores de mercado responsáveis pelarealização de sondagens de audiência e opinião afirmamque as mulheres constituem o público básico das novelas.Os vários programas de rádio e tevê e revistasespecializadas no gênero também definem a mulher comoseu público-alvo. Contigo, a maior delas, foi desenhadapara atender o público feminino. A literatura sobrerecepção de novelas dá como certo que as mulherestelespectadoras constituem seus sujeitos privilegiados. Osdados de audiência confirmam que as mulheres constituema maioria do público das novelas e trabalhos etnográficosrecentes sugerem que os telespectadores concordam comessa afirmação.

Mas a ampla aceitação dessa assertiva não significaque as novelas se atenham aos domínios da vida que asteorias que guiam as produções industriais associam aouniverso feminino.

É justamente a vocação das novelas brasileiras paraextrapolar os limites estreitos da ficção televisiva seriadafeita para a mulher que faz da trajetória desses seriados aolongo da história da televisão brasileira um caso sugestivopara se pensar o papel das representações midiáticas nasredes inusitadas da sociabilidade contemporânea,especialmente no que se refere a relações de gênero. Apopularidade das novelas é hoje um dado da realidade,como se fosse natural que folhetins melodramáticosoriginários de comerciais de multinacionais de sabãotenham se tornado um repertório nacional compartilhado,isto é, um espaço regido por certas convenções,estabelecidas ao longo do tempo, reconhecidas poramplas parcelas da população, que se relacionam atravésdas formas e conteúdos. Interpretar o fenômeno da novela

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no Brasil implica justamente reconhecer que, para alémdos projetos governamentais, comerciais e ideológicosenvolvidos, o gênero definiu rumos e significados imprevistose não planejados.

Elementos da história e da cultura do Brasil estãopresentes nas novelas como marca local do gênero –apesar das convenções contrárias da indústria internacional– desde os primórdios, como exemplificam as novelas deautoria de veteranos como Ivani Ribeiro, Walter Durst eBenedito Ruy Barbosa, ativos já na década de 1960. Nosanos 70, a conjuntura se tornou elemento de referênciapreponderante de dramas que apresentavam as tensõesdo país que se via como “do futuro” e que parecia crerque finalmente chegara a sua vez. Novelas conhecidasconfirmam o esforço de autores engajados em extrapolaros limites do que classificam como “dramalhão”. Sem deixarde lado sua vocação melodramática, as novelasexageraram sua veia folhetinesca, ou seja, sua relaçãoíntima com o universo extra-diegético, com o mundo exteriorà narrativa. Com essa referência constante à temporalidadecontemporânea, as novelas se tornaram vitrinasprivilegiadas do que significa ser “moderno”, em umaversão despolitizada e diluída do conceito: estar sintonizadocom a moda e comportamentos contemporâneos.

O conteúdo político e ideológico das novelasmarcaram o debate cultural nos anos 70 e foi tema deinúmeros trabalhos acadêmicos. Trabalhos estrangeiros,como salientei em outra oportunidade,11 lêem as novelasda perspectiva de profissionais engajados e salientam suacapacidade de gerar ideologia política crítica a partir dointerior da indústria cultural. Outros enfatizam o caráterindustrial e comercial do produto para demonstrar que aintenção crítica de profissionais engajados não temcondições concretas de se realizar. Esses autores enfatizamo papel dos seriados televisivos na reprodução deideologias dominantes e na disseminação do sonho doconsumo. Trabalhos recentes especulam sobre a influênciadas novelas em comportamentos políticos imediatos, comopor exemplo o resultado de eleições.

As pesquisas que discutem as relações das novelas,como programas femininos, com o público feminino nãoprivilegiam a discussão das implicações políticas do gênero.E trabalhos que abordam as implicações políticas dasnovelas não consideram as implicações do gênerotelevisivo nas relações de gênero. Mas como programasdestinados à mulher, nos anos 70 e 80, de classe média –imaginada no interior da indústria como senhora do espaçodoméstico, interessada no romantismo e em tramas íntimas,em oposição ao homem, que seria telespectador

11 Ver HAMBURGER, 2002.

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A EXPANSÃO DO “FEMININO” NO ESPAÇO PÚBLICO BRASILEIRO

privilegiado de documentários e telejornais – as novelasescaparam dessas definições, gerando outros parâmetros,que por sua vez trouxeram outras questões ao debate. Asnovelas sinalizaram uma redefinição dos limites entre osespaços masculino e feminino, político e doméstico, públicoe privado, texto e contexto, teoria e prática.

