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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
MAYARA WAGNER SILVA
DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 11, §1º DO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL FRENTE AOS
PRINCÍPIOS DO ESTADO LAICO BRASILEIRO
Biguaçu
2010
MAYARA WAGNER SILVA
DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DOART. 11, § 1º DO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL FRENTE AOS
PRINCÍPIOS DO ESTADO LAICO BRASILEIRO
Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI , como requisito parcial a obtenção do grau em Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. MSc. Sandro Cesar Sell
Biguaçu 2010
MAYARA WAGNER SILVA
DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 11, § 1º DO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL FRENTE AOS
PRINCÍPIOS DO ESTADO LAICO BRASILEIRO
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e
aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de
Ciências Sociais e Jurídicas.
Área de Concentração: Direito Constitucional
23 de novembro de 2010.
Prof. MSc. Sandro César Sell UNIVALI – Campus de
Biguaçu
Prof. MSc. Giancarlo Castelan UNIVALI – Campus de
Biguaçu Membro
Prof. MSc. Luiz Magno Pinto Bastos Jr. UNIVALI – Campus de
Biguaçu Membro
DEDICATÓRIA
Dedico essa pesquisa a todos os meus
familiares, em especial a minha mãe,
Veridiana Wagner Silva e ao meu Pai
Orlando Nascimento da Silva por todo o
apoio e carinho que me deram nessa
jornada e por ela estarem presentes em
cada momento do curso, não medindo
esforços para fazer com que eu chegasse
aonde eu cheguei.
AGRADECIMENTO
Ao meu noivo Ramsés Magalhães Ambrosi, pelo
companheirismo, compreensão, carinho e paciência.
As minhas irmãs Danielle e Mayelle pela
cumplicidade, amizade e incentivo.
Aos meus tios e primos que acreditaram nos meus
sonhos e sempre apoiaram minhas metas para
conclusão do curso.
A prima e comadre Denize pelo presente Maria
Eduarda que me faz a cada dia ter mais vontade de
me empenhar em busca de um mundo melhor.
A minha avó Ernestina Nascimento da Silva, que me
ensinou a nobreza da solidariedade e da humildade,
principalmente diante da vitória e, aos avós Delício
Mendes da Silva, Eufrida Verônica Bauer Wagner e
Waldemiro Wagner (in memoriam), pelo exemplo de
honestidade, caráter e dedicação.
Aos meus queridos amigos Priscila Vicente e
Jhonata Vieira de Souza, pelos cinco anos de
amizade, cumplicidade e lealdade.
A minha sogra Maria Salete Ferreira Magalhães,
pelo carinho e incentivo.
As amigas Kalila, Joseane, Diana, Ingrid e Geyce,
que sempre me deram o apoio e incentivo
necessário para a iniciação e conclusão do curso de
Direito.
Ao Professor e orientador Sandro Cesar Sell, que
com o brilhantismo de suas aulas, me incentivou a
usar o direito como instrumento de promoção de
justiça social.
Um povo cuja fé se petrificou, é um povo
cuja liberdade se perdeu.
Rui Barbosa.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade
pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
São José, 23 novembro de 2008.
Mayara Wagner Silva
Graduanda
RESUMO
A presente pesquisa tem como objeto de estudo a análise da
constitucionalidade do artigo 11 do Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil
frente aos princípios do Estado Laico brasileiro. Dentro dessa temática objetiva-se
identificar se o referido artigo fere os preceitos dispostos na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, que garantem, dentre outros, o direito de
liberdade de consciência, que abrange a liberdade de crença e a liberdade de culto.
Para empreender o estudo tomou-se como suporte investigativo a abordagem
dedutiva como método de procedimento monográfico e técnica bibliográfica. O
trabalho se divide em três capítulos. O primeiro discorre sobre a formação do Estado
Laico brasileiro. O segundo capítulo explana acerca da formação religiosa no Brasil,
as influências do catolicismo na política interna do país e os aspectos atuais da
religiosidade brasileira. No terceiro capítulo realiza-se um estudo sobre o Acordo
assinado entre o Estado brasileiro e a Santa Sé, fazendo em um primeiro momento,
breves apontamentos quanto a força normativa dos tratados internacionais no
ordenamento jurídico brasileiro. Após, confronta-se o disposto no artigo 11 do
mencionado Acordo com os princípios constitucionais do Estado Laico. Com base no
estudo, verifica-se que o artigo 11 do Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil que
impõe um ensino de caráter confessional nas escolas públicas, entra em colisão com o
disposto no art. 19, inciso I, da Carta Política, que estabelece um Estado laico,
desvinculado de qualquer credo religioso, em respeito à pluralidade de seguimentos
religiosos e ao direito de não professar qualquer fé.
Palavras-chave: Estatuto Jurídico da Igreja Católica. Constitucionalidade.
Princípios do Estado Laico.
ABSTRACT
This research aims to study the analysis of the constitutionality of Article 11 of
the Legal Status of the Catholic Church in Brazil against the principles of the Secular
State in Brazil. Within this theme aims to identify whether that article hurt the
precepts laid out in the Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988,
which guarantees, among others, the right to freedom of conscience, which covers
freedom of belief and freedom of worship. To undertake the study was taken as
supporting the investigative approach as deductive method of procedure and
technique monographic literature. The work is divided into three chapters. The first
discusses the formation of the Secular State in Brazil. The second chapter explains
about the religious education in Brazil, the influences of Catholicism in domestic
politics and current aspects of Brazilian religiosity. In the third chapter is a study on
the agreement signed between the Brazilian and the Holy See, making it at first, brief
notes about the normative force of international treaties in Brazilian law. Later,
confronted with Article 11 of the aforementioned Agreement with the constitutional
principles of the Secular State. Based on the study, it appears that Article 11 of the
Legal Status of the Catholic Church in Brazil that imposes a confessional character
education in public schools, comes into collision with the provisions of art. 19,
paragraph I, the Political Charter, establishing a secular state, disconnected from any
religious belief in respect for religious plurality of segments and the right not to
profess any faith.
Keywords: Legal Status of the Catholic Church. Constitutionality. Principles of
the Secular State.
ROL DE CATEGORIAS (OPCIONAL)
Nome da categoria: Estado Laico
Conceito e colocar nota de rodapé.
Conceito da categoria
Padroado:
À aliança entre o Estado português e a Igreja católica chamou-se padroado: por concessão do papa, os monarcas portugueses exerciam o governo religioso e moral no reino e nas colônias. Na condição de grão-mestres, além do poder político detinham agora também o poder espiritual sobre seus súditos e deles podiam exigir doações e taxas para a Igreja. Em contrapartida, em muitas questões o rei invadia a área da Igreja. Por exemplo, administrava a cobrança de dízimo – a taxa de contribuição regular dos fiéis para a Igreja –, controlando sua distribuição entre paróquias e dioceses. Também escolhia bispos, protegia ordens religiosas e perseguia outras, construía conventos e pagava vencimentos da burocracia eclesiástica, como se capelães, vigários e bispos fossem funcionários da Coroa.1
1 PRIORE, Mary Del, Religião e Religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Àtica. 1997.
SUMÁRIO
RESUMO .................................................................................................................... X
ABSTRACT ............................................................................................................... XI
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1 ............................................................................................................ 15
A FORMAÇÃO DO ESTADO LAICO BRASILEIRO ................................................ 15
1.1. BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICOS ...................................................... 15
1.2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS PRINCÍPIOS VIGENTES DA LAICIDADE . 20
1.2.1 Princípio da Liberdade de Consciencia ........................................................... 21
1.2.2 Princípio da Liberda Religiosa ......................................................................... 23
1.2.3 Princípio da Liberdade Culto ........................................................................... 25
1.2.4 Princípio da Liberdade de Organização Religiosa ........................................... 26
1.2.1 Princípio da Liberdade da Igualdade ............................................................... 27
1.3. PERCURSO DA LAICIDADE NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO ...... 27
1.4. A INVOCAÇÃO DE DEUS NO PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO ................. 32
CAPÍTULO 2 ............................................................................................................ 37
FORMAÇÃO RELIGIOSA NO BRASIL ................................................................... 37
2.1. A RELIGIOSIDADE NO MUNDO: BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICOS 37
2.2. A RELIGIÃO: ENTRE O CONSERVADORISMO E A MUDANÇA..................... 38
2.3. A RELIGIOSIDADES NO BRASIL ..................................................................... 41
2.4. ASPECTOS ATUAIS DA RELIGIOSIDADE BRASILEIRA ................................ 50
CAPÍTULO 3 ............................................................................................................ 52
DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 11, §1º DO ESTATUTO JURIDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL FRENTE AOS PRINCIPIOS DO ESTADO LAICO ................................................................................................................................. 52
3.1. BREVES APONTAMENTOS ............................................................................. 52
3.2. A INCORPORAÇÃO DE TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO .......................................................................................... 53
3.3. A PERSONALIDADE INTERNACIONAL E OS TRATADOS DA SANTA SÉ .... 57
3.4. O ACORDO DO BRASIL COM A SANTA SÉ .................................................... 59
3.5. DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 11, §1º DO ESTATUTO JURIDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL FRENTE AOS PRINCIPIOS DO ESTADO LAICO ...................................................................................................................... 68
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 74
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 76
ANEXOS .................................................................................................................. 80
ACORDO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A SANTA SÉ RELATIVO AO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL ......... 80
12
INTRODUÇÃO
O tema objeto de investigação da presente pesquisa é a (In)
Constitucionalidade do Art. 11, § 1º do Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil
Frente aos Princípios do Estado Laico brasileiro.
O tema visa especificamente analisar a aplicação do artigo 11, §1º da Lei
7.107/2010, referente ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, frente aos
princípios contidos no artigo 5° “caput” e incisos I e VI da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, quais sejam: da igualdade, isonomia, liberdade de
crença, liberdade religiosa e o confronto com o Estado Laico Brasileiro, estabelecido
no artigo 19, inciso I, também da Carta Magna, para, assim, verificar a
constitucionalidade do referido estatuto.
Cumpre esclarecer que em um Estado Laico não pode haver lei que privilegie
determinado seguimento religioso. É necessário para se manter o respeito à
diversidade religiosa constante no Brasil e à liberdade de crença, um tratamento
isonômico a todos os seguimentos religiosos, ateus e agnósticos. Desta forma,
aprovar um Estatuto jurídico de uma religião específica, concedendo privilégios à
esta, é ferir os princípios de um Estado Laico.
De outro lado, o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil vem apenas
reconhecer a personalidade jurídica e garantir a segurança jurídica da Igreja Católica
no Estado brasileiro. Posto que os artigos do referido acordo vêm apenas consolidar
condutas já adotas pela Igreja dentro do território brasileiro, como o casamento, a
imunidade tributária, o ensino religioso em escolas públicas, dentre outros, não
ferindo, desta forma, os princípios constitucionais do Estado Laico, uma vez que,
todos os artigos foram elaborados em consonância com o Direito Internacional e o
princípio da Liberdade Religiosa.
A formação histórica do povo brasileiro está diretamente relacionada com o
catolicismo. A Igreja Católica sempre exerceu e exerce grande poder sobre
importantes decisões no cenário político do Brasil.
Ao fazer breve estudo sobre a história da formação cultural e política do povo
brasileiro, observou-se que as religiões assumem papéis diretivos na conduta das
13
pessoas. Mais que um mero abrigo para pessoas que buscam conforto, respostas,
refúgios. As Igrejas, independente do seguimento religioso, possuem grande poder
de manipulação. Com seus conceitos éticos, morais e religiosos, elas conseguem
definir para seus fiéis o que é certo ou errado. O que pode ou não ser feito,
tornando-se, assim, muito mais que uma simples conselheira, uma formadora de
opinião.
Destarte, instituições religiosas exercem grande poder e influência no
direcionamento de políticas públicas no Brasil, fato este que não deveria ocorrer,
uma vez que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece
princípios para garantir direitos fundamentais para a população brasileira,
independente do credo de cada um. Apesar da disposição expressa de princípios
que determinam ser o Brasil um país Laico, foi promulgado no dia 11 de fevereiro de
2010 o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, no qual verifica-se prováveis
inconstitucionalidades em alguns artigos que compõem o Estatuto. Portanto, se faz
necessário analisar o referido Estatuto e confrontá-lo com os princípios do Estado
Laico brasileiro, a fim de se verificar sua constitucionalidade.
Para a presente monografia foi levantada a seguinte
hipótese de investigação:
O Acordo fere o atual artigo 33 da Lei das Diretrizes e Bases
da Educação Nacional e o texto constitucional no que concerne ao Ensino
Religioso?
Quanto à metodologia empregada, registra-se que, na fase de
investigação foi utilizado o método dedutivo, na fase de tratamento de dados o
método cartesiano e o relatório dos resultados expresso na presente monografia é
composto na base lógica dedutiva2.
Nas diversas fases da pesquisa foram acionadas as técnicas
da pesquisa bibliográfica, com dados extraídos de fontes secundárias,
especificamente livros, artigos e revistas especializados, posições jurisprudenciais,
entre outros.
2 Cf. PASOLD. César Luiz. Prática da pesquisa jurídica – idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do Direito. 4 ed. Florianópolis: OAB/SC Editora. 2000, p.85
14
O trabalho, que se consuma neste relatório de pesquisa, está estruturado em
três capítulos.
No Capítulo 1 será explanado sobre os conceitos de princípios,
sendo abordados os princípios ensejadores da laicidade do Estado, principalmente o
princípio da liberdade de consciência e de crença, especificando os concernentes a
liberdade religiosa.
Ainda no primeiro capítulo, discorre-se sobre a formação da
laicidade estatal, onde abordam-se a evolução dos textos constitucionais quanto aos
princípios da liberdade de consciência.
O segundo capítulo explana acerca da formação religiosa no
Brasil, as influências do catolicismo na política interna do país e os aspectos atuais
da religiosidade brasileira.
No terceiro capítulo realiza-se um estudo sobre o Acordo
assinado entre o Estado brasileiro e a Santa Sé, fazendo em um primeiro momento,
breves apontamentos quanto a força normativa dos tratados internacionais no
ordenamento jurídico brasileiro.
Em outra análise, confrontam-se o artigo 33 da Lei das Diretrizes
e Bases da Educação Nacional e os princípios constantes na Carta Magna referentes
ao Estado laico e às liberdades de consciência e de crença, com o artigo 11, §1º do
Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, onde se verifica se tal dispositivo colide
com a laicidade do Estado brasileiro.
O presente relatório de pesquisa se encerra com as
Considerações Finais, oportunidade em que serão apresentados os pontos
conclusivos destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das
reflexões sobre a constitucionalidade do ensino religioso católico nas escolas
públicas.
15
CAPÍTULO 1
A FORMAÇÃO DO ESTADO LAICO BRASILEIRO
O presente capítulo, a partir de posições trazidas pela doutrina, discorre sobre
a formação do Estado Laico brasileiro. Para bem compreender tal questão, cumpre
realizar o estudo de seu conteúdo histórico, da conceituação dos princípios
norteadores da laicidade e de sua insurgência nos textos constitucionais do Estado
brasileiro até a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988.
1.1 BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICOS
A luta dos movimentos burgueses revolucionários contra o absolutismo e o
Estado de Polícia fez surgir no final do século XVIII e início do século XIX o Estado
de Direito3. O objetivo central era fazer com que os governantes se submetessem as
novas leis nas quais as vontades da classe emergente estivessem assinaladas. A
idéia era que o Estado interviesse apenas nas questões básicas de manutenção da
ordem, na proteção da liberdade e da propriedade individual, devendo abster-se de
intervir na vida dos indivíduos.i
No entanto, esta nova forma de intervenção estatal desencadeou quase um
absolutismo do contrato, da propriedade privada e da livre empresa. Fazendo surgir
a necessidade de o Estado desenvolver o cumprimento de outras tarefas,
principalmente as sociais.
E é nesse contexto que no final do século XIX e início do século XX
desencadeia-se um processo de democratização do Estado, onde este deverá não
apenas estar submetido à lei, mas principalmente à vontade popular e aos fins
propostos pelos cidadãos. Assim surge o Estado Democrático, que diferentemente
3 Zaffaroni, Eugenio Raul, Em busca das Penas Perdida, Ed. Revan.
16
do Estado de Direito, naquele importa saber a que normas o Estado e o próprio
cidadão estão submetidos e não simplesmente submeter-se às leis, sejam elas
quais forem sem se observar quais seus fins e valores. 4
No entanto, a incorporação dos direitos individuais no ordenamento jurídico
precedeu a ascensão burguesa, conforme leciona o doutrinador Raul Machado
Horta:
A recepção dos direitos individuais no ordenamento jurídico
pressupõe o percurso de longa trajetória, que mergulha suas raízes
no pensamento e na arquitetura política do mundo helênico, trajetória
que prosseguiu vacilante na Roma Imperial e Republicana, para
retomar seu vigor nas idéias que alimentaram o cristianismo
emergente, os teólogos medievais, o protestantismo, o renascimento
e, afinal, corporificar-se na brilhante floração das idéias políticas e
filosóficas das correntes de pensamento dos séculos XVII e XVIII.
Nesse conjunto, temos as fontes individuais, inatos, naturais,
imprescritíveis e inalienáveis do homem. Direitos oponíveis aos
grupos, incorporações, às corporações, ao Estado e ao poder
político. Direitos Individuais e Direitos Humanos, identificados e
incindíveis, pois o indivíduo, a pessoa, é, ontologicamente, o ser
humano.
A transposição da concepção abstrata dos direitos individuais para o
domínio concreto das instituições políticas, em processo de
desencadeamento pelos fragmentários documentos constitucionais
ingleses do século XVII – Petition of Rights, de 1628, Habeas Corpus
Amendment Act, de 1679, e o Bill of Rights, de 1689 – atendida ao
objetivo fundamental de limitar o poder do Estado pela submissão
dele aos direitos individuais, que se colocavam acima do Estado,
limitando-se o ordenamento estatal à revelação desses direitos
naturais pela técnica declaratória, para proclamar a anterioridade e a
insuprimibilidade dos direitos individuais. Reconhecia-se, na lição de
Duguit, a subordinação do Estado a uma regra de direito superior a
ele próprio. Concebeu-se a Declaração de Direitos Individuais como
instrumento de controle do poder, que não poderia ultrapassar a área
indevassável dos direitos individuais.5
No Brasil, sob influência da Declaração de Direitos de 1789, os direitos
individuais foram inseridos paulatinamente nas Constituições. A Constituição do
4 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, São Paulo, 1990, p.147. 5 HORTA, Raul Machado, Direito Constitucional, Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2003, p.213.
