170
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Formação de Professores Programa de Pós-Graduação em História Social Curso de Mestrado Acadêmico São Gonçalo 2008 Iamara da Silva Viana Morte escrava e relações de poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias raciais, sociais e simbolismos.

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Formação de Professores Programa de Pós-Graduação em História Social Curso de Mestrado Acadêmico

São Gonçalo 2008

Iamara da Silva Viana

Morte escrava e relações de poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias raciais, sociais e simbolismos.

Page 2: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

2

Iamara da Silva Viana

Morte escrava e relações de poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias raciais, sociais e simbolismos.

Dissertação apresentada, como requisito para a obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: História Social do Território.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Salles

São Gonçalo 2008

Page 4: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

3

Iamara da Silva Viana Morte Escrava e Relações de Poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias

raciais, sociais e simbolismos.

Dissertação apresentada, como requisito para a obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: História Social do Território.

Aprovado em: _______________________________________________________________ Banca Examinadora: __________________________________________________________ ______________________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Salles (Orientador) Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Faculdade de Formação de Professores (UERJ/FFP) Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro / UNIRio ______________________________________________________________________ Prof. Dra. Márcia Gonçalves Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ Faculdade de Formação de Professores (UERJ/FFP) ______________________________________________________________________ Prof. Dra. Keila Grinberg Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRio)

São Gonçalo 2008

Page 5: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

4

DEDICATÓRIA

Para meus pais:

Dimas Martins Viana (in memorian) e Benedita da Silva Viana.

E a Rogério Soares Sampaio.

Page 6: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

5

AGRADECIMENTOS

O término de um trabalho, ao mesmo tempo que transmite a sensação de dever

cumprido, deixa saudades. Também nos remete ao início do processo e de pessoas que nos

ajudaram a torná-lo realidade. Especificamente a prova de ingresso e a construção de um

projeto. Momentos de imensa tensão, pois, alcançar objetivos importantes dependiam da

aprovação. Para a elaboração do projeto pude contar com Márcia Cristina Pires, amiga de

longa data e agora comadre que muito ajudou com sua leitura crítica, seu olhar atento e

ouvidos pacientes.

Companheiros de trabalho estão cotidianamente compartilhando angústias, desesperos

e choros por vezes incontidos. Eles fizeram parte desse processo e ajudaram a amenizar

sofrimentos. Aos colegas do Colégio Estadual Norma Toop Uruguay, pelas palavras

animadoras e o incentivo: Neuza Maria Julio, Sônia C. Tiemonis e Ângela. Pela amizade e

generosidade da leitura e correção do capítulo IV, agradeço a Gisele Leal Alves. Aos

companheiros do Ser Cidadão Universitário, Jorge, Michelle, Cátia, Henrique e alunos. Vocês

foram demais!

Para que a pesquisa intensa dos documentos no Centro de Documentação Histórica em

Vassouras se tornasse menos exaustiva, pude contar com o apoio e atenção de Magno

Fonseca, Ângelo Monteiro, D. Isabel e Angélica. À Thiago Reis pelas excelentes dicas e troca

de conhecimentos, livros digitalizados e início do banco de dados. Da mesma forma, pude

contar com a generosidade de Ângela Porto que me recebeu tão carinhosamente, cedendo

fontes importantes sobre doenças de escravos. Sou muito grata ao seu gesto, pois o mesmo

tornou possível iniciar um trabalho sobre as moléstias de cativos no século XIX.

Escrever nos torna solitários e para uma melhor escrita necessitamos de outros que

possam apontar o que não ficou tão claro, os erros da língua e para esse papel fundamental

pude contar com Elen Barbosa dos Santos, amiga, companheira e irmã que sempre responde

aos meus apelos.

Aos amigos do mestrado, pelo companheirismo e participação. À Rosane pela

solicitude prestada que viabilizou a utilização de uma fonte importante. À Juçara pela

presença incondicional nos momentos de “desespero”. À Érika Mendes pela leitura dos textos

apresentados nos seminários, sempre enviados “na última hora”. À Daniele Oliveira

companheira incentivadora de todas as horas. Ao Murilo e Everton a agradável companhia

Page 7: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

6

nas viagens e a troca intelectual. Sem vocês e suas amizades este processo não seria o mesmo.

Obrigada!

Não poderia deixar de mencionar amigos de graduação que não me abandonaram,

mesmo estando eu completamente isolada e não participando dos encontros ocasionais. A

todos sem exceção: obrigada “ifcsianos”. Em particular à Lucimar Felisberto pelas

observações importantes já no fim, mas que foram providenciais. Também ao querido

Rogério José pelas conversas sempre tranqüilizadoras. Os amigos são muitos e todos, mesmo

a distância colaboraram com seu apoio: Cláudio e Bianca, Diniz e Luciane, Mônica, Franklin

e Ana Paula, Anderson e Sandra.

Parte efetiva deste trabalho foi amadurecida durantes as aulas. Nelas pude trocar

informações, adquirir conhecimentos e discutir idéias e pensamentos. Os professores do

programa de Mestrado da UERJ / FFP foram essenciais para a conclusão. Agradeço ao

professor Marcelo Magalhães pelo incentivo na profissão e a oportunidade de trabalho que em

muito colabora para o meu aperfeiçoamento. Talvez não consiga expressar o quão grata sou

pela confiança em mim depositada. À professora Márcia Gonçalves pelas dicas, informações

e críticas pontuais no exame de qualificação e também em suas aulas. Ao professor Gelson

pelas considerações ao projeto e ao empréstimo de livros, os quais foram de extrema

importância para o desenvolvimento de alguns pontos de argumentação. Agradeço também ao

professor José Roberto Góis pelas correções e dicas valiosas quando do exame de

qualificação. Não poderia deixar de mencionar a ajuda na minha formação acadêmica de Leila

Rodrigues da Silva, primeira orientadora ainda na Graduação da Universidade Federal do Rio

de Janeiro. Sua crítica me possibilitou construir uma melhor escrita.

Aos meus pais, Dimas (in memorian) e Benedita a quem dedico este trabalho,

agradeço pelo exemplo de vida e a dedicação, que tornou possível continuar. Aos meus

irmãos Gilcemara, Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho e atenção. Também agradeço a

compreensão pela ausência dos últimos dois anos. Da mesma forma, agradeço a chegada de

Yasmin, primeira sobrinha e neta, que nos tem proporcionado muitas alegrias.

Ao crescimento acadêmico, a paciência, o incentivo e palavras sempre otimistas que

foram fundamentais para que este trabalho fosse realizado, agradeço imensamente ao meu

orientador Ricardo Salles. Pelas dicas fundamentais para que eu pudesse prosseguir na

pesquisa e aumentar as possibilidades de análise. Pela cessão de seu banco de dados e o

empréstimo do livro fundamental para questões da morte. Para isso não tenho termos

suficientes para agradecer. Suas palavras de incentivo nos momentos mais difíceis me

ajudaram a superar quando não acreditei poder reiniciar. E claro, as dicas fundamentais para

Page 8: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

7

a produção de tabelas, aquelas, que não “consigo explicar matematicamente”. Obrigada

Ricardo!

À Rogério Soares Sampaio, também homenageado neste trabalho, amigo, ouvinte,

crítico e companheiro paciente. Sua presença e incentivo quando quase enlouqueci ao perder

2 capítulos quase terminados, não me deixaram perder a esperança. E durante todo o curso,

acreditou em meu trabalho. Sem o seu apoio nada disso teria sido possível.

Page 9: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

8

RESUMO

VIANA, Iamara da Silva. Morte escrava e relação de poder em Vassouras (1840-1880):

hierarquias raciais, sociais e simbolismos. 2008. 167 f.

Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Formação de professores, Universidade

do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

O presente trabalho analisa a morte de escravos, seu lugar social e simbólico na

sociedade de Vassouras e as relações de poder nela presente, no período de 1840 a 1880. Para

tanto, foram utilizados os registros de óbitos de pessoas escravas e livres dos livros paroquiais

da Freguesia de Nossa Senhora de Vassouras como corpus documental principal. Os

Inventários post mortem complementaram a análise, viabilizando a comparação das

informações sobre doenças e expectativa de vida. Os dados foram quantificados, analisados e

cotejados entre os diferentes grupos sociais: escravos, libertos e livres. As transformações que

ocorreram após a implementação da produção cafeeira e da propriedade escrava, tornaram

aquela sociedade complexa a partir da miscigenação. Esta proporcionou uma intricada rede de

relações de poder, manifestadas no “bem morrer”. As hierarquias raciais e sociais existentes

na vida, também são notadas na morte. As primeiras estão presentes nas informações sobre a

cor, origem, condição jurídica do morto de seus pais e cônjuges. As segundas, no local de

sepultamento, número de padres nos acompanhamentos ao cemitério, sacramentos recebidos e

vestimentas fúnebres.

Palavras-chaves: Escravos. Morte. Relações de poder.

Page 10: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

9

ABSTRACT

This study examines the lives of slaves, their social and symbolic place in society for

Brooms power relations and present it in the period 1840 to 1880. For this, we used the

records of deaths of slaves and free people of the parish books of the Parish of Our Lady of

Brooms documentary corpus as principal. The post-mortem inventories complemented the

analysis, allowing comparison of information about disease and life expectancy. The data

were quantified, analyzed and collate between different social groups: slaves, freed and free.

The changes that occurred after the implementation of the coffee production and ownership

slave, became one company from the complex mixture. This provided an intricate network of

power relations, expressed in "dying well." The existing social and racial hierarchies in life,

are also noted in death. The former are present in about the color, origin, condition of the

legal death of their parents and spouses. The second, in the place of burial, the number of

priests in accompaniment to the cemetery, received sacraments and funeral clothes.

Keywords: Slaves. Death. Power relations.

Page 11: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

CAPÍTULO 1: Vassouras Município do café: construção de um território . 19

1.1 - Vassouras: questões internas e externas relacionadas ao café. 19

1.2 - Transformação e Construção de um território. 23

1.3 – População. 27

1.4 – Cotidiano nas fazendas de Vassouras. 31

1.5 – Processo de produção 38

1.6 – O Escravo. 40

1.7 – Ocupações e grupos sociais. 41

1.8 - A rotina de trabalho nas fazendas. 48

1.9 – Resistências escravas e mortes. 54

CAPÍTULO 2: Considerações sobre a morte: construção social, política 58

e religiosa.

2.1 - Morte: o longo trajeto até o século XIX. 59

2.2 – Ritos e Rituais Fúnebres. 66

2.3 – Resistências. 70

2.4 – Crianças e Rituais e relações familiares. 73

2.5 - Número dos Mortos. 74

2.6 – Expectativa de vida. 79

CAPÍTULO 3: Doenças de escravos e principais curas. 87

3.1 – Doenças, Causas Mortis e possíveis tratamentos. 87

3.2 – Doenças e Manuais. 105

3.3 – Cura: O fim principal. 112

CAPÍTULO 4: Relações de poder e morte de escravos em Vassouras. 118

análise comparativa entre libertos, forros e livres.

4.1 – Cemitérios e Hierarquias. 119

4.2 – Hierarquias raciais e Origem étnica. 132

4.3 – Nações. 146

Page 12: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

11

4.4 – Hierarquias e Diferenças sociais. 148

4.5 – Vestimentas. 153

4.6 – Sacerdotes 156

Considerações Finais 159

Bibliografia 162

Page 13: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

12

Introdução

O presente trabalho objetiva compreender sob o ponto de vista simbólico as relações

de poder existentes na morte de escravos e libertos, suas principais moléstias, expectativa de

vida e maneiras de sepultamento entre os anos de 1840 a 1880 na Freguesia de Nossa Senhora

da Conceição de Vassouras. Para tanto, utilizamos uma análise quantitativa e qualitativa no

cruzamento de duas principais fontes: os livros de óbitos das pessoas escravas e das livres e os

inventários post mortem de proprietários. Analisamos cativos, libertos e livres que estavam

inseridos no cotidiano da sociedade escravista no Império do Brasil. O recorte temporal,

embora amplo, foi utilizado na tentativa de observarmos as possíveis diferenças nos

tratamentos dispensados aos cativos doentes antes e após o fim do tráfico negreiro, bem como

as chances reais de mobilidade escrava. No contato com as fontes surgiram novas questões: de

que forma o poder da igreja e dos homens ricos influenciavam nas relações de poder?

Existiam diferenças pontuais nos registros religiosos entre ex-escravos e livres? E de que

maneira elas poderiam ser notadas?

A participação no I Seminário de Pós-Graduandos do CEO/PRONEX marcou a

ampliação do trabalho. As observações feitas por Keila Grinberg incentivaram-nos a

comparar as informações dos dois primeiros grupos sociais com as dos livres, o que fomentou

as possibilidades de análise. Desta forma, percebemos que as diferenças existentes nos óbitos

poderiam suplantar a questão racial.

A partir da análise adotada para este trabalho, tentamos entender se é possível perceber

relações de poder na morte nas fontes analisadas. A morte nos possibilita conhecer alguns

fatores da vida diretamente a ela associados. Tentamos examinar se as mudanças políticas e

econômicas influenciaram as condições de vida, contribuindo para uma maior expectativa de

vida e melhores condições de trabalho. E em que medida o poder simbólico atuava na

sociedade de Vassouras e em seus hábitos de bem morrer nas diferentes escalas daquela

sociedade.

Os diferentes grupos sociais que se formaram a partir da expansão da cultura cafeeira

(1836-1850), tornaram a sociedade de Vassouras complexa. Posição política, condição

jurídica e econômica tendiam a demarcar os diversos espaços materiais de domínio. Aliados a

eles, o poder simbólico viabilizava outras formas de hierarquização, principalmente com o

auxílio da religião dominante e oficial do Império do Brasil. Desta forma, utilizamos o

conceito de Bourdieu na tentativa de alcançar as nuances daquelas relações:

Page 14: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

13

As diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais. Elas podem conduzir esta luta quer directamente, nos conflitos simbólicos da vida quotidiana, quer por procuração, por meio da luta travada pelos especialistas da produção simbólica (produtores a tempo inteiro) e na qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legítima [...] quer dizer, do poder de impor – e mesmo inculcar – instrumentos de conhecimento e de expressão (taxinomas) arbitrários – embora ignorados como tais – da realidade social. O campo de produção simbólica é um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nesta medida) que os produtores servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de produção. 1

Alguns trabalhos importantes nos auxiliaram na composição e visualização do amplo

percurso histórico em Vassouras e das doenças, os quais destacamos a seguir.

O clássico trabalho de Stanley Stein, Vassouras um município brasileiro do café,

1850-1900,2 apresenta a formação do território, sua população, demografia escrava e a

importância desta para a economia do Império do Brasil; aprecia os diferentes grupos sociais

e sua participação naquela sociedade; influências econômicas, religiosas e culturais ajudaram

a compor sua análise. O capítulo VII, “Padrões de Vida”, tratou especificamente sobre as

doenças, suas causas, diagnósticos e cura.

Ricardo Salles, em E o Vale era o escravo,3 publicado em 2008, amplia o debate em

torno da importância da mão de obra escrava para a construção do território, a partir da

história das relações sociais entre senhores e escravos. Salles demonstra os diferentes grupos

de fazendeiros e a concentração da riqueza apenas entre poucos deles. Analisa o impacto da

Lei do Ventre Livre e de que forma ela incidiu sobre as taxas de reprodução natural positiva

de escravos, que haviam demonstrado crescimento a partir da segunda metade do século XIX.

As informações demográficas e sociais daquela sociedade foram fundamentais para nosso

trabalho.

Philippe Áries, em seu clássico História da morte no Ocidente, 4 apresenta as

variações sofridas pela morte e as atitudes do homem diante dela. Denominando a morte do

período medieval até inícios do século XIX de domesticada, este autor aponta fatores muito

1 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. trad. Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 322. 2 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 3 SALLES, Ricardo Henrique. E o Vale era o Escravo : Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 4 ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977.

Page 15: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

14

próximos dos encontrados nos espaços físico e temporal aqui tratados. Demonstra como o

simbolismo e os ritos mortuários se transformaram em diferentes recortes temporais.

A questão da morte escrava, embora necessite de mais estudos, já foi contemplada por

alguns trabalhos importantes. Mary Karasch no livro A vida dos escravos no Rio de Janeiro,5

cuja primeira edição americana é de 1987, analisa a vida de escravizados urbanos na primeira

metade do século XIX. Sobre a morte de cativos, a autora explicita que a maior incidência de

mortes era por doenças infecto-parasitárias. Apresenta os quantitativos de mortes e taxas de

mortalidade para as diferentes faixas etárias e grupos sociais no espaço urbano.

João José Reis, partindo de um episódio conhecido por Cemiterada, que ocorreu na

Bahia do século XIX, especificamente em 1836, analisa a morte. Este episódio demarca um

processo de transformação das percepções e atitudes relativas à morte na Bahia, apontando a

importância dos enterros ad sanctus para aquela população. No seu livro A morte é uma festa 6 de 1991, identifica diferenças e semelhanças entre libertos, escravos e livres quanto à idade

na morte, moléstias, sepultamento, ritos e rituais e vestes fúnebres.

Também preocupada com a questão de doenças escravas no século XIX, Ângela

Porto7 traz uma grande contribuição com sua pesquisa. Organizou Doenças e escravidão:

sistema de saúde e práticas terapêuticas, em 2007, com artigos que priorizam este tema por

diferentes vertentes. Seus escritos são de grande importância para a compreensão e o diálogo

com a área médica.

Júlio César Pereira centraliza seus estudos no chamado Cemitério dos pretos novos,

localizado no Valongo do século XIX. Em À flor da terra: cemitério dos pretos novos no Rio

de Janeiro,8 publicado em 2007, analisa a violência cultural presente naquele campo santo, a

relação dele com a cidade do Rio de Janeiro e seus moradores, bem como as condições de

saúde dos cativos recém-chegados que logo sucumbem devido às doenças adquiridas ou

trazidas da África.

5 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro(1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 6 REIS, João José Reis. A Morte é uma Festa. ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 7 PORTO, Ângela. (org.) Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 8 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007.

Page 16: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

15

O trabalho de Cláudia Rodrigues, Lugares dos mortos na cidade dos vivos9, foi

fundamental para pensarmos as questões de construções e reconstruções do simbolismo da

morte. A autora faz uma excelente discussão sobre a cultura portuguesa e a africana e como

ambas percebiam a vida além-túmulo. Demonstra do mesmo modo “a familiaridade entre os

vivos e os mortos na corte”.

Sobre a região de Vassouras, podemos contar com o trabalho de Ana Maria Leal e

Miridan Britto e Magno Fonseca10 que, ao estudar a escravidão de Vassouras no período de

1821 a 1850, contemplam a morte de cativos. Entretanto, ambos os autores não utilizam dados

sobre a população livre e liberta.

Considerações acerca da morte escrava em Vassouras em novos trabalhos tem também

apresentado bons resultados, utilizando fontes diversas. Os Livros de óbitos da Freguesia de

Nossa Senhora da Conceição de Vassouras correspondem ao corpus documental de nossa

pesquisa e encontram-se no Centro de Documentação Histórica de Vassouras / CDH da

Universidade Severino Sombra.

A análise qualitativa e quantitativa desses documentos tornou possível a identificação

dos escravos que morriam, bem como o cotejar de tais dados com o dos livres. Os livros de

óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras são separados entre

escravos e livres, e nestes estavam inseridos os libertos e forros (assim são descritos nos

documentos), diferentemente da província do Rio Grande de São Pedro, onde a população, em

seus registros de óbito, não era separada pela condição jurídica, estando livres, libertos e

escravos, relacionados num mesmo documento.11

Utilizamos para este trabalho o banco de dados de Ricardo Salles com informações

sobre a morte de cativos. Nele estão computadas informações contidas nos primeiro e

segundo livros de óbitos de escravos da paróquia de Nossa Senhora da Conceição de

Vassouras. Esta fonte apresenta informações sobre causa mortis, sacramentos, nome, cônjuge,

idade, origem e cor. Da mesma forma, aplicamos o banco de dados de inventários post

mortem de proprietários, que contém listas nominais de escravos colhidas em cerca de 700

inventários da região de Vassouras para o período entre 1820 e 1880. São aproximadamente

9 RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. 10 BORGES, Magno Fonseca. Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e ampliação da cultura cafeeira – Vassouras – 1821-1850. Dissertação de mestrado. Vassouras: Universidade Severino Sombra. 11 PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Enfermidades de escravos: contribuições metodológicas para estimativas da mortalidade (Rio Grande de São Pedro, 1790-1835). In: PORTO, Ângela. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 8.

Page 17: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

16

28.500 indivíduos, sobre os quais constam informações de: nome, sexo, origem, valor,

relações familiares, etc. Ele ainda consta de duas tabelas (inventários e escravos) interligadas

por um campo comum referente ao número do inventário, que é único, o que permite o

cruzamento de informações existentes nas duas tabelas.

Os Inventários post mortem dos proprietários nos auxiliaram a preencher algumas

lacunas, como profissões e provisões, em caso de doenças nas fazendas. Eles são importantes

documentos para auxiliar na análise dos martírios dos escravos e sua morte. Esses

documentos nos apresentam uma outra perspectiva de análise, ao inventariar e relacionar

escravos, doenças e valor. De forma geral, mencionam nome do escravo, idade, ofício, nome

do cônjuge, número de filhos, origem, cor e preço. É importante notar que a doença faz

diminuir o preço do cativo, diminuindo efetivamente o valor da propriedade de um senhor.

Os registros de morte dos livres e libertos foram analisados e, a partir deles, montamos

um novo banco de dados com informações sobre este grupo social: nome, data do óbito,

idade, estado civil, nome do cônjuge, local de sepultamento, causa mortis, nome dos pais,

sacramentos, vestimentas fúnebres, condição jurídica e social – dados importantes para a

avaliação das relações de poder presentes na morte. Os assentos de livres são mais complexos,

por listarem também libertos e forros. Além dos dados acima, podemos citar testamento, a

utilização de caixão fechado, cor e origem.

Os Manuais que surgem a partir da década de 1830, embora tenham como objetivo

central a administração de escravos, viabilizam o conhecimento sobre as possíveis doenças

dos cativos, bem como seus tratamentos e curas. Da mesma forma, auxiliam no conhecimento

sobre como era visto o escravo pelo proprietário, como deveria ser tratado e quais as maneiras

de melhor manter a propriedade escrava.

Carlos Augusto Taunay em seu Manual do agricultor brasileiro, 12 apresentou seu

olhar sobre a questão da administração escrava. Sua formação ficou refletida em seu trabalho

no modo como abordou questões sobre como tratar e conduzir escravos. Fora major

napoleônico e veio para o Brasil em 1816. Em 1822 e 1823, participou dos embates pela

independência do Brasil, na então província da Bahia, como parte das forças militares.

Assumiu a gestão do sítio da família localizado no Maciço da Tijuca, onde fora produtor de

café. Seu manual, mencionado acima, foi produzido durante a década de 1820, publicado em

12 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839.

Page 18: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

17

janeiro de 1839 e indicado para a SAIN e, sendo distribuído por todo o Império do Brasil, teve

sua segunda publicação autorizada pela SAIN em março 1839.13

Entre a primeira e a segunda publicação houve um curto prazo de tempo, o que pode

sugerir o quanto foi útil tal manual para fazendeiros que administravam grandes fazendas

longe das cidades e de cuidados médicos. Apesar de tratar da administração de fazendas, boa

parte do manual foi dedicada à questão escrava. O escravo, para este autor, era um ser

desprovido de inteligência e inferior fisicamente, sendo um escravo adulto comparado a um

adolescente branco. E atendendo à nossa preocupação neste trabalho, um espaço foi também

reservado para tratar das principais doenças que acometiam os escravos, bem como as

possíveis maneiras de tratá-las.

Francisco Peixoto de Lacerda Werneck escreveu Memória sobre a fundação de uma

fazenda na província do Rio de Janeiro.14 Ele era um fazendeiro no vale do Paraíba

Fluminense e na bagagem trazia duas décadas de experiência no cultivo do café. Werneck era

considerado um líder de sua classe na região de Vassouras. Sua Memória fora redigida no ano

de 1846, com o objetivo de deixar registrada para seu filho a melhor maneira de administrar

uma fazenda cafeeira. Logo no início de seu trabalho, Werneck sublinha o cuidado que

deveria ser observado com relação à saúde dos escravos, bem como a vigilância sobre os

mesmos. A senzala simboliza uma de suas preocupações. A sua localização dentro da fazenda

fora mencionada por Werneck, e deveria ficar em local propício ao controle senhorial.

O doutor Imbert, francês e ex-cirurgião da marinha francesa em seu Manual do

Fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros, 15 apresenta, sob a

perspectiva médica, as principais doenças e possibilidades de cura. Descreve cuidadosamente

a anatomia humana para facilitar a compreensão de fazendeiros que teriam que lidar em seu

cotidiano com múltiplas enfermidades. Utilizamos a segunda edição de 1839. Esta tese foi

fundamental para iniciarmos este estudo e entendermos o pensamento médico do século XIX

a respeito das moléstias de escravos. Não poderíamos deixar de mencioná-las ao estudarmos a

morte e seus simbolismos.

13 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 270. 14 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. 15 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839.

Page 19: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

18

No capítulo I analisamos a construção do território de Vassouras como parte

fundamental para a formação da complexa sociedade do século XIX e de seus distintos grupos

sociais. Consideramos a importância do mercado mundial do café, que fomentou a construção

de fazendas e de sua extensa mão-de-obra escrava. Essas fazendas e seu modo de produção

propiciaram um grande número de moléstias que ceifaram a vida de muitos cativos.

Condições precárias de higiene, horas excessivas de trabalho, alimentação inadequada, roupas

que não os protegiam das mudanças de tempo, foram alguns dos motivos que podemos

associar ao grande número de óbitos.

No capítulo II, tratamos especificamente da construção material e simbólica da morte

de escravos, cotejando esses dados com os de libertos e livres. Nesse processo, verificamos os

rituais e ritos importantes e a maneira que eram utilizados para legitimar o poder da igreja

católica. As culturas, portuguesa e africana, foram fundamentais no processo de construção e

reconstrução dos simbolismos da morte e da vida além-túmulo. Da mesma forma, tentamos

verificar o discurso da Igreja como manutenção de seu poder naquela sociedade.

O capítulo III nos permite visualizar quais as moléstias que mais mataram escravos,

libertos e livres. Procuramos examinar as possíveis diferenças na forma de retratar os doentes

entre os documentos religiosos e os políticos, tendo por base os manuais de fazendeiros e a

tese do doutor Imbert.

Finalmente, no capítulo IV, tentamos demonstrar de que maneiras as diferenças sociais

podem ser percebidas e comparadas com o modo de vida: as hierarquias étnicas e sociais, as

possibilidades reais de ascensão, mobilidade e limites impostos pela sociedade. Objetivamos

identificar a forma pela qual o discurso oficial da Igreja reproduz essas estratificações.

Page 20: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

19

Capítulo 1: Vassouras Município do café: construção de um

território.

A sociedade escravista de Vassouras no século XIX é, de modo específico, parte da

História do Império do Brasil, e, de modo geral, da expansão atlântica do mercado capitalista.

Não podemos, portanto, dissociá-la de acontecimentos amplos da história do mundo

capitalista, estando diretamente ligada aos fatos ocorridos no final do século XVIII. Não é

nossa pretensão retomar exaustivamente fatores econômicos e políticos amplos, para

viabilizar a análise social e de construção do território em questão. No entanto, tais fatores

não podem ser dissociados por completo desta análise. Sendo assim, mencionaremos alguns

deles que propiciaram a inserção de um grande número de escravos africanos no curto período

entre 1830 e 1850 na sociedade escravista de Vassouras.

O Estado Imperial, como centro das referências e de poder político, é o ponto de

mediação entre a região de Vassouras e o cenário nacional e internacional.16 Além disso, o

aumento da produção cafeeira está intrinsecamente ligado à demanda externa, fator que

estabeleceu a maior necessidade de mão-de-obra escrava para atender a um mercado

crescente, bem como o aumento da produção interna. Desta forma, as relações de poder

tornaram-se extremamente complexas a partir do desenvolvimento desse município,

viabilizando a construção e reconstrução de valores políticos, simbólicos e religiosos, como

forma de distinção entre os seus indivíduos, livres ou escravos. Tais fatos são de fundamental

importância para entendermos as questões que vislumbraremos nos capítulos posteriores.

1.1 – Vassouras: questões internas e externas relacionadas ao café.

Os produtos coloniais, no final do século XVIII, sofreram uma mudança significativa

no mercado mundial. O açúcar, que se transformou em um produto de necessidade nutricional

básica das diferentes camadas da população europeia e não mais um produto de luxo, ganha

um impulso com base no crescimento do consumo. Estabelecendo uma correspondência com

16 SALLES, Ricardo Henrique. E o Vale era o Escravo : Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 21.

Page 21: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

20

esse crescimento, estava o consumo de bebidas estimulantes, dentre as quais, o café. 17

Também intimamente ligado ao aumento da produção cafeeira do Império do Brasil, está a

revolução de São Domingos, que teve início em 1791. Até então, a principal colônia francesa

fora responsável pela maior produção. 18 O açúcar e o algodão também faziam parte dessa

cultura, mas a capacidade produtora de café nos interessa mais de perto, tendo em vista que

ele foi o produto que possibilitou a formação da sociedade escravista em Vassouras.

Segundo Rafael de Bivar Marquese, “os senhores de escravos luso-brasileiros

responderam à conjuntura favorável, ampliando a produção das propriedades rurais já

existentes, mas, principalmente, estabelecendo novas unidades produtivas”.19 Mais tarde,

quando se inicia a exportação de café no porto do Rio de Janeiro, os cafeicultores de

Vassouras utilizavam-no para escoar parte significativa de sua produção. O aumento da

produção agroexportadora foi implementado pela vinda da família real em 1808, o que

permitiu, não somente o contato dos produtores brasileiros com o mercado mundial, mas

também tornou possível a expansão da escravidão nacional, segundo Ricardo Salles, uma

escravidão nacional. O movimento iniciado na Corte, “centro político, cultural e moralmente

dirigente do Império que nascia”,20 fez surgir sua classe senhorial. A base de sustentação

desse movimento, do ponto de vista econômico-produtivo, bem como do social, foi o Rio de

Janeiro, constituindo-se a partir dos grandes proprietários rurais escravistas, primeiro na

Baixada Litorânea e Fluminense, depois culminando no Vale do Paraíba. Da Província do Rio

de Janeiro, segundo Ricardo Salles, procedia a principal base produtiva, comercial e

financeira do Império do Brasil para a época analisada.21

A possibilidade de grandes lucros com a produção do café não atendeu prontamente ao

fim do tráfico negreiro transatlântico, aprovado em 1831. A Inglaterra tomou a iniciativa para

a extinção do tráfico e, Portugal, no início do século XIX, precisamente no Congresso de

Viena em 1815, resolveu atender aos desejos de “Sua Majestade Britânica na Causa de

Humanidade e Justiça, adotando meios mais eficientes para motivar uma gradativa abolição

17 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 259. 18 Idem. Ibidem.p. 261. 19 Idem. Ibidem.p. 261. 20 SALLES, Ricardo Henrique. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 33. 21 Idem, Ibidem. p. 33-34.

Page 22: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

21

do Tráfico de Escravos”.22 Postura útil ao reconhecimento pela Inglaterra do Império do

Brasil. Todavia, tais medidas não foram imediatamente adotadas. Ao contrário, o tráfico fora

implementado, aumentando a entrada de escravos nos portos brasileiros. Certamente, numa

tentativa de garantir farta mão-de-obra aos proprietários e fazendeiros.

O café, produto que no século XIX tornou-se o mais importante do Império do Brasil,

contribuiu para tornar o tráfico uma atividade lucrativa, mesmo após 1830, com a sua

ilegalidade. Continuará assim após 1850, momento ainda de expansão da cultura cafeeira, e o

fim definitivo das operações atlânticas. 23 Após este marco, o comércio de escravos

continuava sendo rentável, embora com maior risco, agora não apenas causado pelo alto

índice de mortalidade, mas também pela intervenção inglesa.

As finanças do Império na metade da década de 1830 tinham por base a expansão dos

cafeicultores, e essa dependência foi mais forte do que a pressão da Inglaterra para o fim da

escravidão. Podemos, assim, associar o aumento do tráfico de escravos africanos na década de

1840 ao acúmulo de capital de fazendeiros, bem como ao aumento de capital dos cofres do

governo. Vassouras, em 1848, teve aproximadamente 60% de seus impostos pagos à

Província do Rio de Janeiro, provenientes da venda de escravos. 24 Logo, podemos verificar o

quão economicamente vantajoso era o tráfico para o Império do Brasil, da mesma forma que

podia garantir o status desejado por proprietários de terras. Isso porque, quanto mais terras e

escravos, maior o prestígio pessoal. Essa realidade sofre alterações a partir da consolidação da

cultura no pós 1850, o que, em certa medida, contribuiu para o fim definitivo do tráfico, por

ser numerosa a mão-de-obra.

Embora tenha sido introduzido no Rio de Janeiro em 1770, “o café fora produzido

inicialmente na região amazônica”, 25 tornou-se significativo na década de 1820, e teve, na

reafirmação do escravismo, um dos elementos que permitiram a sua expansão no vale do

Paraíba Fluminense. Especificamente nos primeiros anos do século XIX, ele era um produto

exótico, segundo Stanley Stein: “um arbusto crescido em jardins e encostas de montanhas ao

redor da capital e preparado principalmente para o consumo local”. 26 O solo e o clima foram

aliados para a sua expansão. Algumas famílias, nesse período, se estabeleceram no Vale

22 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 91. 23 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Tradução James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 23. 24 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 93. 25 GRAHAM. Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasiliera. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras. 2005. p. 28. 26 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 28.

Page 23: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

22

médio do Paraíba, dando início à exportação do café pelo porto do Rio de Janeiro. A partir de

1830, pode ser considerado o sustentáculo econômico do distrito.27 Havia fazendeiros que

cultivavam outros produtos tais como milho, feijão, arroz e tabaco, mas eram voltados para o

consumo familiar e de escravos, sendo o excedente vendido no pequeno mercado local.

A produção brasileira de café suplantou as regiões cafeicultoras mundiais a partir da

terceira década do século XIX, estando diretamente associada à conjuntura mundial – como já

mencionado acima, a partir de 1820 – e internamente, pelas condições favoráveis à sua

expansão na província do Rio de Janeiro. Mundialmente, mudanças nos padrões de seu

consumo nesse mesmo século foram importantes para a produção brasileira. No princípio, o

maior consumidor era a Europa continental sendo suplantada pelos Estados Unidos. Cabe

mencionar que a Inglaterra, embora tendo laços comerciais pretéritos com o Império do

Brasil, consumia em grande escala o chá indiano, atendendo aos interesses da Companhia das

Índias Orientais. 28

Afastando-se da condição de produto de luxo e adentrando no cotidiano das grandes

massas, principalmente nas classes operárias dos países em processo de industrialização, o

café tornou-se alvo de uma grande demanda. Os Estados Unidos, nesse contexto, assumem o

lugar dos maiores compradores do produto, em termos mundiais. Fato extremamente

importante para que o Rio de Janeiro implementasse sua produção e principalmente a mão-de-

obra escrava, para atender à necessidade internacional. A oferta do produto sofreu

transformações importantes, e Java, ao priorizar a economia do chá em detrimento da

economia cafeeira, confirma esse fato. Cuba não teve possibilidade de ocupar o espaço

deixado por Java, abrindo espaço comercial para o Estado Imperial. O mercado crescente

norte-americano, desta forma, passa a ter no Brasil seu maior fornecedor.

Questões internas e externas corroboraram para a implementação da sociedade

cafeeira escravista na Vassouras oitocentista. A partir do seu desenvolvimento, as divisões

sociais tornaram-se maiores, mormente entre os livres – fossem estes homens brancos livres,

negros libertos, pardos libertos, negros livres e pardos livres. Cada qual formava os diferentes

graus hierárquicos presentes na vida – e também na morte - dos indivíduos daquela sociedade.

Complexidade percebida nas questões econômicas, no número de escravos e fazendas, bem

como nas questões políticas e simbólicas.

27 GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 29. 28 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 263.

Page 24: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

23

A soma dos conhecimentos acerca da produção e beneficiamento que ocorreram a

partir dos últimos 30 anos do século XVIII, no Rio de Janeiro, viabilizou a produção voltada

para o mercado externo. Marquese informa que os custos para a implementação da cultura

cafeeira no centro-sul eram baixos, devido ao valor da terra que não era tão alto, isto porque,

até a segunda metade do século XIX, o território era relativamente desocupado. Para além

desse fato, a terra da região do vale do rio Paraíba do Sul era considerada ideal para o plantio

do café e próxima do mercado do Rio de Janeiro.29 A economia teve por base “as práticas

mercantis empregadas pela elite de negociantes residentes na praça comercial do Rio de

Janeiro, tornando possível o acúmulo de capital”30. A região, desta forma, atendia às suas

principais necessidades, tais como: terra, escoamento da produção e fácil acesso à mão-de-

obra escrava. Essa era a base para o desenvolvimento econômico, político e social da

sociedade de Vassouras no século XIX.

A urgência de atender a demanda dos Estados Unidos foi um fator importante para a

implementação da produção cafeeira, associada aos interesses agro-exportadores do Estado

Imperial, bem como aos de fazendeiros. A partir das questões econômicas, políticas e do

crescimento populacional, surge a necessidade de diferenças cada vez maiores, tendo em vista

a miscigenação e mobilidade social, ainda que muito ínfima, de cativos. Ex-escravos e seus

descendentes, em alguns poucos casos, se tornaram pequenos proprietários de terras e de

escravos, viabilizando, assim, uma maior complexidade social.

1.2 – Transformação e Construção de um território.

Vassouras, como um território construído pela forma de uso, 31 no século XIX -

especificamente nos trinta anos que antecederam 1850 -, foi transformada de uma vasta

29 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 264. 30 FRAGOSO, João, FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto – mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790-1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993 apud MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 264. 31 Conceito utilizado por Milton Santos ao definir Território. O autor trabalha com a perspectiva de que o território adquire valor pela forma como é utilizado. Somando a ele o espaço físico e geográfico e as ações do homem. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo / razão e emoção, capítulo 2. O Espaço: sistemas de objeto, sistemas de ação e capítulo 3 O espaço geográfico, um híbrido. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 50-88.

Page 25: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

24

floresta primitiva em uma grande área de cultivo do café, inicialmente, cultivado de forma

precária nas estradas que eram utilizadas pelos comboios de mulas que se deslocavam devido

ao comércio entre a região das Minas Gerais e a capital do Império.32 Alterando sua estrutura

inicial, ocupou novos espaços, acima e abaixo do Vale do Paraíba, estendendo-se não apenas

no território ocupado, mas tornando-se o principal produtor de café no Império do Brasil.

Ricardo Salles define quatro períodos para o estudo de Vassouras no século XIX: 1821 a

1835, implantação; 1836 a 1850, expansão da produção de café e da plantantion escravista;

1851 a 1865, o período de apogeu; e finalmente, de 1866 a 1880, o que ele denominou

período de grandeza. Adotaremos a referida divisão em nosso trabalho.

Vassouras atendeu aos padrões de uma cidade típica do século XIX brasileira.

Estabeleceu-se em torno de “um conjunto formado pela praça com seu monumental chafariz e

palmeiras imperiais e pelo arruamento que contorna a igreja matriz”, situada no topo de uma

elevação que dominava o conjunto.33 Essa Igreja, que ocupa um lugar de destaque, terá nos

próximos capítulos uma posição ímpar para entendermos as formas de “bem morrer”, tendo

na sua construção o simbolismo que garantirá a manutenção de poder de fazendeiros e

párocos. Abaixo da praça, tinham destaque os solares residenciais e grandes construções feitas

por fazendeiros e comerciantes que serviam de residências urbanas. Tais construções tiveram

início em 1850, como a Santa Casa (1848-53), a Câmara e a Cadeia (1850-74).34

O rio Paraíba do Sul, causa de algumas mortes de escravos, era o principal da região.

A ele também estava associada a boa terra, onde se alojaram as fazendas mais produtivas. O

clima do Vale do Paraíba era considerado moderado durante todo o ano. A avaliação

topográfica apresentada por Stanley Stein descreve um terreno cheio de morros de forma

arredondada, “sendo enfileirados em cadeias desconexas paralelas ao eixo sudeste-nordeste da

serra do Mar e do rio Paraíba”. 35 Uma marca registrada do local, estudado e descrito por

outros autores.

O “Caminho Novo”, estrada que deixava a cidade de Paraíba do Sul em direção ao que

hoje é o município de Vassouras, era utilizado para o transporte do ouro da região das Minas

32 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 28. 33 TELLES, Augusto da Silva. Vassouras. Estudo da construção residencial urbana, tese de docência da cadeira de Arquitetura no Brasil. Faculdade Nacional de Arquitetura, 1961. p. 42-43. apud. SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 148. 34 Idem, apud. SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 148. 35 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 29.

Page 26: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

25

Gerais. O esgotamento das minas do norte e a expansão do cultivo do café, nos terrenos

elevados do Vale do Paraíba no último quartel do século XVIII, e primeiro do século XIX,

propiciaram novos rumos a esse cotidiano, contribuindo para completar o povoamento de

Vassouras. Aliado a esse processo, um grupo de índios coroados foi eliminado na região da

atual Valença. Analisando os livros de óbitos de Vassouras, percebemos que os indígenas

representavam um grupo muito pequeno dentre os mortos no século XIX, os quais não eram

registrados junto com os escravos, mas entre os livres.

Alguns dos indivíduos que enriqueceram ao fazer o caminho de ida e volta, se

lançaram à vida sedentária, criando raízes locais em Vassouras, garantindo não apenas a

sobrevivência da família, mas em alguns casos, tornaram-se figuras econômica, social e

politicamente importantes daquela sociedade. A ocupação da terra se deu de duas maneiras

distintas: a primeira, e mais tradicional, foi a concessão de sesmaria ou concessões de terras

da coroa portuguesa devido a ajuda prestada pelo requerente, na abertura de estradas ou

devido a benefícios que seriam recebidos pelo adquirente da terra, neste caso, pertencer ao

serviço público; a segunda forma de ocupação foi a que se desenvolveu com as trilhas de

mula. O comércio que surge, devido aos trens de carga, atraiu posseiros que construíam

ranchos na tentativa de aumentar seus lucros. Os ranchos eram o local de parada para

tropeiros e seus animais de carga e onde também se tinha outra fonte de renda, a partir da

produção de pequenas roças de milho, feijão, cana e pasto, produtos incentivados por uma

demanda crescente. O direito a esse pedaço de terra estava condicionado a algumas

disposições portuguesas que protegiam aqueles que cultivavam o solo. 36 Entrementes, a

expansão do café por todo o território provocou um aumento da luta pela posse da terra, que

simbolizava poder.

A utilização da mão-de-obra escrava remonta ao século XVIII e ao cultivo da cana de

açúcar. “A vinculação de terra e escravos, os pilares da sociedade agrícola, não era apenas

fortuita”, como bem descreve Stanley Stein.37 Isso porque, para além do uso de escravos no

cultivo da terra, um bom quantitativo deles poderia ser a garantia de aquisição de sesmaria da

Coroa portuguesa. Essa prática, já presente nos primórdios da colonização de Vassouras, pode

ser pensada como a origem da necessidade crescente de escravos como mão-de-obra no

cultivo do café e ocupação do território. Um grande número de escravos e de extensão de

terras era a possibilidade de enriquecimento e de status social.

36 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 36-37. 37 Idem. Ibidem. p. 83.

Page 27: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

26

O governo português, situado no Rio de Janeiro, na tentativa de impedir a ação de

posseiros, “ordenou que nenhuma terra não reclamada fosse deixada entre concessões durante

sua mediação”38, ato feito em 1809. Em 1817, foi solicitado pelo governo, a medição e o

registro das propriedades (sesmaria, herança, aquisição ou grilagem). As concessões de

sesmarias foram encerradas em 1822, sendo instituído o reconhecimento da propriedade que

pudesse comprovar cultivo eficaz, o que provavelmente contribuiu para atrair muitos

posseiros.39 Stanley Stein informa, a partir de um registro de imóveis, que aproximadamente

28 fazendas controlavam as terras mais produtivas dos 1400 Km2 do município de Vassouras.

Algumas famílias ligadas por laços de parentesco eram detentoras da maioria destas fazendas.

Stein organizou os núcleos familiares de modo que “na região oeste havia as famílias

ramificadas Paes Leme, Corrêa e Castro e Araújo Padilha; a região central estava sob a

influência dos Santos Wernek, Avellar e Almeida, e na região leste havia as famílias Lacerda

Werneck, Souza Werneck e Ribeiro Avellar”. 40 O poder econômico e político de tais famílias

podem ser percebidos pela posse da terra, de escravos e das relações com o governo imperial.

Como veremos no capítulo IV, elas detinham, da mesma forma, o poder simbólico, presente

por exemplo, em ostentosos enterros.41

Vassouras, fundada como vila em 183342, na metade do século XIX, já havia se

tornado município, sendo considerada uma importante região exportadora de café. Sua

população somava 35 mil pessoas, composta por livres e escravos. Aliado às grandes

extensões de terra, o cultivo do café fomentou novas fontes de capital e crédito. Os laços de

parentescos, que definiam casamentos, também auxiliavam na necessidade de empréstimos.

Na região, existiam os chamados capitalistas, presentes entre os membros da família Teixeira

Leite, que durante quarenta anos teve um papel significativo nas questões financeiras do

município. A garantia dos empréstimos era a hipoteca. Também se utilizavam comissários,

38 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 37. 39 Idem. Ibidem. p. 37. 40 Idem. Ibidem. p. 41. 41 Sobre as relações de parentesco e uniões por meio do casamento como uma das formas possíveis de manutenção de poder em Vassouras, ver Ricardo Salles, E o vale era o escravo, 2008. 42 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 111.