Nos anos 70 e 80, de produções promocionais decompanhias de sabão, as novelas foram reconhecidascomo um espaço legítimo de interpretação ereinterpretação da nacionalidade, entendida em termosde tipos ideais de estrutura familiar, homem, mulher, pai,mãe, marido, esposa. Adquiriram esse caráter comoconseqüência de sua busca por uma atualidade imediata,que potencializa o seu valor comercial na medida em queas torna espaço privilegiado para a propaganda de novosprodutos e para a demonstração pedagógica de novoshábitos, associados a estilos de vida “modernos”. Avocação para a atualidade, esse projeto-vitrina, deu-seatravés de uma apropriação inusitada de elementos dalinguagem jornalística. Misturando convenções da ficçãocom convenções da notícia, as novelas foram fazendoreferências a repertórios nacionais e inadvertidamente seestabeleceram como repertório compartilhado, espaçovirtual promíscuo, cuja verossimilhança depende daapropriação e elaboração de elementos da conjuntura edo cotidiano – uma convenção inaugurada nos folhetinsfranceses do século XIX. Esse repertório compartilhado éfruto também da agenda ideológica dos profissionais queatuaram no gênero.

Em sua busca pelo imediato, as novelas combinaramconvenções formais do repertório da ficção televisiva feitapara mulher com convenções da notícia e dodocumentário. Ao fazê-lo se tornam uma conexão entre odomínio privado da vida doméstica e o domínio públicoda política, forjando um estranho senso de comunidadenacional.

Alguns exemplos ajudam a concretizar a idéia. Noinício dos anos 70 as alusões ao país se davam em chavespouco politizadas. Uma seqüência de documentárioesportivo no início de Irmãos Coragem situa o drama doirmão que deixa sua cidadezinha natal, longínqua eanacrônica, mas familiar, para vencer na cidade grande,glamourosa e cosmopolita, um drama situado no espaço– no território brasileiro, nas paisagens do estado de MinasGerais e da metrópole –, e no tempo – contemporâneo aoda narrativa, o ano da copa mundial de 1970. A coinci-dência no tempo e no espaço permite e reforça a conexãoentre o drama privado dos personagens e uma amplacomunidade possível de telespectadores por todo o país.

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De maneira semelhante, Selva de pedra, como otítulo sugere, define o domínio diegético da narrativa comoo domínio da cidade. As tomadas documentais de ruas,calçadas, carros, faróis e edifícios na vinheta aludem aoanonimato da vida pública na cidade grande. Nessecontexto, a história convencional do homem que perde aingenuidade ao entrar em contato com a atmosfera frívola,mas glamourosa, de seus parentes ricos, a vingança desua mulher e a reconciliação do casal em um final clássicodo melodrama, selada pela notícia da gravidez dela,representa os dilemas com os quais se defrontam migrantesque nesses anos trocaram o hábitat rural pelo ambienteurbano. Selva de pedra tematiza os desafios morais comos quais se defrontam os que desejam manter seus laçosde família e comunitários e subir na escala social na cidadegrande, um argumento muito parecido com o de Vale tudo,que foi ao ar em 1988, ano do fim da censura na tevê eque escancara as alusões à nação.

Ambas as novelas têm em comum a problema-tização da trajetória de personagens originários dametrópole, que por motivos diversos se afastaram eretornam para ascender na escala social. A vocação deVale tudo para falar sobre o Brasil é enfatizada na vinhetade abertura, em estilo de montagem, que contrasta comsua narrativa convencional e repetitiva de amor e traição.Aqui, como em outras novelas, tomadas aéreas depaisagens específicas marcam transições narrativas,situando o drama em locais facilmente identificáveis. Essaconvenção formal realiza a vocação da televisão emestender o olhar do telespectador a lugares distantes,acrescentando um motivo turístico que vai consolidandopaisagens de locais distantes e associando-os adeterminados modos de conduta na vida cotidiana. Mastambém reforça o senso de pertencimento a umacomunidade imaginária, que se torna menos abstrata emais familiar ao compartilhar o ato não só de assistir aimagens e histórias exibidas em um mesmo horário, emcadeia nacional, como também de especular sobre asrazões dos personagens e as possibilidades de desdo-bramentos futuros da trama.