17
Império de 1824, ainda que fora de uma concepção democrática, trouxe alguns
desses direitos expressos em seus artigos, dentre eles podemos destacar:
� liberdade de expressão do pensamento, inclusive pela
imprensa, independente de censura;
� liberdade de convicção religiosa e de culto privado, contanto
que fosse respeitada a religião do Estado;
� inviolabilidade da casa;
� proibição de prisão sem culpa formada. exceto nos casos
declarados em lei, exigindo-se, contudo, nesta última
hipótese, nota de culpa assinada pelo juiz;
� exigência de ordem escrita da autoridade legitima para a
execução da prisão, exceto flagrante delito;
� punição da autoridade que ordenasse prisão arbitrária, bem
como de quem a tivesse requerido;
� exigência de lei anterior e autoridade competente, para
sentenciar alguém;
� independência do poder judicial;
� igualdade de todos perante a lei;
� acesso de todos os cidadãos aos cargos públicos;
� proibição de foro privilegiado;
� abolição dos açoites, tortura, marca de ferro quente e todas as
demais penas cruéis;
� proibição de passar a pena da pessoa do delinquente e, em
consequência, proibição do confisco de bens e da
transmissão da infâmia a parentes;
� garantia de cadeias limpas e bem arejadas, havendo diversas
casas para a separação dos réus, conforme suas
circunstâncias e natureza de seus crimes;
� direito de propriedade;
� liberdade de trabalho;
� inviolabilidade do segredo das cartas;
� direito de petição e de queixa, inclusive o de promover a
responsabilidade dos infratores da Constituição;
18
� instrução primária gratuita.6
No campo do direito às liberdades, conforme acima mencionado, a
Constituição Imperial, apesar de restringir a liberdade de culto, permitia a liberdade
religiosa. Em 7 de janeiro de 1890 o Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, chefe
do governo provisório da República, instituiu o Decreto n. 119-A que separava o
Estado brasileiro da igreja Católica, estabelecendo a liberdade religiosa, liberdade
de culto e o fim do padroado7. Dada sua importância, cita-se o Decreto n. 119-A:
Art. 1º E proibido á autoridade federal, assim como á dos Estados
federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos,
estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças
entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do
orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou
religiosas.
Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade
de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem
contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o
exercicio deste decreto.
Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos
actos individuaes, sinão tabem as igrejas, associações e institutos
em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de
se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a
sua disciplina, sem intervenção do poder publico.
Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições,
recursos e prerogativas.
Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a
personalidade juridica, para adquirirem bens e os administrarem, sob
os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de mão-
morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes,
bem como dos seus edificios de culto.
6 Texto disponível no site: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/herkenhoff/livro1/dhbrasil/br1.html, acesso em 10/04/2010. 7 À aliança entre o Estado português e a Igreja católica chamou-se padroado: por concessão do papa, os monarcas portugueses exerciam o governo religioso e moral no reino e nas colônias. Na condição de grão-mestres, além do poder político detinham agora também o poder espiritual sobre seus súditos e deles podiam exigir doações e taxas para a Igreja. Em contrapartida, em muitas questões o rei invadia a área da Igreja. Por exemplo, administrava a cobrança de dízimo – a taxa de contribuição regular dos fiéis para a Igreja –, controlando sua distribuição entre paróquias e dioceses. Também escolhia bispos, protegia ordens religiosas e perseguia outras, construía conventos e pagava vencimentos da burocracia eclesiástica, como se capelães, vigários e bispos fossem funcionários da Coroa.
19
Art. 6º O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação
dos actuaes serventuarios do culto catholico e subvencionará por
anno as cadeiras dos seminarios; ficando livre a cada Estado o
arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem
contravenção do disposto nos artigos antecedentes.8 (sic)
Nesse passo, a conquista e abrangência dos direitos individuais, em especial
os direitos concernentes à liberdade religiosa foi constitucionalmente consagrado na
Constituição Republicana, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, que estatuiu em
seu art.11, parágrafo segundo, o princípio do Estado laico:
Art. 11 - É vedado aos Estados, como à União:
[...]
2 º- estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos
religiosos;
[...]
Igualmente, o referido diploma legal dispôs no art. 72 sobre direitos e
garantias fundamentais, dentre eles, o princípio da legalidade, da igualdade, da
liberdade de culto, da liberdade de expressão religiosa e demais direitos
concernentes à liberdade religiosa, o que foi recepcionado pelas demais
constituições brasileiras até a atual, não deixando o Brasil, desde então, de ser um
Estado laico:
Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
§ 2º - Todos são iguais perante a lei.
A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros
de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as
suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e
de conselho.
§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer
pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e
adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.
8 Texto disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D119-A.htm, acesso em 11 de abril de 2010.
20
§ 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração
será gratuita.
§ 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela
autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a
prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que
não ofendam a moral pública e as leis.
§ 6º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.
§ 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá
relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos
Estados.
[...]
§ 28 - Por motivo de crença ou de função religiosa, nenhum cidadão
brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e políticos nem
eximir-se do cumprimento de qualquer dever cívico.
§ 29 - Os que alegarem motivo de crença religiosa com o fim de se
isentarem de qualquer ônus que as leis da República imponham aos
cidadãos, e os que aceitarem condecoração ou títulos nobiliárquicos
estrangeiros perderão todos os direitos políticos.9
A par disso, a garantia do direito à liberdade de consciência esteve
fundamentado no artigo 113 da Carta de 1934; já na Constituição de 1937 tal
garantia veio disposta no art. 122; na Constituição de 1946 o direito de consciência
foi mantido no art. 141; a exemplo da carta de 1967 que dispôs no artigo 153 o
princípio da liberdade de consciência; que foi mantido no mesmo artigo da carta de
1969 e respeitado na Constituição cidadã de 1988, em seu art. 5º.
1.2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS PRINCÍPIOS VIGENTES DA LAICIDADE
Após o período do autoritarismo militar que sucedeu ao golpe de 1964, os
movimentos sociais e as lideranças políticas expressam a necessidade de uma
constituição com características democrática e principiológica. Neste diapasão, a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi escrita preocupada em
garantir principalmente direitos aos cidadãos, sendo estes baseados em princípios e
garantias fundamentais. Porém, antes de discorrer sobre tais princípios, necessário
se faz trazer aqui, inicialmente, o conceito de princípio.
9Disponível no site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm, acesso em 10 de abril de 2010.
21
Desta forma, princípio é, na difundida colocação de Celso Antônio Bandeira
de Mello:
Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe
dá sentido harmônico.10
O conceito de princípios serve às ciências em geral, conforme aponta Miguel
Reale:
Princípios são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem
de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos,
ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da
realidade. Às vezes também se denominam princípios certas
preposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de
evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema
particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários.11
Importante trazer à baila a diferença entre princípios e regras. Assim,
colaciona-se o entendimento de Alexy:
Para o jurista alemão Robert Alexy, as normas jurídicas dividem-se
em regras e princípios. Regras são mandados de cumprimento, algo
a se obedecer no exato limite da lei. Assim se a lei diz que o Estado
não pode excluir alguém por sua convicção religiosa (art. CF)
significa que o Estado está proibido exatamente disso, de fazer essa
distinção. No entanto, princípios são mandados de otmização,
orientações normativas que devem ser cumpridas pelo Estado da
melhor maneira possível, respeitando-se as limitações colocadas por
outros princípios. Assim, o princípio do estado laico deve ser
compatibilizado com o princípio da liberdade individual de crença.
Por exemplo: o Estado pode proibir o cruxifixo (enquanto símbolo
religioso) na sala dos tribunais do júri, mas poderia proibir o juiz de
usar um crucifixo no pescoço?12
10 ROTHENBURG, Walter Claudius, Princípios Constitucionais, Sérgio Antonio Fabris Editos, 1999, p.14 apud Mello, Celso Antonio Bandeira. 11 ROTHENBURG, Walter Claudius, Princípios Constitucionais, Sérgio Antonio Fabris Editos, 1999, p. 14, apud Miguel Reale. 12 SELL, Sandro Cesar, fichamento da obra de Robert ALEXY. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução espanhola de Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. Caps. 1 e 2.
22
Neste contexto, conceituaremos os princípios constitucionais relativos ao
Estado laico.
1.2.1. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA:
A liberdade de pensamento: A liberdade de expressão de
pensamento é tida por uma das mais importantes. Historicamente
figura nos primeiros róis de direitos individuais. Assim é que vamos
encontrar na Declaração de Direitos do Homem de 1789 os
seguintes dispositivos:
“Ninguém pode ser perturbado por suas opiniões, mesmo religiosas,
desde que a sua manifestação não inquiete a ordem pública
estabelecida pela lei.”
Art. 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem:
“A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos
direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, pois falar,
escrever, exprimir-se livremente, sujeito a responder pelo abuso
desta liberdade nos casos determinados pela lei.”13
E, segundo o doutrinador Alexandre de Morais citando José Celso Mello Filho
“a liberdade de consciência constitui o núcleo básico de onde derivam as demais
liberdades do pensamento. É nela que reside o fundamento de toda a atividade
político-partidária, cujo exercício regular não pode gerar restrições aos direitos de
seu titular”.14
Outrossim, explanando de maneira mais profunda sobre o tema, Celso
Ribeiro Bastos ensina:
[...] “Segundo Colliard, a liberdade de pensamento seria variável e
essa variabilidade surge sobre dois planos completamente
diferentes. No primeiro diz respeito ao sentido da liberdade. No
segundo, concerne a sua própria extensão.
Comecemos por examinar o sentido da liberdade de opinião.
Esta liberdade apresenta dois aspectos quanto ao seu valor: o
primeiro é chamado de “valor da indiferença”. Neste caso, a
liberdade em pauta significa que a opinião não deve ser tomada em
consideração. Confunde-se, nesta hipótese, com a noção de
neutralidade, como ocorre do ângulo religioso com o Estado laico.
13 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, São Paulo, 1990. 14 MORAIS, Alexandre de, Direito Constitucional, Ed. Atlas, 1996, p.72, apud, MELLO FILHO, José Celso
23
Já a liberdade de opinião sob a modalidade do valor da exigência
considera as opiniões ou convicções com o fim de não feri-las. Ao
indivíduo é dado, em certas hipóteses, exigir do Estado que leve em
consideração a sua consciência ou o seu pensamento, para o efeito
de eximi-lo de alguma obrigação. Ele rompe de certa forma com o
princípio da igualdade. Não é inconstitucional porque é a própria Lei
Maior que autoriza esta discriminação. A nossa constituição
consagra um exemplo flagrante desta espécie de liberdade de
pensamento ao prever a chamada escusa de consciência, nos
termos seguintes do art. 5, inciso VIII:
Art. 5, inciso VIII da Constituição da República Federativa do Brasil:
“ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou
de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se
de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei”.
Quanto a extensão da liberdade de pensamento, ele não é uniforme
para todas as pessoas.
Em diversos casos, embora o Estado seja neutro ou indiferente às
opiniões dos seus servidores, ele pode, sem dúvida, impor restrições
quanto ao momento de eles se externarem. Assim pode limitar o
direito de expor opiniões políticas, dentro das próprias repartições
públicas. [...] É óbvio que a livre expressão de pensamento pode
sofrer limitações decorrentes de uma questão de oportunidade. Não
são todos os lugares nem todos os momentos que se prestam a
ela.15
Desta forma, verificando-se que o princípio da liberdade de consciência é o
âmago de onde derivou as demais liberdades, analisaremos os princípios que
predispõe o Estado laico:
1.2.2. PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA:
Na obra A Era dos Direitos, Norberto Bobbio conceitua a liberdade religiosa
como sendo o direito de professar qualquer religião ou não professar nenhuma.16
O doutrinador Alexandre de Moraes leciona sobre a extensão deste preceito
constitucional:
15 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, São Paulo, 1990, p.175, apud Claud-Albert Colliard. 16 BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho. – Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.19.
24
A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a
religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações
e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a
crença, o dogma, a moral, a liturgia, e o culto. O constrangimento à
pessoa humana de forma a renunciar sua fé representa o
desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e
diversidade espiritual.17
E ainda, diferenciando o conceito de liberdade de consciência e de liberdade
de crença, Celso Ribeiro Bastos aduz que “a liberdade de consciência não se
confunde com a de crença. Em primeiro lugar porque uma consciência livre pode
determinar-se no sentido de não ter crença alguma. Deflui, pois, da liberdade de
consciência uma proteção jurídica que inclui os próprios ateus e agnósticos”.18
Neste contexto, é importante trazer aqui o conceito de liberdade religiosa, que
segundo José Afonso da Silva “ela se inclui entre as liberdades espirituais. Sua
exteriorização é forma de manifestação do pensamento (...). Ela compreende três
formas de expressão (três liberdades): (a) a liberdade de crença; (b) a liberdade de
culto; (c) a liberdade de organização religiosa. Todas estão garantidas na
Constituição”.19
Ainda sobre a definição sobre liberdade religiosa, a Organização das Nações
Unidas – ONU, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim dispôs:
Art. XVIII. Todo homem tem direito à liberdade de pensamento,
consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de
religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença
pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância isolada ou
coletivamente, em público ou em particular.20
E ainda corroborando com o tema:
Para tornar esse dispositivo ainda mais claro, a mesma Organização
das Nações Unidas – ONU, fez editar a declaração sobre a
eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação
baseadas em religião ou crença (Resolução n.º 36/55). Desse
documento extraímos os seguintes trechos:
17 MORAIS, Alexandre de, Direito Constitucional, Ed. Atlas, 1996. 18 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, São Paulo, 1990. 19 SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editora, São Paulo, 2001, p. 251. 20 Disponível no site: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm, acesso em 11 de abril de 2010.
25
"Art. 1º. Ninguém será sujeito à coerção por parte de qualquer
Estado, instituição, grupo de pessoas ou pessoas que debilitem sua
liberdade de religião ou crença de sua livre escolha".
"Art. 6º. O direito à liberdade de pensamento, consciência, religião ou
crença incluirá as seguintes liberdades:
h) observar dia de repouso e celebrar feriados e cerimônias de
acordo com os preceitos da sua religião ou crença.".
Neste sentido também é a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ingressa no sistema
pátrio nos termos do Decreto n.º 678, de 06 de novembro de 1992,
cujo art. 12, alínea 2, explicita:
"Artigo 12. Liberdade de Consciência e de Religião
2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam
limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou
de mudar de religião ou de crenças.".
Garante, ainda, o artigo 26 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos:
"Artigo 26. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito,
sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito,
deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as
pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por
motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento
ou qualquer opinião."21
1.2.3. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE CULTO:
No Brasil Império, a religião católica era a religião oficial do país, as demais
religiões eram permitidas, porém a liberdade de culto era restringida, não podendo
ser professada em casa com forma exterior de templo.
A religião não pode contentar-se com a sua dimensão espiritual [...].
Ela vai procurar necessariamente uma externação, que, diga-se de
passagem, demanda um aparato, um ritual, uma solenidade mesmo,
que a manifestação do pensamento não requer necessariamente.
Pode haver liberdade de crença sem liberdade de culto. Era o que se
dava no Brasil Império. Na época só se reconhecia como livre o culto
católico. Outras religiões deveriam contenta-se em celebrar um culto
doméstico, vedada qualquer forma exterior de templo.22
21 Disponível no site: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6896&p=1, acessado em 28/03/2010. 22BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, São Paulo, 1990.
26
Nesse sentido, aventa a Constituição Imperial, datada de 1824 - segundo ano
da Independência do Brasil - em seu art. 5o: "A religião católica, apostólica, romana,
continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas,
com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma
alguma exterior de templo".23
Além da supressão da liberdade de culto, aos que escolhessem professar
religião diversa da oficial do Estado, qual seja a Católica Apostólica Romana,
também sofria restrição quanto ao exercício do direito político, sendo vedado a
candidatura ao cargo de deputado, conforme aduzia o artigo 95, inciso III da
Constituição Imperial.
Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem
nomeados Deputados. Exceptuam-se
I. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na
fórma dos Arts. 92 e 94.
II. Os Estrangeiros naturalisados.
III. Os que não professarem a Religião do Estado.24(sic)
Ademais, apesar de defender o direito ao seu livre exercício, para Celso
Ribeiro Bastos a liberdade de culto não pode ser absoluta, devendo ser observado a
ordem pública e os bons costumes, que são valores constantes em toda ordem
normativa.
1.2.4. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA:
Em 1891, sob influência da Constituição Americana, no que concerne aos
princípios fundamentais, a Constituição denominada de “Constituição Republicana”
trás dentre vários princípios fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à
segurança, à propriedade, o direito à liberdade de crença e seu livre exercício.
Afirmando, desta forma, um Estado juridicamente Laico.25
O já mencionado doutrinador Celso Ribeiro Bastos discorre em sua obra,
Curso de Direito Constitucional, sobre a liberdade de organização religiosa:
A liberdade de organização religiosa tem uma dimensão muito
importante no seu relacionamento com o Estado. Três modelos são
23 Galdino, Elza, O Estado sem Deus, 2006, ed. Del Rey, Belo Horizonte. 24 Texto da Constituição Imperial de 1824, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm, acesso em 29/03/2010. 25 Galdino, Elza, O Estado sem Deus, 2006, ed. Del Rey, Belo Horizonte.
27
possíveis: fusão, união e separação. O Brasil enquadra-se
inequivocamente neste último desde o advento da República, com a
edição do decreto n. 119-A, de 17 de janeiro de 1890, que instaurou
a separação entre a Igreja e o Estado.
(...) O Estado brasileiro tornou-se desde então laico, ou não
confessional. Isto significa que ele se mantém indiferente às diversas
igrejas que podem livremente constituir-se, para o que o direito
presta a sua ajuda pelo conferimento pelo recurso à personalidade
jurídica.
Portanto, as igrejas funcionam sob o manto da personalidade jurídica
que lhes é conferida nos termos da lei civil.
Destarte, o princípio fundamental é o da não-colocação de
dificuldades e embaraços à criação de igrejas. Pelo contrário, há até
um manifesto intuito constitucional de estimulá-las, o que é
evidenciado pela imunidade tributária de que gozam.
Outro princípio fundamental é que o Estado deve manter-se
absolutamente neutro, não podendo discriminar entre as diversas
igrejas, quer para beneficiá-las, quer para prejudicá-las. Às pessoas
de direito público não é dado criar igrejas ou cultos religiosos, o que
significa dizer que também não poderão ter qualquer papel nas suas
estruturas administrativas.