Page 28: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

27

que podiam ser membros da própria família, para a cobrança de dívidas. 43 Eles eram uma

outra possibilidade de crédito.

A partir da segunda metade do século XIX, surgem os bancos, uma nova instituição de

cunho impessoal, que substituiria os empréstimos por laços familiares. Com o fim do tráfico

internacional de escravos, o capital fora recolocado, ampliando os recursos de fazendeiros e

garantindo aquisições em um momento em que o preço dos escravos aumentava de forma

exacerbada. Em 1859, Vassouras teve a inauguração do “Banco Commercial e Agrícola”, 44 o

que alterou as relações pessoais e financeiras.

A construção de um território que abrigaria fazendas marcadas pela opulência e grande

quantitativo de escravos ocorreu ao longo de duas décadas, transformando-se de uma “terra

inculta atravessada por duas trilhas de mulas”, 45 em um município de fazendas. Se

inicialmente havia poucos habitantes, em 1850 sua demografia era de 35 mil indivíduos. A

partir dessa década, houve uma significativa mudança quanto ao número de moradores, de

propriedades, de escravos, derivando, assim, a reforma dos prédios das fazendas. Muitos

fazendeiros mudaram seus prédios, mas continuaram seguindo o curso do riacho que os atraiu

nas primeiras construções. Tais mudanças foram viáveis devido à expansão da agricultura e

aquisição de escravos na década anterior. 46 Essa mão-de-obra, elemento constante neste

estudo, será o eixo em torno do qual será construído, marcando um espaço importante não

apenas no que tange ao fator econômico, mas também ao poder simbólico e hierárquico da

sociedade em questão.

1.3 – População.

A fazenda, que segundo Stanley Stein era uma unidade social e produtiva, oferecia

contato entre as diferentes classes sociais de Vassouras, de forma que fazendeiros, escravos,

atacadistas, varejistas, advogados, médicos e pobres livres, formavam a complexa rede de

sociabilidade. O censo de 1872 contabiliza na sociedade de Vassouras 39.253 habitantes.

43 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 43. 44 Idem. Ibidem. p. 46. 45 Idem. Ibidem. p. 27. 46 Idem. Ibidem. p. 66-67.

Page 29: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

28

Destes, 20.158 (51.35%) eram escravos e 19.085 livres (etnias e origens diferentes). Esses

números são importantes para analisarmos as questões relativas à morte. Ao cotejarmos o

número de habitantes e o número dos que recebiam um assento no livro de óbito da paróquia

de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, fossem escravos ou livres, percebemos uma

desproporção numérica. A população que estava dividida entre escravos e livres, tanto no

censo quanto nos registros de óbito, não podia ser pensada tão simploriamente. Dentre os

livres, não havia uma uniformidade entre os diferentes atores históricos, sendo composta de

brancos, brancos livres, negros livres, negros libertos ou forros, pardos livres, pardos libertos

ou forros.

Das cinco paróquias existentes, duas somavam o maior quantitativo de escravos do

município: Nossa Senhora da Conceição e Pati do Alferes. Estas eram consideradas os

distritos mais importantes, no que tange às fazendas e ao comércio. Somavam, pois, 64% da

população total do município e os escravos, 71% do total de indivíduos. A paróquia de Sacra

família, a título de comparação, tinha um maior quantitativo de pessoas livres, que

correspondiam 75% do total e muitos deles eram ex-escravos.

Tabela 1 - População de Vassouras, 1872.

Livres Escravos Paróquia

Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Total

Conceição 2.474 1.987 4.461 3.632 2.571 6.203 10.664

Mendes 965 682 1.647 961 732 1.693 3.340

Pati 3.361 2.992 6.353 4.567 3.520 8.087 14.440

Ferreiros 1.223 900 2.123 1.428 1.115 2.543 4.666

S. Família 2.341 2.160 4.501 891 751 1.642 6.143

Total 10.364 8.721 19.085 11.479 8.689 20.168 39.253

Fonte: Recenseamento, 1872. Apud: STEIN, Stanley. Vassouras um município do café. p. 152.

Como nos demonstra a tabela acima, o número de escravos na década de 1870 supera

o de livres. Se considerarmos os descendentes de escravos que compunham essa camada,

teremos um número considerável da população formada por negros e seus descentes – pardos

e mulatos: especificamente, ¾ da população era “de cor”. Em nenhuma das paróquias, a

população branca supera em número a população negra e mestiça, números que corroboram

Page 30: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

29

para a tensão apontada pela historiografia, presente entre os brancos em relação a possíveis

rebeliões e revoltas negras.

Tabela 2 - Composição Étnica de Vassouras, 1872.

Paróquia Brancos Mulatos Negros Índios ou Mestiços

Conceição 2.764 1.789 6.103 8

Mendes 756 929 1.623 32

Pati 3.288 3.812 7.328 12

Ferreiros 1.239 1.338 2.079 10

S. Família 1.947 2.292 1.489 55

Total 9.994 10.160 18.622 117

Fonte: Recenseamento, 1872. Apud STEIN, Stanley. p. 152.

As informações sobre a composição étnica, apesar de referir-se ao ano de 1872, nos

servem de apoio para pensarmos a complexidade em torno dessa questão, que aumentou na

medida em que a população fora desenvolvida, bem como o aumento do número de alforrias e

relações interétnicas. Suposição com base no número de mulatos – filhos de europeus e

africanos -, que existiam em cada uma das paróquias, como demonstra a tabela acima. Se

somarmos mulatos e negros, a diferença se torna esmagadora. A única paróquia em que os

mulatos são numericamente inferiores aos brancos é Conceição e seria necessária uma

pesquisa minuciosa, para tentar saber a razão disso.

Tabela 3 - Evolução da população escrava – 1840-1884.

Anos 1840 % 1850 % 1872 % 1884

Vassouras 14.333 69.61 19.210 67.09 20.168 51.38 18.891

Fonte: Relatórios de presidentes da província do Rio de Janeiro, anos de 1884 e 1885. Há pequenas discrepâncias, insignificantes, nos dados devido à dificuldade de leitura dos documentos. Apud. Ricardo Salles. p. 213.

Neste gráfico, Ricardo Salles aponta como o número de escravos na região de

Vassouras foi gradativamente aumentando a partir da estabilização e crescimento econômico

com base no cultivo do café. Os percentuais acima, referem-se à proporção da população

total, o que nos possibilita visualizar o grande número de escravos em comparação com a

população livre. Embora tenha sofrido um decréscimo, após o ano de 1880 - fato justificado

Page 31: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

30

pela campanha abolicionista em voga a partir da década anterior -, os números não se

aproximam do quantitativo dos anos de 1840, fixando um aumento significativo. É importante

perceber que um número tão grande de escravos no município de Vassouras não é

representado nos óbitos, sugerindo a utilização de cemitérios clandestinos ou os particulares

em fazendas, não sendo os falecimentos informados à paróquia para o devido registro em

livro próprio.

Tabela 4 - Evolução da população de Vassouras – 1840-1884.

1840 % 1850 % 1872 % 1884 1884ª

Livres 6.285 30,48 9.496 33,08 18.608 47,99 - -

Escravos 14.333 69,52 19.210 66,92 20.168 52,01 17.891 23.073

Total 20.618 100 28.706 100 38.776 100 - -

Crescimento da população Livre 51,09% 95.96% - -

Crescimento da população Escrava 34,03% 4,99% -11,29% 14,4%

Crescimento geral da população 39,23% 35,08% - -

Nota 1: os dados sobre a população escrava em 1884 são da Matrícula de Escravos de 1884. Nota 2: a cifra de 1884ª para a população escrava é o resultado da soma do número de cativos com o número de libertos, de acordo com os dados da Matrícula de 1884. Fonte: Relatórios dos Presidentes de Província do Rio de Janeiro, 1840 e 1850, Relatório do Ministério da Agricultura, 1884. apud. Ricardo Salles. E o Vale era o escravo. p. 159.

Neste gráfico, nas palavras de Ricardo Salles, podemos perceber que:

[...] a acumulação da propriedade escrava ocorreu com o crescimento bruto da população cativa da ordem de 34% entre 1840 e 1850, quando passou de 14.333 para 19.210 indivíduos. Tal crescimento, uma vez extinto o tráfico internacional de escravos em 1850, diminuiu significativamente para cerca de 5% num período de 22 anos, entre 1850 e 1872, vindo a se tornar negativo, em -11,29%, entre este marco e 1884. Esta diminuição ocorreu basicamente sob o efeito da libertação dos nascituros devida à lei de 28 de setembro de 1871. Se, no entanto, somarmos o número de filhos de escravas, então tornados ingênuos, à população cativa neste mesmo período, veremos que, não fosse a lei do Ventre Livre, teria havido um crescimento de 14,4% nesta população no período. 47

Para além da possibilidade de alterar os números do crescimento vegetativo, a Lei Rio

Branco de 1871 teve um pequeno impacto na vida cotidiana de escravos, em se tratando dos

47 SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 159.

Page 32: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

31

Registros de Óbito. As crianças que faleciam a partir desta lei, tinham seu assento feito em

livro separado. Outrossim, nos inventários post mortem de seus proprietários, era feita menção

a sua condição de livre.

1.4 – Fazendas: centro administrativo e de poder senhorial. O Cotidiano nas fazendas de

Vassouras.

As primeiras fazendas foram construídas formando um quadrado funcional. Muitas

foram denominadas “Cachoeira” ou “Ribeirão”, devido a sua localização, preferencialmente

próximas a quedas d’água, como já destacava Francisco Werneck, Barão de Pati do Alferes,

ao descrever fatores fundamentais para a fundação da fazenda:

A agricultura, tendo de manipular os produtos que da terra percebe, e praticar serviços que entendem com a indústria manufatureira, não prescinde do auxílio das máquinas. Ora, de todos os motores conhecidos, é sem dúvida a água o mais econômico e maleável. Por isso o primeiro cuidado do fazendeiro, que de novo vai fundar um estabelecimento rural, deve ser procurar aguada, e, encontrando-a, tirar o nível dessa, com a direção à mais vantajosa localidade. 48

A água é, pois, o “motor” mais “econômico e maleável”, garantindo a sobrevivência

sem muito esforço para o seu deslocamento na utilização pessoal e na lavoura. *Durante a

pesquisa, pudemos observar que nos registros de óbito são mencionados cemitérios

construídos em fazendas com a mesma designação. Os cemitérios de fazenda, como veremos

mais detidamente no capítulo IV, provavelmente existiram na maioria das propriedades de

Vassouras, utilizado para a inumação de cativos e, também, provavelmente, de alguns livres.

Muitas recebiam o nome de um Santo, demarcando a importância da religião no cotidiano da

sociedade. 49 Conforme se acumulava mais riqueza a partir do cultivo do café, as fazendas e

48 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 92. 49 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 47.

Page 33: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

32

suas sedes se tornavam centros dos impérios familiares, ficando, com o passar do tempo, mais

suntuosas. 50

A acumulação de capitais que ocorrera até a década de 1840, possibilitou essas

mudanças na estrutura das grandes fazendas. Desta forma, a década de 1850 foi palco para o

surgimento de pretensiosas residências da aristocracia rural na região do café. Muitos foram

os melhoramentos na edificação principal, ou casa de vivenda, e geralmente eram construídos

dois prédios. Um grande número das antigas propriedades foi substituído por outras, mais

novas e “modernas”. As antigas, em alguns casos, foram utilizadas como depósitos ou

enfermaria de escravos, onde estes eram subtraídos ao trabalho cotidiano para a reabilitação

de seus males.51 A necessidade de enfermaria demonstra a possibilidade de um grande

número de escravos doentes e afastados de seus serviços. Mas nem todas as fazendas

dispunham de um espaço específico para o tratamento de cativos.

Todavia, as senzalas, que ficavam em último na escala das obras, logo após os

chiqueiros, não sofreram mudanças significativas. Possuíam “um telhado feito com telhas, às

vezes um corredor externo para refrescar, fechado por sólidas barras de madeira, nunca

assoalhado”. Muitos telhados eram feitos de palha, alternativa mais econômica. Francisco

Peixoto de Lacerda Werneck, ao descrever como deveria ser construída a senzala, informa:

[...] as senzalas dos pretos, que devem ser voltadas para o nascente ou o poente, e em uma só linha, se for possível, com quartos de 24 palmos em quadro, e uma varanda, de oito de largo em todo o cumprimento. Cada quarto destes deve acomodar quatro pretos solteiros, e se forem casados, marido e mulher com os filhos unicamente. As varandas nas senzalas são de muita utilidade porque o preto, na visita que faz ao seu parceiro, não molha os pés se está a chover, quase sempre estão eles ao pé do fogo, saem quentes para o ar frio e chuva, constipam, e adoecem.52

A preocupação de Francisco Werneck não era fortuita. Senzalas construídas em

terrenos úmidos facilitavam o surgimento de doenças e a propagação de muitas moléstias. Na

sua descrição minuciosa, informa o tamanho ideal da construção e de sua divisão entre

escravos solteiros e casados. Aqueles deveriam ser acomodados em número de quatro por

50 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo : Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 145. 51 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 68. 52 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 57-58.

Page 34: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

33

quarto. Os casados com seus cônjuges e filhos. Um fator interessante é a preocupação com a

construção de varandas que segundo o seu julgamento, eram “de muita utilidade” pois

ajudavam a diminuir o número de escravos doentes.

Entretanto, a maioria de escravos viviam em estreitos cubículos sem ventilação.

Poucas senzalas dispunham de janelas, a maioria possuía uma abertura gradeada em madeira

junto ao teto. A mobília era composta de “uma cama ou tarimba de tábuas apoiada sobre dois

cavaletes de serraria, coberta com uma esteira de capim trançado, talvez um pequeno baú de

madeira, e na parede alguns prendedores e diversas cuias para guardar feijão, arroz ou gordura

de porco”. 53

A segregação de casados e solteiros demonstra uma das formas de hierarquia daquela

sociedade. Provavelmente estava inserida na complexa rede construída com base no poder

simbólico, de forma que escravos casados e com raízes seriam menos vulneráveis a rebeliões.

A vida de indivíduos aglomerados colaborava para a propagação de doenças infecto-

contagiosas. Somada a essas precárias condições, estava a sujeira derivada do pouco ou

nenhum cuidado com a higiene. E mesmo com a expansão da produção cafeeira este quadro

não sofreu grandes alterações, ao menos para este grupo social. Para os seus senhores,

entretanto, surge um novo modelo de vida, ostentoso, vinculado a modernidade.

Nesta primeira fase de expansão do café, Vassouras se firmou como principal centro

urbano que difundia a cultura e o modo de vida senhorial. Os grandes proprietários de

Vassouras tinham casas, propriedade e interesses comerciais na Corte: uma forma de

afirmação do seu estilo de vida. Costumavam ostentar seu poder econômico quando lá

estavam, bem como ter acesso aos “modelos de civilidade”. Ainda assim, mantinham seu

endereço residencial em Vassouras, o que tornou possível o desenvolvimento e sofisticação da

mesma. 54 A casa de fazenda, entretanto, representa o principal símbolo do estilo de vida

daqueles fazendeiros. Era o centro da administração de seu patrimônio: de lá conduziam

agregados, feitores e escravos; visitavam os cafezais e outras culturas utilizadas na fazenda e

na alimentação de seus cativos. As propriedades que se desenvolveram então, tiveram

diferentes formações no relativo ao tamanho das fazendas e ao número de escravos que

compunham a necessária mão-de-obra.

53 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 70-71. 54 SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 119.

Page 35: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

34

Gráfico 1

Perfil de plantéis - 1821-1880 - Total

3%16%

39%22%

12%9%

Sem escravos Mini-proprietários Pequenos proprietários

Médios proprietários Grandes proprietários Mega-proprietários

Fonte: Ricardo Salles, E o Vale era o escravo. op cit., p. 156.

Os donos de terra e de escravos não formavam um grupo homogêneo. Ricardo Salles,

ao analisar as diferenças existentes nos plantéis, verifica o quanto estavam segregados esses

proprietários no que se refere à extensão de terras e ao quantitativo de escravos. Salles

conseguiu, por meio de sua pesquisa, sistematizar tais diferenças, classificando os fazendeiros

em cinco subgrupos distintos: “micro-proprietários (de 1 a 4 escravos), pequenos (de 5 a 19),

médios (de 20 a 49), grandes (de 50 a 99) e mega-proprietários (100 ou mais)”.55 As

diferenças também podem ser percebidas entre os micro e pequenos proprietários, pois alguns

não eram donos de terra, mas poderiam ser parceiros de algum grande ou mega-proprietário.

Da mesma forma, seus escravos eram utilizados em empreendimentos urbanos ou domésticos.

Grandes e mega-proprietários podiam ser, e no caso dos últimos, normalmente eram, donos de

mais de uma propriedade rural. 56

Os mega-proprietários representavam apenas 9% de todos os proprietários de escravos

no período em questão e possuíam 48% do total de cativos. Mega e grande juntos, detinham

70% dos escravos e representavam 21% dos proprietários. Esses dados reafirmam o controle

de um grupo distinto de proprietários de terras e de escravos que possuíam o domínio

econômico, social e político. Os mini e os pequenos eram proprietários de 12% dos cativos,

sendo, pois, pouco mais da metade dos proprietários. Médios proprietários possuíam 18% dos

55 SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 25. 56 Idem. Ibidem. p. 155-156.

Page 36: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

35

escravos da região. A situação de domínio dos mega proprietários passou a prevalecer a partir

da expansão da economia cafeeira em Vassouras, ou seja, no período compreendido entre

1836 e 1850. 57

Essas diferenças possibilitaram a formação de uma hierarquia entre os proprietários,

de forma que alguns se destacavam pelo poder econômico, político e simbólico, enquanto

outros, ainda que proprietários de escravos, utilizavam as terras daqueles para produzirem,

ocupando uma posição inferior na escala hierárquica social. Em certa medida, podemos

caracterizá-los, com todas as peculiaridades existentes, como classe dominante e, como tal, o

lugar que ocupavam pode ser pensado como o da “luta pela hierarquia”, 58 de forma que,

permanecer no topo da pirâmide requer o domínio dos diferentes campos de poder.

As alforrias que ocorreram com mais intensidade até a década de 1860 produziram

mudanças sociais que devem ser consideradas. Elas foram um dos fatores que propiciaram a

complexidade social, ou a inserção de ex-cativos no grupo de micro-proprietários. Eles se

inserem no grupo dos que possuíam entre 1 e 4 escravos e utilizavam terra alheia para o

cultivo. A diminuição dos indivíduos que conseguiam a sua emancipação, provavelmente

devido ao fim do tráfico que levara ao aumento do preço e diminuição da mão-de-obra,

influenciou nas relações de poder daquela sociedade. Segundo Ricardo Salles, “nesta

sociedade escravista madura, as novas condições demográficas e sociais incidiram

diretamente sobre o principal ponto de disputa nas relações sociais entre senhores e escravos:

a liberdade”.59

Os ex-escravos e seus descendentes que se tornaram pequenos ou micro-proprietários,

implementaram as divergências sociais e suas divisões hierárquicas. Liberdade concedida ou

conquistada não garantia a posse de terra e de cativos. Alguns poucos escravos os receberam

por herança. 60 Representavam uma parcela pequena dentre os possuidores desses bens.

Embora fossem poucos, marcaram as divergências sociais, antes divididas entre escravos e

57 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 156-158. 58 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. trad. Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 12. 59 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 255. 60 Ricardo Salles analisa o fato ocorrido com alguns escravos em Vassouras. Eles herdaram terras, dinheiro e escravos. Vide: SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 275-286. Também GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Page 37: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

36

livres. Essas diferenças estavam presentes no cotidiano social nos diversos fatores que

segregavam os indivíduos, fossem materiais ou simbólicos.

Um pequeno grupo de fazendeiros detinha grande influência e se destacava dentro de

seu segmento social. O domínio se efetivava por meio de eleições, atividades relacionadas à

justiça e altos cargos na Guarda Nacional. Algumas famílias eram dominantes nas atividades

do município, e possuíam hegemonia social, econômica e política na Vassouras no século

XIX. A gênese de tal poder remonta ao século XVIII. Seus antepassados vieram, em alguns

casos, da região das minas; muitos trabalhavam com comércio, alguns eram proprietários de

pequenas lavouras, outros, militares. No século XIX, ganharam destaque as famílias Werneck

e Ribeiro Avellar, sendo considerados por Stein “donos da rica paróquia de produção de café

de Pati do Alferes, fundada às margens da Estrada de Minas”.61 Ocupando uma posição de

igualdade com a aristocracia rural, a família Teixeira Leite, como destacada acima, teve na

atividade financeira a origem de seu patrimônio. Poucos fazendeiros de Vassouras possuíam

origem aristocrática. A riqueza foi acumulada a partir do cultivo do café. O status, ou o poder

simbólico de tais fazendeiros, podia ser medido pela quantidade de escravos, terra e café. 62

A concessão de títulos aos cafeicultores de Vassouras foi um dos símbolos de poder

dessa classe. Ser barão era um dos sonhos de consumo dos chefes das boas famílias. Eles

foram concedidos por Pedro II, uma vez que não eram hereditários como na Europa, do

primeiro ano de seu reinado ao último. Os fazendeiros de café representaram 14% dos

adquirentes. O direito a recebê-los estava associado às contribuições financeiras dos

pretendentes na Guerra do Paraguai, apoio ao regime imperial ou ações filantrópicas. 63 Poder

econômico e político não eram suficientes para aumentar o status e aproximar-se dos nobres

europeus. Os fazendeiros de Vassouras desejavam o poder simbólico dos títulos de nobreza,

os quais garantiriam, ainda que não fosse pela hereditariedade, o lugar mais alto na hierarquia

social. Eles estavam associados ao tamanho de suas propriedades que, consequentemente,

influenciavam no total do patrimônio em número de escravos, como veremos a seguir.

61 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 154. 62 Idem. Ibidem.p. 155. 63 Idem. Ibidem. p. 156.

Page 38: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

37

Gráfico 2

Percentual de escravos por perfil de plantéis - 1821-1880 - Total

1% 11%

18%

22%

48%

Mini-proprietários Pequenos proprietários Médios proprietários

Grandes proprietários Mega-proprietários

Fonte: Ricardo Salles. E o Vale era o escravo. op. cit., p. 157.

O tamanho da propriedade incidia diretamente sobre o número de escravos que seriam

necessários para mantê-la funcionando, o que é evidenciado pelo gráfico 2. As necessidades

do cultivo do café, a manutenção da sede e das senzalas, o beneficiamento do produto e de

gêneros alimentícios, norteavam a compra de novos cativos para suprir a necessidade de mão-

de-obra. De acordo com os diferentes tamanhos dos plantéis dos fazendeiros de Vassouras, os

números de escravos que estavam condicionados à necessidade da mesma variavam; ou seja,

temos a formação de diversos tamanhos de plantéis inseridos nas condições descritas acima.

Sendo assim, a exigência dos mega proprietários era muito superior a dos outros, os quais

detinham juntos a posse de 48 % dos cativos registrados na sociedade de Vassouras do século

XIX.

As grandes fazendas que se estabeleceram a partir de então tiveram no trabalho

escravo a base da sua produção e enriquecimento. Este propiciou a formação de uma nova

aristocracia, os barões do café do Vale do Paraíba. 64 Vassouras foi um território, no

oitocentos, de fundamental importância, pois econômica e politicamente auxiliou na

manutenção e expansão da ordem imperial brasileira. 65

64 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 65 SALLES, Ricardo Henrique. E o Vale era o Escravo: Vassouras século XIX – Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro, 2007.

Page 39: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

38

1.5 – Processo de produção

Havendo a possibilidade do encerramento do comércio transatlântico, provavelmente

os grandes fazendeiros trataram de garantir a manutenção de sua produção. Nessa conjuntura,

a negociação da abolição do tráfico atlântico entre o governo brasileiro e os emissários

ingleses, provocou um crescimento no número de escravos que chegavam aos portos do Rio

de Janeiro. Entre 1821 e 1825 em média, 24 mil escravos foram introduzidos nesses portos,

entre 1826 e 1830 os números subiram para 35 mil. O quantitativo de escravos aumenta ainda

durante o período de implantação da cultura cafeeira. Esses números, num primeiro momento,

podem apenas significar uma demanda crescente pela mão-de-obra escrava. Entretanto, se

considerarmos o alto índice de mortalidade, chegar aos portos passa a ser uma questão

pontual. Os escravos que sobreviviam à longa viagem, depois de sua chegada, permaneciam

em quarentena. Os que estavam em melhores condições de saúde, eram enviados ao interior,

viagem feita a pé pelas serras da região, até chegarem ao vale do Paraíba Fluminense. 66

Desses africanos que adentraram no porto do Rio de Janeiros e suas mediações, a maior parte

foi destinada às fazendas cafeicultoras que estavam em processo de formação, instaladas há

pouco tempo no vale do Paraíba, incluindo-se aí as de Vassouras. 67

O período de auge do café foi a década de 1850, e Vassouras pode ser considerada a

base da produção, decorrendo daí a necessária utilização de um alto número de escravos. O

fim do tráfico, que coincide com esse tempo, viabilizou o comércio interprovincial como

garantia da continuidade do profícuo comércio, para atender ao crescimento da procura

internacional. Da mesma forma, elevou o preço do escravo levando pequenos proprietários à

bancarrota e tantos outros a modificarem seu olhar sobre a propriedade cativa.

O aprendizado pela prática do plantio, fez com que muito café fosse plantado após a

queimada do solo. As árvores começavam a frutificar após três anos, atingindo aos seis, uma

produção total e desejada. Os fazendeiros tinham o costume de plantar entre as fileiras de

café, milho, feijão e mandioca. Esse hábito protegia os pés novos do sol quente, bem como

mantinha a alimentação dos escravos. O trabalho era realizado da base para o topo do morro e

vários cativos utilizavam enxadas de aproximadamente 1,8kg a 2,3kg; as mulheres usavam

66 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 67 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 294.

Page 40: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

39

enxadas mais leves. O preparo do solo para a colheita necessitava anualmente de duas

capinas; a primeira geralmente ocorria pouco depois das chuvas de setembro e outubro; a

segunda acontecia de março a abril. O café era plantado verticalmente em fileiras, fato que

gerava vantagens e desvantagens. As chuvas ao descerem o morro, deixavam as raízes à

mostra, expostas ao tempo, danificando as árvores. 68

O processo de plantio culminava com a colheita. O que descrevemos de forma simples

certamente não o era. O trabalho praticamente manual necessitava de muitas mãos para ser

realizado em menor tempo. Quando a fazenda não possuía uma grande quantidade de

escravos, os grãos eram enviados ao Rio de Janeiro para serem beneficiados. As fazendas com

melhores recursos tinham o compacto engenho de pilões, como descreve Stanley Stein. O

termo “engenho”, nas plantações de café, podia ser atribuído a uma máquina específica ou à

construção que guardava toda a maquinaria. O socamento do café inicialmente era feito à mão

com rodos de madeira, sendo substituídos pelos pilões movidos à água. Os grãos secos eram,

nesse processo, socados e depois jogados ao alto numa peneira para separar o grão de sua

casca externa. A interna era removida após novo processo realizado. Depois de socados

novamente e polidos tinham um valor mais elevado no mercado. 69

A divisão de trabalho consistia nos escravos masculinos, atuando em maior quantidade

na capina, plantio, colheita, beneficiamento e transporte para os terraços. Em média, um

escravo deveria colher entre 5 e 7 alqueires diariamente. Para conseguir um bom desempenho

dos escravos em número de alqueires colhidos, o Barão de Pati do Alferes ensina:

Um dos melhores expedientes que (em princípio quando os meus escravos não sabiam apanhar o café) estabeleci, e de que tirei muito bom resultado, foi o dos prêmios, verbi gr., marcava cinco alqueires como tarefa, e dizia-lhes: todo aquele que exceder terá por cada quarta 40 réis de gratificação; com este engodo, que era facilmente observado, consegui que, esforçando-se, habituassem a apanhar sete alqueires, que ficou depois estabelecido como regra geral. 70

As escravas, crianças e idosos eram preferidos para a seleção dos grãos. Nesta tarefa o

café era selecionado em mesas ou em assoalhos lisos dos engenhos. Espalhava-se uma

68 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 60-61. 69 Idem. Ibidem. p. 61-63. 70 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 107.

Page 41: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

40

camada fina de grãos e os que seriam vendidos a um preço menor separados à mão, o

chamado refugo, composto pelos quebrados, manchados e pouco desenvolvidos. Cada escravo

que desenvolvia essa tarefa deveria selecionar até 4 arrobas diariamente. Depois de

selecionados, saíam da fazenda para as mãos do intermediário, seguiam para a estação

ferroviária e daí para o Rio de Janeiro.71

1.6 – O Escravo:

Manolo Florentino e José Roberto Góes, analisando o período de 1790 a 1850,

definem o escravo como “uma mercadoria, objeto das mais variadas transações mercantis:

venda, compra, empréstimo, doação, transmissão por herança, penhor, seqüestro, embargo,

depósito, arremate e adjudicação”. 72 O escravo era considerado, pela sociedade escravista,

uma propriedade, um bem que deveria ser controlado para melhor exercer sua função, o que

significava em muitos dos casos, o uso da violência física. Até meados do século XIX, as

doenças e mortes consecutivas não abalaram a estrutura do patrimônio escravo pela facilidade

de reposição dessa mão-de-obra, situação que sofrerá uma sensível mudança após o fim do

tráfico negreiro em 1850.

Seguindo a mesma perspectiva, os fazendeiros de Vassouras não se afastavam da

concepção de seus pares de outras províncias, de modo que não percebiam em seus escravos

“a natureza e dignidade dos homens. O escravo era pouco mais do que um objeto vivo, uma

ferramenta, um instrumento, uma máquina”73. Essas palavras mencionadas num jornal local

de Vassouras demonstram a visão de alguns fazendeiros sobre a sua mão-de-obra e a maneira

ideal de lhes tirar uma melhor produtividade. Entrementes, não podemos considerá-la como

uma visão generalizada, tendo em vista que alguns, embora fossem perseguidos por seus

pares, demonstravam um pensamento diferenciado. 74 Tal como demonstra Stanley Stein, ao

71 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 63-64. 72 FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1997. p. 31. 73 A. E. Zaluar. O Vassourense, 19 de novembro de 1881. apud STEIN, Stanley J. Vassouras: um município do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 169. 74 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 169.

Page 42: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

41

citar Caetano da Fonseca: “Muitos fazendeiros desumanos, [...] forçam seus escravos, com o

chicote, a trabalharem além de sua capacidade física. Esses pobres homens, esgotadas suas

últimas energias, morriam em pouco tempo, com grande dano financeiro para seus bárbaros

senhores”. 75

A perda da propriedade era um ponto crucial na fala de Caetano da Fonseca e

demonstra possivelmente o motivo de suas preocupações. Os castigos físicos exacerbados

eram certamente uma das principais causas de mortes, nem sempre relatadas nos registros de

óbitos, como veremos no capítulo seguinte. E como bem salientou este autor, levava a um

prejuízo no patrimônio senhorial, fato que não os fazia amenizar o trato com seus cativos, ao

menos enquanto o tráfico garantia farta reposição da mão-de-obra. Todavia, o uso da

violência não pode ser lido como unanimidade entre os senhores de escravos. Provavelmente,

o receio de não ter a máxima produtividade os levava a compactuar com o pensamento da

época. A pena do açoite para os crimes de escravos foi abolida em 1886, 76 mas,

provavelmente havia diminuído quando do fim do tráfico atlântico.

1.7 – Ocupações e grupos sociais.

As diferentes ocupações e o reduzido número de cativos entre os indivíduos livres que

compunham a sociedade de Vassouras apontam o quão escassos eram os recursos em caso de

doenças, não apenas para eles, mas também muito provavelmente para os livres. Os

fazendeiros ocupavam o lugar de destaque na sociedade, faziam parte do grupo de

agricultores ou lavradores. Eram assim considerados os que possuíam fazendas com mais de

30 alqueires. Os sitiantes, lavradores, colonos ou trabalhadores contratados, compunham o

grupo de lavradores, mas estavam longe do status do fazendeiro, bem como do poder político,

econômico e simbólico que alguns poucos detinham. Destarte, podemos perceber a

heterogeneidade dos agricultores, sendo viável ter em sua composição homens abastados e

também os que beiravam a pobreza.

75 Caetano da Fonseca. Manual, p. 103. apud. STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 171. 76 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 65.

Page 43: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

42

Tabela 5 - Distribuição Ocupacional dos livres em Vassouras, 1872.

Paróquia Agricultores Negociantes Capitalistas

Proprietários

Servidores

Civis

Médicos Advogados

Juízes

Conceição 685 239 55 36 22 18

Mendes 717 44 7

Pati 1.945 81 1 7 10 2

Ferreiros 720 17 1 1 4

S. Família 1.202 93 3 3 4 2

Total 5.269 474 67 47 40 22

Fonte: adaptado de recenseamento, 1872. Apud. Stanley Stein. op. cit. p. 153

O quadro acima demonstra a importância social dos agricultores, formada pelo maior

número de representantes entre os indivíduos. O pequeno número de médicos, quarenta no

total, não poderia atender de modo proficiente uma população numerosa e em crescente

desenvolvimento, que somava 39.253 habitantes, em 1872. Negociantes, capitalistas

proprietários, servidores civis, advogados e juízes formavam outros grupos profissionais entre

os livres.

Os portugueses eram os imigrantes em maior número, assim também sugerem os

registros de óbito de livres. Exerciam diferentes funções e atividades profissionais como

negociantes, médicos, advogados e professores. Os menos afortunados eram vendedores,

feitores de fazendas e trabalhadores habilitados ou não. Muitos eram pobres e procuravam

alguma atividade em Vassouras tão logo chegassem em solo brasileiro. Geralmente viviam ao

redor da cidade, local que recebeu a alcova de “O Valão do português”. Em vida, estavam

fadados a serem reconhecidos pelo local de moradia, e na morte, pela inscrição pobre ou

pobríssimo de seu registro, bem como pela falta de pompa nos rituais de inumação. Mas nem

todos os portugueses pobres permaneciam nessa condição, muitos enriqueciam e retornavam à

terra natal. 77

Os homens livres e pobres formavam uma classe heterogênea, pertencendo a um plano

intermediário entre os grandes fazendeiros e o grupo de escravos. “Alguns desse grupo eram

descendentes de posseiros livres e sem terra, provenientes de várias raças; outros eram

colonizadores sem posses, aos quais se juntaram escravos fugidos e alforriados e portugueses

77 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 160-162.

Page 44: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

43

indigentes”. 78 Estes homens não eram parte efetiva da vida de fazenda e tinham reservados

para si os trabalhos servis e muitas vezes os mais perigosos. Artesãos, “agregados”,

trabalhadores rurais e urbanos, sem-teto e indigentes formavam esse grupo; nele estavam

inseridos também os escravos alforriados. A pobreza era percebida pelo ato de mendigar, o

que acontecia geralmente aos sábados, dia escolhido pelos moradores do campo para vender

sua produção e fazer compras. 79

As diversas funções que seriam desempenhadas por escravos deveriam ser ensinadas

ao cativo, ainda criança:

Tende o cuidado logo, em princípio, de pôr alguns moleques a aprender ofícios, como sejam carpinteiros, ferreiros e pedreiros: em pouco tempo estão oficiais e tende de casa operários, tendo-vos aproveitado ao lucro da aprendizagem [...] Não vos esqueçais de pôr também algum a oleiro para fazer a telha e tijolo para o gasto da casa .80.

A aprendizagem de ofícios deveria atender, como o Barão de Pati do Alferes adverte,

às necessidades do proprietário de fazenda. Outros ofícios tiveram espaço nas grandes

propriedades e eram fundamentais para o seu funcionamento. Além dos mencionados na

citação acima, os homens eram tropeiros, falqueijadores, feitores, capatazes, sapateiros,

alfaiates, coveiros. As mulheres: lavadeiras, cozinheiras, costureiras, engomadeiras, mucamas,

cesteiras. Eles compunham um grupo de escravos especializados em funções que poderiam

aumentar o seu preço e logo, o patrimônio de seu senhor. Existiam ofícios desempenhados por

homens e também por mulheres: como cozinheiros, no trabalho de roça, nos serviços

domésticos.

Na análise dos inventários post mortem no período de 1840 a 1880, identificamos um

pequeno número de escravos voltados para o tratamento de doenças. As ocupações destes são

muitas e geralmente citadas como forma de garantir um bom preço ao cativo. Tais funções

atendiam às exigências da fazenda e alguns escravos dominavam mais de um ofício. Para a

construção das tabelas abaixo, optamos por selecionar os ofícios que mais se destacavam ou

tiveram maior representatividade.

78 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 163. 79 Idem. Ibidem. p. 163-164. 80 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 66.

Page 45: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

44

Tabela 6 - Ofícios de escravos por gênero e faixa etária, 1840-49.

Faixa Etária Total Gênero Profissão 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 s/idade Total %

Tropeiro 0 1 51 3 0 31 86 27.74

Carreiro 0 0 14 7 0 12 33 10.64

Carpinteiro 0 0 40 3 0 21 64 20.65

Marceneiro 0 0 1 0 0 2 3 0.97

Oleiro 0 0 3 0 0 0 3 0.97

Telheiro 0 0 3 0 0 0 3 0.97

Falqueijador 0 0 15 3 0 1 19 6.13

Ferreiro 0 0 11 4 0 6 21 6.77

Feitor 0 0 0 0 0 2 2 0.64

Capataz 0 0 4 0 0 2 6 1.94

Pedreiro 0 0 12 4 1 3 20 6.45

De Roça 0 1 1 0 0 0 2 0.64

Alfaiate 0 1 8 3 0 3 15 4.84

Sapateiro 0 0 3 5 0 1 9 2.90

Cozinheiro 0 0 7 0 0 1 8 2.58

Pagem 0 0 5 0 0 5 10 3.22

Domestico 0 0 1 0 0 0 1 0.33

Homens

Barbeiro 0 0 1 1 0 3 5 1.62

Total por Gênero: 310 – 75.1%

Faixa Etária Total Gênero Profissão

0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 s/idade Qtde % Cozinheira 0 0 14 5 0 0 19 18.44

Costureira 0 7 52 3 0 4 62 60.19

Engomadeira 0 0 7 0 0 0 7 6.80

Lavadeira 0 0 3 3 0 0 6 5.82

Rendeira 0 0 2 0 0 0 2 1.95

Mucama 0 0 2 0 0 0 2 1.95

Mulheres

De Roça 0 0 4 1 0 0 5 4.85

Total por Gênero: 103 – 24.1%

Total Geral: 413 Fonte: Inventários Post mortem de proprietários, 1840-1849. CDH.

Na década de 1840, encontramos cinco escravos barbeiros e nenhuma escrava com

ofício relacionado ao tratamento de doenças ou à saúde. Os escravos barbeiros correspondem

a 0,33% do total de escravos selecionados para esta análise e que tiveram um ou mais ofícios

relacionados ao seu nome no inventário de seu proprietário.

Os tropeiros estão no topo da lista e somam 27.74%, carpinteiros totalizam 20.65%,

seguidos pelos carreiros, 10.64% dos escravos com ocupação especificada: ofícios

importantes para a economia e manutenção da fazenda. Ferreiros, falqueijadores81 e pedreiros,

respectivamente, simbolizam 6.77%, 6.13% e 6.45%. Embora em menor quantidade dos que

81 Segundo a informação de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, essa ocupação era responsável por abrir caminhos na densa vegetação de Vassouras e cortar madeira.

Page 46: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

45

os anteriormente mencionados, esses escravos eram também fundamentais para a manutenção

das propriedades cafeiculturas. Competindo com eles, no ofício de pedreiro, existiam homens

brancos portugueses, como Francisco Jose de Siqueira, 38 anos, filho de Antonio Jose de

Siqueira e Maxianna Barbosa de Siqueira, viúvo e falecido na Santa Casa de Misericórdia no

dia 26 de março de 1871.82 Esses dados demonstram a competição entre pobres e escravos na

prática de alguns ofícios.

Mulheres escravas, no que tange aos ofícios atribuídos, maciçamente exerciam

atividades domésticas, na década de 1840. As costureiras, boas ou “sofríveis”, representam

60.19% do total de cativas aqui selecionadas, mais da metade, provavelmente devido às

poucas possibilidades antes da expansão cafeeira e do aumento dos lucros. Cozinheiras ficam

em segundo lugar, com 18.44%. Nenhum ofício foi relacionado à faixa etária 0-7 anos.

Da década de 1850 ao ano de 1880, conforme os dados da tabela 7, mulheres escravas

“de roça” eram as mais significativas, com 34.95% (223) do total selecionado. As costureiras

agora ficam em segundo lugar, somando 17.40% (111). As influências da moda estrangeira,

facilitadas pela ferrovia, certamente contribuíram para a diminuição dos números. Utilizando

a mesma tabela, percebemos a mesma alteração entre os escravos, pois os “de roça”

ultrapassam em quantidade os tropeiros.

A realidade econômica se transformara, devido à lei de 1850, podendo ter influenciado

na utilização do maior número possível de cativos na produção cafeeira. Se antes dela os

roceiros eram 0.64% (2) dos relacionados nos inventários, após esse marco, são 27.96%

(415). Devemos considerar que muitos escravos, no período anterior ao fim do tráfico, não

tiveram um ofício indicado, o que levaria ao baixo índice. Entretanto, os números são

sugestivos e corroboram para acreditarmos no uso do maior número possível da mão-de-obra

no campo, independente do gênero, para garantir a produção.

Tabela 7 - Profissões escravos por faixa etária e gênero 1850-1880. Faixa Etária Total

Gênero Profissão 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 s/idade Qtde %

Tropeiro 0 0 69 37 1 109 216 14.55 Carreiro 0 1 54 22 0 42 119 8.02 Carpinteiro 0 0 62 44 1 58 165 11.12 Marceneiro 0 0 3 2 0 6 11 0.74

Oleiro 0 0 2 2 0 3 7 0.47 Telheiro 0 0 3 4 0 9 16 1.08

Homens

Falqueijador 0 0 5 0 0 6 11 0.74

82 2º. Livro de óbitos das pessoas livres fls. 13. CDH.

Page 47: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

46

Ferreiro / Ferrador 0 0 48 11 0 28 87 5.86

Feitor 0 0 0 8 0 5 13 0.88 Capataz 0 0 11 12 2 15 40 2.69

Pedreiro 0 2 30 21 4 29 86 5.79 De Roça 1 31 200 142 1 40 415 27.96

Do Café 0 0 0 0 0 1 1 0.07 Sacador de Café 0 0 0 0 0 1 1 0.07

Formigueiros 0 0 2 4 0 5 11 0.74 Alfaiate 0 0 9 9 0 21 39 2.63

Sapateiro 0 1 4 2 0 16 23 1.55 Cozinheiro 0 0 22 17 1 31 71 4.78 Padeiro 0 0 0 1 0 1 2 0.13

Pagem 0 0 23 4 1 25 53 3.57 Domestico 0 2 1 1 0 0 4 0.26

Copeiro 0 3 9 1 0 1 14 0.94 Engomador 0 0 1 0 0 0 1 0.07

Barbeiro 0 0 0 2 0 9 11 0.74 Enfermeiro 0 0 2 3 0 3 8 0.54 Servente de Enfermaria 0 0 0 1 0 0 1 0.07 Os serviços 54 0 1 0 0 3 58 3.91

Total por Gênero: 1.484

Faixa Etária Total Gênero Profissão

0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 s/idade Qtde % Cozinheira 0 0 19 14 0 11 44 6.90

Padeira 0 0 1 0 0 1 2 0.31

Costureira 0 3 48 6 0 54 111 17.40

Engomadeira 0 0 11 2 0 3 16 2.51

Lavadeira 0 0 8 9 0 7 24 3.76

Rendeira 0 0 4 0 0 0 4 0.63

Doméstica 0 7 29 9 0 1 46 7.21

Serviço de Casa 0 1 1 0 0 0 2 0.31

Serviço dom vários 0 1 27 5 0 12 45 7.06

Mucama 0 2 47 5 0 11 65 10.19

De Roça 1 9 126 80 0 7 223 34.95

Enfermeira 0 0 1 2 0 0 3 0.47

Parteira 0 0 0 1 0 1 2 0.31

Mulheres

Os Serviços 49 0 0 0 0 2 51 7.99

Total por Gênero: 638

Total Geral: 2122 Fonte: Inventários post mortem de proprietários, 1850-1880. CDH.

Chama a atenção que crianças de 0 a 7 anos recebem a classificação “os serviços” a

partir da segunda metade do século XIX, especificamente na década de 1870. Nas anteriores,

nenhum ofício foi relacionado a crianças nessa faixa etária. Outras categorias são descritas na

década de 1870: “de roça”, um menino e uma menina, e duas meninas como “serventes”. Na

década de 1880, encontramos 3 crianças para “os serviços”: 1 menino e 2 meninas.

Acreditamos que não por acaso um grande número de crianças inocentes foram registradas

Page 48: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

47

nos inventários com um ofício especificado. A este fato associamos a lei de 28 de setembro de

1871, que declarava livres os filhos de mulheres escravas que nascessem após essa data.

Filhos livres, mães escravas, uma combinação problemática. De fato, do nascimento

até os oito anos de idade eles poderiam ficar com suas mães e seus respectivos senhores. E

após essa idade? O que fazer com esses indivíduos que ainda continuariam sem condições de

se autogerir? A opção estava nas mãos dos proprietários de “mantê-los sob seus serviços até

os 21 anos ou de entregá-los aos cuidados do Estado”. 83 A lei do ventre livre, desta forma,

afetou as relações entre senhores e escravos inocentes. Ela passa a ser utilizada como mão-de-

obra potencial em um período em que sua oferta havia diminuído. Segundo Ricardo Salles, a

partir da década de 1860, desenvolveu-se uma estabilização das condições sociais de

reprodução natural das chamadas comunidades de senzala, o que em certa medida pode ter

aliviado a tensão em torno da diminuição da oferta de mão-de-obra. Sendo assim, inocentes

que não tinham ofício relacionado a si, passam a fazer parte do “rol” de possibilidades de

mão-de-obra, mesmo tendo condição livre. Afinal, todo o custo pela manutenção da criança

até a sua maioridade era do senhor e proprietário de sua mãe.