Roque Santeiro é explicitamente um drama sobreuma cidade que vive de uma mentira. A narrativa apela aconhecidas artimanhas melodramáticas, como a troca deidentidade. Mas, no lugar da esposa que finge estar mortapara escapar à perseguição de seu marido, como em Selvade pedra, tem-se um homem que, considerado morto, fogedo lugar pobre e isolado que é sua cidade natal comdinheiro suficiente para se estabelecer e conhecer omundo. Como a personagem Simone da novela de Janete

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Clair, o protagonista de Dias Gomes e Aguinaldo Silvadisfarça sua identidade, recurso que move a trama. Motivosmorais – o desejo de vingança, no caso da personagemde Selva de pedra, e culpa, no caso de Roque – movemos personagens nas duas tramas. A revelação da‘verdadeira’ identidade vai se fazendo aos poucos,oferecendo assunto para capítulos diários. Em IrmãosCoragem, a questão da identidade aparece na cisão literalda personalidade atormentada da protagonista, queaparece sucessivamente como Lara, Diana e Márcia,interpretadas por Glória Menezes. A divisão psicológica dapersonagem é solucionada no final por uma intervençãocirúrgica, com destaque ao aparato de tecnologia médicada sala de operação, onde ocorre a revelação do traumapsíquico ocorrido na infância de Lara.

As oposições que movem as narrativas em geral sedesenvolvem em torno de uma tensão principal entre“modernidade” e “tradição”, que organiza o contraste entrelocações metropolitanas e pequenas cidades do interior,núcleos de personagens pobres e ricos, grupospertencentes a diferentes gerações, homens e mulheres,em torno de dilemas morais. Bons e maus, honestos edesonestos, sinceros e dissimulados, verdadeiros emanipuladores interagem movendo a narrativa.

Ao construir universos “modernos”, que se opõem auniversos “tradicionais”, essas novelas aludiram a umparadigma persistente de representação do Brasil como o“país do futuro”, que de alguma forma referenciou tanto osmilitares quanto os comunistas, forças de direita e deesquerda, nos anos 50 e 60. O movimento em direção aomoderno é visto como necessário e quase inexorável,embora venha imbuído de sinais contraditórios. O conteúdodesse ‘desenvolvimento’ varia. Essas novelas captaram eexpressaram o universo ideológico no interior do qualdiversas forças políticas e movimentos culturais seposicionaram, abordando temas políticos em linguagemmelodramática, tratando de “tradição” e “modernidade”em termos de bens de consumo, meios de transporte ecomunicação e convenções de comportamento,sexualidade e relações de gênero e estrutura familiar. Eassim as novelas vieram a ocupar regiões do espaçopúblico, um espaço público peculiar que se apresentasaturado por uma combinação de assuntos íntimos,consumismo e nacionalidade.

Roque Santeiro e Vale tudo estão entre os títulos denovela que atingiram maior repercussão pública. Emboraa cobertura dessas novelas tenha sido confinada às sessõesculturais dos jornais, ela ultrapassou os limites das sessõesespecializadas em televisão. Ambas atingiram segmentos

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de telespectadores que não costumavam assistir a novelas.Roque Santeiro provocou fenômeno semelhante em outrospaíses da América Latina. Roque Santeiro e Vale tudopodem ser consideradas ao mesmo tempo como ápice eponto de inflexão na trajetória das novelas, marcando oinício da desarticulação das convenções que marcaramo gênero durante o período. Enquanto Roque Santeiroenfatizou a sobrevivência de práticas coronelistas comironia e cinismo, Vale tudo chamou a atenção paraconseqüências não antecipadas da modernização emcenários urbanos. Irmãos Coragem e Selva de pedrapropunham uma visão otimista sobre um possível futuromoderno, enquanto que Roque Santeiro e Vale tudochamaram a atenção para a permanência perversa doanacronismo. Com outros títulos do final da década de1980, como Roda de fogo e O salvador da pátria, de LauroCésar Muniz, as novelas se tornaram o primeiro espaçopúblico da Nova República a problematizar a corrupção,tema que dominaria a pauta das primeiras eleições diretaspara presidente da República pós-regime militar, e que deua tônica da agenda política nos primeiros anos da décadade 1990, culminando com o impeachment do presidenteCollor de Mello. E que infelizmente permanece na ordemdo dia nos dias que correm, de maneira constrangedora.Não é demais observar que a corrupção talvez tenha setornado endêmica, trazendo à política institucional umaestrutura narrativa que se aproxima da novela, ou talvez,ainda mais, de um parente seu, o reality show.

Com Irmãos Coragem, a novela das 20 horas daRede Globo passou a ocupar o topo na lista de programasmais vistos. Irmãos Coragem é também mencionada naliteratura como a novela que teria atraído a audiênciamasculina. O suposto estilo western da narrativa, usado nadivulgação da novela, foi apontado pelo departamentode pesquisa da Rede Globo como justificativa para osucesso alcançado junto ao público masculino.12 A alusãoà vida cotidiana, a eventos contemporâneos e a elementosda cultura de alcance nacional, convenção recorrente nasnovelas produzidas pela Rede Globo para o horário das 20horas, a partir de 1969 oferece uma explicação sugestivapara o fato de as novelas atingirem um universo tão variadode espectadores.