1.2.5. PRINCÍPIO DA IGUALDADE:
Também, não se pode desvincular os princípios aqui mencionados com um
dos mais basilares princípios constitucionais, qual seja, o princípio da igualdade, que
justifica o interesse do Estado em garantir a aplicação dos demais princípios
referentes a liberdade. Conforme salienta Elza Galdino citando Dória:
Há que se ressaltar que a liberdade religiosa, bem como a liberdade
de organização religiosa, encontram-se diretamente relacionadas
com o princípio da igualdade. É dizer, não é permitido ao Estado
fazer qualquer diferenciação entre qualquer organização religiosa,
pois do contrário o preceito constitucional perderia o seu efeito por
completo.26
1.3. PERCURSO DA LAICIDADE NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO
O Império brasileiro, após longo período histórico de vínculo político com a
Igreja Católica, estabeleceu através do Decreto n. 119-A em 1890, de autoria de Rui
Barbosa, a separação entre Estado e Igreja.
26 Galdino, Elza, O Estado sem Deus apud Dória, p.29.
28
Em conseqüência, a Constituição Republicana, de 24 de fevereiro de 1891
ratificou o Decreto n. 119-A/1890, se tornando a primeira constituição vestida dos
princípios do Estado Laico, garantindo: a liberdade de culto irrestrita; reconhecendo
apenas o casamento civil; incluindo os cemitérios à administração pública e
preservando o ensino leigo nas escolas públicas, além de proibir a subvenção oficial
e a aliança com qualquer igreja. Na mesma esteira foram mantidos na Constituição
de 1934 os princípios perpetrados pela Carta republicana. Inovou, porém, a aludida
Carta ao reconhecer aos casamentos realizados perante ministro de qualquer
confissão religiosa, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde cumpridas as
formalidades legais. Ademais, previu a freqüência facultativa ao ensino religiosa em
escolas públicas, ministrados de acordo com a confissão religiosa de cada aluno,
manifestada pelos pais ou responsáveis.27
Também foram preservados os referidos princípios trazidos da Carta de 1934
e anteriores na Constituição de 1937, que trouxe expresso no art. 122, 4º, o livre e
público exercício de culto, nos seguintes termos:
Art 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros
residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
4º- todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública
e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo
bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da
ordem pública e dos bons costumes;
[...]
No mesmo sentindo foram mantidos os princípios da laicidade estatal na
Carta de 1946. Contudo, na Constituição de 1967 houve alterações, sendo vedado
ao Estado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas; subvencioná-los; embaraçar-lhes
o exercício; ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou
aliança”, conforme se depreende do art. 9º do texto constitucional. Além disso,
delimitou-se as áreas de colaboração do interesse público com entes religiosos,
sendo limitada aos setores educacionais, assistenciais e hospitalar, sendo
27 Mangueira, Hugo Alexandre, Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica, Ed. Universitária UFPB, 2009, João Pessoa.
29
respeitado em todos os casos, os princípios da liberdade de consciência em sua
plenitude e de culto.28
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 também preservou
a separação entre Estado e Igreja, asseverando em seu art. 19, inciso I, a laicidade
do Estado brasileiro, conservando, todavia, a inviolabilidade da liberdade de
consciência e de crença.
Porém, antes de discorrer sobre o princípio constitucional do Estado laico, é
necessário trazer a classificação dos Estados, segundo sua relação com a religião.
Nesse sentido, temos as seguintes classificações:
Estado Teocrático é aquele em que há confusão entre o Estado e
religião, no sentido em que a religião adotada decidirá os rumos da
nação – o termo decidirá é proposital, pois nas teocracias não há
mera influência da religião nos rumos políticos e jurídicos do Estado,
mas efetiva determinação no sentido de que os dogmas religiosos
efetivamente pautarão as políticas estatais e as relações privadas. É
o caso dos Estados Islâmicos. São Estados totalitários no que tange
à religião e à moralidade, visto que não admitem nada que não esteja
em absoluta sintonia com os dogmas da religião que se confunde
com o Estado.
Estado Confessional é aquele que, embora não se confunda com
determinada religião, possui uma religião oficial que pode influir nos
rumos políticos e jurídicos da nação, além de possuir privilégios não
concedidos às demais. Foi o caso do Brasil Imperial, cuja
Constituição definiu a religião católica apostólica romana como
religião oficial do país.
Estado Laico é aquele que não se confunde com determinada
religião, não adota uma religião oficial, permite a mais ampla
liberdade de crença, descrença e religião, com igualdade de direitos
entre as diversas crenças e descrenças e no qual fundamentações
religiosas não podem influir nos rumos políticos e jurídicos da nação.
É o que se defende ser o Brasil sob a égide da Constituição Federal
de 1988, em razão de seu art. 19, inc. I, vedar relações de
dependência ou aliança com quaisquer religiões.
Estado Ateu é aquele que adota a negação da existência de Deus
como doutrina filosófica e, portanto, não aceita que seus cidadãos
manifestem suas crenças religiosas. Trata-se de um totalitarismo que
28 Mangueira, Hugo Alexandre, Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica, Ed. Universitária UFPB, 2009, João Pessoa.
30
se encontra no extremo oposto do totalitarismo teocrático: enquanto
neste exige-se que todos façam parte e respeitem os dogmas da
religião da instituição religiosa que se confunde com o Estado,
naquele exige-se que todos não tenham nem professem nenhuma
crença teísta. É o caso da China.
Estado Concordatário mesmo sem ter firmado uma concordata, no
sentido jurídico do termo, o Estado concordatário protege uma
religião ou um grupo delas, com privilégios políticos e/ou
econômicos, explícita ou implicitamente. A forma mais comum de
Estado concordatário, na atualidade, é a que resulta no
privilegiamento das religiões do tronco judaico-cristão, sob a forma
de ecumenismo ou de interconfessionalismo.29
Desta forma, verificamos que o Brasil se enquadra na classificação de Estado
laico, conforme dispõe o art. 19, I, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na
forma da lei, a colaboração de interesse público [...].
Assim, definindo o conceito de Estado Laico, segundo o professor Roberto
Blancarte, trata-se de “um regime social de convivência, cujas instituições políticas
estão legitimadas principalmente pela soberania popular e já não mais por
elementos religiosos”. E o mesmo autor complementa:
A definição anterior de laicidade, centralizada na idéia da transição
entre uma legitimidade outorgada pelo sagrado e uma forma de
autoridade proveniente do povo, permite-nos entender que a
laicidade – como democracia – é mais um processo do que uma
forma fixa ou acabada em forma definitiva. Da mesma maneira que
não se pode afirmar a existência de uma sociedade absolutamente
democrática, tampouco existe na realidade um sistema político que
seja total e definitivamente laico. Esta definição também nos permite
entender que, em muitos casos, subsistem formas de sacralização
do poder, mesmo sob esquemas não estritamente religiosos. [...]
Definir a laicidade como um processo de transição entre formas de
legitimidade sagradas e formas democráticas ou baseadas na
29Texto disponível nos sites: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/conceituacao1.html,e http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11457, acesso em 21 de março de 2010.
31
vontade popular, permite-nos também compreender que esta (a
laicidade) não é necessariamente o mesmo que a separação Estado-
Igrejas. De fato, existem muitos Estados que não são formalmente
laicos, mas estabelecem políticas públicas alheias à normativa
doutrinária das Igrejas e sustentam mais sua legitimidade na
soberania popular do que em qualquer forma de consagração
eclesiástica.30
Nesse sentido, há ainda que complementar a definição de Estado laico,
aduzindo que:
O que, antigamente, era chamado de Estado leigo, agora se chama
Estado laico, aquele que tem sua legitimidade em todo o povo
(laikós, em grego), ou seja, na soberania popular. O Estado laico é
imparcial em matéria de religião. Ele respeita todas as crenças
religiosas, desde que não atentem contra a ordem pública, assim
como respeita a não crença religiosa. Ele não apóia nem dificulta a
difusão das idéias religiosas nem das idéias contrárias à religião.31
Ainda para elucidar o conceito de Estado laico, cabe inserir o artigo 1° da
Declaração universal da laicidade no século XXI, que aduz sobre os princípios
fundamentais do estado laico:
Todos os seres humanos têm direito ao respeito à sua liberdade de
consciência e à sua prática individual e coletiva. Este respeito implica
a liberdade de aderir ou não a uma religião ou a convicções
filosóficas (incluindo o teísmo e o agnosticismo), o reconhecimento
da autonomia da consciência individual, da liberdade pessoal dos
seres humanos e da sua livre escolha em matéria de religião e de
convicção. Isso também implica o respeito pelo Estado, dentro dos
limites de uma ordem pública democrática e do respeito aos direitos
fundamentais, à autonomia das religiões e das convicções
filosóficas.32
Por fim, conclui-se:
Assim, tem-se que laicidade é a doutrina filosófica que defende e
promove a separação entre Estado e religião ao não aceitar que haja
confusão entre o Estado e uma instituição religiosa qualquer, assim
como não aceitar que o Estado seja influenciado por determinada
religião. 30 BLANCARTE, Roberto, Em Defesa das Liberdades Laicas, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2008. 31 Disponível no site: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/conceituacao1.html, acesso em 12 de outubro de 2009. 32 Lorea, Roberto Arriada, Em defesa das Liberdades Laicas, 2008, ed. Livraria do Advogado, apud declaração universal da laicidade no século XXI.
32
A doutrina laica surgiu ou se fortaleceu em virtude dos abusos
estatais cometidos em nome de crenças religiosas, como ocorrido na
Idade Média, quando a Igreja Católica Apostólica Romana impunha
seus dogmas a todos, sob pena inclusive de fogueira em casos que
julgasse mais graves (através de julgamentos canônicos realizados
pelo Tribunal da "Santa" Inquisição, o que fez com que se denomine
este período histórico como "Idade das Trevas").
Deve-se ter em mente, contudo, que o Estado Laico não é um
Estado Ateu, pois este proíbe toda e qualquer crença teísta, exigindo
que todos sejam descrentes (que não acreditem em nenhuma crença
teísta), ao passo que aquele permite que as pessoas escolham a
crença teísta que lhes faça melhor sentido ou então que não adotem
crença teísta nenhuma, sendo, portanto, descrentes, ateus.
Assim, pensado abstratamente, sem análise da forma de sua
positivação pela ordem constitucional concreta (tema da maior
relevância, como se mencionará no próximo tópico), o princípio da
laicidade estatal impõe que o Estado: (i) não se confunda com
nenhuma instituição religiosa, (ii) não institua nenhuma religião
oficial; (iii) trate igualmente as diversas crenças e descrenças e,
especialmente, (iv) não aceite fundamentações religiosas para definir
os rumos políticos e jurídicos da nação.33
1.4. A INVOCAÇÃO DE DEUS NO PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO
Convém ressaltar que, apesar de todas as considerações já explanadas a
respeito da laicidade do Estado brasileiro, existe discussão doutrinária sobre a
conformidade dos princípios do Estado laico brasileiro e o preâmbulo da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Assim dispõe o preâmbulo da Carta Magna:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL.(grifei)
33 Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11457, acesso em 21 de março de 2010.
33
Outrossim, a menção à Deus no Preâmbulo, oscilaram nas constituições
anteriores à Constituição Cidadã:
Constituição de 1824:
DOM PEDRO PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEUS, e Unânime
Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional, e Defensor
Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Súditos, que
tendo-Nos requerido os Povos deste Império, juntos em Câmaras,
que Nós quanto antes jurássemos e fizéssemos jurar o Projeto de
Constituição, que havíamos oferecido às suas observações para
serem depois presentes à nova Assembléia Constituinte; mostrando
o grande desejo, que tinham, de que ele se observasse já como
Constituição do Império, por lhes merecer a mais plena aprovação, e
dele esperarem a sua individual, e geral e felicidade Política: Nós
Juramos o sobredito Projeto para o observarmos e fazermos
observar, como Constituição, que d’ora em diante fica sendo deste
Império; a qual é do teor seguinte: [...].
Constituição de 1891:
Nós os Representantes do Povo Brasileiro, reunidos em Congresso
Constituinte, para organizar um regime livre e democrático,
estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO
BRASIL.
Constituição de 1934:
Nós, os representantes do Povo Brasileiro, pondo a nossa confiança
em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para
organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade,
a liberdade, a justiça e o bem estar social e econômico, decretamos
e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS
ESTADOS UNIDOS DO BRASIL.
Constituição de 1937:
O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil:
Atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e
social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de
desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios
partidários, que uma notória propaganda demagógica procura
desnaturar em lutas de classes, e da extremação de conflitos
ideológicos; tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-
se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta
iminência da guerra civil;
34
Atendendo ao estado de apreensão criado no país pela infiltração
comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda,
exigindo remédios de caráter radical e permanente;
Atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha o
Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da
segurança e do bem estar do povo;
Com o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da
opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante
dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se
vem processando a decomposição das nossas instituições civis e
políticas;
Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e
à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz
política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu
bem estar e à sua prosperidade;
Decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em
todo o país: CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL.
Constituição de 1946:
Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção
de Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um regime
democrático, decretamos e promulgamos a seguinte
CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL.
Constituição de 1967:
O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e
promulga a seguinte CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.34
Neste diapasão, percebe-se que as constituições brasileiras traziam em seu
preâmbulo a origem, os objetivos e os valores que iriam transcorrer no texto
constitucional.
Para analisarmos se o preâmbulo CRFB/1988 confronta com a laicidade
estatal, é necessário estabelecer qual é a força normativa do preâmbulo.
Inicialmente, segundo conceituação do dicionário Houaiss, a palavra
preâmbulo significa: “relatório que precede uma lei ou decreto/palavreado mais ou
menos vago que antecede o assunto principal [...]”.35
34 Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10823, acesso em 11 de abril de 2010. 35 HOUAISISS, Mini Dicionário da Lingua Portuguesa, 3ª edição, Ed. Moderna, Rio de Janeiro, 2008.
35
Juridicamente, o Preâmbulo é o conjunto de enunciados formulado pelo
legislador constituinte originário, situado na parte preliminar do texto constitucional,
que veicula a promulgação, a origem, as justificativas, os objetivos, os valores e os
ideais de uma Constituição, servindo de vetor interpretativo para a compreensão do
significado das suas prescrições normativas e solução dos problemas de natureza
constitucional.36
Quanto a força normativa do Preâmbulo da CRFB/88, o Supremo Tribunal
Federal se posicionou no sentido de que o mesmo não é norma jurídica:
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.076/AC, decidiu que o Preâmbulo não tem valor jurídico-normativo, pois não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da Política, refletindo posição ideológica do constituinte, sem relevância jurídica. Daí que, segundo o STF, o Preâmbulo tem natureza política, mas não jurídica.
Ou seja, para o STF, o Preâmbulo não é norma jurídica, não é norma constitucional, mas um enunciado de princípios políticos, sem força jurídica para obrigar, proibir ou permitir com uma eventual sanção por seu descumprimento. Segundo o STF, conclui-se, o descumprimento ao contido no Preâmbulo não enseja a aplicação de uma sanção jurídica, porquanto o Preâmbulo não seja norma jurídica.37
Assim, o entendimento é de que a expressão “sobre a proteção de Deus”,
constante no preâmbulo da Constituição de 1988 não possui qualquer força
normativa:
O preâmbulo, ressai das lições transcritas, não se situa no âmbito do
Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do
constituinte. É claro que uma Constituição que consagra princípios
democráticos, liberais, não poderia conter preâmbulo que
proclamasse princípios diversos. Não contém o preâmbulo,
portanto, relevância jurídica. O preâmbulo não constitui norma
central da Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do
Estado-membro. O que acontece é que o preâmbulo contém, de
regra, proclamação ou exortação no sentido dos princípios inscritos
na Carta: princípio do Estado Democrático de Direito, princípio
republicano, princípio dos direitos e garantias, etc. Esses princípios,
sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de
reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estado-
36 Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10823, acesso em 11 de abril de 2010. 37 artigo disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10823, acesso em 11 de abril de 2010.
36
membro dispor de forma contrária, dado que, reproduzidos, ou não,
na Constituição estadual, incidirão na ordem local.38
Dessa forma, verifica-se que o preâmbulo da Carta Magna de 1988
transcreve apenas o sentimento religioso do constituinte que representava naquele
momento também a devoção de grande parte da população brasileira de formação
cristã, principalmente professantes da religião católica, que, desde a formação do
Brasil colônia tem participado assiduamente da vida política do Estado brasileiro,
conforme analisaremos no próximo capítulo.
38 Julgamento na Adin 2.076-AC, rel. Min. Carlos Velloso, 15.8.2002, DJ 8.8.2003.
37
CAPÍTULO 2
FORMAÇÃO RELIGIOSA NO BRASIL
O presente capítulo, a partir de posições trazidas pela doutrina, discorre sobre
a formação religiosa o Brasil. No intuito de melhor compreender tal questão, cumpre
realizar o estudo de seu conteúdo histórico, com breves apontamentos da
religiosidade no mundo e suas influências na formação religiosa brasileira. Por fim,
aponta-se os aspectos atuais da religiosidade nacional.
2.1 A RELIGIOSIDADE NO MUNDO: BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICOS.
A devoção religiosa remonta a tempos mais antigos que a adoração de
deuses mitológicos. Acredita-se, que antes do surgimento das divindades adoradas
em diferentes culturas, como o deus Zeus e Atena, na cultura grega e romana, as
primeiras demonstrações de culto e adoração entre os povos Indo-europeus a uma
divindade era dirigido ao fogo, que ocupava um altar dentro da casa de cada
família39.
A intervenção estatal na liberdade religiosa também já estava presente desde
a antiguidade. As leis de Sólon interferiam nas cerimônias fúnebres, proibindo a
quem não fosse parente do defunto, de acompanhar o cortejo gemendo no enterro.
As mulheres só poderiam acompanhar o morto se fosse até o grau de primo. Proibia
também, que se enterrassem no túmulo da família homens de outra família.40
Acerca da etimologia da palavra religião, mesmo com divergências, será na
cultura romana que encontraremos seu significado.
Marcel Mauss afirma que o termo se referia aos nós de palha que
fixavam as vigas de uma ponte: o mestre da religião em Roma se
39 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. ed. Martin Claret. São Paulo. 2004. 40 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. ed. Martin Claret. São Paulo. 2004.
38
chamava pontifex, o construtor de pontes. Roger Caillois acrescenta
que edificar uma ponte é transgredir a ordem das coisas, o equilíbrio
universal estabelecido pelos deuses, o que merece um castigo.
Apenas um personagem sagrado (o chefe dos sacerdotes) podia
fazê-lo.