A partir da Lei do Ventre Livre, os filhos de escravos tiveram a anotação “liberto por

lei” nos inventários post mortem. A intervenção do Estado em um documento particular fica

evidente. A menção também sugere preocupação em demonstrar que a criança não mais

poderia ser considerada pela condição jurídica de seus pais. Nascida nessas condições, ela não

fazia parte teoricamente dos bens a serem inventariados. Esses novos indivíduos passam a ter

um livro de óbito específico para sua condição jurídica: ingênuos. Os mesmos não serão

tratados neste trabalho. A lei do Ventre Livre garantia, assim, que filhos de escravas

nascessem livres, mas poderia ser e, em grande maioria provavelmente era, utilizada como

mão-de-obra. O benefício para seus pais foi o direito ao pecúlio e à compra da alforria.

Segundo Hebe Mattos, essa lei ajudou a desarticulação da economia moral da grande fazenda,

pois a capacidade de concessão de privilégios, que eram associados à figura do senhor, se

tornaram direitos dos cativos. 84

83 SALLES, Rcardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 79. 84 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 163.

Page 49: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

48

1.8 - A rotina de trabalho nas fazendas.

O trabalho diário de um escravo iniciava-se muito cedo, antes do nascer do sol,

terminando horas depois de se pôr. A jornada de trabalho nas fazendas podia durar até 16

horas. O tempo dispensado para o sono era de cinco a oito horas sob os “catres cobertos por

esteiras de fibra tecida”. 85 Próximo às senzalas existiam “bicas” utilizadas pelos cativos para

uma rápida higiene matinal e depois dela, tinham eles acesso aos seus instrumentos de

trabalho, as enxadas e as podadeiras. 86 A precária higiene dos escravos era um dos fatores de

muitas doenças e da possibilidade de não curá-las. Dessa forma, a higiene foi descrita como

fundamental no tratamento de algumas moléstias e recomendada pelo doutor Imbert em seu

manual.

Retomando o cotidiano dos escravos, após a higiene, eles se agrupavam no pátio da

fazenda e, após a “reza da manhã” iniciada pelo senhor, o feitor fazia uma “chamada” para

verificar se todos os escravos estavam presentes para o início das atividades. Caso ficasse sem

alguma resposta, verificava a senzala. As tarefas que seriam feitas no dia eram distribuídas e a

primeira refeição geralmente composta de café e broa de milho. Este era o alimento mais

necessário ao lavrador de serra acima. Nutria os escravos, a tropa, os cavalos, os porcos, os

carneiros. Tão importante, que deveria ter o fazendeiro a maior cautela na sua sementeira, em

terras da melhor qualidade. 87

No caminho para o trabalho nos cafezais, as mulheres levavam seus filhos. Quando o

trabalho a ser realizado era em colinas distantes, costumava-se levar as refeições que fariam

no decorrer do dia. Num local próximo, uma cozinha improvisada era erguida e abrigava o

material transportado em carroças ou em caldeirões de ferro, quando em quantidade

significativa. Por vezes, alguns escravos carregavam sua alimentação em sacos de pano.

Homens e mulheres se dividiam entre as diferentes tarefas, formando grupos mais ou menos

organizados em fileiras. O ritmo do trabalho geralmente era dado por quatro homens que

compunham a fileira da frente, estes costumavam ser os mais rápidos e serviam de exemplo

85 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 197. 86 Idem. Ibidem. p. 197-198. 87 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 75.

Page 50: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

49

para os mais vagarosos. O trabalho seguia o ritmo dos mais ligeiros e do canto, iniciado pelo

mestre cantor com um desafio de jongo, que deveria ser respondido pelo mestre cantor do

outro grupo. Se o Jongo hoje é uma manifestação cultural dos descendentes dos negros

africanos, no século XIX, era associado ao trabalho no eito: uma maneira de tornar o

cotidiano menos pungente. Ao jongo, os escravos associavam um mal ou bom dia de trabalho.

Quizumba era o nome dado aos Jongos cantados em língua africana e visaria aos cantados em

português, que se tornavam mais comuns à medida que os escravos africanos idosos iam

morrendo. 88

Esses escravos mais velhos tinham status entre os mais jovens, eram mais lentos,

naturalmente devido à força do tempo. Os mais jovens, para evitar as possíveis chicotadas,

não ultrapassavam o ritmo deles, ainda que fossem responsáveis pela maior velocidade do

trabalho. A religião estava associada a essa atitude: a crença de que o mais novo que não

seguisse tal preceito seria mordido por cobra, caso o escravo mais velho jogasse seu cinto e

este o pegasse. O receio de ser vítima de mordida de cobra não estava apenas no imaginário

desses cativos, tendo em vista que trabalhavam e passavam a maior parte do seu tempo entre

os cafezais. Reiterando esse medo, temos o fato de que alguns cativos que tiveram mortes

violentas foram mordidos por cobra. Imaginário e fatos cotidianos estabeleciam algum tipo de

relação. 89

O almoço poderia ocorrer por volta das 10 horas e tinha a duração aproximada de

trinta minutos. A hierarquia também prevalecia nesse espaço, onde capatazes e talvez algum

escravo protegido ou respeitado, almoçavam separados dos demais. As mulheres que tinham

filhos de colo aproveitavam para amamentá-los. Às 13 horas, uma pausa era feita para um

café, que poderia ter o restante do angu do almoço como acompanhamento. Nos dias mais

frios, o café era substituído por uma caneca de cachaça destilada da cana-de-açúcar. Por

vezes, para não atrapalhar o ritmo do trabalho, a caneca era servida pelos capatazes a mando

do senhor, nos cafezais. A janta ocorria às 16 horas e geralmente o cardápio era o mesmo do

almoço. 90 Não havia homogeneidade quanto aos horários das refeições diárias. Elas podiam

variar entre as diferentes fazendas. Na concepção do Barão de Pati do Alferes, o “preto de

88 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,,1990. p. 199-200. 89 Idem. Ibidem. p. 200. 90 Idem. Ibidem. p 201.

Page 51: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

50

roça deve comer três vezes ao dia”, “almoçar às oito horas, jantar à uma hora e cear às oito até

nove”. 91

O fim do dia de trabalho ocorria ao anoitecer, quando os escravos formavam em frente

à casa grande para a chamada no terreiro. Entretanto, isso não significava que teriam a partir

daí uma noite de descanso. A chamada noturna ocorria sempre que havia necessidade de

algum trabalho a ser feito. Nela os escravos eram inspecionados e era iniciado o serão que

poderia se estender até 20 ou 23 horas. No inverno, a seleção de grãos de café secos era a

principal tarefa, efetuada à luz de lamparinas de óleo de mamona ou tochas de taquara

entrelaçada. A segunda tarefa mais importante era a preparação de alimentos para pessoas e

animais. Consistia na preparação da mandioca, que era descascada manualmente, moída em

pedra, seca e torrada, se tornando farinha, como era utilizada. 92 O fubá também era preparado

durante os serões, o arroz socado, o café a ser servido no dia seguinte torrado e moído, a lenha

era separada, sendo então encerrados com uma ceia leve. 93 Os escravos, homens e mulheres,

que detinham o ofício de cozinheiro declarado nos inventários post mortem, representavam

5.60 % (tabela 6 e 7) do total de cativos e traziam consigo a importância da função dentro e

fora da Casa Grande.

Um fator presente na rotina de trabalho, como descrito acima, era a dieta alimentar. A

população escrava e a livre nas fazendas de Vassouras tinham suas dietas adaptadas aos

hábitos alimentares coloniais e portugueses, aos que eram reproduzidos no local, bem como às

necessidades exigidas pelo grupo de escravos que formavam a mão-de-obra. Geralmente, as

fazendas produziam seus alimentos, algumas obtinham o que precisavam em locais próximos.

Fubá, feijão, mandioca, toucinho de fumeiro e açúcar eram a base das refeições servidas

diariamente, existindo pouca distinção entre o que era servido a escravos e a livres, 94 pelo

menos até a chegada dos prósperos anos da segunda metade do século XIX. 95 Alguns

alimentos, entretanto, compunham a mesa dos senhores e não a dos cativos. A mandioca,

citada acima, era um “acessório indispensavelmente necessário”, presente nas mesas de luxo

91 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 64. 92 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,,1990. p. 204. 93 Idem. Ibidem. p. 204-205. 94 Idem. Ibidem. p. 210-211. 95 Idem. Ibidem. p 214.

Page 52: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

51

em forma de pirão, bolos de sua tapioca, mingaus e biscoitos de sua goma, também utilizada

nas roupas. 96

O almoço e o jantar, que na maioria das vezes possuíam o mesmo cardápio para

escravos, tinham no angu a base da alimentação. O suplemento era feijão-preto ou mulatinho,

e recebiam o tempero de toucinho de fumeiro e gordura de porco, a farinha de mandioca era

colocada por cima. Em alguns casos, também eram servidos legumes como batata-doce,

abóbora, nabo, dentre outros. Uma parca ceia era servida quando da necessidade do serão,

geralmente composta por algumas tiras de carne-seca, esta preferida pelos fazendeiros pela

durabilidade e conservação em comparação com a carne fresca, podendo ser armazenada de

oito a dez meses sem deteriorar. Em época de colheita ou datas festivas, recebiam os cativos

xícaras de aguardente ou marafo, termo africano. As refeições eram feitas pelos escravos de

pé, agachados ou sentados; utilizavam cuias e dedos para transportar a comida à boca – em

raros casos a colher era utilizada. Pratos diferenciados dos acima descritos, como paçoca,

canjica, leitão – este somente para os escravos que ultrapassavam sua cota de grãos colhidos,

outra estratégia de controle -, churrasco de porco, frutas, dentre ouros, consistiam numa

premiação e apenas eram servidos em ocasiões festivas. 97 A dieta, que nem sempre fora tão

farta, oferecia riscos à saúde dos indivíduos que trabalhavam durante muitas horas, descalços

e sem descanso, viabilizando o enfraquecimento do organismo, bem como causando doenças,

que muitas vezes se tornavam irreversíveis devido à debilidade física.

Outro fator importante na propagação de doenças e de distinção social era a

localização da cozinha, existindo uma para a família senhorial e outra para o uso dos escravos.

A cozinha externa era destinada aos escravos e a interna para o senhor e sua família. Em

ambas faltava higiene. Segundo descreve Stanley Stein, “as moscas rondavam a comida

empilhada, as panelas fumegantes e o lixo jogado pelo chão”, 98 facilitando provavelmente a

proliferação de moléstias.

Mudanças nos hábitos alimentares, ao menos no que concerne ao senhor e a sua

família, foram percebidas a partir da chegada da linha férrea entre o Rio e as áreas rurais.

Diminuída a distância, a comunicação teve uma melhora e, com isso, os fazendeiros tiveram

contato com a cozinha da “moda” ou “civilizada”, como descreve Stein. O contato com tais

96 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 77. 97 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 212-213. 98 Idem. Ibidem. p. 214.

Page 53: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

52

novidades não significou, contudo, uma mudança efetiva nos hábitos alimentares desses

indivíduos, pois continuaram a se alimentar de forma simples. A variedade de produtos

derivados do trigo, macarrão e biscoitos diminuiu o consumo de fubá entre os fazendeiros.

Padarias surgiram na última metade do século XIX, a manteiga, queijos mineiros, portugueses

e leite passaram a fazer parte mais assiduamente da mesa dos senhores, pelo menos dos mais

abastados. 99 Alguns contavam com escravos padeiros, como Antonio, Angola. O doutor

Imbert, em seu manual, descreve a importância da dieta alimentar associada à higiene, como

forma de garantir uma boa saúde e cura para algumas doenças no século XIX. Dieta alimentar

e saúde caminhavam lado a lado, tendo uma colocação acentuada por Imbert, como uma das

formas de recuperação de determinadas moléstias. Não apenas para diversificar a dieta

alimentar e ampliar a comunicação e comércio, serviu a ferrovia aos fazendeiros de café de

Vassouras. Ela também apresentou novas possibilidades para os doentes. Dispondo de

dinheiro necessário, poderia solicitar-se um médico do Rio de Janeiro para o atendimento nas

fazendas. 100

A vestimenta precária também incidia na saúde de escravos. Na primeira metade do

século XIX, as vestes de senhores e escravos eram simples no cotidiano; entretanto, senhores

mais abastados costumavam se vestir à moda européia. No que concerne aos escravos, a

maneira como eram vestidos está intimamente associada ao fluxo do tráfico. Entre as décadas

de 1830 e 1840, quando a afluência de escravos vindos da África era grande, não havia muita

preocupação dos senhores com esse item. As mudanças foram notadas após 1850, quando o

afluxo de escravos diminuíra com o fim do tráfico atlântico. Geralmente, o fazendeiro

adquiria por encomenda quantidades consideráveis de um tecido de algodão grosseiro, que era

feito à mão na província de Minas. Em período posterior, passaram a consumir o

manufaturado, que era produzido em Petrópolis ou perto de Magé, Província do Rio. Para as

noites mais frias, era utilizada a flanela de algodão, (chamada baeta) e a lã. Os escravos

geralmente recebiam roupas em dois períodos do ano, no Natal e no período das festas

juninas.101 As costureiras escravas, como as muitas que aparecem mencionadas nos

inventários post mortem analisados neste trabalho, tinham a função de confeccionar essas

roupas, mas os tecidos eram cortados pelas senhoras.

99 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 215. 100 Idem. Ibidem. p. 232. 101 Idem. Ibidem.p. 216-218.

Page 54: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

53

Mulheres escravas usavam saia longa, blusa e lenço nos cabelos; os homens escravos,

calça, camisa branca e chapéu, que podia ser confeccionado de casca de milho ou palha. Nos

dias frios, usava-se uma jaqueta que era fornecida uma vez a cada dois anos. As crianças

menores faziam uso de camisas compridas até a altura da coxa. Sapatos eram adereços que

não faziam parte do vestuário escravo, uma forma de distinção social, como já mencionado

em diversos trabalhos historiográficos. Alguns escravos mais afortunados podiam aumentar o

número de suas vestimentas recebendo roupas usadas de seu senhor ou por meio de doações.

Pouca vestimenta em dias frios ou chuvosos podia aumentar as chances de uma gripe ou

pneumonia, esta muito presente nos registros de óbitos.

Os fazendeiros tinham a opção por vestimentas mais simples e cômodas para o uso

doméstico, entre os seus pares ou, para garantir o status, um vestuário mais informal e não tão

confortável, seguindo os moldes europeus. O guarda-roupa dos fazendeiros era diferente dos

seus escravos, obedecendo a padrões que seu status social permitia. Destarte, em seu

cotidiano, utilizavam “calças de brim de linho branco e camisas de algodão ou de linho. Suas

roupas eram talhadas com mais cuidado.”102 As botas surgiam quando eles iam fiscalizar seus

escravos e feitores no campo, e eram trocadas por chinelos de pano quando os observavam de

sua varanda. Um chapéu de palha de aba larga era utilizado para proteger do sol quente

durante as inspeções. Em situações informais usavam “lãs inglesas, colarinho alto engomado,

punhos e peitilho postiços e um chapéu-coco preto”103, trajes geralmente utilizados nas visitas

à capital, mesmo durante o verão. As mulheres pertencentes a famílias de fazendeiros,

também utilizavam roupas diferentes, de acordo com a situação. Se na primeira metade do

século XIX, as mulheres da sociedade de Vassouras utilizavam roupas costuradas por

escravas, a partir da segunda metade e do crescimento econômico das fazendas, procuram na

capital modelos e matérias-primas, influenciadas pela moda francesa.

102 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 219. 103Idem. Ibidem. p. 220.

Page 55: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

54

1.9 – Resistências escravas e mortes.

O bom funcionamento da fazenda dependia em certa medida do bom trabalho

desempenhado pelos escravos. Era comum, entretanto, perdas econômicas devido a doenças,

mortes, rebeliões e fugas. A igreja, como instituição presente naquela sociedade, apresentava

um discurso, ao menos na área rural, na tentativa de amenizar as tensões existentes. Os

clérigos produziam uma fala, na qual o que estava em jogo não era exclusivamente temporal.

Produziam “estratégias adequadas a assegurar as condições econômicas e sociais da sua

própria reprodução social”. 104 E a partir de sua retórica, atendiam às necessidades de

senhores que desejavam uma escravaria obediente e produtiva, o que nem sempre ocorria.

Ainda assim, tal discurso trazendo bons resultados, poderia diminuir os castigos físicos, que

em muitos casos levavam a prejuízos, fossem por fugas, deficiências físicas ou morte.

Em grande medida, o escravo era visto como um ser inferior física e intelectualmente,

sendo, por isso, conduzido a praticar as tarefas mais simples. Mas devemos considerar as

estratégias utilizadas por escravos para melhor viver dentro dessa sociedade. Muitos

historiadores sublinham a maneira mais prática que se conduzia ou se tentava manter a ordem:

a ideologia da violência. A chibata e os castigos funcionavam de forma imediata para o

cumprimento de ordens e bom funcionamento da economia. A questão do paternalismo,

apontado por Gilberto Freyre105, como uma forma de manutenção da ordem que aproximava a

Casa-Grande da Senzala, também fora lida como não significando “relações escravistas

harmoniosas” nem mesmo como “ausência de contradição; era estratégia de controle, meio de

dominar de forma sutil e eficiente” 106. Seguindo essa estratégia de análise, Hebe Mattos

aponta que o código paternalista representava uma forma de dominação pessoalizada.

O cativo é considerado nesta análise um bem “semovente”, contraposto às raízes e

bens imóveis. Trata-se de categoria jurídica que remontava ao direito romano e tinha grande

segmento nas ordenações Filipinas, bem como na legislação e no direito brasileiros do século

XIX. Qualificado desta forma, num conjunto de bens onde o gado era também mencionado,

não pode ser considerado “coisa”. A aproximação entre escravo e gado está condicionada ao

104 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 10ª. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 76. 105 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 43ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2001. 106 REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a Resistência negra no Brasil Escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 45.

Page 56: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

55

valor de uso de ambos ao trabalho, que era percebido pelos proprietários atendendo as suas

necessidades nas fazendas de café.107

Mas o escravo não fora sempre, durante todo o tempo, vítima ou herói; possivelmente,

na maior parte do tempo, oscilava entre um e outro. 108 Refutando a historiografia que

descrevia o escravo em um dos dois extremos, Eduardo Silva e João José Reis, propõem uma

análise onde ele é tido como um ser inconstante, se tornando acomodado num dia ou rebelde

no outro. Isto porque o cativo ainda considerado “coisa” estava inserido numa sociedade

complexa, onde valores impostos perpassavam pela sua compreensão do cotidiano. Essa

compreensão poderia afetar os laços amalgamados no interior da sociedade escravista, pois

como parte ativa da sociedade, eles manipulavam para conquistar o que desejavam. Mas os

cativos que rompiam os laços da escravidão e se tornavam libertos traziam outras questões

importantes. Nesse contexto, não eram mais vistos como propriedade de alguém, mas também

não eram considerados cidadãos livres, conquistavam, por meio da alforria, nas suas variadas

formas, uma condição associada à liberdade e a determinados direitos, a outros, não. Livre era

a condição associada ao nascimento.

Reis e Silva, ao tratarem do escravo, demonstram “a sua resistência permanente a ser

um mero objeto nas malhas do sistema”.109 A partir dessa tese, defendem a idéia de ser o

escravo capaz de negociações que poderiam ser bem, ou mal sucedidas. Essa percepção do

escravo sobre si mesmo é algo novo na historiografia, mas acreditamos que os argumentos

demonstrados pelos autores são consistentes. Afinal, sua visão a respeito de si mesmos e de

sua condição não poderia ser a mesma dos proprietários ou a do Estado. No caso do escravo, a

força de trabalho não o impedira de perceber as nuances do sistema, fato que poderia levar

alguns, como a história nos tem mostrado, a conflitos que chegaram ao rompimento. Este,

nem sempre deve ser pensado como apenas fuga. No campo simbólico,110 o romper é

percebido na forma dos enterros similares ao dos livres.

As resistências escravas em Vassouras se faziam notar pelos suicídios, homicídios e

fugas. Existiam quilombos, comunidades organizadas que podiam produzir seu próprio

107 Diccionario da Lingua Portugueza recopilado dos vocabularios impressos até agora, e nesta segunda edição emendado, e muito accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813. 108SILVA, Eduardo, REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 7. 109 Idem. Ibidem. p. 8. 110 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 27, 64-73.

Page 57: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

56

alimento, os mais comuns: milho e feijão; ou, em alguns casos, roubar o necessário para a

alimentação nas fazendas próximas. Se os saques se tornavam freqüentes, as autoridades

locais eram chamadas para resolver o problema. A maior insurreição que acontecera em

Vassouras foi a de 1838, quando um grupo de cativos, organizado e munido de ferramentas

suficientes para montar uma fazenda, fugiu das senzalas para formar uma comunidade nas

matas vizinhas.111

O levante de 1838 foi iniciado por escravos que pertenciam ao capitão-mor Manuel

Francisco Xavier. Fugiram levando consigo provisões para iniciarem uma comunidade como

a descrita acima. Outros cativos que também se uniram a eles pertenciam a Paulo Gomes

Ribeiro de Avelar, um fazendeiro. O capitão-mor notificou o juiz de paz da freguesia do Pati

do Alferes, José Pinheiro de Souza Werneck, que oficiou o coronel chefe da Guarda Nacional,

Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, - Barão de Pati de Alferes-, desejoso de providências

urgentes. A força repressora reuniu 150 guardas nacionais, vários outros pedestres, lavradores

locais, agregados e feitores de fazendas próximas. A fuga de cativos, que poderiam ter

somado 400 homens e mulheres escravos, resultou numa perseguição e o principal líder foi

condenado à forca. Esta era uma forma de impor a autoridade senhorial e demonstrar a sanção

devida em casos semelhantes. 112

O levante escravo que mobilizou forças militares locais em grande quantidade de

homens, com a liderança de um grande fazendeiro e chefe da Guarda Nacional, foi derrotado,

mas não sem resistência. A desproporção bélica era evidente, mas os escravos, munidos de

algumas poucas espingardas e armas cortantes, enfrentaram a tropa bem armada. Sendo o

grupo derrotado, deixou a marca da possibilidade de fuga organizada, na qual os escravos

eram capazes de formar “uma fazenda” no meio da mata virgem. Entrementes, tal ação

repressora do Estado não colocou um ponto final nas insurreições escravas que continuaram a

ocorrer durante todo o século XIX.

A sociedade fazendeira de Vassouras no século XIX pode ser definida como dividida

entre escravos e livres, “em níveis bem demarcados de classe e hierarquia. A elite política,

social e econômica formava a liderança que as outras classes seguiam”.113 Essa sociedade

respeitava a riqueza e a origem social de seus indivíduos, a elite em sua maior parte, possuía

111 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 177-180. 112 GOMES, Flavio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, séculos XIX. Ed. rev. e. ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 146-147. 113 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 196.

Page 58: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

57

as duas. Entretanto, o poder simbólico era utilizado para legitimar sua riqueza econômica e

domínio político, sendo manifesto nas formas de se vestir em vida bem como na morte, nos

rituais fúnebres, nas doações aos pobres e à igreja. A miscigenação pode ser percebida como

um dos fatores que levaram à maior complexidade da hierarquia social, donde surgiram

designações e qualificações múltiplas entre os livres. Tais demarcações sociais serão vistas

com mais detalhes no capítulo póstumo.

Os fatores destacados neste capítulo nos inserem no cotidiano da vida de escravos e

suas possíveis consequências relativas à morte, de forma que condição de vida está

intrinsecamente ligada à morte. O processo de produção, com muitas horas destinadas ao

trabalho no eito e no beneficiamento do café, os serões, má alimentação, higiene precária,

vestimentas impróprias para alguns períodos do ano e até mesmo as resistências em suas

diversas formas, foram cruciais para um elevado número de mortes. Contudo, ela não pode ser

vista como um fim: estava permeada de valores simbólicos que poderiam ajudar no controle

de cativos e homens pobres. Um simbolismo presente na cultura ibérica e na africana. Os

valores simbólicos associados à morte também eram utilizados por sacerdotes na manutenção

do poder. A morte no século XIX tem significados materiais e imateriais que fomentavam os

valores religiosos da complexa sociedade escravista.

Page 59: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

58

Capítulo 2 - Considerações sobre a morte: construção social,

política e religiosa.

O ser humano nas diversas formas de pensar em cada período histórico desenvolveu

uma maneira singular de viabilizar conceitos e atitudes relativos à morte. O longo caminho

que se teceu até a sociedade do século XIX, demonstra a importância deste fato na vida de

indivíduos diferentes, segregados pela hierarquização social. A morte tomava grande espaço

entre os escravos, especialmente pelas precariedades de higiene, alimentação, vestimentas e

medicamentos como vimos no capítulo anterior. Esses fatores diferem muito das condições

atuais que elevam a expectativa de vida dos indivíduos em nossa sociedade. Desta forma,

pensar a morte de escravos no oitocentos é pensar a complexidade na qual viviam e que

perpassam questões econômicas, políticas, sociais e religiosas. Existe uma conexão entre o

modo de viver e o modo de morrer. 114 E partindo desse pressuposto, acreditamos ser possível

verificarmos alguns pontos fundamentais na vida dos escravos da região de Vassouras no

período analisado.

Tão antiga quanto a humanidade, a morte no mundo ocidental sofreu modificações

quanto ao modo de ser pensada pelos indivíduos e suas sociedades. As antigas civilizações

pré-cristãs temiam a proximidade dos mortos e procuravam mantê-los à distância. Um dos

objetivos de seus cultos funerários era impedir que os defuntos voltassem para perturbar os

vivos. Os dois mundos, dos vivos e dos mortos, deviam ser separados. “É por isso que em

Roma a Lei das Doze Tábuas proibia o enterro in urbe, no interior da cidade”.115 Eles

ocorriam fora das cidades, à beira das estradas. No período posterior essa relação foi

modificada.

A morte teve diversos significados nas diferentes regiões do mundo, influenciados

pela cultura religiosa, pelo poder econômico e político predominante em cada uma delas. Se

na antiguidade romana vida e morte estavam segregadas, no século XIII, estavam próximas.

No cotidiano, o cemitério era o local de encontro da sociedade. No período medieval a

extinção da vida significava libertar a alma, que estivera aprisionada ao corpo, considerado

114 ELIAS, Norbert. A solidão do moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer.Tradução, Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2001. p. 71. 115 ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 22.

Page 60: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

59

pecaminoso e o motivo pelo qual o homem se distanciava de Deus. Este período histórico é

marcado por peculiaridades, no qual predominava o pensamento religioso, tendo por base a

Igreja Católica de Roma.

2.1 – Morte: o longo trajeto até o século XIX.

Entre a Idade Média e meados do século XVIII, houve uma predominância no

Ocidente católico de uma relação de proximidade entre vivos e mortos, que em certa medida,

permanecera até a primeira metade do século XIX. 116 Philippe Áries qualifica a morte deste

período de “domesticada”, onde vivos e moribundos estavam próximos, com seus rituais

aguardando o momento da “passagem”. A morte era esperada no leito por parentes, amigos e

vizinhos, figuras importantes na cerimônia pública preparada pelo próprio moribundo. As

crianças também participavam, tamanha era a familiaridade com a morte. 117

Nesse sentido, analisaremos a realidade francesa, predominantemente católica e

próxima da visão portuguesa, a qual nos permitirá cotejar as práticas relativas ao bem morrer

existentes na Vassouras Oitocentista. Do mesmo modo, avaliaremos a cultura religiosa

lusitana, que nos interessa de forma direta. Ela influenciara nas construções sobre a morte,

principalmente por ter sido durante o período imperial brasileiro a religião oficial. A visão

sobre a morte dos povos africanos que aqui desembarcaram estava presente no cotidiano não

apenas de escravos e libertos, mas também de alguns livres a partir do contato e troca entre os

diferentes atores históricos. E como parcela importante na construção do território, a cultura

africana incidiu nas reconstruções simbólicas em torno da morte na sociedade de Vassouras.

Nesse contexto, tentaremos na medida do possível, aferir as semelhanças e diferenças nas

culturas de bem morrer.

Mesmo tendo uma complexa relação entre vida e morte, a sociedade francesa medieval

temia a morte sem aviso prévio. Morrer repentinamente significava não estar devidamente

preparado, o que significava não ter recebido o perdão dos pecados. Temia-se também a

morte trágica, sem funeral e sepultura adequados. O Iluminismo trouxe à França a partir do

116 REIS, João José Reis. A Morte é uma Festa. ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 73. 117 ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 21-22.

Page 61: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

60

século XVIII uma nova atitude diante da morte e dos mortos, diminuindo a religiosidade em

seus ritos. Foram mudanças lentas no decurso do tempo histórico.118 O século XVIII trouxe

para a realidade francesa uma redefinição do espaço físico que deveria ser ocupado pelo

cemitério. Surge desta forma, tendo por base questões médicas e de saúde pública, a

necessidade de o cemitério ocupar um local fora das cidades, das igrejas e vilas119. No Rio de

Janeiro a questão médica surge no século seguinte e encontrou na religião e Irmandades um

obstáculo a ser derrubado. A concepção católica na França permanece no século XIX, apesar

dos discursos científicos sobre os males causados pelos miasmas à saúde dos indivíduos.

Portugal, antiga metrópole do Império do Brasil, era católico, religião que por herança

adquirimos. Os rituais de bem morrer se fizeram presentes, embora com transformações

devido às trocas culturais do mosaico que se formara a partir da colonização de novos

territórios. Portugal teve em 1835, uma lei que proibia enterros nas igrejas e indicava a

construção de cemitérios fora dos limites urbanos, estipulando um prazo de quatro anos para

que esta ordem fosse seguida. Também indicava que os cadáveres deveriam ser enterrados em

covas individuais. O que nos viabiliza pensar a existência de covas comuns ainda no século

XIX. Em se tratando de um país católico e mesmo existindo a possibilidade dos padres serem

destituídos de seus cargos, este fato promoveu uma tensão e o não cumprimento da lei. Sendo

assim, a população continuou enterrando seus mortos nas igrejas e cemitérios paroquiais. 120

O ocorrido demonstra a importância do cemitério alojado nos limites sagrados das igrejas, e o

vínculo simbólico entre igreja e bem morrer. A importância do cemitério para a realidade da

população portuguesa do século XIX está associada a sua cultura religiosa que suplanta até

mesmo noções sanitárias.

As autoridades portuguesas investiram na questão da necessidade sanitária, e em 1844

lançaram a lei de Saúde Pública. Esta lei criou uma rede de autoridades sanitárias que seriam

responsáveis por “vigiar as práticas de sepultamento, passar certidões de óbito e cobrar o

tributo de covato”.121 Houve resistência da população, especialmente da rural. Mulheres

foram presas e as tensões sociais, numerosas. Os enterros nas igrejas continuaram na segunda

metade do século XIX, ainda que de forma decadente. Na Bahia em 1836, houve uma revolta

118 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia

das Letras, 1991. p. 74. 119 Idem, Ibidem. p. 75. 120 Idem, Ibidem.p. 85. 121 Idem, Ibidem. p. 85.

Page 62: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

61

contra um cemitério conhecido como “Cemiterada,” analisada por João José Reis a qual

faremos menção no capítulo IV.

No século XIX, a morte no Brasil estava agregada a valores diversos devido à

formação social que se iniciara com a colonização, como suposto acima. A junção de vários

povos permitiu uma complexidade cultural que influenciava direta ou indiretamente a cultura

da sociedade brasileira oitocentista. As tradições africanas e portuguesas, ambas presentes em

Vassouras, defendiam a preparação para a morte e para tanto, necessitava-se de tempo. Assim

como na França, morrer repentinamente para estas culturas era um problema. Devido a este

pensamento, “em ambas as tradições aconteciam cerimônias de despedida, vigílias durante as

quais se comia e bebia, com a presença de sacerdotes, familiares e membros da comunidade”. 122

Os contatos religiosos entre Portugal e territórios africanos são anteriores ao processo

da criação da sociedade escravista na América portuguesa. Houve uma tentativa do governo

português em cristianizar povos africanos, convertendo o rei do estado Congo ao cristianismo.

Tal prática fora abandonada a partir do ano de 1575 devido ao incremento e o sucesso da

atividade do tráfico de escravos africanos, mormente a grande demanda dessa mão-de-obra

para atender aos desafios de produção na colônia americana. Desta forma, houve um

desinteresse de Portugal em formar um estado cristão na África. 123 Acreditamos ser um fato

contraditório, tendo em vista que os escravos deveriam ser batizados antes de saírem dos

portos africanos. Provavelmente para atender a necessidade dos proprietários na manutenção

da ordem.

Na África e também em Portugal, o número de vivos era importante nos rituais de

passagem, tornando este momento de transição para o além, segura, definitiva, funcionando

como um tipo de prevenção para não serem atormentados por almas insatisfeitas.

Considerando que havia uma proximidade entre as duas culturas, não podemos deixar de levar

em conta que a nova condição jurídica de africanos poderia romper inicialmente com práticas

e costumes funerários antigos. Contudo, algumas questões surgem. Os indivíduos tornados

escravos, teriam direito a um enterro no modelo de seus costumes trazidos da África? Ou por

meio do diálogo com a religião católica, que em alguns casos ocorria ainda em território

africano, desejavam um enterro nos padrões católicos? Os escravos que rompiam os laços da

escravidão, seguiam os padrões sociais religiosos de bem morrer do Império do Brasil? As

122 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 90. 123 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Tradução James Amado. São Paulo: Brasilienese, 2003. p. 29.

Page 63: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

62

fontes oficiais não mencionariam tais fatos diretamente. Por isso devemos ter uma atenção às

entrelinhas. Estas são questões que norteiam o capítulo quatro na tentativa de entendermos as

relações de poder presentes em tais atitudes.

A tradição africana dava maior importância ao culto dos mortos do que a portuguesa.

João José Reis nos informa que, “entre os angolanos os espíritos ancestrais chegavam mesmo

a influir mais no dia-a-dia do que as próprias divindades” 124 ; ou seja, na África, os mortos

não estavam dissociados dos vivos.125 Os africanos apresentavam meios rituais mais

complexos de comunicação com os mortos se comparados aos portugueses. A tradição

católica se preocupava na salvação de seus mortos, sendo este um dos motivos de apreensão

com o número de missas e orações a ser rezado após a morte. Estas encomendadas em

testamentos, muito antes do indivíduo estar perto do seu momento final.

As diferentes atitudes diante da morte e da vida além-túmulo entre africanos e

portugueses podia ser notada no controle sobre os mortos. Os africanos conseguiam o melhor

desempenho nesta questão. As semelhanças se estendiam na crença de que homens bons e

maus teriam destinos diferentes após o fenecer. Na cultura religiosa portuguesa católica,

existia o Inferno, o Purgatório e o Céu. O destino da alma estava condicionado ao Juízo Final,

onde dois grupos eram formados: os eleitos e os condenados. 126 O purgatório era a opção

intermediária e temporária e foi construído aproximadamente entre os séculos XII e XIII. Este

espaço e tempo foram formulados como alternativa para os que tinham pecados veniais.

Consistia em uma possibilidade de reabilitação, caso não fosse possível reverter a situação de

pecador em vida. A purgação dos pecados pode ser pensada como probabilidade de resgate

dos que fossem beneficiados pelo Purgatório. Para isso a atenção dos vivos aos seus entes

falecidos era fundamental, uma vez que a intercessão daqueles ajudava no fim da pena do

condenado, que alcançaria então o Paraíso.

Esta atenção dos vivos se convertia em missas e orações que se estendiam num

dilatado espaço temporal. As missas tinham um papel importante nas cerimônias fúnebres e

por isso foram regulamentadas pelas Constituições primeiras em 1707. Serviam para diminuir

o tempo no Purgatório, ou como menciona João Reis, “acrescentar à glória dos que já se

124 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 90. 125 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. Tradição James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 28. 126RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 151.

Page 64: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

63

encontravam no Paraíso”.127 Como eram pagas, compunham a economia material e simbólica

da Igreja. Até a primeira metade do século XIX, as inumações eram realizadas no interior de

seus prédios, local onde as missas eram cumpridas, viabilizando a proximidade entre mortos e

vivos.

Os mortos mais abastados deixavam em testamento uma quantia significativa que

pudesse garantir por mais tempo a devida atenção a sua alma. A igreja, ao menos em

Vassouras, também registrava se o morto deixava testamento, como no caso de José Thomas

falecido em 9 de setembro de 1850, viúvo e natural de Minas. O medo do que os esperaria do

“outro lado”, permitia um controle dessa instituição sobre as questões do bem morrer.

Garantindo para si um lugar de destaque no controle social por meio do poder simbólico

representado nos ritos, rituais, adereços e local de sepultamento, que aproximava vivos e

mortos. Na concepção cristã-ocidental, o medo está relacionado à possibilidade de viver

eternamente no Inferno, representação da punição além-túmulo.

Essa proximidade permitia a manutenção das relações de poder da instituição

responsável pelo culto de bem morrer, a Igreja. A contigüidade entre os dois mundos era

articulada por ela em seus espaços, considerados sagrados. Segundo Claudia Rodrigues, a

doutrina Católica estaria “mais preocupada com a salvação do que com o culto dos mortos”. 128 E para viver entre Deus, os anjos e santos, deveria o homem seguir o que ela ordenava em

vida e também na morte.

A diversidade étnica existente no continente africano, bem como os diferentes

costumes e tradições, compunham um mosaico denso que foram transplantados em certa

medida a partir do comércio transatlântico. O encontro de diferentes culturas permitiu a

construção e reconstrução das concepções religiosas e de bem morrer pelos negros, africanos

ou crioulos. A maioria dos africanos trazidos para a região do Rio de Janeiro e daí para a

região do Vale Paraíba Fluminense entre os séculos XVII e XIX, era de língua banto,

especificamente indivíduos da região Congo / Angola.

A viagem de um continente a outro por meio do oceano, era simbolicamente

representado como a passagem da vida para a morte pelos indivíduos que compartilhavam o

mesmo conjunto simbólico e cultural banto. A água tinha um simbolismo forte para esses

povos de forma que a água dos mares, dos rios ou uma superfície refletiva era a representação

127 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 205. 128 RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 154-155.

Page 65: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

64

simbólica da travessia da Kalunga. Esta denotava a passagem da vida para a morte e o

renascer após o fim da vida.129 Para os bantos, morrer era uma passagem, mas só fazia sentido

se fosse na velhice. Morrer jovem, sem filhos ou de forma brutal (suicídio, assassinato, ações

diretas da natureza) tinha um significado negativo, era considerado má sorte. 130

Entre os bantos, a morte prematura era associada à ações mágicas, de forma que

quando um ente falecia, a família procurava um adivinho para saber a origem do mal, este

geralmente associado a um feiticeiro. O culpado era indicado pelo próprio defunto que

apontava com um gesto brusco seu assassino, por intermédio de um adivinho solicitado para

ajudar no caso. Aquele que responderia pelo infortúnio, na maioria das vezes era um inimigo

da tribo.131 Tal preocupação em saber a causa ou quem a causou, demonstra a não aceitação

de uma morte antecipada. Os culpados eram condenados a perda da vida ou a escravidão. Se a

sanção fosse se tornar escravo, o indivíduo seria vendido.

Destarte estes rituais podem ser associados à preocupação em garantir que o morto

fizesse a passagem, cessando o vínculo entre este e a sociedade. Os mesmos são importantes

para assegurar a continuidade da sociedade, pois se bem feitos, garantiriam boa colheita, um

futuro melhor e a preservação da ancestralidade. A morte nesse sentido, mais que uma

passagem, assegurava a sobrevivência do grupo, fosse pelo reencontro com os antepassados,

fosse pela certeza do alimento em abundância. 132 Entrementes, só recebiam os rituais

fúnebres, os indivíduos livres e com um bom comportamento social, uma maneira

possivelmente de manutenção de hábitos e costumes desejáveis.

O culto ioruba mencionado por José Reis é destacado como o mais complexo, embora

o autor sublinhe que a escatologia africana variava de um povo para outro. Na cultura ioruba,

existia dois além-mundos ou Orun. O Orun Rere, Orun Funfun ou Orun Baba Eni, seria o

Bom Orun, Orun Branco ou Orun dos Nossos Pais. O mundo conhecido por Orun ruim e

Orun de Cacos de Vasos de Barro era chamado de Orun Burubu ou Buruku e Orun Apadi.

Além dessas duas possibilidades, os mortos poderiam “penar” em lugares específicos da terra,

reencarnar-se em pessoas ou ainda metamorfosear-se em animais. Diferentemente dos

129RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 156. 130 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 164. 131 Idem, Ibidem. p. 165. 132Idem, Ibidem. p. 166.

Page 66: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

65

portugueses, os africanos morriam para reencontrar seus ancestrais. Estes por muitas vezes

retornavam reencarnados. 133

A ancestralidade é um fator importante presente na cultura africana e está intimamente

relacionada às questões do “bem morrer”. Se falecer significa reencontrar um ancestral, não

existiria inicialmente um temor, decorrendo daí o ritual festivo nos cortejos fúnebres. Para os

africanos que foram trazidos de sua terra e que detinham alguma memória em relação à vida

livre de tempos pretéritos, a morte significava um retorno, ainda que em outro plano de

existência. Representando uma “passagem”, ela é assim simbolizada por bantos e iorubas.

Essa proximidade pode ser identificada em meio a grande diversidade étnica dos povos

africanos.

No Brasil o contato entre as duas culturas, permitiu aos africanos - apesar de manterem

algumas de suas atitudes diante do fenecer -, incluir algumas e recriar outras formas de “bem

morrer”. Reis sublinha que embora houvesse contato entre a cultura da morte africana e a

portuguesa, o que prevaleceu entre os “brasileiros natos”, fossem crioulos, brancos ou

mestiços, foi o modelo funerário ibérico, presente nos assentos dos livros de óbitos de livres e

de escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. João José Reis

destaca que era a “morte marcada por uma extraordinária mobilização ritual, coerente com um

catolicismo que enfatizava as manifestações exteriores de religiosidade: a pompa, as

procissões festivas, a decoração elaborada dos templos”. 134 Tal mobilização permitia uma

outra vida confortável, a vida além túmulo presente entre livres, libertos e escravos. Entre

estes, em menor proporção que aqueles.

O porto do Rio de Janeiro no século XIX apresenta um cenário distinto do apresentado

até aqui. O tratamento dispensado aos cativos mortos antes de serem vendidos para fazendas

de diversas capitanias, era enterrá-los no chamado cemitério dos pretos novos, onde seus

corpos eram colocados em covas rasas, à flor da terra, o que causava infortúnios aos

moradores vizinhos e aos transeuntes do Valongo135. O enterro de muitos corpos em uma

única cova, nos remete aos costumes franceses para os pobres, que neste caso, tinham seus

ossos transformados em ornamentação dos ossuários. Percebemos uma vez mais a

hierarquização social presente. Os escravos de acordo com sua inserção na sociedade

133 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 90 e 91. 134 Idem, Ibidem. p. 91. 135 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007.

Page 67: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

66

escravista brasileira, poderiam não ter acesso a um funeral nos moldes da religião dominante,

mesmo os que haviam sido batizados no continente africano. A diferenciação existente entre

os cativos já inseridos naquela sociedade se mostrava mais acentuada junto aos que mal

chegavam ao porto.

A crença de que rituais funerários são importantes para bem conduzir a alma do morto

e garantir o afastamento dele do mundo dos vivos, poderia garantir que escravos fossem

enterrados em solo sagrado. Ela também permitia acreditar que ao morrer, o indivíduo “passa

para o outro mundo feliz”136 podendo interceder pelos que ficam vivos, facilitando sua

incorporação, quando chegar o momento, na comunidade dos mortos. Nesse sentido, zelar

pelo bem morrer de um indivíduo, mesmo que este fosse escravo em vida, pode significar

alguns pontos positivos na hora de sua própria morte. Portanto, o local onde jazem os mortos

tem um significado importante, exercendo um poder simbólico com base na religião. Em

Vassouras, o cemitério era um local de disputas silenciosas, demarcando como já foi

mencionado, a hierarquização social na disposição das inumações.

2.2 – Ritos e Rituais Fúnebres

A morte é uma questão social, conceitos e rituais sobre a mesma, fazem parte de um

dos aspectos da socialização. As idéias e ritos comuns podem unir pessoas, mas se

divergentes, segregam grupos. 137 Em Vassouras percebe-se essa socialização na forma como

escravos e livres tentam assegurar para si, as formas de bem morrer. Entre os descendentes de

escravos, mesmo os mais pobres, nota-se uma aproximação com os brancos e grandes

proprietários, tal como vestes específicas para crianças e adultos, sacramentos e

acompanhamentos no caso das inumações em cemitérios.

A realidade de Vassouras no século XIX nos apresenta uma preocupação religiosa

com a morte, mesmo para os cativos, ainda que grande parte deles tivesse sido enterrada nos

cemitérios existentes em fazendas ou em cemitérios públicos na primeira metade do século.

Na maioria dos Registros de óbito de escravos entre os anos 1840 e 1880, os sacramentos são

136REIS. João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 90. 137 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer. Tradução, Plínio Dentzlen. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 12.

Page 68: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

67

recorrentes. Este fato, não nos informa a religião dos escravos, sequer se ele tinha alguma.

Entretanto, o ritual católico de boa morte era exercido pelo seu proprietário ou pelo pároco.

As relações de poder existentes na sociedade escravistas, tensas e estratificadas, permitiriam

em certa medida ao cativo, o direito a uma morte nos moldes católicos.