Irmãos Coragem refere-se a futebol e à tensão entreo ambiente rural da cidade pequena e o ambientemetropolitano da cidade grande. Essa novela legendáriaopôs modelos de mulher com iniciativa, mas submissas, amulheres liberadas, mas pervertidas. Diferentemente deIrmãos Coragem, Selva de pedra apresenta uma mulherindependente e bem-sucedida no domínio profissional. Em

12 Ver, por exemplo, ORTIZ et al.,1988, p. 101.

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ambas, sexo e casamento estão conectados comprocriação, uma conexão que se afrouxaria em novelassubseqüentes, acompanhando mudanças de costumesreveladas em conhecidas tendências demográficas.

Analisando várias novelas em perspectiva, emparalelo às alusões a processos sociais e políticos, é possíveldetectar uma trajetória de liberalização crescente dospapéis femininos. Ao longo dos anos, as personagens denovela passaram das mulheres casadoiras e mães empotencial a mulheres que se dispunham a seguir seuspróprios caminhos. As protagonistas de Irmãos Coragemtornaram-se esposas e mães. À exceção, Potira desfez seucasamento para buscar a realização amorosa com o irmãode criação, mas foi punida com a morte. Selva de pedratraz uma protagonista que atinge a realização profissionalindependente – e talvez até porque longe – do marido.Vale ressaltar que sua profissão pertence a um domínio emgeral associado à mulher, que é o domínio da arte, e quea novela não problematiza as relações entre casamento,maternidade e trabalho. Em Os gigantes, a protagonista,que havia optado por uma via de realização profissionalcomo correspondente no exterior em detrimento da família,acaba sendo forçada a voltar atrás por contingênciasfamiliares. Sua capitulação diante da necessidade de geriro patrimônio e gerar um herdeiro acaba resultando emenlouquecimento e morte. Roque Santeiro trouxe a figuraparadigmática de Porcina, decidida, extravagante e livreno amor. Em Vale tudo há um painel de diferentespossibilidades para as mulheres. Algumas trabalham emprofissões glamourosas como a moda, comandamempresas, ou constroem sua independência profissionaltendo como base um saber altamente feminino como aarte culinária. Outras iniciam carreira tardiamente depoisde separadas.

Problemas relacionados ao papel da mulher nasociedade, na família e no trabalho constituíram uma fonteprivilegiada de temas considerados “provocativos”. Aolongo desses anos, segundas uniões, sexo sem casamentoou procriação se tornaram comuns em novelas. Embora oconteúdo dessa trajetória liberalizante possa ser associadoao ideário do movimento feminista, dificilmente ela podeser classificada como tal. O termo “feminista” não apareceno texto das novelas ou nos comentários de telespec-tadores. Embora o termo “machista” seja mencionado emconexão com telenovelas por telespectadores emcontextos de estudos de recepção e em relatórios de gruposde discussão como caracterização negativa depersonagens masculinos ciumentos ou controladores, asmulheres que se opõem a essas posturas são denominadas

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“fortes”. Não se trata simplesmente de uma questão denome. O tratamento que as novelas oferecem às relaçõesde gênero sugere a ampliação do espectro depossibilidades para as mulheres e, em certo sentido, umaatrofia das possibilidades abertas aos homens, mas nãohá problematização das relações de gênero propriamenteditas. A distribuição de tarefas domésticas e relativas àcriação dos filhos, por exemplo, tema delicado no universodas relações de gênero, não é abordada nas novelas. Nouniverso da ficção televisiva, a expansão dos domíniosfemininos inclui a valorização da inserção da mulher nomercado de trabalho, mas a ênfase maior situa-se naampliação do que é moralmente permitido. As novelaslegitimam a separação das mulheres infelizes no casamentoe envolvimentos amorosos sucessivos.