Cícero propõe outra interpretação. Religio vem de legere, colher, ou
religere, recolher, o que, de acordo com Benveniste41, significava
retornar sobre o fato, refletir. Daí decorre o sentido de respeito, de
escrúpulo, de cuidado no exercício dos ritos para preservar o
equilíbrio harmônico do universo. Lactâncio e Tertuliano falam de
ligare ou religare: Deus que se liga ao ser humano, uma vinculação
de piedade com a divindade. Há uma equivalência oriental no
xintoísmo (primeiros séculos de nossa era), em que a palavra xintó
significa um conjunto de crenças e de práticas rituais dedicadas ao
Kamis (divindade). De qualquer maneira, trata-se de uma referência
a uma realidade sobrenatural, sobre-humana.42
Além do conceito etimológico da palavra religião, importante também
conceituá-la enquanto fenômeno social. Para alguns pensadores, como Émile
Durkheim, a religião consiste em uma realidade, em um sistema de fatos dados, não
podendo a ciência negá-la.
Não existe religião alguma que seja falsa. A religião é uma instituição
e nenhuma instituição pode ser edificada sobre o erro ou a mentira.
Se ela não estivesse alicerçada na própria natureza das coisas, teria
encontrado, nos fatos, uma resistência sobre a qual não poderia ser
triunfado. [...]
Nosso estudo descansa inteiramente sobre o postulado de que o
sentimento unânime dos crentes de todos os tempos não pode ser
puramente ilusório. Admitimos que essas crenças religiosas
descansam sobre uma experiência específica cujo valor
demonstrativo é, sob um determinado ângulo, um nada inferior
àquele das experiências científicas, muito embora sejam diferentes43.
41 Émile Benveniste (1902, Cairo - 1976) foi um lingüista estruturalista francês, conhecido por seus estudos sobre as línguas indo-européias e pela expansão do paradigma lingüístico estabelecido por Ferdinand de Saussure.(disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89mile_Benveniste, acesso em 25/06/2010). 42 HOUTART, François. Mercado e Religião. Cortez Editora. São Paulo. 2002. p. 20. 43 ALVES, Rubens, O Que é Religião, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1990.
39
No entanto, para Karl Marx, a religião é uma criação do homem, onde se
traduzem seus pensamentos, esperanças e sonhos. Assim, “a religião ilumina com
ilusões que consolam os fracos e legitimações que consolidam os fortes”.44
2.2 A RELIGIÃO: ENTRE O CONSERVADORISMO E A MUDANÇA.
A visão tradicional da religião enquanto ópio do povo vem da concepção
marxista das práticas religiosas enquanto meio ideológico de desviar a atenção dos
fiéis para a desigualdade material da sociedade (religião enquanto ideologia),
servindo, desta forma, de consolo e de justificação. “’A angústia religiosa é ao
mesmo tempo a expressão da dor real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro
da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como o é o espírito
de uma situação sem espírito. É o ópio do povo’ (Marx, 1969a: 304)”45.
No entanto, se de um lado a religião tem sido utilizada ao longo da história
como elemento de controle e submissão das massas em relação ao soberano,
sendo relacionada com a ignorância de um período obscuro da história, Idade das
Trevas, e explicada como comportamento infantil de povos e grupos não evoluídos,
de outro, ela contribui para várias mudanças sociais.
Em um contexto geral, na formação dos povos as religiões possuíram um
escopo não apenas espiritual, mas também se manifestavam como forma de
protesto social. As sociedades de classes possuíam enormes desigualdades e
injustiças, o que não condizia com uma ordem sagrada. Assim, em protesto contra o
sistema de castas na Índia, surgiu o budismo. As classes populares da Grécia Antiga
contrapunham as religiões de mistérios com a religião olímpica dos aristocratas e
dos sacerdotes. Os bacanais, cultos de origem oriental, eram julgados perigosos
pelas classes dominantes romanas. Os cultos politeístas judaicos se opunham ao
culto monoteísta sacerdotal. Segundo as considerações de Friedrich Hegel, o
cristianismo foi um movimento efetivamente revolucionário por que modificou o
pensamento e a realidade. Afirma ainda o autor, que a Reforma, sobretudo a
calvinista, foi uma expressão de oposição à hegemonia, embora não
necessariamente em defesa dos pobres.46
44 ALVES, Rubens, O Que é Religião, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1990. 45 Texto disponível em: http://www.clacso.org.ar/biblioteca, acesso em 26/08/2010. 46 HOUTART, François. Mercado e Religião. Cortez Editora. São Paulo.2002.
40
Antonio Gramsci analisou o catolicismo popular italiano como uma expressão
de resistência social passiva. O surgimento do metodismo ou dos batistas na Grã-
Bretanha, ou do quacrismo, dos mórmons, das Testemunhas de Jeová, dos
pentecostais e de muitos outros nos Estados Unidos são indícios de um protesto
implícito. Durante toda a história do Haiti, o vodu foi a religião dos oprimidos, a
começar pelos escravos. E o sociólogo chileno Cristián Parker qualifica a religião
popular latino-americana de “contra-cultura contra a modernidade da cultura
dominante do capitalismo globalizado”.47
Igualmente, com o advento das sociedades de classes, surgiu também a
sacralização do poder, com a visão de uma ordem cósmica e social sagrada.
Conforme descreve o autor François Houtart:
(...)
Nos templos do hinduísmo, o retrato dos reis foi colocado ao lado
das divindades e do marajá, protetor do darma, da ordem cósmica.
No confucionismo, o imperador se torna o Filho do Céu com a
dinastia Han. No xintoísmo há um panteão com a divindade solar no
centro, que se transforma em ancestral mítico da casa imperial. Com
a restauração Meiji, que introduziu o Japão na modernidade, o xintó
(religião) da casa imperial passa a ser religião de Estado e o
imperador é divinizado. E poderíamos mencionar também o
imperador egípcio e o rei inca do Peru.
Nas religiões que por diferentes razões não aceitam a divinização
dos reis (o budismo, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo), vários
mecanismos atuam de maneira similar. Se o rei é por definição um
bodisatva, isto é, um homem prestes a entrar no nirvana, mas que se
detém para ajudar os demais, seu prestígio é mais que político. No
judaísmo e no cristianismo, os reis foram considerados enviados de
Deus, guardiões da religião ou depositários da autoridade emanada
de Deus. No islamismo do califado, a escolha divina era clara: os reis
ainda são descendentes do profeta.
Contudo, a legitimação religiosa sempre teve seus limites,
precisamente em função da justiça da ordem sagrada. Um
comportamento injusto do monarca significava a perda do status ou
da proteção divina. Assim o expressou Mêncio na tradição de
Confúcio. O mesmo vale para a qualidade de bodisatva nos reinos
budistas. Também os profetas acusaram os reis de Israel e de Judá
47 HOUTART, François. Mercado e Religião. Cortez Editora. São Paulo.2002.
41
de não corresponder a suas missões, e o mesmo aconteceu em
vários conflitos entre a Igreja Católica e reinos medievais.48
Assim, a religião vem tendo uma presença constante e polêmica ao longo da
história da humanidade, influenciando diretamente na formação de valores morais,
bem como na construção política das sociedades. E como tal processo ocorre no
Brasil é do que falaremos a seguir.
2.3 RELIGIOSIDADES NO BRASIL
A Igreja católica desembarcou no Brasil juntamente com Pedro Álvares Cabral
em 1500, quando as caravelas ancoraram em Porto Seguro, onde foi celebrada uma
missa em razão das terras encontradas. Em 01 de maio do mesmo ano ergueu-se
ali uma grande cruz de madeira, que veio dar nome à nova colônia de Portugal:
Terra de Santa Cruz.49
Desde a colônia até o Império prevaleceu no Brasil o regime do padroado,
pelo qual a coroa tinha jurisdição sobre o clero. Em 1549 saltou em terras brasileiras
a chamada Companhia de Jesus, fundada por Inácio Loyola em 1534 com o objetivo
de deter o avanço do protestantismo50 e de expandir pelo mundo os princípios de
obediência à Igreja. Os jesuítas (como eram chamados os integrantes da
Companhia de Jesus), destacando-se, dentre eles, o padre José de Anchieta,
também conhecido como “o apóstolo do Brasil”, vieram para a colônia portuguesa
com a missão de catequizar índios e colonos.
Em 1548, ao assumir o cargo de governador, Tomé de Souza
recebeu um regimento de Dom João III, em que o rei afirmava que
estaria povoando as terras do Brasil para converter os indígenas à fé
cristã. Dizia ainda que os portugueses deveriam incentivar a
catequese, sem oprimir ou desagradar os nativos. O rei português
assumia formalmente seu duplo papel de chefe político e religioso,
com o apoio de Roma. Assim, identificava-se na prática a
colonização e a cristianização.
48 HOUTART, François. Mercado e Religião. Cortez Editora. São Paulo. 2002. 49 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997. 50No fim da Idade Média haviam ocorrido várias tentativas frustradas de reformar a Igreja católica, cujo clero, a começar pelos papas e bispos, viviam um período de intensa corrupção. O primeiro movimento reformista bem-sucedido foi desencadeado em 1517, na Alemanha, sob a liderança de Martinho Lutero. A partir daí o protestantismo espalhou-se por outros países europeus, com a fundação de diferentes igrejas. (CAMPOS, Raymundo Carlos Bandeira. Estudos de História do Brasil. Atual. São Paulo. 1999).
42
Isso fez com que o povoamento português do Brasil fosse dominado
por um vivo espírito cruzadista. Os colonos partilhavam a
mentalidade de seus reis, ou seja, participavam de uma maneira de
pensar comum aos católicos de seu tempo: todo o não católico era
considerado inimigo, infiel, aliado do demônio, um perigo para a
unidade religiosa desejada por Roma. Por isso devia ser tratado com
o rigor e a violência com que nas cruzadas foram tratados os
mouros.
Foi com essa mentalidade que os portugueses instalaram no Brasil
uma sociedade cristã. O português considerava-se cristão por direito
e por nascimento; o indígena era visto como pagão e infiel. Os
costumes do primeiro eram civilizados e cristãos; os dos nativos,
selvagens e bestiais. Os nomes portugueses eram cristãos, os
nomes indígenas, pagãos. O combate contra os indígenas assumia o
caráter de uma guerra santa, de uma cruzada: cristãos lutavam
contra selvagens perigosos e incrédulos pagãos.51
Através da educação, com a fundação de escolas do nível elementar e médio,
os jesuítas conseguiam divulgar o cristianismo, ensinando a doutrina católica e os
costumes da cultura européia. Além de auferirem grandes lucros com a exploração
da mão de obra indígena para a extração de riquezas naturais conhecidas como
“drogas do sertão”, os jesuítas monopolizaram o setor educacional do Brasil, por
mais de dois séculos.52
Porém, a exclusividade dos jesuítas como missionários oficiais da coroa
perdurou até 1580, quando novas ordens religiosas ingressaram na colônia,
principalmente estimuladas pela anexação de Portugal à Espanha, no período da
União Ibérica (1580 – 1640). Franciscanos acompanharam a ocupação do litoral
nordestino, do Rio grande do Norte até alagoas, no sudeste ficaram no máximo três
anos, numa espécie de missão volante entre os indígenas. Vieram também
beneditinos, que eram mais dedicados à vida contemplativa e pouco interessados na
catequese. Os carmelitas se espalharam por várias regiões, defendendo o interesse
português na Amazônia, onde rapidamente perderam o seu caráter missionário,
51 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997. 52 Cotrim, Gilberto. História e Consciência do Brasil. Ed. Saraiva. São Paulo. 1999.
43
voltando-se mais ao trabalho assistencial aos moradores das cidades em que se
instalavam e a construção de grandes conventos.53
Apesar da religiosidade nativa, mantida pela multiplicidade de práticas
religiosas dos índios brasileiros, esses foram compreendidos como professantes de
crenças erradas que muitas vezes eram, inclusive, desconsideradas enquanto
religiosas. É nesse sentido que se pode entender a citação seguinte:
O campo religioso nasceu, no Brasil, com a conquista portuguesa do
território e da gente que nele habitava. A conquista lusitana se deu
no bojo do movimento da Contra-Reforma. Decidida a retomar a
hegemonia perdida com a Reforma Protestante, no século XVI, a
Igreja Católica criou novas organizações (das quais a mais
importante foi a Companhia de Jesus) e aumentou o empenho na
conversão dos povos recém-incorporados aos domínios das
monarquias ibéricas. Foi assim que o campo religioso nasceu, no
Brasil, como conflito, ou melhor como combate dos “Soldados de
Cristo” contra a “ignorância” dos indígenas e a dimensão religiosa de
sua vida. A violência simbólica foi a tônica da evangelização, que
utilizou formas sofisticadas, como o teatro dos missionários, e figuras
de alta eficácia simbólica, como a invenção de Tupã para facilitar a
assimilação da figura do Deus Cristão. Contra os africanos
escravizados, a violência material que marcava sua condição
dispensou maiores esforços com a violência simbólica.54
Com as reformas do marquês de Pombal, que dentre várias ações, expulsou
os jesuítas do Brasil em 1759, eliminando 25 residências religiosas, 36 missões e 17
colégios e seminários, além de várias escolas de ler e escrever espalhadas pelas
vilas onde havia casas da Companhia de Jesus, desencadeou-se uma série de
dificuldades na área educacional no Brasil, sendo necessário o recrutamento de
diversas ordens religiosas, além de capelães de engenho e fazendas e outras
pessoas que pouco mais sabiam que ler e escrever para assumirem a função de
educadores. Os recursos vindos da Coroa para serem investidos no ensino eram
escassos, o que ensejava a falta de interesse dos mestres. Os pais dos alunos que
estavam habituados com o ensino gratuito oferecido pelos jesuítas, também não
53 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997. 54 Texto disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/conceituacao2.html, acesso em 24/06/2010.
44
estavam satisfeitos com o novo sistema, pois mesmo pagando, tinham que se
sujeitar-se a maus profissionais.55
Dentre tantas mudanças, aumentou-se o controle do Estado sobre a Igreja,
impondo-se uma série de limitações à entrada de ordens religiosas no país. Desta
feita, no século XIX, o clero foi quase reduzido ao setor dos padres seculares, na
condição de funcionários do governo.
A Igreja sofria declínio não apenas no cenário nacional, mas também por toda
Europa, em decorrência da Revolução Francesa, dos movimentos liberais e
socialistas, da expansão napoleônica. Contudo, em meados do século XIX ganha
impulso o processo de recuperação e readaptação da Igreja. Antigas ordens foram
revigoradas, outras foram criadas, alegava-se a ocorrência de fenômenos místicos,
como a aparições de santos, eclodiram novos centros de peregrinações, houve
grande expansão missionária56.
Nesse contexto, aumenta-se o conflito entre o a colônia e a Igreja Católica,
que adquire mais autonomia com o fortalecimento do papado, momento em que a
discussão sobre a questão religiosa é suscitada, culminando com a liquidação do
padroado sob a fórmula republicana da separação jurídica entre Estado e Igreja.57
O Brasil se tornara também terra de refúgio de muitos perseguidos por motivo
de crença e de política. As comunidades judaicas sofreram fortes ataques pelo
Tribunal do Santo ofício, ou Santa Inquisição, que foi criado pela nobreza e alto clero
para barrar a ascensão econômica da burguesia, da qual faziam parte grande
número de judeus, que para fugirem das ameaças, muitos se tornaram novos
cristãos. O processo migratório dessa comunidade para o Brasil iniciou-se no
começo do século XVI, acentuando-se com o passar dos anos.58
Outra presença marcante foi a do protestantismo no período da colonização
do Brasil. Em 1555 desembarcou na Baía da Guanabara o vice-almirante francês
Nicolau Durand de Villegaignon, para fundar no hemisfério sul uma colônia, a França
Antártica, com calvinistas franceses, perseguidos em sua terra. Eram cerca de 400
55 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997. 56 FERNANDES, Rubens César. Os Cavaleiros do Bom Jesus. Ed. Brasiliense, 1982. 57 FERNANDES, Rubens César. Os Cavaleiros do Bom Jesus. Ed. Brasiliense, 1982, p.52. 58 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997.
45
homens atraídos pela promessa de liberdade religiosa. No entanto, a desconfiança
de Villegaignon em seus homens começou a perturbar o governo da França
Antártica, que enfraquecido, retornou à França em 1558, momento antes de Portugal
recuperar a Baía de Guanabara. Outra tentativa fracassada de implantar uma
colônia calvinista ocorreu no começo do século XVII, em São Luiz do Maranhão,
com a França Equinocial.59
(...)
Villegaignon desconfiava de seus próprios homens e também dos
índios tamoios, seus aliados. Os problemas agravaram-se quando
aportou à Colônia um contingente de 280 religiosos calvinistas vindos
de Genebra, onde haviam sido ordenados. Ao que parece, os
missionários recém chegados traziam cartas de recomendação de
importantes líderes religiosos e políticos, que fizeram Villegaignon
temer por seu prestígio na França. Na chegada, recebeu-os com
manifestação de piedade e obediência, pedindo-lhes “para
estabelecer a ordem e disciplina da Igreja segundo a forma de
Genebra”. Mas logo passou a criticá-los por eles usarem pão comum
e vinho não misturado com água na celebração da Santa Ceia.
Com forte inclinação para polêmicas, Villegaignon continuou a
discutir com os religiosos. Questionava as posições calvinistas sobre
a transubstanciação (mudança da hóstia em Corpo de Deus), o
caráter sacrificial da eucaristia, a invocação dos santos, as preces
pelos mortos e o purgatório. Finalmente, proibiu de pregar um dos
pastores ordenados e credenciados pelo próprio Calvino, Pierre
Richier.
Diante de tantos conflitos, Richier partiu para a Europa com seus
auxiliares. Mas alguns deles, devido às más condições da travessia
marítima, resolveram voltar. Recebidos por um desconfiado
Villegaignon, que já rejeitara publicamente o calvinismo, foram
obrigados a redigir uma declaração sobre alguns pontos doutrinários.
Fingindo profunda indignação pelo teor calvinista do escrito, que
passaria para a história como a Confessio fluminensis, Villegaignon
mandou executar três dos assinantes. Foram os primeiros mártires
do credo protestantes na América.60
[...]
59 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997. 60 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997.