O Batismo para a Igreja era o sacramento que abria ao indivíduo a possibilidade do

Paraíso, uma vez que o mesmo passava a ser “filho de Deus”. Era o primeiro, o que dava

início a vida religiosa. A Extrema-Unção era ministrada nos momentos finais. Os “ritos de

incorporação”, principalmente este, eram fornecidos no fim da vida de um indivíduo. Eles

podem ser definidos como dirigidos a propiciar a reunião do morto com aqueles que seguiram

antes. Existiam da mesma forma, os “ritos de separação”, rituais de segregação entre vivos e

mortos, sendo representados pela lavagem do cadáver ou queima de objetos pessoais.

Em muitas sociedades, na perspectiva de João José Reis, prevaleceu a noção de que a

realização de rituais funerários adequados é fundamental para a segurança de mortos e vivos. 138 Desta forma, não podemos pensar a morte como ato instantâneo, ela é um momento de

transição, de passagem como mencionado acima. Sendo um período de mudança, o senhor do

cativo morto deveria pensar em um bom enterro dentro de seus rituais, de suas crenças para

seus escravos. Afinal, em caso contrário poderia ser vítima daquele que talvez pudesse ter

sofrido em vida, castigos físicos por suas mãos ou ordens. Os senhores, na concepção da

Igreja, deveriam dispor de tempo e dinheiro para atender as almas de seus escravos.

Recomendava ela:

E porque hé allheyo da razão, e piedade Cristã, que os Senhores, que se servirão de seus escravos em vida, se esqueção delles em sua morte, lhes encomendamos muyto, que pelas almas de seus defuntos escravos mandem dizer missas, e pelo menos sejão obrigados a mandar dizer por cada um escravo, ou escrava que lhe morrer, sendo de quatorze annos para cima, a Missa de corpo presente, pela qual se dará a esmola costumada (c. 837). 139

A hora da morte do cativo em Vassouras poderia ser amenizada dentro dos preceitos

religiosos. As almas mais desamparadas recebiam a “encomendação” de seu cadáver e como

vimos acima, deveriam também ter Missa de corpo presente com a devida esmola. Desta

forma, tinha-se o cuidado com a alma e os recursos materiais necessários para sua

138 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 89. 139 Idem, Ibidem. p. 205-206.

Page 69: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

68

manutenção. As regras da Igreja garantiam ao enfermo batizado receber a comunhão e a

Extrema-Unção, esta podendo ser lida como um empurrão para fora do ciclo da vida.140 Se em

vida o escravo tivera pouco cuidado com o corpo ou alma, este poderia acontecer momentos

antes de sua morte, ao menos em relação ao seu espírito. Para a Igreja, o sacramento da

comunhão deveria ser ministrado ao doente somente se sua condição física fosse boa,

juntamente com a Extrema-Unção. Esta tinha um importante significado para a Igreja, pois

era o auxílio necessário na hora da morte devido às tentações do “inimigo” serem mais fortes

neste momento. Receber o sacramento da Unção antes da morte poderia significar o perdão

dos pecados cometidos em vida ou resultar na recuperação do moribundo, associada à vontade

de Deus nas mãos da igreja. 141

A Igreja, representada pelo pároco era a responsável por administrar tal sacramento,

demarcando desta forma, o poder sobre uma boa morte na concepção católica. Para tornar tal

momento imprescindível para todos aqueles que desejavam “descansar em paz”, tal rito

deveria ser acompanhado por uma procissão aos moldes da cultura religiosa ibérica. Ela é

chamada de procissão do Viático ou Nosso Pai, por conduzir a comunhão que seria dada ao

moribundo, antes da viagem para a eternidade e respeitava a condição econômica daquele que

morria. No Rio de Janeiro, a morte e seus rituais, era acompanhada de muito barulho, com

bandas de música, alamandas e lundus, pois aquele e não o silêncio representa o facilitador da

comunicação entre o homem e o sobrenatural. Entre os africanos o silêncio na hora da morte

significava má sorte.142

A Extrema-Unção, desta forma, tinha um papel fundamental no momento da passagem

e foi citada nas Constituições do arcebispado da Bahia (c. 200), tendo o seu ritual e a maneira

como deveria ser feita, minuciosamente descritas. Para receber este sacramento o doente

deveria avisar ao padre responsável da sua paróquia por meio de familiares ou irmandade. 143 .

Mesmo os que morriam na Santa Casa de Misericórdia recebiam pelas mãos do capelão o

sacramento final:

Aos dez do mez de Junho de mil oito centos e setenta e cinco, na Santa Casa de Misericordia d’esta Cidade, falleceu da vida presente, em idade de quarenta e oito annos, o Chim Catholico = Antonio Sabá, natural de Cantão, solteiro, branco; falleceu de Cyrrhose do fígado Ascite:

140 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.. p. 103. 141Idem . Ibidem. p. 103. 142 Idem, Ibidem. p. 105. 143 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 44.

Page 70: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

69

falleceu depois de ter recebido o Sacramento da Extremaunção, foi encommendado pelo Capellão da mesma Casa e sepultado no Cemitério d’esta Cidade. E para constar mandei fazer este assento por mim assignado. 144

Existia um diferencial neste rito caso o enfermo fosse escravo. Ele deveria memorizar

uma fórmula afirmando crer em Deus, não deixando dúvidas de que seu coração amava

somente a Ele. Para o cativo receber o sacramento da Extrema-Unção estava condicionado à

obediência que poderia garantir ao proprietário, melhor atitude dos mesmos, uma estratégia de

manutenção de poder. A existência de um ritual diferenciado para estes indivíduos, deveria

garantir a sua fé na igreja. A complexidade religiosa que se formara como mencionamos

acima, pode ter garantido a permanência de cultos africanos, uma vez que alguns proprietários

permitiam a realização de seus credos aos domingos. Pressupondo assim, a permanência de

rituais de origem africana na vida e morte de escravos e seus descendentes.

Receber o sacramento no momento da morte poderia garantir uma eternidade

tranqüila, ou até mesmo reverter o quadro de saúde, permitindo que o moribundo tivesse mais

alguns anos de vida. No caso do escravo, era responsabilidade do senhor ou do padre prepará-

lo para a morte. Como descrito acima, ele deveria “decorar uma fórmula”, para precaver-se

contra os “ídolos” africanos. O quinto sacramento da santa Igreja, era fundamental pela ajuda

que prestava aos fiéis na hora da morte:

He o Sacramento da Extrema Unçaõ o quinto dos da Santa Madre Igreja, de grande utilidade para os fieis, iftituido por Chifto Senhor noffo, como definio Sagrado Concilio Tridentino, para nos dar efpecial ajuda, conforto, & auxilio na hora da morte, em que as tentaçoes no noffo commum inimigo coftumaõ fer mais fortes, & perigofas, fabendo que tem pouco tempo para nos tentar.145

O proprietário de escravos era responsável pela vida e morte de seu cativo. Assim,

supomos a necessidade do sacramento final para alguns cativos como forma de salvação. Nem

todos os óbitos apresentam referências sacramentais, mas os que o fazem citam a “Extrema-

Unção”, penitência, confissão, “todos”, ungido, batismo, “pelo seu dono”. A morte tinha não

só no senhor a marca da dominação, mas principalmente na Igreja, isso porque, o doente que

144 2º. Livro de Óbito das pessoas livres. f. 45. CDH. 145 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 46.

Page 71: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

70

negasse receber a Extrema-Unção, não poderia ser enterrado em solo sagrado.146 Nos registros

analisados, poucos cativos foram sepultados de acordo com este costume.

O domínio senhorial facilmente percebido durante a vida do escravo, fica evidente nas

entrelinhas dos assentos de óbito. Se para o cativo a vida no eito, nas fazendas de café de

Vassouras era um martírio, a morte não apresenta nada dessemelhante. A chibata, a má

alimentação, as doenças, o tronco e as constantes ameaças eram os infortúnios mais comuns

para os cativos e estavam sensivelmente relacionadas às causas mortis. Morrer poderia ou não

significar liberdade, nesse caso, isso seria definido pela sua escolha na hora da morte em

aceitar ou rejeitar o sacramento da Igreja Católica, o que não afastava a existência de rituais

da cultura africana.

Neste contexto, percebemos o desejo dos proprietário em fazer ministrar os rituais de

sua religião e não a do cativo. Poderia também representar a tentativa do próprio senhor,

dentro das prerrogativas de sua crença, a sua própria absolvição, dos seus possíveis “pecados”

cometidos em vida. De forma que alguns proprietários alforriavam escravos em Testamentos,

este simbolicamente poderia representar uma preparação para a morte. A igreja desta maneira

pode ser pensada como articuladora nesse mecanismo de controle social, legitimando o poder

senhorial.

2.3 - Resistências:

Aos doze dias do mez de Novembro do anno de mil oito centos setenta e oito, n’esta Freguesia de N. Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente, de quebradura, Antonio Alves de Moura, branco, solteiro, de cincoenta e nove annos de idade, natural de Portugal; não recebeu os Sacramentos por não procurarem, foi encommendado e sepultado no Cemitério d’esta Cidade e para constar, mande fazer este assento que assigno. 147

Em 1868, data do assento citado acima, não havia mais enterros ad sanctus, entretanto,

a prática de receber os sacramentos finais ainda exercia forte poder simbólico. Instituído por

Cristo, servia para confortar e auxiliar na hora da morte. O discurso da igreja sobre a sua

importância, tentava garantir seu poder após mudanças significativas, principalmente quanto

ao fim das inumações em solo sagrado nos anos posteriores a 1850.

146 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 107. 147 2º Livro de Óbito de Livres. fls. 86v e 87. CDH.

Page 72: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

71

Contudo, havia os que provavelmente não aceitavam a idéia dominante e preferiam

não receber os sacramentos da Igreja. Os motivos, infelizmente não sabemos. Não apenas

negros e seus descendentes faziam essa escolha como também brancos portugueses. As

resistências no campo religioso estavam presentes nas diversas etnias. Receber os

sacramentos era algo que a igreja ordenava para garantir uma boa morte e a certeza de poder

fazer parte do Paraíso. Quando esta prática não ocorria, o pároco responsável o registrava no

assento, se eximindo da culpa de não proceder segundo ordens superiores. A resistência em

relação à religião do “outro”, pode ser vista entre os descendentes dos africanos, como no

caso da parda Joanna Francisca Ribeiro:

Ao primeiro do mez Dezembro do anno de mil oito centos setenta e oito, nesta Freguesia de N. Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente, de Phthysica, sem Sacramentos por não procurarem, Joanna Francisca Ribeiro, parda, de dezenove annos de idade, solteira, foi encommendada e sepultada no Cemiterio d’esta Cidade: e, para constar, mandei fazer este assento por mim assignado. 148

Tal atitude poderia mais facilmente ser associada aos africanos, pela íntima relação

com a sua cultura, ou aos seus filhos, como o caso de Caêtana, preta liberta:

Aos vinte e sete dias do mez de Agosto do anno de mil oito centos setenta e oito, nesta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente, de Phthysica Pulmonar, sem Sacramentos por não procurarem, Caêtana, liberta, preta, de dez annos de idade, filha natural de Arminda escrava do Capitão Antonio Caetano da Rocha Braga; natural do Campo dos Goytacases, foi vestida de virgem, encommendada e sepultada no Cemiterio d’esta Cidade: e, para constar, mandei fazer este assento que assigno. 149

Falecida aos 10 anos de idade em 1878, foi vestida de virgem. Nascida provavelmente

3 anos antes da Lei do Ventre Livre, teve acesso a sua liberdade. Contudo, sua mãe Arminda,

não tivera a mesma sorte até a data de seu óbito. Sua condição escrava e o nome de seu

proprietário, o Capitão Antonio Caetano da Rocha Braga, ficaram registrados no documento

paroquial. Caêtana não recebeu os sacramentos e segundo nos informa a fonte, “por não

procurarem”. Este gesto pode significar resistência, no sentido de que apenas os recebiam

148 2º. Livro de Óbitos das pessoas Livres. fl. 87. CDH. 149 Idem . Ibidem fl. 85.

Page 73: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

72

aqueles que notificavam a Igreja. Considerando todas as possíveis dificuldades de

mobilidade, muitos ex-escravos e escravos tiveram acesso aos últimos sacramentos.

Mas a complexidade que se forma a partir da intensificação do tráfico e da entrada de

muitos africanos em Vassouras com a demanda pelo café brasileiro, permite uma reconstrução

cultural e religiosa para descendentes de africanos e portugueses. Não receber os sacramentos

católicos é uma forma de resistir a religião oficial, não evidenciada em todos os óbitos. O que

chama a atenção é o fato de ainda assim, eles terem recebido um registro no Livro de Óbitos

da Paróquia. Não procurar os últimos sacramentos representa um forte significado. A maioria

dos descendentes de africanos que tiveram um assento de óbito da Igreja buscava o modelo

católico de bem morrer, com mortuários, missas e sacramentos. Sabemos que muitos

africanos e seus descendentes, não abandonavam suas práticas religiosas, ministradas antes do

enterro católico. A importância dos sacramentos para a igreja tinha um simbolismo muito

grande, uma vez que não apenas os que não recorriam a eles eram marcados, mas também os

que não os recebiam devido a uma morte rápida como no caso a seguir:

Aos doze dias do mez de Março do anno de mil oito centos setenta e seis, nêsta Freguesia de N Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente, de um ataque, sem Sacramentos por falta de tempo, Maria Teixeira Lopes, parda, de cincoenta e tres annos de idade, viúva de Francisco das Chagas de Assis, natural da Conceição da Barra, em Minas: foi vestida de preto encommendada e sepultada no Cemitério d’esta Cidade: e para constar, mandei fazer este assento por mim assignado. 150

O caso mencionado acima se distancia dos exemplos anteriores. Na verdade, ratifica o

fato de que havia indivíduos que não desejavam receber os sacramentos como mandava a

Santa Igreja, percebida na diferença da descrição do padre. Nesta última citação, os ritos

finais não foram possíveis porque a morte ocorrera repentinamente, não havendo tempo

necessário para se chamar o padre. Provavelmente, aqui temos um modelo do medo da não

preparação para a morte como ocorria no século XVIII. Os Sacramentos podiam garantir uma

passagem para o Paraíso, pois perdoava os pecados leves pendentes do moribundo, sem eles o

morto poderia permanecer no Purgatório.

Alguns escravos têm no óbito a descrição “todos em vida” para tratar dos sacramentos.

O que nos faz pressupor uma vida de acordo com os preceitos católicos. É arriscado pensar

150 2º. Livro de Óbitos das pessoas livres. fl. 59v. CDH.

Page 74: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

73

desta forma, principalmente não tendo fontes seguras para garantir tal fato, mas estes dados

não podem deixar de ser mencionados. Também existiram os que recebiam a “missa” na hora

da morte, como foi o caso de Ignácio falecido em 1870 com 26 anos,151 demonstrando mais

uma vez a cultura católica dentre os escravos.

2.4 – Crianças, rituais e relações familiares.

Da mesma forma ficou registrado, a preocupação com a alma das crianças. Em alguns

casos ela é “encomendada”, talvez fosse necessário tal rito, mesmo ela sendo inocente para

garantir um lugar no “paraíso”. Elas não recebiam o sacramento da Extrema-Unção por ordem

da Igreja, assim como os excomungados, doentes mentais e os que entraram em batalha em

alto mar. 152 Nos assentos de crianças escravas, como encontrado nos adultos, consta o nome

de seu proprietário.

Em alguns casos, a criança é enterrada sem um nome, como no caso da filha de Isabel,

escrava de Jeremias Lemos de Miranda, que morreu com um ano e meio.153 A mortalidade

infantil era recorrente e em alguns casos para além da questão da perda de um filho ainda

considerado ingênuo, uma mãe escrava poderia enterrar dois ao mesmo tempo, como no caso

de Constância, pertencente a Francisco da Silveira Dutra. Ela enterrou seus filhos gêmeos,

Manoel e Maria, 154 ambos declarados pardos de apenas dois dias em maio de 1858. Polucena 155 é um dos poucos casos encontrados, em que uma cativa morre aos 14 anos e tem o nome

de sua mãe, Josefa, em seu registro. Era propriedade de Lodovina Maria da Conceição e

faleceu em 30 de março de 1860. Não recebeu sacramento e foi enterrada no Cemitério da

Cidade. Infelizmente, não sabemos qual foi a causa mortis. Outro caso que foge a regra é o de

Cândida crioula156 que faleceu em 20 de novembro de 1860 com trinta anos de idade e teve o

151 2º. Livro de Óbito de pessoas escravas. fl. 8. CDH. 152 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 49. 153 1º. Livro de Óbito das pessoas escravas. fl. 250. CDH. 154Idem . Ibidem. fl. 246. 155 Idem . Ibidem. fl. 271. 156 Idem . Ibidem. fl. 278.

Page 75: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

74

nome de sua mãe, Odete, declarado e não recebeu sacramento. Nos dois casos citados, não

foi feita menção ao nome do pai.

2.5 - Número dos Mortos

Na primeira metade do século XIX no Rio de Janeiro, em média, quase dois mil e

oitocentos escravos eram enterrados por ano entre 1840 e 1849. 157 No caso de Vassouras, os

números nos apontam menor quantitativo de escravos para a região do Vale em comparação

com a capital do império tendo em vista as devidas proporções. Em 1840 os indivíduos

escravos totalizavam 14.333 e apenas 14 tiveram um assento no livro de óbito da paróquia.

Devemos considerar que poucos escravos puderam ter um registro de morte.

A primeira distinção social na morte era entre pessoas livres e escravas. Baseados

nessa observação, produzimos a tabela 8, quantificando todos os indivíduos por ano e por

gênero. Com ela visualizamos o número de mortos a cada ano e sua incidência na população

em geral. O registro oficial nos permite uma amostra dos 6.722 indivíduos mortos para o

período estudado. Analisando mais atentamente percebemos algumas diversidades. Os dados

do livro paroquial demonstram que os homens eram a maioria dos mortos: 4.070 (60.55%).

As mulheres um pouco mais que a metade: 2.647 (39.38%), apenas 5 (0.07%) pessoas não

tiveram o gênero identificado. Contudo, analisando os diferentes grupos sociais percebemos

as diferenças que foram implementadas com o aumento da produção cafeeira e

conseqüentemente do número de escravos e seus descendentes em Vassouras.

Tabela 8 - Número total de mortes na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, 1840-1880. Conforme a

divisão constante nos livros.

Pessoas Livres Pessoas Escravas Ano Homem Mulher Total Homem Mulher Total

Soma Geral

Qtde %* Qtde %* Qtde %* Qtde %* Qtde %* Qtde %* Qtde %* 1840 12 0.34 13 0.36 25 0.37 8 0.25 6 0.19 14 0.20 39 0.58 1841 30 0.84 20 0.56 50 0.74 44 1.39 28 0.88 72 1.07 122 1.81 1842 20 0.56 19 0.53 39 0.58 26 0.82 17 0.54 43 0.64 82 1.22 1843 19 0.53 25 0.70 44 0.65 35 1.10 17 0.54 52 0.77 96 1.43 1844 25 0.70 28 0.79 53 0.79 28 0.88 20 0.63 48 0.71 101 1.50 1845 24 0.67 7 0.20 31 0.46 27 0.85 6 0.19 33 0.49 64 0.95 1846 27 0.76 23 064 50 0.74 28 0.88 16 0.50 44 0.65 94 1.40 1847 19 0.53 22 0.62 41 0.60 36 1.13 19 0.60 55 0.82 96 1.43

157 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro(1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 144.

Page 76: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

75

1848 34 0.95 26 0.73 60 0.90 61 1.93 25 0.79 86 1.28 146 2.17 1849 22 0.62 17 0.47 39 0.58 63 1.99 31 0.98 94 1.40 133 1.98 1850 39 1.09 33 0.92 72 1.07 76 2.40 26 0.82 102 1.52 174 2.59 1851 36 1.01 21 0.59 57 0.85 66 2.09 27 0.85 93 1.38 150 2.23 1852 56 1.57 39 1.09 95 1.41 61 1.93 44 1.39 105 1.56 200 2.97 1853 35 0.98 32 0.90 67 0.99 50 1.58 46 1.45 96 1.43 163 2.42 1854 53 1.49 47 1.32 100 1.49 51 1.61 26 0.82 77 1.14 177 2.63 1855 66 1.85 32 0.89 98 1.46 63 1.99 32 1.01 95 1.41 193 2.87 1856 49 1.37 29 0.81 78 1.16 54 1.71 28 0.88 82 1.22 160 2.38 1857 71 1.99 45 1.26 116 1.72 55 1.74 40 1.26 95 1.41 211 3.14 1858 64 1.80 39 1.09 103 1.53 58 1.84 33 1.04 91 1.35 194 2.89 1859 73 2.05 58 1.63 131 1.94 70 2.21 42 1.33 112 1.67 243 3.61 1860 71 1.99 46 1.29 117 1.74 71 2.25 48 1.52 119 1.77 236 3.51 1861 55 1.54 38 1.07 93 1.38 40 1.26 26 0.82 66 0.98 159 2.36 1862 53 1.49 38 1.07 91 1.35 46 1.45 31 0.98 77 1.14 168 2.50 1863 55 1.54 24 0.67 79 1.17 47 1.49 23 0.73 70 1.04 149 2.22 1864 49 1.37 28 0.79 77 1.14 40 1.26 27 0.85 67 0.99 144 2.14 1865 72 2.02 49 1.37 121 1.80 57 1.80 29 0.92 86 1.28 207 3.08 1866 72 2.02 56 1.57 128 1.90 77 2.44 35 1.11 112 1.67 240 3.57 1867 63 1.77 40 1.12 103 1.53 88 2.78 41 1.30 129 1.92 232 3.45 1868 50 1.40 36 1.01 86 1.28 73 2.31 48 1.52 121 1.80 207 3.08 1869 36 1.01 21 0.59 57 0.85 79 2.50 55 1.74 134 1.99 191 2.84 1870 37 1.04 27 0.75 64 0.95 69 2.18 45 1.42 114 1.69 178 2.65 1871 44 1.24 38 1.07 82 1.22 19 0.60 24 ,76 43 0.64 125 1.85 1872 25 0.70 42 1.17 67 0.99 69 2.18 45 1.42 114 1.69 181 2.69 1873 55 1.54 37 1.04 92 1.36 45 1.42 29 0.92 74 1.10 166 2.47 1874 42 1.18 29 0.81 71 1.06 40 1.27 23 0.73 63 0.94 134 1.99 1875 66 1.82 63 1.77 129 1.92 33 1.04 17 0.53 50 0.74 179 2.66 1876 111 3.12 62 1.74 173 2.57 39 1.23 12 0.38 51 0.76 224 3.33 1877 74 2.08 52 1.46 126 1.87 22 0.70 14 0.44 36 0.53 162 2.41 1878 81 2.27 67 1.88 148 2.20 30 0.95 18 0.56 48 0.71 196 2.91 1879 70 1.96 72 2.02 142 2.11 32 1.01 17 0.54 49 0.73 191 2.84 1880 101 2.83 61 1.71 162 2.41 38 1.20 10 0.32 48 0.71 210 3.12 s/sexo - - - - 5 - - - - - - - - - Total Livres: 3.562 - 52.99% T. Escravos: 3.160 - 47.01% Total Geral: 6.722 – 100% Fonte: Registro de Óbito de escravos e livres, 1840-1880. CDH.

O grupo dos livres, composto também por ex-escravos e seus descendentes, é mais

complexo. Homens continuam a ser maioria nos registros, mas a diferença entre estes e as

mulheres é menor em relação a compreendida na análise de mortes de escravos (gráfico 4).

Entre os anos 1840 e 1880, 3.562 livres foram registrados no livro de Óbitos da Freguesia de

Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. Destes, 3.412 (95.78%) indivíduos receberam

assento no livro de Óbitos de Vassouras. Libertos e forros são representados por 150 (4.22%)

indivíduos. Nesta segunda divisão, somente indivíduos com a designação liberto ou forro

foram computados.

Page 77: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

76

Tabela 9 - Quantidade de óbitos por décadas, gênero e condição. 1840-1880.

Livres Libertos e forros Homem Mulher Homem Mulher

Soma Décadas

Nr %* Nr %* Nr %* Nr %* TG % 1840 – 1849 221 6.21 192 5.40 11 0.31 8 0.22 432 12.15 1850 – 1859 520 14.62 353 9.92 22 0.62 22 0.62 917 25.78 1860 – 1969 565 15.88 363 10.21 11 0.31 13 0.36 952 26.76 1870 – 1879 583 16.39 460 12.93 22 0.62 29 0.82 1094 30.76

1880 99 2.79 51 1.43 2 0.06 10 0.28 162 4.55 Total Livres: 3.407 - 95.78%* Total Liberto e Forros: 150 - 4.22%* TG:3.557 – 100% Fonte: CDH. 1º e 2º Livros de Óbito de pessoas livres da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras.

Gráfico 3 – Quantitativo de óbitos por gênero entre os livres nas diferentes décadas.

Registro de Livres, Libertos e Forros de 1840 a 1889

233

531 549599

101

199

370 372

477

58

0

100

200

300

400

500

600

700

1840 -1849 1850 - 1859 1860 - 1869 1870 - 1879 1880

HOMEM MULHER

Fonte: Registro de Óbito das pessoas livres. CDH.

O gráfico acima demonstra a divisão por gênero do grupo de pessoas livres. Homens e

mulheres morriam de forma proporcional, principalmente na década de 1840 quando o

número de libertos era bem menor. Analisando os percentuais de mortes por gêneros entre os

livres, percebemos não haver uma diferença quantitativa entre os sexos, como a existente

entre os escravos. O que pode sugerir um equilíbrio na população livre no referente à questão

de gênero.

Se somarmos aos libertos os indivíduos pretos e pardos, teremos um outro quadro de

análise. Para a construção da tabela 10 utilizamos essas divisões (cor e condição jurídica).

Estes diferentes grupos podem ser pensados como originários da escravidão e como tal se

Page 78: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

77

aproximam dos quantitativos das populações mestiças que aumentam a partir do sucesso da

cultura cafeeira. As informações são mais consistentes a partir da década de 1850.

Tabela 10 - Pessoas livres: composição por cor. 1840-1880.

Homens Ano Preto %* Pardo %* Branco %* Liberto %* S/C %*

1840-9 2 0.06 1 0.03 4 0.11 11 0.31 216 6.15 1850-9 24 0.68 88 2.50 297 8.46 22 0.62 100 2.85 1860-9 36 1.02 80 2.28 370 10.54 13 0.37 63 1.79 1870-9 22 0.63 72 2.05 284 8.09 21 0.60 201 5.72 1880 1 0.03 15 0.43 47 1.34 2 0.06 36 1.03 Total 85 2.42 256 7.29 1.002 28.54 69 1.96 616 17.54 Total Homens: 2.028 – 57.76%*

Mulheres Ano Preta %* Parda %* Branca %* Liberta %* S/C %*

1840-9 1 0.03 1 0.03 1 0.03 9 0.26 188 5.35 1850-9 28 0.80 64 1.82 178 5.07 22 0.62 74 2.10 1860-9 30 0.85 79 2.25 212 6.04 13 0.37 38 1.08 1870-9 35 1.00 72 2.05 212 6.04 30 0.85 135 3.84 1880 6 0.17 8 0.23 23 0.65 10 0.29 14 0.40 Total 100 2.85 224 6.38 626 17.83 84 2.39 449 12.79 Total Mulheres: 1.483 – 42.24%* Total Geral: 3.511 – 100%* * os percentuais foram calculados sobre o total geral.

Fonte: 1º. e 2º. Livros de Óbitos das pessoas livres. CDH.

Nesta tabela, pardos, negros e brancos livres foram somados na categoria “cor”

correspondente. Os indivíduos que não tiveram cor ou condição mencionada não foram

computados. O documento histórico utilizado era relativo às pessoas livres e portanto fica

evidente o maior quantitativo de brancos, exatamente 46.37% (1.628) do total dos indivíduos

analisados para os anos de 1840 a 1880. Relativo ao mesmo período, o grupo originado dos

escravos - libertos, forros, pretos e pardos - totalizavam 23.30% (818), portanto,

aproximadamente 50% do total dos brancos.

É interessante notar que os pretos estavam em minoria, 85 (2.42%) homens e 100

(2.85%) mulheres. Este grupo, formado por pretos e pardos, é muito complexo e demonstra as

pequenas, mas reais possibilidades de mobilidade social. Os pardos que numa escala

hierárquica estavam acima dos negros e mulatos, representavam 13.67% (480), sendo 256

(7.29%) homens e 224 (6.38%) mulheres.

Informações parcimoniosas relativas à cor na década de 1840 nos remete aos dados

encontrados sobre os escravos. Houve um decréscimo do número de indivíduos mortos sem

uma cor declarada da década de 1840 à 1860. Em 1870 ela voltou a não ser mencionada,

Page 79: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

78

decaindo novamente em 1880. Provavelmente, este fato indique que a complexidade social

aumentada a partir da década de 1850 provocou esta mudança. Se antes deste marco, ser

branco era ser livre e negro escravo, posteriormente o quadro social sofreu modificações que

implicaram na necessidade de informar a cor e origem do indivíduo que estaria recebendo um

assento.

Escravos correspondem a 3.160 registros de óbito no livro paroquial, sendo 2.014

homens e 1.146 mulheres (tabela 8). Homens são a maioria, com exceção do ano 1871 o único

em que o maior quantitativo de mortes é de mulheres. Entre os escravos mortos que

receberam assento no livro da paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, os

homens representam 63.73% e as mulheres 36.27%. Os números reiteram a maior proporção

de homens nos plantéis escravistas não apenas em Vassouras, mas nas demais Províncias do

Império do Brasil. Se utilizarmos o marco de 1850 para nortear a análise, não teremos

nenhuma mudança significativa, apenas a diminuição de 1 ponto percentual entre os homens.

Todavia, estes continuavam a ser maioria entre os que morriam. Eles se tornavam vulneráveis

à condição do tempo, a pouca vestimenta, alimentação inadequada e provavelmente à pouca

higiene. As mulheres também estavam sujeitas aos mesmos tratamentos, mas uma maioria

delas era utilizada para os trabalhos e ofícios domésticos, como destacaremos adiante.

Um conjunto de fatores certamente levavam ao túmulo mais cedo, homens, mulheres e

crianças, que nem sempre tinham a possibilidade de serem tratados por um cirurgião ou

médico. As diferentes classificações e informações sobre os mortos, principalmente nos livros

dedicado às pessoas livres, demonstram a distribuição diferenciada da mortalidade, refletida

na desigualdade social de Vassouras. Entre estes, uma pequena parcela pertencia às famílias

abastadas. A grande maioria vivia na pobreza. Entretanto, a escravidão trazia consigo a marca

da divisão social, política e econômica. Homens e mulheres, africanos e seus descendentes

eram utilizados para produzir riquezas. Seu trabalho era utilizado à exaustão e sua vida útil,

muito efêmera.

Page 80: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

79

2.6 – Expectativa de vida

A preocupação de alguns fazendeiros com a saúde de seus escravos fica evidenciada

nos manuais utilizados nesta pesquisa. Estes foram escritos na década de 1830, quando o

tráfico se tornou ilegal e a possibilidade de diminuição da mão-de-obra era claramente

percebida. Os homens que dependiam desta mão-de-obra para sua produção, certamente,

tornaram-se mais apreensivos com a Lei Eusébio de Queiroz de 1850, quando o governo

imperial decreta o fim do comércio escravo transatlântico. A apreensão presente nas palavras

utilizadas nos manuais para descrever os cuidados com a propriedade escrava pode ter

conseguido efeito a partir desta última data. Daí decorre o volume muito elevado de entrada

de escravos nos portos brasileiros entre os anos de 1830 e 1840.158 Stanley Stein, aponta que a

máxima produtividade do escravo era dos 18 aos 30 anos. Do mesmo modo, este autor sugere

que após 1850 o motivo de desprazer para os fazendeiros de Vassouras era a falta de mão-de-

obra para o trabalho no campo. 159 Uma das possibilidades existentes seria a manutenção dos

números de cativos pelo maior tempo possível.

A necessidade em manter o patrimônio escravo pode ser percebida nas propostas dos

autores dos manuais, no referente às melhorias para a vida dos cativos. Elas poderiam

manifestar-se na cessão de espaço para cultivo de roças, estímulo à formação de família,

melhor alimentação, cuidado com os doentes, dentre outros fatores. Para Rafael de Bivar

Marquese, não houve mudança no discurso de fazendeiros após 1850.160 Na verdade,

acreditamos que a fala utilizada nas décadas anteriores somente foi efetivada e posta em

prática com o fim efetivo do comércio transatlântico. Esta preleção pode ter sido utilizada no

controle e cuidado com a saúde, para manter os escravos obedientes e sãos para o trabalho.

Da mesma forma, notamos o aumento do preço do cativo como um grande incentivo

em preservar a mão-de-obra escrava. Tendo o preço após o fim do tráfico quase duplicado

num curto espaço de tempo (1852 à 1854), não incidiu sobre a produção de café, passando a

ser o Nordeste a nova fonte de cativos para o trabalho nas fazendas. A prática do comércio

158 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 284. 159 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 74. 160 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 284-285.

Page 81: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

80

interprovincial fez surgir na região do Vale Paraíba Fluminense um maior número de escravos

velhos e moribundos. 161

Escravos “velhos” podem constituir diferentes grupos de idades. A faixa etária mais

produtiva era a dos 15 aos 40 anos. Um escravo com aproximadamente 40 anos poderia ser

qualificado como velho, dependendo de sua condição física e de sua saúde. Em alguns óbitos

encontramos a designação “muito velho”, provavelmente fazia referência a escravos com

mais de 40 anos e poderia do mesmo modo descrever um cativo com idade superior a 80 anos.

O fator idade nem sempre fora mencionado nos óbitos, principalmente na década de 1840.

Senhores deduziam a idade de seus cativos antes de 1850, como nos informam os inventários

e alguns óbitos, indicando que as mesmas não correspondem à informações fidedignas. Mas,

se observarmos a faixa de idade conforme a produção de cativos, teremos algo aproximado às

possibilidades de sobrevivência de escravos e de sua possível expectativa de vida.

A designação “adulto” possivelmente era a referência utilizada para indivíduos de

idade entre os 15 e 40 anos, por ser esta faixa etária de maior produtividade entre os escravos.

Consideramos idosos os que ultrapassavam a idade julgada como produtiva, ou seja, os acima

de 40 anos, ficando essa faixa etária entre os 41 e 70 anos. Os muito velhos eram os que

possuíam entre 71 e 100 anos de vida. Pessoas livres ou escravas com mais de 100 anos foram

encontradas, mas em quantidade muito pequena, eles compõe a última divisão da

classificação etária.

Existe a citação buço,162 para os adolescentes, que definimos os que tinham entre 8 e

14 anos, ficando entre os inocentes e os adultos. Silmei 163 identifica os mesmos como

infantes, alterando apenas a qualificação presente nesta análise. Designações imprecisas

também foram encontradas, como “menor” e “novo” referindo-se as crianças. Magno Fonseca

identificou para o período de 1821 a 1850, referências à buço, “de menor”, “de menor idade”

e “párvulo”. Para demonstrar o enriquecimento de dados a partir da segunda metade do século

XIX, diferenciamos cada uma das designações encontradas.

161 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p.94. 162 Magno Fonseca na sua dissertação, Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e ampliação da cultura cafeeira: Vassouras -1821-1850, encontra as mesmas designações para o período de 1821-1850. Para os jovens com idade entre 10 e 13 anos identificou o termo “buça”, associado ao aparecimento dos primeiros pelos. “Menor”, “de menor idade”, “de menor ainda” e “párvulos”, também foram percebidas pelo autor. 163 PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Enfermidades de escravos: contribuições metodológicas para estimativas da mortalidade (Rio Grande de São Pedro, 1790-1835). In: Ângela Porto (Org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007.

Page 82: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

81

O agrupamento por idade será a mesma para analisar os dados de escravos, livres e

libertos. Comecemos pelos livres. Este grupo por ser mais complexo, agregando indivíduos

que nasceram livres e os que conquistaram sua liberdade (ex-escravos e seus descendentes),

foi dividido por década e o ano de 1880, de forma que possamos analisar melhor os dados

encontrados e percebermos como etnicamente a morte hierarquizava. Os dados na década de

1840 são precários, não tendo informações precisas sobre idade e cor. A tabela abaixo

apresenta uma amostra de 3.233 pessoas registradas nos livros de óbito da Freguesia de Nossa

Senhora de Vassouras com idade indicada, nos anos de 1840 a 1880.

Os dados indicam uma alta taxa de mortalidade infantil, compreendendo as idades

entre 0 e 7 anos. Em alguns casos são descritos como “inocentes”. Na década de 1840, 81%

(209) dos que morreram eram crianças. Destas, 2 (0.77%) eram pretas, 2 (0.77%) brancas e

205 (79.46%) sem cor. Na faixa etária de 8 a 14 anos, seguindo a proposta de análise

apresentada acima, 13 (5.04%) foram computados e sem a menção cor. Dos 15 aos 40

somados os adultos, encontramos 18 (6.98%). Os representantes da faixa 41-70, 7 (2.72%).

Indivíduos com idade entre 71 e 100 somam 8 (3.10%) e pessoas acima de 100 anos 3

(1.16%).

Tabela 11 – Composição faixa etária de óbitos do grupo de livres e libertos.

Homem Mulher 1840-49 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %

0-7 - - - - - - 17 0.52 - - 1 0.03 - - 20 0.62 8-14 - - - - - - 3 0.09 - - - - - - 1 0.03 15-40 1 0.03 - - - - 9 0.29 1 0.03 - - 1 0.03 4 0.12 41-70 - - - - 1 0.03 4 0.12 - - - - - - 2 0.06 71-100 1 0.03 - - 1 0.03 4 0.12 1 0.03 - - - - 1 0.03 + 100 - - - - - - 1 0.03 - - - - - - 2 0.06 Inocente 1 0.03 - - 2 0.06 93 2.88 - - - - - - 75 2.32 Menor - - - - - - 2 0.06 - - - - - - 7 0.22 Adulto - - - - - - 1 0.03 - - - - - - 1 0.03 Total 3 0.09 0 0 4 0.12 134 4.14 2 0.06 1 0.03 1 0.03 113 3.49 Total na Decada: 258 – 7.98%*

Homem Mulher 1850-59 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %

0-7 10 0.31 40 1.24 120 3.71 21 0.65 11 0.34 31 0.96 98 3.03 24 0.74 8-14 - - 2 0.06 8 0.25 1 0.03 - - - - 3 0.09 2 0.06 15-40 13 0.40 26 0.80 106 3.28 22 0.68 17 0.52 17 0.52 35 1.08 13 0.40 41-70 13 0.40 12 0.37 39 1.21 11 0.34 11 0.34 7 0.22 29 0.90 6 0.19 71-100 5 0.15 - - 8 0.25 1 0.03 4 0.12 - - 6 0.19 3 0.09 + 100 - - 1 0.03 1 0.03 - - - - - - - - - - Inocente - - - - 3 0.09 25 0.77 - - 1 0.03 1 0.03 11 0.34 Menor - - - - - - - - - - - - - - 1 0.03 Adulto - - - - - - - - - - - - - - 1 0.03 Total 41 1.27 81 2.50 285 8.82 81 2.50 43 1.32 56 1.73 172 5.32 61 1.88 Total na Decada: 820 - 25.36%

Homem Mulher 1860-69 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %

0-7 3 0.09 22 0.68 121 3.74 12 0.37 4 0.12 31 0.96 105 3.25 13 0.40 8-14 1 0.03 3 0.09 14 0.43 3 0.09 2 0.06 - - 2 0.06 - -

Page 83: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

82

15-40 20 0.62 29 0.90 154 4.76 25 0.77 15 0.47 33 1.02 66 2.04 12 0.37 41-70 12 0.37 18 0.56 65 2.01 17 0.53 14 0.43 17 0.53 26 0.80 8 0.25 71-100 9 0.29 3 0.09 14 0.43 2 0.06 3 0.09 - - 8 0.25 2 0.06 + 100 - - - - - - - - - - - - 1 0.03 - - Inocente - - 1 0.03 1 0.03 1 0.03 - - - - - - - - Menor - - - - - - - - - - - - - - - - Adulto - - - - - - - - - - - - - - 1 0.03 Total 45 1.40 76 2.35 369 11.40 60 1.85 38 1.17 81 2.51 208 6.43 36 1.11 Total na Decada: 913 - 28.24%

Homem Mulher 1870-79 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %

0-7 3 0.09 28 0.86 106 3.28 7 0.22 8 0.25 29 0.90 106 3.28 8 0.25 8-14 1 0.03 1 0.03 12 0.37 3 0.09 2 0.06 3 0.09 8 0.25 3 0.09 15-40 8 0.25 25 0.77 83 2.57 77 2.38 11 0.34 34 1.05 54 1.67 69 2.13 41-70 20 0.62 15 0.46 71 2.19 99 3.06 25 0.77 5 0.15 35 1.08 43 1.33 71-100 8 0.25 2 0.06 10 0.31 15 0.46 9 0.29 2 0.06 15 0.46 10 0.31 + 100 - - - - - - - - - - - - - - - - Inocente - - - - 3 0.09 1 0.03 - - 1 0.03 3 0.09 3 0.09 Menor - - - - - - - - - - - - - - - - Adulto - - - - - - - - - - - - - - - - Total 40 1.24 71 2.19 285 8.81 202 6.25? 55 1.71 74 2.28 221 6.83 136 4.20 Total na Decada: 1.084 - 33.53%

Homem Mulher 1880 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %

0-7 - - 3 0.09 19 0.58 2 0.06 - - - - 6 0.19 2 0.06 8-14 - - 1 0.03 4 0.12 2 0.06 1 0.03 - - 1 0.03 - - 15-40 1 0.03 9 0.29 14 0.43 13 0.40 3 0.09 7 0.22 7 0.22 7 0.22 41-70 - - 2 0.06 7 0.22 18 0.55 6 0.19 2 0.06 9 0.29 7 0.22 71-100 - - - - 1 0.03 2 0.06 1 0.03 - - - - 1 0.03 + 100 - - - - - - - - - - - - - - - - Inocente - - - - - - - - - - - - - - - - Menor - - - - - - - - - - - - - - - - Adulto - - - - - - - - - - - - - - - - Total 1 0.03 15 0.46 45 1.39 37 1.14 11 0.34 9 0.29 23 0.71 17 0.53 Total na Decada: 158 - 4.89% Total Geral: 3.233 Fonte: 1º. e 2º. Livros de Óbitos das pessoas Livres. CDH.

Crianças continuaram nas décadas seguintes com um alto índice de mortes. Os

mesmos parecem ter diminuído com o passar do tempo: 48.21% (396) em 1850, 34.39% (314)

em 1860, 27.21% (295) para 1870 e 20.25% (32) no ano de 1880. Os percentuais foram

calculados sobre o total de indivíduos mortos para cada período. Para o total geral dos anos

1850 a 1880, elas são 1.037 (32.07%). Os adolescentes (8-14), 84 (2.60%). Os adultos da

faixa etária produtiva (15-40) para todo o período da tabela 11, representam 1.025 (31.70%),

625 (19.33%) homens e 400 (12.37%) mulheres. Na seguinte, 41 aos 70, os indivíduos mortos

foram 670 (20.72%). Pessoas com idades entre 71 e 100 anos 144 (4.45%) e finalmente os

com mais de 100 anos somam 3 (0.09%).

Segundo os dados da tabela 11 – que objetiva demonstrar as diferenças relativas a

idade dos óbitos pela classificação cor e gênero -, podemos perceber que a partir da década de

1850 o número de crianças mortas diminuiu gradativamente na mesma proporção em que

Page 84: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

83

aumentou o número de adultos a partir dos 15 anos. A maior incidência de óbitos entre estes

últimos é na faixa etária de 15 a 40 anos. Num primeiro momento podemos supor que na

primeira década analisada não havia muita preocupação em mencionar a idade correta nos

assentos. A medida que a sociedade vai se tornando mais complexa, as informações tendem a

ser melhor elaboradas, existindo menção até para o número de dias do falecimento para os

recém-nascidos.

A separação por faixa etária e designações nem sempre precisas, nos ajudam a

compreender qual a atenção dispensada a cativos e ex-cativos. Não havia uma preocupação

em registrar dados de escravos e livres nos anos de 1840, como nos demonstram as tabelas 11,

12 e 13. Informações mais precisas sobre a idade em que morriam os indivíduos, surgem a

partir da segunda metade do século XIX, coincidindo com o fim do tráfico negreiro.

Tabela 12 – Composição faixa etária dos escravos. 1840-1849.

Homem Mulher 1840-49 Total %* Total %*

0-7 - - 4 1.02 8-14 - - - - 15-40 - - - - 41-70 - - - - 71-100 - - - - Inocentes 98 24.87 81 20.56 Menor 2 0.50 4 1.02 Novo 1 0.25 0 0 Adulto 148 37.56 46 11.67 Total 259 65.73 135 34.27 Total: 394* - 100% Fonte: Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.

Os inocentes tinham um elevado número de mortes, tanto entre escravos quanto entre

os livres. A infância para o doutor Imbert é vista como período crítico da vida do homem. Os

números obtidos nos registros de óbito de livres e escravos demonstram o quanto essa faixa

etária era suscetível às doenças. As crianças eram vulneráveis às condições de vida numa

sociedade escravista. Se os inocentes livres morriam em grande número, os filhos de escravos,

nem sempre atingiam alguns meses de vida. Devemos considerar que uma grande maioria não

recebia o batismo, nem mesmo o registro de óbito, o que provavelmente dificulta uma análise

verossímil sobre os números encontrados. Mary Karasch aponta que para os inocentes, a

Page 85: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

84

causa mortis que mais os acometiam era o mal de sete dias, identificado apenas entre as

crianças livres em nossa pesquisa.