Pesquisa de recepção sugere que personagensfemininas positivamente valorizadas são as que poucochoram, enfrentando a adversidade da vida comdesenvoltura. Freqüentemente personagens femininas setransformam durante a novela, e talvez seja acurado dizerque a cada novela há uma ‘torcida’ em torno do movimentode metamorfose das personagens. Algumas iniciam anovela dependentes, como a Rachel de Regina Duarte emVale tudo, que passa por provações – como maus-tratosde um marido bêbado, mau provedor e ausente, aseparação, a volta para a casa do pai na pequena cidadede Iguaçu com uma filha para criar, a ‘viração’ como guiaturístico, a morte do pai, a traição da filha que foge com odinheiro da venda da casa, a chegada ao Rio de Janeiroem busca da filha, a venda de sanduíches na praia, amorte do ex-marido, o revés amoroso, a filha que não seredime, a pena de cadeia para o companheiro, que emuma fraqueza a traiu, o perdão e a espera carinhosa dela– que vale a conquista de um final feliz no romance e aalegria de criar o neto. A trajetória da personagem envolveascensão social a partir de seu próprio talento e recurso.Sua transformação de frágil dona-de-casa sofrida em forteempresária bem-sucedida se expressa na mudança de seufigurino, nos cenários em que habita e trabalha, e naharmonia amorosa no final.

A recompensa do sucesso em quase todos osdomínios da vida – com exceção do materno, devidamentecompensado pelo exercício pleno da função de avó, jáque a filha não se regenera, mas a mãe conquista o direitolegal de criar o neto – é apresentada como mérito exclusivoda boa índole e perseverança da personagem. Asconquistas são morais, e os obstáculos enfrentados – comoo fracasso do primeiro marido e as maquinações dos vilõesda história – também se situam no âmbito moral. Não há

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discriminação de gênero propriamente dita a serenfrentada. A mulher “forte” e “liberada” da novela nãoreivindica igualdade de condições, cotas, salários. Nãoaparecem leis, ações, delegacias da mulher. A exploraçãodo corpo no “vale tudo” de que trata Vale tudo éapresentada como estratégia efetiva tanto para corposfemininos quanto para masculinos. E a figura do gigolô semcaráter de César (Carlos Alberto Ricelli) expressa esse afã.

Novelas e seriados como Malu mulher fizeramsucesso associando a liberação da mulher com uma certaidéia de “força” da mulher, que se liberta da dependênciaexclusiva do homem. Situada no universo despolitizado dosassuntos domésticos, a trajetória de liberalização foi possívelem meio e apesar da censura forte imposta pelo regimemilitar. Como mexe pouco com relações de gêneropropriamente ditas, a novela acaba legitimando umpadrão de supermulher: aquela que acumula as funçõestradicionais de mãe e esposa com a de provedora, umresultado em muitos sentidos perverso.

É espantoso que novelas que apresentam um retratobranco de um Brasil muito mais rico do que ele é sejamreconhecidas como retrato legítimo e verossímil de um paísdesigual, mulato e miscigenado. É possível que essaverossimilhança tenha a ver com uma coerência construídanão em torno da ilusão da representação especular, masem torno da alusão a diversos elementos da conjuntura,da moda à política, referências ao universo extra-diegéticoque garantem a verossimilhança da trama.

O auge da referência ao Brasil talvez se expresseem 1990, quando a Rede Manchete coloca no ar umanovela que repercute e atinge índices de audiênciasignificativos em um horário noturno pós-novela das oito. Ésignificativo que o feito da emissora se dê em torno deuma novela, Pantanal, que apresenta uma interpretaçãoalternativa do país, lançando mão de convenções formaistambém alternativas. Como é sabido, Pantanal oferece umvisual alternativo ao das perturbadas cenas urbanas. Anovela conclama a busca das raízes “no coração do Brasil”,nas paisagens exóticas do interior. Longos planos dapaisagem rural, água límpida e despoluída e muita mata,acenam com uma possibilidade de redenção ao pesadoambiente urbano das grandes metrópoles. O cenáriobucólico é curiosamente associado à nudez feminina e àrecomposição da família em torno do patriarca e de seusfilhos homens.

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3 Anos 1990 em diante: diversificação da3 Anos 1990 em diante: diversificação da3 Anos 1990 em diante: diversificação da3 Anos 1990 em diante: diversificação da3 Anos 1990 em diante: diversificação daindústria brasileira de televisão?indústria brasileira de televisão?indústria brasileira de televisão?indústria brasileira de televisão?indústria brasileira de televisão?