46
A colonização holandesa no nordeste brasileiro (1630-1654) também contou
com significativa participação protestante, período de regência do governo do Conde
Maurício Nassau, que ficou caracterizado por excepcional liberdade religiosa.61
Trazido com os negros escravos, os rituais africanos também compunham o
cenário religioso do Brasil - Colônia. Apesar dos poucos registros, por serem práticas
clandestinas, sabe-se que os africanos tinham cultos envolvendo mortos e
cerimônias religiosas como o acotundá, ou dança de tunda, praticado em Minas
Gerais, no século XVIII; o candomblé, que possui certa semelhança com os rituais
praticados no acotundá, onde há um altar instalado no interior de uma casa “e o
santo é representado por pedras, búzios e fragmentos de pedra, conforme a
invocação, e encerramento de uma urna de barro. Em torno desse vaso sagrado há
moringas de diversos tamanhos, pratos, porcelanas, enfeites de papel” 62 (...); e o
calundu, cujo ritual consistia em danças e cantos na língua jeje e a utilização de
ervas, búzios, aguardentes e outros elementos ainda hoje usado no candomblé
baiano.63
As práticas religiosas não católicas só eram exercidas de forma clandestinas
e a Igreja continuava intervindo no campo político do Brasil, como no caso da
promulgação das Constituições baianas, em 1707 que adequaram as leis canônicas
à realidade brasileira. Dentre algumas normas, foi instituído que o batismo deveria
ocorrer dentre os primeiros oito dias de vida, pois acreditava-se que os inocentes
que morriam após serem batizados iriam direto para o céu, sem precisar passar pelo
purgatório. Ademais, preceituava-se que aquele que não fosse batizado, não era
considerado gente. “Se para o colono branco o batismo se apresentava como uma
cerimônia quase corriqueira, para o escravo negro era uma garantia de
sobrevivência”64.
61 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997. 62 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997. 63 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997. 64 PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997.
47
Ademais, com a chegada da família real portuguesa no Brasil em 1808, novas
igrejas foram trazidas para o país, emergindo o que se tem hoje de diversidade
religiosa brasileira.
As primeiras igrejas chegaram ao Brasil quando, com a chegada da
família real portuguesa para o Brasil e a abertura dos portos a
nações amigas por meio do Tratado de Comércio e Navegação,
comerciantes ingleses estabeleceram a Igreja Anglicana no país, em
1811. Seguiu-se a implantação de outras igrejas de imigração:
alemães trouxeram a Igreja Luterana, em 1824, e também a Igreja
Adventista, em 1890, e imigrantes americanos trouxeram as Igrejas
Batista e Metodista. Os missionários Robert Kalley e Ashbel Green
Simonton trouxeram as Igrejas Congregacional (em 1855) e
Presbiteriana (em 1859), respectivamente, estas voltadas ao público
brasileiro65.
Apesar do surgimento de outros seguimentos religiosos, a religião católica
ainda prevalecia, o que propiciava a sua participação em assuntos do Estado.
Embora não existisse mais o regime do padroado, aliança entre a igreja católica e o
Brasil continuava a permitir a disseminação de políticas relacionadas a práticas
religiosas e a fortalecer governos, como foi o caso do Estado Getulista, no qual o
patrocínio estatal de consagração religiosa aumentaria a popularidade do governo
perante a nação maciçamente católica.
Uma importante base de apoio ao governo foi a Igreja Católica. A
colaboração entre a Igreja e o Estado não era nova, datando dos
anos 20, especialmente a partir da presidência de Artur Bernardes.
Agora ela se tornava mais estreita. Marco simbólico da colaboração
foi a inauguração da estátua do Cristo Redentor do Corcovado, a 12
de outubro de 1931 – data do descobrimento da América. Getúlio e
todo o ministério concentram-se na estreita plataforma da estátua,
pairando sobre o Rio de Janeiro. Aí o Cardeal Leme consagrou a
nação ‘ao Coração Santíssimo de Jesus, reconhecendo para sempre
seu Rei e Senhor’.
A Igreja levou a massa popular católica a apoiar o novo governo.
Este, em troca, tomou medidas importantes em seu favor,
destacando-se um decreto, de abril de 1931, que permitiu o ensino
da religião nas escolas públicas66.
65 Cesar Romero Jacob, Dora Rodrigues Hees, Philippe Waniez e Violette Brustlein . Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. Edições Loyola, 2004. 66 GALDINO, Elza. O Estado sem Deus. Apud. FAUSTO. História do Brasil.
48
Não foi apenas no governo de Vargas que a relação Estado/Igreja se
fortificava, o governo do General Eurico Gaspar Dutra, entre 1946 e 1951, teve como
característica marcante a influência católica, conforme relata Paulo Victorino:
Conta-se que, tal qual o gênio da lâmpada, Eurico Gaspar Dutra
concede à esposa, Carmela Leite Dutra (Dona Santinha) o direito a
três desejos, que lhes serão atendidos. Católica, devota, ligada à ala
mais conservadora da Igreja, Dona Santinha pede: primeiro, o
fechamento de todos os cassinos e a proibição de jogos de azar;
segundo, a extinção do Partido Comunista Brasileiro; terceiro, a
construção de uma capela no palácio Guanabara, residência oficial
do presidente e sua família.
O primeiro desejo é o mais fácil de realizar. A 30 de abril de 1946,
três meses após a posse, um decreto proíbe os jogos de azar em
todo o território nacional. O segundo demora um pouco mais, mas,
em 07 de maio de 1947, o PCB é posto fora da lei e, em 07 de
janeiro de 1948, são cassados os mandatos de todos os seus
representantes. Por último, a capela, o terceiro voto de Dona
Santinha, lá se encontra, até hoje, nos jardins do Palácio
Guanabara67.
Outro momento de especial intromissão da Igreja Católica sobre a vida e as
leis brasileiras deu-se na questão do divórcio, que somente conseguiu ser oficiado
em lei em 1977.
[...]
Apesar do rompimento do Estado com a Igreja em 1889, a influência
dos dogmas católicos sobre o ordenamento brasileiro sempre foi
notória. Evidencia esse fato a manutenção do princípio da
indissolubilidade do vínculo matrimonial no Código Civil de 1916.
[...]
Por pouco teria ocorrido dois anos antes, mas a permissão para o
divórcio só veio em 1977, ainda assim, foi preciso verdadeira
manobra política para que pudesse ser instituído.
Em março de 1975 apresentou-se a EC 5/1975, que visava o divórcio
após cinco anos de desquite ou sete anos de separação de fato. Na
sessão de votação a emenda obteve maioria dos votos, 222 contra
149, mas insuficientes para o quorum de aprovação, que era de dois
terços. 25 Após decretar recesso parlamentar com base no AI 5, em
abril de 1977, o Executivo promulgou a EC 8/1977, que reduziu o 67 GALDINO, Elza. O Estado sem Deus. Apud VICTORINO. Brasil- cem anos de república.
49
quorum necessário para a aprovação de emendas de dois terços
para a maioria dos congressistas.
Assim, os adeptos do divórcio apresentaram nova proposta de
Emenda Constitucional, a EC 9/1977, que foi aprovada em primeira
sessão por 219 votos, e em sessão final pro 226 votos26.
Com isso, a dissolução do matrimônio passou a ser permitida nos
casos previstos em lei, condicionada á prévia separação judicial, por
mais de três anos, ou de fato, desde que por mais de cinco anos até
a data da EC 9/197727. Com esteio na Constituição, foi promulgada
a Lei 6.515/1977, conhecida como a lei do divórcio, que consagrou,
também, a designação de separação para o que até então era
conhecido como desquite no Código Civil de 1916.68
Atualmente, religião e política continuam a atuarem conjuntamente no Estado
brasileiro. O atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, após a eleição,
emitiu Declaração sob o título “ A CNBB69 diante da vitória do novo presidente do
Brasil”:
A CNBB acompanhou com interesse e responsabilidade o processo
eleitoral, com grande esperança de novos rumos para o nosso país.
[...]
A vitória de um novo Presidente do Brasil representa o encontro com
os sonhos de novos tempos. Não podemos, no entanto, alimentar
ilusões. Estamos conscientes dos inúmeros problemas a serem
enfrentados pelos novos governantes. Sobretudo, no campo da
economia. Vivemos uma política internacional instável e complexa,
um Estado fragilizado, uma dívida externa e interna incontrolável,
desemprego em crescimento...
[...]
O Partido dos Trabalhadores, vitorioso, recolhe, desde suas origens,
a presença e a atuação também de grupos cristãos das nossas
Igrejas Locais. Os valores do Reino de Deus de que são eles
portadores oferecerão, certamente, subsídios para a construção de
uma sociedade justa e solidária.
Ficamos em vigília de oração pedindo a Deus que ilumine os passos
e as orientações dos nossos dirigentes70.
68 Artigo científico disponível em; http://www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=704, acesso em 20.09.2010. 69 CNBB sigla de Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. 70 GALDINO, Elza. O Estado sem Deus. Ed Del Rey. 2006.
50
Vale ressaltar que a religiosidade no Brasil, além dos receber influxos das
religiões não cristãs (como o candomblé), multiplicou e divergiu no último século,
sobretudo em decorrência do crescimento das religiões cristãs não católicas. Os
protestantes, presentes, no Brasil, como apontado acima desde o século XIX,
ganham crescente importância.
Em 1910, o Brasil receberia o pentecostalismo, com a chegada da
Congregação Cristã no Brasil (1910) e da Assembleia de Deus
(1911). A partir de 1950, o pentecostalismo transformou-se com a
influência de movimentos de cura divina que geraram diferentes
denominações, tais como a Igreja "O Brasil Para Cristo" e a Igreja do
Evangelho Quadrangular. Nessa época, algumas denominações
protestantes que eram tradicionais adicionaram o fervor pentecostal,
como exemplo, a Convenção Batista Nacional e as igrejas
Presbiteriana Renovada e Igreja Cristã Maranata, ambas surgidas a
partir da Igreja Presbiteriana do Brasil.
Na década de 1970, surgiu o movimento neopentecostal, com igrejas
mais secularizadas, padrões morais menos rígidos, e ênfase na
teologia da prosperidade, como a Igreja Universal do Reino de Deus.
A partir dos anos 1980, surgiram igrejas neopentecostais com foco
nas classes média e alta, trazendo um discurso ainda mais liberal
quanto aos costumes e menos ênfase nas manifestações
pentecostais. Dentre essas igrejas se destacam a Igreja Renascer
em Cristo e a Igreja Evangélica Cristo Vive.
Nas últimas décadas, o protestantismo principalmente as Igrejas
Pentecostais vem ganhando muitos adeptos, sendo o segmento
religioso com maior índice de crescimento. A maioria das igrejas
protestantes estão presentes: no Rio Grande do Sul (descendentes
de alemães, que trouxeram a Igreja Luterana, maior grupo religioso
da Alemanha até os dias de hoje), nas grandes capitais do sudeste,
como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte (onde as igrejas
Batistas têm grande espaço), Goiânia e Brasília ( onde a igreja Sara
Nossa Terra têm grande percentual da população). Os protestantes
estão em número bastante significativo nos estados de São Paulo,
Rio de Janeiro, Minas Gerais e em toda a região centro-oeste.71
Atualmente, o Brasil possui um número ainda maior de crenças professadas,
além de ser crescente a população dos que não professam alguma fé, o que
caracteriza a diversidade cultural e religiosa que forma este país.
71 Cesar Romero Jacob, Dora Rodrigues Hees, Philippe Waniez e Violette Brustlein . Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. Edições Loyola, 2004.
51
1.3 ASPECTOS ATUAIS DA RELIGIOSIDADE BRASILEIRA.
Segundo o IBGE, os brasileiros distribuem-se quanto a religião de acordo com
o quadro seguinte72:
EM PORCENTAGEM DA POPULAÇÃO NACIONAL
RELIGIÃO 1970 1980 1991 2000
%
CATOLICISMO 91,8 89,0 83,3 73,9
PROTESTANTISMO 5,2 6,6 9,0 15,6
SEM RELIGIÃO 0,8 1,6 4,7 7,4
ESPIRITISMO 0,7 1,1 1,3
RELIGIÕES AFRO-
BRASILEIRAS 0,6 0,4 0,3
OUTRAS 1,3 1,4 1,8
Nota-se nesse quadro a predominância dos católicos. No entanto, alguns têm
questionado que o número de católicos do Censo brasileiro está inflacionado. Isso
porque a filiação a uma determinada religião baseia-se na própria palavra do
recenseado e é sabido que no Brasil, dizer-se católico pode representar, inclusive, a
ausência de uma definição clara de religiosidade. Além do que entre católicos
existe, na cultura popular, a categoria de não-praticantes.
Mas, ainda que componha, como se acredita, a grande maioria da afiliação
religiosa, sob o fundamento de que religião não pode ser matéria de política estatal
específica, haja vista pertencer ao domínio das crenças privadas do cidadão,
emerge a dúvida sobre os limites à criação de legislações que tangenciem o tema.
72 IBGE, População residente, por sexo e situação do domicílio, segundo a religião, Censo Demográfico 2000. Acessado em 13 de dezembro de 2007, acesso em 15 de agosto de 2010.
52
Para alguns, o Estado só poderia proclamar leis de abstenção de tutela à
religião específica ou que garantam a liberdade de crença. Não é o que parece
emergir da lei que analisaremos a seguir.
CAPÍTULO 3
DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 11,§1º DO ESTATUTO
JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL FRENTE AOS
PRINCÍPIOS DO ESTADO LAICO.
Para um perfeito entendimento do assunto, faz-se necessário, neste primeiro
momento, tecer alguns comentários a respeito do Acordo firmado entre o Estado
brasileiro e a Santa Sé, bem como analisar a força normativas do referido tratado e
sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro
3.1. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO
No dia 13 de novembro de 2008 a República Federativa do Brasil,
representada pelo Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim, celebrou um
acordo com a Santa Sé, representada pelo cardeal Tarcisio Bertoni, na cidade do
Vaticano. O referido acordo dispõe sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no
Brasil.
53
Após ser aprovado pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo n.
698 em 07 de outubro de 2009, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva
promulgou através do Decreto n. 7.107 de 11 de fevereiro de 2010 o já mencionado
acordo:
A proposta inicial do acordo assinado pelo presidente Lula, em
2008, surgiu por meio do secretário de Estado da Santa Sé,
Cardeal Tarcisio Bertoni, em uma carta enviada em setembro
de 2006. Depois de passar por consulta em diversas áreas do
governo, o texto teve breves adaptações sugeridas pelo
Ministério das Relações Exteriores. O acordo integral só foi
acordado pelas duas partes em novembro do ano passado.
Segundo o embaixador Samuel Pinheiro Neto Guimarães, o
Brasil é o país que “abriga a maior população católica do
mundo e era o único que não dispunha de acordo sobre a
presença da Igreja Católica em seu território”. Em texto, ele
afirma ainda que as diretrizes seguidas pelas autoridades
brasileiras na negociação do acordo foram a “preservação das
disposições da Constituição e da legislação ordinária sobre o
caráter laico do estado brasileiro”.
No acordo, o Brasil reconhece à Igreja Católica o direito de
desempenhar sua missão apostólica, protege o patrimônio
histórico e cultural da Igreja Católica e reconhece a
personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas nos termos
da legislação brasileira. Um dos artigos dispõe que os “direitos,
imunidades, isenções e benefícios das pessoas jurídicas
eclesiásticas que prestam também assistência social serão
iguais aos das entidades com fins semelhantes, conforme
previstos no ordenamento jurídico brasileiro”.73
Porém, antes de adentrarmos no mérito do referido acordo, mister se faz
discorrer acerca da força normativa dos Tratados.
3.2. A INCORPORAÇÃO DE TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO.
73 Artigo disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-fev-13/aprovado-estatuto-juridico-igreja-catolica-brasil2, acesso em 29 de setembro de 2010.
54
Em suma, nas palavras de Geraldo Eulálio do nascimento e Silva, tratados
são atos jurídicos por meio do qual se manifestam acordos de vontades entre duas
ou mais pessoas internacionais. Quanto a terminologia, a palavra tratado se refere a
um acordo regido pelo direito internacional, qualquer que seja a denominação.
Essas denominações são utilizadas segundo sua forma, objeto, conteúdo ou o fim a
que se destina, conforme citamos: convenção, protocolo, convênio, declaração,
modus vivendi, ajuste, compromisso e concordata, que são atos sobre assuntos
religiosos celebrados entre a Santa Sé com Estados com comunidade católica.74
De igual modo, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados trouxe em
seu artigo 2º, 1, a, a definição de tratado, conforme abaixo transcrito:
[...]
1. Para os fins da presente Convenção:
a) "tratado" significa um acordo internacional concluído por escrito
entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um
instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos,
qualquer que seja sua denominação específica;75
[...]
Desse modo, Estados soberanos buscam estabelecer e consolidar sua
personalidade internacional através de tratados internacionais, onde fortalecem as
relações consulares e diplomáticas, econômicas e comerciais, estratégicas,
educacionais, culturais, tecnológicas e científicas.76
Cumpre observar que a simples assinatura de um tratado pode não produzir efeitos
jurídicos. Segundo ventilado no artigo 11 da Convenção sobre Direitos dos Tratados
“o consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado pode manifestar-se
pela assinatura, troca dos instrumentos constitutivos do tratado, ratificação,
aceitação, aprovação ou adesão, ou por quaisquer outros meios, se assim
acordado”.77
74 Accioly, Hildebrando, G. E. do Nascimento e Silva. Manual do Direito Internacional Público. 13 ed. São Paulo. Saraiva. 1998. 75 Texto da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados de 1969, disponível em: http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm, acesso em 15/10/2010. 76 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009. 77 Texto da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados de 1969, disponível em: http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm, acesso em 15/10/2010.
55
Ademais, para a validade de um tratado, é necessária a observância de seus
pressupostos, quais sejam: capacidade das partes, sendo considerados capazes
Estados e Organizações Internacionais; habilitação dos agentes signatários, sendo
instrumento a Carta de plenos poderes firmada pelo Chefe de Estado ou pelo
Ministro das Relações Exteriores; consentimento mútuo, visto que o tratado é um
acordo de vontades, a adoção do seu texto efetua-se pelo consentimento de todos
os Estados participantes de sua elaboração; objeto lícito e possível, não podendo
ser acordado algo materialmente impossível ou não permitido pelo direito e pela
moral.78
Reza a Carta Magna de 1988 em seu inciso VIII do art. 84 que “compete
privativamente ao Presidente da República celebrar tratados, convenções e atos
internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”. Do mesmo modo,
dispõe o artigo 42, inciso I, da CRFB/88:
Art. 49- É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos
internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos
ao patrimônio nacional;
[...]
Assim, após ser assinado pelo Chefe de Estado, o tratado segue para o
Congresso nacional, onde deverá ser aprovado em cada casa do Congresso,
seguindo para o Chefe do Executivo promulgá-lo por decreto.
Quanto a inclusão dos tratados no ordenamento jurídico brasileiro, em regra
geral, estes são incorporados com força de lei ordinária federal, segundo disposto no
artigo 102, inciso III, alínea “b”, da CRFB/88:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a
guarda da Constituição, cabendo-lhe:
[...]