Na década de 1840, analisando os dados da tabela 12, apenas 4 (1.02%) crianças do

sexo feminino tiveram a idade informada. A maioria das crianças nesse período era

mencionada como inocente (0-7 anos). Destes, 20.56% do total são meninas escravas

registradas no livro de óbitos. Os meninos com a mesma qualificação são 24.87%. Juntos

somavam 179 (45.43%). Também encontramos a designação menor para 2 (0.50%) meninos e

4 (1.02%) meninas. Apenas 1 (0.25%) menino foi descrito como novo. Adultos cativos

somam 194 (49.24%), 148 (37.56%) homens e 46 (11.67%) mulheres.

Tabela 13 – Composição faixa etária por gênero de escravos. 1850-1880.

Homem Mulher 1850-80 Total %* Total %*

0-7 455 18.76 358 14.76 8-14 44 1.81 41 1.69 15-40 539 22.22 288 11.87 41-70 377 15.54 146 6.02 71-100 40 1.65 15 0.62 Inocentes 42 1.73 26 1.07 Menor - - 1 0.04 Novo - - - - Adulto 41 1.69 10 0.41 Idade Avançada 2 0.08 - - Muito velho - - 1 0.04 Total 1.540 63.48 886 36.52 Total: 2.426* - 100% Fonte: Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.

Os anos 1850 a 1880 demonstram que 881 (36.31%) crianças faleceram. Os indivíduos

entre 8 e 14 anos respondem por 86 (3.55%)mortes. Escravos que compunham a faixa etária

de 15 a 40 anos são 878 (36.19%). Os que faleciam entre os 41 e 79 anos são 523 (21.56%) e

os que superaram a mesma correspondem à 58 (2.39%), a estes foram somados os muito

velhos e com idade avançada. Nenhum cativo neste período morreu em idade maior que 100

anos.

Page 86: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

85

Idades superiores aos 50 anos são identificadas a partir da década de 1850 para os

escravos. Julio César164 e Mary Karasch165 informam que para a corte os escravos raramente

chegavam aos 50 anos nos primeiros anos do século XIX. Magno Fonseca166 localiza apenas

uma cativa com esta idade para o mesmo período, corroborando com a nossa investigação.

Aqui cabe uma observação: a lei que põe fim definitivo ao tráfico transatlântico de escravos

no Brasil, pode ser considerada como o auge de um processo iniciado em 1830, como já

mencionamos. Nesta conjuntura, a população de escravos pode ter tido uma maior expectativa

de vida devido as pressões que antecederam a lei Eusébio de Queiroz. O processo que

incentivou a produção de alguns manuais sobre administração de escravos, tenha tido efeito a

partir de 1850. Para alguns proprietários de escravos provavelmente o fim do tráfico não

passava de uma especulação política, tendo em vista o poder econômico e político dos

mesmos.

Se observarmos a tabela 6 e 7(ofício e idade), perceberemos que exercendo algumas

ocupações o escravo poderia ter sua expectativa de vida aumentada. Os anos 1840,

demonstram que a maioria dos cativos inventariados com um ofício, não tiveram menção à

idade. A faixa etária dos 15 aos 40 anos é a mais significativa. Sendo ela a de maior

produtividade teve um maior número de mulheres e homens mencionados, totalizando 180

indivíduos. Entre os homens dos 41 aos 70, apenas 33 foram listados. Tropeiros (51),

carpinteiros (40), falqueijadores (15) e carreiros (14) são os que se destacam. Os

numericamente superiores são os carreiros (7) e os sapateiros (5). Acima desta idade 1

pedreiro foi encontrado. As mulheres não ultrapassaram os 70 anos. As que possuíam entre 15

e 40 anos, eram as mais representadas: costureiras (52), cozinheiras (14) e engomadeiras (7).

Na faixa dos 41 aos 70 as cozinheiras (5) suplantam as demais.

A partir da segunda metade do século XIX, o número de cativos de ambos os sexos

que foram designados como “de roça” e “roceiro” superaram os demais ofícios. Tendo um

grande representatividade na faixa etária dos 41 aos 70 anos entre homens (142) e mulheres

(80). Entretanto os que conseguiram superar esta idade foram os pedreiros (4).

Diante do exposto, pudemos verificar que a formação cultural que se deu a partir da

colonização criou e recriou as maneiras de bem morrer na sociedade escravista de Vassouras,

164 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 114. 165 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro(1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 166 BORGES, Magno Fonseca. Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e ampliação da cultura cafeeira – Vassouras – 1821-1850. Dissertação de mestrado. Vassouras: Universidade Severino Sombra. p. 68.

Page 87: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

86

destacando-se as culturas portuguesa e africana em tal processo de reconstruções simbólicas.

Assim como na França, Portugal e em alguns países da África, no Brasil também se temia a

morte sem a devida preparação, como vemos refletidos em Vassouras. Havia preocupação

com os rituais fúnebres, uma preparação para a vida além túmulo, que não se limitava apenas

aos livres; escravos – embora em menores proporções – também tiveram acesso aos costumes

católicos. Entretanto, de acordo com sua inserção na sociedade escravista brasileira, poderiam

não ter acesso a um funeral no modelo da religião oficial do Império do Brasil.

Em vida, ao romperem os laços da escravidão, libertos e seus descendentes buscavam

inserção social. Na morte, esses indícios estão presentes na solicitação de sacramentos, nos

enterros ad sanctus, nas vestimentas fúnebres, nas missas de corpo presente – rituais cobrados

pela Igreja e que formavam a sua economia material. Escravos, assim como os livres pobres,

tentavam assegurar para si e seus familiares as formas de bem morrer. A Igreja assegurava aos

cativos um bom enterro, ao ordenar que o senhor se preocupasse com a morte dos mesmos,

tendo em vista o uso que fizeram deles em vida.

Vimos também que a forma da utilização dessa mão de obra sofreu modificação

significativa após 1850. O fim do tráfico transatlântico elevou o preço do cativo, dificultando

o acesso de pequenos proprietários. A análise dos manuais propõe-nos que existia certa

preocupação com a forma de cuidados dispensados aos escravos desde a década de 1830,

quando foram escritos. Embora a preocupação fosse com a vida útil da propriedade escrava,

ela significou, após a segunda metade do século XIX, uma melhoria na condição de vida

daqueles indivíduos, alterando sua expectativa de vida, condições de trabalho, alimentação,

tratamento e atendimento médico. Os dados registrados nas fontes consultadas sofreram

significativa melhora, demonstrando maior atenção aos cativos após este marco temporal. A

morte passou a ser observada com mais atenção, devido às dificuldades que surgiram com a

Lei Eusébio de Queiroz.

Assim, para que se pudesse aumentar a forma de uso da mão de obra escrava, alguns

manuais para fazendeiros escritos na década de 1830, informam sobre as principais doenças

que acometiam os escravos. Eles tentavam instruir proprietários sobre como comprar

indivíduos que não desenvolvessem algumas moléstias e cuidar de um cativo doente,

relacionando a necessidade de se manter a propriedade com as instruções da Igreja de amor ao

próximo. O capítulo que se segue analisará as principais causas mortis e suas diferentes

implicações sociais.

Page 88: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

87

Capítulo 3: Doenças de escravos e principais curas.

A morte, seu lugar social e simbólico apresenta outro problema do qual não podemos

nos abster. O presente trabalho tem por objetivo entender a construção e reconstrução da

morte e sua importância nas relações de poder da Vassouras no século XIX. Estes símbolos de

poder foram descritos em certa medida no capítulo anterior. Contudo, não podemos falar de

morte sem falar de suas causas. As doenças aqui tratadas serão vislumbradas na tentativa de

cotejar a maneira pela qual são mencionadas em um documento religioso, o livro de óbitos da

paróquia e nos inventários post mortem, um documento político. Para auxiliar na descrição

das moléstias e entender sobre esta questão, utilizaremos manuais escritos para fazendeiros

que objetivavam auxiliá-los em caso de doenças. Da mesma forma, a tese do doutor Imbert,

escrita no século XIX, sobre as principais doenças que acometiam os cativos.

Nosso limitado conhecimento a respeito nos restringe a acompanhar e perceber quais

as doenças que mais foram fatais aos escravos em Vassouras e se as mesmas eram

mencionadas nos inventários. Afinal a morte estava inserida em seu cotidiano, não apenas

entre os escravos, mas também entre livres e libertos.

3.1 – Doenças, Causas Mortis e possíveis tratamentos.

A preocupação com a saúde dos indivíduos que seriam vendidos como escravos para o

território americano, garantia alguma cautela como uma boa alimentação e óleo de palmeira

para lubrificar a pele. O que poderia permitir uma leva de cativos de “boa aparência”. As

doenças parecem ter tido atenção ainda no continente africano, de forma que, ao serem

colocados nos entrepostos para aguardar a longa viagem à América, os africanos doentes eram

tratados e isolados. 167 Em 1840, uma observação médica concluiu que a vacinação contra a

Varíola - ou Bexigas como aparece na maioria desses casos em Vassouras - na costa africana,

havia contribuído na diminuição da taxa de “mortalidade no tráfico negreiro e no Rio de

167 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Tradução James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 41.

Page 89: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

88

Janeiro”.168 Sabemos que havia alguma preocupação com a saúde dos que se tornariam

escravos na sociedade do Império do Brasil, mas acreditamos haver a necessidade de estudos

mais complexos sobre esta questão.

Ao chegar nos portos brasileiros os que apresentassem sinais de doença eram

separados e deveriam permanecer em quarentena, recebendo nesse período alguns cuidados:

Cada navio que chegava ao porto do Rio carregado de escravos deveria primeiro ser vistoriado pelo médico da Saúde; caso se constatasse haver doentes, estes deveriam ser enviados para a quarentena em uma das ilhas da baía de Guanabara; após a sua liberação, deviam desembarcar na Alfândega, a fim de serem registrados, pagarem as taxas etc., e imediatamente depois serem enviados para o Valongo. Assim se deu até o fim do tráfico negreiro. 169

Os devidamente aprovados seriam levados para os postos de venda, onde passariam

pelo olhar atento de seus futuros proprietários. Imbert, médico no século XIX, define em seu

manual a maneira pelo qual um proprietário deveria escolher seus cativos, na tentativa de

evitar futuros infortúnios, fossem relativos ao trabalho no eito ou em relação à facilidade em

contrair enfermidades. Enfatiza características desejáveis aos negros, estas associadas as

melhores condições e a indivíduos mais saudáveis, tendo em vista os serviços árduos que

deles se esperava. O escravo não deveria apresentar alguns “defeitos”. Associava doença

física à questão moral, ou seja, sua perspectiva de doença incluía também, conduta e hábitos

julgados válidos por aquela sociedade, relacionada a um tipo de moléstia. Desta forma, seria

prudente “escolher” um negro que:

[...] seja o pé redondo, a barriga da perna grossa, e o tornozelo fino, o que a torna firme; que a pelle seja lisa, não oleosa, de huma bella cor preta, isenta de manchas, de cicatrizes, e de odor demasiado forte; que as partes genitaes sejão convenientemente desenvolvidas, isto he, que nem pequem por excesso, nem por cainheza, que o baixo ventre não seja saliente, nem o embigo mui volumoso, circunstancias em que se originão sempre as hernias; que o peito seja comprido, profundo, sonoro, as espaduas desempenadas, sem todavia estarem mui desviadas do tronco, signal de não estarem os pulmões bem collocados; que o pescoço esteja em justa proporção com a altura do individuo, e que não offereça aqui e alli, mormente sob a queixada tumores glandulosos, sinal evidente de afecção escrofulosa, que conduz cedo ou tarde a uma tísica, que os músculos dos membros, do peito e das costas, sejão bem salientes; que as carnes não sejão molles, e sim rijas, e compactas; e que o negro em fim deixe entrever no seu semblante o aspecto, ardor e vivacidade: reunidas todas estas condições, ter-se-ha hum

168 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 1808 – 1850. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 215. 169 CAVALCANTI, Nireu, apud PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 75.

Page 90: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

89

escravo, que apresentará a seu Senhor, todas as garantias desejaveis de saude, força e intelligencia. 170

Se observarmos mais atentamente tais indicações, veremos que Imbert define o

escravo africano como propriedade e também como indivíduo. Em sua fala falta-lhes

capacidade intelectual, mas no final da citação mencionada apriori, ele afirma que se

lembradas todas as suas indicações, o proprietário será feliz por adquirir um indivíduo dotado

de saúde, força e inteligência. Os fatores físicos, sempre associados à doenças, são garantias

de boa compra, que poderiam proporcionar muito trabalho dos negros sem muitos gastos com

saúde, o que provavelmente demandava um bom investimento do senhor.

Uma das doenças que mais geravam óbito, a tuberculose, também é mencionada por

Imbert. A maneira inicial de se precaver contra o mal seria comprar cativos “que o pescoço

esteja em justa proporção com a altura do individuo, e que não ofereça aqui e ali, mormente

sob a queixada tumores glandulosos”, estes associados diretamente a aquisição de tísica.

Comprar escravos fortes e saudáveis não significava uma vida útil extensa. O trabalho forçado

sob condições precárias, ocasionava outros problemas que afastavam o cativo de suas tarefas:

defeitos físicos de naturezas diversas. Estes facilmente identificados nos inventários post

mortem, onde deformidades físicas e doenças estavam associadas ao preço do cativo.

As moléstias que acometiam os escravos na visão de especialistas do século XIX,

eram legado do seu território de origem, essas doenças atravessaram o oceano Atlântico e se

propagaram, atingindo brancos e indígenas. Estudos mais recentes demonstram que “muitos

parasitas intestinais, só se tornam visíveis como causa de doença em populações sedentárias,

agrícolas”. A epidemiologia histórica tem por objetivo estudar como “mudanças na forma de

ocupação do território, na organização social, podem ter como resultado uma nova equação

nosológica 171, a partir de elementos pré-existentes”.172 Esse estudo desqualifica algumas

questões em torno da interpretação de que ameríndios tiveram sua boa saúde transformada

quando da chegada de europeus.

Segundo Diana Maul, no caso dos africanos, a epidemiologia histórica, contribui para

a análise das possibilidades de se conhecer quais as doenças que existiam no território

170 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 3. 171 A expressão trata das enfermidades em geral e as classifica do ponto de vista explicativo. 172 CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 6.

Page 91: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

90

africano no século XIX e se elas foram capazes de cruzar o oceano a partir do século XVI e

chegar em outro continente. Da mesma forma, estudar as doenças que tinham agentes

etiolóticos173existentes, as quais só foram viabilizadas a partir do tráfico de escravizados.

As doenças relacionadas nos registros de óbitos podem ser consideradas como fatais

para escravos, libertos e livres. As que constam nos inventários, geralmente estavam

associadas ao preço do cativo, a uma parte dos bens do proprietário. De forma que Rita,

crioula, não teve valor mencionado, provavelmente por estar muito doente. Organizamos as

doenças que mais promoviam o óbito de escravos e livres, como: doenças infecto-parasitárias,

sistema respiratório, sistema digestivo, sistema nervoso, primeira infância, causas violentas,

sistema circulatório, osteomuscular, gravidez e parto, idade avançada e causas mal definidas.

Estas, devido a nossas restrições científicas, foram assim organizadas por não serem

identificadas nos documentos pesquisados.

Tabela 14 - Classificação de Doenças de Escravos por Tipos e gênero. 1840-1870.

Tipos Homem Mulher Doenças Infecto-Parasitárias Bexigas 1 6 Tuberculose 16 12 Coqueluche 1 2 Desinteria 7 1 Ethica 0 2 Erisipela 1 0 Vermes 1 0 Febre Perniciosa 2 0 Tétano 2 0 Tifóide 0 1 Moléstia do Peito 1 0 Opilação 3 0 Ataque de Bichas 1 0 Total: 60 - 21.50% Doenças Sistema Digestivo Moléstia do Estomago 1 1 Diarréia 1 0 Enterite 0 1 Gastrite 1 0 Inflamação do Fígado 0 2 Inflamação do Intestino 1 0 Moléstia do Fígado 2 0 Hepatite 1 0 Hérnia Estrangulada 1 0 Total: 12 – 4.30 % Sistema Respiratório Pneumonia 10 1 Asma 1 1 Bronquite 2 0 Distúrbios pulmonares 0 2

173 Etiógicos: causas das doenças.

Page 92: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

91

Hemoptise 0 1 Congestão pulmonar 2 0 Pulmões 3 0 Broncomonia dupla 1 0 Total: 24 – 8.60 % Sistema Nervoso e Neuro psiquiátrico Apoplexia 0 4 Paralisia 1 1 Amolecimento cerebral 2 1 Congestão cerebral 7 0 Cerebral 1 0 Ataque cerebral 2 0 Ataque de cabeça 1 0 Apoplexia cerebral 1 0 Convulsões 0 1 Total: 22 - 7.88 % Primeira Infância Dentição 0 1 Total: 1 - 0.36 % Morte Violenta e Acidental Afogamento 1 1 Arma de Fogo 1 0 Desastre 1 1 Espingarda 1 0 Picada de Cobra 3 1 Queimadura 1 0 Quebradura 1 0 Raio 1 0 Suicídio 1 0 Total: 14 - 5.01 % Sistema Circulatório Coração 13 18 Total: 31 - 11.11 % Sistema Osteomuscular e Reumáticas Gota 1 1 Reumatismo 1 1 Total: 4 - 1.44 % Gravidez e Parto Cancro no Útero - 1 Moléstia no útero - 1 Parto - 2 Total: 4 - 1.44 % Causas mal definidas Acesso Pernicioso 1 0 Anasarca 1 0 Anemia geral 1 0 Catarro 1 0 Cólicas 2 0 Congestão 1 0 Crepitude 1 0 Diarréia de Sangue 1 0 Dupla Croudal 1 0 Febres 4 3 Ferida no pé 1 0 Hemorragia 0 1 Hidropezia 6 2 Inflamação 2 0 Lesão Orgânica 1 0 Moléstia interna 40 27 Moléstia na Garganta 1 0

Page 93: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

92

Moléstia Moraca 0 1 Pleumonia 1 0 Polmonia Aguda 1 0 Postoma Arrebentada 1 0 Remonção e Perniciosa 1 0 Suspensão 0 2 Tétano Espontâneo 2 0 Total: 107 - 38.35 % Total Geral: 279 Fonte: CDH. Livro de Óbito de Escravos.

Os dados da tabela 14 nos apontam que a tuberculose era uma das causas mortis mais

presentes entre escravos e livres. Concerne ao grupo de doenças Infecto-parasitárias, tendo

causado 10.03 % (28) de óbitos de cativos para todo o período analisado. Entre os livres e

libertos, o mesmo gerou 16.10% (124) de mortes neste grupo de moléstias. Cotejando sua

manifestação entre os dois grupos, ela foi mais fatal para o segundo. Doença antiga em todos

os continentes, inclusive na América, não pode ser pensada como uma doença que atingia

especialmente escravos, como aponta Mary Karasch.174 Nas cidades européias ou americanas,

durante a primeira metade do século XIX, a tuberculose pode ser considerada epidêmica,

apontada como a principal causa de morte nestas cidades. Atingia todas as classes sociais, as

populações rurais deslocadas para as cidades eram as mais suscetíveis, fossem africanos ou

não. 175

Nos óbitos analisados percebemos ao comparar as informações com outras doenças

que geraram morte em Vassouras, uma quantidade significativa de escravos, libertos e de

livres que morreram devido à tuberculose. Do total de mulheres do Livro de Óbito de livres da

Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras atingidas por esta moléstia, 6

(0.78%) eram pretas, 20 (2.60%) brancas, 12 (1.56%) pardas e 11 (1.43%) sem cor atribuída.

O total de descendentes de escravas é próximo ao de brancas, se considerarmos

conjuntamente pretas e pardas. Para os homens: 49 (6.36%) brancos, 6 (0.78%) pretos, 8

(1.04%) pardos e 12 (1.56%) sem cor mencionada. Entre os escravos, 12 (4.30%) mulheres e

16 (5.73%) homens foram atingidos pela doença. Em outras palavras, a tuberculose, atingia

diferentes classes sociais e diferentes etnias existentes na sociedade da Vassouras oitocentista.

174 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 1808 – 1850. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 209-212. 175 CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 7.

Page 94: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

93

Para Diana Maul, “na situação epidêmica, a probabilidade de infecção, e mesmo de

doença, devia ser semelhante para africanos ou não, ricos ou pobres”. 176 Mas a autora não

descarta, no que concordamos, que os desnutridos e explorados, eram as maiores vítimas.

Acreditamos que os escravizados por serem classificados dentre os explorados como mão-de-

obra e desnutridos, devido a má alimentação em muitos dos casos, eram especialmente

atingidos pela tuberculose.

Bexiga ou varíola é a segunda doença do grupo infecto-parasitária que mais gerou

óbito entre escravos. Se a vacinação, ainda em território africano, diminuiu a incidência de

casos desta doença entre os escravos de Vassouras, não tivemos condições nesse momento de

confirmar. Todavia, 7 (2.50%) escravos sucumbiram à ela, 1 (0.36%) homem e 6 (2.15%)

mulheres. Entre os livres esta enfermidade foi fatal para 11 (1.43%) indivíduos, 4 (0.52%)

homens e 7 (0.90%) mulheres. O que nos parece evidente, é que entre os gêneros, o feminino

foi o mais atingido pela doença; entre os grupos, os escravos.

Tabela 15 - Doenças listadas no livro de óbito das pessoas Livres por espécie. 1840-1880.

Homem Mulher Tipo Branco Preto Pardo S/C Branca Preta Parda S/C

Doenças Infecto-Parasitárias Ataque de Bichas 2 - - - - - - - Bexigas 3 - - 1 - - - 7 Câmara de Sangue - - 1 - - - - 1 Cólera 1 - - - - - - - Coqueluche 1 - 1 - 2 1 - - Desinteria 1 - - - 1 - 1 2 Erisipela - - - - 1 - - - Febre Amarela 12 - - 1 1 - - 1 Febre Biliosa 7 - 1 4 3 - 2 1 Febre intermitente 2 - - - 1 - - - Febre Perniciosa 8 - 1 1 - - 1 2 Meningite - - - - 2 - - - Moléstia do Peito 1 1 2 - 1 2 1 1 Opilação - - - 1 - - - - Sarampo - - - - - - 1 - Tétano 1 - - - - - - - Tifóide 4 - - 3 3 1 - 3 Tuberculose 49 6 8 12 20 6 12 11 Vermes 1 - - - 1 - - - Total 93 7 14 23 36 10 18 29 Total Homens: 137 - Total Mulheres: 93 - Total Geral: 230 - 29.87 % Doenças Sistema Respiratório Asma - - - - 1 - - - Apoplexia pulmonar 1 - - - - - - - Bronquite 2 - 1 1 - - 1 -

176 CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 8.

Page 95: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

94

Distúrbios pulmonares - - - - - - - 2 Gripe - - - - 1 - - - Hemopetize - - - 1 - - - - “Hepatiração” do pulmão - - - 1 - - - - Pneumonia 2 - - - - 1 - 1 Pleuris - - - 1 - - - - Tosse - 1 - - - - - - Tosse Convulsa - - - - 2 - - - Total 5 1 1 4 4 1 1 3 Total Homens: 11 - Total Mulheres: 9 - Total Geral: 20 - 2.60 % Doenças Sistema Digestivo Aneurisma da Horta Abdominal - - - 1 - - - - Cirrose do Fígado 4 - 1 - - - - 2 Congestão - - 1 1 - - 1 - Congestão do Bucho - - - - - - 1 - Diarréia 3 - - - - - - - Enterite 1 - - - - - - - Febre Gástrica - - - - 1 - - - Fígado (várias moléstias) 3 - - 2 - - - - Gastrite 1 - - - - - - - Hepatite 1 - - 1 - - - 1 Hérnia Estrangulada 2 - - - - - - - Indigestão - - 1 - - - - - Inflamação do Intestino 1 - - - - - - - Moléstia do estomago - - - 2 - - - - Moléstia Peritonite - - - - 1 - - - Tubérculos Menetéricos - - - - - - - 2 Vermes Intestinais 1 - 1 - 1 - - - Volvo intestino 1 1 - - - - - - Total 18 1 4 7 3 - 2 5 Total Homens:30 - Total Mulheres: 10 - Total Geral: 40 - 5.19 % Sistema Nervoso e Neuro-psiquiatrico Apoplexia 2 - - - - - - - Apoplexia Fulminante 1 - - - - - - - Alienação mental - 1 - - - - - - Amolecimento cerebral 2 - - 2 - - - 1 Ataque cerebral 1 - - - - - - 2 Ataque de cabeça - - 1 - - - - - Cerebral 1 - - - 1 - - - Congestão cerebral 9 - 1 2 1 - 1 2 Convulções 3 - - - 2 - 1 - Demência 3 - - - - - - - Derramamento cerebral - - - - 1 - - - Enfermidade do cérebro - - - - - - - - Epilepsia - - - 1 - - - - “Hemilegia” cerebral - - - - - 1 - - Hemorragia cerebral - - - - - 1 - - Moléstia da cabeça 1 1 - 2 - - - 1 Paralisia 2 - 1 - 1 - - - Paralisia mental - - - - - - 1 - Total 25 2 3 7 6 2 3 6 Total Homens: 37 - Total Mulheres: 17 - Total Geral: 54 - 7.01 % Doenças Primeira Infância Catarro Sufocante 6 - - 1 1 - 1 - Dentição 8 - - - 5 - 2 - Espasmos 4 - 4 1 2 - - 2 Mal dos sete dias 2 - - - - - - - Total 20 - 4 2 8 - 3 2 Total Homens: 26 - Total Mulheres: 13 - Total Geral: 39 - 5.06 % Mortes Violentas ou Acidental

Page 96: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

95

Afogado 2 - 1 1 - - - - Assassinado 2 - 2 1 - - - - Degolado 1 - - - - - - - Desastre 3 - 1 1 - - - - Envenenamento - - - - - - - 1 Facada - - - 1 - - - - Fratura espinha - 1 - - - - - - Picada de Cobra - - - - 1 - - - Queda 1 - - - - - - - Queimadura - - - - 1 - 1 - Quebradura 1 1 - - - - - - Suicídio 1 1 - 2 - - - - Tiro - - - 2 1 - - - Total 11 3 4 8 3 - 1 1 Total Homens: 26 - Total Mulheres: 5 - Total Geral: 31 - 4.03 % Doença Sistema Circulatório Angina - - - 1 - - - - Aneurisma - - - 1 - - 1 - Aneurisma da Aorta 1 - - - - - - - Coração 20 4 - 9 2 5 1 7 Delatação Aortica - - - - - 1 - - Ectasia da Aorta 1 - - - - - - - Total 22 4 - 11 2 6 2 7 Total Homens: 37 - Total Mulheres: 17 - Total Geral: 54 - 7.01 % Doenças do Sistema Osteomuscular e Reumáticas Fratura - - - - - - - - Gota - - 1 - - 1 - - Moléstia espinha dorsal - - - - 1 - - - Reumatismo 1 - - - - - - - Total 1 - 1 - 1 1 - - Total Homens: 2 - Total Mulheres: 2 - Total Geral: 4 - 0.52 % Gravidez e Parto Cancro no útero - - - - 1 1 - 1 Parto - - - - 1 1 2 6 Tumor no útero - - - - - 1 - - Total - - - - 2 3 2 7 Total Geral: 14 - 1.82 % Doenças Geniturinárias Bexiga 1 - - - - - - - Moléstia órgãos urinários - - - 1 - - - - Ulceras venéreas - - - - - - - - Total 1 - - 1 - - - - Total Homens: 2 - Total Mulheres: 0 - Total Geral: 2 - 0.26 % Doenças de Pele Elefantíase - 1 - - - - - - Total - 1 - - - - - - Total Homens: 1 - Total Mulheres: 0 - Total Geral: 1 - 0.13 % Idade Avançada Catarro Senil 1 1 - - 1 1 - - Catarro Sufocante - 1 - - - - - - Gangrena Senil - - - - - 1 - - Marasmo - - 1 1 - 1 - - Velhice - 1 - - 1 1 - - Total 1 3 1 1 2 4 - - Total Homens: 6 - Total Mulheres: 6 - Total Geral:12 - 1.56 % Doenças Conhecidas Alcoolismo - - - - - - - 1 Cancro - 1 - - - - - - Laringite - - - - 1 - - - Nevralgia - - - - - - 1 -

Page 97: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

96

Total - 1 - - 1 - 1 1 Total Homens: 1 - Total Mulheres: 3 - Total Geral: 4 - 0.52 % Doenças mal Definidas Anasarca 2 2 - - - - - - Anemia / Anemia geral - - - - 1 - - - Acesso Pernicioso - - 1 - - - - - Ataque 2 - 2 1 2 - 1 1 Ataque Epeletiformes - - - - - - 1 - Ataque de Estencos - - - - - - 1 - “Cachesia” 2 - 2 2 - - - - “Cachesia Sifilica” 1 - - 1 - - - 1 Congestão - - - - 1 - - - Despelsia Petalosa - - - - - - - 1 Diarréia de Sangue - - - - - 1 - - Diathese Lactosa - - - 1 - - - - Eachtismo e Ostro 1 - - - - - - - Entras na nuca 1 - - - - - - - Epigem 1 - - - - - - - Efrigem - - - - 1 - - - Febre 24 - 2 3 10 5 3 1 Febres - - - 1 - - - - Febre Adynamica 1 - - - - - - - Febre Álgida 1 - - - 1 - - - Febre Paludosa 1 - 1 1 1 1 - - Fogo Bravo - - - - - - 1 - Hemiplagia 1 - - - - 1 - - Hidropezia - - - 2 1 1 - 1 Hymplesia - - - - - 1 - - Hypigite 1 - - - - - - - Inflamação 2 - 2 - 2 1 - - Lesão orgânica 2 - - - 1 - - - Lepticemia - - 1 - - - - - Longa enfermidade - - - 1 - - - - Moléstia interna 45 3 8 4 37 11 9 5 Marasmo - - - 1 - - - - Moléstia orinas 1 1 - - - - - - Moléstia de peucomonia - - - - - - - - Mephasia ou Hepais - 1 - - - - - - Plenepomonia 1 - - - 1 - - - Repentinamente 9 2 1 5 1 1 1 2 Ulcera Crônica - - - - - 1 - - Ulceras Nasais - - - - - 1 - - Total 99 9 20 23 60 25 17 12 Total Homens: 151 - Total Mulheres: 114 - Total Geral: 265 - 34.42 % Total Geral: 770 - 100% Fonte: Livro de Óbitos das pessoas Livres da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.

No caso da Febre Amarela, o indivíduo estaria imunizado por alguns anos se fosse

infeccionado em tempos pretéritos. Em outras palavras, a falta de contato anterior com a

infecção, levou muitos estrangeiros livres a morte, conforme nos informa Mary Karasch. Na

análise do livro de óbitos de escravos, ainda seguindo as tabelas 14 e 15, nenhum caso da

doença causou morte neste grupo. Mas entre os livres e libertos, significou a morte de 13

(1.69%) homens, sendo 12 brancos e 1 sem cor mencionada; e 2 (0.26%) mulheres, 1 branca e

Page 98: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

97

1 sem cor, representando 6.52 % das causas mortis do grupo de doenças infecto-parasitárias.

A febre biliosa e a malária fizeram um número de mortes nos navios que aportaram na ilha de

Moçambique. O número de mortes provavelmente foi grande, devido ao descumprimento da

recomendação portuguesa para não se aportar na costa da África no retorno das Índias. 177

As doenças respiratórias acometiam muitos escravos na sociedade escravista de

Vassouras. Vários são os fatores que corroboraram para a existência dos males pulmonares.

Algumas fazendas, na década de 1860, adotaram ventiladores movidos a força, que segundo

Stanley Stein, aumentou a poeira dos engenhos, elevando o grau de insalubridade nos

escravos, “percebido pelo hábito de tossir e cuspir acompanhado de complicações

respiratórias”.178 Os escravos tiveram 8.60 % (24) de mortes relativas a esta causa. Os

indivíduos livres e libertos apenas 2.60% (20). Se compararmos todos os grupos de doenças

relacionados, podemos verificar que neste, se encontra a maior diferença. Nos períodos mais

frios do ano uma simples gripe poderia ser tornar uma pneumonia.

Os africanos, segundo Mary Karasch, eram mais suscetíveis a estas doenças e

“aparentemente tinham uma mortalidade mais alta e maior probabilidade de morrer delas que

os brancos”. 179 Neste grupo de moléstias, a pneumonia foi a mais expressiva para os

escravos: 3.94% do total das doenças registradas: 10 (3.58%) homens e 1 (0.36) mulher

tiveram como causa mortis a pneumonia. Para o mesmo grupo, a Bronquite (0.71%) foi mais

representada entre os indivíduos do segundo grupo: 4 (0.52%) homens, 2 brancos, 1 pardo e 1

sem cor informada. Entre as mulheres apenas 1 (0.13%) parda.

O Sistema Digestivo, como observamos nas tabelas 13 e 14, foi responsável pela

morte de 4.30% dos escravos e 5.19% de livres e libertos. Se no Rio de Janeiro era o segundo

grupo mais letal das moléstias, em Vassouras ocupou o sexto lugar. Provavelmente, como

assinala Mary Karasch, os médicos do século XIX utilizavam a diarréia para justificar a morte

de um escravo. Pouca higiene, precário saneamento, má manuseio de alimentos e a

proximidade dos mesmos com lixo como descrito no capítulo I, são fatores que podem estar

intimamente relacionados à estas doenças.

Moléstias do Sistema Nervoso afetaram e levaram a morte 7.89% de escravos e 7.01%

de livres e libertos, segundo as informações dos Livros de óbito da paróquia. Entre os cativos

177 CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 15. 178 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 65. 179 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 1808 – 1850. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 242.

Page 99: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

98

ocupavam o quarto lugar dos problemas de saúde que mais ocasionaram mortes, sendo a

“Congestão Cerebral” a mais evidente. Dela faleceram 7 (2.51%) homens escravos. Ela

também foi significativamente importante entre libertos e livres, 12 (1.56%) homens e 4

(0.52%) mulheres. A segunda mais mencionada foi a Apoplexia: 4 (1.43%) mulheres

escravas. Somente 2 (0.26%) homens do segundo grupo foram vítimas da doença.

“Amolecimento Cerebral” e “convulções” foram as enfermidades mais comuns do sistema

nervoso entre os indivíduos livres.

Doenças relativas ao Sistema circulatório somam 31 (11.11%) entre os escravos: 13

(4.66%) homens e 18 (6.45%) mulheres. Os livres e libertos somam 54 (7.01%): 37 (4.80%)

homens, sendo 22 brancos, 4 pretos e 11 sem cor. Mulheres foram17 (2.21%), 2 brancas, 6

pretas, 2 pardas e 7 sem cor. Escravos morriam em maior número que os livres de causas

cardíacas. Se no Rio de Janeiro poucos escravos morreram de problemas do coração na

primeira metade do século XIX, em Vassouras a partir da segunda metade do mesmo século,

foi o segundo maior grupo de mortes identificadas entre os escravos. Entre os livres e libertos

as descrições são mais específicas: angina e aneurisma. Nos inventários apenas 12 (0.58%)

escravos traziam alguma doença cardíaca mencionada.

Crianças ainda na primeira infância somavam um grande número de mortos, entre

escravos, libertos e livres. Contudo, a causa mortis não foi informada na maioria dos casos.

As que tiveram alguma doença mencionada representam 0.36% e as livres e libertas 5.06% do

total de moléstias no seu grupo específico. Crianças escravas e livres eram vulneráveis às

doenças nos séculos XIX. Muitas não ultrapassavam os sete anos de idade. As livres morriam

de dentição, mal-dos-sete dias – doenças específicas da primeira infância -, as escravas não

tinham a causa mortis informada na maior parte dos assentos de óbitos. Além dessas causas

mortis, houveram outras que também levavam ao óbito indivíduos adultos.

Seguindo os indícios dos Livros de Óbitos, doenças associadas a gravidez pouco

matavam. Mulheres escravas correspondem a 1.44% das que morreram de algum mal

relacionado a este, enquanto as livres e libertas à 1.82%. As cativas que tiveram alguma

moléstia do gênero e foram contabilizadas nos inventários, são 0.58% do total quantificado.

Devemos considerar da mesma forma, que muitos registros não traziam a verdadeira

causa mortis, como nos demonstra Stanley Stein, pois, “tão difundido era o uso do chicote

que termos como apoplexia fulminante e congestão cerebral eram empregados como

esclarecimento médico para mortes induzidas pelas chicotadas”. 180Os castigos físicos eram

180STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 173.

Page 100: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

99

certamente um dos motivos que levavam ao sepultamento precocemente escravos nas

fazendas de Vassouras. E provavelmente daí decorra termos utilizados como causa mortis que

não encontram explicações científicas hoje. Mas se a prática de castigos era usual na

sociedade escravista, porque camuflá-la nos registros?

Sabemos que a proposta de Ambrozio de Souza Coutinho, um dos fundadores de

Vassouras, nos regulamentos municipais de 1829 sobre possíveis punições para senhores que

maltratassem seus escravos com pancadas, chicotadas ou práticas desumanas comprovadas

por testemunhas, fora recusada.181 Então, porque escamotear os fatos verdadeiros que levara a

morte um escravo? Na percepção de alguns fazendeiros, o escravo era uma propriedade.

Talvez aí se encontre uma solução para as muitas questões que surgiram com esse trabalho. A

preocupação com a visão da sociedade da época pode ter sido uma das causas para tal fato,

tendo em vista que o status social era algo importante; ou seja, o fazendeiro poderia não ser

bem visto pela opinião pública ao tratar seu escravo de forma “desumana”. Outra

possibilidade de análise seria porque muitos assentos eram feitos pela igreja, que tinha o

domínio simbólico sobre a ideologia da época.

O escravo de Geraldo de Souza Correia foi encontrado açoitado até a morte nos cafezais da fazenda vizinha de Felix do Nascimento Costa. Diziam que o capataz de Costa, Manoel da Ilha, recebeu ordens para chicotear todos os escravos que usassem um caminho próximo para retornar às suas fazendas vindos de uma venda no campo. O magistrado municipal registrou que o escravo havia morrido de congestão cerebral – exatamente os termos usados quando outro médico examinou o cadáver de Constança, uma escrava surrada até a morte por sua senhora, esposa de um Oliveira Barcellar. 182

Mortes violentas foram pouco representadas nos registros oficiais da igreja para livres,

libertos e escravos. Suicídio, afogamento, tiro, mordida de cobra são os mais comuns. Estas

respondem pela morte de 5.01 % escravos e de 4.03 % livres e libertos, sendo 14 brancos, 3

pretos, 5 pardos e 9 sem cor entre homens e mulheres. Os suicídios que aparecem em poucos

registros, podem ser lidos como uma forma de resistência escrava à sua condição jurídica. As

resistências podiam ser pacíficas, no caso das fugas ou da negação ao trabalho. Mas também

podiam ser violentas, como assassinato de senhores ou feitores. Alguns escravos utilizavam a

força para fugir de castigos já declarados, outros por meio de uma faca ou qualquer objeto

181 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 170-171. 182Idem . Ibidem. p. 171.

Page 101: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

100

cortante, tiravam a própria vida, como sugerem os registros de óbito.183 O maior percentual de

doenças são as que não ficam bem definidas para escravos, livres e também nos inventários.

Respectivamente são 38.35%, 34.42% e 34.58%.

Nos inventários, as doenças são informadas condicionadas ao valor que deveria ser

atribuído ao escravo. Portanto, de forma diferente da apresentada nos assentos de óbitos. O

que interessava neste tipo de documento, é se a doença impossibilitaria o cativo para o

trabalho, diminuindo o valor do patrimônio a ser considerado.

Tabela 16 - Doenças e Defeitos de Escravos listados nos Inventários post mortem: 1840-1880. Doenças infecto-parasitárias 1840-49 1850-59 1860-69 1870-79 1880 Bexiga 0 0 1 0 0 Bouba 5 5 3 0 0 Eerisipela 1 1 4 0 1 Opilação 2 7 12 5 0 Tuberculose 0 0 2 1 0 Total 50 – 2.44% Sistema Digestivo Barriga 0 0 3 0 0 Fígado 0 1 0 1 0 Estomago 0 2 1 0 0 Intestinos 0 1 0 0 0 Total 9 – 0.44% Sistema Respiratório Asma 0 3 10 11 1 Doente do Peito 2 7 7 0 0 Sofre do Peito 0 0 1 1 0 Total 43 – 2.10% Sistema Nervoso Ataque de Nervos 0 0 1 0 0 Eplepsia 0 0 1 0 0 Total 2 – 0.10% Doenças Mentais Apatetado 0 2 0 0 0 Apatetado sem Valor 0 1 0 0 0 Ataque da Cabeça 0 1 0 0 0 Demente 0 2 1 0 0 Demente sem Valor 0 0 1 0 0 Doença Mental 2 0 2 2 0 Doido 0 1 0 1 0 Doido sem Valor 0 1 1 1 0 Histérica 1 0 1 0 0 Idiota 0 0 0 1 0 Idiota sem Valor 0 1 1 2 0 Louco sem Valor 0 0 1 0 0 Maníaco 0 0 1 0 0 Maluco 0 1 3 0 0 Maluco sem Valor 0 2 0 1 0 Sofre da Cabeça 0 0 1 0 0 Total 36 – 1.76% Sistema Circulatório Coração 0 1 6 3 0 Coração sem Valor 0 0 2 0 0

183 Idem . Ibidem. p. 176.

Page 102: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

101

Total 12 – 0.58% Doenças do Sistema Osteomolecular Gota 2 9 7 12 0 Gota sem Valor 0 1 0 0 0 Reumatismo 0 3 8 9 0 Total 51 – 2.48% Sistema Geniturinário Doente dos Rins 0 0 0 1 0 Defeituoso nos Escrotos 1 0 0 0 0 Total 2 – 0.10% Perda/Deficiência de um dos Sentidos Cego 3 6 2 1 0 Cego de um olho 5 8 14 7 1 Caolho 0 1 0 1 0 Quase cego 1 1 4 0 0 Cego sem Valor 1 1 9 7 0 Ferida no Olho 2 1 0 0 0 Sofre das Vistas 0 1 3 2 0 Torto de um olho 0 1 0 0 0 Belide 1 3 1 1 0 Mudo 0 1 1 0 0 Surdo 0 1 4 0 0 Surda Muda 0 1 0 0 0 Rouquidão 0 1 0 0 0 Zarolho 0 0 0 1 0 Doente dos olhos 0 8 1 0 0 Doente dos olhos sem Valor 0 1 0 0 0 Doente dos ouvidos 0 1 0 0 0 Doente do ouvido e olhos 1 0 0 0 0 Doente e surda 0 0 1 0 0 Total 112 – 5.46% Defeitos Físicos Defeituosos 16 11 26 31 1 Defeito Natural 0 0 0 1 0 Defeito nas pernas 1 0 2 3 0 Defeito nos Pés 1 1 7 4 0 Defeito pés e pernas 1 0 0 0 0 Defeito no braço 1 2 3 2 0 Defeito na mão 0 0 1 1 0 Defeito nos olhos 1 0 1 1 0 Defeito nas costas 1 0 1 0 0 Defeito no peito 0 1 0 0 0 Defeituoso sem valor 0 0 0 1 0 Corcunda 0 0 0 2 0 Pequeno defeito 0 0 1 0 0 Total 126 – 6.15% Aleijados Diversos Aleijado (a) 11 38 36 37 1 Aleijado brado 0 1 2 0 0 Aleijado mão (s) 0 4 2 4 0 Aleijado Perna (s) 1 4 0 3 0 Aleijado perna sem valor 0 0 1 0 0 Aleijado pé 0 2 2 1 0 Aleijado sem valor 0 1 3 1 0 Aleijado por ser gordo 0 0 1 0 0 Total 157 – 7.66% Doenças mal Definidas Doente 57 125 197 197 6 Doente sem valor 2 6 8 2 0 Doente de Cravos 0 1 0 0 0

Page 103: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

102

Doente Crônico 0 0 1 0 0 Doente das Cadeiras 0 2 1 0 0 Doente “escrophuloso” 0 1 0 0 0 Dor no peito 1 0 1 0 0 Sempre Doente 0 9 0 0 0 Meio Lerdo 0 0 0 1 0 Muito Doente 8 11 15 5 0 Muito Doente sem Valor 0 4 3 0 0 Preguiça 0 0 1 0 0 Adoentado 0 3 2 0 0 Achacoso 2 0 0 0 0 Feridas 0 0 5 0 0 Ferida Crônica 2 4 0 0 0 Com Feridas 3 10 3 1 0 Quartado 0 4 1 0 0 Queixa de Dor 0 1 0 0 0 Sofre de Lesão 0 0 0 1 0 Sofre de Ataques 0 0 1 0 0 Sofre da Junta 0 0 1 0 0 Total 709 – 34.58% Doenças ligadas ao trabalho/Acidentes Quebrado 20 67 89 113 4 Quebrado a virilha (s) 4 3 3 0 0 Muito Quebrado 0 0 0 1 0 Descadeirado 0 1 0 0 0 Rendido 2 3 0 11 0 Rendido de uma virilha 1 1 1 0 0 Torto 1 0 3 0 0 Entrevado 0 1 0 0 0 Paralítico 0 1 3 4 0 Paralítico sem valor 0 1 1 1 0 Inutilizado 0 0 0 3 0 Inutilizado sem valor 0 0 1 3 0 Inválido 1 3 9 24 0 Inválido sem valor 0 1 14 16 1 Moléstia sem valor 0 0 0 1 0 Moléstia incurável sem valor 0 0 0 0 1 Quase inutilizado por moléstias 0 0 0 1 0 Quase paralítico braço e perna esq. 0 0 1 0 0 Total 419 – 20.44% Defeitos que prejudicavam o trabalho: pés e pernas Cambaio 0 1 0 0 0 Cambeta 0 0 4 1 0 Cambeta das pernas 0 2 0 0 0 Capenga 0 0 1 0 0 Chaga antiga em uma perna 1 0 0 0 0 Chaga incurável em uma perna 2 0 0 0 0 Coxo (a) 0 1 1 0 0 Doente dos pés 2 1 1 0 0 Doente da (s) perna (s) 1 0 1 0 0 Dores nas pernas 0 2 0 0 0 Ferida na perna 2 1 4 0 0 Mal das pernas 0 0 0 1 0 Manco (a) 0 2 1 2 0 Maneta 0 1 0 0 0 Pés inchados 1 1 4 0 2 Perna de pau 0 1 4 1 0 Perna inchada 0 0 0 3 0 Perna cortada 0 0 0 1 0 Pernas Sambas 0 1 0 0 0

Page 104: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

103

Perna Fraturada 0 0 1 0 0 Sofre das pernas 0 0 1 0 0 Torto das pernas 7 8 14 3 1 Ulcera Crônica na perna 1 0 0 0 0 Zambra das pernas 0 1 1 0 0 Total 93 – 4.54% Doenças prejudiciais ao trabalho: mãos e braços Doente das mãos 0 0 2 0 0 Fistula embaixo do braço 1 0 0 0 0 Paralítico do braço 0 0 1 0 0 Sem uma mão 0 0 1 0 0 Total 5 - 0.24% Doenças e Defeitos conhecidos ou identificados Cancro 0 0 0 1 0 Cancro no Nariz 0 0 0 1 0 Elefantíase 1 2 2 4 0 Embriaga-se 0 0 0 1 0 Espinha (sofre) 0 0 0 1 0 Gordo 0 1 0 0 0 Hérnia (todos os tipos) 2 4 0 1 0 Hidropezia 0 1 0 0 0 Rutura no umbigo 1 0 0 0 0 Moléstia crônica no nariz 0 1 0 0 0 Ferida no umbigo 0 1 0 0 0 Morfético (lepra) 0 2 1 2 0 Principio de Cólera 0 1 0 0 0 “Phistuloso” 0 0 0 1 0 Lazaro (doença de chagas) 0 2 0 0 0 Beiçudo sem valor 0 1 0 0 0 Elefantíase sem Valor 0 1 0 0 0 Hidropezia sem Valor 0 0 1 0 0 Morfético sem Valor 0 0 4 3 0 Lazaro sem valor 1 0 0 0 0 Total 41 – 2% Doenças da Pele e Sistema Celular Subcutâneo Ferida Cancrosa face e corpo 0 1 0 0 0 Hidrópica tumor espalhado pelo corpo 0 1 0 0 0 Mancha branca 0 1 0 0 0 Total 3 – 0.15% Idade Avançada Idoso 0 5 1 0 0 Velho (a) 2 35 81 3 0 Velho doente 0 1 2 0 0 Velho quebrado 0 3 1 0 0 Velho aleijado das mãos 0 1 0 0 0 Muito velho 1 5 7 4 0 Velho sem valor 0 3 2 0 0 Muito velho sem valor 0 4 4 0 0 Total 165 – 8.05% Mais de uma moléstia Barriga d’água e congestão do fígado 0 0 1 0 0 Hérnia e Reumatismo 0 1 0 0 0 Moléstia coração e morfética 0 0 1 0 0 Doente mental e opilado 0 0 1 0 0 Rouquidão e manchas no corpo 0 1 0 0 0 Total 5 – 0.24% Doenças ligadas a gravidez Útero 0 2 0 4 0 Metrite crônica 0 0 1 0 0 Parto 0 0 1 0 0

Page 105: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

104

Total 7 – 0.34% Desnutrição Caquético 1 0 1 0 0 Raquítico 0 0 1 0 0 Total 3 – 0.15% Total Geral: 2.050 – 100% Fonte: CDH. Banco de dados, Inventários post mortem, 1840-1880. Neste corpus documental, são catalogadas doenças ou imperfeições de cativos por

décadas. Comparando com as que causavam óbitos temos uma inversão dos valores atribuídos

a cada um dos grupos. Se entre eles nos livros paroquiais as infecto-parasitárias eram as

responsáveis pelo maior número de óbitos, nos inventários elas significam apenas 2.44%. As

relacionadas ao sistema respiratório são 2.10% e entre os escravos representam 8.60% do

total. As de maior vulto são as moléstias que geravam defeitos e deficiências de um modo

geral. Se levarmos em conta as relacionadas à visão, audição, invalidez, obesidade, defeitos

nos membros inferiores e superiores, teremos um total de 46.97%. Consideramos que a

relação existente entre imperfeições, moléstias e patrimônio, norteavam as anotações feitas

nos inventários post mortem.