Pantanal marca o fim de uma era. Nos anos 90 asconvenções temáticas e formais se diversificam. Asreferências, que durante anos foram consolidando a novelacomo uma espécie de vitrina de moda, notícia ecomportamento, assumiram papel explicitamente deintervenção em novelas que assumem um caráter deconstrução da representação; ou melhor, revelam, aomenos parcialmente, os mecanismos de construção darepresentação, tornando-os em si mesmos assuntopolêmico. Mães de crianças desaparecidas recuperaramalguns de seus filhos graças à campanha desenvolvida nointerior da novela Explode coração. A divulgação dasimagens levou telespectadores a entrarem em contato coma emissora, com pistas sobre a localização de algumascrianças procuradas. A emissora, por sua vez, seguiu o caso,atuando como intermediária mais eficiente do que a políciaou o Poder Judiciário. A ação social foi devidamentecapitalizada através de registro nos telejornais queacompanharam a evolução das buscas e reconhe-cimentos, como capítulos suplementares da novela,digressões em que o tema da revelação da identidadepermanece em pauta. Outro caso de intervenção, dessavez no âmbito da política propriamente dita, se deu com avisibilidade alcançada graças à novela O rei do gado portrabalhadores sem terra. Mais recentemente, O cloneinterveio no problema de drogas, legitimando adescriminalização do assunto.

Os reality shows que, seguindo tendência mundial,se instalaram paulatinamente no Brasil dos anos 90radicalizam essas tendências já presentes nas novelas. Oreality show pode ser entendido como um desenvolvimentoda novela, uma novela sem roteiro, um jogo que vive dasintrigas mais banais, uma narrativa que se estabelece, aomenos em sua versão brasileira mais consolidada, naedição.

A primeira edição do gênero no Brasil valorizou aatuação cotidiana, durante 24 horas do dia, de jovensartistas em início de carreira, ou cujas carreiras por algumarazão empacaram. Versões sucessivas acenam com apossibilidade da fama, do sucesso, da carreira artística. Afutilidade das relações de todo dia consiste no assunto decada capítulo diário. Regras básicas de “eliminação”garantem um mote que move a trama de acordo comuma combinação complexa do voto dos participantes como voto dos telespectadores.

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Radicalizando os mecanismos de mediaçãodistorcida presentes nas novelas, os reality shows acenamcom a constituição mais explícita de redes. Na primeiraversão do Casa dos artistas, talvez a mais bem-sucedidaversão do gênero, a interação dos participantes dagincana no interior da casa estava acessível ao públicoda televisão por satélite em tempo real, ao vivo, semedição. Um capítulo editado com os melhores momentosdo dia ia ao ar em horário nobre. A cada domingo a redeampliava-se em sessões de “eliminação” conduzidas aovivo por Sílvio Santos, que mediatizava a relação dos artistasna casa com o seu auditório e com os telespectadores.Ampliando o alcance de sua rede, o apresentadorcomentava notícias da imprensa e chegava a dialogar noar com seu colega da Record. De emissora para emissora.

Concluindo, as novelas, entendidas comoprogramas “proto-interativos”, que supõem processosdesiguais e distorcidos de mediação, uma sinergia na qualas representações das relações de gênero desempenhampapel preponderante, parte intrínseca de um processo maisamplo de expansão do universo convencionalmentedefinido como feminino, de certa maneira antecipamfenômenos midiáticos que marcam as sociedadescontemporâneas.

O volume especial da revista Screen dedicado aanalisar as dimensões midiáticas das manifestações queocorreram em torno da morte da princesa Diana oferecevários textos sugestivos, que corroboram nossasobservações sobre as novelas, bem como as análisesanteriormente mencionadas. Os ensaios sugeremelementos como interatividade, conexão e performanceao vivo como chaves para a compreensão da compulsãoque levou hordas de cidadãos britânicos a sair de suascasas para manifestar seu pesar pela morte da princesa.

Em seu artigo, a editora do volume, ChristineGeraghty, parte da idéia sugerida na literatura de inspiraçãofeminista de que as soap operas, nas palavras da autora,“reverteram valores tradicionais privilegiando o mundofeminino no qual emoção, empatia e conversa são osmelhores meios para compreender e manipular a vida”.13

E ela observa que Diana chocou porque mobilizou umanarrativa pessoal novelesca no espaço público. A autoracita especialmente a célebre entrevista que Dianaconcedeu ao Panorama, prestigioso programa da televisãobritânica. Na entrevista a princesa, investida de funçõesde representação do Reino Unido, usou o espaçonormalmente dedicado a questões políticas e sociais paratratar de sua vida pessoal, mobilizando a linguagem doromance.

13 GERAGHTY et al., 1998, p. 71.

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A autora nota que, durante a maior parte de suavida de casada, “Diana era literalmente muda: eraclaramente a pessoa dela, o seu corpo, que era notícia”.14

Ao romper a mudez, Diana rompe também outrasconvenções. Sua entrevista no Panorama é para Geraghtyum exemplo privilegiado de como a mídia sintetiza demaneira peculiar experiências subjetivas políticas epessoais, públicas e privadas. O impacto e o fascínio deDiana estariam relacionados não a conteúdos específicosde suas falas, mas ao deslocamento de repertórios queela opera trazendo para a arena política elementos desua vida privada, relacionados a romance e traição,deslocamento temático na linha do que sugerem autoresmencionados no início desta apresentação, como AndreasHuyssen e Joshua Meyrowitz.