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em
única ou última instância, quando a decisão recorrida:
[...]
b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
[...]
78 Accioly, Hildebrando, G. E. do Nascimento e Silva. Manual do Direito Internacional Público. 13 ed.São Paulo. Saraiva. 1998.
56
Não obstante, os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos
recebem tratamento diferenciado pela Carta política. A Emenda Constitucional n.
45/2004 acresceu à Constituição Federal o § 3º do art. 5º, preceituando equivalência
às emendas constitucionais aos tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos, que forem aprovados em ambas as casas do Congresso Nacional, por
três quintos dos votos, em dois turnos. Os tratados de direitos humanos,
devidamente ratificados, não necessitam da edição de decreto presidencial,
adentrando automaticamente no ordenamento jurídico pátrio.79
Convém ressaltar que os tratados internacionais podem ser passíveis de
controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal ou previamente pela
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados e pelo
Presidente da República, através do veto. Tal controle prévio é de suma importância,
uma vez que após ser ratificado o tratado internacional, o cumprimento das
obrigações nele previsto, perante a órbita internacional é vinculante, ficando o
Estado que firmou o acordo de boa-fé sujeito aos encargos contratuais,
respondendo perante a comunidade internacional em caso de descumprimento.80
Portanto, considera-se investido de inconstitucionalidade um tratado
conflitante com o conteúdo da Constituição, nomeadamente quanto
aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art.
3º, CF) correlatados à construção de uma sociedade livre, justa e
solidária; à garantia do desenvolvimento nacional; à erradicação da
pobreza e marginalização e à redução das desigualdades sociais e
regionais; à promoção do bem de todos, ou promova preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade, religião e quaisquer outras formas de
discriminação.81
No mesmo diapasão, decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF), na decisão
unânime do Habeas Corpus 90.450/MG, posicionando-se sobre a prevalência da
Constituição, frente aos tratados. Que por sua importância, transcrevemos trecho do
voto do relator, Ministro Celso de Mello:
Tenho por irrecusável, de outro lado, a supremacia da Constituição
sobre todos os tratados internacionais celebrados pelo Estado 79 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009. 80 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009. 81 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009.
57
brasileiro, inclusive aqueles que versarem o tema dos direitos
humanos, desde que, neste último caso, as convenções
internacionais que o Brasil tenha celebrado (ou a que tenha aderido)
importem em supressão, modificação gravosa ou restrição a
prerrogativas essenciais ou a liberdades fundamentais reconhecidas
e asseguradas pelo próprio texto constitucional, eis que os direitos e
garantias individuais qualificam-se, como sabemos, como limitações
materiais ao poder reformador do Congresso Nacional.
Sabemos que o exercício do “treaty-making power”, pelo Estado
brasileiro – não obstante os polêmicos arts. 27 e 46 da Convenção
de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação
perante o Congresso Nacional) -, está sujeito à observância das
limitações jurídicas emergentes do texto constitucional.
A Constituição qualifica-se como o estatuto fundamental da
República. Nessa condição, todas as leis e tratados celebrados pelo
Brasil estão subordinados à autoridade normativa desse instrumento
básico (RTJ 84/724 - RTJ 121/270-276 - RTJ 179/493-496). Nenhum
valor jurídico terá o tratado internacional, que, incorporado ao
sistema de direito positivo interno, transgredir o texto da Carta
Política, como sucederia, p. ex., na hipótese de o Estado brasileiro
subscrever tratados internacionais ofensivos e gravosos ao regime
das liberdades públicas consagrado pela própria Lei Fundamental.
É essencial reconhecer, neste ponto, que a inconstitucionalidade de
tratados internacionais em geral - e, também, de convenções
internacionais que eventualmente reduzam ou suprimam direitos e
garantias individuais, tais como consagrados pela própria Carta
Política - impedirá a aplicação de suas normas mais gravosas na
ordem jurídica interna brasileira, porque violadoras de disposições
fundamentais.82 [...]
Destarte, conforme se analisa da decisão acima colacionada, o controle de
constitucionalidade deve se embasar em uma interpretação que seja mais benéfica
à pessoa humana, estando ela prevista no tratado internacional ou no na legislação
interna, sendo garantido, dessa forma, o direito aos cidadãos brasileiros o acesso às
garantias constitucionais universais83.
3.3. A PERSONALIDADE INTERNACIONAL E OS TRATADOS DA SANTA SÉ
82 Texto do acórdão disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=573711, acesso em 20/10/2010. 83 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009.
58
A autoridade papal exerceu durante muitos séculos, além do poder espiritual,
como chefe visível da Igreja Católica, o poder temporal, como soberano dos Estados
pontifícios. Por isso, sua autoridade era comparável a de qualquer outro chefe de
Estado, sendo exercida sobre as terras da coroa pontifícia, motivo pelo qual sua
personalidade internacional nunca fora posta em dúvida. Contudo, quando em 1870,
em decorrência da usurpação levada a efeito pelo reino da Itália, o poder temporal
do papa decaiu, momento em que a personalidade internacional deste e da Santa
Sé começaram a ser negadas por muitos. Porém, logo após a tomada de Roma, os
homens do Estado aceitaram a necessidade de garantir a independência da Santa
Sé e garantir ao soberano Pontífice certas prerrogativas, motivo pelo qual foi
promulgada a chamada lei das garantias, reconhecendo ao papa quase todas as
prerrogativas dos chefes de Estado. Os Estados católicos continuaram a exercer
relações internacionais, assinando concordatas com a Santa Sé, através do
Soberano Pontífice.84
Wilson de Souza Campos Batalha, citando Carlos Lazcano, afirma
que a Igreja é reconhecida por meio do Direito Internacional
consuetudinário. Os primeiros tratados realizados entre a Santa Sé e
Estados soberanos, chamados de concordatas, remontam ao ano de
1122, ocasião emq eu foi assinada a Concordata de Worms. A estes
se seguiram outros.
Após a crise político-religiosa surgida com a Revolução Francesa,
Napoleão Bonaparte, cônsul de um Estado Laico, celebrou a paz
com o Papa Pio VII, através da Concordata de 15 de julho de 1801,
que devolveu à França o livre exercício dos cultos. Foi no papado de
Pio VII que a Santa Sé consolidou seu reconhecimento internacional.
[...]
Deu-se no Congresso de Paris (1856) a discussão acerca da
situação das terras pontifícias, que se encontravam em situação
precária. A partir desse fato, e, principalmente, com a unificação
italiana, ocasião em que a Igreja perdera sua base territorial, o
reconhecimento internacional da Santa Sé foi colocado em dúvida.
Naquela altura, as tropas do reino sardo incorporaram os Estados
Pontifícios à Itália, ocupando Roma em 20 de setembro de 1870.
A solução à “Questão Romana” coube aos acordos de Latrão (1929),
de forma que o governo italiano reconheceu a soberania da Santa Sé
84 Accioly, Hildebrando, G. E. do Nascimento e Silva. Manual do Direito Internacional Público. 13 ed.São Paulo. Saraiva. 1998.
59
e a jurisdição sobre o Estado do Vaticano. Em 1933, o Papa Pio XI
ofereceu aos católicos uma base jurídica novamente confortável, ao
assinar dezoito concordatas com os novos Estados nascidos dos
Tratados de Paz e igualmente com a Alemanha.
Informa-nos Celso Mello que Verdross e Quadri sustentaram que a
personalidade internacional é da Igreja Católica e não da Santa Sé.
Mas, Mello sinaliza convergência, argumentando que o Tratado de
Latrão fala expressamente em Santa Sé.
Atualmente, não pairam dúvidas sobre a personalidade jurídica
internacional da Santa Sé. Participa das principais organizações
internacionais (ONU, UNESCO e FAO, dentre outras) e possui
relações diplomáticas com 172 Estados, além da União Européia e
Malta, e relações de natureza especial coma Rússia e Organização
para Libertação da Palestina (OLP). A representação diplomática e a
conclusão de tratados são exercidas pelo Sumo Pontífice, Soberano
do Estado da Cidade do Vaticano, que possui, ainda, a plenitude dos
poderes legislativo, executivo e judicial (art. 1º da Nova Lei
Fundamental)85.
[...]
Desta forma, podemos verificar que a Santa Sé é parte legítima para firmar
acordos internacionais, como é o caso da Concordata assinada com o Estado
brasileiro, sobre a qual falaremos a seguir.
3.4. O ACORDO DO BRASIL COM A SANTA SÉ
Conforme mencionado no início desse capítulo, a República Federativa do
Brasil, por ocasião da audiência do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o Papa
Bento XVI, na cidade-estado do Vaticano, assinou em 13 de novembro de 2008 um
acordo que disciplinava sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil.
Para a elaboração do disposto acordo foi considerado as relações históricas
entre a Igreja Católica e o Brasil e suas atuações na sociedade para promoção do
bem integral da pessoa humana. Além disso, afirmam que a Concordata é assinada
embasada no princípio de liberdade religiosa, reconhecendo que a Carta
constitucional brasileira reconhece o livre exercício de culto.
O Tratado em questão objetivou fortalecer as relações já existentes no Brasil,
insurgindo em matérias além do prisma do exercício religioso, conforme se
85 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009.
60
depreende da análise de Hugo Alexandre Espínola Mangueira, sobre os termos do
referido acordo:
No art. 1º consta que as relações diplomáticas continuam a ser
realizadas por representantes, sendo um Núncio Apostólico
acreditado junto ao Brasil e um Embaixador do Brasil acreditado
junto a Santa Sé. Permanecem as imunidades e garantias de praxe,
asseguradas pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas
(1961) e demais regras internacionais.
No acordo, conforme reza o art. 2º, o Brasil reconhece à Igreja
Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica,
garantindo o exercício público de suas atividades, observado o
ordenamento jurídico brasileiro.
O Brasil reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica e de
todas as Instituições Eclesiásticas (tais como Conferência Episcopal,
Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias
Territoriais ou Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas,
Administrações Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado
Militar e Ordinariado para os Fiéis de Outros Ritos, Paróquias,
Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica) em
conformidade com o direito canônico, caso não se oponha ao
ordenamento jurídico brasileiro (art. 3º). A Igreja Católica tem o
direito de livremente criar, modificar ou extinguir todas estas
Instituições Eclesiásticas (art. 3º, §1º). Estas instituições são
reconhecidas no Brasil mediante a inscrição do ato constitutivo no
respectivo cartório de pessoas jurídicas – como já acontece hoje em
nosso ordenamento civil –, devendo também, serem averbadas todas
as alterações cadastrais (art. 3º, §2º).
No art. 4º, a Santa Sé declara que nenhuma circunscrição
eclesiástica do Brasil ficará dependendo de bispo cuja sede esteja
fixada em território estrangeiro.
O art. 5º alude à cooperação entre o Estado brasileiro e a Igreja
Católica, prescrevendo liberdade às pessoas jurídicas eclesiásticas
para exercerem assistência e solidariedade social, incluindo o gozo
dos direitos, imunidades, isenções e benefícios atribuídos às
entidades que possuam fins de natureza semelhante, previstos no
ordenamento jurídico brasileiro, sempre que forem observados os
requisitos e obrigações exigidos pela legislação brasileira.86
86 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009.
61
Ainda menciona o Acordo sobre o patrimônio da Igreja, sendo constituído
grande parte em patrimônio cultural brasileiro, tornando-se responsabilidade do
Estado proteger e zelar pela manutenção dos bens móveis e imóveis, conforme
reflete o autor acima mencionado:
O reconhecimento do patrimônio histórico, artístico e cultural da
Igreja Católica, dentre outros, como os documentos dos arquivos e
bibliotecas das igrejas, da mesma forma, encontram-se presentes no
Acordo. Eles passam a constituir parte relevante do patrimônio
cultural brasileiro (art. 6º, parte inicial). A propriedade privada dos
bens da Igreja Católica foi reconhecida. Permitem-se ações visando
cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a fruição de bens,
móveis e imóveis da Igreja ou de suas instituições eclesiásticas (art.
6º, parte final), reconhecendo-se a finalidade religiosa dos bens
eclesiásticos (art. 6º § 1º), mas possibilitando-se o acesso para fins
de visitação e estudo (art. 6º § 2º).
O respeito à liberdade religiosa à liberdade religiosa dos fiéis
católicos no território brasileiro está previsto no artigo 7º. Neste
artigo, asseguram-se as medidas necessárias para garantir a
proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias,
símbolos, imagens e objetos culturais, contra toda forma de violação,
desrespeito e uso ilegítimo. Vedam-se a demolição, ocupação, obras
ou desvio de finalidade dos lugares de culto da Igreja Católica, salvo
por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, nos
termos da Constituição brasileira.
A Igreja Católica compromete-se dar assistência espiritual aos fiéis
internados em estabelecimento de saúde, de assistência social, de
educação e casas de detenção, observadas as normas internas de
cada estabelecimento, bem como as disposições legais (art. 8º).
O reconhecimento de títulos e qualificações em nível de Graduação e
Pós-Graduação fica sujeito às exigências do ordenamento jurídico
pátrio e às leis da Santa Sé (art. 9º).
Permanece o direito de a Igreja Católica manter instituições de
ensino, em todos os níveis, em conformidade com seus fins e com as
exigências do ordenamento jurídico brasileiro (art. 10, § 1º). O
reconhecimento dos títulos emitidos por estas instituições fica
regulado pelas leis brasileiras, em condições de igualdade com os de
idêntica natureza (art. 10, § 2º).87
[...]
87 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009.
62
Salienta-se que a Concordata versou sobre outros temas relacionados não
apenas ao patrimônio da Igreja, como também na esfera civil, tratando da validade
do casamento religioso, na órbita administrativa, concernente a obrigatoriedade de
destinação de espaço público para fins religioso, em matéria tributária, isentando a
igreja e seus patrimônios de qualquer tributação, na ceara trabalhista, e demais
temas, que colacionamos abaixo:
O casamento religioso, que atender às exigências do direito
brasileiro, produz os efeitos civis, desde que registrado no cartório
próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração (art.
12). O §1º deste artigo prevê a execução de sentenças eclesiásticas
em matéria matrimonial, confirmadas pelo órgão de controle superior
da Santa Sé, via homologação no Superior Tribunal de Justiça.
O artigo 13 garante o segredo do oficio sacerdotal, nomeadamente o
da confissão sacramental.
Consta ainda que o Brasil se empenhará em colocar nos planos
diretores das cidades a destinação de espaços para fins religiosos
(art. 14).
O artigo 15 prevê o reconhecimento pelo Brasil da imunidade
tributária sobre as atividades da Igreja, assim como ao seu
patrimônio e renda, em conformidade com a Constituição brasileira.
As pessoas jurídicas da Igreja Católica que exerçam atividade social
e educacional, sem finalidade lucrativa, receberão o mesmo
tratamento e benefícios dirigidos às entidades filantrópicas
reconhecidas pelas leis brasileiras (art. 15, § 1º).
Prevê o inciso I do artigo 16, que o vínculo entre os padres e
diáconos com as dioceses é apenas de caráter religioso, não
gerando qualquer obrigação trabalhista, a menos que seja provado o
desvirtuamento da instituição eclesiástica. [...].
O Acordo prevê a possibilidade de concessão de visto, permanente
ou temporário, para que estrangeiro possa exercer atividade pastoral
no Brasil (art. 17, caput e § 1º), a pedido formal de um bispo e de
acordo com o ordenamento jurídico brasileiro.88
[...]
Em decorrência dos artigos os acima mencionados, e de outros ainda não
trazidos a baila, houve a manifestação de integrantes da sociedade civil que se
88 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009.
63
posicionaram contra a aprovação da Concordata, sob alegação que tais dispositivos
não estariam em acordo com os princípios constitucionais do Estado laico.
Por tal motivo, a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da
Câmara dos Deputados (CREDN) realizou audiência para discutir a
constitucionalidade da Concordata, participando do debate representantes das
Igrejas Católicas e Evangélicas; do Ministério das Relações Exteriores; e de
parlamentares ligados ao tema, que manifestaram seus argumentos pela aprovação
ou rejeição do Acordo.
Dessa forma, embora a lei depois de publicada adquira autonomia em relação
à opinião dos congressistas, a análise da ocasio legislatores, é aceita como um dos
métodos de entender o motivo e restrições por trás do texto da lei. Sobretudo, “(...)
logo após a promulgação da lei, quando ainda está vivo o sentido do dever-ser que
determinou a conversão do projeto de lei em lei."89 Razão pela qual, citaremos
alguns dos votos.
Segundo a opinião de alguns congressistas, os artigos dispostos no
documento trariam consubstanciais vantagens para a Igreja Católica. No parecer do
deputado federal Bispo Gê Tenuta (DEM/SP), consta as seguintes ponderações:
[...]
À primeira leitura, verifica-se, sem dificuldade, que o texto do Acordo
discrimina as confissões religiosas não católicas que atuam no Brasil.
Embora a análise da constitucionalidade seja atribuição específica de
outra Comissão, é imperioso afirmar, desde já, que o Estado
brasileiro jamais poderia ter assinado um tratado de fundo religioso,
com uma entidade de caráter e objetivos religiosos, por força do
disposto no artigo 19, inciso I, da Lei Maior.
O fundo religioso do Acordo, aliás, é reconhecido pelo próprio Relator
em pelo menos duas oportunidades de seu voto. Ora, Senhores
Deputados, quando se reconhece o caráter religioso do Acordo, não
há motivos para sequer analisarmos o mérito do instrumento. Se o
texto possui natureza e objetivos religiosos, ainda que subliminares,
ele deve ser sumariamente rechaçado, por flagrante
incompatibilidade com o texto constitucional.
Em determinado ponto, o Relator aduz que “o Acordo reafirma, como
se observa claramente, os princípios da liberdade religiosa para 89 BETIOLLI, Antonio Bento. Introdução ao Direito. 9ª. Ed. São Paulo: Letras e letras, 2004. P. 411
64
todas as religiões e não apenas para a Igreja Católica”. Com o
devido respeito de Sua Exa., o que se vê nos dispositivos do Acordo
é exatamente o oposto: uma série de dispositivos que consagram ora
privilégios tributários, ora garantias excessivas aos bens da Igreja.
A nosso ver, o princípio da liberdade religiosa não autoriza a
concessão de privilégios a qualquer religião. A pedra basilar desse
princípio constitucional é, justamente, não permitir ao Estado que
beneficie, a qualquer título, uma confissão religiosa em detrimento de
outra.90
[...]
No mesmo sentindo também se manifestou o deputado Ivan Valente
(PSOL/SP) sobre o Estatuto mencionado, sendo contrário a aprovação do acordo,
uma vez que, segundo seu entendimento, o mesmo preceitua um retrocesso para o
Estado brasileiro:
Sem adentrarmos na especificação dos diversos artigos
componentes do dito Acordo, passamos à avaliação de alguns
pontos, que julgamos essencial sejam trazidos à discussão, eis que a
nosso ver constituem verdadeiro retrocesso nas relações entre
Estado e Religião nos limites fixados pela vigente Constituição.
Convém, então, registrar desde logo, que a nosso ver a proposta não
está condizente com o princípio da laicidade do Estado brasileiro,
princípio este que se constitui em real avanço da sociedade em
relação ao Estado.
Questões tratadas pelo Acordo, o qual possui características
jurídicas discutíveis se analisado à luz do ordenamento pátrio, como
por exemplo, sua condição de ser firmado com um Estado Teocrático
de natureza sui generis, trazem de volta à discussão perante a
sociedade brasileira questão superada há mais de cem anos, qual
seja a separação entre a religião e o Estado, uma vez que não há
dúvidas que o Acordo independente do formato, tem natureza de
acordo religioso. Nesta linha, consideramos que outros aspectos
estão a merecer reflexão do ponto de vista de estarem consoantes
com o nosso ordenamento jurídico eis que este ordenamento não se
fez sem a participação de diversos setores da nossa sociedade. Para
ilustrar a afirmação, basta uma simples avaliação no conteúdo dos
artigos da proposta que tratam, por exemplo, de questões
trabalhistas com óbvios reflexos na Seguridade Social que são
patrimônio de toda a sociedade brasileira, inclusive daqueles que não
90 Texto do voto em separado disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/default.asp
65
professam qualquer espécie de religião, ou ainda, de artigo que trata
de imunidade tributária, estendendo-a para além dos templos e das
atividades inerentes ao exercício da religião. Da mesma forma que
tal situação afeta toda a sociedade, é necessário registrarmos ainda,
outro dispositivo que de forma absolutamente absurda prevê uma
espécie de reserva legal de áreas públicas a serem destinadas às
atividades religiosas ou templos.91
Igualmente se manifestou o deputado André Zacharow (PMDB/PR) em seu
voto enviado ao relator do projeto, o deputado Bonifácio de Andrada (PSDB/MG),
conforme abaixo colacionado:
[...]
Consideramos que esta douta Comissão não pode negar a flagrante
inconstitucionalidade a qual será cometida caso o presente Acordo
seja aprovado. Ora, estabelece o artigo 19 da Constituição:
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na
forma da lei, a colaboração de interesse público;
Depreende-se, do artigo transcrito acima, que o Estado brasileiro se
pretende laico e, como tal, não pode estabelecer acordo com igrejas
de qualquer ordem. De fato, é pela garantia da inexistência de uma
religião oficial que se afasta qualquer possibilidade de interferência
da religiosidade nas decisões do Estado, princípio esse que será
quebrado com a ratificação do presente Acordo.
I- A alegação do “Estado Soberano” que seria a Santa Sé, para
nossa Constituição não serve, porque há a proteção estabelecida ao
estabelecer a CF “ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança”. Ou seja, neste caso, a Santa
Sé pode ser compreendida como “representante da Igreja Católica”,
e o acordo como uma “aliança”, o que é dito pelo próprio Relator
Bonifácio de Andrada que, na página 23 de seu Parecer, afirma: “O
acordo do Brasil com a Santa Sé é um tipo de aliança jurídico-
religiosa”.
[...]
III- A alegação de que o Brasil já assinou tratado com teocracias
como o Irã não pode ser utilizada para justificar esse acordo, porque
91 Texto do voto em separado disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/default.asp
66
o Brasil não assinou com o Irã o reconhecimento do Alcorão como
livrofonte da cidadania (que por exemplo poderia, nesse caso,
permitir apedrejar mulheres ou cortar mãos de ladrões), embora
nesse acordo com a Santa Sé explicitamente reconheça o direito
canônico, o mesmo que gerou, por sua negação, a Reforma de
Lutero e todos os eventos políticos a partir de então. Ainda, o que o
Brasil assinou com o Irã é de interesse comercial, para os quais não
importa serem seus Estados vinculados ou não a religião.
IV- No campo das relações internacionais, cumpre enfatizar que o
Acordo ora sob análise poderá causar empecilhos ao Brasil. Ele cria
incentivos para que outros países que acreditem na separação entre
Igreja e Estado desconfiem tanto do laicismo brasileiro quanto da
nossa capacidade de garantir a liberdade religiosa. Estabelece-se,
com a assinatura do Acordo, uma imagem internacional de
preferência pela religião católica.92
[...]
Outrossim, o deputado federal Pastor Pedro Ribeiro (PR/CE) também votou
pela rejeição do acordo, enfatizando, principalmente, prováveis repercussões no
âmbito da economia e do comercial internacional, uma vez que o Brasil possui
relações comerciais com diversos países teocráticos e não-cristãos. Dessa forma,
segundo entendimento do deputado, estabelecer vínculo jurídico com uma religião
em especial poderia afastar possíveis negociações com países profetizantes de
outros credos:
Nos últimos anos, são notórios os esforços do Governo Federal de
abertura de novos mercados para os produtos brasileiros. Nesse
contexto, o País tem investido tempo e dinheiro em estratégias de
aproximação com a República Popular da China, com a Índia e com
os países árabes, que, juntos, respondem por parte significativa do
comércio exterior brasileiro.
Sabe-se que apenas a condição de estado laico não é suficiente para
justificar o aumento dos fluxos comerciais do Brasil com os referidos
países. Todavia, o fato de o Brasil não adotar uma “religião oficial”
afasta obstáculos de natureza político-religiosa que, não raro,
inviabilizam as relações entre os Estados, inclusive as de natureza
comercial.
Portanto, sob o ponto de vista das relações internacionais, pode-se
dizer que o Acordo com a Santa Sé tem o potencial de causar
empecilhos à política de abertura de novos mercados para as
92 Texto do voto disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/textos/depPedro-Ribeiro.pdf
67
exportações nacionais. Ademais, poderá servir de argumento para
que alguns Estados deixem de apoiar reivindicações políticas do
Brasil, como o pretendido assento permanente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas.93
Contudo, apesar das manifestações contrárias ao acordo, o projeto de Lei
ganhou grande apoio por parte de parlamentares que entenderam está a
Concordata em plena consonância com os princípios constitucionais do Estado laico.
Conforme se depreende do relatório do deputado Bonifácio de Andrada
(PSDB/MG), a Igreja Católica já firmara acordos com diversos Estados, como é o
caso da Polônia, Portugal, Peru, Israel, Palestina, República Tcheca, Gabão,
Lituânia, Letônia, Croácia e até com estados federados e multiculturais, como é o
caso da Bósnia-Herzegovina, não sendo o caso brasileiro isolado no cenário
mundial.
[...]
Portanto, o acordo que o Brasil assina com a Santa Sé está
plenamente vinculado à atualidade das relações internacionais.
Devemos ainda citar que a Igreja Luterana também tem uma
concordata especial desse tipo com o Governo alemão e este
também realizou um acordo com a Igreja Católica, além de promover
outros com várias entidades religiosas. Existem convênios de
diferentes tipos e com diversas igrejas, sobretudo na Espanha, que
promoveu acordos com variadas confissões religiosas, exemplo
desta procedente vocação para resolver problemas, que no fundo
são de ordem espiritual, entre os cidadãos dos respectivos países,
segundo as suas preferências religiosas.
Na realidade, é preciso ter sempre presente, como diz José Todoli na
sua obra “Filosofia de La Religion” (Ed. Gredas, Madri, 1955), que a
vinculação do homem com o problema transcendente se coloca
acima da vivência humana do dia a dia, sendo um dado natural,
localizado em todos os recantos mundiais, nos dias hodiernos, mas
também no passado histórico da própria humanidade. Há uma
“religação”, quer queiramos ou não, de um modo geral, do homem
com aquele Ser Supremo que para ele representa o mistério anterior
à sua existência e o mistério que o espera depois da vida. Dessa
forma, o poder político, representado pelo Estado em nosso tempo,
93 Texto do voto do deputado federal Pastor Pedro Ribeiro, disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/textos/depPedro-Ribeiro.pdf, acesso em 15 de outubro de 2010.
68
não pode desconhecer esse fenômeno poderoso e dominador da
existência do homem na terra. Dentro desta concepção é que as
diversas nações, através de seus governantes, atualmente trazem
para as suas próprias normas jurídicas elos positivos de direito com
os principais centros de direção religiosa em todo o Planeta. No caso
específico do Brasil, como ocorre com diversas outras nações, um
acordo desse tipo constitui medida política internacional de fundo
religioso que encontra paralelo, considerado natural e normal, em
todos os países civilizados e até mesmo naqueles como os da
Europa que mais se projetam na civilização dos nossos dias. No
mundo oriental, por outro lado, o fenômeno religioso é de tal ordem
que às vezes se confunde com o fenômeno político, sobretudo nos
países com manifestações fundamentalistas preponderantes.94
[...]
Do mesmo modo manifestou-se o presidente da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), Dom Geraldo Lyrio Rocha, fazendo anotar na audiência,
que “o acordo serviria para respaldar a personalidade jurídica da Igreja Católica”.95
Nesse passo, apesar das divergências suscitadas quanto a
constitucionalidade do acordo, a maioria da Câmara de Deputados seguiu o voto do
relator, entendendo que o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil está
plenamente de acordo com as normas e princípios constitucionais vigentes.
3.5. A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 11, §1º DO ESTATUTO
JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL.
Em meio a tantos debates, convém destacar um dos artigos que suscitou
amplas discussões sobre a constitucionalidade da Concordata. Trata-se do artigo
11, § 1º que dispõe sobre obrigatoriedade do ensino religioso católico e de outras
confissões religiosas nas escolas públicas, de matrícula facultativa. Aventa o referido
artigo:
Artigo 11- A República Federativa do Brasil, em observância ao
direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade
confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em
vista da formação integral da pessoa.
94 Texto referente ao relatório elaborado pelo deputado Bonifácio de Andrada, disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/662051.pdf, acesso em 10 de outubro de 2010. 95 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009.
69
§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de
matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à
diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a
Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de
discriminação.
Segundo a opinião contrária ao artigo 11, §1º da Concordata, tal dispositivo
legal contraria os artigos 210, § 1º, da Constituição da República federativa do Brasil
de 1988 e 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/96.
Assim, convém ventilar o que preceitua a Carta Magna, no artigo 210, §1°
sobre o ensino religioso no ensino fundamental.
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino
fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum
e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e
regionais.
§ 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental.
Nesse passo, colaciona-se o artigo 33 da lei 9394/96, que trata sobre as
diretrizes e bases da educação nacional:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte
integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural
religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de
proselitismo. (grifei)
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos
para a definição dos conteúdos do ensino religioso e
estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos
professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída
pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos
conteúdos do ensino religioso."
70
Destarte, ao determinar que o ensino religioso nas escolas públicas será
“católico e de outras confissões religiosas”, o Estatuto estaria em colisão com o
artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases a Educação Nacional, que veda
expressamente qualquer tipo de proselitismo, bem como contrário ao disposto nos
artigos 5º, VI, 19, I, 205 e 214, todos da Constituição Federal de 1988. Ainda que
fosse permitido o proselitismo, considerando a generalidade de religiões cultuadas
no Brasil, não poderia o Estado ser obrigado a proporcionar ensino católico e de
outras religiões, quando se propõe a praticar igual tratamento a todos os
seguimentos religiosos. 96
Em decorrência de tais divergências, a Procuradora Geral a República em
exercício, Déborah Macedo Duprat de Brito Pereira, propôs a Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 4439, afim que seja declarada a inconstitucionalidade do
referido artigo, conforme citamos abaixo:
A PROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA em exercício, com
fundamento nos artigos 102, I, “a” e “p”, e 103, VI, da Constituição
Federal, e nos preceitos da Lei 9.868/99, vem propor AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido de medida cautelar, a
fim de que essa Corte: (i) realize interpretação conforme a
Constituição do art. 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei nº 9.394/96, para
assentar que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de
natureza nãoconfessional, com proibição de admissão de
professores na qualidade de representantes das confissões
religiosas; (ii) profira decisão de interpretação conforme a
Constituição do art. 11, § 1º, do “Acordo entre a República Federativa
do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica
no Brasil”, aprovado pelo Congresso Nacional através do Decreto
Legislativo nº 698/2009 e promulgado pelo Presidente da República
através do Decreto nº 7.107/2010, para assentar que o ensino
religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não-
confessional; ou (iii) caso se tenha por incabível o pedido formulado
no item imediatamente acima, seja declarada a inconstitucionalidade
do trecho “católico e de outras confissões religiosas”, constante no
art. 11, § 1º, do Acordo Brasil- Santa Sé acima referido.
[...]
Sem embargo, o art. 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/96 vem
sendo interpretado e aplicado pelas autoridades públicas
96 MANGUEIRA, Hugo Alexandre Espínola. Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica. Ed. Universitária UFPB, João Pessoa, 2009.
71
competentes como se fosse compatível tanto com o ensino religioso
confessional quanto com o interconfessional. Na prática, as escolas
públicas brasileiras, com raras exceções, são hoje um espaço de
doutrinamento religioso, onde, por vezes, os professores são
representantes das igrejas, tudo financiado com recursos públicos.
14. Débora Diniz e Vanessa Carrião traçaram o seguinte quadro do
ensino religioso nos diferentes Estado da Federação:
“a) ensino confessional: o objetivo do ensino religioso é a promoção
de uma ou mais confissões religiosas. O ensino religioso é clerical e,
de preferência, ministrado por um representante de comunidades
religiosas. É o caso de Acre, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro;
b) ensino interconfessional: o objetivo do ensino religioso é a
promoção de valores e práticas religiosas em um consenso
sobreposto em torno de algumas religiões hegemônicas à sociedade
brasileira. É passível de ser ministrado por representantes de
comunidades religiosas ou por professores sem filiação religiosa
declarada. É o caso de Alagoas, Amapá, Amazonas, Distrito Federal,
Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio
Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Santa
Catarina, Sergipe e Tocantins;
c) ensino sobre a história das religiões: o objetivo do ensino religioso
é instruir sobre a história das religiões, assumindo a religião como
um fenômeno sociológico das culturas. O ensino religioso é secular,
devendo ser ministrado por professores de sociologia, filosofia ou
história; É o caso de São Paulo.”97
Desta forma, caberia ao Estado aplicar o texto constitucional de maneira a
garantir o ensino religioso não-confessional, em que o conteúdo programático da
disciplina consistisse “na exposição das doutrinas, das práticas, da história e de
dimensões sociais das diferentes religiões – bem como de posições não-religiosas,
como o ateísmo e o agnosticismo – sem qualquer tomada de partido por parte dos
educadores”. 98
Conforme já discorrido no presente trabalho, o Estado laico é firmado pela
congruência de vários princípios garantidores do direito à liberdade, quais sejam:
97 Texto da ADI n. 4439, disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp, acesso em 29 de setembro de 2010. 98 Texto da ADI n. 4439, disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp, acesso em 29 de setembro de 2010.
72
liberdade de consciência; liberdade de crença; liberdade de culto. O respeito à todos
esses princípios garante a pluralidade de expressões religiosas e não religiosas.
Os princípios constitucionais citados revestem-se de importância
ímpar, pois, quando respeitados pelos Estados, permitem a
construção de uma sociedade plural, possibilitando que nos graves
conflitos religiosos, hoje existentes, surjam a luz da - tolerância e
respeito – fundamental uma formação educacional onde a catequese
possa ser substituída pelo conhecimento das histórias, mitologias,
filosofias, e saberes das diversas religiões.99
De outra face, há posicionamentos favoráveis a aplicação do artigo 11, sob
alegação de que o referido artigo encontra-se totalmente em consonância com os
princípios do Estado laico, conforme se depreende da declaração de Dom Dimas
Lara, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil:
Sobre o ensino religioso nas escolas, alguns países europeus
reconhecidamente laicos, que têm o acordo com a Santa Sé, têm
incluso o ensino religioso em sua grade escolar. Nesses países a
Igreja Católica não é excluída de opinar e contribuir para uma melhor
educação do país. Na realidade, um acordo deste tipo, longe de ferir,
afirma a laicidade do Estado e da maneira mais positiva, pois, não se
trata do Estado legislar na vida interna da Igreja, e nem da Igreja
querer se impor ao Estado.100
99 Mangueira, Hugo Alexandre, Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica, Ed.
Universitária UFPB, 2009, João Pessoa. 100Disponível no site:http://www.cnbb.org.br/ns/modules/news/article.php?storyid=2014&keywords=ensino+religioso+estatuto, acesso em 12 de outubro de 2009.
73
No mesmo sentido, também manifestou-se o Deputado Bonifácio de Andrada (PSDB/MG), relator do projeto, afirmando a total constitucionalidade e consonância do referido artigo com a legislação vigente:
O Acordo repete o entendimento da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei 9.394/1996), apenas fazendo referência ao
ensino católico, como também ao de outras confissões religiosas,
não alterando em nada, portanto, o conceito legal existente sobre o
assunto e não atingindo as prerrogativas de outros ramos
religiosos.101
Como há de se verificar, há entendimentos conflitantes acerca da
interpretação do que dispõe o já mencionado artigo 33 da Lei 9.394/1996. Cumpre
esclarecer que em seu texto anterior, o artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDBEN –, revogado, previa que, de acordo com as
preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, o ensino religioso
podia ser de caráter confessional ou interconfessional. Contudo, a nova redação
dada pela Lei 9.475/1997 ao art. 33 da LDBEN, vedou qualquer tipo de proselitismo.
Segundo o dicionário Houaiss, proselitismo significa “atividade de fazer prosélitos;
catequese, doutrinação”.102
Destarte, assegurar o ensino religioso de determinado seguimento religioso
nas escolas públicas, à custa do Estado, constitui uma forma de proselitismo. Ainda
que fosse possível o proselitismo, considerando a generalidade de religiões
existentes no Brasil, não seria possível o Estado proporcionar ensino religioso a
todas de forma igualitária. A Lei 9.394/1996 propõe um ensino religioso “que
contemple conteúdos plurais, regulamentados pelos sistemas de ensino, com base
nas especificidades culturais e religiosas regionais, ouvindo as diferentes
denominações religiosas (art. 33, §§ 1º e 2º)”.103
Em última análise, verifica-se que a Carta Magna prevê, ainda, que a
educação vise o pleno desenvolvimento da pessoa, preparando-a para o exercício
da cidadania (art. 205), à condução da promoção humanística (art. 214, V),
101 Mensagem n. 134/2009, relatório submetido ao Congresso Nacional, disponível em: http://www.ucp.pt/site/resources/documents/ISDC/Voto%20do%20Relator%20do%20Acordo%20Santa%20S%C3%A9%20e%20RF%20do%20BR.pdf, acesso em 23 de outubro de 2010. 102 HOUAISS, dicionário da Língua Portuguesa, 3º edição. Ed. Moderna. Rio de Janeiro. 2008. 103 Mangueira, Hugo Alexandre, Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica, Ed. Universitária UFPB, 2009, João Pessoa.
74
respeitando-se o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento (art. 206, II) e o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas (art.
206, III). Assim, ter como condicionante o ensino de determinada religião nas
escolas públicas, além de confrontar os dispositivos constitucionais mencionados,
bem como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pode criar situação
capaz de promover a discriminação e a exceção daqueles alunos que não
pertençam ao padrão religioso imposto pelo Acordo.104
104 Mangueira, Hugo Alexandre, Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica, Ed. Universitária UFPB, 2009, João Pessoa.
75
CONCLUSÃO
A presente pesquisa teve como objeto de estudo a (In) constitucionalidade do
artigo 11, §1º da lei 7.107/2010 que estabelece o Estatuto Jurídico da Igreja Católica
no Brasil à luz dos princípios constitucionais do Estado Laico brasileiro.
Na primeira parte da monografia realizou-se uma analise histórica sobre a
formação do Estado Laico brasileiro.
Nessa oportunidade foram feitos breves apontamentos históricos sobre o
surgimentos dos princípios norteadores do Estado laico, assim como foram
conceituados. Em um segundo momento, realizou-se estudo sobre a insurgência
dos ditos princípios nos textos constitucionais do Estado brasileiro, até a
promulgação da Carta Magna de 1988.
No segundo capítulo elucidou-se acerca da formação religiosa no Brasil, as
influências do catolicismo na política interna do país e os aspectos atuais da
religiosidade brasileira.
No terceiro capítulo realizou-se um estudo sobre a constitucionalidade do Acordo
assinado entre o Estado brasileiro e a Santa Sé, referente ao Estatuto Jurídico da Igreja
Católica no Brasil. Em um primeiro momento foram feitos breves apontamentos quanto
à força normativa dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro. Após,
confrontou-se o disposto no artigo 11, § 1º do mencionado Acordo com os princípios
constitucionais do Estado Laico.
Com base no estudo, verifica-se que o artigo 11, § 1º do Estatuto Jurídico da
Igreja Católica no Brasil que impõe ensino religioso de caráter confessional nas escolas
públicas, entra em colisão com o disposto no art. 19, inciso I, da Carta Política, que
estabelece um Estado laico, desvinculado de qualquer credo religioso, em respeito à
pluralidade de seguimentos religiosos e ao direito de não professar qualquer fé.
Por tais razões, analisando o teor do mencionado Acordo, com base no princípio
motriz da Constituição brasileira, da dignidade da pessoa humana, bem como os
princípios constitucionais da laicidade, da liberdade de consciência e de crença e,
76
considerando que ao Estado laico importa proporcionar igualdade entre as religiões e
respeitar a liberdade religiosa de todos os cidadãos, concluiu-se ser inconstitucional a
aplicação do artigo 11, §1º da Lei 7.107/2010. Não obstante a conclusão desta
pesquisa e da esperança de ter atingido os objetivos propostos, adverte-se que esse
debate não se esgota aqui, eis que o tema abordado é de extrema importância para
a sociedade em geral, a comunidade acadêmica e aos operadores do direito.
77
REFERÊNCIAS
Cf. PASOLD. César Luiz. Prática da pesquisa jurídica – idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do Direito. 4 ed. Florianópolis: OAB/SC Editora. 2000, p.85 Zaffaroni, Eugenio Raul, Em busca das Penas Perdida, Ed. Revan. BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, São Paulo, 1990, p.147. HORTA, Raul Machado, Direito Constitucional, Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2003, p.213. Texto disponível no site: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/herkenhoff/livro1/dhbrasil/br1.html, acesso em 10/04/2010. Texto disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D119-A.htm, acesso em 11 de abril de 2010. Disponível no site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm, acesso em 10 de abril de 2010. ROTHENBURG, Walter Claudius, Princípios Constitucionais, Sérgio Antonio Fabris Editos, 1999, p.14 apud Mello, Celso Antonio Bandeira. SELL, Sandro Cesar, fichamento da obra de Robert ALEXY. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução espanhola de Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. Caps. 1 e 2. MORAIS, Alexandre de, Direito Constitucional, Ed. Atlas, 1996, p.72, apud, MELLO FILHO, José Celso. BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, São Paulo, 1990, p.175, apud Claud-Albert Colliard. BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho. – Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.19.
78
SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editora, São Paulo, 2001, p. 251. Disponível no site: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm, acesso em 11 de abril de 2010. Disponível no site: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6896&p=1, acessado em 28/03/2010. Galdino, Elza, O Estado sem Deus, 2006, ed. Del Rey, Belo Horizonte. Texto da Constituição Imperial de 1824, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm, acesso em 29/03/2010. Galdino, Elza, O Estado sem Deus apud Dória, p.29. Mangueira, Hugo Alexandre, Acordo Brasil Santa Sé: uma análise jurídica, Ed. Universitária UFPB, 2009, João Pessoa. Texto disponível nos sites: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/conceituacao1.html,e http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11457, acesso em 21 de março de 2010. BLANCARTE, Roberto, Em Defesa das Liberdades Laicas, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2008. Disponível no site: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/conceituacao1.html, acesso em 12 de outubro de 2009. Lorea, Roberto Arriada, Em defesa das Liberdades Laicas, 2008, ed. Livraria do Advogado, apud declaração universal da laicidade no século XXI. Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11457, acesso em 21 de março de 2010. Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10823, acesso em 11 de abril de 2010. HOUAISISS, Mini Dicionário da Lingua Portuguesa, 3ª edição, Ed. Moderna, Rio de Janeiro, 2008.
79
Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10823, acesso em 11 de abril de 2010. Artigo disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10823, acesso em 11 de abril de 2010. Julgamento na Adin 2.076-AC, rel. Min. Carlos Velloso, 15.8.2002, DJ 8.8.2003. COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. ed. Martin Claret. São Paulo. 2004. HOUTART, François. Mercado e Religião. Cortez Editora. São Paulo. 2002. p. 20. ALVES, Rubens, O Que é Religião, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1990. Texto disponível em: http://www.clacso.org.ar/biblioteca, acesso em 26/08/2010. PRIORE, Mary Del, Religião e religiosidade no Brasil Colonial, Ed. Ática, São Paulo, 1997. CAMPOS, Raymundo Carlos Bandeira. Estudos de História do Brasil. Atual. São Paulo. 1999. Cotrim, Gilberto. História e Consciência do Brasil. Ed. Saraiva. São Paulo. 1999. . Texto disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/conceituacao2.html, acesso em 24/06/2010. FERNANDES, Rubens César. Os Cavaleiros do Bom Jesus. Ed. Brasiliense, 1982. Cesar Romero Jacob, Dora Rodrigues Hees, Philippe Waniez e Violette Brustlein . Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. Edições Loyola, 2004. Artigo científico disponível em; http://www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=704, acesso em 20.09.2010. CNBB sigla de Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. 1 IBGE, População residente, por sexo e situação do domicílio, segundo a religião, Censo Demográfico 2000. Acessado em 13 de dezembro de 2007, acesso em 15 de agosto de 2010.
80
1 Artigo disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-fev-13/aprovado-estatuto-juridico-igreja-catolica-brasil2, acesso em 29 de setembro de 2010. 1 ACCIOLY, Hildebrando, G. E. do Nascimento e Silva. Manual do Direito Internacional Público. 13 ed. São Paulo. Saraiva. 1998. 1 Texto da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados de 1969, disponível em: http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm, acesso em 15/10/2010. 1 Texto da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados de 1969, disponível em: http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm, acesso em 15/10/2010. 1 Texto do acórdão disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=573711, acesso em 20/10/2010. 1 BETIOLLI, Antonio Bento. Introdução ao Direito. 9ª. Ed. São Paulo: Letras e letras, 2004. P. 411. 1 Texto do voto em separado disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/default.asp 1 Texto do voto disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/textos/depPedro-Ribeiro.pdf 1 Texto do voto do deputado federal Pastor Pedro Ribeiro, disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/textos/depPedro-Ribeiro.pdf, acesso em 15 de outubro de 2010. Texto referente ao relatório elaborado pelo deputado Bonifácio de Andrada, disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/662051.pdf, acesso em 10 de outubro de 2010. Texto da ADI n. 4439, disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp, acesso em 29 de setembro de 2010. Texto disponível no site:http://www.cnbb.org.br/ns/modules/news/article.php?storyid=2014&keywords=ensino+religioso+estatuto, acesso em 12 de outubro de 2009. Mensagem n. 134/2009, relatório submetido ao Congresso Nacional, disponível em: http://www.ucp.pt/site/resources/documents/ISDC/Voto%20do%20Relator%20do%20Acordo%20Santa%20S%C3%A9%20e%20RF%20do%20BR.pdf, acesso em 23 de outubro de 2010. HOUAISS, dicionário da Língua Portuguesa, 3º edição. Ed. Moderna. Rio de Janeiro. 2008.
81
ANEXO
ACORDO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A SANTA SÉ
RELATIVO AO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL.
A República Federativa do Brasil e A Santa Sé (doravante denominadas
Altas Partes Contratantes), Considerando que a Santa Sé é a suprema autoridade
da Igreja Católica, regida pelo Direito Canônico;
Considerando as relações históricas entre a Igreja Católica e o Brasil e
suas respectivas responsabilidades a serviço da sociedade e do bem integral da
pessoa humana;
Afirmando que as Altas Partes Contratantes são, cada uma na própria
ordem, autônomas, independentes e soberanas e cooperam para a construção de
uma sociedade mais justa, pacífica e fraterna;
Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no
Código de Direito Canônico, e a República Federativa do Brasil, no seu
ordenamento jurídico;
Reafirmando a adesão ao princípio, internacionalmente reconhecido, de
liberdade religiosa;
Reconhecendo que a Constituição brasileira garante o livre exercício dos
cultos religiosos;
Animados da intenção de fortalecer e incentivar as mútuas relações já
existentes;
Convieram no seguinte:
Artigo 1º
As Altas Partes Contratantes continuarão a ser representadas, em suas
relações diplomáticas, por um Núncio Apostólico acreditado junto à República
Federativa do Brasil e por um Embaixador(a) do Brasil acreditado(a) junto à Santa
Sé, com as imunidades e garantias asseguradas pela Convenção de Viena sobre
Relações Diplomáticas, de 18 de abril de 1961, e demais regras internacionais.
82
Artigo 2º
A República Federativa do Brasil, com fundamento no direito de liberdade
religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão
apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades, observado o
ordenamento jurídico brasileiro.
Artigo 3º
A República Federativa do Brasil reafirma a personalidade jurídica da Igreja
Católica e de todas as Instituições Eclesiásticas que possuem tal personalidade em
conformidade com o direito canônico, desde que não contrarie o sistema
constitucional e as leis brasileiras, tais como Conferência Episcopal, Províncias
Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou Pessoais, Vicariatos
e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações Apostólicas
Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de
Outros Ritos, Paróquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida
Apostólica.
§ 1º. A Igreja Católica pode livremente criar, modificar ou extinguir todas as
Instituições Eclesiásticas mencionadas no caput deste artigo.
§ 2º. A personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas será
reconhecida pela República Federativa do Brasil mediante a inscrição no respectivo
registro do ato de criação, nos termos da legislação brasileira, vedado ao poder
público negar-lhes reconhecimento ou registro do ato de criação, devendo também
ser averbadas todas as alterações por que passar o ato.
Artigo 4º
A Santa Sé declara que nenhuma circunscrição eclesiástica do Brasil
dependerá de Bispo cuja sede esteja fixada em território estrangeiro.
Artigo 5º
As pessoas jurídicas eclesiásticas, reconhecidas nos termos do Artigo 3º,
que, além de fins religiosos, persigam fins de assistência e solidariedade social,
desenvolverão a própria atividade e gozarão de todos os direitos, imunidades,
isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de natureza semelhante
83
previstos no ordenamento jurídico brasileiro, desde que observados os requisitos e
obrigações exigidos pela legislação brasileira.
Artigo 6º
As Altas Partes reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural
da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e
bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro, e
continuarão a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens,
móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica ou de outras pessoas jurídicas
eclesiásticas, que sejam considerados pelo Brasil como parte de seu patrimônio
cultural e artístico.
§ 1º. A República Federativa do Brasil, em atenção ao princípio da
cooperação, reconhece que a finalidade própria dos bens eclesiásticos mencionados
no caput deste artigo deve ser salvaguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro,
sem prejuízo de outras finalidades que possam surgir da sua natureza cultural.
§ 2º. A Igreja Católica, ciente do valor do seu patrimônio cultural,
compromete-se a facilitar o acesso a ele para todos os que o queiram conhecer e
estudar, salvaguardadas as suas finalidades religiosas e as exigências de sua
proteção e da tutela dos arquivos.
Artigo 7º
A República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu
ordenamento jurídico, as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares
de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais,
contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo.
§ 1º. Nenhum edifício, dependência ou objeto afeto ao culto católico,
observada a função social da propriedade e a legislação, pode ser demolido,
ocupado, transportado, sujeito a obras ou destinado pelo Estado e entidades
públicas a outro fim, salvo por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse
social, nos termos da Constituição brasileira.
Artigo 8º
84
A Igreja Católica, em vista do bem comum da sociedade brasileira,
especialmente dos cidadãos mais necessitados, compromete-se, observadas as
exigências da lei, a dar assistência espiritual aos fiéis internados em
estabelecimentos de saúde, de assistência social, de educação ou similar, ou
detidos em estabelecimento prisional ou similar, observadas as normas de cada
estabelecimento, e que, por essa razão, estejam impedidos de exercer em
condições normais a prática religiosa e a requeiram. A República Federativa do
Brasil garante à Igreja Católica o direito de exercer este serviço, inerente à sua
própria missão.
Artigo 9º
O reconhecimento recíproco de títulos e qualificações em nível de
Graduação e Pós-Graduação estará sujeito, respectivamente, às exigências dos
ordenamentos jurídicos brasileiro e da Santa Sé.
Artigo 10
A Igreja Católica, em atenção ao princípio de cooperação com o Estado,
continuará a colocar suas instituições de ensino, em todos os níveis, a serviço da
sociedade, em conformidade com seus fins e com as exigências do ordenamento
jurídico brasileiro.
§ 1º. A República Federativa do Brasil reconhece à Igreja Católica o direito
de constituir e administrar Seminários e outros Institutos eclesiásticos de formação e
cultura.
§ 2º. O reconhecimento dos efeitos civis dos estudos, graus e títulos
obtidos nos Seminários e Institutos antes mencionados é regulado pelo
ordenamento jurídico brasileiro, em condição de paridade com estudos de idêntica
natureza.
Artigo 11
A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade
religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a
importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.
85
§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de
matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas
de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do
Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer
forma de discriminação.
Artigo 12
O casamento celebrado em conformidade com as leis canônicas, que
atender também às exigências estabelecidas pelo direito brasileiro para contrair o
casamento, produz os efeitos civis, desde que registrado no registro próprio,
produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.
§ 1º. A homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial,
confirmadas pelo órgão de controle superior da Santa Sé, será efetuada nos termos
da legislação brasileira sobre homologação de sentenças estrangeiras.
Artigo 13
É garantido o segredo do ofício sacerdotal, especialmente o da confissão
sacramental.
Artigo 14
A República Federativa do Brasil declara o seu empenho na destinação de
espaços a fins religiosos, que deverão ser previstos nos instrumentos de
planejamento urbano a serem estabelecidos no respectivo Plano Diretor.
Artigo 15
Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como ao patrimônio, renda e
serviços relacionados com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a garantia
de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição
brasileira.
§ 1º. Para fins tributários, as pessoas jurídicas da Igreja Católica que
exerçam atividade social e educacional sem finalidade lucrativa receberão o mesmo
tratamento e benefícios outorgados às entidades filantrópicas reconhecidas pelo
ordenamento jurídico brasileiro, inclusive, em termos de requisitos e obrigações
exigidos para fins de imunidade e isenção.
86
Artigo 16
Dado o caráter peculiar religioso e beneficente da Igreja Católica e de suas
instituições:
I -O vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante
votos e as Dioceses ou Institutos Religiosos e equiparados é de caráter religioso e
portanto, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira, não gera, por si
mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja provado o desvirtuamento da
instituição eclesiástica.
II -As tarefas de índole apostólica, pastoral, litúrgica, catequética,
assistencial, de promoção humana e semelhantes poderão ser realizadas a título
voluntário, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira.
Artigo 17
Os Bispos, no exercício de seu ministério pastoral, poderão convidar
sacerdotes, membros de institutos religiosos e leigos, que não tenham nacionalidade
brasileira, para servir no território de suas dioceses, e pedir às autoridades
brasileiras, em nome deles, a concessão do visto para exercer atividade pastoral no
Brasil.
§ 1º. Em conseqüência do pedido formal do Bispo, de acordo com o
ordenamento jurídico brasileiro, poderá ser concedido o visto permanente ou
temporário, conforme o caso, pelos motivos acima expostos.
Artigo 18
O presente acordo poderá ser complementado por ajustes concluídos entre
as Altas Partes Contratantes.
§ 1º. Órgãos do Governo brasileiro, no âmbito de suas respectivas
competências e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, devidamente
autorizada pela Santa Sé, poderão celebrar convênio sobre matérias específicas,
para implementação do presente Acordo.
Artigo 19
Quaisquer divergências na aplicação ou interpretação do presente acordo
serão resolvidas por negociações diplomáticas diretas.
87
Artigo 20
O presente acordo entrará em vigor na data da troca dos instrumentos de
ratificação, ressalvadas as situações jurídicas existentes e constituídas ao abrigo
do Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890 e do Acordo entre a República
Federativa do Brasil e a Santa Sé sobre Assistência Religiosa às Forças Armadas,
de 23 de outubro de 1989.
Feito na Cidade do Vaticano, aos 13 dias do mês de novembro do ano de
2008, em dois originais, nos idiomas português e italiano, sendo ambos os textos
igualmente autênticos.
PELA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Celso Amorim
Ministro das Relações Exteriores
PELA SANTA SÉ
Dominique Mamberti
Secretário para Relações com os Estados
Este texto não substitui o publicado no DOU de 12.2.2010