Algumas moléstias não afastavam, ao menos inicialmente, o escravo de suas

atividades, não significando perda de mão-de-obra e de capital. Gonçalo crioulo, embora

doente, foi avaliado em 1.400.000 réis. Da mesma forma, José Pinto de Nação 42 anos, perna

de pau que teve seu preço estimado em 1.200.000 réis. Mesmo sem um membro alguns

cativos tinham um custo, como Sabino 5 anos sem um braço, 400.000 réis. Outras, entretanto,

constituíam perda no total do patrimônio, pois o cativo não teve nenhum valor a ele atribuído.

Este é o caso de Eva, Nação com 50 anos de idade, doente; Maria casange diagnosticada

como demente; Delfino aleijado e Floriano, inválido. Muitos são os impossibilitados para o

trabalho por doenças congênitas ou adquiridas que representam uma perda de patrimônio.

Os idosos correspondem um grupo específico. O fator idade já incidia no preço deste

cativo e se doente o tornava inválido. No ano de 1860, Pedro nação Moçambique, foi

considerado muito velho e sem valor. Algumas doenças eram peculiares da senilidade

causando a morte de 1.56% dos livres e libertos. Entre os escravos faleceu em 18 de agosto de

1880 de moléstia interna e velhice, Manoel preto africano com 70 anos. Nos inventários

8.05% dos cativos tiveram anotações relativas a idade avançada.

Page 106: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

105

3.2 – Doenças e Manuais.

Imbert em seu Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as enfermidades

dos negros com segunda edição em 1839 (a primeira havia sido publicada cinco anos antes),

aumentado e ampliado em mais um volume, demonstra a importância do mesmo para os

proprietários de escravos que não tinham fácil acesso a um cirurgião ou médico em suas

fazendas cotidianamente. Ele o dedica a todas as classes.

Logo no início do seu manual, deixa pistas da importância de um trabalho nestas

proporções para o cotidiano nas fazendas de café, no referente aos cuidados com os cativos.

Agradecendo o “acolhimento tão favorável” da primeira obra, indica o incentivo para a nova

edição. Embora a data da segunda publicação seja anterior a lei Euzébio de Queiros em 1850,

devemos ter em conta que fatores internos e externos geravam preocupação em torno da mão-

de-obra cativa. A pressão inglesa para o fim do tráfico transatlântico já existia desde 1830.

Rebeliões e quilombos levavam fazendeiros a rever seus métodos de controle sobre seus

escravos. Destarte, manter a propriedade escrava existente poderia garantir a sobrevivência da

fazenda quando o acesso à mão-de-obra não fosse tão ostensivo. O autor se predispunha a

atender às necessidades urgentes da falta da medicina e de independência dos senhores

fazendeiros, que se encontravam “isolado, bem que no meio de huma [sic] rica e vasta

propriedade povoada de grande número de escravos”.184

A introdução faz menção aos povos civilizados e a tentativa destes em por fim ao

tráfico de escravos, “designada pelo nome de commercio de escravatura”.185 O comércio de

sangue descrito por Imbert é questionado, demonstrando já antes de 1850, existir uma

preocupação com o seu fim. Ele menciona Inglaterra, França, América do Norte, colocando o

Brasil dentre eles, como países que tinham representantes contra o comércio de cativos.

Quanto ao fim da escravidão ele afirma:

Ella só tem fallado ao futuro; nem podia sem injustiça endereçar-se ao passado: fôra defender direitos adquiridos, e causar perturbação e desarranjo nas fortunas. A escravidão subsiste pois ainda em grande parte nas Ilhas e no Continente Americano, particularmente no Brasil; mas aqui será incontestavelmente mais doce e mais humana, pois que a difficuldade de dar

184 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 12. 185Idem . Ibidem. p. 11.

Page 107: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

106

substituição ao que se possue fará recorrer os meios os mais convenientes de conservar o que já se tem. 186

Pensando justamente em conservar sua propriedade, deveriam os senhores atentar para

a condição de vida de seus cativos, indispensáveis para o trabalho nas terras de fazendeiros

que se encontravam isolados no amplo território do Império. “Lhes [é] forçoso exercer a

medicina” 187 em socorro de seus familiares e dos negros, que segundo Imbert, eram mais

susceptíveis de contrair doenças. Nesta conjuntura, decorrem as menções ao modo de vida de

escravos, que muito contribuía para a ocorrência de enfermidades.

Diferenças físicas e intelectuais entre negros e brancos são destacadas, onde aquele é

inferior a este, devido a isso mais propenso às corrupções morais. Taunay defende esta tese,

identificando-as por “doenças fingidas” e as mesmas deveriam ser combatidas com o devido

rigor. O negro na concepção do doutor Imbert, nasceu para o trabalho forçado e para residir

em climas quentes. O clima no Brasil, embora muito quente, é úmido devido às intensas

chuvas, o que torna os escravos mais susceptíveis há algumas doenças.

No capítulo I de seu manual, o doutor Imbert aponta as características que devem ser

consideradas ao se comprar um escravo, recorrendo a um cirurgião ou médico, que emite um

juízo considerando o preço no mercado. Demonstra as diferenças entre os negros do Alto

Guiné ou da Costa do Ouro, com o do Baixo Guiné, ou do Reino do Congo. E a partir de

traços físicos define e segrega o bom do mal escravo, o que serviria aos propósitos dos

fazendeiros ou não. 188 O capítulo II apresenta os cuidados gerais que se deveria ter com os

doentes. No seguinte, trata dos temperamentos, esse sempre associados a doenças.

A cirurgia popular ocupa o capítulo IV indicando métodos de primeiros socorros. O

Título II trata da “physiologia”, incluindo noções de anatomia humana. Esta necessária para

se aplicar alguns medicamentos e no diagnóstico de doenças. Cirurgia popular, febre,

“morphea”, elefantíase, tétano, opilação, escorbuto, impingens, erisipela, tísica pulmonar,

bobas, Hydrophobia, Bexigas, Sarampo, tosse convulsa, Hemopthise, Apoplexia, Desynteria,

gastrite, inflamação do fígado, moléstias verminosas, Hydropesia, moléstias principais dos

órgãos da respiração, moléstia do cérebro, moléstias das mulheres, doenças das crianças, têm

um capítulo específico. Da mesma forma, tratamento das moléstias, substâncias medicinais

186 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 12. 187 Idem . Ibidem. p. 13. 188Idem . Ibidem. capitulo I. p 4.

Page 108: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

107

são devidamente incluídos no manual, bem como o nome que recebem em cada local do vasto

território do Império do Brasil.

O Manual do Agricultor Brazileiro ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos

negros, de 1839 de Taunay é um compendio da obra do doutor Imbert. Nele, o autor lista as

principais doenças que acometiam os negros: Bicho dos pés, Bobas, Cabeça de prego e

Entraz, Constirpação, Contusões, Convulsões, Coquelucha, Doença dos olhos, Doenças

Fingidas, Dysenteria, Erysipelas, Febres Intermittentes, Perniciosas, Terçans e Quartans,

Impingem, Lombrigas, Mal Venéreo ou Syphillis, Retenção de Ourinas, Sarna e Tétanos.

Neste “pequeno tratado”, assim Taunay o qualifica, detém-se em explicar alguns

sintomas, características das doenças, como tratá-las, principais alimentos que poderiam

ajudar na recuperação, como extrair alguns tipos de mazelas e principais cuidados. Entretanto,

não menciona as doenças que mais matavam escravos como tuberculose e pneumonia,

segundo a análise dos registros de óbito de Vassouras. Supomos que tais doenças não

mereciam gastos, tendo em vista que levavam à morte. Nos ateremos aqui nas doenças que

mais aparecem tanto nos registros de óbitos, quanto nos inventários post mortem.

Bobas é classificada como endêmica, se dividindo em boba secca e boba humida,

ambas são mais recorrentes nas partes genitais, mas podem ocorrer em outras partes do corpo.

Sendo mencionada tanto nos Registros de óbitos, quanto nos inventários. O tratamento é o

mesmo para as duas. Note-se a especificação para cada passo a ser dado:

banhos trepidos pela manhã e de noite, ou mesmo loções locaes da mesma agoa tépida tres vezes ao dia; depois da loção enxuga-se com hum pano secco, mas sem esgregar, e salpica-se em cima mercúrio doce. O resguardo mais restrico he de rigor, e a bebida, deve ser decocção de salsa, de 8 a 10 chicaras por dia; a cura se fecha por algumas purgas salinas. 189

A preocupação com a higiene é inconteste, o que sugere que banhos não eram tão

comuns entre os cativos, sendo necessário ficar registrado por escrito, como uma medida a ser

tomada para a cura da doença. Entre os proprietários, parece não ter havido uma higiene

muito melhor, tendo em vista a importância dada aos banheiros na construção de fazendas.

Segundo Stanley Stein, “os banheiros não eram partes essenciais na maioria das fazendas;

bacias para banhos, como tinas, e inúmeros urinóis com ou sem tampas, sugeriram a riqueza

189 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 258.

Page 109: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

108

de uma determinada família”.190 Desta forma, justifica-se o recorrente incentivo à prática de

banhos descritos no manual de Taunay.

Havia também, ainda se tratando da doença de Bobas, uma individualização para o

tratamento no campo. O que propõe pensarmos em formas diferentes de uma mesma

enfermidade se manifestar em espaços distintos. Para o campo, embora houvesse uma

aproximação quanto à higiene, distingue-se o uso de precipitado vermelho de mercúrio ou

como conhecido vulgarmente, segundo o próprio Taunay, “pós de Joannes”. Menciona

ingredientes da cura presente entre frutas, que provavelmente eram de fácil acesso para a área

rural, como “polpa de banana” e “limão”, este deveria ser utilizado para a limpeza das chagas.

O medo da contaminação ocorre por ser contagiosa não apenas pelo contato, mas por vias

desconhecidas naquele momento.

A “Dysenteria” é mencionada tendo como principal característica as evacuações

sanguinolentas, muitas vezes aparece como “diarrea de sangue”. Sendo geralmente

acompanhadas de “dores vivas e comichões”, não parecendo nenhum mistério para Taunay,

que a afirma “bem caracterizada”. Até mesmo o aspecto do excremento fecal é explicitado

neste tratado. Para o auxílio do tratamento com banhos trepidos e ventosas sobre os pontos

doídos do baixo-ventre, alia-se uma dieta com base no consumo de arroz e “huma lisana de

gomma”.

O período que segue a provável cura, demanda outro gasto para o proprietário. Afirma

Taunay que “acontece não raras vezes que, sarada a dysenteria, os negros se entregarão a hum

appetite voraz, e comem desesperadamente”191. Manifestação que será percebida nos

primeiros dias, evitando assim qualquer gasto a mais, pois os negros após a cura poderiam se

aproveitar da condição de doentes em tratamento e continuar a dar despesas alimentícias ao

seu senhor. A intensidade em afirmar que as refeições deveriam ser em número de três pelo

próprio Taunay, sugere haver uma preocupação com este tipo de gasto. Frequentemente, pela

falta de uma dieta mais apropriada, os escravos ficavam mais suscetíveis à algumas moléstias.

Nos casos de recaídas, que poderiam ser fatais, aconselha-se um tratamento mais

ofensivo e uma dieta que não deveria ser modificada, sendo a única possibilidade de reverter

o caso do doente e sua possível morte e perda de propriedade para o senhor. O que

provavelmente era uma grande preocupação, tendo em vista o custo da propriedade escrava.

190 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 71. 191 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 200.

Page 110: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

109

As febres ganham um espaço significativo dentre as doenças selecionadas por Taunay.

Mencionadas nos registros de óbitos de escravos e livres, não são citadas nos inventários post

mortem. Geralmente, estão associadas ao local de trabalho, pois as mesmas ocorrem “em

certas circunstâncias de localidade (sobretudo a “humidade” do solo e as “aguas

enchercadas”), bem como as estações chuvosas podem promover estas febres”. Apresentam

como características a “completa desapparição dos accidentes fora das horas dos acessos,

porque os doentes até sentem appetite e somente se queixão de fraqueza”.192 Ele divide o

acesso em quatro períodos, primeiro abatimento ou má disposição física e moral, segundo

calafrios, terceiro calor e por último suor. Estes seriam os principais sintomas para as

chamadas febres.

O tratamento recomendado nos casos em que não se apresentam grandes dores de

cabeça e do corpo, seria o descanso, bebidas quentes e emolientes, sobretudo uma dieta

severa, e poucos dias depois estaria curado o dito escravo portador deste mal. Assim são

mencionados os cuidados necessários com febres intermitentes, do quinto ao sétimo acesso

não podiam ser interrompidas.

As febres perniciosas são identificadas quando “o calefrio se prolonga em demasia,

sendo acompanhado de desfallecimentos, syncopas, convulsões, alteração profunda das

feições, etc.”193 Em se tratando deste caso deve-se interrompê-la antes do terceiro acesso. O

tratamento adequado para as chamadas febres terçãs com intervalo de dois dias entre cada

acesso, deve-se primar por uma dieta à base de sopa leve ou mingau, se abstendo do uso de

purgantes no tratamento das intermitentes. Se o indivíduo fosse “jovem e robusto”, o

tratamento também indicado seria a sangria, uma prática bem utilizada na cidade do Rio de

Janeiro, onde a maioria dos sangradores era escravo ou ex-escravo. Este tratamento é

informado como tendo conseguido algumas curas.

As febres quartãs, com intervalos de três dias entre os acessos, seriam as mais

persistentes. Uma vez mais é mencionada a dieta, esta contendo arroz, tapioca, araruta, aletria,

total abstinência de vinho, de carne, de manjares apimentados e de bebidas alcoólicas.

Também faz parte do tratamento exercícios moderados, mas assíduos e uma “vida mais

distraída”. O que demonstra a diminuição de mão-de-obra nestes casos. Entretanto, o que

inicialmente poderia ser vista como perda, com a cura do escravo, mantinha-se o patrimônio.

192 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 201-202. 193Idem . Ibidem. p. 201.

Page 111: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

110

As lombrigas intestinais, nos registros de Vassouras são descritas também como

‘vermes intestinais’, apresentam como sintomas inflamação nos “órgãos da digestão, taes

como dôres de barriga, calor, febre, coloração e augmento ou diminuição do volume da

língua”. A dieta recomendada deveria ser “mui benigno”, dando “a beber huma tisana de

arroz gommada, e huma alimentação mui leve”. Neste caso, Taunay, informa um receituário

para combater tal mal:

1º., em meio copo d’agua fria lançar ao principio 6 ou 8 gotas de ether, que se dá imediatamente ao doente, isso de manhã e de noite, e, passados alguns dias, reforças a dose até 12 a 15 gotas; 2º., hum purgante composto de 2 colheradas de azeite de rícino ou mamono, 2 colheradas de assucar, e outras 2 d’agua para diluir, e na occasião de engulir addiconão-se 12 a 15 gotas de ether. Facilitão-se as evacuações com algumas chicaras de chá de folhas de larangeiras, ou qualquer outro. 194

Não havendo inflamação, muda-se o receituário, sendo o leite de mamão o mais

eficiente para a cura, a medida adequada no tratamento era uma dose de duas colheradas.

Taunay ensina a maneira correta de retirar o leite da árvore, utilizando equipamentos de uso

diário do senhor e de sua família, para possivelmente facilitar o entendimento e manuseio dos

medicamentos.

O mal venéreo ou “Siphiles”,195 também apresenta um certo prestígio ao ser

mencionado por Taunay. Página e meia, detalhada sobre sintomas e curas é dedicada a este

tema. Para os casos menos preocupantes, ou seja, os que não apresentam a complicação de

úlceras, é aconselhado o descanso. Esta doença combinada com o clima do Império do Brasil

poderia ter uma longa duração. O tratamento prescrevia uma dieta vegetal e meio banho de

água morna à noite, alimentação específica e higiene associado a estas indicações. Alguns

cuidados mereciam atenção e o autor informa, o que não fazer em alguns casos. Nestes, evitar

injeções ou remédios violentos que causavam irritação nas vias urinárias. O mais adequado

para o tratamento do mal venéreo, mas somente se a purgação continuasse sem a dor que

acompanha o ato de urinar, seria o uso de água de alcatrão em quatro copos ao dia, que levaria

ao resultado desejado em quatro ou cinco dias, sendo mais eficiente no inverno.

Nos casos dos tumores serem dolorosos, indicava-se o uso de “cataplasmas de farinha

de mandioca, mudadas três vezes ao dia, até que a inchação esteja resolvida, ou tenha

suppurado”. As úlceras mais resistentes, deveriam ser salpicadas com mercúrio doce em pó

194 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 202. 195 Idem. Ibidem. p. 203.

Page 112: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

111

sutil de três a quatro vezes ao dia, banhando-se cada vez a parte doente com água morna todas

as noites. Estando associada a esta indicação a dieta vegetal e a tisana de salsa, evitando

preparações ácidas, especialmente o vinagre. O tratamento era longo e demandava descanso,

fato que “alivia” os temores de perda da mão-de-obra, pois no fim “o doente já está apto para

o serviço”.

Tétanos,196 ou rigidez de todos os músculos dos membros e do tronco era muito

comum entre os escravos. O procedimento mais eficaz seria a sangria, ventosa e “bixas” de

todos os pontos da cabeça, peito, ventre etc. Minuciosamente, Taunay explica o modo pelo

qual ela deveria ser feita: “sempre ao comprido do músculo e nunca de través”. Associado a

este, deveria ser ingerido ao mesmo tempo de doze a quinze gotas de “laudanum” liquido,

sendo a dose aumentada de vinte a trinta gotas, ministrada em qualquer chá quente e

adocicado. Mas o veredicto final é alarmante, pois, para este autor, “he quasi milagre quando

o “tétanos” confirmado não termina fatalmente.” Indicando que o mal maior, a perda da

propriedade, era certa em alguns casos.

A especificidade dos cuidados necessários para doenças, sublinha a preocupação com

a eficácia do manual para fazendeiros. Estes nem sempre tinham a presença de um médico ou

de uma farmácia em suas propriedades. Além dos métodos e medicamentos indicados, o clima

interferia na cura dos pacientes e deveria ser aproveitado para um melhor resultado dos

tratamentos.

O Barão de Pati do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, ao escrever um

manual em 1847 sobre como construir e organizar a produção de uma fazenda para seu filho,

não reserva um item específico às doenças de escravos. Contudo, destaca a importância de se

preservar a saúde de cativos para se manter a propriedade senhorial, pois segundo ele a

“...imensa mortandade a que estão sujeitos e que devora fortunas colossais, e traz a infalível

ruína de honrados e laboriosos lavradores”. 197 Associando patrimônio e morte de cativos, ele

destaca o tratamento ideal a ser ministrado aos doentes: “nas moléstias devem ser tratados

com todo o cuidado e humanidade. Embora haja cirurgião assistente, o Sr do escravo deve

fazer a sua revista à enfermaria para animar os doentes dar-lhes alívio, acautelando alguma

falta que porventura possa haver”. 198 A questão humanitária também será mencionada por

196 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 204. 197 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 63. 198 Idem . Ibidem p. 64.

Page 113: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

112

Imbert em seu manual, conforme destacamos abaixo, como forma de olhar para um doente,

principalmente se for escravo. Escravas no período de gestação deveriam receber algum

cuidado. Transferi-las para ocupações domésticas ou mais leves que o trabalho no eito, como,

por exemplo, escolher café, seriam aconselháveis para não se perder a mão-de-obra e a

criança:

Não mandeis a preta que estiver criando à roça por espaço de um ano, ocupai-a em serviço de casa, como lavar roupa, escolher café, e outros objetos. Quando ela tiver seu filho criado há então, deixando o pequeno entregue a uma outra que deve se r a ama-seca de todos, para os lavar, mudar a roupa, e dar-lhe a sua comida. 199

3.3 – Cura: O fim principal.

hum doente, he durante sua enfermidade, hum ente apartado da sociedade de que elle he membro, e esta rigorosamente deve, directa ou indirectamente, interessar-se por elle, e prestar-lhe cuidados tão assíduos, como illustrados: faltar pois a hum dever tão sagrado he, a nosso ver, hum crime de lesa humanidade, e todo o individuo, que soportasse frio, silencioso, e insensivel diante de hum ente, que padece, ainda sendo seu mais cruel inimigo, mereceria ser taxado certamente de ter abjurado o mais nobre dos sentimentos, com que a natureza nos tem dotado, o amor do próximo [...] 200

Talvez com o objetivo de tocar os corações mais irredutíveis, Imbert defina de tal

forma o doente. Entretecendo questões religiosas e sociais, destaca a importância de se cuidar

bem de um doente por ser sua condição incerta e delicada. Tendo em vista que os escravos

eram facilmente substituídos até pelo menos meados do século XIX, os que ficavam doentes

não eram vistos como um problema neste período. A questão apresentada, provavelmente

tenta precaver a falta de mão-de-obra que estaria por vir caso o fim do tráfico ocorresse. Para

tanto, utiliza os valores cristãos como argumento na recuperação de escravos doentes: era “um

dever sagrado e um crime de lesa humanidade” não tratá-los.

Nota-se aqui menção somente ao doente, desvinculando o indivíduo do fato de ser

escravo. Esta condição o colocava em situação atípica, necessitando de plenos cuidados para a

recuperação. Sendo o amor ao próximo um dos mandamentos da Santa Igreja, o senhor é o

199 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 64. 200 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. cap. II. p. 4.

Page 114: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

113

mais próximo do cativo doente e desta forma, aquele que deveria lhe prestar os cuidados

necessários. Em caso contrário, perderia parte de sua propriedade. Pequenos e micro

proprietários poderiam ter prejuízo ainda maior ao perder 1 cativo, em alguns casos, o único

bem.

Atenuando um discurso econômico, a religião é utilizada por Imbert para reiterar o

apelo a possibilidade da perda do patrimônio. Os gastos com um escravo iam além do valor

pago no ato da compra. Alimentação, vestimenta e moradia, eram responsabilidades do

proprietário. No caso de uma doença, para além da questão da diminuição da mão-de-obra

cotidiana, as despesas aumentariam com medicamentos específicos, alimentação adequada e

mão-de-obra própria para atender às necessidades do paciente. Como mencionado no capítulo

I, existiam proprietários que garantiam apenas o mínimo em alimentação para seus cativos.

Poucos iam além das três refeições diárias e cachaça nos dias frios. Para estes casos ele faz a

seguinte observação:

A primeira necessidade para utilidade de hum doente attenuado de uma affecção aguda, he a dieta a mais rigorosa, e absoluta, os prejuizos, como temos dito, não o querem assim, mas os preceitos, e a experiencia prescrevem o mais imperioso dever a este respeito. 201

O número de médicos na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras era

irrisório, e provavelmente, não poderiam atender prontamente todos os fazendeiros. Imbert

tendo conhecimento das dificuldades impostas pela distância que se encontravam algumas

fazendas, descreve minuciosamente como colocado acima, sintomas e tratamentos para

fazendeiros, seus familiares e escravos, justificando a prática da medicina por leigos devido à

necessidade:

Privados de todo o soccorro, ou pelos menos, só podendo mui difficilmente have-lo, por causa da distancia em que estão das Cidades e Villas, e da falta de communicações commodas, elles têm de acudir a si mesmos, e lhes he forçoso exercer a Medicina, não só em benficio seu e de suas famílias, como tambem não se podem dispensar de tratar dos negros, muito mais susceptíveis de contrahir as molestias, que affligem a especie humana. 202

201 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 11. 202 Idem . Ibidem. cap. XIV. p. 12.

Page 115: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

114

Segundo Jorge Prata, a transferência da Corte Portuguesa em 1808, foi um marco para

a saúde da antiga colônia, tendo início uma política pública voltada para a higiene, tão bem

mencionada por Taunay e Imbert. Questão que particularizou a atenção para cemitérios,

hospitais e intervenção no meio urbano.203 A preocupação com os cemitérios teve início em

1798, reiterada em 1801 com a carta Régia, dos quais trataremos no capítulo IV. No referente

à saúde e hospitais, pode ter tido grande impacto.

As formas de curas e medicamentos utilizados podiam ser notados nas Santas Casas,

nas próprias fazendas e exercidos por negros curandeiros (feiticeiros, sangradores ou

barbeiros). As variantes são muitas, entretanto, não seguem a um padrão específico.

Provavelmente, nem todas as fazendas tinham uma botica ou farmácia, sequer podiam contar

com a presença de um cirurgião sempre que fosse necessário. Estes são citados por Imbert

quando todos os meios de cura não funcionavam. Como no caso de Retenção de ourinas,

quando ele deveria ser solicitado para esvaziar a bexiga. Destarte, o uso de sangradores era o

mais viável. O mais usual provavelmente, era a utilização de cativos para exercer esta função.

Os escravos sangradores, que dividiam seu espaço profissional com brancos pobres,

eram mais comuns em espaços urbanos, nos inventários encontramos menção a cativos que

tinham como ocupação: “barbeiro”, enfermeiro e parteira. O escravo barbeiro crioulo

pertencente a um mega-proprietário em 1840, faz parte desse pequeno número de escravos

que atendiam as necessidades de cura e cuidados médicos. Enfermeiros, geralmente ex-

estudantes de farmácia, 204 concorriam com escravos como auxiliares na prática e tratamentos

e curas. Um grande proprietário tinha incluído no rol de seu patrimônio, um escravo Congo de

trinta anos de idade no ano de 1850, que exercia esta função. Esses exemplos demonstram a

existência de enfermarias ou locais próprios para a recuperação de escravos como demonstra

Mariosa,205 mas certamente não era privilégio de todas as fazendas. Analisando os inventários

de 1840 a 1880 não encontramos menção à curandeiros ou feiticeiros.

No século XVIII, na região das minas, alguns negros que dominavam as técnicas de

cura de algumas doenças, receberam a aprovação para a prática do ofício de forma legítima.

Excrementos e ossos de defunto, eram utilizados por negros e seus descentes que eram tidos

203 SOUSA, Jorge Prata. Anotações a respeito de uma fonte: os registros de óbitos da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, século XIX. In: Ângela Porto, org. Doenças e Escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 204 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 230. 205 MARIOSA, Rosilene Maria. Tratamento e doenças dos escravos da fazenda Santo Antonio do Paiol (1850-1888). In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007.

Page 116: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

115

como feiticeiros e também por brancos, mas estes eram designados curandeiros. 206 Desta

forma, podemos perceber que a arte de curar por negros é parte do pretérito colonial, onde os

escravos tentavam sobreviver em tensões que envolviam padres exorcistas e cirurgiões

brancos. Contudo, estes últimos com o domínio e o desenvolvimento das faculdades de

medicina, tiveram garantido o saber e o pleno domínio do conhecimento médico. 207

Embora algumas fazendas tinham em seus domínios uma farmácia, não podemos

associá-las apenas ao tratamento de escravos, em muitos casos atendiam aos proprietários e

seus descendentes. Rosilene Mariosa ao estudar tratamento e doenças de cativos na Fazenda

Santo Antonio do Paiol, da região do Vale do Paraíba Fluminense, cidade de Valença, percebe

que a preocupação com a saúde de escravos ocorreu após 1850, com a criação de uma

farmácia. Nela foi encontrado indícios dos gastos com as moléstias em vários frascos

importados da França, Londres e Holanda. Doenças de pele ocorreram em maior número

naquela fazenda.208 Nos óbitos, as maiores incidências foram principalmente as infecto-

parasitárias e pulmonares. Cotejando com os dados de Mary Karasch, também o eram na

corte. Nos inventários as osteomusculares ganham destaque. Mariosa supõe ter havido

diferenças nas moléstias que se manifestaram no espaço rural e no urbano. As divergências

que percebemos se apresentam nos diferentes documentos analisados e seus principais

objetivos em descrevê-las.

Se no século XVIII, a aguardente e o vinho eram considerados substâncias terapêuticas 209, no XIX, serão indesejadas e atribuídas a um problema de moléstias morais, sendo, pois, a

água considera a melhor bebida. Dieta, banhos gerais ou particulares (atentando se frios ou

quentes de acordo com a doença a ser tratada), cataplasmas, fricções, sangrias, ventosas,

sanguessugas, eram os procedimentos médicos mais comuns e recomendados nos manuais de

fazendeiros. Para Imbert, as considerações acerca do temperamento do indivíduo eram

importantes no tratamento que lhe seria dado. Desta forma, era indispensável um

206 NOGUEIRA, André. Doenças, feitiços e curas: africanos e seus descendentes em ação nas Minas do século XVIII. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. 207 PIRES, Ana Flávia Cicchelli. Viagens atlânticas: a participação dos sangradores no comércio de escravos, 1808-1828. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. p. 21. 208 MARIOSA, Rosilene Maria. Tratamento e doenças dos escravos da Fazenda Santo Antonio do Paiol, 1850-1888. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. 209 NOGUEIRA, André. Doenças, feitiços e curas: africanos e seus descendentes em ação nas Minas do século XVIII. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. p. 12.

Page 117: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

116

conhecimento prévio das características pessoais do doente, que permitiriam um diagnóstico

mais preciso. Estar doente é um fato intrinsecamente ligado ao comportamento moral e

psicológico do escravo para Imbert.210

A questão comportamental recebia tamanha atenção que o capítulo III da obra do

doutor Imbert é todo dedicado aos temperamentos como parte do tratamento adequado para a

cura. A associação de temperamentos e doenças pode ser um indício de manipulação ao tipo

adequado de escravo que se desejava obter. Um indivíduo, de acordo com a sua constituição

moral, poderia ou não desenvolver determinadas doenças. É evidente que os piores

comportamentos estavam associados às moléstias mais graves. Provavelmente manutenção da

ordem utilizando os manuais para fazendeiros para alcançar os fins desejáveis.

A cirurgia popular, que recebe um capítulo específico, poderia ser comparada aos

primeiros socorros que atualmente utilizamos. A simples prática de estancar um sangramento

com os dedos e a lavagem da ferida com água corrente é ensinada no manual. Esta prática que

pode causar estranhamento era um elemento eficaz para salvar vidas. Os médicos de

Vassouras paradoxalmente aos barbeiros e curandeiros, eram recrutados entre os graduados

em escolas européias. Eles não atendiam apenas as necessidades médicas da comunidade,

formavam as fileiras da burocracia administrativa, eram professores e editores de jornais

locais. O que diminuía consideravelmente os números de atendimentos e da mão-de-obra

especializada.211

Tendo em conta que alguns registros de óbito de escravos tenham a causa mortis

informada principalmente a partir da década de 1870, pressupomos um investimento mínimo

no tratar do cativo doente. Para se diagnosticar alguma moléstia, era necessário um

conhecimento prévio dos sintomas, feito facilmente em alguns casos por fazendeiros que

tivessem acesso a algum manual disponível. Entrementes, moléstias mais graves precisariam

de um especialista.

Os dados analisados neste capítulo demonstram as preocupações existentes quanto

adquirir bons escravos já no ato da compra. A atenção às características físicas poderia

garantir uma boa leva de cativos para o árduo trabalho no eito por um longo período de

tempo. Entretanto, os próprios costumes sociais poderiam interferir diretamente na saúde

física ou mental daqueles indivíduos. Os castigos aplicados podem vir a ser a causa do grande

210 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 21. 211 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 159, 160.

Page 118: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

117

quantitativo de escravos listados nos inventários como “incapazes” ou “aleijados”, bem como

dos que demonstravam problemas mentais.

Os manuais escritos na década de 1830 recomendam maior cuidado com a propriedade

escrava. Para tanto, os senhores deveriam ter muita atenção em caso de doenças, fornecendo

uma alimentação mais saudável e pleno repouso, ou seja, o afastamento do trabalho.

Provavelmente, seria melhor sofrer uma diminuição da produção durante alguns dias, do que

ter efetivamente um menor quantitativo de escravos no eito e no total de seus bens a serem

inventariados. Se os livros paroquiais demonstram pouca preocupação com a causa mortis de

escravos, libertos e livres, os inventários nos apresentam uma rica fonte de análise. Neles,

doenças de cativos estavam atreladas à perda de patrimônio e diminuição de mão de obra,

principalmente a partir de 1850, quando o preço do escravo sofreu um aumento significativo.

Assim, o tratamento dado a cativos moldara a forma de viver, as relações de poder e o

bem morrer. As péssimas condições de higiene, vestimentas, alimentação e trabalho foram

fatores propiciadores e propagadores de doenças, como já destacado. Assim, a morte esteve

presente de forma recorrente na sociedade vassourense do século XIX, demarcando a

importância da Igreja e a sua relação com muitos proprietários de cativos; da mesma forma,

demonstra o poder dos proprietários sobre seus escravos e a hierarquia social entre livres e

cativos. O Hospital da Santa Casa de Misericórdia configurava-se como outra possibilidade

de procedimento médico para escravos e pobres em Vassouras, diferentemente das famílias

mais abastadas que podiam requerer uma visita médica após a chegada da ferrovia; os pobres

contavam com os barbeiros e assistentes de cirurgião, ou, provavelmente, com os

conhecimentos medicinais com base na flora local, ou curandeiros e feiticeiros. Muito embora

a Santa Casa fosse vista como “o local para a morte”, muitos recebiam ali o tratamento

adequado.

Page 119: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

118

Capítulo 4: Relações de poder e morte de escravos em Vassouras: análise

comparativa entre libertos, forros e livres.

As relações de poder estavam presentes na sociedade de Vassouras de diferentes

maneiras e nos distintos grupos como mencionado no capítulo I: no número de cativos de um

proprietário, na extensão de suas fazendas, nos prédios construídos nestas, nas casas urbanas,

na alimentação e nas vestimentas. Da mesma forma, o poder estava presente na morte, sendo

reconhecido ainda que indiretamente. Como diria Bourdieu, “o poder simbólico”, é um poder

não visto, mas que só pode ser exercido com a cumplicidade dos que compõem uma mesma

sociedade.212

Supomos esse simbolismo presente nos ritos e rituais de passagem, no local de

inumação, na condição jurídica do indivíduo de seus pais e cônjuges, na origem étnica, nas

diferentes qualificações por cor, entre os gêneros e idades, na classe econômica e nas vestes

fúnebres. Todos fatores presentes e desejáveis para o “bem morrer”, um acontecimento social

importante no século XIX. 213

A primeira divisão hierárquica entre os mortos era a de “pessoas livres” e “pessoas

escravas”. Esta separação foi somente praticada no 2º. Livro de Óbitos iniciado em 1868. No

primeiro, os cativos são descritos apenas como escravos. Estes se subdividiam em crioulos e

africanos e em alguns casos foi mencionado o local de origem, segundo o porto de embarque

para o Brasil. Da mesma forma, eram qualificados pela cor: pretos, pardos, negros ou cabras.

O estado civil e progenitores são pouco citados. Não havia a necessidade de maiores

diferenciações, eram escravos.

Os livres formavam um grupo mais complexo. Estrangeiros e Brasileiros demarcavam

a origem de nascimento. Homens brasileiros brancos foram encontrados 19, 15 pardos, 13

sem cor definida e 3 pretos. As mulheres: 12 brancas, 6 pardas, 4 pretas e 4 sem cor definida.

Os que vinham de outras nações e lá faleciam eram na maioria portugueses, seguidos por

alemães, chineses, espanhóis, franceses, italianos, prussianos e uruguaios. A África era a

nação dos libertos. Brancos, pretos, pardos, caboclos subdividiam as etnias e cores. A

condição jurídica se aquinhoava entre livres, libertos e forros. Economicamente percebemos a

212 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 7-8. 213 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 129.

Page 120: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

119

segregação de ricos e pobres direta e indiretamente. Cônjuges e pais eram informados em

maior número se comparados com os escravos. Estas divisões e subdivisões demarcam as

diferenças raciais, sociais e econômicas na Vassouras do Oitocentos. Interessa-nos entender

como elas são citadas nos registros de óbito de escravos e livres, como forma de reproduzir as

relações de poder existentes e suas estratificações. Nos registros de óbitos essas diferenças

podem ser percebidas direta ou indiretamente, nos indícios camuflados nos assentos feitos

pelo pároco, representante da administração imperial.

As reconstruções em torno da morte e do além túmulo a partir do encontro de culturas

diversas possibilitou uma adaptação, principalmente entre os negros que foram batizados e

seguiram, em certa medida, os padrões da religião dominante. Contudo, não podemos afirmar

que houvessem abandonado sua cultura religiosa anterior. Alguns senhores permitiam a

prática de batuques em suas fazendas, ainda que fosse após os seus rituais. O dia ideal para

que a religião do senhor fosse propagada, atendendo aos seus interesses, era o domingo, dia

do descanso semanal. Este dia era também utilizado para a higiene de roupas e senzalas. A

missa, que deveria ter toda a pompa possível, era utilizada para “arrebatar o espírito dos

negros” supersticiosos e crédulos por natureza.214

Entretanto, os negros poderiam festejar seus folguedos com a permissão senhorial,

uma tentativa de amenizar possíveis rebeliões. A ambigüidade nessa concessão senhorial

possivelmente tornou viável, a reconstrução cultural religiosa dos escravos, que deveriam

participar da cerimônia católica de seus proprietários. Após cumprirem a obrigação, poderiam

fazer as suas próprias cerimônias. Note-se que muitos cativos adotaram a religião de seu

senhor, desejando, na morte, receber os sacramentos finais, bem como missas de corpo

presente.

4.1 – Cemitérios e Hierarquias:

As negociações em torno da religiosidade permitiram uma continuidade cultural

africana dentro das possibilidades existentes na sociedade escravista. Uma das formas de

prestar culto ao ancestral é visitar o seu túmulo, local onde foram depositados seus restos

214 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 275-276.

Page 121: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

120

mortais. Nesse sentido, cemitério e sepultura ganham destaque. As sepulturas criadas no

século XVII são individuais e não mais comuns, e no século XIX são utilizadas para livres e

alguns poucos escravos.

“He coftume pio, antigo & louvavel na Igreja Catholica, enterraremfe os corpos dos

fieis Christaõs defuntos nas Igrejas, & cemiterios dellas.”215 O costume “antigo e louvável” de

enterrar os corpos dos cristãos nos recintos religiosos estava presente na Vassouras do século

XIX, onde o local do sepultamento, mormente o realizado dentro da igreja, designava a

importância que tivera em vida o defunto ali inumado. Essa instituição religiosa sofreu

modificações ao longo dos tempos e “na língua medieval, a palavra igreja não designava

apenas o edifício da igreja, mas todo o espaço que o cercava”, como a nave, o campanário e o

cemitério. Neste período histórico, ele era um espaço para pregação, distribuição dos

sacramentos em festas, procissões no pátio ou atrium, espaço considerado abençoado. Os

cadáveres enterrados no seu interior podiam ser encontrados “contra suas paredes e nas

imediações”. 216

Os cemitérios exerciam várias funções além da acima mencionada. Eram feitos, às

vezes, de local para pastagem de animais, feiras, bailes, jogos, atalhos, depósito de lixo,

sanitários públicos, namoros clandestinos e morada de mendigos.217 Sublinhamos que tais atos

eram contra as leis municipais, a decência religiosa e questões morais impostas pela Igreja.

Em outras palavras, divergindo do pensamento atual, não havia na França medieval separação

entre vida e morte, entre o sagrado e o profano.218

A palavra cemitério, atrium ou aître (átrio) era referente ao espaço externo da igreja e

até o século XV, ela pertencia ao latim dos clérigos. Cemiterium tinha origem grega e erudita,

sendo utilizada pela igreja e similar a charnier, que significa carneiro ou ossuário, no francês

contemporâneo. 219 Philippe Ariès, ao analisar os carneiros, preocupou-se com a origem dos

ossos utilizados para a prática de tal arte, informando que os mesmos vinham das grandes

215 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 49. 216 ARIÉS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 23. 217 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.p. 73. Apud ARIÈS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias; tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977. 218 Idem, Ibidem. p. 74. 219 ARIÈS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 23-24.

Page 122: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

121

fossas comuns, ou fossas dos pobres, “largas e com vários metros de profundidade, onde os

cadáveres eram amontoados, simplesmente cosidos em seus sudários sem caixão”. 220 Talvez

esse fato possa nos interessar mais de perto, tendo em vista que em alguns assentos de óbito

em Vassouras, é mencionado o enterro em caixão fechado. Uma grande maioria de cadáveres

foi registrada sem essa menção, o que nos leva a supor que muitos corpos foram enterrados

sem ele. Segundo João José Reis, o caixão contava como elemento de pompa fúnebre, e

apenas ricos tiveram acesso a um no momento da morte. 221 Este provavelmente era outro

fator de estratificação na morte.

O espaço da igreja e seu entorno era motivo de disputa, devido ao seu valor simbólico.

Segundo Ariès, “os defuntos mais ricos eram enterrados no interior da igreja, não em jazigos

abobadados, mas diretamente na terra, sob as lajes do chão; seus despojos tomavam também

um dia o caminho dos ossuários”. 222 Essa menção pode nos dar uma pista sobre as

hierarquias sociais e raciais em torno da morte na Vassouras oitocentista. A prática percebida

no período medieval na França é também encontrada na Freguesia de Nossa Senhora de

Vassouras até meados da década de 1850, não obstante, as várias tentativas do Estado em

abolir essa prática.

Assim como em Portugal e em outros países da Europa, afastar os sepultamentos do

espaço urbano era pretensão do Império do Brasil desde o século XVIII. O processo foi

iniciado em 1798 por um conde que propôs à Câmara Municipal um parecer médico sobre a

origem da insalubridade da cidade. Vários problemas foram apontados pelos médicos, dentre

eles os cemitérios. Em 1801, foi implementada uma nova tentativa de afastá-los da urbe, por

meio de uma Carta Régia. 223 Esta proibia os enterros dentro das Igrejas e ordenava a

construção dos mesmos pelos governadores das Províncias. A questão da saúde pública foi

mencionada. Em 1825, o imperador ordenou por meio de uma portaria ao provedor-mor de

Saúde, a construção de um campo santo, mas não afastou o poder eclesiástico das discussões.