De alguma forma, o deslocamento de repertóriosoperado por Diana e expresso em Panorama poderiaajudar a explicar a mobilização coletiva desencadeadapor sua morte, quando os milhares de participantes fizeramquestão – talvez um pouco como Diana – de manifestarenvolvimento através de sua presença corporal, justificadacomo uma maneira de experienciar o velório e o funeralem sua totalidade. Mais uma vez, “a televisão oferecia umavisão melhor, mas não o perfume das flores ou o toque damultidão”.15

E a autora observa que, ironicamente, osparticipantes utilizaram os microfones e as enquetestelevisivas para comunicar ao público ausente o que eleestava perdendo, mais uma vez enfatizando a relevânciainsistente da presença física, do testemunho ao vivo, daexperiência real, que nenhum espetáculo virtual substitui.Tal como Christine Geraghty, Roger Silverstone, outro dosautores do número especial da revista Screen,16 procuraentender por que afinal aquelas milhares de pessoas saíramàs ruas para manifestar sua solidariedade com umacelebridade despossuída de poder institucional, semliderança constituída ou causa definida. Para Silverstone, odesejo de participação teria movido as pessoas para asruas. E para ele esse senso de participação, em algumamedida, tem a ver com um “rompimento epistemológico”nos seus termos. Em outras palavras, ao deixar a posiçãode espectador, as pessoas que foram às ruas teriam deixadoo reino da representação para penentrar no reino daexperiência propriamente dita.

Silverstone se interessa por isso que ele denominaapropriação do espaço da mídia. Sua abordagem éinteressante, pois ele não se satisfaz com uma saída simplistacomo a que anula distinções entre realidade e fantasia, oque é verdadeiro e o que é falso, fato e ficção. Para

15 GERAGHTY et al., 1998, p. 71.

14 GERAGHTY et al., 1998, p. 71.

16 GERAGHTY et al., 1998.

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Silverstone, a ausência dessas distinções degradaria aexperiência. Se não houvesse diferença entre fato e ficção,a experiência ficaria igualada à não-experiência. E oseventos em torno da morte de Diana justamente sugeremo apelo que a experiência mantém. O fenômeno em tornoda morte da princesa leva os autores a repensar as relaçõesentre sujeito e objeto, emissor e receptor. O anseio por fazerparte, deixar a posição de mero receptor, moveu as pessoaspara fora de suas casas, para o espaço público, aoalcance das câmeras de televisão. Há uma disposiçãogeneralizada para a performance que de alguma formaquestiona modelos conceituais existentes.

Interação, conexão, performance coletiva ao vivo,participação, apropriação, emoção, empatia, romancesão elementos salientados por Geraghty e Silverstone nasmanifestações de pesar que se seguiram à morte daprincesa. São elementos que se aproximam do que Brechtidentifica com o teatro clássico, ao qual opõe seu teatroépico.17 São elementos descritos por Adorno comoferramentas intrínsecas da indústria cultural, mecanismosempregados para garantir e sustentar a alienação operadapor ela. São elementos que na arqueologia de AndreasHuyssen aparecem relacionados ao universo feminino dacultura de massa. Esses mesmos elementos reaparecemagora como elementos do envolvimento das pessoas –homens e mulheres, políticos ou personagens – com amídia.

O estado corrente das pesquisas demanda umaabordagem que incorpore a lógica endógena que rege amídia, assim como as maneiras pelas quais ela se situa emrelação a poderes econômicos e sociais e a outrasdimensões da vida. O desejo de participação direta, deperformance e de interação, essa utopia da comunicaçãoimediata descrita por Spigel, ou esse esforço paraproblematizar a experiência cotidiana, como descreveMarlyse Meyer18 em seu livro sobre o folhetim, constituemnoções úteis para entender o fascínio da novela nos vinteanos que marcaram o período áureo do gênero, bem comooferecem pistas para destrinchar o fascínio global exercidopelos reality shows nos dias de hoje. É a idéia da conexãoimediata, que incorpora o público, rompendo, até certoponto, a relação estanque entre palco e platéia, autor eobra, exibição e recepção, sugerindo a comunicação emrede.

Programas que oferecem a cidadãos comuns apossibilidade de participar do mundo do espetáculo, desdeque compartilhem as suas histórias íntimas mais escabrosas,contribuem para a disseminação da narrativa domelodrama para os mais diversos âmbitos da vida social.

17 Ver Walter BENJAMIN, 1985, p.147-154.

18 MEYER, 1996.

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Há que pesquisar formatos e meios que extrapolem essesregistros. A televisão e os diversos veículos de mídia atendema um anseio pela não-intermediação de relações. Atelevisão e, com maior radicalidade, a internet oferecemvias de integração social – e desintegração, diria Virilio19 –que passam ao largo de instituições mediadorastradicionais.

Essa vocação para estimular o desejo departicipação tem a ver com o aparato técnico formal domeio eletrônico, com as convenções formais e mensagensincorporadas nos textos e com as maneiras pelas quaisesse meio capta e expressa eventos e debates daconjuntura em momentos particulares no tempo e noespaço. Ao longo do tempo, telespectadores e produtoresconcordam sobre certas concepções e formatos. Elescompartilham algumas definições que se tornam quasenaturais.

No Brasil das décadas de 1970 e 1980, novelastiveram um papel semelhante. Telespectadores de todasas classes sociais, homens e mulheres das mais variadasidades, habitantes das regiões geográficas atingidas pelatelevisão, assistiam aos seriados. Telespectadoras etelespectadores especulam sobre o desenvolvimento dahistória; eles sabem que todas as noites, em um certohorário, novos episódios estarão no ar. Ao longo dos anos,o elenco, assim como as convenções formais de um gêneroque evoluiu de acordo com o que os produtoresimaginaram como as expectativas dos telespectadores, sãoreconhecidos como elementos de um repertóriocompartilhado por espectadores que moram nos maisdiversos rincões do Brasil, que pertencem aos mais diversossegmentos sociais e faixas etárias, homens e mulheres comdiferentes orientações sexuais. Produtores criaram certosmecanismos para medir as opiniões dos telespectadoressobre seus seriados favoritos. Telespectadores tambémimaginaram seus próprios mecanismos para tomar partenessa dinâmica proto-interativa. As novelas se tornaramcomo que um léxico que rege a comunicação públicanacional. De alguma maneira, ao assistir e comentar tramasde novela, as pessoas realizam mediações entre suasexperiências da vida pública e privada. É como se asnovelas oferecessem um repertório que possibilita aassociação de dramas domésticos, como paixões violentas,e comportamentos sociais considerados mais ou menoslegítimos.

Ao longo dos anos, novelas captaram e expressaramuma certa expansão do universo convencionalmentedefinido como feminino. Essa expansão acena com oaumento de possibilidades e a diversificação das

19 Paul VIRILIO, 1984.

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possibilidades para as mulheres. Recentemente, exemplosde tramas que legitimam relações homossexuaiscorroboram esse movimento, sugerindo que a ampliaçãode limites continua. Essa expansão do que é consideradolegítimo em espaço definido convencionalmente comofeminino se dá em sintonia com mecanismos abordadospor diversos autores citados ao longo dessa apresentação,que acompanham a erupção de manifestações análogasem outras regiões do globo. Cabe lembrar, no entanto,que essa expansão capta e expressa também elementosperversos dessa ampliação de possibilidades, na medidaem que pouco problematiza conflitos advindos dediscriminações de gênero.

RRRRReferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficas

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A EXPANSÃO DO “FEMININO” NO ESPAÇO PÚBLICO BRASILEIRO

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[Recebido em maio de 2006e aceito para publicação em novembro de 2006]

The Expansion of the “FThe Expansion of the “FThe Expansion of the “FThe Expansion of the “FThe Expansion of the “Feminine” in the Brazilian Peminine” in the Brazilian Peminine” in the Brazilian Peminine” in the Brazilian Peminine” in the Brazilian Public Space: Tublic Space: Tublic Space: Tublic Space: Tublic Space: Television Soap Operas of theelevision Soap Operas of theelevision Soap Operas of theelevision Soap Operas of theelevision Soap Operas of the1970’s and 80’s1970’s and 80’s1970’s and 80’s1970’s and 80’s1970’s and 80’sAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This paper revisits the literature on media and gender studies in search of works thathelp to discuss the case of Brazilian soap operas. A series of references coming from differenttheoretical perspectives, with emphasis in different countries and historical periods, bring upideas and concepts that approach the contemporary desire to connect, to participate and tointeract in terms conventionally associated to the female domain. Examples from specific soapoperas suggest the ways in which these prime time daily soaps blend documentary and fictionconventions and treat the Brazilian nation in melodramatic terms. In doing so, soap operas haveexpanded what was conventionally treated as the female domain.Key WKey WKey WKey WKey Wordsordsordsordsords: Television; Soap Operas; Gender; Nation.