O Decreto Imperial de 1828 criou regulamento sobre o estabelecimento deles fora dos

templos, e a competência da administração foi dada às Câmaras Municipais. O Código de

Posturas, elaborado em 1832 pela Câmara do Rio de Janeiro, fornecia informações sobre

220 ARIÈS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 24. 221 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 150. 222 ARIÉS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 25. 223 Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 2, n. 16. Rio de Janeiro: [s.e.]. 2007. p. 92

Page 123: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

122

necrópoles, enterros e o estabelecimento do atestado de óbito com parecer médico. Mesmo

após sua organização, a maioria dos registros analisados até meados da década de 1860 não

teve a causa mortis informada. 224

As tentativas foram muitas, e as inumações continuavam sendo praticadas dentro das

Igrejas e suas extensões. Em 1841 uma nova proposta chega à Câmara na tentativa de por fim

aos enterros no interior dos prédios religiosos, e, mais uma vez caiu no esquecimento. Novas

discussões surgem em 1843 devido à epidemia de escarlatina no Rio de Janeiro e propõe-se a

construção de um cemitério extra-muros. Alguns homens importantes se mostraram contrários

a essas construções por particulares, defendendo a permanência do domínio religioso. Este era

o pensamento defendido pelo Visconde de Baependi. Como argumento, ele utilizou a

possibilidade de rebeliões populares contrárias que poderiam abalar a estrutura social. 225

Provavelmente, sua argumentação tomou por base a “Cemiterada” da Bahia, que

ocorreu em 1836.226 Nessa manifestação, houve participação de irmandades, homens,

mulheres e párocos, que reivindicavam o direito de sepultar seus mortos em solo sagrado. As

proporções alcançadas por esse episódio, da população contra um cemitério, demonstram a

importância dos enterros ad sanctos no imaginário daquelas pessoas. Em Vassouras não há

indícios de uma manifestação deste vulto, mas houve resistência às várias leis que tentavam

interromper este costume, percebida nos enterros que ocorriam dentro da Matriz.

O projeto sobre o estabelecimento de necrópoles foi levado ao Senado apenas em 1843

e discutido em 1844. Várias emendas foram feitas e enviadas às Comissões de Fazenda e

Eclesiástica, que deram seu parecer em 1845. Todavia, tal projeto ficou esquecido. Matéria

semelhante retornou à Câmara dos Deputados em 1850, havendo uma proposta de criação de

um cemitério municipal. Mas no Rio de Janeiro, a prática de enterros ad sanctos só terminou

com a epidemia de febre amarela em 1850. Essa prática que se estendeu à Vassouras, segundo

as fontes consultadas.

O discurso da Igreja possivelmente colaborou para que os enterros ad sanctos

continuassem até meados do século XIX na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de

Vassouras, da mesma forma que na Corte e outras províncias do Império do Brasil. Isto

porque “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou

224RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 89-91. 225 Idem . Ibidem. p. 96-100. 226 REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

Page 124: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

123

de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença

cuja produção não é da competência das palavras”. 227 Estas levaram políticos a defenderem a

continuação do domínio sobre as inumações pela Instituição religiosa. Ela mesma não fora

afastada das discussões, atuando num parecer em 1845 como mencionamos acima. Sendo a

religião oficial, tinha sua oratória legitimada pelo poder político e pelos diferentes grupos que

compunham a sociedade.

Considerado território santo, o cemitério e o interior da Matriz foram palco de

disputas. Pressupomos uma hierarquização nas inumações ad sanctos por representarem a

possibilidade de maior proximidade com o sagrado e da lembrança dos vivos que visitavam as

igrejas e seus entes falecidos. Desta forma, havia uma permanência dos mortos no mundo dos

vivos. A igreja estava presente em momentos importantes da vida como o nascimento, o

casamento e também na morte. Solo sagrado, como menciona Julio César Pereira, era todo

templo construído por ela ou com sua permissão, bem como os mosteiros e os conventos. Era

a única instituição qualificada para realizar os sepultamentos, até pelo menos meados da

década de 1850, tendo, pois, o controle sobre a morte. Em seu discurso, garantia a todos os

indivíduos batizados, um enterro:

Mandamos sobe pena de excomunhão mayor ipfo facto incurrenda, & de cincuenta cruzados pagos do aljube, applicados para o accuador, & fuffragios do efcravo defunto, que peffoa de qualquer aftado, condiçaõ & qualidade que seja, enterrado, ou mãde enterrar fóra do fagrado defunto algum, fendo criftaõ bautizado, ao qual fe deve sepultura eccllefiaftica” 228

A pena da excomunhão demonstra a importância de um enterro em solo sagrado para a

Igreja. Contudo, esta não garantia o enterro de todos os indivíduos que compunham a

sociedade de Vassouras no século XIX. Escravos e livres que viviam em fazendas distantes,

provavelmente, nelas foram sepultados. Em alguns casos, anos após a morte, o assento no

Livro da paróquia era feito por meio de um processo, pelo pároco responsável, na presença de

testemunhas, como no caso de Severina Maria da Silva:

Aos trinta de Outubro de mil oito centos quarenta e oito nesta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras compareceo perante mim Custodio Correia da Silva para o fim de

227 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 15. 228PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 50.

Page 125: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

124

justificar o falecimento de sua mulher Severina Maria da Silva, por não se achar assento da mesma nos livros desta Freguesia aonde faleceo, para o que appresentou duas testemunhas Jose Antonio Correia da Costa, e João de Medeiros de mim reconhecidos, e sendo perguntados disserão, que a dita Severina Maria da Silva, casada com Custodio Correia da Silva faleceo no dia dezenove de Janeiro de mil oito centos quarenta e seis, e que no dia vinte fora sepultada no Recinto desta Matriz, que tivera acompanhamento solemne, sendo nesse tempo Vigário desta Freguesia o Reverendo Antonio da Costa Guimarães, e estando xxx( ilegível) em seos óbitos lavrei este assento por me achar auctorizado por Sua Excellencia Reverendo e xxx(ilegível), e para a todo tempo constar, que assigno no com as mesmas testemunhas. 229

Nesse assento, temos a informação de que o enterro de Severina Maria havia sido

realizado dentro do “Recinto da Matriz”. Como a Igreja não tinha esse registro em seus

documentos? A importância dada ao sepultamento em solo sagrado deveria garantir o registro

em documento oficial. Neste caso, como não encontrado, providenciou-se um novo registro,

contendo todas as informações necessárias e a presença de duas testemunhas. O domínio

exercido por essa instituição fora legitimado e propagado pela sociedade, ainda que não

reconhecido hegemonicamente. “As ideologias devem a sua estrutura e as funções mais

específicas às condições sociais da sua produção e da sua circulação”.230

Após várias tentativas, o Estado conquista maior autoridade nos assuntos relativos à

morte, e o que era antes do domínio da Igreja, passa a também ser da Santa Casa de

Misericórdia, por meio de seus cemitérios. Provavelmente, houve um desconforto por parte da

Igreja Católica quanto ao predomínio exercido até então por ela. 231 Parece ter havido um

conflito entre a Igreja e a Santa Casa de Misericórdia. Tal fato pode ser sugerido, devido ao

extenso controle de óbitos feitos pela Igreja durante a primeira metade do século XIX, que

remonta ao período colonial. Esse controle garantia o poder da Igreja sobre os rituais, ritos e

principalmente os discursos de verdade que ela produzia. Tendo a autoridade do discurso

legítimo e oficial, provavelmente não o queria perder.

O controle da Santa Casa por cemitérios públicos gera tensão sobre a morte e seus

rituais, entrando em conflito com o poder religioso exercido pela Igreja. Afinal, ela era uma

das instituições do Império do Brasil, que tivera durante muitos anos o domínio do sagrado,

incluindo questões de bem morrer. A atividade que os párocos controlaram por séculos, como

funcionários do Estado, ao lhe ser retirada, poderia atingir não apenas questões religiosas e

políticas, mas também econômicas. A prática dos rituais de inumação lhes garantia alguma

229 2º. Livro de Óbito das pessoas livres. f. 123-123v. CDH. 230 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 13. 231 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 50-51.

Page 126: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

125

renda, principalmente com o dinheiro deixado pelo morto, que em alguns casos ficava

registrado no óbito.

O local de enterro, a partir de construções simbólicas, representava as diferenças

hierárquicas contidas na sociedade escravista de Vassouras e os múltiplos espaços criados

para as distintas qualificações sociais. Nelas, percebemos a importância do campo santo,

significando estratificação social, pois logo após a Matriz, situava-se o cemitério da boa

sociedade, seguido pelo lugar de sepultamento dos pobres e somente depois o local onde

deveriam ser enterrados os escravos. Os sepultamentos, na primeira metade do século XIX,

estavam marcados por alguns traços da cultura medieval e sua religiosidade. Desta forma, as

igrejas realizavam sepultamentos em seu espaço interno desde que o morto tivesse sido em

vida bom cristão e pessoa de certa posição social. Simultaneamente, seus familiares deveriam

demonstrar poder arcar com os custos do sepultamento. 232

Se a igreja mantinha costumes tão antigos para garantir ao morto uma “morada”

próxima de Deus, o mesmo não era válido para todos os indivíduos, ainda que fossem

batizados. Nem mesmo o documento que garantia o sepultamento em solo sagrado a todos os

fiéis, permitia um tratamento igualitário entre eles. A distinção na hora da morte, presente nos

diferentes locais para o enterro, como “interior da Igreja”, “cemitério da Igreja”, da cidade e

das fazendas, também estava associado à posição social do morto e de sua família. Como

território santo, a primeira distinção era entre o corpo, interior do edifício, e o Adro, todo

espaço a sua volta. Este era um local desprestigiado, geralmente utilizado para escravos e

pessoas pobres. Muitos escravos não tiveram provavelmente o direito a uma sepultura

eclesiástica, sendo enterrados nos cemitérios das fazendas, como demonstram os dados da

tabela 17.

Tabela 17 - Escravos e Local de Sepultamento por décadas e gênero.

Homens Mulheres 40-49 50-59 60-69 70-79 1880 40-49 50-59 60-69 70-79 1880

Adro da Igreja 1 0 0 0 0 1 0 0 0 0 Cemitério Igreja Matriz 8 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Cemitério Matriz 9 0 0 0 0 2 0 0 0 0 Cemitério 269 522 417 248 28 149 307 260 140 5 Cemitério Freguesia 10 0 0 0 0 5 0 0 0 0 Cemitério do Senhor 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Cemitério Fazenda 0 0 30 62 0 0 0 14 41 0 Cemitério particular 15 59 121 87 9 3 32 74 55 6

232 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 36.

Page 127: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

126

Recinto da Igreja 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Total 314 160 Total Geral: 2.991

Fonte: Livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH, Universidade Severino Sombra.

A tabela acima foi confeccionada a partir das designações de enterros mencionados

nos livros de óbitos de escravos, divididas por gênero e décadas. Todos os cemitérios que

continham a palavra “fazenda” foram agrupados. Outro grupo foi composto pelos que tiveram

o nome do proprietário descrito. Os pertencentes à administração da Igreja, agregam o Adro,

Recinto e todos os que identificam a mesma. Os livres (tabela 18) devido a complexidade das

descrições, foram respeitadas como as mesmas apareceram nos textos dos registros para

ilustrar as segregações por cor e condição social.

Os cativos foram enterrados majoritariamente em cemitérios, especificamente 99.26%

do total dos sepultamentos com o local registrado no Livro de Óbitos de Escravos da

Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. Destes, 63.28% são de homens e

36.72% de mulheres. Em solo sagrado, são exceções, citados somente na década de 1840.

Apenas 2 homens receberam sepultamento no interior da Igreja. No Adro, 2 e no cemitério da

Matriz, 15. Neste, 5 mulheres foram enterradas, e nenhuma no interior da Igreja,

representando respectivamente, 4.01 % e 1.05 % das inumações em terreno santo. Os homens

são maioria, assim como o são no total de escravos que eram comprados para a região de

Vassouras. Dos enterrados no Cemitério da Matriz, 9 pertenciam a Luis Barbosa Werneck,

representante de uma das famílias mais importantes daquela sociedade. Ele provavelmente

atendia às especificações religiosas para garantir bom enterro aos cristãos e batizados, mesmo

que fossem não livres. Seu prestígio como proprietário poderia se refletir entre seus cativos e

também entre seus pares na sociedade. Afinal, estava exercendo a piedade cristã.

O proprietário José Correa e Castro enterrou dois de seus escravos em junho de 1841.

Anacleta recebeu sepultamento no Cemitério da Matriz no dia 25 e Ignácio no Cemitério da

Freguesia no dia 14. Ambos tiveram direito a uma sepultura, contudo, o tratamento foi

diferenciado, apenas um foi enterrado em solo considerado sagrado. O que nos sugere pensar

a possibilidade de manutenção da ordem entre este grupo social. Nas décadas subseqüentes

não houve registro destes em território santo. Na Bahia, a maioria dos escravos batizados

foram sepultados na igreja ou no seu adro, diferentemente de Vassouras, onde a maioria dos

Page 128: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

127

escravos foram enterrados em cemitérios. Lá existia um cemitério, o campo da Pólvora,

destinado a “negros pagãos”, suicidas, rebeldes e “interditado ao enterro de cristãos”.233

Tabela 18 - Local de sepultamento de Livres, 1840-1849.

Local Brc Brc livre Pto Pto

livre Pto

forro Prd Prd L ivre

Prd Lbt

Prd forro

Crioula Pt Crioula Crioula

liberta Indígena Livre S/C Total

Adro - - - - - - - - - - - - - - 3 3 Adro da Igreja

1 - 1 - 1 - - - - - - - - - 46 46

Adro da Matriz

- - 1 - - 1 - - - - - - - - 58 60

Adro da Nova Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 2 2

Ao Lado da Torre Esquerda

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Ao Pe da Porta Lateral do Lado direito da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Arco do Cruzeiro da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Atrás da Capela

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Atrás da Sacristia da Igreja Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Cemitério da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 2 2

Cemitério da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 5 5

Centro da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 3 3

Consistório da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Consistório da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 3 3

Corpo da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Cova dentro da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Dentro da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 4 4

Em “hum” carneiro subterrâneo sob “huma” XXX no corredor.

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Em Sagrado - - - - - - - - - - - - - - 2 2 Fundo da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

“Hum” Lado da

- - - - - - - - - - - - - - 2 2

233 REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 196.

Page 129: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

128

Igreja Igreja Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 2 5

Junto a Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 2 2

Junto a Portão Principal da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Junto da Torre

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Lado da Matriz

1 - - - - - - - - - - - - - - 1

Lado do Consistório

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Lado Externo da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Lado Inferior da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Lado Interior da parte do Evangelho fora do Recinto

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Na Igreja - - - - - - - - - - - - - - 3 3 Na porta da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

No Fundo da Igreja Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Pe da Torre da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Plano do Consistório Direito da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Recinto da Freguesia

- - - - - - - - - - - - - - 6 6

Recinto da Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 5 5

Recinto da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 15 15

Recinto da Nova Igreja

- - - - - - - - - - - - - - 10 10

Recinto do corpo da Igreja Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Seleiro do Batistério dentro da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Telheiro da Matriz

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Casa de Antonio Francisco de Aguiar

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Cemitério da Cidade

- - - - - 1 - - - - - - - - - 1

Cemitério da Estiva

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Cemitério - - - - - - - - - - - - - - 1 1

Page 130: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

129

da Fazenda de Joze Cardoso Leal Cemitério da Fazenda

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Cemitério da Freguesia

2 - 2 - 1 - - - - - - - - - 69 74

Cemitério da Vila

4 - 5 - 5 - - - - 1 - - - - 91 106

Cemitério de D. Isabel

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Cemitério de D. Izabel Maria de Jesus

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Cemitério de S Isabel

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Cemitério Novo

- - - - - - - - - - - - - - 8 8

Cemitério - - - - - - - - - - - - - - 13 13 Cova por baixo do cemitério

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Debaixo do Alpendre da Sacristia

- - - - - - - - - - - - - - 1 1

Nota 1: Os indivíduos sem a cor mencionada foram descritos na tabela por “S/C”. Dados: Livro de Óbitos de Livres da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.

Entre os livres, notamos algumas diferenças. As especificações quanto ao local

sagrado da inumação são muito mais densas. Na década de 1840, encontramos descrições

peculiares como: lado inferior da parte do Evangelho fora do Recinto; atrás da capela; ao lado

da torre esquerda; junto à porta principal da Igreja; debaixo do alpendre da sacristia, dentre

outros. Não por acaso tais informações são inseridas nas anotações do pároco. Nestas estão os

registros de indivíduos com grande destaque social, como Barões, comendadores e Bispos. Da

mesma forma, estão presentes ex-escravos, pretos africanos, pardos crioulos e brancos pobres.

Do total de homens e mulheres que receberam um assento, 192 foram enterrados em solo

sagrado. Os brancos representam 1.04% (2), pardos 0.52% (1) e pretos 1.56 % (3). O maior

número de enterros em solo sagrado são de indivíduos que não tiveram sua cor mencionada

nos registros, correspondendo a 96.87% (186).

Em relação ao total dos dados sobre o local de enterramento de livres relativo à cor do

indivíduo ou sua condição jurídica, os enterros em solo sagrado são 46.49% contra 5.06% de

escravos. Os dados são da década de 1840. Na década seguinte, apenas 4 brancos tiveram

acesso a esse tipo de sepultamento. As divergências não se restringem à longa lista de locais

Page 131: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

130

de sepultamentos ad sanctos. O número de pessoas livres supera em quase 10 vezes o de

escravos que puderam ter acesso a um funeral mais próximo da Igreja, ou em seu interior. Os

anos subseqüentes foram marcados por enterros em Cemitérios de Fazenda, da Cidade,

Freguesia ou particulares.

Não podemos deixar de mencionar a importância que exerceram as irmandades nos

costumes relativos à boa morte. Elas são mencionadas em vários registros de óbitos de

escravos e livres. Contudo, não serão parte efetiva de nossa análise, mas certamente é um

fator que necessita de maior investigação. Stanley Stein informa que as organizações locais

em Vassouras que uniram muitos fazendeiros foram as irmandades, ligadas à igreja local.

“Através dos anos, essa associação religiosa de leigos católicos acompanhou de perto os

assuntos da igreja e supervisionou tanto a administração do cemitério (sua principal fonte de

receita) quanto a manutenção do hospital local de caridade ou Santa Casa de Misericórdia”. 234

Tendo em vista que o poder simbólico é “um poder de construção da realidade que

tende a estabelecer uma ordem gnoseológica”,235 podemos pensar de que forma tais

construções estavam presentes no discurso da igreja, do estado e dos proprietários, para

viabilizar o domínio nos rituais de bem morrer.

Os escravos foram, evidentemente, os menos agraciados pelos enterros em território

santo. Embora em menor número, alguns cativos foram enterrados dentro da Igreja matriz, em

seu entorno ou em seu cemitério. Privilégio de poucos, que poderia garantir ao senhor melhor

controle. Se haviam maneiras de garantir um comportamento desejável dos cativos,

conseguido pela concessão de algumas alforrias, pela brecha camponesa236 e cultos religiosos

de origem africana, os rituais de um bom enterro, também podem ser analisados como um

desses fatores na tentativa de controle.

Os livres, ricos ou pobres, tiveram um maior quantitativo de enterros em territórios

sagrados, fossem eles no interior ou no entorno da igreja, do que decorre a importância que a

sociedade de Vassouras atribuía aos territórios tidos como sagrados. Nesse sentido, os

registros de óbito das paróquias são fundamentais para entendermos as disputas no âmbito da

morte. Também mencionamos que, nos registros da Santa Casa do Rio de Janeiro analisados

234 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 157. 235 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 9. 236SILVA, Eduardo, REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Page 132: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

131

por Jorge Prata,237 foi verificado um maior número de escravos. Este autor sugere que a

maioria dos livres tendia a ser enterrado na paróquia de seu santo favorito. Os enterros feitos

pela Santa Casa, podiam ser gratuitos para os que fizessem atestado de pobreza, e para

senhores com apenas um escravo que comprovassem da mesma forma sua condição

econômica.

A ideologia religiosa era utilizada pelos proprietários na manutenção da ordem

escravista. Inculcar nos cativos a doutrina católica era um dos métodos que poderiam ser

utilizados para atenuar as tensões entre eles e seus proprietários. Na doutrina do catolicismo,

o senhor deixava de ser visto como um tirano, passando a ser relacionado à figura de um pai.

O que se esperava do escravo era amar e servir da melhor maneira possível ao seu proprietário

para alcançar o Paraíso após a morte. 238 Muitos, ao romper os laços do cativeiro, tinham os

mesmos rituais de bem morrer que os livres. Nem sempre com a mesma ostentação.

Os escravos recém chegados ao porto do Rio de Janeiro, ainda que tivessem sido

batizados no antigo continente, não tinham um enterro nos moldes católicos. Eram sepultados

no Cemitério dos pretos novos que ficava próximo ao Valongo. Não recebiam sacramentos e

seus corpos ficavam expostos em covas rasas e comuns. A proximidade com o porto permitia

aos cativos que chegavam uma visão pouco amistosa. Na crença da maioria dos africanos, o

enterro poderia garantir o reencontro com seus antepassados, como mencionado no capítulo

II. A visão desse cenário certamente assustava os africanos recém-chegados.

Escravos que já viviam no Brasil tinham, em tese, o direito a um sepultamento em solo

sagrado. João José Reis, ao analisar a importância da extrema-unção, associa-a ao

sepultamento. Na sua perspectiva, o doente que negasse recebê-lo, fosse por “desprezo” ou

“contumácia”, a ele deveria ser negado a sepultura em solo consagrado, o que demonstra o

poder do discurso religioso. 239

Os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam possível o consensus acerca do sentido do

237 SOUSA, Jorge Prata. Anotações a respeito de uma fonte: os registros de óbitos da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, século XIX. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. 238 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 275. 239 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

Page 133: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

132

mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’.240

Esses símbolos percebidos em vida e também na morte davam sentido à sociedade de

Vassouras, na medida em que a tornava única e complexa. Local do sepultamento, últimos

sacramentos, vestimentas, missas, música e irmandades são alguns exemplos, que forneciam

condições para as reproduções da ordem social, às suas hierarquias formadas em vida e

presentes nas formas de bem morrer. A igreja católica, nesse sentido, legitimava por meio de

seu poder, vinculado ao estado, o seu discurso, seus ritos e rituais, reproduzidos por diferentes

indivíduos que formavam a sociedade escravista de Vassouras no século XIX.

4.2 – Hierarquias raciais e Origem étnica:

A questão da cor não foi homogênea em todas as províncias do Império do Brasil. A

Lei de 1846, sobre os censos e a sua regularidade, incentivou no nordeste, revoltas contrárias

a essa questão. Isto porque a existência dessa qualificação fora entendida por alguns setores

da sociedade como lei do cativeiro, pois tinha “por fim escravizar a gente de cor”. O registro

civil passou a ser visto por alguns indivíduos de forma negativa, uma maneira de

escravização. 241 A informação sobre ser “ex-escravo”, que aparece em muitos óbitos no livro

de livres, gerou conflitos em Pernambuco, demonstrando a tentativa de rompimento com a

classe que alguns negros pertenciam, antes de alcançarem a liberdade. Como demonstra Ivana

Stolze, a linguagem oficial sobre a população não foi unitária em todo o Estado.242

Embora já existisse a prática de registrar nascimentos, casamentos e óbitos, em 18 de

junho de 1851 foi implementado o Decreto número 798. O mesmo estipulava a existência de

um livro para o registro de nascimentos e outro para o de óbitos em cada distrito e deveriam

ser feitos pelo juiz de paz. Ele alterou o controle exercido até então pela instituição religiosa.

A cor deveria constar apenas para os escravos. O poder político assume o que antes era tarefa

240 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 10. 241 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 105-106. 242 Idem. Ibidem. p. 119.

Page 134: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

133

da Igreja. Ainda que fosse um dos instrumentos de poder do Estado, ela exercia por meio de

seu discurso um controle com base na religião. A cor, nos registros, pode simbolizar a relação

existente na sociedade escravista da primeira metade do século XIX entre ser escravo e negro

ou descendente desse grupo, decorrendo desse fato, a sua exigência apenas para os escravos,

tanto nos registros de nascimento quanto nos de óbito. 243 A Igreja como instituição de poder

reafirmava a hierarquização social, separando os indivíduos em pretos, brancos e pardos. 244

As diversas maneiras de designar um indivíduo e suas variáveis carregam consigo “um

conjunto de objetivos, de interesses, de usos e finalidades, que obedecem tanto à lógicas

variáveis segundo o sujeito que profere o discurso – uma conversa informal e privada, as

diversas instâncias da justiça, o censo populacional, o exercício da disciplina etc. – como ao

próprio contexto histórico vivenciado”. 245 Nesse sentido, podemos acrescentar como discurso

o próprio registro de óbitos, bem como os inventários post mortem, que criam signos diversos

de designações. Estas e as qualificações serão tratadas como parte dos jogos políticos e de

representação de poder, não podendo ser pensado como signos neutros, sem significados para

o contexto histórico analisado.

A tabela 18 apresenta as marcas sociais e as “variáveis” em torno do ex-escravo e seus

descendentes. O indivíduo que não pudesse ter o registro junto com os cativos teria descrito

nos documentos oficiais sua antiga condição jurídica. Os significados que envolvem essa

questão são muitos. Primeiro, porque as divisões entre esse grupo tendem a se tornar mais

evidentes nos diferentes estratos ali informados. Segundo, os sujeitos de origem africana e

provavelmente descendentes de escravos, formavam a camada social inferior.

Tabela 19 - Condição dos pais e cônjuges. 1840-1880.

Total por Gênero Condição dos Pais Homem Mulher

Nr % Mãe escrava 9 5 14 22.6 Mãe ex escrava 0 1 1 1.6 Mãe de nação 1 1 2 3.2 Pais pretos forros 2 1 3 4.8 Pais escravos 1 0 1 1.6 Mãe preta forra 1 4 5 8.1 Escravo(a) que foi 11 13 24 38.7 Cônjuge Também Forro 2 1 3 4.8 Cônjuge Ex escravo 0 1 1 1.6 Cônjuge escravo 0 1 1 1.6

243 Idem. Ibidem. p. 106. 244 MATTOS, Hebe M. Das Cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 29. 245 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 32.

Page 135: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

134

Escravo 2 0 2 3.2 Total: 62

Fonte: Registro de Óbito de Livres Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.

Se entre os escravos as distinções se fazem presentes na origem e na cor, entre os

livres, novos mecanismos de diferenciação são criados. Uma das formas de diferenciar esses

indivíduos era mencionar a condição de seus pais ou a sua antiga condição: mãe escrava, mãe

ex-escrava, escravo que foi, cônjuge também forro, pais escravos. Essas considerações

retratam a necessidade da sociedade escravista em demarcar espaços sociais e raciais

distintos. Ex-escravos não são homens livres e, portanto devem ser designados segundo sua

posição social. Ainda que nascesse livre, seus descendentes tinham a marca dos antepassados

em sua pele ou na de seus genitores. Na morte, tal marca seria aparente no assento de óbito,

que garantiria o não esquecimento da origem daquele indivíduo. Foram encontrados 62

indivíduos que tiveram em seus assentos algumas dessas referências. Segundo os dados da

tabela 18, 52.58% (14) destes indivíduos tinham mãe escrava. Os pais cativos foram

apresentados em apenas 1.61% (1). Pais pretos forros são 4.84% (3). Devemos considerar que

a figura materna é mais freqüente entre escravos e seus descendentes. A cor dos pais é mais

um signo de distinção entre libertos e livres e descrever a condição ou cor dos mesmos

demonstra a preocupação vigente em manter na morte a hierarquização existente em vida.

Da mesma forma, os indivíduos que haviam sido cativos têm esta informação inserida

no seu assento e somam 38.71%. Para além desse fato, era informado o nome do antigo

proprietário e se o mesmo havia conferido a liberdade. Essa informação era fundamental para

escravos, substituindo em alguns casos o nome do próprio cativo morto.

As qualificações por cor e origem, ficam evidentes nos Livros de Óbitos de escravos e

de Livres. Consistiam num fato recorrente na sociedade escravista, utilizada como uma das

estratégias de hierarquização. Analisando principalmente relatos de viajantes, Mary Karasch

apresenta uma perspectiva cultural onde o escravo – especificamente o escravo carioca - fora

analisado dentro do seu contexto urbano, sublinhando a “vontade” existente neles, não apenas

de alcançarem sua liberdade, mas também de poderem um dia retornar à África246. Deste

modo, podemos pensar que o processo de ressocialização do cativo africano, não “apaga” da

memória sua cultura e seu lugar de origem. Então, mesmo sendo propriedade de outrem, o

246 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Page 136: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

135

escravo não estava privado de sentimentos referentes ao que vivera antes de adentrar num

navio negreiro. Contudo, o grupo de escravos não era homogêneo, vinham de diferentes

lugares do Continente Negro, falavam dialetos múltiplos e traziam consigo diferenças

culturais.

Karasch apresenta a distinção e as divisões impostas ao escravo: inicialmente separado

por ser “brasileiro ou africano”, e, posteriormente, pelo local de nascimento, que passava a ser

o fator de diferenciação, que, segundo a autora, seria a primeira distinção a ser feita.

Acreditamos que o fato de ter o escravo nascido em terras brasileiras não o colocava na

condição de brasileiro. Nos Registros de Óbito de Escravos, consta a informação “crioulo” e

não “brasileiro”. Entre os livres, descendentes de escravos e ex-escravos recebiam a

designação “brasileiro”, como o pardo João Francisco Pereira, falecido em 17 de dezembro de

1857, com 30 anos de idade, brasileiro e solteiro e Chrispim de Viterbo, preto, brasileiro,

falecido em 4 de janeiro de 1876, com 20 anos de idade e solteiro.

Por vezes, nas fontes consultadas para este trabalho, aparece “Bahia, Maranhão,

Minas”, o que evidencia o lugar de origem, principalmente com o tráfico interno, mas nunca a

designação “brasileiro” para escravos. Em outras palavras, ser brasileiro era sinônimo de ser

livre e não apenas de ter nascido em território nacional, fato que gerou disputas durante a

formação da nação e da nacionalidade. Entretanto, nem todos os brasileiros formavam um

grupo coeso, de forma que a designação branco ou mulato, recebeu um significado político,

fato que veremos com mais atenção. 247

Distinguir crioulos e africanos não seria suficiente, por eles se tornarem muitos. Surge

então a diferenciação imposta pelos senhores, onde africanos eram classificados por local de

origem e os escravos nascidos no Brasil por cor. 248 Na verdade, ela era a nação desses

cativos. Karasch sublinha que “no Rio do século XIX, as principais ‘nações brasileiras’ eram

a crioula, a parda e a cabra”249. “Crioulo” era a designação feita pelo local de nascimento,

fonte de orgulho para os mesmos aplicando-se constantemente ao negro nascido no Brasil e

de forma ocasional para africanos nascidos em colônias portuguesas da África.

As designações “Preto” e “Negro” eram mormente utilizadas para se referir a

africanos, mas também raramente utilizadas para denominar negros nascidos no Brasil A

247LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 32. 248 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 36-37. 249 Idem. Ibidem. p. 37.

Page 137: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

136

segunda designação, “Parda”, era dada pelos senhores aos mulatos, pessoas de pais africanos

e europeus, podendo também ser filhos de brasileiros, de brasileiros pardos ou de uma

brasileira de pele preta com um brasileiro de pele branca. Os pardos se distinguiam pelas suas

irmandades religiosas, seus regimentos militares, suas assinaturas em documentos oficiais e

distinções ocupacionais.250 Tinham a pele mais clara ou menos escura, ou mais próxima do

fenótipo europeu. Era, entretanto, a forma como indivíduos mestiços eram vistos e

classificados pela linguagem oficial. 251

Hebe Mattos destaca outra distinção social presente nos processos cíveis e criminais

que apontam a designação de brancas ou pardas a todas as testemunhas nascidas livres. Neste

caso, havia uma relação entre ser pardo e ser livre, uma maneira de diferenciar socialmente

tais indivíduos na condição mais geral de não-branco. Seguindo ainda os passos dessa autora,

o termo pardo não era mencionado simplesmente em referência à questão cor, mas trazia

consigo uma maneira de registrar a hierarquia social, na qual ocupavam uma classe

intermediária, conjugando a classificação racial e social da sociedade escravista do século

XIX. O seu reconhecimento, entretanto, dependia do relevo dado pela sociedade da qual fazia

parte.252

A terceira distinção por cor era a “cabra”, que significava raça mista e tinha um cunho

pejorativo, podendo servir também como xingamento. A análise dos Registros de Óbito de

escravos demonstra que o escravo designado por “cabra” representava um número muito

pequeno de cativos que morriam em Vassouras. Este é o caso da escrava Paschoa que faleceu

em 1858 aos trinta anos de idade e de Daniel falecido no mesmo ano com 25 anos de idade.

Na década de 1860, encontramos Ignácio, falecido no ano de 1868 aos 2 anos e Carlota

falecida no ano de 1860 com 7 anos de idade. Para a década de 1870 e o ano de 1880, não

foram encontrados escravos com essa designação. Entre os livres, não a encontramos em

nenhum dos assentos analisados.

A complexidade que aumenta entre os livres corresponde aos limites impostos aos

libertos e forros. Eles sofriam restrições, que os separavam efetivamente dos brancos, pois

250 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 38. 251 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 89. 252 MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 30.

Page 138: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

137

não podiam, entre outras coisas, pertencer à Guarda Nacional. 253 Provavelmente, as

distinções existentes entre nascidos livres e os que conquistavam sua liberdade exigia tal

segregação nos registros oficiais do Império do Brasil. Os gráficos a seguir segregaram

quantitativamente os escravos por gênero e pela cor mencionada em seu registro de óbito.

Eles nos ajudam a visualizar as diferenças relativas à composição étnica.

Gráfico 4 - Designação cor de escravos por gênero 1840-1849.

46

1 1 0

308

14 0 1 0

170

0

50

100

150

200

250

300

350

Preto Negro Pardo Cabra Sem cor

Homem

Mulher

Fonte 1º Livro de Óbitos de pessoas escravas. CDH

Gráfico 5 - Designação cor de escravos por gênero, 1850-1859.

290

121

1

291

144

124

1

175

0

50

100

150

200

250

300

350

Preto Negro Pardo Cabra Sem cor

Homem

Mulher

Fonte: 1º Livro de Óbito de Pessoas escravas. CDH.

253 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 112.

Page 139: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

138

Gráfico 6 - Designação cor de escravos por gênero. 1860- 1869.

436

034

1

147

222

044

1

101

0

50

100

150

200

250

300

350

400

450

500

Preto Negro Pardo Cabra Sem cor

Homem

Mulher

Fonte: 1º. Livro de Óbitos de pessoas escravas. CDH.

Gráfico 7 - Designação cor de escravos por gênero. 1870-1879.

271

0

32

0

95

171

021

0

52

0

50

100

150

200

250

300

Preto Negro Pardo Cabra Sem cor

Homem

Mulher

Fonte: 2º. Livro de Óbitos de pessoas escravas. CDH.

Page 140: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

139

Gráfico 8 - Designação cor de escravos por gênero. 1880.

36

02

0 0

9

0 1 0 00

5

10

15

20

25

30

35

40

Preto Negro Pardo Cabra Sem cor

Homem

Mulher

Fonte: 2º. Livro de Óbitos de pessoas escravas. CDH.

Os dados dos gráficos 4 a 8 nos permitem verificar que a designação “preto” supera as

demais a partir da década de 1860. Os cativos que não tiveram uma cor atribuída somam um

maior quantitativo na década de 1840 e 1850. As distinções entre mulheres e homens pretos

são significativas. A qualificação parda teve nas mulheres suas maiores representantes. Os

pardos que mencionados na primeira são apenas 2, tendo seu número aumentado a partir do

ano de 1850. Na medida em que as informações sobre os mortos se tornam mais necessárias,

o número de escravos pretos sofre um grande aumento, à proporção que os que não tiveram a

cor mencionada diminui, não atingindo nenhuma representação no ano de 1880. Mas a cor

preta foi a que predominou em todos os períodos analisados para os escravos.

Page 141: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

140

Gráfico 9 - Designação cor Livres e libertos por gênero, 1840-49.

4 10 1 0 1 1

215

1 7 1 1 1 0

188

0

50

100

150

200

250

Branco

(a)

Preto

For

ro

Preto

Livr

e

Preto

Libe

rto

Pardo

Prova

velm

ente p

reto

Sem co

r

Homem

Mulher

Fonte: 1º Livro de Óbitos das pessoas livres e libertas. CDH.

Gráfico 10 – Designação cor e gênero de livres e libertos. 1850-59.

296

124 19

1

88

1 0 0 0 1

98

178

028 18

1

64

0 1 1 3 0

74

0

50

100

150

200

250

300

350

Branco Preto Pretoex-

escravo

PardoLivre

PardoForro

Indigena

Homem

Mulher

Fonte: 1º Livro de Óbitos das pessoas livres e libertas. CDH.

Page 142: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

141

Gráfico 11 – Designação cor e gênero de livres e libertos. 1860-69.

360

1035

1 3 8

76

4 0 1

62

212

027

3 0 10

78

1 2 138

0

50

100

150

200

250

300

350

400

Branco BrancoLivre

Preto PretoLivre

PretoLiberto

PretoForro

Pardo PardoLivre

PardoLiberto

PardoForro

SemCor

Homem

Mulher

Fonte: 1º e 2º Livro de Óbitos das pessoas livres. CDH.

Gráfico 12. Designação cor e gênero de livres e libertos. 1870-79.

282

221

118

0

71

1 0 0

201212

030

523

2

71

1 1 1

135

0

50

100

150

200

250

300

Branco BrancoLivre

Preto PretoLivre

PretoLiberto

PretoForro

Pardo PardoLivre

PardoLiberto

PardoForro

Semcor

Homem

Mulher

Fonte: 2º Livro de Óbito das pessoas livres e libertas. CDH.

Page 143: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

142

Gráfico 13 – Designação cor e gênero de livres e libertos. 1880.

0 1 0 0

15

0 0 0

36

23

0

6 50

6

0 1 0

14

47

05

101520253035404550

Branco BrancoLivre

Preto PretoLiberto

PretoForro

Pardo PardoLivre

PardoLiberto

PardoForro

Semcor

Homem

Mulhrer

Fonte: 2º Livro de Óbitos das pessoas livres e libertas. CDH.

As denominações por cor entre os livres são mais complexas, conforme nos

demonstram os dados dos gráficos 9 a 13. Nesse grupo temos: branco, branco livre, preto e

pardo. Os indivíduos que não têm sua cor mencionada são encontrados em maioria na década

de 1840. Diminuem consideravelmente nas décadas de 1850 e 1860, voltando a concorrer

com o número de brancos nas décadas de 1870 e 1880. A designação cor oscila neste grupo

social.

A qualificação “negro” é pequena entre os escravos, representando apenas 0.09% do

total dos cativos, sendo esta mencionada até a década de 1850. A partir de 1860, nenhuma

referência ao termo foi encontrada. Entrementes, no livro de óbito de livres, a designação

“negro” não aparece em nenhum dos assentos que fizeram referência a cor. Hebe Mattos

afirma a raridade de tal referência, pois a mesma trazia consigo um “sentido ofensivo e

pejorativo” no mundo dos livres. 254 Seria, pois, tão ofensiva que nem mesmo entre os

escravos era mencionada, ao menos nos registros oficiais da Igreja. Nos inventários, menção a

esta cor apenas na década de 1840 para 1 cativo (tabela 20), nas demais décadas nenhum fora

encontrado.

Outra classificação encontrada nos inventários e que não constam nos óbitos de

escravos e livres, é a “mulata” ou “mulato”, que faziam parte de um vocabulário simbólico e

hierarquizante. “Mulato – Mullatus – derivada de mulus tem sido empregada pelos

254 MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 94.

Page 144: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

143

naturalistas para designar os indivíduos da espécie humana, gerados de uma raça branca, ou

européia, com outra dos pretos”. 255 Essa colocação, que data dos anos iniciais do século XIX,

do jornal O Sentinela, demonstra a origem da palavra mulato e sua origem na ciência dos

naturalistas, tendo sido reiterada por alguns historiadores, destacada como mais uma das

possibilidades de hierarquias étnicas entre os africanos e seus descentes. E porque ela não

aparece nos registros de óbitos de livres e escravos, se é mencionada nos inventários?

Ivana Stolze, ao estudar as diversas falas de jornais que tinham no nome a

representatividade das designações dos descendentes de negros (mulato, homem de cor, etc.),

aponta-nos uma possibilidade de análise. Ela menciona a exclusão dos mulatos da política,

“corporificada nas eleições e nos empregos públicos”. 256 Embora analise a realidade da vida

urbana, indica as segregações e hierarquias étnicas na primeira metade do século XIX

existentes no Império do Brasil. Desta forma, o que seria mencionado como extermínio na

fala dos próprios mulatos, para a autora, estava inserido em questões de poder, como forma de

garantir aos brancos a sua continuidade no topo da hierarquia. O silêncio em relação à cor, em

alguns periódicos, seguindo ainda a análise de Stolze, indicam uma estratégia e a

desqualificação do termo “mulato”. Esta pode ter influenciado diretamente o não uso do

termo nos assentos de óbitos de livres para os descendentes de negros. Escravos albinos,

carvão, ruivos e fulos surgem como outras qualificações presentes nos inventários,

demonstradas nas tabelas a seguir:

Tabela 20 - designação cor. Inventários por décadas e gênero. 1840-1880.

Homem Mulher 1840-49 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID

Cabra - - 4 - - 1 - 2 4 1 - 1 Mulato 1 - 2 - - 1 - - 1 1 - - Negro - - - 1 - - - - - - - - Pardo 13 5 8 2 - 2 12 2 5 2 - 3 Preto - - - - - - - - - - - - Albino - - 1 - - - - - - - - - Total 14 5 15 3 0 4 12 4 10 4 0 3 Total Década: 74

Homem Mulher 1850-59 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID

Cabra - 2 6 1 - 7 - 1 3 - - 11 Mulato - 1 - - - 2 - - 1 2 - - Negro - - - - - - - - - - - - Pardo 9 10 13 1 - 36 12 12 11 3 - 34 Preto - - - 1 - 2 - - - - - - Albino - - - - - - - - - - - 1 Total 9 13 19 3 0 47 12 13 15 5 0 46

255 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 59. 256 Idem. Ibidem. p. 54.

Page 145: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

144

Total Década: 182 Homem Mulher 1860-69

0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID Cabra 4 2 7 - - 17 2 2 6 1 - 14 Caboclo - - 1 - - - - - - - - - Carvão - - - - - 1 - - - - - - Mulato 4 1 4 - - 10 - - 1 1 - 8 Negro - - - - - - - - - - - - Pardo 19 18 55 4 - 36 24 25 36 7 - 51 Preto - - - 1 - 5 - - 2 - - 4 Ruivo 3 - - - - - - - - - - - Total 30 21 67 5 0 69 26 27 45 9 0 77 Total Década: 376

Homens Mulheres 1870-79 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID

Cabra 6 - 16 3 - - 11 5 14 6 - 2 Fulo - 1 - - - - - - - - - - Mulato 1 1 3 1 - - 2 1 6 - - 1 Negro - - - - - - - - - - - - Pardo 39 32 118 23 - 27 46 38 89 12 - 20 Preto 1 1 7 6 - 3 4 8 7 6 - 2 Albino - - - - - - - - - - - - Total 47 35 144 33 0 30 63 52 116 24 0 25 Total Década: 569

Homens Mulheres 1880

0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID Cabra - - - - - - - - - - - - Mulato - - - - - - - - - - - - Negro - - - - - - - - - - - - Pardo - 3 9 3 - 2 - 3 14 2 - 1 Preto - - - - - - - - - - - - Albino - - - - - - - - - - - - Total 0 3 9 3 0 2 0 3 14 2 0 1 Total Década: 37 TOTAL GERAL: 1238 Fonte: Inventários post mortem, 1840-1880. CDH.

“Escravos, crioulos e pardos mantinham identidades e comunidades tão separadas

umas das outras quanto das nações africanas” 257. Desta forma, podemos perceber as divisões

presentes na sociedade escravista, mesmo entre os cativos. Parece trata-se de uma Hierarquia

social e racial que demarcava os diversos “lugares” a serem ocupados pelas nações existentes.

Entre os livres também existia a estratificação, tendo em vista as distinções por cor, condição

jurídica e ocupacional entre pardos livres e negros livres, o que, de certo, demonstra o

“orgulho” de ser pardo ou crioulo, o que poderia caracterizar ser “melhor” e tratado com um

pouco mais de dignidade pela sociedade escravista.

Indígenas e caboclos representam uma minoria nos assentos de óbito de livres. Ivana

Stolze informa que índios foram transformados em caboclos e os dois termos poderiam ser

257 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 37.

Page 146: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

145

utilizados como sinônimos. Entretanto, este termo era mais abrangente e sua utilização para

designar indígenas aponta para uma domesticação dos mesmos. Os indígenas correspondiam a

0.03% (1) do total dos mortos que receberam um registro no Livro da Igreja.

Cotejando as diferenças entre os registros dos grupos sociais, percebemos que as

qualificações de cor se tornam mais complexas, possivelmente devido ao aumento da

miscigenação entre as etnias. Temos, como fator novo, a designação “branco livre”.

Provavelmente, devido à existência de brancos não livres ou, muito provavelmente, de

descendentes de escravos não tão negros. Fato que infelizmente no presente momento não

temos como comprovar.

O “doutor”, homem treinado na universidade e dentro da tradição européia, era

geralmente respeitado por fazendeiros. Tal fato já era percebido nos tempos coloniais, de

forma que um diploma significava estar numa posição hierárquica superior, tradição reforçada

durante o século XIX. 258 Essa qualificação poderia não se referir apenas à classe médica, mas

também ao advogado ou outros profissionais de nível superior, ou até mesmo a pessoas que

tivessem um alto cargo. Mas ser doutor, numa sociedade extremamente estratificada, não

abolia a origem étnica do indivíduo, de forma que, sendo descendente de negros, tal fato

ficaria registrado em vida devido ao fenótipo impossível de não ser percebido. E na morte,

registrado no seu assento:

Aos quinze do mez de Agosto de mil oitocentos e setenta e cinco, n’esta Freguesia de Vassouras, falleceu da vida presente, em idade de trinta e seis annos, Dr. José Pereira dos Santos, pardo, casado com D. Catarina Maerbeck dos Santos, natural da Freguesia de São Sebastião de Ferreiros; foi encommendados por dous Sacerdotes, acompanhado e sepultado em caixão feixado no Cemitério d’esta Cidade. E para constar mandei fazer este assento por mim assignado. 259

Embora fosse doutor e socialmente ocupasse um lugar de destaque, não era branco e

por isso deva ter sido mencionada a sua origem, que fica clara em não ser branco. Outros

signos de diferenciação social estão presentes em seu assento. Sua encomendação foi feita por

2 sacerdotes, sendo sepultado em caixão fechado: são dois fatores de pompa fúnebre,

demonstrando a sua condição econômica. O mesmo ocorre com libertos e forros que tinham a

sua antiga condição jurídica explicitada em seus assentos; também nos pretos libertos, pardos

258 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 159. 259 2º. Livro de Óbitos das pessoas livres. f. 48. CDH.

Page 147: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

146

livres, que tinham em seus registros a anotação sobre a condição de seus pais, ou o nome de

seus ex-proprietários. As designações dos livros de óbito representam a linguagem oficial do

Império do Brasil, pois os párocos são representantes da sua administração.

A divisão da sociedade livre por cor gerou conflitos na Corte, como demonstra Ivana

Stolze ao destacar um trecho apresentado num jornal intitulado O Homem de Cor, que

expunha claramente a guerra iniciada pelos brancos ao desejarem a distinção dos livres pela

cor da pele. 260 Segundo Ivana “a ‘guerra’ a que se refere o trecho anterior consistiu nas

disputas pela participação na sociedade política, advogando especialmente para que não

houvesse distinção de cor entre os cidadãos livres”, aqui se referindo ao contexto urbano. 261

Desta maneira, percebemos que a existência de diversas qualificações não foi apenas uma

maneira de identificar o morto, mas de hierarquizá-lo étnica e economicamente. Podemos

pensar na existência de subgrupos entre os diferentes grupos sociais que se formaram a partir

do crescimento demográfico: escravos, ex-escravos, homens pobres livres, indígenas. Quanto

mais complexa, mais difícil a organização dos subgrupos que surgem a partir da

miscigenação.

Em Vassouras, podemos perceber a resistência presente no discurso oficial da Igreja,

que em última instância atendia aos interesses dos mais poderosos. Especificamente no caso

do doutor mencionado acima, pelo fato de ser pardo, logo, descendente de negros, não era

visto como um igual. Era doutor, mas não era branco. Demonstra-se assim a resistência do

poder dominante em aceitar negros e seus descendentes como iguais. Mas por um outro viés

de análise, o fato de termos um “doutor” descendente de negro, com um sepultamento

pomposo, nos permite pensar os diversos rompimentos das fronteiras impostas social,

econômica e politicamente naquela sociedade.

4.3 - Nações:

No caso de Vassouras, Stanley Stein demonstra que os fazendeiros registravam a

procedência de escravos que vinham da África, de acordo com o porto de desembarque e não

pela sua origem tribal, prática percebida em outras províncias. Segundo Stein, cinqüenta por

260 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 91. 261 Idem. Ibidem. p. 91.

Page 148: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

147

cento dos escravos africanos que chegavam a Vassouras eram procedentes de “Angola”,

“Benguela”, “Congo” e “Cabinda”. Existia ainda um segundo grupo formado por

“Mossanbique”262.

Objetivando conhecer qual a origem dos cativos que mais morriam, produzimos a

tabela 21, onde foram agrupados segundo a origem descrita nos assentos de morte. Os

percentuais foram calculados com base no total dos mortos para todo o período, 3.162. Os

dados quantificados demonstram que os escravos que mais morriam e que tiveram sua origem

informada eram os procedentes da África Centro-Oeste. Os Benguelas correspondiam ao

maior número de óbitos dentro deste grupo (39), seguidos por Congos (29), Angolas (24) e

Cabindas (19). Da região da África do Leste, os Moçambiques merecem menção, pois

totalizaram 23 óbitos. Os de origem africana totalizam 177 (5.60%) indivíduos. Contudo,

eram os crioulos, escravos nascidos no Brasil, que constituíam o maior número: 334

(10.57%), sendo 195 (6.17%) homens e 139 (4.40%) mulheres. Se somarmos todos os

africanos, que tiveram sua origem registrada, temos um total de 648 (20.50%) mortos no

período de 1840 a 1880, destes 78.55% são homens e 21.45%, mulheres.

Tabela 21 - Distribuição da Naturalidade (região de embarque) dos escravos africanos que morreram em Vassouras, 1840-1880.

Homens Mulheres Total Região Africana Naturalidade

No % No % No % África Ocidental Mina 12 6.8 5 2.8 17 9.6

Angola 11 6.2 13 7.3 24 13.5 Benguela 29 16.4 10 5.6 39 22.0 Cabinda 16 9.0 3 1.7 19 10.7 Cassange 7 3.9 2 1.1 9 5.0

Congo 24 13.5 5 2.8 29 16.3 Canguela 0 0 1 0.6 1 0.6 Monjolo 3 1.7 1 0.6 4 2.3 Muange 1 0.6 1 0.6 2 1.1

África Centro-Oeste

Rebolo 2 1.1 1 0.6 3 1.7 Inhambana 1 0.6 0 0 1 1.1

África do Leste Moçambique 22 12.4 1 0.6 23 13.0 Camondongo 1 0.6 0 0 1 0.6

Costa 3 1.7 1 0.6 4 2.3 Não Determinada Pilar 1 0.6 0 0 1 0.6

TOTAL 133 75.1 44 24.9 177 100 Fonte: Registro de Óbitos de escravos. CDH.

262 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução de Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 108.

Page 149: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

148

Tabela 22. Escravos africanos com origem não especificada. 1840-1880.

Homens Mulheres Total Região Africana Origem

No % No % No % Africano 48 10.1 10 2.1 58 12.3

Não especificado Nação 328 69.6 85 18.0 413 87.9

TOTAL 376 79.8 95 20.2 471 100 Fonte: Registro de Óbito de escravos. CDH.

4.4 – Hierarquias e Diferenças sociais:

Na década de 1830 houve duas tentativas de fazer o censo no Império do Brasil, e em

nenhuma fora mencionada a categoria “liberto”, o que, segundo Ivana, pode corresponder à

existência de tensão social a respeito das segregações da condição jurídica.263 No caso dos

óbitos em Vassouras, essa categoria é mencionada para pretos e pardos, bem como a categoria

“livre”, para brancos, pretos e pardos e “forro”, para pretos e pardos. A sociedade de

Vassouras do século XIX não poderia ser vista como uma dicotomia entre livres e escravos.

As hierarquias eram complexas e existiam entre os dois grupos e no interior de cada um deles.

As segregações sociais podem ser percebidas no próprio registro ao cotejarmos

escravos e livres. Para os escravos não se gastava muita tinta, os seus assentos eram pequenos

e continham informações mínimas, ainda que fossem batizados e inseridos na religião

católica:

Aos vinte e tres de maio de mil oito centos sessenta e oito falleceo da vida prezente em idade de tres mezes Firmino preto, escravo de Felisberto Gomes da Silva, foi encomendado e sepultado no Cemeterio [sic]da Luz, filial desta freguesia de Vassouras. De que para constar fis este assento. 264

Informações necessárias para identificação, como o nome do escravo e de seu

proprietário são utilizadas. A idade, causa mortis e o ritual de encomendação, nos ajudam a

compor o quadro sobre as condições de morte de cativos em Vassouras, mas não um quadro

completo. Neste, como na maioria dos registros, não temos informações sobre a causa da

263 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 113. 264 2º. Livro de Óbitos de escravos. CDH.

Page 150: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

149

morte. Informações familiares, como nome da mãe ou do pai constam eventualmente,

inviabilizando a possibilidade de reconstruir apenas por este documento, a vida familiar.

Entretanto, os registros de livres se apresentam de forma mais completa:

Aos vinte e oito de novembro de mil oito centos e quarenta e seis Nesta Igreja Matriz de Vassouras encomendei solenemente o cadáver do Commendador José Correia e Castro o qual falleceo com todos os sacramentos foi conduzido em caixão fexado e proprio acompanhado por todas as Irmandades desta Freguesia com assistência de todos os sacerdotes da mesma com muzica, teve missa solenne de corpo prezente e encomendação xxx (ilegível) no fim e foi sepultado em hum carneiro subterrâneo sob huma campa de cantaria no corredor do lado do Evangelho próximo da porta lateral do mesmo, tendo em sua vida legado a Nossa Senhora da Conceição padroeira desta Matriz a quantia de quarenta contos de reis por Escriptura publica e caluzulos que na mesma contem; falleceo no dia vinte e seis do corrente. E para constar fiz este termo em que assigno.265

Este assento se distancia da maioria, pois o morto era um integrante da elite, tendo por

esse motivo no assento, na sua forma escrita, a minúcia que garantia expressar e ostentar o

quão importante havia sido em vida. O Comendador José Correia e Castro teve, em 1846,

caixão fechado e próprio, o acompanhamento de todas as irmandades da cidade, a assistência

de todos os sacerdotes, música e missa solene de corpo presente. Dentre esses fatores, o que

mais chama a atenção é a descrição específica do local onde se inumaria seu corpo, ou seja,

em “um carneiro subterrâneo e no corredor do lado do Evangelho”. O Evangelho é a palavra

de Deus viva e o caminho para se alcançar a eternidade. Tal cuidado ao descrever o local da

inumação sugere a garantia do mesmo ali ser enterrado e de ser visitado por parentes, bem

como a garantia de ser sempre lembrado por estes quando das visitas para participar das

missas. Mas não é só. O pároco sublinha a contribuição em dinheiro feita pelo morto em

escritura pública no valor de quarenta contos de réis, legado em vida à padroeira da Igreja

Matriz: uma boa quantia que garantiria atenção a sua alma, bem como a manutenção da

Igreja.

A inumação do Comendador ilustra a questão econômica mencionada anteriormente

como um dos fatores que pode ter sido fundamental na tentativa da Igreja em manter para si a

responsabilidade sobre os enterros. Os indivíduos que compunham as classes mais abastadas

da sociedade tinham no registro de óbito a sua condição presente por meio dos rituais de bem

morrer, bem como a localização de sua sepultara como fatores hierárquicos.

Semelhantemente, os menos afortunados tinham apresentada sua condição econômica

265 2º. Livro de Óbitos das pessoas Livres. CDH.

Page 151: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

150

indiretamente pela ausência de opulência e rituais de bem morrer e objetivamente, quando a

palavra “pobre” é inserida no texto do assento como demonstra a tabela 20:

Tabela 23 – Qualificação segundo a condição econômica. 1840-1880.

Homens Mulheres Pobre 11 6 Pobríssimo - 1 Não pagou fabrica 1 - Total 12 7 Fonte: CDH. Livro de Óbitos das pessoas livres e libertas. 1840-1880.

Ser pobre sublinha a escala social no qual se encaixa determinado indivíduo,

provavelmente desprovido de dinheiro suficiente para ter o que se chamaria de bom enterro. A

tabela 20 demonstra que homens e mulheres eram classificados de acordo com o seu poder

econômico. Dos números acima, 5 homens são brancos, 4 pardos e 2 não tiveram a cor

mencionada. As mulheres são representadas por 2 brancas, 1 parda, 1 cabocla e 3 sem cor

especificada. Os assim considerados, geralmente não têm o sepultamento acompanhado,

assistência de padres, não são amortalhados e não têm caixão próprio. A partir destes dados,

podemos supor uma hierarquização social, na qual os sujeitos são segregados material e

simbolicamente.

Entre os livres e proprietários vimos as diferenças claramente marcadas pelo número

de escravos e extensão de suas propriedades. No caso de grandes e mega proprietários, elas

são proporcionalmente maiores se comparadas aos pequenos. Também no campo simbólico as

distinções se faziam notar na obtenção de cargos nobiliárquicos. As segregações sociais na

morte podem ser tão complexas quanto eram em vida. Como descrito acima, alguns pobres

tinham direito a um enterro no modelo da igreja católica, mas não eram “iguais”.

Indiretamente, podem ser identificados devido à ausência dos ritos que ostentavam poder e

riqueza. Todavia, as designações “pobre”, e até mesmo “pobríssimo”, foram feitas pelo

pároco de forma direta. Os números citados acima podem parecer irrisórios, mas demonstram

a complexa rede social existente entre os livres.

As cerimônias de bem morrer presentes em muitos dos assentos sugerem que elas

tinham uma grande importância para a maioria dos indivíduos da sociedade escravista de

Vassouras no oitocentos. Por que ricos e pobres se esforçavam para garantir a seus entes

queridos os ritos e rituais funerários? Os que não podiam garantir o mínimo recebiam uma

marca e um registro indeléveis, que apresentam sua impossibilidade de atender o que

Page 152: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

151

mandava a Santa Igreja. Qual a sua real importância? Certamente estavam presentes no

cotidiano de tais indivíduos. Todos os instrumentos religiosos, sacramentos, são símbolos de

poder, sendo utilizados pela Igreja para a legitimação de sua dominação no que tange questões

da morte, pois:

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, [...] para a domesticação dos dominados. 266

O seu discurso atendia a outros setores. Entre estes acolhia as necessidades de

proprietários de escravos. A preleção da Igreja afirmava que o senhor deveria ser visto como

pai e não como algoz. Escravos deveriam aceitar mazelas e sofrimentos em vida para ter uma

vida eterna no Paraíso. Sua fala viabilizava a dominação e manutenção da ordem como todos

os outros fatores já mencionados, utilizados no mesmo sentido.

Ivana Stolze identifica em um mapa da área rural enviado ao ministro do império

sobre nascimentos, casamentos e óbitos, com divisão entre brancos, livres (pardos e pretos) e

escravos (pardos e pretos), onde a utilização da cor e da condição jurídica é “mesclada”. 267

Ser branco, na perspectiva da autora, dispensaria esse tipo de classificação necessária para

pardos e pretos, que poderiam ser livres ou escravos. Fato diferente ocorre em Vassouras, pois

nos óbitos temos a classificação “branco livre”, demonstrando aí a necessidade de mesclar

condição e cor em todos os segmentos. Se na primeira metade do século XIX ser livre era

condição do branco, a partir da segunda metade a complexidade étnica se intensifica. Houve

um crescimento no número de negros e mestiços livres ou forros, dificultando as pretéritas

qualificações e distinções hierárquicas relacionadas à liberdade. 268

A designação “branco livre” aparece pela primeira vez no registro do dia 3 de julho de

1864 de Carlos Ferreira, português, 23 anos de idade, solteiro, falecido na Santa Casa de

Misericórdia de Vassouras. Ter falecido na Santa Casa de Misericórdia é um indício de sua

condição econômica. No total, eles correspondem a 11 sujeitos com essa qualificação. Os

266 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 11. 267 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 99. 268MATTOS, Hebe M. Das Cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 33.

Page 153: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

152

fazendeiros não consideravam pares os artesãos locais e lojistas, que geralmente eram

portugueses, italianos, espanhóis, franceses e alemães, como nos aponta os livros de óbitos de

pessoas livres. Muitos poucos destes homens conseguiram mudar sua condição social e por

não fazerem parte da mais alta hierarquia eram criteriosamente diferenciados em vida e

também na morte. Provavelmente, daí decorra a qualificação “branco livre” e o lugar que

ocupavam na ordem social escravista de Vassouras no século XIX. Segundo Stanley Stein,

alguns homens livres e brancos conseguiram ascender socialmente por meio do casamento,

tornando-se mais próximos a donos de terras menos prósperos e fazendeiros modestos. 269 A

mobilidade social existia, mas era limitada.

Reiterando a questão da hierarquia social presente na morte, verificamos que algumas

designações podem ser claras e outras tantas, muito subjetivas. A própria qualificação por cor

e condição jurídica demonstra tal fato. De forma que, quando branco e proprietário,

presumimos a não necessidade de designar a cor principalmente entre os mais ricos, mas a

mesma aparece em muitos casos, principalmente a partir da década de 1850. Talvez isso

ocorresse para que não houvesse nenhuma dúvida quanto ao lugar social. Nesses casos, a

designação do país era necessária.

A designação “branco livre” causa estranhamento, tendo em vista que alguns trabalhos

historiográficos mencionam a cor negra como pressuposto para ser escravo. Outro ponto

sugestivo é o fato de que havia uma clara distinção entre os que nasciam livres e os que

adquiriam a liberdade, sendo uma das marcas da segregação social. Segundo Hebe Mattos, “a

liberdade era, a principio, um atributo do ‘branco’ que potencializava a inserção social e a

propriedade”. Apenas na segunda metade do século XIX essa representação tivera sua base

modificada. 270 “A identidade ‘branca’ entre os homens livres, como senhores de escravos de

fato ou em potencial, torna-se, assim, progressivamente fragilizada”. Da mesma forma, “a

noção de cor, herdada do período colonial, não designava, preferencialmente, matizes de

pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos

quais etnia e condição estavam indissociavelmente ligadas”. 271

Especificamente em Vassouras no mesmo século, observamos que a complexidade em

relação às designações e qualificações por cor, ao menos no que se refere às mortes, surgem a

269 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução de Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 158. 270 MATTOS, Hebe M. Das Cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 33. 271 Idem. Ibidem. p. 95-98.

Page 154: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

153

partir da segunda metade, como sugeriu Hebe Mattos. Ela se ampliava na sociedade

escravista, devido à miscigenação, ainda que não fosse oficialmente declarada, o que

pressupõe sua diversidade étnica. Afirmar que um branco era livre pode nos remeter a uma

maneira especifica de classificar indivíduos segundo sua cor e condição jurídica

conjuntamente, em uma sociedade que se tornava cada vez mais complexa.

4.5 – Vestimentas:

As roupas fúnebres apresentam um fator de distinção social, pois nem todos podiam

pagar pelas vestimentas. Estavam relacionadas à idade, sexo e posição social daqueles que

morriam, demonstrando uma forte ligação entre vida e morte. Africanos e portugueses faziam

uso de uma roupa ou cobertura do corpo a ser inumado e seus costumes foram reproduzidos

em certa medida no Brasil. A tradicional cor funerária do candomblé é a branca. Brancos,

pretos e seus descendentes fizeram uso deste tipo de mortalha. Os iorubas associavam o

branco “ao orixá Obatalá ou Orisala, senhor da criação e zelador da vida”272 Os cristãos

também tinham no branco uma representação simbólica na morte, sendo utilizado em seus

funerais simbolizando a alegria da vida eterna. Do mesmo modo, na concepção cristã o uso da

mortalha branca poderia fazer alusão ao Santo Sudário, usado para envolver o corpo de Jesus

Cristo. 273 A utilização das mortalhas traz consigo um simbolismo fortemente presente na

vida, que se traduz na morte.

A mortalha preta para as mulheres poderia significar a perda da virgindade, pois o

branco, além de simbolizar a pureza, era a cor utilizada nos rituais de casamento. 274

Associando sexualidade e morte, podemos supor que homens escolhiam roupas de santos e

mulheres, de santas. Elas sugerem um apelo para que esses santos ajudassem o indivíduo na

hora da morte, garantindo uma passagem tranqüila para o além túmulo .

272 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 118. 273 Idem. Ibidem. p. 118. 274 Idem. Ibidem. p. 120.

Page 155: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

154

No período de 1876 a 1880, existiam diferenças no modo de vestir o cadáver de

crianças. As crianças livres (pretas, pardas ou brancas) usavam roupas de anjo. João José Reis

destaca o costume presente no século XIX, em se acreditar que após a morte crianças se

tornavam anjos. Assim, a indumentária seria a representação de seu novo estado. 275

Entretanto, para se tornar um anjo, a criança deveria ter sido batizada. Entre as jovens, a

vestimenta era de virgem. A cor mais utilizada por adultos era a preta.

Tabela 24 - Vestimentas de livres a partir da década de 1870.

VESTIMENTAS GÊNERO/COR Vestido

de anjo Vestido de preto

Vestido de Branco

Roupa de seu uso

Hábito preto

Rosa Vestido virgem

Vestido de roxo

Vestido de justo

Vest a Conceição

Branco 47 18 1 3 3 - - 1 - -

Pardo 9 3 - 1 - - - - - -

Preto 1 2 - 1 - - - - - -

HO

ME

M

sem cor 2 9 - 1 1 - - - 1 - Branca 27 11 2 1 - - 1 - - 1 Parda 7 6 - - - 1 1 - - - Preta 4 1 - - - - - - - - preta liberta - 3 - 1 - - - - - -

MU

LH

ER

sem cor 1 4 4 - - - - - - - TOTAL 98 57 7 8 4 1 2 1 1 1 Total % 54.4 31.7 3.9 4.4 2.2 0.6 1.1 0.6 0.6 0.6

Fonte: Registro de Óbito das pessoas livres. 1870-1880. CDH.

Entre as escravas, a consulta ao banco de dados utilizado para este trabalho não

apontou nenhum inocente com vestes especiais. Mesmo para aquelas batizadas e, como

pressupomos, filhas de Deus. Entretanto, entre as livres, 98 (8.41%) foram vestidas de anjo,

fossem elas brancas ou descentes de escravos, o que demonstra uma segregação social

ultrapassando num primeiro momento a distinção étnica. Destas, 47 (4.03%) eram meninos

brancos, 9 (0.77%) pardos, 1 (0.08%) negro e 2 (0.17%) sem a cor mencionada. Entre as

meninas mortas, 27 (2.31%) brancas receberam as vestes de anjo, 7 (0.605) pardas, 4 (0.34%)

pretas e 1 (0.08%) sem a cor mencionada. O número relativamente alto de crianças brancas,

reitera o pequeno número de crianças descendentes de escravos que receberam um enterro nos

moldes católicos, tendo em vista que as crianças oriundas da escravidão representam 19.57%

do total das que tiveram a cor mencionada.

As vestimentas de anjos parecem ter sido de uso comum na década de 1870 entre

crianças brancas, especialmente entre os meninos. As pretas e pardas representam um número

muito inferior. Não tivemos acesso a documentos que pudessem informar o valor dessas 275 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 120.

Page 156: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

155

vestes, mas supomos ter sido de fácil acesso ao grupo economicamente dominante. Não

podemos deixar de mencionar que numa sociedade hierarquizada, os grupos menos abastados

tendiam a se aproximar dos símbolos que pudessem destacá-los dos seus pares, o que

possivelmente requeria um maior investimento financeiro.

Aos dezesete dias do mez de Outubro do anno de mil oito centos setenta e seis, n’esta Freguesia de N. Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente , de molestia interna, João, preto, de um mez de idade, filho legitimo de Manoel Corrêa de Figueiredo e de Maria Felisarda; foi vestido de anjo, encommendado e sepultado no Cemitério d’esta Cidade: e, para constar mandei fazer este assento que asssigno. 276 (fl. 65v)

O batismo abria a porta de entrada para o céu e tornava o indivíduo filho de Deus. 277

Embora as crianças devessem ser batizadas até oito dias após o nascimento, muitas só

recebiam o sacramento do batismo às pressas devido a doença repentina. Mesmo após serem

batizadas de acordo com as ordens da Igreja, as livres e escravas, eram segregadas na morte.

As vestes utilizadas são distintas, adultos e crianças eram trajados de forma individualizada.

Os adultos desse período selecionado geralmente utilizavam o Hábito preto, branco, rosa,

roxo, da santa padroeira, vestes militares ou roupa de seu próprio uso. Estas de uso cotidiano

poderiam significar falta de dinheiro ou falta de tempo para preparar o velório:

Aos doze dias do mez [sic] de Março de mil oito centos setenta e seis, nesta Freguesia de N. Senhora da Conceição de Vassouras, na Santa Casa de Misericórdia, falleceu da vida presente de Tubérculo Pulmonar, depois de haver recebido o Sacramento da Extrema Unção, Albino José de Almeida, preto, livre, natural do Bananal, de vinte e quatro annos de idade, casado com Ricarda de Almeida, foi vestido da roupa do seu uso encommendado e sepultado no Cemitério d’esta Cidade: e, para constar mandei fazer este assento por mim assignado. 278(fl. 59 e 59v)

As mortalhas podem ser citadas como um dos elementos simbólicos da morte. Trazem

um significado importante e não podem ser consideradas neutras neste ritual; “seu uso

exprimia a importância ritual do cadáver na integração do morto ao outro mundo e sua

ressurreição no fim deste mundo”. Os assentos dos livros de óbitos não nos informam sobre

276 1º. Livro de Óbito das pessoas livres. CDH. 277PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 39. 278 1º. Livro de Óbitos das pessoas livres. fl 59 e 59v. CDH.

Page 157: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

156

nenhum outro costume em Vassouras a respeito do uso de outros artigos, sapatos, véus, como

no caso da Bahia no século XIX. 279

4.6 - Sacerdotes:

Os párocos e sacerdotes, como representes diretos da Igreja nas diferentes províncias

do Império do Brasil, se distinguiam dos outros indivíduos sociais de tal forma, que seus

funerais eram mais opulentos que de alguns barões do café. O discurso da Igreja era o que

permitia a transmissão dos rituais do bem morrer e de sua importância, garantindo desta

forma, a continuidade do mesmo sobre a vida e a morte. Sendo representantes de Deus na

terra, os párocos deveriam ser exemplos do modelo de bem morrer, que norteava a grande

maioria dos indivíduos. Os rituais e ritos descritos em seus assentos suplantavam em número

os dos homens abastados:

Aos nove de Janeiro de mil oito centos e setenta e cinco n’esta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cidade de Vassouras; falleceo da vida presente, depois de ter sido confessado e ter recebido todos os sacramentos que a Igreja manda, em edade de sessenta e nove annos o Monsenhor Antonio Rodrigues de Garcia Rio, Vigário encommendado desta mesma Freguesia de Vassouras; teve oito Missas de Corpo presente e officio com assistência de sete Padres, Missa cantada com musica, e foi acompanhado e sepultado em caixão fechado no Cemitério desta Cidade. De que para constar fis este assento. 280(fl. 39)

Neste assento percebemos a grande pompa: 8 missas de “corpo presente”, assistência

de 7 padres, missa cantada com música e caixão fechado. Esses símbolos aparecem em

diferentes combinações, mas raríssimas vezes todos em um único registro. Os sacerdotes

ocupavam um lugar de destaque nas representações fúnebres, eram os “especialistas em

salvação” na definição de João José Reis. Além dos enterros opulentos na forma e nos rituais

registrados, eram figuras importantes nos funerais, pois “velavam o corpo para salvar a alma

do Inferno, se possível do Purgatório”. A assistência recebida em vida por esses paroquianos

279 REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 124-128. 280 1º. Livro de Óbito das pessoas livres. f. 39. CDH.

Page 158: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

157

deveria ser a mesma na morte, preferencialmente pelo mesmo pároco. E sua participação era

fundamental na encomendação, acompanhamento e sepultamento dos fiéis.281

Os barões nem sempre tinham a mesma opulência descrita no registro de um

representante da Igreja:

Aos vinte sete de Março de mil oito centos e setenta e quatro, n’esta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, falleceo da vida presente com o sacramento da Extrema Unção o Excellentissimo Barão do Ribeirão, em edade de setenta e quatro annos, viúvo, teve duas missas de Corpo presente, foi encommendado com assistência de trez Sacerdotes e acompanhado ao Cemitério desta Cidade, onde foi sepultado em caixão feichado. De que para constar mandei fazer este assento, que por verdade assigno. 282 (fl. 34)

Apenas o sacramento da Extrema-Unção foi realizado. Teve 2 missas de “corpo

presente”, assistência de 3 sacerdotes e caixão fechado. As diferenças percebidas no assento

do Barão do Ribeirão, se comparadas com o do Monsenhor Antonio Rodrigues de Garcia Rio,

são muitas. Os números descritos das cerimônias deste são muito maiores que daquele.

Entretanto, se comparadas com os mais pobres, são extremamente opulentas.

A cultura que une é a mesma que segrega, pois sendo a religião católica a oficial do

Império do Brasil, e sendo todos os batizados filhos de Deus, na prática, nem mesmo na hora

da morte eles eram iguais. Desta forma, os mais abastados tinham rituais fúnebres mais

ostentosos, com acompanhamento de párocos, sacerdotes, “missas de corpo presente”,

música, caixão fechado, mortalha, vestes especiais, como as de anjo comum aos filhos dos

livres e não dos escravos. Estes são indícios da distinção social. Quanto maior o número de

padres e de símbolos fúnebres, melhor a condição social do morto. Contratar padres extras

significava custo maior nas cerimônias de bem morrer e maior pompa no funeral. Nesta

hierarquia da morte, os padres tinham um papel de destaque. Eram as autoridades presentes,

representantes da igreja e responsável em garantir uma passagem mais segura como dito

acima. 283

Essa mesma cultura dominante, ao legitimar as diferenças sociais, garante para si o

local de destaque e a distância das outras culturas em relação a si mesma. Disto demandam

281REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 142. 282 1º. Livro de Óbito das pessoas livres. f. 34. CDH. 283 REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 143.

Page 159: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

158

diferenças encontradas na forma de bem morrer na sociedade da Freguesia de Nossa Senhora

da Conceição de Vassouras. 284

284 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 11.

Page 160: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

159

Considerações Finais.

No presente trabalho, procuramos demonstrar que as relações de poder presentes na

vida também se manifestavam na morte. As hierarquias - raciais e sociais - e estruturas

produzidas pelo “campo de lutas” tendiam a ser reproduzidas, segundo Bourdieu.285 A morte,

aqui entendida como uma das formas de distinção social e de relações de poder, trazia consigo

a possibilidade de ex-escravos e homens pobres se aproximarem dos indivíduos mais

abastados da sociedade. Contudo, estes se esforçavam para, neste momento, reafirmarem sua

posição no topo da hierarquia social por meio de diferentes signos.

“Vassouras, apesar de ser uma região de ocupação recente e já dominada pela grande

propriedade exportadora, não fugiu ao padrão de certa difusão social da posse de cativos”. 286

A expansão da cultura cafeeira tornou isso possível, viabilizando modificações na estrutura

social. As relações de poder tornaram-se extremamente complexas a partir do seu

desenvolvimento, viabilizando a construção e reconstrução de valores simbólicos e religiosos

como forma de distinção entre os seus indivíduos, livres ou escravos. Desta forma, o Estado

Imperial, como centro de referências e de poder político, é o ponto de mediação entre a região

de Vassouras e o cenário nacional e internacional.287 Além disso, o aumento da produção

cafeeira está intrinsecamente ligado à demanda externa, fato que acarretou maior necessidade

de mão de obra escrava para atender a um mercado crescente.

Procuramos demonstrar que o modo de produção nas fazendas cafeicultoras

influenciou diretamente na qualidade de vida de escravos. A jornada de trabalho, que poderia

durar até 16 horas, levava-os à exaustão física e muitas doenças encontravam aí um campo

fértil. A alimentação precária, roupas insuficientes, pouca ou nenhuma higiene, são fatores

que, combinados com castigos físicos, poderiam ceifar prematuramente a vida de muitos

cativos, questões analisadas no primeiro capítulo. A perda ou diminuição da mão de obra

incidia diretamente na produção da fazenda, bem como nos bens do proprietário. Contudo, a

atenção a esses fatores só foi despertada a partir da segunda metade do século XIX. De acordo

com os dados, houve uma melhoria na vida de escravos com o fim do tráfico negreiro, embora

a preocupação inicial, provavelmente, fosse com a perda do patrimônio ou da mão de obra

285 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. pg. 85. 286 SALLES, Ricardo Henrique. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 124. 287 Idem. Ibidem. p. 21.

Page 161: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

160

necessária para a produção cafeeira; no entanto, foi revertida em alguns casos, ainda que

poucos, em benefícios para os cativos, que após este marco atingiram idade superior aos 50

anos, dado não encontrado até a década de 1850.

As diferentes moléstias descritas nos livros de óbito da paróquia e nos inventários nos

proporcionaram entender de que forma elas influenciavam na relação senhor / escravo. Se os

livros paroquiais apontam a tuberculose, pneumonia e doenças cardíacas como as

enfermidades que mais matavam, os inventários quantificam problemas físicos que

conduziam à queda do valor da propriedade escrava. Estes geralmente eram defeitos variados

nas pernas, mãos, braços e pés; surdez, cegueira e obesidade. Juntos, esses defeitos somam

46.97% do total dos cativos que tiveram uma enfermidade informada, que poderiam

efetivamente diminuir a mão de obra disponível. Essas deformidades sugerem o alto custo da

utilização da violência na manutenção da ordem, ou da intensa exploração para atingir uma

grande produção. Provavelmente, os registros religiosos estavam mais preocupados com os

simbolismos e rituais da morte, pois a maioria dos assentos não informa o motivo do

falecimento.

As segregações eram materiais e imateriais, aquelas facilmente percebidas no

cotidiano de senhores e escravos, no lugar social ocupado por cada um dos indivíduos na

sociedade e no interior de seu grupo. Entre os fazendeiros, as subdivisões de mega, grande,

pequeno e micro proprietários não se restringiam às designações: as roupas, construções e

alimentação eram, também, alguns dos fatores de distinção social. Poucos eram os que

ostentavam grandes fazendas e senzalas repletas de escravos.

As imateriais são observadas no campo simbólico. Na vida, podem ser percebidas nos

títulos nobiliárquicos. Na morte, se faziam notar nos diferentes locais de sepultamento que

hierarquizavam social e racialmente os indivíduos. Muito mais do que informar o local exato

de um corpo inumado, as descrições, que em alguns casos são demoradas, traduzem a

importância que teve em vida o cadáver ali disposto. Se dentro ou fora da igreja, era a

primeira segregação entre escravos e livres, ricos e pobres. Uma vez enterrado dentro do

templo, as diferenças aumentavam, quanto mais próximo do altar, mais importante era o

morto.

Outros dados fornecidos pelos Registros paroquiais são o número de missas de corpo

presente, de sacerdotes, da utilização de música nos acompanhamentos, da descrição da cor,

da condição jurídica do morto, cônjuges e pais, da informação “pobre” ou “pobríssimo”.

Todos esses, mecanismos utilizados para marcar na morte as estratificações fortemente

presentes naquela sociedade, principalmente a partir da década de 1850, com o aumento da

Page 162: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

161

população de cor entre os livres. Fator percebido nas designações que diferenciavam e

apontam o maior quantitativo de pardos entre os indivíduos que compunham o livro de óbitos

das pessoas livres.

A vestimenta de crianças livres e descendentes de escravos e libertos é um fator

significativo. Ela demonstra uma integração dos não livres nos códigos e valores da sociedade

abrangente, formadas também por mega fazendeiros, senhores de grandes extensões de terra e

de escravos. A tentativa dos descendentes de africanos em se equiparar aos livres demonstra

as possibilidades reais de mobilidade social, ao mesmo tempo em que evidencia os diferentes

lugares sociais.

Assim, o exame dos documentos neste trabalho não nos possibilitou uma visão

conclusiva sobre a morte e todos os fatores sociais, econômicos e simbólicos nela presentes,

que hierarquizavam os indivíduos. Estes foram segregados em vida e também no momento da

morte. Muitos indícios nos aproximam da complexidade social que fazia deste um momento

decisivo. No entanto, embora os documentos utilizados para este trabalho tenham nos

proporcionado um material rico para entendermos algumas questões, outros acabaram

surgindo como possibilidade de ampliar a pesquisa, como, por exemplo, a análise de

testamentos, que dilataria o debate sobre o poder simbólico.

Para uma análise mais coesa sobre as doenças e suas implicações, poderiam ser

utilizados registros hospitalares e médicos, receituários, medicação existente nos documentos

das fazendas e quantidades compradas, bem como documentos da Santa Casa de

Misericórdia. Da mesma forma, um melhor conhecimento dos tratamentos de moléstias que

existiram nos portos africanos na preparação para a diáspora poderia viabilizar o

conhecimento de práticas médicas naquele continente. Esses dados poderiam expandir o

conhecimento relativo aos males físicos que acometiam escravos e seus descendentes.

Enfim, acreditamos que, para estudar a escravidão no Brasil, seja necessário voltar os

olhos para a África. Os indícios sobre sua cultura, riquíssima, devem ser resgatados e

socializados, para que, talvez, possamos finalmente suplantar os preconceitos formados com

base em nosso passado histórico.

Page 163: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

162

Bibliografia:

Fontes Primárias

Manuscritos

Centro de Documentação Histórica / CDH, Universidade Severino Sombra

Livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras /

Centro de Documentação Histórica / CDH – 1º. 1820-1869.

Livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras /

Centro de Documentação Histórica / CDH – 2º. 1869-1888.

Livro de Óbitos de Livres da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras / Centro

de Documentação História / CDH – 1º. 1822-1868.

Livro de Óbitos de Livres da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras / Centro

de Documentação Histórica / CDH – 2º. 1868-1888.

Inventários post mortem de proprietários, 1840-1880. Centro de Documentação Histórica de

Vassouras / CDH.

Fontes impressas

Biblioteca Nacional

IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos

negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. 688 p.

TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia

Imperial, 1839. p. 257-264.

WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na

província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de

Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro.

Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985.

Lei Eusébio de Queiroz, 1850. Disponível em: <http://www.irdeb.ba.gov.br/>. Acesso em 20

maio 2006.

Decreto 798. Disponível em <http://www2.camara.gov/legislacao/publicacoes/doimperio/>.

Acesso em 10 set 2008.

Page 164: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

163

Fontes Secundárias

ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida Privada e ordem Privada no Império. In: História da Vida

Privada no Brasil; Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das

Letras1997. v. 2, p. 11-93.

ALMEIDA, Ana Maria Leal; BRITO, Miridan. A morte escrava em Vassoura. Vassouras:

[s.n.], 2007. 60 p.

ARIÈS, Philippe. Hitória da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução

de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. 316 p.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. 3 ed.São Paulo: Companhia das

Letras, 1994. p. 9-26.

BORGES, Magno Fonseca. Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e

ampliação da cultura cafeeira – Vassouras – 1821-1850. Dissertação de mestrado. Vassouras:

Universidade Severino Sombra. 140 p.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10. ed. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2007. 322 p.

BURKE, Peter. A Escola dos Annales 1929-1989: a Revolução Francesa da Historiografia.

São Paulo: Editora Unesp, 1997. 156 p.

CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de Teoria e

Metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997. 510 p.

CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: Ângela

Porto (Org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro:

Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 21 f.

CASTRO, Hebe M. Mattos de. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: História

da Vida Privada no Brasil; Império: a corte e a modernidade nacional V. 2. São Paulo:

Companhia das Letras,1997. p. 337-383.

______. História Social. Ciro Flamarion Cardoso, Ronaldo Vainfas (Org.) In: “Domínios da

História: Ensaios de teoria e metodologia”. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 45-60.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma História das Últimas Décadas da

Escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 288 p.

CROCE, Benetto. Sobre a Forma Científica do materialismo Histórico. In: Materialismo

Histórico e Economia Marxista. São Paulo: Instituto Progresso Editoriial, S.A., 1948.

Page 165: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

164

DAVIS, David Brion. O Problema da Escravidão na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2001. 562 p.

ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, Envelhecer morrer. Trad. Plínio

Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001. 110 p.

FALCON, Francisco. História e Poder. Ciro Flamarion Cardoso, Ronaldo Vainfas (Orgs.) In:

Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro, Campus, 1997. p. 61-

90.

FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás Pretas, Damas Mercadoras: As Pretas Minas nas

Cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese apresentada ao

Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Concurso para Professor

Titular em História do Brasil. Niterói, 2004. 276 p.

FLORENTINO, Manolo e GOÉS, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias Escravas e

Tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1850.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1997. 256 p.

______. Alforrias e Etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa. In: Topoi.

Revista de História. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social da

UFRJ/7 Letras, set. 2002, n.5, p. 9-40.

______. Do que Nabuco já Sabia: mobilidade e miscigenação racial no Brasil Escravista.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. 43ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 674.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido

pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 312 p.

GOMES, Flávio. Em Torno da Herança: do escravo-coisa ao negro-massa (a escravidão nos

estudos de relações raciais no Brasil). In: “Ideais de modernidade e sociologia no Brasil”.

Org. Marcos Chor Maio e Gláucia Villas Boas. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS,

1999. p. 125-144.

______. Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro,

século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 7-33, cap. 2. p. 144-247.

GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade

escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 294 p.

GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade: As ações de liberdade da Corte de

Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de janeiro: Relume Dumará, 1994. 122 p.

______. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de 1831 e o

princípio da liberdade na fronteira sul do Império brasileiro. In: Nação e Cidadania no

Page 166: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

165

Império: novos horizontes. Organizador, José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2007. p. 267-286.

GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Graal, 1978. p. 65-

71.

HERZOG, Marilza Maia e SÁ, Magali Romero. Doenças de além-mar: a introdução da

oncocercose nas Américas. In: Ângela Porto (Org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e

práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 13 f.

KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro

Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 646 p.

LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio

de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 228 p.

LOWENTHALl, David. Como Conhecemos o Passado? Projeto História. São Paulo, n. 17,

nov. 1998. p. 63-201.

MARIOSA, Rosilene Maria. Tratamento e doenças dos escravos da Fazenda Santo Antonio

do Paiol, 1850-1888. In: Ângela Porto (Org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e

práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 25 f.

MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados

e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004.

p. 259-376.

MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste

Escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 384 p.

______. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2004. 76 p.

MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil. Tradução James Amado. São Paulo:

Brasiliense, 2003. p. 16-67.

NOGUEIRA, André. Doenças, feitiços e curas: africanos e seus descendentes em ação nas

Minas do século XVIII. In: Ângela Porto (Org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e

práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 27 f.

PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no

Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007. 208p.

PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Enfermidades de escravos: contribuições metodológicas para

estimativas da mortalidade (Rio Grande de São Pedro, 1790-1835). In: Ângela Porto (Org.).

Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de

Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 29 f.

Page 167: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

166

PIRES, Ana Flávia Cicchelli. Viagens atlânticas: a participação dos sangradores no comércio

de escravos, 1808-1828. In: Ângela Porto (Org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e

práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 26 f.

POLLAK, Michael. Memória e identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV,

n.10, 1992, p. 20-212.

______. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, n.3,

1989, p. 3-15.

POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. Parte 1ª. A materialidade

institucional do Estado. 4. ed. São Paulo: Paz e terra, 2000. p. 47-123.

REIS, João José. A morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século

XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 358 p.

REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a Resistência negra no Brasil

Escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 152 p.

REVEL, Jacques. Microanálise e construção do Social. In: Jacques Revel (Org.) Jogos de

Escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998. p. 15-38.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente

necessário. In: Formas em Crise: utopias necessárias. Rio de janeiro: Arquimedes Edições,

2005. p. 93-111.

RIOS, Ana Lugão e MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania

no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 306 p.

RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações

fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento

Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 115-172.

RUSSEL-WOOD, A.J.R. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Tradução: Maria Beatriz

Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 478 p.

SALLES, Ricardo. Vassouras 1850-1870: Escravos e Senhores no Coração do Império. Juiz

de Fora: Clio Edições Eletrônicas, 2005.

______. Vassouras – século XIX. Da liberdade de se ter escravos à liberdade como direito. In:

Nação e Cidadania no Império: novos horizontes”. Organizador, José Murilo de Carvalho. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 287-311.

______. E o Vale era o Escravo: Vassouras, século XIX – Senhores e escravos no coração do

império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 336 p.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo / razão e emoção. São Paulo:

Hucitec, 1996, p. 50- 88.

Page 168: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

167

SCHNOOR, Eduardo. O resgaste dos inventários como documentos príncipes para a história

da saúde dos escravos. In: Ângela Porto (Org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e

práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 34 f.

SHARPE, Jim. A História vista de Baixo. In: BURKE, Peter. (org.) A Escrita da História. São

Paulo: UNESP, 1992. p. 39-62.

SILVA, Catia Antonia da. Crise da Modernidade e trabalho em contextos Metropolitanos. In:

Formas em Crise: utopias necessárias. Rio de janeiro: Arquimedes Edições, 2005. p. 23-46.

SOUSA, Jorge Prata. Anotações a respeito de uma fonte: os registros de óbitos da Santa Casa

de Misericórdia do Rio de Janeiro, século XIX. In: Ângela Porto, organizadora. Doenças e

Escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz /

Fiocruz, 2007. 21 f.

SLENES, Robert W. Na Senzala uma Flor: as esperanças e as recordações na formação da

família escrava – Brasil Sudeste, Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 27-

130.

STEIN, Stanley J. Vassouras: Um Município Brasileiro do Café, 1850-1900. Tradução: Vera

Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 361 p.

THOMPSON, Edward P. As Peculiaridades dos Ingleses. In: As Peculiaridades dos Ingleses

e Outros Artigos. Org. Luigi Negro e Sérgio Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.

p. 73-179.

______. Folclore, Antropologia e História Social. In: As Peculiaridades dos Ingleses e Outros

Artigos. Org. Luigi Negro e Sérgio Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. p. 227-

267.

VEYNE, Paul. Como se Escreve a História e Foucault revoluciona a História, 4. ed revisada.

Brasília: Editora UnB, 1998. p. 17-165.

Page 169: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 170: Universidade do Estado do Rio de Janeiro Curso de Mestrado …livros01.livrosgratis.com.br/cp155786.pdf · apresentados nos seminários, ... Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo