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Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) Gabriela de Souza Morais Where weve planted our roots: Representações da colônia puritana no século XIX Campinas 2018

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Instituto de ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/331556/1/Morais... · Orientador : Prof. Dr. Leandro Karnal ESTE EXEMPLAR

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Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

Gabriela de Souza Morais

Where we’ve planted our roots:

Representações da colônia puritana no século XIX

Campinas

2018

Gabriela de Souza Morais

Where we’ve planted our roots:

Representações da colônia puritana no século XIX

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos

exigidos para obtenção do título de Mestra em História, na Área de

História Cultural.

Orientador: Prof. Dr. Leandro Karnal

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA GABRIELA DE

SOUZA MORAIS E ORIENTADA PELO PROF. DR. LEANDRO

KARNAL

Campinas

2018

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

Departamento de História

A comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 13 de março de 2018,

considerou a candidata Gabriela de Souza Morais aprovada.

Prof. Dr. Leandro Karnal (Orientador) / IFCH- Unicamp ________________________

Prof. Dra. Eliane Moura da Silva / IFCH- Unicamp ________________________

Prof. Dr. Luiz Estevam de Oliveira Fernandes /ICHS- UFOP ________________________

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo

de vida acadêmica da aluna.

Campinas

2018

Dedico este trabalho a minha avó, Fátima, Que com suas memórias fez com que eu me apaixonasse pela História.

AGRADECIMENTOS

E aprendi que se depende sempre De tanta, muita, diferente gente Toda pessoa sempre é as marcas Das lições diárias de outras tantas pessoa E é tão bonito quando a gente entende Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá E é tão bonito quando a gente sente Que nunca está sozinho por mais que pense estar (“Caminhos do Coração”- Gonzaguinha)

Quando finalmente um trabalho acadêmico chega ao fim, pensamos que a parte

mais complicada já passou. Deparamos-nos, então, com a parte dos agradecimentos e

descobrimos que não é exatamente assim. Embora um trabalho acadêmico pareça solitário,

acredito que ele sempre é um conjunto de ideias redigidas por mim, mas com a contribuição

(seja ela intelectual ou emocional) de cada uma das pessoas que me formaram ou que me

fizeram chegar onde estou. Aqui é o lugar de agradecê-las, por mais que talvez as palavras

não possam dimensionar a real gratidão que tenho por cada uma delas.

Gostaria primeiro de agradecer a CAPES pela bolsa concedida, que trouxe

tranquilidade a realização do trabalho.

Agradeço a Deus, que é parte de quem sou e minha “sorte personificada”. Talvez

eu tenha feito por merecer, mas graças a Ele, felizmente, não recebo tudo que mereço.

Agradeço ao programa e ao curso de História do Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas- IFCH, aos funcionários da secretaria do departamento, da pós-graduação e da

biblioteca.

Agradeço aos professores que fizeram parte da minha formação durante o período

do mestrado: Prof. Dr. Edgar de Decca (in memorian), Profa. Dra. Margareth Rago, Profa.

Dra. Néri de Barros e Prof. Dr. Rui Rodrigues.

Aos professores Dra. Eliane Moura e Dr. Luiz Estevam de Oliveira Fernandes

agradeço por terem participado da minha banca de qualificação, com sugestões e indicações

precisas e, novamente, aceitarem o convite para banca de defesa. Certa vez, o professor Luiz

Estevam me disse que eu não devia acreditar (como é corrente escutar na academia) que o

mundo acadêmico é povoado apenas de picuinhas e egoísmo, mas que nele havia espaço para

muitas pessoas generosas e dispostas a ajudar: você, e a profa. Dra. Aline Vieira de Carvalho,

certamente foram essas pessoas, por isso um agradecimento especial, já que acreditaram nessa

pesquisa quando ela era apenas uma ideia.

Ao pessoal do Laboratório de Estudos Americanos (LEA): Maria Emília,

Eduardo, Ricardo e Ana Carolina, agradeço pelos encontros de discussões de textos e parceria

na realização de nosso I Congresso de América Colonial. Com a Ana, tenho uma grande

dívida, por toda a ajuda durante a graduação, no projeto de mestrado e na pós-graduação, por

ler meus textos e pelas sugestões para melhorá-los: muito obrigada!

À Nadhiny, amiga que me acompanhou durante toda a graduação e mestrado,

agradeço por todo o companheirismo, amizade, risadas e compartilhamentos de ansiedades e

alegrias, viagens para congressos e pesquisas, trocas de bibliografias e pela companhia

infalível nas aulas (que se tornavam bem mais suportáveis e engraçadas com sua presença).

À Ana Clara e a Beatriz, por serem as melhores amigas que uma pessoa poderia

ter.Agradeço por estarem comigo em todos os momentos, mesmo quando nem eu me

aguentava mais.

Ao prof. Dr. Leandro Karnal: nenhum muito obrigado é suficiente para agradecer

todas as indicações bibliográficas e sugestões, pelos empréstimos de livros, pela orientação

precisa, pelo respeito e, principalmente pela liberdade de pesquisa e pensamento. Com ele

aprendi tudo que sei sobre o ofício do historiador.

Agradeço também à minha família por me apoiar mesmo não sabendo exatamente

a função do que estava fazendo: à minha tia, Clara, que mesmo passando por um momento

muito difícil sempre encontrou tempo para ajudar a quem precisa; à minha tia Rosana; ao

Philip e Paulo, que enchem nossa casa e nossa vida de alegria, à Daniella e ao André, primos

que carregaram, literalmente, meu conhecimento nas costas; e à minha avó Fátima, por todo o

cuidado, carinho e orações para que tudo desse certo.

Por fim, agradeço as pessoas mais importantes da minha vida: Meu pai Roberto,

minha mãe Marta e meu irmão Rafael, por todo apoio irrestrito. Sem vocês esse trabalho

literalmente não existiria. A vocês, dedico esse trabalho, por tudo que são na minha vida.

“Pois uma sociedade não é constituída simplesmente pela

massa dos indivíduos que a compõe, pelo solo que ocupa, pelas coisas

que utilizam, pelos movimentos que realiza, mas, antes de tudo, pela

ideia que ela faz de si mesma.” (Émile Durkheim)

RESUMO

Essa pesquisa busca trabalhar com a memória da experiência puritana produzida

no século XIX por meio da análise de pinturas históricas. Neste período, foram produzidos

quadros que retratavam a empreeitada e a chegada dos peregrinos à Nova Inglaterra no século

XVII. Elas estavam em diálogo com a tentativa da construção de uma memória nacional que

buscava encontrar neste passado as raízes que identificasse os verdadeiros americanos. Esta

memória recupera e reforça aspectos políticos e religiosos que aparecem como representações

nas pinturas analisadas e nos textos do século XVII, em que os pintores se espelhavam para

produzir suas obras. Por meio da análise de nossa documentação, procuramos pensar que

aspectos seriam reafirmados pelos americanos ao escolherem este passado e estas

representações, e quais princípios são afirmados ao optar-se pelos pais peregrinos e pelo

Thanksgiving como modelo de fundação, em detrimento de outros. A combinação entre a

memória religiosa e política nos Estados Unidos daria origem a uma religião civil

institucionalizada. O que pretendemos com nosso trabalho é pensar que aspectos deste

passado colonial específico colaboram para a construção de uma memória nacional, calcada

nesta religião civil, por meio da análise de representações iconográficas.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Memória e representação; 2. Pinturas; 3. Religião Civil; 4.

Thanksgiving; 5. Peregrinos.

ABSTRACT

This research seeks to work with memory of the Puritan experience produced in

the 19th through the analysis of a few historical paintings. With in that period were produced

tableus that portrayed the arrival of the pilgrims to the New England, in the 17th century.

Those paintings stablished a dialogue with the attempt to build a national memory that wanted

to find in the colonial past the roots that would enable the identification of the “real

americans”. This memory recovers and reinforces political and religious aspects that are

represented in the paintings analysed in this research and in the writtings from the 17th by

which the paint ors got inspired to produce their work. Throughout the analysis of the

documents we’ve chosen, we thought over which aspects had been affirmed by the americans

when they chosean specific past and specific representations, and which moral principles were

reaffirmed when they’ve chosen the founding fathers and the thanksgiving as the foundational

model, letting other models out. The religious and the political memory combined would lead

the foundations for an institutional civil religion. Our work makes a reflection about various

aspects of this specific colonial past that cooperated with the building of a national memory

endorsed by this civil religion. We do soby the analysis of iconographic representations.

KEYWORDS: 1. Memory and representations; 2. Paintings; 3. Civil Religion. 4. Thanksgiving; 5. Pilgrims

DOCUMENTAÇÃO ICONOGRÁFICA

Figura 1: GAST, John. American Progress, 1872. ................................................................58

Figura 2: COLE, Thomas. Gelyna ou View near Ticonderoga, 1826-

1828...........................................................................................................................................63

Figura 3: CHAPMAN, John. Bapstism of Pocahontas, 1840. ................................................75

Figura 4: Esboço de John Chapman do quadro Bapstism of Pocahontas. ..............................80

Figura 5: PARKER, E. after WEIR, R. Embarkation of the Pilgrims, Original: 1843/ Cópia:

1857/ Recriação: 1875. ............................................................................................................82

Figura 6: Esboço de Robert Weir do quadro Embarkation of the Pilgrims. ..........................85

Figura 7: LUCY, Charles. Departure of the Pilgrims from Delft Haven, 1847……………. 86

Figura 8: LUCY, Charles. Landing of the Pilgrims, 1850. .....................................................87

Figura 9: ROTHERMEL, Frederick. The Landing of the Pilgrims at Plymouth Rock, 1864.88

Figura 10: MATTESON, Tompkins. Signing the Compact on Board the Mayflower, 1853..91

Figura 11: GISBERT, Antonio. The Arrival of the Pilgrim Fathers, 1864..………………...93

Figura 12: BOUGHTON, George Henry. Pilgrims Going to Church, 1867. .........................94

Figura 13: BACON, H. The Landing of the Pilgrims, 1877. ..................................................96

Figura 14: FERRIS, Jean Gerome. The Mayflower Compact 1620, 1899..............................98

Figura 15: FERRIS, Jean Gerome. The First Sermon Ashore, 1899.....................................100

Figura 16: MORAN, Edward Percy. The Signing of the Compact in the Cabin of the

Mayflower, 1900. ...................................................................................................................101

Figura 17: MORAN, Edward. The Pilgrims Landing, 1900. ...............................................102

Figura 18: FERRIS, Jean Gerome. The first Thankgiving, 1621. 1912.................................120

Figura 19: BROWNCOMBE, Jennie. The First Thanksgiving at Plymouth, 1914. .............122

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 16

1-Motivações da pesquisa ..................................................................................................... 16

2-A memória da colônia ....................................................................................................... 16

3- Memórias e representações ............................................................................................... 18

4-Estrutura da dissertação ..................................................................................................... 21

CAPÍTULO 1. ......................................................................................................................... 24

1-Memória e imagem ............................................................................................................ 24

2-A constituição da série documental ................................................................................... 29

3-A pintura histórica ............................................................................................................. 30

4-O século XIX e a História.................................................................................................. 32

5-Religião Civil e a Memória Nacional ................................................................................ 35

6- O século XVIII e a Religião Civil .................................................................................... 42

7- A Guerra Civil (1861-1865) ............................................................................................. 47

8- Industrialização e imigração ............................................................................................. 54

9- Expansionismo no século XIX: A Fronteira e o Destino Manifesto ................................ 56

10-Escola do Rio Hudson x Pinturas Históricas ................................................................... 60

CAPÍTULO 2. ......................................................................................................................... 64

1-O uso político das imagens ................................................................................................ 64

2- O período colonial na Nova Inglaterra ............................................................................. 65

3- O Mito da América ........................................................................................................... 68

4- A Colônia em imagens ..................................................................................................... 77

4- 1. Antebellum (1843- 1859) .......................................................................................... 78

4- 2. A Guerra Civil e o período de Reconstrução (1864-1882) ....................................... 92

4- 3. O início do Século Americano (1899-1900) ............................................................. 97

CAPÍTULO 3. ....................................................................................................................... 104

1-O primeiro Thanksgiving ................................................................................................ 104

2-A invenção de uma tradição para uma comunidade imaginada ...................................... 106

3-A Religião Civil e o Thanksgiving .................................................................................. 116

4-Thanksgiving como Cerimônia de Posse ......................................................................... 117

5-Thanksgiving em imagens ............................................................................................... 118

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 126

FONTES DE PESQUISA E BIBLIOGRAFIA .................................................................. 130

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INTRODUÇÃO

1-Motivações da pesquisa

Estudei, em minha pesquisa de iniciação científica, as representações literárias,

iconográficas e cinematográficas produzidas nos séculos XIX e XX sobre os julgamentos de

mulheres acusadas de praticarem bruxaria em Salem nos anos de 1692 e 1693. Muitas coisas

me intrigavam nessa pesquisa: a fixação que os americanos tinham por este episódio em

específico, a relação extremamente complexa entre política e religião no primeiro país que

separou as duas oficialmente e a recorrência da retórica puritana ao longo dos séculos

posteriores, mesmo que esta corrente religiosa tenha sido minoritária nos Estados Unidos.

Ao fim da pesquisa de iniciação científica, estas dúvidas ainda me inquietavam e

resolvi tentar me aprofundar neste tema, voltando-se ainda mais para colônia da Nova

Inglaterra. Ao apresentar minha ideia ao meu orientador, Prof. Leandro Karnal, ele sugeriu

que eu trabalhasse com a produção de pinturas históricas que retravam especificamente estes

eventos. Sua sugestão foi, como sempre, frutífera, e esta pesquisa de mestrado começou a ser

desenvolvida a partir de então.

2-A memória da colônia

“Nearly 400 years ago, a small band of Pilgrims fled persecution and violence and came to this land as refugees in search of opportunity and the freedom to practice their faith. Though the journey was rough and their first winter harsh, the friendly embrace of an indigenous people, the Wampanoag -- who offered gracious lessons in agriculture and crop production -- led to their successful first harvest. The Pilgrims were grateful they could rely on the generosity of the Wampanoag people, without whom they would not have survived their first year in the new land, and together they celebrated this bounty with a festival that lasted for days and prompted the tradition of an annual day of giving thanks.

This history teaches us that the American instinct has never been to seek isolation in opposite corners; it is to find strength in our common creed and forge unity from our great diversity. On that very first thanksgiving celebration, these same ideals brought together people of different backgrounds and beliefs, and every year since, with enduring confidence in the power of faith, love, gratitude, and optimism, this force of unity has sustained us as a people. It has guided us through times of great challenge and change and allowed us to see ourselves in

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those who come to our shores in search of a safer, better future for themselves and their families [...].”1

Em sua última proclamação do Thanksgiving, em 2016, o presidente Barack

Obama, ao conclamar os americanos a comemorar a data, rememora a experiência peregrina

do século XVII. Ele ressalta, em um contexto de grandes discussões sobre os milhares de

imigrantes que buscavam asilo, que, assim como eles, a nação americana foi fundada por

refugiados que, em busca de oportunidades e liberdade para praticar sua fé, a encontraram

em solo americano. Eles teriam sido ajudados por indígenas que gentilmente os teriam

acolhido e auxiliado o seu estabelecimento no novo mundo. Independente da veracidade do

episódio de 1621, o que esta declaração do presidente nos mostra é a força do mito

fundacional e sua capacidade de se ressignificar a cada época, sempre como um esforço de

produzir união.

A influência da memória religiosa na esfera pública norte-americana existe e é

notória, como é possível perceber em uma rápida análise dos discursos presidenciais como o

mencionado acima. Nossa pesquisa, desde o princípio, foi norteada por esta premissa. Para

tentar entender os pressupostos religiosos que estavam presentes na tentativa da construção

de uma memória nacional na segunda metade do século XIX, nós procuramos analisar uma

série de pinturas históricas, produzidas entre os anos 1843 e 1914, que retratam a chegada e

estabelecimento dos peregrinos na região da Nova Inglaterra, no século XVII. Estas pinturas

tratam de um esforço imagético para produzir união em um país que procurou sua

identidade em um passado que reforça uma autoimagem.

O objetivo inicial da pesquisa foi tentar compreender de que forma um passado

colonial específico foi reapropriado com o intuito de criar uma memória nacional, que ao

fim tentava unir um país por meio de um projeto de nação, que, na prática, até aquele

momento, não havia existido.

Para isto, procuramos analisar uma série de pinturas históricas, da segunda

metade do século XIX e começo do século XX, e textos produzidos no século XVII que

serviram de projeto para que os pintores construíssem suas obras. A escolha destes

documentos se justifica porque tais pinturas recuperam aspectos políticos e religiosos que

estavam presentes na retórica puritana do século XVII, e as representam resignificadas no

1 https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/2016/11/23/presidential-proclamation-thanksgiving-day-2016. Acesso em: 17/01/2018

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século XIX. Além disto, procuramos, por meio da análise destes documentos, pensar nos

aspectos que estavam sendo reforçados pelos americanos ao optarem por esta memória,

entendida como institucional, e por estas representações, e que princípios são reafirmados

quando são escolhidos o pais peregrinos e o Thanksgiving como modelo de fundação.

Significa pensar, como afirma François Hartog: “como, em certos momentos-chave, o

passado fora retomado no presente, para fazer dele um passado siginificante [...]”.2

A maior parte das pinturas que analisamos não foram, diretamente,

encomendadas por um poder público com a intenção deliberada de produzir uma coleção

visual sobre o passado norte-americano. No entanto, acreditamos que elas, pela

popularidade que alcançaram, serviram, ainda que indiretamente, como auxiliares para esta

memória que se tentava construir, uma vez que possuem a capacidade de moldar e

influenciar uma memória sobre determinado evento, assim além de serem representações

produzidas por meio de uma memória, elas são também produtoras de novas memórias.

Esta pesquisa surgiu de uma inquietação: a recorrente presença do mito dos

peregrinos nos discursos oficiais e nas produções culturais norte-americanas, além da

comemoração do Thanksgiving, que se tornou o feriado mais amplamente comemorado nos

Estados Unidos, independente da origem econômica, social, religiosa ou cultural.

Basicamente, a pergunta que desencadeou esta pesquisa foi: como uma memória que

celebrava uma parcela mínima da população se tornou uma memória nacional? Em linhas

gerais: “por que razão uma sociedade, num dado momento de sua história se reconhece

numa representação do passado transmitida pela memória?” 3

3- Memórias e representações

Toda memória pressupõe silêncios. Quando um passado é escolhido, outros são,

automaticamente, deixados de lado. A memória do Thanksgiving, ainda que tenha sido

institucionalizada por um decreto presidencial de 1863, não foi automaticamente e nem

posteriormente aceita por todos. Ela recebeu uma série de resistências nos anos seguintes.

Por exemplo, o Sul, derrotado na Guerra Civil, reclamava a precedência de Jamestown e

acusava o Norte de ter apagado sua memória; os indígenas questionavam a sua

representação neste mito e o espaço que ocupavam na formação da nação:

2 HARTOG, François. Regimes de Historicidade. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013. Pág. 183. 3 LABORIE, Pierre. Memória e opinião. In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 96.

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“[...] o espaço memorial na baía de Plymouth/E.U.A., tido como local de desembarque de colonos ingleses é altamente contestado, de embate entre os defensores da narrativa dominante que enfatiza a contribuição destes primeiros imigrantes protestantes (conhecidos como “peregrinos”), contra ativistas, muitos deles indígenas, que lutam para introduzir uma versão alternativa da história no local. Ainda que os primeiros ingleses tenham chegado à região no século XVII, grande parte dos memoriais foram construídos há aproximadamente 100 anos. Portanto, foi no início do século XX que se decidiu memorializar esta narrativa histórica contra qual se opõem os manifestantes de Plymouth, que se reúnem na baía da cidade todo Thanksgiving e veem a chegada dos europeus como o início de uma campanha genocida contra a população nativa [...].”4

Os conceitos que permearam nossa pesquisa são os de memória e representação.

As pinturas cumprem a função de uma dupla representação: ao mesmo tempo em que, por

meio das narrativas escritas (que servem de modelo para as obras), representam o século

XVII, elas são principalmente uma representação do momento em que foram produzidas: a

segunda metade do século XIX.

Acreditamos que a memória funciona como um terceiro lugar, criado a partir do

diálogo entre a realidade do passado e do presente. Ela, por meio das representações, recria

o real, e é apenas por meio delas (memórias e representações), que o historiador pode ter

acesso a um passado. Por meio de uma ótica translúcida, enxergamos partes do verdadeiro

para construir uma narrativa, pelo menos verossímil. Não acreditamos que o passado seja

totalmente opaco e impossível de ser conhecido, mas também não o enxergamos como

transparente, em sua totalidade, já que, por mais apoiados em documentos que estivermos,

eles nunca nos mostrarão a verdade, por serem subjetivos, mas, também, porque toda

pesquisa histórica, como coloca Michel De Certeau, se conjuga a um lugar de produção

socioeconômico, político e cultural5:

“[...] Implica um meio de elaboração circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função desse lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam” 6

4GORDENSTEIN, Samuel Lira. A materialidade das práticas de memória na terra do Thanksgiving. Revista Arqueologia Pública, v.10, n.3, 2016. Pág. 6. 5 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3 edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2011. Pág. 47. 6 Idem. Ibidem. Pág. 47.

20

As imagens assumem a função, em nossa pesquisa, de lugar de memória7, já que

nelas cristalizam-se as memórias da nação8 que estava sendo construída, tratam de um lugar

simbólico que serviu como auxiliar para a construção de uma identidade para os

americanos. E, como todo lugar de memória, ela também é fruto de batalhas de memória

pelo passado. A memória pelo passado norte-americano estava em plena disputa no século

XIX. Artistas como Jean Gerome Ferris, pintam em sua coleção telas sobre temas da

história americana, quadros sobre os peregrinos, mas também sobre Pocahontas. Quando se

encomendaram os painéis que ficariam expostos na Rotunda do Capitólio, na década de

1830 e 1840, são escolhidos os peregrinos, mas também o batismo de Pocahontas

(unificados por um discurso cristão, evidente em ambas). Isto demonstra que havia batalhas

pela construção de uma versão oficial dos fatos, a luta pelo estabelecimento de um mito de

origem9.

Outro importante conceito que norteou nossa pesquisa foi o de religião civil.

Para o sociólogo Robert Bellah, que aplicou o termo pela primeira vez a realidade norte-

americana, religião civil seria a junção entre a memória política e religiosa. Esta junção,

segundo o autor, se expressava por meio de crenças, símbolos e ritos10.

O historiador Peter Gardella, ao ser questionado em uma entrevista, sobre qual a

relação entre o excepcionalismo americano e a religião civil, responde que o excepcionalismo

é uma religião civil extraordinariamente desenvolvida nos Estados Unidos. Isto porque,

segundo ele, os americanos necessitam desta religião civil, pois são excepcionais em sua falta

de cultura natural11:

“[...] We have a borrowed language, a land we took from the Native Americans, no native cuisine, no native perspective on history. Even the other nations in the Americas, like Mexico possess more of a native culture than we do. Take the Mexican flag—the native symbols of the eagle with the serpent are depicted. The Mexican capital still sits on the old site of the Aztec capital. Mexicans are much more deeply rooted in their place than we are. We are very unusual in that we have this great void [...] “12

7 NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-27. 1993. 8 FERNANDES, Luiz E.O. Patria mestiza Memória e História na invenção da nação mexicana entre os séculos XVIII e XIX. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Pág. 21. 9 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. São Paulo: Cia das Letras, 2012. Pág. 35. 10BELLAH, Robert N. Civil Religion in America. Journal of the American Academy of Arts and Sciences. 96 (1): 1–21. 1967. Pág. 3. 11https://johndwilsey.com/2015/01/23/interview-with-peter-gardella-author-of-american-civil-religion/. Acesso em: 17/01/2018. 12 Idem. Ibidem.

21

O historiador, ao atribuir um novo significado ao excepcionalismo norte-

americano, demonstra uma lacuna, que os americanos tentaram preencher no século XIX,

procurando no passado puritano raízes que teriam sido plantadas e, a partir das quais, se

estabeleceram os pilares que sustentariam a nação. Eles encontraram estas raízes? É o que

tentamos procurar em nossa pesquisa. O que acreditamos, até aqui, é que, mesmo séculos

depois, a imagem do peregrino ainda ressoa na consciência nacional norte-americana como o

primeiro, e, portanto, o exemplo principal do que seria eventualmente conhecido como sonho

americano.

4-Estrutura da dissertação

Optamos por dividir nossa pesquisa em três capítulos. Eles não tratam de temas

independentes, já que todos estão interligados de alguma forma. Na parte inicial do primeiro

capítulo, fizemos uma breve apresentação dos conceitos e autores que foram norteadores para

nossa pesquisa: memória e representação.

Ainda nesta parte inicial, explicamos como constituímos nossa série documental.

Ela foi dividida entre os textos - que serviram de narrativa para os pintores construírem seus

quadros, em geral produzidos no século XVII por puritanos que chegaram à Nova Inglaterra -

e as pinturas históricas, expostas entre os anos 1843 e 1914.

Foi discutido também, no capítulo 1, o conceito de religião civil e sua aplicação

ao longo dos séculos XVIII e XIX. Além disso, fizemos uma breve síntese da complexidade

religiosa norte-americana, tendo em vista o número de vertentes que se instalaram e se

desenvolveram naquele território. Em seguida, trabalhamos com a Guerra Civil, já que

acreditamos que, dentre as inúmeras mudanças pelas quais passou os Estados Unidos no

século XIX, ela foi, sem dúvida, um marco na história do país, seja pelo gigantesco número

de baixas que produziu, seja como propulsora de batalhas de memória, seja pela produção

cultural que gerou. Este momento é marcado pela tentativa sistemática de produzir uma

memória nacional que produzisse uma união e que justificasse os Estados Unidos como

nação.

Por fim, neste capítulo, analisamos duas ideias muito caras aos americanos: o

Destino Manifesto e a tese da Fronteira. Ambas as ideias utilizam a representação discursiva

puritana do século XVII. Acreditamos que estas duas ideias colaboram para o entendimento

das metáforas, questões e conceitos que procuramos identificar por meio das pinturas.

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No segundo capítulo, focamos na análise das pinturas. Mas, antes disto, fazemos

uma apresentação dos eventos que teriam ocorrido no século XVII e que são narrados pelos

pregadores puritanos em seus textos: a saída da Holanda, a travessia a bordo do Mayflower, a

chegada e o estabelecimento no Novo Mundo. Em seguida, trabalhamos com o discurso

tipológico que foi produzido na colônia, as metáforas e associações bíblicas que os escritores

desenvolveram. Em especial, três metáforas foram norteadoras desta retórica: a cidade no alto

da colina (City Upon a Hill), a missão na natureza selvagem (Errand into the wilderness) e a

jardinagem espiritual.

Nossa série de pinturas foi dividida, como já mencionado, em quatro grupos, na

ordem em que foram produzidas. No capítulo 2, analisamos os três primeiros. Acreditamos

que em cada um dos períodos são destacados determinados temas. As pinturas foram

divididas, nesse capítulo, em: Antebellum, o período anterior à Guerra Civil, entre os anos

1843 e 1859; o segundo grupo compreende as pinturas produzidas durante a Guerra e no

período de reconstrução, entre os anos 1864 e 1882; o terceiro foca na virada do século, com

pinturas produzidas em 1899 e 1900.

No terceiro e último capítulo, nosso foco foi a análise do Thanksgiving.

Trabalhamos com ele com uma tradição inventada13, criada com o intuito de unir um país

marcado por antagonismos que foram ainda mais reforçados com a Guerra Civil e a

necessidade de assimilar a massa de imigrantes que chegava ao país vindo de vários lugares

do mundo. Foi necessário, neste contexto, procurar um mito de fundação que abarcasse todos

os americanos, seja por nascimento ou por imigração.

Escolhemos trabalhar com esta comemoração, pois acreditamos que ela funde

todo o simbolismo deste passado que foi reapropriado no século XIX e tomado como

memória nacional. Além disto, como diz Georges Duby ao analisar a recorrência da Batalha

de Bouvines, acreditamos que é justamente:

“[...] por ter grande ressonância, porque foi aumentado pelas impressões das testemunhas, pelas ilusões dos historiadores, porque a muito se fala deles, porque sua irrupção suscita uma torrente de discursos, que o acontecimento sensacional assume inestimável valor. Pelo que bruscamente ele esclarece. Por seus efeitos de ressonância, por tudo aquilo cuja explosão provoca a ascensão desde as profundezas do não-dito, pelo que ele revela ao historiador das latências. Pelo próprio fato de ser excepcional, o acontecimento faz emergir, no afluxo de palavras

13 HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2006.

23

que ele libera vestígios que, se não nos detivéssemos nele, permaneceriam nas trevas [...]”14

Por fim, analisamos o último conjunto de imagens, produzidas entre 1912 e 1914.

Elas retratam o primeiro Thanksgiving, que teria ocorrido em 1621. Nelas são reafirmados os

aspectos que a comemoração do Thanksgiving pretende celebrar: o nascimento deste povo,

desta nação, da nova civilização cristã, da adaptação no novo mundo15. Ele é a celebração do

nascimento de uma nação que surgiu sob o signo de povo eleito.

14 DUBY, Georges. O domingo de Bouvines. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1993. Pág. 10-11. 15 ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill & Wang, 1994. Pág. 17.

24

CAPÍTULO 1.

SÉCULO XIX: ENTRE MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES

1-Memória e imagem

As pinturas são as principais fontes desta pesquisa. Isto se deve principalmente ao

fato de que acreditamos que nelas há um grande potencial de comunicação e porque elas -

como dupla representação (já que representariam o século XVII, mas, ao mesmo tempo, são

representações do século em que foram produzidas) - serem produtoras de memórias, dotadas

de historicidades e de caminharem em diálogo com o que está sendo produzido e discutido à

sua volta. Por isto, antes da análise propriamente dita, é essencial uma breve discussão sobre o

potencial cognitivo da imagem, sua análise pelo historiador cultural e sobre a escolha e

montagem da série aqui trabalhada.

Partimos da ideia de que imagens não são meras ilustrações do empreendimento

histórico, mas, sim, documentos que, tal como os textos escritos, representam e estabelecem

um diálogo entre o presente e o passado. Elas contribuem para um melhor entendimento das

formas por meio das quais, no passado, as pessoas representaram sua história e historicidade e

se apropriaram da memória cultivada individual e coletivamente16. Além disto, é importante

ressaltar que análise das imagens nesta pesquisa não se deu por um viés da História da Arte,

mas pelo da História Cultural, isto porque foi dada uma atenção maior às representações

icônicas e figurativas e ao seu poder simbólico do que aos aspectos técnicos ou

metodológicos. Isto não significa acreditar que a História da Arte se resuma a tais finalidades,

mas apenas destacar que algumas das preocupações desta área são, para este trabalho, menos

relevantes.

É relativamente recente o uso sistemático de imagens como documentação

histórica. Elas foram por muito tempo um apêndice ou uma ilustração na análise

historiográfica. Embora as imagens pertençam ao universo dos vestígios mais antigos da vida

humana17, sua importância enquanto representação do passado para os historiadores não é tão

antiga. Muitos historiadores datam esta gradativa importância a partir da década de 1960, 16 PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2002. Pág. 13. 17 KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 97-115, jan.-jun. 2006. Pág. 98.

25

quando se fundamentou a ampliação da noção de documento18 a partir da chamada “Nova

História”, com a abertura de novos horizontes documentais.

Até o final do século XIX, a análise histórica estava muito restrita à concepção

cientificista do documento escrito (usado como sinônimo de fonte histórica, que, por sua vez,

era entendida como verdade do passado), e a historiografia não permitia reconhecer as

possíveis aberturas para outras fontes importantes na percepção das dimensões múltiplas do

processo histórico19. É só no final do século XIX e começo do XX que, segundo Ulpiano

Meneses, a História da Arte começa a encaminhar-se para aceitação dos direitos de “cidadania

da fonte iconográfica”, o que ocorrerá de forma plena somente posteriormente, na História

Cultural20.

Ainda segundo Meneses, durante a Revolução Francesa foram incentivadas a

produção de imagens como instrumento político na luta revolucionária e

contrarrevolucionária, o que colaborou para estabelecer uma “relação visual com o passado” 21. Isto significa dizer que, diante dos usos públicos da História, a imagem é um componente

de destaque, mesmo que não tenha sido valorizada como fonte de pesquisa pelos próprios

profissionais da área22.

A partir do século XX, principalmente com a Escola dos Annales, passou-se a

criticar a concepção cientificista da história, que tinha predominado até então. Com isto,

questionou-se também a definição de documento histórico, o que impôs a revalorização das

imagens como fonte de representações sociais e culturais23. Ao contrário da ideia positivista

de que os documentos exprimiam uma verdade do passado, passou-se a entendê-los mais

como:

“[...] parte da perspectiva de que os registros do passado que chegam até os dias de hoje não são inocentes. Se os vestígios do passado atravessaram os tempos, é porque, em grande medida, originaram-se dos esforços de antigas gerações de legar uma certa ideia de seu tempo e de sua sociedade às gerações futuras. São, assim,

18 MENESES, Ulpiano Bezerra. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11-36 – 2003. Pág. 19. 19 TATSCH, Flávia Galli. A construção da imagem visual da América: gravuras dos séculos XV e XVI. 2011. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Pág. 23. 20 MENESES, Ulpiano Bezerra. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11-36 – 2003. Pág. 13. 21 Idem, Ibidem. Pág. 13. 22 KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 97-115, jan.-jun. 2006. Pág. 98. 23 Idem, Ibidem. Pág. 102.

26

produtos de uma operação seletiva que traduz o controle sobre as informações que a sociedade exerce sobre si mesma. [...]”24

As imagens, especificamente aqui, as pinturas, são, como tudo que foi

produzido pela sociedade, fontes de representações e, como tais, não exprimem uma verdade

do passado. Como afirma Roger Chartier, todas as manifestações humanas são

representações. Ele considera: "[...] não haver prática ou estrutura que não seja produzida

pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão

sentido ao mundo que é o deles. [...]” 25. A imagem não é uma mera ilustração, mas é um local

de construção e figuração do lugar simbólico, é uma representação e esta representação é

“produzida e incorporada a uma sociedade, mas sua criação já existe antes mesmo de sua

forma e estrutura” 26.

Como representações do passado, estas pinturas revelam muito da época e da

sociedade que as produziram e, neste sentido, desempenham papel decisivo no processo de

construção visual do passado27. Elas são responsáveis por produzir uma memória sobre parte

de um passado específico que se quer ressaltar e, no caso trabalhado na pesquisa, caminha em

diálogo com a memória oficial e institucional da segunda metade do século XIX nos Estados

Unidos. Pensando nesta memória oficial, Paul Ricoeur levanta em sua obra questões acerca da

memória exercitada por meio de uma memória oficial, que, em alguns casos, encobre outras

memórias que não fazem parte desta ordem oficial. Isto geraria, segundo o autor, um conflito

com a história, que seria responsável, muitas vezes, por criar as bases para a imposição da

memória oficial através do discurso de um elemento comum em uma determinada sociedade,

já que “[...] nesse nível aparente, a memória imposta está armada por uma história ela mesma

‘autorizada’, a história oficial, a história aprendida e celebrada publicamente. [...]” 28.

Existe, como afirma Ricoeur, uma dupla função da memória em relação à história,

se pensarmos nela de uma forma circular e não linear (que seria pensar a memória como

simples matriz da história). Desta forma, ela é, sim, matriz da escrita da história, mas depois

se torna também um canal de reapropriação do passado histórico29. As pinturas, assim como a

24Idem, Ibidem. Pág. 102. 25CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo, v. 5, n. 11, 1991. Pág. 177. 26TATSCH, Flávia Galli. A construção da imagem visual da América: gravuras dos séculos XV e XVI. 2011. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Pág.66. 27SCHLICHTA, Consuelo A. B. D. A pintura histórica e a elaboração de uma certidão visual para a nação no século XIX. 2006. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná. Pág. 5 28RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. São Paulo: Ed. UNICAMP, 2007. Pág. 98. 29RICOEUR, Paul. Memory, history, oblivion (Conferência). “Haunting Memories? History in Europe after Authoritarianism”. Budapeste, 2003. Pág. 2.

27

memória, também têm esta dupla função, uma vez que elas são matrizes para a obra de arte e,

ao mesmo tempo, produtoras de novas memórias. As imagens são representações do passado

reapropriadas através da memória e esta memória surge por meio de uma imagem do passado

que está ausente, mas que consideremos que um dia existiu30

“[...] o passado está, por assim dizer, presente na imagem como signo da ausência, mas se trata de uma ausência que, não estando mais, é tida como tendo estado. Esse “tendo estado” é o que a memória se esforça por reencontrar. Ela reivindica a sua fidelidade a esse “tendo estado” [...] “31

Toda elaboração da memória se dá no presente e para responder a solicitações do

presente. Quando uma obra de arte é produzida, mesmo que representando e tentando

reconstruir o passado, é uma produção da memória do presente, que dialoga e nos diz mais

sobre o momento em que foi criada do que sobre o passado que quer representar. Nossa

análise, então, não foge à regra: ela se dá por questões levantadas no presente. É possível

olhar o passado, saber que ele de alguma forma existiu, mas é impossível virar as costas para

o presente, pois ele influencia a visão que se tem do passado, já que, como lembra Michel de

Certeau: “[...] uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise dos

documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente [...]” 32.

Não pretendemos, nesta pesquisa, levantar um debate profundo a respeito da

memória e sua relação como a história33. Não acreditamos que aja, entre as duas, uma

hierarquia, mas que ambas, ao se utilizarem de seu substrato comum, o passado, se tornam

objetos políticos. Todo uso político do passado, visa, por meio de um discurso nivelador e

pretensamente universal, como afirma Jeanne Marie Gagnebin, a se vangloriar de uma

história verdadeira e, portanto, única certa ou possível, que obedece a interesses precisos34.

Isto não significa acreditar que toda memória se dá de cima para baixo, mas que qualquer

poder institucional necessita delas para se constituir.

30Idem, Ibidem. Pág. 2. 31Idem, Ibidem. Pág. 2. 32CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3 edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2011. Pág. 8. 33 As discussões sobre Memória e História são infindáveis. Para um mapeamento do tema recomendamos alguns textos importantes. A coletânea do historiador Jacques LeGoff, História e Memória, apesar de datada em alguns aspectos, é imprescindível para um primeiro contato com o tema. O sociólogo Maurice Halbwachs, em 1949, cunhou em seu livro Memória Coletiva o termo que influenciou diversos trabalhos produzidos posteriormente. Ulpiano Bezerra de Meneses, na tentativa de mapear esta relação, produziu, em 1992, um importante artigo “A História, cativa da Memória?”. Por fim, um texto mais recente e que dialoga com a obra seminal de Paul Ricouer A memória, a história, o esquecimento, é Lembrar Escrever Esquecer, de Jeanne Marie Gagnebin (todas as referências estão citadas na bibliografia). 34 GAGNEBIN, J. M. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. Pág. 40.

28

Para se manter e validar, no entanto, qualquer esforço oficial precisa da

participação da população. E neste entremeio se desencadeia uma série de batalhas de

memórias. Cada grupo reivindica o seu passado como o correto e verdadeiro e, como afirma

Ricouer, “[...] o que justifica essa preferência pela memória “certa” é a convicção de não

termos outro recurso a respeito da referência ao passado, senão a própria memória [...] “35.

Embora estejamos de acordo com o autor a respeito do fato de a memória ser essencial como

forma de acesso ao passado, é preciso levar em conta que ela é também manipulada e

produzida no presente, consciente ou inconscientemente, se adaptando a mudanças ou

diretrizes que cada pessoa ou grupo queira lhe dar.

“[...] A elaboração da memória se dá no presente e para responder a solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar.”36

Ulpiano Bezerra de Meneses distingue três tipos de memória: a individual, a

coletiva e a nacional37. A individual não seria, a princípio, objeto das ciências sociais, a não

ser quando se juntam mais de uma em uma interação social38. A coletiva geralmente é

compartilhada por um grupo social que asseguraria uma coesão e solidariedade em momentos

de crise ou pressão, não é espontânea e precisa ser constantemente reavivada. Ademais, várias

memórias coletivas podem coexistir39. A memória nacional, por outro lado, busca não a

coexistência de várias memórias coletivas, mas a unificação e integração em torno de uma só,

muitas vezes parte do Estado ou de classes dominantes, e busca o desenvolvimento e a

formulação de uma identidade nacional40.

O que nos interessa neste trabalho é pensar como, via memória ou história, tentou-

se constituir uma memória nacional na segunda metade do século XIX, apoiando-se na

escolha de um passado específico, com o intuito de promover uma união e uma reconciliação

optando por aspectos que, teoricamente, os americanos teriam em comum. Como

mencionado, no entanto, toda memória institucional necessita de aceitação da população, e,

também, como toda memória, é escolhida em detrimento das demais, excluindo história,

passado e grupos desta ordem oficial. Por meio das pinturas, nosso intuito foi pensar em como

35 RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. São Paulo: Ed. UNICAMP, 2007. Pág. 40. 36 MENESES, Ulpiano Bezerra. A história cativa da memória. Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista Est. Bra. , 34, 1992. Pág. 11. 37 Idem. Ibidem. Pág. 14. 38 Idem. Ibidem. Pág. 14. 39 Idem. Ibidem. Pág. 15. 40 Idem. Ibidem. Pág. 15.

29

uma memória popular específica da Nova Inglaterra (o Thanksgiving) e, no caso americano,

religiosa, estabeleceu um diálogo com o poder público a ponto de ser, pelo menos em parte,

reconhecida como um passado e uma tradição nacional até os dias de hoje.

2-A constituição da série documental

A maior parte da base documental da pesquisa é constituída de imagens, pinturas

dos séculos XIX e XX. Acreditamos que a pesquisa ganha muito quando combinamos as

imagens a outros tipos de evidências. Por este motivo, junto às pinturas, procuramos analisar

alguns textos escritos no século XVII, que narram os eventos pintados séculos depois.

Todavia, como as pinturas são a maioria, é importante discutir como se deu a construção da

série aqui trabalhada.

Primeiro, é importante ressaltar que “[...] independente de sua qualidade estética,

qualquer imagem pode servir de evidência histórica [...].” 41, além disto, como lembra

Ginzburg, “uma pintura pode ser significativa para o historiador, por testemunhar

determinadas relações culturais, importante para o estudioso iconográfico e, ao mesmo tempo,

irrelevante do ponto de vista estético” 42.

Como afirma Meneses, é essencial que se construam “séries iconográficas” 43.

Flávia Tatsch, por sua vez, afirma que “[...] agrupar gravuras em série é fundamental para se

perceber como determinados temas ou significados surgiram, como se deu seu ritmo de

desenvolvimento, as permanências, as regularidades e os desvios” 44. Acreditamos que o

mesmo vale para as pinturas.

A constituição de nossa série se deu por uma questão temática e cronológica.

Focamos em pinturas produzidas na segunda metade do século XIX e começo do século XX,

período no qual as chamadas pinturas históricas predominaram nos Estados Unidos. Dentro

do recorte, no entanto, as organizamos em quatro grupos: as que foram produzidas antes da

Guerra Civil (1847-1859); as que foram pintadas durante a Guerra e o período de

reconstrução do país (1864-1882), as da virada do século (1899 a 1900), e as do começo do

século XX até o início da Grande Guerra (1912-1914). Na questão temática, optamos por 41 BURKE, Peter. Testemunha ocular: História e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. Pág. 20-21. 42 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Cia das Letras, 2014. Pág. 57. 43 MENESES, Ulpiano Bezerra. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11-36 – 2003. Pág. 27. 44 TATSCH, Flávia Galli. A construção da imagem visual da América: gravuras dos séculos XV e XVI. 2011. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Pág. 5.

30

pinturas que retratavam a colônia puritana da Nova Inglaterra: a saída dos peregrinos da

Holanda, a viagem a bordo do Mayflower, a chegada deles em Plymouth e o Thanksgiving,

focando principalmente nas demonstrações e metáforas religiosas presentes nas imagens.

3-A pintura histórica

Procuramos utilizar na pesquisa pinturas que se encaixam em um gênero

específico: o da pintura histórica. Este tipo de pintura atraiu um vasto público aos salões de

arte em todo o mundo, sobretudo no século XIX45. Embora já há muito tradicional, este

gênero, a partir do Renascimento, ganhou força como essencialmente ligado a preceitos

morais46. A valorização deste tipo de pintura consistia no fato de existir, neste período, uma

hierarquia que seria responsável por reger as diferentes categorias, e o de pintura histórica

ocupava o mais alto patamar47. Isto se dava porque o homem era visto como a mais perfeita

obra de Deus, tornando as representações de seus feitos a forma mais elevada de arte48. Este

gênero incluía quadros de cenas históricas, religiosas e da mitologia pagã, e geralmente

focava em grandes e famosos acontecimentos e personagens49. Como afirma Cláudia Mattos:

“a pintura de história não deveria reproduzir a história propriamente dita, mas sim extrair dela

o seu caráter perene e, portanto, ideal” 50.

Houve, no entanto, dentro do próprio gênero de pintura histórica, um embate a

partir do final do século XVIII. O gênero histórico, entendido e pintado a partir do

Renascimento com um caráter moral, e muitas vezes de forma metafórica (uma cena histórica

ou da mitologia eram usadas como metáfora de um fato contemporâneo) 51 passa a ser

criticada. Nasce, então, uma concepção de pintura histórica como registro fiel do fato

histórico52 (o que está em diálogo com a concepção histórica de que o passado pode ser

45 PEREIRA, Walter L. C. de M. Imagem, nação e consciência nacional: os rituais da pintura histórica no século XIX. in: Cultura Visual, n. 17, maio/2012, Salvador: EDUFBA, p. 93-105. Pág. 93. 46 MATTOS, Cláudia V.; OLIVEIRA, Cecília H. S (org.). O brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999. Pág. 120. 47 Idem, Ibidem. Pág. 121. 48 Idem, Ibidem. Pág. 121. 49 PEREIRA, Walter L. C. de M. Imagem, nação e consciência nacional: os rituais da pintura histórica no século XIX. in: Cultura Visual, n. 17, maio/2012, Salvador: eDUFBA, p. 93-105. Pág. 95. 50 MATTOS, Cláudia V.; OLIVEIRA, Cecília H. S (org.). O brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999. Pág. 123. 51 Idem, Ibidem. Pág. 129. 52 Idem, Ibidem. Pág. 125.

31

enxergado tal qual realmente foi), concepção que prevaleceu e se intensificou entre o período

da Revolução Francesa (1789) e da Primeira Guerra Mundial (1914) 53.

As pinturas norte-americanas analisadas estão em diálogo com a concepção de

história e de fato típica do século XIX, que enxerga a disciplina como ciência e que procura

um compromisso com o real, de reproduzir o passado tal qual ele teria ocorrido. Como toda

representação do passado nos diz mais do presente do que sobre o que está sendo

representado, há, nestas pinturas, também, uma série de metáforas, principalmente religiosas,

nas quais é possível enxergar o conceito de religião civil ali representado, já que, para se

expressar, ela necessita de mitos de origem (ou de refundação), símbolos, heróis e ritos54, e

acreditamos que é possível enxergá-los nas imagens.

A pintura histórica do século XIX está fortemente atrelada a um viés político,

ligada ao ideário de nação típico da segunda metade deste século. Para Schlichta, este tipo de

pintura seria fonte de compreensão e de representação dos acontecimentos históricos, e se

configuraria como um instrumento de legitimação simbólica para a construção da nação, que

seria moldada em torno dos objetivos comuns de uma leitura gloriosa do passado55. Ela

considera que estes tipos de pinturas são discursos que, assim como os textos escritos, tentam

impor uma autoridade e legitimar uma visão56 que, embora aspirem à universalidade, são

sempre marcadas pelos interesses daqueles que as produzem57. Como exemplo do uso político

das imagens, podemos citar a França de Napoleão58 e o Brasil Imperial59, ou seja, uma série

de pinturas responsáveis por criar uma memória nacional na qual é possível forjar um passado

épico e monumental60.

Outra característica própria da pintura histórica é que ela, na maioria das vezes, é

fruto de narrativas. Os pintores do XIX não tiveram acesso aos eventos do XVII, então suas

obras são construídas a partir de relatos, textos ou documentos, das narrativas do passado.

53 BURKE, Peter. Testemunha ocular: História e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. Pág. 196. 54 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág.7. 55 SCHLICHTA, Consuelo A. B. D. A pintura histórica e a elaboração de uma certidão visual para a nação no século XIX. 2006. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná. Pág. 1. 56 Idem, Ibidem. Pág. 12. 57 Idem, Ibidem. Pág. 13. 58 STOIANI, Raquel. Da Espada à Águia: Construção Simbólica do Poder e Legitimação Política de Napoleão Bonaparte. 2002. Dissertação (Mestrado em História)- Universidade de São Paulo. 59 SCHLICHTA, Consuelo A. B. D. A pintura histórica e a elaboração de uma certidão visual para a nação no século XIX. 2006. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná. 60 CASTRO, Isis. Pintura, memória e história: a pintura histórica e a construção de uma memória nacional. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n. 38, 2005. Pág. 336.

32

Existia aí uma forte relação entre o trabalho do pintor histórico e do historiador: ambos eram

engajados na construção de um passado e de uma memória. As fontes não eram entendidas

como representações, mas como a própria materialidade do passado: “(...) a pintura histórica,

por lidar com fatos históricos, também deveria utilizar fontes e buscar a verdade (...)” 61. Este

tipo de pintura, no entanto, oferece alguns problemas:

“Pinturas narrativas trazem problemas de sua própria natureza tanto para pintores quanto para leitores – a metáfora da “leitura” de imagens é especialmente apropriada nesse caso. Por exemplo, há o problema da representação de uma seqüência dinâmica na forma de uma cena estática, em outras palavras, do uso do espaço para substituir ou representar o tempo. O artista tem de condensar ações sucessivas numa única imagem, geralmente em momento de clímax, e o espectador tem de estar consciente dessa condensação. [...] “62.

Por isto, havia necessidade de estas pinturas virem acompanhadas de um título,

subtítulos e algumas vezes até pequenos textos explicativos (o iconotexto) 63. Além disto, é

preciso levar em conta um fator importante para o historiador: de que o “leitor” da imagem

está lendo o passado pela lente do pintor, o que envolve todas as problemáticas do presente do

pintor e do leitor.

4-O século XIX e a História

O período entre a segunda metade do século XIX (principalmente após a Guerra

Civil) e o começo da Grande Guerra foi marcado por mudanças intensas nos Estados Unidos.

Mais do que no período da Independência, este é o momento em que o país está pretendendo

se consolidar como uma nação e quando são intensificados os processos e as batalhas para a

construção de uma memória nacional e a criação de uma narrativa do passado que a

justificasse.

Como menciona Luiz Estevam Fernandes: “[...] para formar uma identidade

nacional, baseada na ideia de uma cultura homogênea, herdeira de tradições comuns, era

necessário escolher um passado. [...]” 64. Nos Estados Unidos, este passado é o da colônia

puritana, dos pais peregrinos, do Mayflower e do Thanksgiving. Ao optar por este passado,

outros tantos são silenciados.

61 Idem, Ibidem. Pág. 347. 62 MATTOS, Claúdia V.; OLIVEIRA, Cecília H. S. O brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999. Pág. 178. 63 Idem, Ibidem. Pág. 178. 64 FERNANDES, Luiz E.O. Patria mestiza Memória e História na invenção da nação mexicana entre os séculos XVIII e XIX. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Pág. 46.

33

“[...] A história, a geografia e a literatura têm sido campos férteis para a produção de narrativas que oferecem bases “verdadeiras” para a construção de identidades nacionais. Entretanto, sabemos que as identidades nacionais foram construídas, e estas construções envolvem conflitos entre as diferentes propostas de representações sobre a nação. ”65

Antes de pensar esta memória específica norte-americana, que é um imbricamento

de memórias políticas e religiosas, é necessário entender qual o papel que a História, como

disciplina, desempenhava no país, já que: “antes de saber o que a história diz de uma

sociedade, é necessário saber como funciona dentro dela [...] ”66

Philippe Joutard, ao comparar a relação da disciplina na França e nos Estados

Unidos, afirma que, de um lado, está a França, um país com uma história muito antiga, que

desde o século XIII funda sua identidade em uma memória histórica bastante elaborada e que

se intensifica em períodos de crise, como a Guerra dos Cem Anos, ou as inúmeras guerras

religiosas. Do outro lado está os Estados Unidos (considerando aqui o país que se estabeleceu

depois da Independência), que, por sua vez, possuía uma história muito mais curta e recente67.

Este tipo de relação com o passado é refletido na forma como cada um pensa a história. Para

os franceses, ela é uma espécie de paixão, ao contrário do que aparenta para os americanos. À

primeira vista, a relação que os Estados Unidos têm com o passado é bastante frágil68, o que

Alexis de Tocqueville já afirmou ao escrever que os americanos rejeitam a tirania do passado.

Para Joutard, a aparente indiferença com relação ao passado por parte dos norte-

americanos, se comparado à França, tem a ver, a princípio, com a rejeição do passado

europeu69, o que não impediu o desenvolvimento de um sistema de história-memória tão ou

mais desenvolvido que o francês70. O sentimento de negação das origens européias esteve

presente principalmente no século XVIII e início do XIX, durante e após todo o processo de

Independência, como lembra Mary Junqueira:

“[...] Com a Independência criou-se ainda outra ideia: a de que o norte-americano era um novo tipo de homem, completamente desvinculado do passado, “emancipado da História”. (...) o início de uma nova História desconectada do passado: o Adão norte-americano tinha apenas o futuro pela frente. (...) a nascente democracia norte-

65 OLIVEIRA, Lúcia. Americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. Pág. 10. 66 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3 edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2011. Pág. 63. 67 JOUTARD, Philippe. “Memória e identidade nacional” (p. 59-78). In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo. (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 59. 68 Idem, Ibidem. Pág. 59-60. 69 JOUTARD, Philippe. “Memória e identidade nacional”. In: AZEVEDO, C.; BICALHO, M.F.; KNAUSS, P. (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 59. 69 Idem, Ibidem. Pág. 60. 70 Idem, Ibidem. Pág. 60.

34

americana vinha acompanhada por um enorme sentimento de possibilidades, mas também por sentimentos de impaciência, intolerância e hostilidade. Ao novo homem norte-americano, tido como inocente e dotado de energia excepcional, cabia uma tarefa incomum: construir um mundo a partir do zero. ”71

Esta relação tumultuada com o passado e com a história por parte dos americanos

é apenas aparente. Embora a mais antiga associação entre historiadores e professores de

história, a American Historical Association (AHA), tenha sido criada apenas no final do

século XIX, em 1884, a preocupação com a disciplina e com a escrita do passado data de bem

antes. Um dos primeiros presidentes da AHA, o famoso historiador George Bancroft, por

exemplo, começou a escrita do seu famoso compilado de dez volumes, History of the United

States, em 1834. Bancroft, oriundo de uma família abastada da região da Nova Inglaterra, teve

grande parte de sua formação na Alemanha e, influenciado pelo romantismo alemão, foi um

dos grandes representantes deste movimento nos Estados Unidos. Além disto, foi um dos

primeiros historiadores a reconhecer o papel do período colonial, das relações estrangeiras e

da fronteira para a história do país72. O Romantismo, na Europa, resgatava a Idade Média,

como no novo mundo não havia período medieval, escolheu-se o passado colonial.

Durante todo o século XIX e começo do XX, a historiografia norte-americana

apresentou sucessivos paradigmas de compreensão da história73. É preciso levar em conta, no

entanto, que os historiadores americanos, principalmente os especialistas em história dos

Estados Unidos, ao mesmo tempo em que se profissionalizaram e especializaram,

mantiverem-se, quase sempre, dentro de um campo bastante comum do excepcionalismo74.

Neste período, um grupo de historiadores e sua maneira de pensar a história norte-

americana ganharam força na historiografia. Eram os representantes da história científica,

chamados também de evolucionistas conservadores, como afirma Ernst Breisach: “[...]

historians did not escape the fascination with Darwin´s evolutionary model [...]” 75. Este

grupo se estabeleceu, teoricamente, em contraposição à corrente “romântica” 76. Sua

abordagem dialogava com as preocupações do nacionalismo conservador que ganhou força no

71 JUNQUEIRA, Mary A. Ao Sul do Rio Grande. Bragança Paulista: EDUSF, 2000. Pág. 77. 72 https://www.britannica.com/biography/George-Bancroft-American-historian. Acesso em: 18/01/2018. 73 MOURA, Gerson. História de uma história: rumos da historiografia norte-americana no século XX. São Paulo: Edusp,1995. Pág. 13. 74 OLIVEIRA, Lúcia. Americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. Pág. 34. 75

BREISACH, Ernst A. American Progressive History: In Experiment in Modernization. Chicago: The University of Chicago Press, 1993. Pág. 17. 76 MOURA, Gerson. História de uma história: rumos da historiografia norte-americana no século XX. São Paulo: Edusp,1995. Pág. 18-19.

35

país nos anos posteriores à Guerra Civil, em um momento de afirmação da unidade nacional e

de uma nova estabilidade política. Esta corrente estava convencida de que o Estado Nacional

constituía a forma mais alta de organização da humanidade e, por este motivo, procurava

entender os processos que levaram ao crescimento da nação. Eram, em geral, adeptos do ideal

de unidade nacional, da homogeneidade da sociedade e da continuidade da história. O que

explica a preferência por temas coloniais, que ajudariam a esclarecer as origens da nação77, já

que, como afirma Gerson Moura: “vivendo na atmosfera do evolucionismo, esses

historiadores buscaram uma explicação nas instituições coloniais americanas na própria

história européia, diferentemente dos “românticos”, que tinham acentuado a singularidade das

colônias inglesas na América. ”78.

5-Religião Civil e a Memória Nacional

A memória nacional norte-americana está fortemente ligada a uma memória

religiosa. A concepção de identidade nacional (ou a tentativa da sua construção), a partir do

século XIX, está permeada por um ideário político-religioso que procurou estabelecer suas

bases ou suas raízes no passado colonial da Nova Inglaterra. É importante, antes de entrar

nesta discussão, fazer uma ressalva: nos Estados Unidos, há um enorme debate sobre o papel

que o período colonial tem na história do país, diferente do que acontece em outros países do

continente. Para parte da historiografia do século XIX, não haveria uma confusão entre

história nacional e colonização inglesa. Para eles, o início de sua história teria se dado a partir

da Independência. Contudo, a construção de uma identidade nacional se basearia,

consideravelmente, nos princípios religiosos encontrados nas colônias puritanas que se

estabeleceram a partir do século XVII79.

A relação entre religião e identidade nacional nos Estados Unidos já foi e ainda é

tema recorrente em diversas pesquisas. No entanto, o primeiro e mais famoso nome nesta

reflexão é Robert Bellah, e, por isto, passar por seus estudos e definições é muito importante

para esta pesquisa. O artigo que utilizou o conceito pela primeira vez aplicado à realidade

77 Idem, Ibidem. Pág. 19. 78 Idem, Ibidem. Pág. 19. 79RIBEIRO, Paulo Rodrigues. O dia de ação de graças nos eua: pressupostos religiosos na construção da identidade nacional norte-americana. Aedos no 13, vol. 5, p. 132-147 - Ago/Dez 2013. Pág. 133.

36

norte americana foi o “Civil Religion in America” 80, seguido de outras importantes obras

como The Broken Covenant:81.

O sociólogo norte-americano, especialista no estudo das religiões japonesas,

reapropriou-se do conceito de religião civil de Rousseau (Capítulo 8, do livro 4 de Do

Contrato Social)82. Religião civil seria, grosso modo, para Bellah, nada mais do que a junção

de uma memória nacional com uma memória religiosa. Sua investigação se deu, a princípio,

por uma comparação entre o universo religioso tradicional do Extremo Oriente (no qual a

esfera “religiosa” e “política” compõem um todo articulado e diferenciado) com a experiência

histórica norte-americana83.

Nesta reflexão, que abarca as relações entre religiões, identidade nacional e

política, o autor argumenta que a junção se dá por meio de um “conjunto de crenças, símbolos

e rituais” 84. Um exemplo de como se dá o cruzamento das memórias política e religiosa é a

recorrência da citação de Deus nos discursos presidenciais85. Os Estados Unidos foram o

primeiro país a separar Estado e Igreja e, no entanto, o poder que uma exerce sobre a outra é

notável e, para Bellah, isto se explica pelo fato de que:

“Considering the separation of church and state, how is a president justified in using the word "God" at all? The answer is that the separation of church and state has not denied the political realm a religious dimension. Although matters of personal religious belief, worship, and association are considered to be strictly private affairs, there are, at the same time, certain common elements of religious orientation that the great majority of Americans share. These have played a crucial role in the development of American institutions and still provide a religious dimension for the whole fabric of American life, including the political sphere. This public religious dimension is expressed in a set of beliefs, symbols, and rituals that I am calling American civil religion. The inauguration of a president is an important ceremonial event in this religion. It reaffirms, among other things, the religious legitimation of the highest political authority.”86

80 BELLAH, Robert N. Civil Religion in America. Journal of the American Academy of Arts and Sciences. 96 (1): 1–21. 1967. 81 BELLAH, Robert N. The Broken Covenant: American Civil Religion in Time of Trial. The University of Chicago Press, 1984. 82 Idem, Ibidem. Pág. 4. 83 MATA, Sérgio da. Passado e Presente da Religião Civil. Varia História, n. 23. Belo Horizonte, 2000. Pág. 181. 84 BELLAH, Robert N. Civil Religion in America. Journal of the American Academy of Arts and Sciences. 96 (1): 1–21. Pág. 3. 85 Idem, Ibidem, pág. 2. 86 Idem, Ibidem. Pág. 2-3.

37

Esta tradição político-religiosa da religião civil remonta, segundo o autor, ao

período colonial, ainda que as bases do contexto do nascimento da nação estejam firmadas na

Independência.

Alexis de Tocqueville, em seu livro A democracia na América87, ao descrever

suas observações sobre a viagem de 1831 que fez à América, já mencionava o papel que os

puritanos e a religião exerciam sobre os valores e a política norte-americana. Ele já

enxergava, no princípio das colônias da Nova Inglaterra e nos Pilgrims Fathers, uma

excepcionalidade88:

“Os emigrantes ou, como eles mesmos se chamavam apropriadamente, os peregrinos (pilgrims), pertenciam àquela seita da Inglaterra que a austeridade de princípios fizera receber o nome de puritana. O puritanismo não era apenas uma doutrina religiosa; ele também se confundia em vários pontos com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas […]” 89.

Tocqueville, em seu texto, enxerga o puritanismo como o embrião de uma

sociedade democrática. Bellah, por outro lado, não entende o período colonial como o

princípio da democracia, mas vê o puritanismo da Nova Inglaterra como um dos pilares da

religião civil. Para Tocqueville, o caráter da civilização anglo-americana é produto de dois

elementos, que ele considera distintos, mas que na América se combinam: o espírito de

religião e o espírito de liberdade90, que reverberam por toda parte, tanto nos costumes como

nas leis.

Um trabalho mais recente, do professor especializado em religiões Peter Gardella,

American Civil Religion - What Americans Hold Sacred 91 aborda a religião civil de maneira

distinta dos autores anteriores. Para o autor, ela deve ser entendida como uma verdadeira

religião que possui seus símbolos, textos e lugares sagrados, além de quatro fundamentos que

seriam os seus pilares: liberdade individual, democracia, paz mundial e tolerância cultural92.

Gardella tenta demonstrar estes valores através da análise de monumentos (sejam

eles físicos ou escritos) que têm valor simbólico para os americanos. Ele argumenta que

muitos escritos atribuem a religião civil a uma fé bíblica, ou fazem um paralelo entre Estados 87 TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América (Vol. 1 e 2). São Paulo: Martins Fontes, 2004. 88 Idem, Ibidem. (Vol. 1). Pág. 40. 89 Idem, Ibidem. Pág. 41. 90 Idem, Ibidem. Pág. 51. 91 GARDELLA, Peter. American Civil Religion: What Americans Hold Sacred. New York, Oxford University Press, 2014. 92 Idem. Ibidem. Pág. 3.

38

Unidos e Império Romano93, o autor argumenta, no entanto, que apesar de tributária a ambas

(ainda que considere a herança romana mais importante que a cristã), fazendo uso de seus

textos, símbolos e rituais, ela se distingue como um tipo de religião diferente que continua em

ascensão94.

Diferentemente de Tocqueville e de Bellah, Gardella não vislumbra o puritanismo

ou a religião como fator essencial para a construção de uma identidade nacional norte-

americana. Para ele, Mayflower Compact, Plymouth Rock e Pilgrims são apenas lugares

importantes na construção dos valores que sustentariam a religião civil, mas não essenciais:

“Similar stories may be told regarding liberty, democracy, and peace. The Puritans who sought liberty for themselves in Massachusetts Bay gave no freedom to others and abhorred the word "democracy", but their elections and town meetings led directly to our own. The puritan vision of America as a city on a hill was messianic hope world peace [...]”95

Além disto, o conceito não teria, por si só, uma conotação negativa, como lhe é

atribuído muitas vezes. O autor argumenta que assim como o cristianismo não deve ser

resumido as cruzadas e inquisições, a religião civil não deveria ser creditada apenas ao seu

histórico que muitas vezes não foi positivo96.

Ainda que cada uma das análises anteriores contribua para o entendimento e para

o debate sobre a questão da religião civil, acreditamos que ela serve ao nosso trabalho como

uma costura conceitual que perpassa a análise de nossa documentação, sejam os textos do

século XVII ou as pinturas dos XIX e XX. Isto significa que consideramos o conceito

fundamental para entender a tentativa da construção de uma memória nacional neste período,

pensando em como a retórica religiosa e discursos políticos se combinam neste processo.

Assim, compartilhamos do pressuposto de há, sim, nos Estados Unidos uma religião civil

instituída.

A partir do momento que se pretende construir uma memória sobre o passado, é

necessário celebrar marcos simbólicos do nascimento da nação por meio de um calendário de

festas, geralmente celebrando seus eventos fundadores. Para Joutard, existiriam três: A

chegada dos peregrinos no século XVII seria o primeiro, seguido da Independência e da

93 Idem. Ibidem. Pág. 6. 94 Idem. Ibidem. Pág. 7. 95 Idem. Ibidem. Pág. 4. 96 https://johndwilsey.com/2015/01/23/interview-with-peter-gardella-author-of-american-civil-religion/. Acesso em: 17/01/2018.

39

Guerra Civil97. A estes eventos, acrescentamos, ainda, um quarto, que faria parte destes

momentos fundadores: a chegada de Colombo.

Não por acaso, cada um destes eventos fundadores dão origem a quatro dos

feriados mais importantes do calendário norte-americano: o Thanksgiving, comemorado em

toda quarta quinta-feira de novembro; o Independence Day, no dia 4 de julho; o Memorial

Day, na última segunda feira de maio; e o Columbus Day, na segunda segunda-feira de

outubro.

O 4 de julho possui um significado político por excelência, é o dia da

emancipação dos Estados Unidos e quando se comemora a assinatura da Declaração da

Independência, em 177698 e embora haja citações religiosas em sua proclamação e em suas

comemorações (o que mais uma vez demonstra a força da religião civil), sua dimensão é

majoritariamente política. Este dia é a ocasião patriótica na qual os americanos reafirmam o

orgulho nacional reforçando símbolos como o hino nacional e bandeira dos Estados Unidos.

São geralmente comemorados com fogos de artifício, paradas, concertos, piqueniques,

eventos públicos e esportivos especiais99.

Memorial Day é o feriado no qual se homenageiam os soldados mortos em

combate pelos Estados Unidos. Originalmente era chamado de Decoration Day e foi criado

após a Guerra de Secessão como forma de se lembrar dos militares mortos de ambos os

lados100, com clara intencionalidade política de promover a união e pacificação após a guerra.

Apenas nos século XX que ele se tornou a data para homenagear todos os soldados em todas

as batalhas enfrentadas pelo país. Neste feriado, muitas pessoas visitam cemitérios e

memoriais, e voluntários colocam pequenas bandeiras nos túmulos nos cemitérios nacionais,

além de serem comuns cerimônias religiosas e piqueniques.

Nos dois feriados anteriores, a dimensão política das comemorações se sobressai

em relação à dimensão religiosa. Nas outras duas celebrações, no entanto, há uma memória

religiosa complementar à política. Ainda que não diretamente, os aspectos reforçados no

Columbus Day dialogam, em muitos aspectos, com o feriado que analisaremos mais

97 JOUTARD, Philippe. “Memória e identidade nacional”. In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 59. 98 COHEN, Henning; COFFIN, Tristram Potter. Folklore of American Holidays. Michigan: Thomson Gale, 1998. Pág. 223. 99 Idem. Ibidem. Pág. 223. 100 Idem. Ibidem. Pág. 187.

40

profundamente, o Thanksgiving, que será nosso objeto no capítulo 3, ainda que a natureza das

comemorações seja diferente.

O Columbus Day é comemorado em uma data próxima à chegada de Cristóvão

Colombo à América, 12 de outubro. Esta data tem significado distinto em todo o continente

americano: no Brasil, é o dia de Nossa Senhora de Aparecida, padroeira do país; no México é

o Día de La Raza, Discovery Day nas Bahamas, Día de las Culturas, na Costa Rica e Día de

La Resistencia Indígena, na Venezuela101. A primeira comemoração deste dia nos Estados

Unidos ocorreu em Nova York, em 1792, e celebrou os trezentos anos da chegada de

Colombo ao Novo Mundo102, mas se popularizou apenas em 1866, em uma homenagem aos

imigrantes italianos que faziam campanha por esta data. Em 1892, na abertura da exposição

de Chicago, o então presidente Benjamin Harrison o tornou oficial103.

Colombo, no final do século XVIII, era tido como um dos grandes heróis, o

símbolo da nação que havia acabado de se formar e seu legado permaneceu na história

americana ao longo dos séculos posteriores, ele era “[...] o exemplo do sucesso da cultura

transplantada [...]” 104. Sua imagem foi atrelada à missão da busca pelo progresso que

apontava para a resistência, a revolução e a independência105, um progresso que, além de

simbólico, era também literal, que cruzava rios, montanhas e desertos, que tornava as terras e

pastagens produtivas106, aquele que é pintado no quadro American Progress, de John Gast, em

1872, com Colúmbia, a personificação inventada para o país recém-criado, os guiando.

Colombo era o símbolo que os americanos precisavam:

“[...] alguém decididamente não-inglês, que podia como nenhuma outra figura histórica representar a América e que corporificava as necessárias virtudes de perseverança, coragem, sagacidade e, de quebra, heroísmo.” 107

A ideia de missão, domínio sobre a natureza, progresso e destino, encontrou suas

bases, nos Estados Unidos, em uma retórica religiosa assentada na Bíblia. Tal discurso

tipológico estava permeado de metáforas religiosas, com propensão ao Velho Testamento, que

foram durante o século XIX reapropriadas e utilizadas em diferentes segmentos: de discursos 101

Estes nomes são relativamente recentes, especialmente na Venezuela. 102 COHEN, Henning; COFFIN, Tristram Potter. Folklore of American Holidays. Michigan: Thomson Gale, 1998. Pág. 301. 103 Idem. Ibidem. Pág. 301. 104 SALE. Kirkpatrick. A Conquista do Paraíso: Cristovão Colombo e seu legado. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1992. Pág. 9. 105 Idem. Ibidem. Pág. 318. 106 Idem. Ibidem. Pág. 318. 107 Idem. Ibidem. Pág. 318-319.

41

presidenciais às artes. Embora o exame delas se dê de forma mais detalhada ao analisarmos as

imagens e o Thanksgiving, é importante mencioná-las, uma vez que a religião civil americana

se prolonga por meio da tradição bíblica108.

Apesar disto, é preciso destacar que o Deus da religião civil não é, propriamente,

religioso; ele se encontra na história e possui uma preocupação especial com a América.

Inúmeras vezes, o país é referenciado como a “Israel americana”. A Europa é o Egito, a

América é a Terra Prometida e os americanos são aqueles que levarão a luz a todas as

nações109.

“Behind the civil religion at every point lie biblical archetypes: Exodus, Chosen People, Promised Land, New Jerusalem, and Sacrificial Death and Rebirth. But it is also genuinely American and genuinely new. It has its own prophets and its own martyrs, its own sacred events and sacred places, its own solemn rituals and symbols. It is concerned that America be a society as perfectly in accord with the will of God as men can make it, and a light to all nations.”110.

Os Estados Unidos se autoreconhece como o povo eleito, se autoproclama “One

Nation under God”. O Deus aqui evocado, no entanto, não se confunde com o Deus de cada

religião ou Igreja. “As religiões instituídas sabem que a Religião Civil não as ataca, antes

coabita com elas, procurando ser o elo comum às suas diversidades” 111. A religião civil

americana, ao fazer sua analogia com a matriz bíblica, na qual o Antigo Testamento exerceu

grande influência, também tem seu Gênesis (o Mayflower Compact), o seu Êxodo (a

Declaração da Independência) e seus Dez Mandamentos (a Constituição, o Bill of Rights) 112.

Segundo Lúcia L. Oliveira, para se entender o universo cultural norte-americano,

é necessário ressaltar o significado da religião civil como “[…] um cimento identitário que

concebe a vida americana como realização, a ligação entre o velho e o novo testamento […]” 113. As diversas denominações protestantes tiveram um papel fundamental no estabelecimento

da religião civil. Muito foi pensado e produzido no espaço das igrejas. Segundo a autora,

foram elas as responsáveis por organizar as comunidades (Benevolents Societies), sustentaram

escolas e formaram ministros e pastores que muitas vezes tinham importantes conexões com

108 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 29. 109 BELLAH, Robert N. Civil Religion in America. Journal of the American Academy of Arts and Sciences. 96 (1): 1–21. Pág. 6. 110 Idem, Ibidem. Pág. 14-15. 111 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 25. 112 Idem, Ibidem. Pág. 30. 113 OLIVEIRA, Lúcia. Americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. Pág. 13.

42

intelectuais e políticos. A religião ocupou um espaço social, cultural e político de muita

relevância, mesmo com a separação oficial entre Estado e Igreja114.

6- O século XVIII e a Religião Civil

Ainda que o recorte temporal da nossa pesquisa se dê inicialmente no século XVII

e em sua reapropriação durante o século XIX e embora o foco do trabalho seja a forma como

o puritanismo, ainda que minoritário como prática religiosa nos anos posteriores à

colonização da Nova Inglaterra permaneceu na memória, no imaginário e na retórica a ponto

de influenciar escolhas políticas e decisões oficiais, é preciso que se destaque alguns eventos

importantes ocorridos neste espaço de tempo preterido em nosso trabalho, ainda que de forma

sintética.

O século XVIII e os movimentos políticos pela Independência corroboraram o

papel que a religião civil teve na história do país, além de ter sido um período fértil para o

surgimento de inúmeras correntes religiosas que buscavam seu espaço religiosa e

politicamente, e de movimentos como os Grandes Despertares115.

Ainda no século XVII, surgiram, na região das Treze Colônias, uma série de

vertentes religiosas, seja por migrações ou por dissidências políticas. Roger Williams, por

exemplo, divergia de lideranças puritanas, como a do pastor John Winthrop, e foi preso e

expulso de Boston, comprou dos indígenas o pedaço de terra onde hoje é o estado de Rhode

Island116, e ele a chamou de Providence, onde se estabeleceu uma nova tradição religiosa. Era

assegurada, nesta colônia, a liberdade de consciência e respeito às liberdades individuais, o

que fez com que vários dissidentes e insatisfeitos, como batistas e Quacres, se mudassem para

a região117.

A grande extensão do território americano possibilitou o estabelecimento de

grupos de diferentes convicções religiosas. Ainda no mesmo século, chegaram católicos que 114 Idem, Ibidem. Pág. 13. 115 Os Estados Unidos são do ponto de vista religioso, uma “colcha de retalhos”. Para uma maior compreensão dos inúmeros movimentos religiosos surgidos no país desde o começo da colonização, recomendamos alguns textos. Parte desta bibliografia foi levantada e sugerida pela prof. Dra. Eliane Moura, a quem agradeçemos. A Cultural History of Religion in America, de James Moseley; The American Religion: The emergence of Post-Christian Nation, de Harold Bloom; A Religious History of the American People, de Sidney Ahlstrom; One Nation Under God, de Marjorie Garber e Rebecca Walkowitz; American Religious History, de Amanda Porterfield; Religion in American Life, de Butler, Walcker e Balme. 116 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press, 1973. Pág. 108. 117 Idem. Ibidem. Pág. 108.

43

se instalaram onde hoje se situa o estado de Maryland118. Em 1654, se instalaram em território

americano os primeiros judeus, na Nova Amsterdã, entreposto comercial controlado pela

Holanda, onde hoje é a Ilha de Manhattan119. No final do século XVII, foi fundada, ainda, a

colônia da Pensilvânia, que se baseava nas ideias de seu fundador, William Penn, que era

Quacre, e recebeu, também, inúmeros imigrantes praticantes de outras religiões, como

alemães e tchecos120. Assim, o século XVII terminou com uma infinidade de crenças

coexistindo neste território: puritanos, presbiterianos, católicos, quacres, batistas, anglicanos,

metodistas, judeus, menonitas, além de praticantes de movimentos oriundos destas religiões.

A primeira metade do século XVIII é marcada por inúmeras guerras em todo o

território norte-americano e a crescente intenção da Inglaterra de desenvolver um sistema

colonial nos moldes portugueses e espanhóis, que gerou enorme resistência entre os colonos.

Concomitantemente a esta instabilidade política, houve também o aumento da prosperidade

material, um aumento significativo de ondas migratórias, a melhora contínua da educação e

instrução formal, o que fez com que houvesse, aos olhos de muitos religiosos, uma diluição da

religião, visão que era especialmente compartilhada pelos puritanos mais fervorosos,

“[...] yet allof these colonies were pervaded by an ideology which, though increasingly secularized, was puritan at the level of both personal and social ethics.”121

Surgiram, assim, movimentos de fortes fervores religiosos, o Great Awakening,

que se propagaram em ondas. O primeiro Grande Despertar ocorreu, de forma geral, entre as

décadas de 1730 e 1760, e parece ter começado em áreas rurais entre imigrantes alemães que

encontraram na América a abundância que lhes faltava na Europa122. No entanto, os líderes

mais influentes do movimento foram o teólogo calvinista Jonathan Edwards123 e um dos

fundadores da Igreja Metodista, George Whitefield. O movimento se espalhou por outras

colônias, graças, em especial, a pastores itinerantes que pretendiam propagá-lo. Whitefield,

118 Idem. Ibidem. Pág. 109. 119 SILVA, Carlos E (org.). Uma Nação com Alma de Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2009. Pág. 80. 120 Idem. Ibidem. Pág. 81. 121 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press, 1973. Pág. 263. 122 SILVA, Carlos E (org.). Uma Nação com Alma de Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2009. Pág. 86. 123 MAXSON, Charles H. The Great Awakening in the Middle Colonies. Chicago: The University of Chicago Press, 1920. Pág. 54.

44

por exemplo, em 1738, realizou um circuito entre a Filadélfia e Nova York, além de ter ido

até a Geórgia, em 1739, e as colônias do Sul, em 1740124.

De forma geral, o Grande Despertar teve duas vertentes principais: uma mais

emocional, que procurava reavivar a religião por meio de uma experiência interior de

salvação125, e outra mais racionalista, ligada a ideias iluministas e que visava a combater, de

certa forma, o fervor e alguns dogmas calvinistas126. Foi criado, assim, um antagonismo entre

as duas escolas, que passariam a ser conhecidas como Old Lights e New Lights127, travado em

várias universidades, além de uma divisão entre os que acreditavam que este movimento

restringia-se apenas à região da Nova Inglaterra, como Edwards, e os missionários que

pretendiam levá-lo para outras regiões das Treze Colônias, como Whitefield128.

Embora este movimento religioso pareça contrário às ideias científicas e apesar de

em vários momentos ele ter usado como justificativa a diluição da religião e o deísmo que,

eles acreditavam, ganhava forças, alguns historiadores consideram o primeiro Grande

Despertar como um evento proto-revolucionário às lutas pela Independência. Como afirma

Sidney Ahlstrom: “The Great Awakening wrote a crucial prologue to the political and

ideological transformation that characterized the dramatic years between 1763 and 1775 [...].” 129

Isto porque, segundo o historiador, tal movimento foi responsável por criar uma

autoconsciência dos colonos em relação à metrópole, os líderes foram um dos primeiros a

falar explicitamente das colônias como um todo, o que criou uma forte pressão por mudanças

sociais e econômicas, vindos destes novos convertidos, Whitefield, por exemplo, se referia

publicamente a eles pelo termo “americanos” 130. Este movimento “[...] cruzou as religiões e

124 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press, 1973. Pág. 283-284. 125 KUPPERMAN, Karen O. (Org.). Major Problems in American Colonial History. New York: New York University Press, 2000. Pág. 330. 126 SILVA, Carlos E (org.). Uma Nação com Alma de Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2009. Pág. 80. 126 Idem. Ibidem. Pág. 86. 127 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press, 1973. Pág. 288. 128 Idem. Ibidem. Pág. 289. 129 Idem. Ibidem. Pág. 349. 130 Idem. Ibidem. Pág. 349-350.

45

fronteiras sectárias, jogou luz sobre elas e transformou o que tinham sido até então igrejas de

estilo europeu em igrejas americanas.” 131

Ao mesmo tempo em que os movimentos de reavivamento religiosos circulavam

na colônia, as ideias iluministas, vindas especialmente da Europa também ganhavam força

entre os colonos e foram responsáveis, pelo crescimento do desejo de emancipação. John

Locke foi um dos filósofos que mais influenciou os movimentos intelectuais que lutavam pela

Independência. Assim, o período de fundação dos Estados Unidos seria algo: “[...]

sandwiched between the momentous religious revivals know as the first and second Great

Awakenings, as in age of Enlightenment and rationalism” 132. A religião pode não ter sido a

fonte de todos os ideais políticos da Revolução Americana, mas certamente, para muitos dos

revolucionários, ela animou e apoiou a causa da Independência.

O debate intelectual, que tinha no Iluminismo suas bases, não era em geral

anticristão ou ateu, e nem negava a Bíblia. O que foi levantado, neste período, foram

discussões principalmente em torno do deísmo, que, de forma geral, enfatizava a moralidade e

criticava uma visão ortodoxa da divindade de Cristo, do qual muitos eram adeptos. Como

afirma Ahlstrom:

“[...] No thinker better exemplified that confidence in man's mental powers which gives the Age of Reason its names. In the eighteenth century's "Deistic Controversy", in the debate over the nature of Christian morality, and in the ongoing contest with skeptics, there gradually came to prevail among the educated classes a climate of opinion in which moderate common-sense viwes prevailed. High-ranking churchmen as well as poets, essayists, and statesmen expressed this outlook. The efect of theEnlightenment on Christian thought thus became deep and pervasive [...]”. 133

Parte dos articuladores do movimento de Independência eram adeptos de ideias

iluministas e do deísmo, pregando, principalmente, a liberdade de crença para o novo país que

estava surgindo. Entre eles estavam dois nomes importantes: Thomas Jefferson e John

Adams.

Os chamados Founding Fathers foram os líderes políticos que assinaram a

Declaração de Independência, que participaram da Revolução Americana ou que ajudaram a

131 SILVA, Carlos E (org.). Uma Nação com Alma de Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2009. Pág. 80. 131 Idem. Ibidem. Pág. 87. 132 DREISBACH, Daniel. Reading the Bible with the Founding Fathers. New York: Oxford University Press, 2016. Pág. 111. 133 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press, 1973. Pág. 353.

46

redigir a constituição e entre eles havia membros de diferentes denominações religiosas,

deístas ou que não eram ligados à religião alguma. Uma das preocupações ao redigir a

constituição era assegurar a liberdade de crença para garantir que estes grupos seriam

representados, o que culminou na primeira emenda: "O congresso não deverá fazer qualquer

lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou

restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem

pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas” 134.

O texto bíblico e a religião, no entanto, permaneceram tendo papel importante na

vida pública norte-americana (embora se expressem de formas diferentes nos séculos XVII,

XVIII e XIX). Neste contexto, a Bíblia continuou permeando os discursos privados e

pronunciamentos públicos daqueles que moldaram a nova nação e as instituições civis135,

ainda que de forma diferente da dos puritanos, já que a influência iluminista era notável em

outros importantes líderes, como Benjamin Franklin e Thomas Paine136. Isto não significou

desconsiderar que os americanos viviam em uma cultura moldada pela tradição bíblica, afinal,

mais do que qualquer outro escrito, a Bíblia era o livro mais acessível à maior parte das

pessoas até este período, e, embora a religião não se manifestasse da mesma forma que

anteriormente:

“[...] the founding generation wove biblical language, often whithout quotation marks or explicit references, into the various written communications of daily life, including public papers. Quotation marks and citations were unnecessary to identify the source of words so familiar to a biblically literate people.”137

Assim como a religião se expressava, na política, de maneira diferente no século

XVIII, a religião civil também era entendida de forma distinta. Benjamin Franklin, já

detectava o que ele chamou de “public religion”, ou seja, os valores que deviam moldar a

virtude republicana138 e, como a religião civil, ela não devia ser confundida com qualquer

denominação.

134 https://constitutioncenter.org/interactive-constitution/amendments/amendment-i. Acesso em: 18/01/2018. 135 DREISBACH, Daniel. Reading the Bible with the Founding Fathers. New York: Oxford University Press, 2016. Pág. 124. 136 Idem. Ibidem. Pág. 124. 137 Idem. Ibidem. Pág. 160. 138 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 23.

47

A Independência é essencial na complementação do que Sacvan Bercovitch

chamou de mito da América139, no qual, mais claramente, é possível enxergar as expressões

da religião civil, já que, neste período, foram produzidos seus próprios santos (Washington,

Jefferson, Franklin, Paine, Adams, etc), que são iconograficamente popularizados como

heróis ou mártires (Washington era cultuado como um líder semelhante a Moisés) e seu

corpus sagrado de textos (Declaração da Independência e Constituição), cuja hermenêutica

vai sendo renovada, enfatiza a dimensão sacrifical do serviço à pátria (culto cívico aos

mortos), sacraliza e cultua objetos (bandeira nacional) e invoca seu maior credo: a liberdade,

defendida sob o exemplo cristológico140.

O século XVIII termina com uma série de colônias independentes, que precisa

construir laços de identidade que as tornasse uma nação, uma geração de novos americanos,

que nasceram ingleses, mas que pelo processo de independência passaram a ter uma nova

nacionalidade141. Era preciso assimilar a grande quantidade de imigrantes que chegavam à

América. Além disto, do ponto de vista religioso, o país era uma colcha de retalhos, com uma

infinidade de grupos religiosos. O século XIX tinha uma missão: construir uma nação que

transformasse esta série de grupos heterogêneos em um único país.

7- A Guerra Civil (1861-1865)

As pinturas analisadas na pesquisa foram produzidas na segunda metade do século

XIX. Este período foi marcado por uma recuperação de narrativas coloniais, principalmente

focando em uma forte religiosidade que teria sido propulsora dos valores que os norte-

americanos reconhecem como seus. Isto porque os Estados Unidos passaram por uma série de

mudanças políticas, sociais e econômicas. Dentre elas, a Guerra Civil (1861-1865) foi, sem

dúvida, um marco na história do país. Muito além do número gigantesco de mortes, de

destruição e gastos, o episódio marcou a historiografia, a política, as produções artísticas e

literárias, e acirrou uma série de batalhas pela memória do passado, que já existiam, mas que

foram se intensificando ainda mais. Além disto, a partir deste momento, ocorrem tentativas

sistemáticas de criar uma memória nacional, que conseguisse fazer aquilo que a Guerra de

139 BERCOVITCH, Sacvan (org). American Puritan Imagination: Essays in Revaluation. London: Cambridge University Press, 1974. Pág. 136. 140 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 31-32. 141APPLEBY, Joyce. Inheriting the Revolution: The First Generation of Americans. Massachusetts: Harvard University Press, 2000. Pág. 1.

48

Independência não tinha sido bem-sucedida: criar uma nação que possuísse um passado em

comum que a justificasse.

Os acontecimentos, as batalhas e a historiografia da Guerra Civil não são o objeto

desta pesquisa, mas, sim, o papel que ela teve na valorização do passado colonial puritano e

sua influência na política e nas produções culturais aqui trabalhadas.

Os Estados Unidos de 1860 eram uma potência em formação142. O território

americano já havia dobrado de tamanho com as anexações de territórios nos anos anteriores

(entre 1789 e 1860 o território passou de 2 milhões para quase 8 milhões de quilômetros

quadrados143), o que possibilitou a produção de uma série de novos produtos advindos de

terras férteis. Junto a isto, o aumento populacional devido à chegada de um grande número de

imigrantes vindos especialmente da Europa e Ásia e o desenvolvimento tecnológico (barcos a

vapor, linhas férreas e canais de navegação) fez com que a economia florescesse.

Uma série de antagonismos, no entanto, se intensificou desde a Independência,

principalmente entre os estados do Sul e do Norte. A ameaça separatista se tornou, então, uma

realidade. Entre as questões principais para a secessão estavam os modelos econômicos

divergentes. Enquanto no Norte prevalecia o modelo industrial (por conta, também, da

escassez de terras próprias para prática agrícola e de uma temperatura mais fria, que

impossibilitava uma variedade de plantios), o Sul era marcado por uma sociedade patriarcal e

agrária, baseada em um modelo escravocrata, além de todas as diferenças políticas e culturais.

A escravidão se tornou, portanto, um dos principais pontos de divergência nos Estados

Unidos144. Somou-se, ainda, o fato de que os americanos se identificavam mais com suas

cidades, condados ou estados do que com a União. O sentimento nacional era ainda, segundo

Ameur, embrionário145.

As discussões sobre os novos estados aderirem ou não ao sistema escravista se

intensificaram após a aquisição dos territórios do Sudoeste em 1848 (Califórnia, Texas, Utah

142 AMEUR, Farid. A Guerra de Secessão (1861-1865). Lisboa: Edições 70, 2004. Pág. 11. 143 Idem. Ibidem. Pág. 12. 144 A questão sobre as causas da Guerra Civil e o papel da escravidão no conflito é um debate infindável para a historiografia norte-americana, mas, entre os principais representantes destas discussões, estão: James Rhodes, industrial do Meio-Oeste que defende que a escravidão é a única causa da Guerra Civil; Charles e Mary Beard acreditavam que a guerra foi causada por um choque econômico entre dois modelos distintos (industrial e agrário); David Potter credita a guerra a escravidão e nega que havia choques econômicos estruturais. 145 AMEUR, Farid. A Guerra de Secessão (1861-1865). Lisboa: Edições 70, 2004. Pág. 16.

49

e Novo México) 146. Além disto, os próprios partidos políticos se fragmentaram devido a estas

questões, abandonando o bipartidarismo herdado da tradição inglesa, dando origem ao Partido

Republicano e fortalecendo o Democrata, criado por Thomas Jefferson.

O Partido Republicano, relativamente recente na época (fundado em 1854),

conseguiu eleger seu primeiro candidato, Abraham Lincoln, como presidente nas eleições de

1860, derrotando o Partido Democrata, dividido e fragilizado entre ultraconservadores

escravocratas e os mais moderados147. O debate em torno da escravidão e da União dominou

as discussões naquela eleição.

Visto como abolicionista, a eleição do “republicano negro” Lincoln foi o estopim

para que a Carolina do Sul revogasse, no dia 20 de dezembro de 1860, sua ratificação da

Constituição Federal, seguida por outros estados: Mississipi, Flórida, Geórgia, Alabama,

Luisiana e Texas148, que se organizaram como Estados Confederados da América e

escolheram Jefferson Davis como presidente. Em 1861, Davis afirmou oficialmente que a

separação dos Estados Confederados estava concluída, provocando reações mais enérgicas da

União, já que, para eles, não se tratava mais de discutir a escravidão, mas, sim, a perenidade

da nação americana, seus ideais de prosperidade, felicidade e liberdade149.

O início dos conflitos militares ocorreu em Charleston, na Carolina do Sul, onde

se localizava um forte das tropas da União, que foi evacuado antes que Lincoln pudesse

enviar reforços. O presidente reagiu enviando 80 mil soldados em abril de 1861, e a guerra foi

declarada150. Os conflitos ao longo da Guerra Civil podem genericamente ser divididos em

quatro grupos: as primeiras campanhas no Leste (com sucessivas vitórias dos confederados)

até 1863; os bloqueios navais no Golfo do México; as campanhas no vale do Mississipi e as

contra-ofensivas da União151.

“Graças aos escravos e abolicionistas, um combate, que se iniciara em nome da

recuperação da unidade territorial do país, transformou-se numa luta pelo fim da escravidão

146 Idem. Ibidem. Pág. 29. 147 TOTA, Antonio P. Os americanos. São Paulo: Ed. Contexto, 2009. Pág. 78. 148 SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990. Pág. 186. 149 AMEUR, Farid. A Guerra de Secessão (1861-1865). Lisboa: Edições 70, 2004. Pág. 44. 150 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 132. 151 TOTA, Antonio P. Os americanos. São Paulo: Ed. Contexto, 2009. Pág. 79.

50

[...]” 152. No dia 1 de janeiro de 1863, Lincoln proclamou a Lei da Emancipação dos escravos.

Nas áreas longe do alcance da União, os escravos tornavam-se livres na medida em que as

tropas do norte venciam153. Apenas em 1865, quando a Décima Terceira Emenda proibiu a

escravidão em todo o país, é que a medida tornou-se parte da Constituição154. Em 1865, com a

derrota dos confederados, a guerra acabou, com um saldo de 260 mil mortes dos confederados

e 360 mil da União, milhares de mutilados e um gasto de 5,2 bilhões de dólares155. Com o fim

da guerra, foi necessário que o país se reconstruísse materialmente, mas também que se

criasse (ou recriasse) como nação e isto implicava a criação de um passado e de uma memória

reconciliadores.

Embora a União tivesse sido mantida e os escravos libertos, o período de

reconstrução se tornou ainda mais difícil com o assassinato de Lincoln. “[...] Nos dois lados,

os rancores e as paixões não se desvanecem facilmente [...]” 156.

O Sul, que saiu devastado, desmoralizado e submetido à lei imposta pelos

vencedores da guerra, passou a ser visto como a “(...) terra escravista, racista e reacionária, era

apontada como o antípoda dos valores americanos (...)” 157. Com o fim das batalhas militares,

iniciaram-se as batalhas pela memória do passado.

A ligação entre memória política e religiosa, chamada de religião civil, já existia,

como já mencionamos, nos Estados Unidos. No entanto, ela ganhou novos significados

durante e após a Guerra Civil. Desta guerra, que seria o terceiro evento fundador norte-

americano, surgiu, como afirma Joutard, uma memória religiosa complementar158. A memória

religiosa da chegada dos peregrinos, o primeiro momento fundador, fundamentou-se no Velho

Testamento, com a Guerra Civil, não se saiu da lógica bíblica, apenas se acrescentou o Novo

Testamento ao Velho159.

152 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 134. 153 Idem, Ibidem. Pág. 134. 154 SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990. Pág. 197. 155 Idem, Ibidem. Pág. 199. 156 AMEUR, Farid. A Guerra de Secessão (1861-1865). Lisboa: Edições 70, 2004. Pág. 105. 157 SCHILLING, Voltaire. América: A história e as contradições do império. Porto Alegre: L&PM, 2004. Pág. 98. 158 JOUTARD, Philippe. “Memória e identidade nacional” (p. 59-78). In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 73. 159 Idem, Ibidem. Pág. 73.

51

“[...] O próprio Lincoln, no discurso inaugural de seu segundo mandato, via na provação da guerra civil “o justo castigo daqueles para quem o castigo chega”; em outras palavras, a ira de Deus contra seu povo infiel. É ainda o Israel antigo. No entanto, por ocasião do discurso de Gettysburg em homenagem à memória das vítimas da guerra civil, ele invoca uma memória cristã: “os que aqui deram sua vida para que esta nação pudesse viver”. Em breve sua morte trágica evocaria a imagem do Cristo [...] ”160.

Ainda durante a Guerra Civil, Lincoln oficializou o Thanksgiving como feriado

nacional em 1863, quase 250 anos depois do que teria sido o primeiro dia de Ação de Graças

dos peregrinos. Sua ação, com forte intencionalidade política, tinha o objetivo de promover a

pacificação e reafirmar a união de um país dividido pela guerra, de retomar um passado do

qual, em teoria, todos seriam herdeiros.

“Eu convido meus companheiros, cidadãos de todas as partes dos Estados Unidos e também aqueles que estão no mar ou morando em terras estrangeiras, que dediquem a última quinta-feira de novembro ao louvor e agradecimento ao nosso Pai que está no céu” 161.

Esta tentativa, no entanto, não foi bem aceita pelo Sul. Em 1889, um monumento

dedicado aos peregrinos em Plymouth reacendeu, mais uma vez, o ressentimento do Sul, que

reclamava que a precedência cronológica do assentamento de Jamestown, na Virgínia, teria

sido apagada em favor de Plymouth e da tradição puritana da Nova Inglaterra. Este

ressentimento perdurou até as comemorações do terceiro centenário da chegada dos

peregrinos, em 1923, quando vários sulistas ainda repetiam que haviam sido conquistados

depois da Guerra Civil e, como consequência, sua história teria sido roubada162. Apenas a

partir de 1907 foram produzidos eventos nacionais que celebrassem a colônia de Jamestown,

como a “Jamestown Tercentenary Exposition” 163. Em 1957, o então presidente Eisenhower

proclamou o Jamestown Day (que não obteve ampla aceitação nem em sua região),

comemorado em 13 de maio164, enquanto o Thanksgiving já era um feriado oficial desde

1863.

O período da Guerra Civil foi para o Sul, como para o Norte, um período de forte

efervescência cultural. Foi produzido, neste período, um número considerável de romances,

160 Idem, Ibidem. Pág. 73. 161 LINCOLN, A. Disponível em: https://www.abrahamlincolnonline.org/lincoln/speeches/. Acesso em: 23/03/2017. 162AZEVEDO, Cecília. “Culturas políticas e lugares de memória: batalhas identitárias nos EUA” (p. 465-492). In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 471. 163 GARDELLA, Peter. American Civil Religion: What Americans Hold Sacred. New York, Oxford University Press, 2014. Pág. 21. 164 Idem. Ibidem. Pág. 27

52

poemas, pinturas165. Estavam em jogo, naquele momento, além das batalhas militares, as

memórias em disputa. Ao fim da Guerra, o Sul criou movimentos que procuravam evocar a

nostalgia de uma grandeza que havia sido perdida. Além das perdas econômicas, eles

reivindicavam a decorrocada de sua história e cultura, subtraída pelos vencedores que teriam

imposto sua memória como nacional, enquanto tudo que fosse ligado ao Sul teria se tornado

regional.

Interpretações como a da Lost Cause166 ganharam força com o fim do conflito

armado. Ela trata de uma interpretação dos confederados da Guerra Civil, geralmente

defendida por brancos do Sul, principalmente ligados às Forças Armadas. Análises como esta

só puderam ser possíveis pelo lugar que a história ocupa “no ethos do Sul” 167, de acordo com

o historiador John Franklin, que defende que se escreva sobre o Sul em sua totalidade:

“[...] tempo e lugar foram ingredientes geminados que abasteceram a imaginação do Sul e proporcionaram o cenário para que os brancos da região, orgulhosamente, chamaram de civilização do Sul. Eles escreveram sua própria história para explicar e justificar as idiossincrasias de suas instituições e de suas políticas. [...]” 168

Até a primeira metade do século XIX, a escrita de “uma história nacional” tinha,

em geral, ficado mais restrita a historiadores (profissionais ou amadores) do Norte, em sua

maioria da região da Nova Inglaterra169, ainda que obras como as dos sulistas David Ramsay

ou George Tucker tenham se destacado. Durante este período, as obras regionais, como a

história dos estados, tinham maior importância entre os escritores sulistas do que uma história

da nação ou mesmo no Sul como um todo. Esta concepção, no entanto, começou a mudar nos

anos que antecederam a Guerra Civil.

O sistema econômico baseado na escravidão passou a ser cada vez mais

condenado no mundo ocidental, assim, os brancos do Sul começaram a pensar neles não mais

como estados com diferenças entre si, mas como portadores de valores, problemas e culturas

em comum, que os diferenciava dos demais americanos: “[...] chegaram a acreditar que

tinham uma história compartilhada e característica.” 170. Esta unidade era indispensável, fosse

165 EATON, Clement. The Growth of Southern Civilization (1790-1860). New York: Harper & Row, 1961. Pág. 14. 166 O termo foi usado pela primeira vez, em 1866, no título do livro The Lost Cause: A New Southerm History of the War of the Confederates, do historiador Edward Pollard. 167FRANKLIN, John Hope. Raça e História: Ensaios selecionados (1938-1988). Rio de Janeiro: Rocco, 1989. Pág. 14. 168 Idem. Ibidem. Pág. 14. 169 Idem. Ibidem. Pág. 80. 170 Idem. Ibidem. Pág. 81.

53

para manter sua posição dentro da União, fosse para preparar o caminho da separação171,

ainda que para isto as diferenças religiosas, étnicas e culturais fossem ignoradas.

A Guerra Civil havia sido ainda mais devastadora no Sul: as batalhas acabaram

com seu exército, suas terras e sua infraestrutura econômica172. Tendo sido derrotados nas

batalhas, restava aos sulistas se voltarem para sua própria história e para o passado que

consideravam glorioso e, para isto, os historiadores sulistas tiveram papel fundamental: “os

historiadores do Sul serviram à causa do nacionalismo sulista com resultados mais duradouros

do que fizeram os exércitos [...]”173. “Os sulistas tiveram de conquistar com a pena, o que

tinham deixado de vencer com a espada” 174.

Neste contexto, floresceram interpretações em que o Sul e a causa confederada

eram protagonistas. Criou-se, assim, uma memória pública romantizada do Sul que focava em

seu passado, seu esforço e sacrifício na Guerra, sua honrosa derrota, destacando a sociedade

antibélica no período anterior e minimizando a escravidão (que para eles não foi a causa da

guerra, mas, sim, as diferenças culturais e econômicas, além do conflito entre uma sociedade

industrial e outra agrícola175), reforçando a constitucionalidade da secessão176 e criando um

culto aos seus heróis, sendo o maior deles o general Robert E. Lee. Essa interpretação ficou

conhecida como Lost Cause, sendo tratada, por boa parte da historiografia, como um mito,

que foi produzido em um contexto de diversos embates pelo controle da memória e do

passado de um país.

O historiador Charles Wilson se apropria do conceito de religião civil de Bellah

ao dizer que a Lost Cause e as interpretações sulistas como um todo construíram sua própria

religião civil, separada da nacional, com suas próprias lógicas, práticas ritualísticas, estruturas

de organização que procuraram produzir seu próprio significado da nação177. Uma série de

monumentos, sociedades patrióticas, canções, versos, celebrações, obras de artes e

171 Idem. Ibidem. Pág. 81. 172 GALLAGHER, Gary W.; NOLAN, Alan T. The Myth of the Lost Cause and Civil War History. Indianapolis: Indiana University Press, 2000. Pág. 1. 173 FRANKLIN, John Hope. Raça e História: Ensaios selecionados (1938-1988). Rio de Janeiro: Rocco, 1989. Pág. 83. 174 Idem. Ibidem. Pág. 84. 175 GALLAGHER, Gary W., NOLAN, Alan T. The Myth of the Lost Cause and Civil War History. Indianapolis: Indiana University Press, 2000. Pág. 15. 176 Idem. Ibidem. Pág. 12. 177 WILSON, Charles R. Baptized in Blood: The Religion of the Lost Cause, 1865-1920. Athens: University of Georgia Press, 1980. Pág. 10.

54

reminiscências informais foram produzidas como forma de reafirmar o passado glorioso e

justificar seus atos à posteridade178, em paralelo às interpretações históricas e literárias.

Alguns historiadores acreditam que a Lost Cause foi uma ferramenta útil para a

conciliação entre o Norte e Sul. Para o historiador David W. Blight:

“The Lost Cause became an integral part of national reconciliation by dint of sheer sentimentalism, by political argument, and by recurrent celebrations and rituals. For most white Southerners, the Lost Cause evolved into a language of vindication and renewal, as well as an array of practices and public monuments through which they could solidify both their Southern pride and their Americanness. In the 1890s, Confederate memories no longer dwelled as much on mourning or explaining defeat; they offered a set of conservative traditions by which the entire country could gird itself against racial, political, and industrial disorder. And by the sheer virtue of losing heroically the Confederate soldier provided a model of masculine devotion and courage in an age of gender anxieties and ruthless material striving [...]”179

Para Alan Nolan, a Lost Cause também foi uma facilitadora da reunificação, no

entanto, foi conduzida por homens brancos de ambos os lados, que, para isto, promoveram o

sacrifício dos negros180. Negros, então, foram representados em diversas obras artísticas e

literárias partidárias, ora como culpados ou causadores da Guerra Civil, como no filme “The

Birth of a Nation”, de 1915, ora como parte da sociedade hierarquizada, em que eram vistos

como parte da “família”, em um sistema que os agradava e no qual eram bem tratados, no

qual os negros eram escravos fiéis e leais, como em “Gone with the Wind”, de 1939181.

A Lost Cause é um exemplo de memória pública, em que a nostalgia de um

passado idealizado é trazida à tona, e demonstra que apesar de não receber apoio acadêmico,

continua sendo parte importante da cultura sulista e lembrada de forma geral pela cultura

popular americana. Além disto, ela também é importante para demonstrar toda a disputa que

existia na segunda metade do século XIX, pela memória nacional e pelo controle do passado

que seria usado em sua construção.

8- Industrialização e imigração

A partir da segunda metade do século XIX, principalmente após a Guerra Civil, e

até a Primeira Guerra Mundial, houve, nos Estados Unidos, um forte movimento, em diversos

178 FRANKLIN, John Hope. Raça e História: Ensaios selecionados (1938-1988). Rio de Janeiro: Rocco, 1989. Pág.83. 179 BLIGHT, David. Race and Reunion. Massachusetts: Harvard University Press, 2001. Pág. 266. 180 GALLAGHER, Gary W.; NOLAN, Alan T. The Myth of the Lost Cause and Civil War History. Indianapolis: Indiana University Press, 2000. Pág. 27. 181 FONER, Eric. Forever Free: The Story of Emancipation & Reconstruction. New York: Vintage Books, 2005. Pág. 23.

55

campos, de revalorização do período colonial, em especial o da Nova Inglaterra. Na política,

era preciso criar um passado comum em que as raízes do verdadeiro americano fossem

plantadas. Esta valorização, e recuperação da colônia, se deu na historiografia, nas artes e na

arquitetura. A Guerra Civil foi um marco e um momento importante de afirmação da nação,

como já mencionado acima. Outros fatores, no entanto, também ajudam a entender este

movimento e sua importância na produção artística trabalhada na pesquisa.

A industrialização nos Estados Unidos começou antes e prosseguiu durante a

Guerra Civil, mas, após o conflito, há uma explosão industrial no país. Muitos historiadores

creditam isto à Guerra Civil. Outros, no entanto, defendem que as consequências da Guerra

foram mais políticas que econômicas182. Embora este crescimento não tenha sido excepcional,

uma vez que ele também ocorria em países como Alemanha e Japão, nos Estados Unidos ele

se deu em uma escala maior e foi responsável por uma mudança profunda na cultura

nacional183. O país experimentou, em um curto espaço de tempo (principalmente entre a

Guerra Civil e o final do século), uma série de transformações econômicas e sociais. “[...]

Uma sociedade essencialmente rural tornou, repentinamente, uma complexa sociedade

urbano-industrial com todos os problemas decorrentes desta transformação.” 184.

Junto a esta rápida industrialização, entre os anos de 1870 e 1900, começam a

chegar à “terra das oportunidades” - e em busca do “sonho americano” -, imigrantes de

diversas partes do mundo. Mais de 20 milhões de pessoas vindas principalmente da Europa e

da Ásia chegaram ao país. Isto, somado ao crescimento vegetativo, fez com que a população

quase dobrasse no período, passando de 40 milhões para cerca de 76 milhões185.

Esta série de mudanças que ocorriam simultaneamente no país no final do século

XIX fez com que este período ficasse marcado por uma forte insegurança social. Além de

criar mecanismos que unissem o país recém-dividido, era necessária também uma memória

nacional que identificasse os “verdadeiros americanos”. É neste contexto que se procura a

tradição americana.

182 SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990. Pág. 215. 183 Idem, Ibidem. Pág. 214. 184 OLIVEIRA, Lúcia. Americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. Pág. 132. 185 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 153.

56

“[...] Seria o europeu transplantado, o puritano da Nova Inglaterra, o sulista de antes da Guerra Civil, o homem da fronteira ou o aventureiro, o yeoman jeffersoniano, o urbano hamiltoniano, qual seria afinal a tradição unificadora?” 186

A industrialização, a imigração, uma série de mudanças culturais bruscas levou ao

crescimento do interesse pela história cultural americana, em especial pela história colonial, o

que fez com que surgissem muitos movimentos de recuperação e revalorização da colônia,

conhecidos como Colonial Revival. Isto fez com que mitos de fundação, como o

Thanksgiving, fossem recuperados, representados e atrelados a uma memória nacional que

estava sendo consolidada. Como afirma Lúcia L. Oliveira:

“A memória nacional surgiu como resposta ao crescimento rápido, ao processo de mudança social e econômica por que passou o país no final do século XIX. Simultânea à memória nacional, aconteceu a emergência de um sentido de pertencimento local [...]”187

9- Expansionismo no século XIX: A Fronteira e o Destino Manifesto

O puritanismo teve um papel importante na construção da memória nacional

norte-americana. Ainda que não tenha sido a tradição religiosa hegemônica, ela permaneceu,

desde o período colonial, no imaginário e na retórica. Além disto, o puritanismo é um traço no

desenvolvimento do conceito de religião civil. No século XIX, no entanto, ele se tornou

matriz de duas das ideias mais importantes política e culturalmente do país: o Destino

Manifesto e a tese da Fronteira. Elas nos ajudam a compreender metáforas, questões e

conceitos que também aparecem e são objetos das pinturas históricas que analisamos, uma

vez que foram desenvolvidas no mesmo contexto.

As metáforas religiosas já utilizadas no século XVII com a chegada dos

peregrinos à Nova Inglaterra - como a da cidade sobre a colina, a do povo escolhido e da

excepcionalidade - são todas recuperadas durante o século XIX para justificar a expansão

territorial dos Estados Unidos. A chamada doutrina do Destino Manifesto é usada (nestas

palavras, porque a ideia já existia) pela primeira vez em 1845 (foi escrita em 1839, mas só

publicada em 1845), pelo jornalista de Nova York, John L. O´Sullivan em sua revista

Democratic Review, no ensaio “Annexation”, exigindo que os EUA admitissem o Texas na

União188. “Nosso Destino Manifesto atribuído pela Providência Divina para cobrir o

186 OLIVEIRA, Lúcia. Americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. Pág. 137. 187 Idem, Ibidem. Pág. 158-159. 188 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 68.

57

continente para o livre desenvolvimento de nossa raça que se multiplica aos milhões

anualmente.” 189

A ideia de missão e destino que se converteu na doutrina política do Destino

Manifesto serviu, a princípio, de justificativa para o expansionismo norte-americano em

direção ao Oeste, mas que logo passou a englobar fronteiras cada vez mais distantes, tanto em

termos geográficos como ideológicos190. Como afirma Fernando Catroga, esta doutrina:

“[...] Em termos concretos, reivindicava-se o direito de os EUA ocuparem todo o Continente, em nome da realização dos valores consignados nos seus textos fundadores. Com isto, o conceito sintetizava as promessas do messianismo secular, há muito semeadas pela religião civil.” 191

Em 1872, o pintor John Gast apresentou ao público a pintura American Progress.

Uma das mais famosas pinturas do século XIX nos Estados Unidos, é uma espécie de alegoria

da ideia de Destino Manifesto. No centro da imagem encontra-se uma mulher, Colúmbia, de

cabelos claros, vestida de forma clássica, que está guiando os americanos e levando o

progresso ao Oeste. Ela puxa o fio do telégrafo e guia pioneiros, fazendeiros, mineiros,

vagões e trilhos à nova terra192.

O quadro é dividido entre a parte clara e escura. O sol vem do leste, onde é

possível ver a cidade produtiva, a civilização e a liberdade que são levadas aos cantos mais

sombrios, ao oeste, onde é possível ver as Montanhas Rochosas, espantando a barbárie

representada por ursos, lobos, bisões, cãos selvagens e indígenas, a wilderness, ideia que

trabalharemos mais adiante.

O progresso vem junto com as estradas de ferro e as cidades sendo construídas193.

Há ainda, brancos cultivando a terra do lado direito, isso os daria o direito sobre ela. Ao fundo

existe um porto, provavelmente o de Nova York.

189SULLIVAN, J. “The whole of Oregon or none”. New York Morning News, 27 dez. 1945. 190 FONSECA, Carlos. “Deus Está do Nosso Lado”: Excepcionalismo e Religião nos EUA. Contexto internacional. Rio de Janeiro, vol. 29, no 1, janeiro/junho 2007, p. 149-185. Pág. 173. 191 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 68. 192 MOUNTJOY, Shane. Manifest destiny: westward Expansion. Milestones in American History. Infobase Publishing. New York, 2009. 193 SCHILLING, Voltaire. América: A história e as contradições do império. Porto Alegre: L&PM, 2004. Pág. 81-82.

58

Figura 1: GAST, John. American Progress. 1872194

É possível articular a ideia de Destino Manifesto ao conceito de Fronteira,

elaborado pelo jovem historiador do Meio-Oeste americano, Frederick Jackson Turner. O

mito da fronteira foi alçado à condição de explicação histórica em 1893 graças à tese de

Turner, The Significance of the Frontier in America History195. Foi exposta pela primeira vez

em uma comunicação à American Historical Association, para historiadores que em geral

pertenciam a três escolas historiográficas: a romântica, a teutônica e a sulista do pós-Guerra

Civil, das quais Turner buscou elementos tanto de inspiração quanto de ruptura. Ele ofereceu,

com seu texto, uma nova maneira de pensar a história norte-americana em um momento de

profundas transformações. Sua proposta era enxergar na fronteira a origem da nação e, com

ela, marcava seu nome no mundo acadêmico americano196. Esta ideia, assim como a do

Destino Manifesto, está ligada ao contexto de expansionismo, uma vez que o autor a elaborou

194 GAST, John. American Progress, 1872. Óleo sobre tela, 12 ¾” x 16 ¾”. Disponível em: http://www.loc.gov/library/libarch-digital.html. Acesso em: 24/03/2017. 195AZEVEDO, Cecília. O sentido de missão no imaginário político norte-americano. Revista de História Regional 3(2) 77-90, Inverno 1998. Pág. 79. 196TONETE, Leandro R. A Fronteira de Frederick Jackson Turner. Uma Nova História, uma nova Historiografia. Revista Latino- Americana de História. V. 5, n. 16, Dez/2016. Pág. 60.

59

levando em conta o papel que a expansão para o Oeste trouxe para formação do caráter

americano197.

A fronteira é mais do que uma demarcação topográfica ou geográfica - o conceito

se refere à existência de uma linha invisível198, que é o ponto de encontro entre a civilização e

a selvageria199. A existência desta fronteira foi a responsável por modelar os valores

essenciais do caráter nacional americano200. Para Cecília Azevedo, Turner inverte as

interpretações hegemônicas naquele momento, uma vez que, para ele, a origem da democracia

e identidade norte-americana não estava na Nova Inglaterra, mas na experiência móvel, que

até o final do século XIX avançou para o Oeste201.

O autor deixa de lado a tradicional linha de interpretação da história americana,

que via nos conflitos entre Norte antiescravista e Sul escravista a chave de explicação do

presente, e afirma que as relações entre Leste e Oeste eram fundamentais para a compreensão

dos Estados Unidos202. Ele ignora a escravidão, o negro e todo o legado do sistema

latifundiário, bem como as rupturas políticas, sociais, econômicas e culturais causadas pela

Guerra Civil. A dimensão geográfica tem mais peso do que análises sociais ou raciais203. A

ideia de Fronteira implicaria uma visão linear da história, aberta para um futuro sempre mais

grandioso. Para Turner, o individualismo, o igualitarismo e o nacionalismo tiveram origem

em um Oeste que sempre se afastava para mais longe.

Em seu texto, o autor afirma que, naquele momento (1893), a fronteira em

movimento havia chegado ao fim, as terras livres do Oeste já haviam sido ocupadas e

iniciava-se aí um novo período da história americana204. Para Catroga, além da conjuntura

histórica que forjou este conceito, o termo constitui uma espécie de metáfora da

autocompreensão da América, uma linha divisória entre a civilização e a barbárie, um lugar

197 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 70. 198TURNER, Frederick. J. The Significance of the Frontier in America History. New York: Yale University Press, 1994. Pág. 32. 199 Idem. Ibidem. Pág. 33. 200 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 70-71. 201AZEVEDO, Cecília. O sentido de missão no imaginário político norte-americano. Revista de História Regional 3(2) 77-90, Inverno 1998. Pág. 79. 202 PRADO, Lígia C. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Pulo: EDUSP, 1999. Pág. 201. 203TONETE, Leandro R. A Fronteira de Frederick Jackson Turner. Uma Nova História, uma nova Historiografia. Revista Latino-Americana de História. V. 5, n. 16, Dez/2016. Pág. 64. 204TURNER, Frederick. J. The Significance of the Frontier in America History. New York: Yale University Press, 1994. Pág. 57.

60

móvel de encontros e de conflitos205. A expansão para o Ocidente seria uma continuação da

cidade sobre a colina do século XVII. O modelo explicativo da fronteira foi e é bastante

refutado, principalmente pela acusação de que seu trabalho possuía uma deficiência quanto à

base empírica e pelo fato de o autor não ter escrito nenhum grande trabalho sobre o tema, e

sim pequenos artigos e ensaios206. Além disto, a inexistência de qualquer citação da

colaboração da raça negra para a constituição da identidade norte-americana também é um

ponto bastante criticado. Entretanto, a:

“[...] persistência deste modelo explicativo, apesar de toda a crítica a que já foi submetido, é, por si só, uma demonstração de seu poder como expressão do mito, dos sentimentos e dos valores de muitos americanos em relação à experiência nacional.”

207

10-Escola do Rio Hudson x Pinturas Históricas

Na primeira metade do século XIX, as pinturas que retratavam a natureza norte-

americana se tornaram muito populares. Alguns aspectos que as diferenciam das pinturas

históricas da segunda metade do século são interessantes de serem pontuadas, ainda que

ambas possuíssem ligações com a formação de uma memória e identidade nacional.

A exaltação da natureza selvagem a ser desbravada já estava presente nos textos e

sermões dos puritanos no século XVII, mas ganhou ainda mais força no começo do XIX. Os

norte-americanos teriam descoberto a jovem e pura wilderness, o atributo primordial da

natureza que seria inspiradora de uma grande cultura208. Para eles, a natureza americana é

anterior à chegada dos homens, é o novo Éden antes da queda, a terra prometida que lhes

havia sido concedida por Deus. “[...] Nas paisagens intocadas pela mão do homem, que

guardavam um frescor virginal inigualável, não mais encontrado na Europa, era possível

sentir a mão de Deus [...]” 209.

Esta natureza americana exaltada era uma forma de contrapor à Europa em um

contexto de pós-independência, de firmar uma identidade frente à antiga metrópole. Esta

visão sobre uma natureza privilegiada por Deus estava alinhada à ideia de que uma nova

205 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 72. 206TONETE, Leandro R. A Fronteira de Frederick Jackson Turner. Uma Nova História, uma nova Historiografia. Revista Latino- Americana de História. V. 5, n. 16, Dez/2016. Pág. 70-71. 207 OLIVEIRA, Lúcia. Americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. Pág. 116. 208 PRADO, Lígia C. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Pulo: EDUSP, 1999. Pág. 187. 209 Idem, Ibidem. Pág. 188.

61

nação estava nascendo, um começo de uma nova história que rompia com o passado e

conectava-se ao futuro210.

No contexto pós-independência, estabeleciam-se relações diretas entre a natureza

e as instituições políticas e sociais211, e elas apareciam na literatura, nos escritos políticos e

nas artes. Neste cenário, era importante construir uma identidade nacional contrapondo e

reafirmando todas as qualidades que a ex-colônia possuía frente à sua antiga metrópole.

Muitos escritores e paisagistas mantinham um diálogo. Dentro deste contexto, um grupo de

pintores se tornou muito conhecido: a Escola do Rio Hudson. Este grupo foi a primeira escola

de pintura paisagista norte-americana e formou-se, de maneira geral, por modelos ingleses e

influenciada por mestres europeus do século XVII212. Estes pintores trabalharam na primeira

metade do século XIX e pintavam montanhas, paisagens de vales e rios213. Como afirma

Coelho:

“[...] os norte-americanos sofreram das muitas ambigüidades típicas dos habitantes de ex-colônias européias. Reverenciavam os padrões culturais da Europa, modelos diante dos quais se curvavam, mas ao mesmo tempo buscavam em sua natureza a base para a construção de uma positiva afirmação nacional. [...]”214

Estes pintores não eram uma escola no sentido convencional, já que seus

membros formavam um grupo vagamente coeso215. Embora os ateliês destes artistas fossem

em Nova York, muitos deles visitavam as regiões retratadas. Esta escola caracterizava-se pela

absorção dos padrões técnicos europeus, mas com temáticas “nacionais” 216, vários deles

viajavam à Europa a fim de conhecer lugares famosos da Antiguidade ou maravilhas naturais

da paisagem217.

Além da natureza selvagem e intocada, outra característica desta escola é a

dimensão do homem frente a esta paisagem, pois ele era sempre representado pequeno frente

a toda a natureza.

“[...] Já a natureza americana é uma natureza anterior à chegada dos homens, quando mais não seja porque o símbolo da eleição do povo americano e de sua missão providencial é a Terra Prometida que lhe foi concedida: evidentemente, com um

210 Idem, Ibidem. Pág. 188. 211 Idem, Ibidem. Pág. 189. 212 REYNOLDS, Donald. A Arte do Século XIX. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1985. Pág. 64-65. 213 PRADO, Lígia C. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Pulo: EDUSP, 1999. Pág.191. 214 Idem, Ibidem. Pág. 190. 215 REYNOLDS, Donald. A Arte do Século XIX. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1985. Pág. 65. 216 PRADO, Lígia C. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Pulo: EDUSP, 1999. Pág.191. 217 REYNOLDS, Donald. A Arte do Século XIX. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1985. Pág. 65.

62

lapso de memória nada desprezível: os índios. As pinturas de paisagens, tão numerosas entre os artistas americanos, exprimem assim o romance nacional tanto quanto as pinturas com temas propriamente históricos, estas mais raras” 218.

Na segunda metade do século XIX, outra categoria de pintura ficou muito

conhecida: as históricas. Elas retratavam cenas da história americana, também com intuito

político. Acreditamos que estas pinturas estavam em diálogo com o poder público que, desde

a Guerra Civil, tentava criar mecanismos para construir uma memória nacional que unisse o

país em torno de um passado em comum. Agora, diferentemente das pinturas do Rio Hudson

que tentavam criar uma identidade americana em contraposição ao colonizador, o objetivo era

criar um passado com características em comum. Por isto, havia uma ênfase no período

colonial, em especial o da Nova Inglaterra, e em mitos fundadores, como o Thanksgiving e a

Pocahontas.

Estas duas escolas de pinturas, ao optarem por temas “nacionais”, possuíam uma

diferença fundamental: enquanto uma pintava a ruptura com o passado, a outra optou pela

pacificação, em um contexto de unificação nos pós-Guerra Civil. Embora o discurso do

excepcionalismo estivesse nas duas, ele se apresentava de formas diferentes. A natureza da

Escola do Rio Hudson era única e totalmente diferente de como ela se apresentava na Europa.

Para as pinturas de temas históricos, no entanto, a raiz inglesa era importante, embora ela

tenha passado por uma purificação na travessia dos primeiros peregrinos.

218 JOUTARD, Philippe. “Memória e identidade nacional” (p. 59-78). In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo. (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 75.

63

Figura 2: COLE, Thomas. Gelyna ou View near Ticonderoga219

A representação do homem frente à natureza também se dá de forma diferente.

Enquanto na Escola do Rio Hudson, ele é minúsculo frente à grandiosidade da paisagem,

como se pode observar no quadro de Cole, nas pinturas históricas é o inverso - a natureza

aparece, mas ela é secundária diante das personagens humanas e acontecimentos históricos, a

paisagem é apenas um complemento, já que, seguindo uma série de metáforas bíblicas, é o

homem que deve dominá-la, e não o contrário. Além disto, as pinturas do Rio Hudson eram

geralmente criadas a partir da observação das paisagens. As outras, no entanto, eram

concebidas por meio das narrativas dos episódios.

.

219 COLE, Thomas. Gelyna ou View near Ticonderoga, 1826-1828. Óleo sobre tela, 24’ x 34 1/2’. Disponível em: http://www.loc.gov/library/libarch-digital.html. Acesso em: 24/03/2017

64

CAPÍTULO 2.

EM BUSCA DE NOSSAS RAÍZES? REPRESENTAÇÕES DA COLÔNIA PURITANA NO SÉCULO XIX

“Há legados poderosos e duradouros do domínio colonial europeu sobre as Américas, traços que aparecem na forma de objetos mundanos tais como cercas e sebes, nomes de ruas e constelações, formas de organização nacional, locais e maneiras que cada nação americana escolhe para celebrar o momento fundador de sua história. Os legados do colonialismo permanecem conosco hoje, grande parte deles sendo lembretes invisíveis de um passado que começou há mais de quinhentos anos.” 220

1-O uso político das imagens

Como já mencionado, desde a segunda metade do século XIX e até o começo do

XX, os Estados Unidos passaram por uma série de acontecimentos e mudanças políticas,

econômicas e culturais, o que fez com que aumentasse o interesse pelo passado norte-

americano, em especial pela história colonial, fazendo surgir ou reacendendo movimentos de

revalorização deste período. Estes interesses e movimentos também estavam presentes nas

artes, e várias pinturas históricas foram produzidas sobre o tema, que se tornaram muito

populares. Foram expostas nas mais importantes galerias de artes do país, até mesmo no

Capitólio. Ainda que não façam parte da criação de uma memória institucional, ou seja, que

não tenham sido diretamente produzidas (ou encomendadas) por um poder público, elas estão

em diálogo com a institucionalização de uma memória oficial, por meio de um passado

específico e, por este motivo, puderam ser usadas politicamente.

Estas pinturas com temas históricos ficaram bastante populares nos Estados

Unidos, e apesar de terem sido expostas em todo país, acreditamos que o que colaborou muito

para o grande alcance destas imagens foi o fato de muitas delas terem sido reproduzidas em

revistas, gravuras, calendários e livros escolares.

Toda escolha é política, e a opção por representar a colônia puritana da Nova

Inglaterra como seu modelo de fundação revela muito sobre a imagem que determinado grupo

tem de si. Muitas questões podem ser levantadas acerca desta escolha: Qual é esta

autoimagem? Por que ela reverbera até hoje na política norte-americana? Que aspectos são

220 SEED, Patricia. Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo (1492- 1640). São Paulo: Editora UNESP, 1999. Pág. 26.

65

reforçados ao optar-se por este passado? Por que, mesmo excluindo uma parte significativa da

sociedade, esta memória ainda encontra eco? Por que o Thanksgiving, que consideramos ser a

síntese de todos estes elementos, ainda é o feriado mais importante do país, sendo

comemorado inclusive por imigrantes ou praticantes de outras tradições religiosas? Tentamos

pensar estas questões a partir da análise das imagens escolhidas, bem como trabalhar com o

poder simbólico e memorialístico exercido por elas.

Como afirma o historiador Carlo Ginzburg: “[...] sempre que possível, o poder

secular se apropria da aura (que também é uma arma) da religião [...]” 221. Nos Estados

Unidos, isto é ainda mais palpável: mais do que uma se apropriar da outra, as duas instâncias,

política e religiosa, caminham praticamente juntas e é difícil saber quando uma começa e a

outra termina. A fé e a religião foram usadas, neste contexto, como instrumentos de

legitimidade política. Ao recuperar episódios como a chegada dos peregrinos ou o

Thanksgiving e transformá-los em mitos de fundação, fica claro que os americanos não abrem

mão da matriz religiosa na construção do seu passado. Ela é parte fundamental da construção

da imagem de povo excepcional e escolhido por Deus.

2- O período colonial na Nova Inglaterra

Para tentar responder à pergunta “quem somos nós?” em um contexto de rápidas

mudanças políticas e culturais ou “de qual passado nós gostaríamos de ser herdeiros?”, os

americanos recorreram àquele pretérito que acreditavam ter sido plantada a sua “verdadeira

raiz”: o que teria dado origem ao povo excepcional no qual haviam se convertido. Quando se

institucionalizou um feriado como o Thanksgiving e criou-se uma memória sistemática sobre

os peregrinos e o Mayflower por meio de produções artísticas e culturais, ficou claro que o

passado escolhido foi o da colônia da Nova Inglaterra.

Esta memória baseia-se na chegada dos chamados peregrinos (Pilgrim Fathers),

que fugiam das perseguições religiosas na Inglaterra. Descontentes com a reforma religiosa

que consideravam moderada e acreditando que a Igreja não conseguiu se livrar dos dogmas do

catolicismo e da corrupção, os dissidentes se autodenominavam puritanos, já que queriam

“livrar a Igreja inglesa das práticas católicas romanas e ‘purificá-la’ mediante eliminação da

221 GINZBURG, Carlo. Medo Reverência Terror - Quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Cia das Letras, 2014. Pág. 59.

66

hierarquia de bispos e da simplificação do ritual “222. Embora estes puritanos não se

considerassem seguidores de João Calvino, uma vez que acreditavam que liam a Bíblia de

uma maneira própria, em uma perspectiva histórica, sua interpretação da Bíblia pode ser

chamada de calvinista223, uma vez que acreditavam na doutrina da predestinação e que a partir

dela deviam se esforçar para viver rigorosamente de acordo com a vontade de Deus e criar

uma comunidade que se espelhasse nos primeiros cristãos224.

O rei James expulsou um pequeno grupo de puritanos radicais, chamados

separatistas (porque queriam se separar da Igreja, e não apenas purificá-la), que se refugiaram

na Holanda, e, após alguns anos, decidiram migrar para América225. Assim, em 1620, um

grupo de 101 pessoas partiu a bordo do Mayflower rumo à Virgínia. Por conta do mau tempo

e das condições precárias de navegação, o navio aportou mais ao Norte, na região da Nova

Inglaterra (Plymouth e Massachusetts Bay) 226, em Cape Cod. Ainda dentro da embarcação,

41 homens adultos (entre puritanos e não puritanos - os strangers) assinaram o Mayflower

Compact227, um pacto de que seguiriam leis justas e iguais, que “[...] é sempre lembrado pela

historiografia norte-americana como um marco fundador da ideia de liberdade, ainda que o

documento dedique longos trechos à glória do rei James da Inglaterra” 228. Para Peter

Gardella, este documento é responsável por fundar religião civil americana.

“[...] The effect of Compact was purely political: it bound Separatists and non-Separatists alike into a “civill body politick”, able to elect a governor and to make laws. As the statement of a nondenominational government acting “in the name of God” the Mayflower Compact became a founding document of American Civil Religion.”229

Entre os puritanos que migraram para a Nova Inglaterra estava William Bradford,

que escreveu, entre os anos de 1630 e 1651, um manuscrito detalhado em que descreve todos

estes acontecimentos e os primeiros anos na colônia. O texto, de 270 páginas divididas em 222 SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990. Pág. 24. 223 MILLER, Perry. Errand into the Wilderness. New York: Harper & Pow, 1956. Pág. 49. 224 SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990. Pág. 24. 225 GARDELLA, Peter. American Civil Religion: What Americans Hold Sacred. New York, Oxford University Press, 2014. Pág. 32. 226 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 46. 227 KUPPERMAN, Karen O. (Org.). Major Problems in American Colonial History. New York: New York University Press, 2000. Pág. 85. 228 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 46. 229 GARDELLA, Peter. American Civil Religion: What Americans Hold Sacred. New York, Oxford University Press, 2014. Pág. 31.

67

dois livros, ficou conhecido por diversos nomes: The history of Plymouth Plantation, History

of the Plantation at Plymouth e William Bradford’s Jounal. O autor nunca fez nenhuma

tentativa de publicá-lo e o deu ao seu filho que, por sua vez, o deu ao seu neto. O manuscrito

foi emprestado ao longo dos anos a muitas pessoas, sendo, em 1669, referenciado por seu

sobrinho, Nathaniel Morton, em seu livro New England´s memorial e, posteriormente, o

reverendo Thomas Prince usou uma parte em seu livro Chronological History of New

England, em 1736.

De acordo com o editor William T. Davis, na introdução à edição de 1908, Prince

deu o manuscrito à biblioteca da Nova Inglaterra. No tempo em que ficou na biblioteca, o

livro foi referenciado por William Hubbard em History of New England e por Thomas

Hutchinson, 1767, em History of Massachusetts230.

Não se sabe ao certo o que teria acontecido ao manuscrito depois disto. Ele

desapareceu no final do século XVIII e assim permaneceu até ser encontrado na biblioteca de

Londres, por um bispo, em 1855. Davis sugere que Hutchinson pode tê-lo levado à Inglaterra

quando o usava em sua pesquisa231. Outras fontes, como um artigo na Revista Life, em 1946,

sugerem que o manuscrito foi roubado por soldados britânicos que ocuparam a igreja durante

a Revolução Americana. O editor Charles Deane, no prefácio da edição de 1856232, afirma

que o texto foi encontrado pelo reverendo John Barry, um historiador que trabalhava com o

texto no primeiro volume do seu livro History of Masschusetts. Durante sua pesquisa, Barry

encontrou passagens familiares em um livro publicado em Londres, no ano de 1846, A

History of the Protestant Episcopal Church in America, de Samuel Lord de Oxford. Deane

escreveu ao reverendo Joseph Hunter, um dos vice-presidentes da Sociedade de Antiquários

de Londres, perguntando se o documento era de fato o texto original de Bradford. Após a

análise do documento, Hunter afirmou não haver dúvida da autenticidade do manuscrito233.

Apesar da revelação, o governo britânico não se ofereceu para devolvê-lo, e

enviou apenas uma cópia a Boston, em 1855. A cópia acabou publicada logo no ano seguinte

e foi muito celebrada, principalmente por sua descrição do primeiro dia de Ação de Graças

em Plymouth, que na época era apenas tradição regional e não um feriado nacional. A

descoberta do manuscrito original gerou um debate entre estudiosos ingleses e americanos 230 BRADFORD, W. Of Plymouth Plantation. Boston: Wright & Potter Printing CO, 1908. Pág. XXX. 231 Idem, Ibidem. Pág. XXXII. 232 BRADFORD, W. Plymouth Plantation. Boston: Privately Printed, 1856. Pág. V. 233 Idem, Ibidem. Pág. VII.

68

sobre quem deveria ficar com o documento. A discussão se alastrou por mais 40 anos,

quando o governador de Massachusetts, Roger Walcott, enviou uma petição formal a um

tribunal de Londres pedindo o retorno do manuscrito. O governo britânico concordou

devolvê-lo em abril de 1897. O manuscrito se encontra agora no Massachusetts State House.

O texto foi republicado, depois de um longo tempo desaparecido, um pouco antes

da produção das pinturas que analisamos e isto é um fato relevante, pois acreditamos que este

texto serviu como fonte de época, um programa que os pintores estudavam para produzir as

imagens. Estes textos são narrativas dos eventos que são representados nas pinturas históricas.

3- O Mito da América

A colonização da Nova Inglaterra e o puritanismo mantiveram-se no imaginário

norte- americano ao longo dos séculos. Seu legado permaneceu principalmente na tradição

bíblica, que se perpetuou por meio da religião civil e dos símbolos e ritos traduzidos por meio

dela.

Para Sacvan Bercovitch, mais do que a tradição bíblica, o maior legado puritano

para a história norte-americana não é religioso, moral ou institucional, mas está no domínio da

retórica234, já que por meio da retórica assentada na Bíblia, em especial no Velho Testamento,

que se constituiu o “mito da América” 235.

A tipologia é uma forma particular de retórica e, de acordo com Bercovitch, é

especificamente ela que molda a imaginação puritana, já que: “[…] it is the historiographic-

theological method of relating the Old Testament to the life of Christ and through him, to the

doctrines and progress of the Christian Church”236. Esta tipologia estava presente em textos e

discursos dos primeiros puritanos que chegaram à Nova Inglaterra e continuaram sendo

reapropriadas nos séculos posteriores, principalmente na contrução de um discurso sobre uma

identidade americana.

A gênese desta retórica estaria nas pregações dos pastores puritanos desde sua

chegada à América, já que: “since Puritan intellectuals were thoroughly grounded in grammar

234 BERCOVITCH, Sacvan. The Puritan Origins of the American Self. New Haven: Yale University Press, 1975. Pág. 9. 235 BERCOVITCH, Sacvan. “A retórica como Autoridade: puritanismo, a Bíblia e o mito da América” (p. 141-158). In: Religião e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Tradução de Sérgio Lamarão. Pág.142. 236 BERCOVITCH, Sacvan. Typology in Puritan New England: The William- Cotton controversy ressessed. Revista American Quarterly, 1967. Pág. 167.

69

and rhetoric [...]”237. O mais famoso sermão deste tipo foi proferido por John Winthrop,

denominado A Model of Christian charity238, em 1630, que teria sido pronunciado na

embarcação Arrabela a caminho do Novo Mundo. Cabe ressaltar, que há, nesta construção

retórica, sempre um paralelo entre estas personagens e as bíblicas. Winthrop, por exemplo, é

identificado por Cotton Mather239 como o “Neemias240 Americano”241.

Neste sermão, Winthrop profere um dos principais tópicos do “mito da América”

- a de que ela seria como a “Cidade no Alto da Colina” (City Upon a Hill) 242, referência

direta ao quinto capítulo de Mateus, no Sermão da Montanha, que fala sobre o crente

individual, da peregrinação (pela graça) e da alma redimida. Segundo Bercovitch, Winthrop

preserva seu significado original, mas amplia sua aplicação ao incluir um desígnio profético.

Sua cidade sobre a colina é uma comunidade convocada por Deus para uma missão

histórica243.

“[...] nós perceberemos que o Deus de Israel está entre nós, e dez de nós poderão resistir a mil de nossos inimigos. O Senhor fará de nosso nome exemplo de glória e motivo de elogio (...), pois nós passaremos a ser como uma cidade no alto de uma colina; os olhos de todos estarão voltados para nós” 244

É importante ressaltar que a religiosidade e utilização da Bíblia para interpretar a

realidade mundana não era, nos séculos XVI e XVII, uma característica apenas dos puritanos,

ela teve um papel central na sociedade ocidental. Como afirma Christopher Hill, aceita em

todas as esferas da vida intelectual e não apenas um texto religioso, a Bíblia era o fundamento

de todos os aspectos da cultura, da vida política, da natureza, das relações sociais, agricultura

e colonização, e, quanto a isto, houve consenso entre a maioria dos protestantes245. Assim, a

237 MILLER, Perry. Errand into the Wilderness. New York: Harper &Pow, 1956. Pág. 3 238 WINTHROP, John. Conclusions for the plantations in New England. In: Old south leaflets. Boston: Directors of the Old SouthWork – Old South Meeting House Historical Museum, 1895. 239 Cotton Mather foi um pregador puritano, assim como seu pai e avôs, com grande influência social e política na Nova Inglaterra. Escreveu obras que se tornaram muito conhecidas, como Maravilhas do Mundo Invisível (associada a uma das causas dos Julgamentos de Salem) e Magnalia Christi Americana. 240 Neemias é, na Bíblia, a personagem responsável por reconstruir os muros e portões de Jerusalém. 241 BERCOVITCH, Sacvan. The Puritan Origins of the American Self. New Haven: Yale University Press, 1975. Pág. 11. 242 Catroga, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 29. 243 BERCOVITCH, S. “A retórica como Autoridade: puritanismo, a Bíblia e o mito da América” (p.141-158). In: Religião e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Tradução de Sérgio Lamarão. Pág. 145. 244 WINTHROP, John. Conclusions for the plantations in New England. In: Old south leaflets. Boston: Directors of the Old SouthWork – Old South Meeting House Historical Museum, 1895. 245 HILL, Christopher. A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Pág. 28.

70

crença em um Deus que atuava na sociedade e na história era comum a toda cristandade, seja

ela católica ou protestante.

Outra importante metáfora está presente que na retórica puritana e na sua

utilização ao longo dos séculos posteriores. Ela complementa a criação do “mito da América”

e auxilia na construção da ideia de excepcionalismo americano, a “missão na natureza

selvagem” (Errand into the wilderness)246. Segundo o historiador ambiental Roderick Nash:

“Wilderness was the basic ingredient of American Culture. From the raw materials of the physical wilderness, Americans built a civilization. With the idea of wilderness they sought to give their civilization identidy and meaning [...]”247

A natureza representava uma ameaça óbvia aos colonos recém-chegados e era

considerada um perigo (tentação) ao homem civilizado que poderia sucumbir à selvageria, já

que, em termos morais e religiosos, ela representava, ao mesmo tempo, um desafio e uma

missão248. Esta natureza selvagem (wilderness) seria a primeira fronteira a ser ultrapassada, de

acordo com Turner. A referência à wilderness já se encontra nos textos de Bradford, ao narrar

as primeiras impressões do novo mundo. Muitas vezes esta natureza é comparada ao deserto

que os hebreus tiveram que atravessar até tomar posse da Terra Prometida.

“[...] Se no período das descobertas, os europeus viam o novo mundo como paraíso, quando chegaram aos territórios desconhecidos e se depararam com as dificuldades do meio ambiente e perigos, como os ataques dos indígenas, a região passou a ser vista de forma temerosa. A solução era dominar o mais rápido possível o meio ambiente hostil.” 249.

Acreditando que possuíam a missão de transformar a barbárie em civilização, os

puritanos queriam fazer daquele “deserto” um jardim como o Éden teria sido um dia: “[...]

converter a natureza selvagem em áreas rurais era tarefa abençoada pelas escrituras, ordenada

por Deus e recomendada pelos primeiros líderes puritanos [...]” 250. O novo mundo era uma

benção confusa, ameaça e oportunidade entrelaçadas251. Os emigrantes da Nova Inglaterra

246 MILLER, Perry. Errand into the Wilderness. New York: Harper &Pow, 1956. 247 NASH, Roderick F. Wilderness & the American Mind. New Haven: Yale University Press, 1982. Pág. 11. 248 FONSECA, Carlos. “Deus Está do Nosso Lado”: Excepcionalismo e Religião nos EUA. Contexto internacional Rio de Janeiro, vol. 29, no 1, janeiro/junho 2007, p. 149-185. Pág. 159. 249 JUNQUEIRA, Mary A. Ao Sul do Rio Grande. Bragança Paulista: EDUSF, 2000. Pág. 75. 250 FONSECA, Carlos. “Deus Está do Nosso Lado”: Excepcionalismo e Religião nos EUA. Contexto internacional Rio de Janeiro, vol. 29, no 1, janeiro/junho 2007, p. 149-185. Pág. 161. 251 BERCOVITCH, S. “A retórica como Autoridade: puritanismo, a Bíblia e o mito da América” (p.141-158). In: Religião e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Tradução de Sérgio Lamarão. Pág. 144.

71

descobriram a América na Bíblia, o novo continente era legível nas promessas252, eles

acreditavam que aquela terra pertencia a eles antes de eles pertencerem a terra253. Eles eram:

“(...) um grupo escolhido por Deus para criar uma sociedade de "eleitos". Em toda Bíblia procuravam as afirmativas de Deus sobre a maneira como Ele escolhia os seus e as repetiam com frequência. Tal como os hebreus no Egito, também eles foram perseguidos na Inglaterra. Tal como os Hebreus, eles atravessaram o longo e tenebroso oceano, muito semelhante à travessia do deserto do Sinai. Tal como os hebreus, os puritanos receberam as indicações divinas de uma nova terra “254

O historiador Perry Miller, que se dedicou aos estudos do puritanismo por mais de

40 anos, analisa na coletânea Errand into the Wilderness esta metáfora. O termo “errand”,

segundo ele, teria dois significados: o primeiro trataria de uma curta jornada, na qual alguém

em posição inferior é enviado para transmitir uma mensagem a um superior255; no entanto,

após a Idade Média, passou a ter uma nova conotação, o termo passou a significar um próprio

negócio, ele trabalha em favor de si mesmo e não a serviço de alguém256. A pergunta a que o

autor tenta responder é qual dos dois significados podem ser atribuídos à empreitada da Nova

Inglaterra ou ainda se ambos poderiam estar atrelados.

Nenhum destes significados, no entanto, daria ao termo “errand” o sentido de uma

missão enviada por Deus aos puritanos, conotação adquirida posteriomente, uma vez que,

para Miller, eles nunca quiseram sair da Inglaterra, mas foram obrigados quando sua situação

religiosa se tornou insustentável257. Segundo ele, nem nos sermões de Braford é possível

encontrar este senso de missão258. No sermão proferido por Winthrop, o segundo significado

seria mais evidente que os demais, uma vez que estes separatistas vieram em uma companhia

de comércio, a Massachusetts Bay Company, realizar sua própria empreitada259. Só com a

Grande Migração, a partir de 1630, que o termo começa a ter este sentido para os puritanos

que deixavam a Inglaterra rumo ao Novo Mundo, adquirindo-o completamente somente nas

gerações e séculos seguintes, como forma de dar identidade a este grupo260.

“[...] Their errand having failed in the first sense of the term, they were left with the second, and required to fill it with meaning by themselves and out of

252 Idem, Ibidem. Pág. 148-149. 253 Idem, Ibidem. Pág. 150. 254 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 47. 255 MILLER, Perry. Errand into the Wilderness. New York: Harper &Pow, 1956. Pág. 3. 256 Idem. Ibidem. Pág. 3. 257 Idem. Ibidem. Pág. 3. 258 Idem. Ibidem. Pág. 4. 259 Idem. Ibidem. Pág. 5. 260 Idem. Ibidem. Pág. 15.

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themselves. Having failed to rivet the eyes of the world upon their city on the hill, they were left alone with America.”261

A cristandade, seja ela católica ou protestante, nos séculos XVI e XVII, partilhava

de expectativas escatológicas. Entendemos que o termo “escatologia” designa uma doutrina

do fim, ou seja, constitui um grupo de crenças relativas ao destino final do homem e do

universo262. Consiste em uma interpretação teleológica dos eventos que ocorrerão, com a

determinação divina, nos “últimos tempos”, quando a História terá terminado com o final

apocalíptico. A escatologia “foi se aperfeiçoando através dos escritos de natureza profética

que descreviam um apokalypsis, a ‘revelação’ dos acontecimentos do fim dos tempos” 263.

O apocalipse consiste em um gênero literário, no qual a escatologia está presente,

assim, existem diferentes tipos de escatologia apocalíptica264. De forma geral, os apocalipses

envolvem uma escatologia transcendente que visa a uma retribuição além das fronteiras da

história265. No entanto, é importante lembrar que o apocalipse “não é simplesmente um

“gênero conceitual da mente”, mas é gerado por circunstâncias sociais e históricas” 266.

As concepções escatológicas colocam entre o presente e o fim dos tempos, o

futuro, um longo período terreno, que seria uma espécie de prefiguração terrestre de um além,

do final dos tempos267. Este período, que é uma espécie de instalação do céu na Terra, deve,

segundo a Bíblia, no livro de Apocalipse (20, 1-5), durar mil anos268 e, por isto, tal corrente é

chamada de milenarismo. Este período que precede o fim propriamente dito se presta a um

programa político e religioso, que muitas vezes se mistura269. No entanto, as expectativas

escatológicas não eram necessariamente apenas milenaristas, mas podiam ser também

diretamente apocalípticas, isto é, baseavam-se em crenças relacionadas ao surgimento do

Anticristo, o segundo advento, a ressurreição dos mortos, o fim do mundo e o Juízo final270.

261 Idem. Ibidem. Pág.15. 262 LE GOFF, Jacques. “Escatologia”. In: História e Memória. 4 edição. Campinas: Ed. Unicamp, 1996. Pág. 325. 263 Idem, Ibidem. Pág. 327. 264 COLLINS, John. “O gênero apocalíptico”. In: A imaginação apocalíptica: Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo, 2010. Pág. 32. 265 Idem, ibidem. Pág. 32. 266 Idem, Ibidem. Pág. 46. 267 LE GOFF, Jacques. “Escatologia”. In: História e Memória. 4 edição. Campinas: Ed. Unicamp, 1996. Pág. 328. 268 Idem, ibidem. Pág. 328. 269 Idem, ibidem. Pág. 329. 270 CLARK, Stuart. Pensando com demônios. São Paulo: Edusp, 2006. Pág. 433.

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É possível afirmar que a escatologia foi um elemento central no pensamento

religioso nos dois lados da Reforma271. Ao identificar um no outro a figura do Anticristo ou

portador dos pecados que seriam sinais do final dos tempos, eles se aproximavam muitíssimo.

E ambos conheceram desenvolvimentos extraordinários das doutrinas escatológicas no quadro

das Grandes Descobertas e do Novo Mundo272. Em muitos casos, o encontro de europeus com

os ìndios desempenhou um papel importante nestes movimentos273.

Como esta visão é cara à maior parte dos pensadores puritanos, outra

interpretação, complementar à já mencionada retórica da wilderness, é que ela constituía uma

espécie de deserto, um lugar selvagem no qual a maldade e a corrupção não atingiram. Um

lugar propício à acolhida da Igreja do Santos274. O tema da “passagem no deserto”

transformou-se rapidamente na convicção de que a Nova Inglaterra seria o lugar onde Deus

instalaria seu reino terrestre275. Assim, para muitos puritanos, a escolha de instalar-se na

América provinha da esperança de que o milênio estava próximo276.

O historiador Jorge Cañizares-Esguerra, ao analisar as colonizações católicas e

puritanas, afirma que elas não eram tão distintas como a historiografia tinha feito parecer até

então, já que, para ele, católicos hispânicos e protestantes ingleses possuíam discursos

religiosos semelhantes para explicar e justificar a conquista e a colonização277. Para provar

seu argumento, Cañizares-Esguerra analisa a tipologia dos discursos de ambas. Para esta

pesquisa, interesse maior reside no seu trabalho com as fontes puritanas que elucidam as

metáforas mencionadas.

Segundo o autor, tanto católicos quanto puritanos compartilhavam a noção de que

o diabo teria escolhido o Novo Mundo como seu território, dominando a natureza e os

indígenas, de modo que a colonização era percebida como uma luta épica para derrotá-lo278. A

271 Idem, Ibidem. Pág. 442. 272 LE GOFF, Jacques. “Escatologia”. In: História e Memória. 4 edição. Campinas: Ed. Unicamp, 1996. Pág. 357. 273 Idem, ibidem. Pág. 357. 274 Idem, ibidem. Pág. 240. 275 Idem, ibidem. Pág. 241. 276 Idem, ibidem. Pág. 242. 277 CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Católicos y Puritanos em La Colonización de América. Stanford: Stanford University Press, 2006. Pág. 23. 278 Idem. Ibidem. Pág. 22.

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América era vista assim, como um falso paraíso que deveria ser dominado e transformado em

um jardim pela atividade dos heróis cristãos279.

As metáforas do jardim, muita cara aos puritanos, que enxergavam na América

terras improdutivas onde floresceriam plantações físicas e espirituais. Assim como os

israelitas lutaram contra os filisteus, eles também precisavam lutar por sua Canaã280.

Segundo o historiador Christopher Hill, para os protestantes ingleses o jardim

tinha um significado especial: ele deveria ser cultivado pelo trabalho e, para isto, seriam

necessários trabalhadores escolhidos por Deus que, desde o início, plantou jardins281. A

metáfora da jardinagem tornou-se de especial relevância na Nova Inglaterra. A jardinagem foi

o trabalho ao qual se dedicaram Adão e Eva antes que entrassem no mundo desértico que, no

Velho Testamento, estende-se do Egito à Terra Prometida, da Babilônia a Jerusalém282. Então,

para os puritanos, era necessário que se cultivassem jardins e tornassem as terras, que eles

consideravam improdutivas, plantações produtivas; que a natureza selvagem se convertesse

em jardim para que Deus fosse glorificado. Segundo Cañizares-Esguerra:

“Para los puritanos, El establecimiento de <<plantaciones>> en El Nuevo Mundo significaba establecer <<jardines>> vallados de los que los hereges estarían privados de acceso o serían fácilmente erradicados [...]”283

Assim, para o autor, os puritanos uniram a linguagem de jardinagem espiritual a

um discurso de eleição divina e a história de seus jardins espirituais a narrativas

milenaristas284. Esta linguagem continuou a ser compartilhada posteriormente nos Estados

Unidos, mesmo depois de terem deixado de ser colônia, e é possível encontrar seus ecos na

cultura e imaginário norte-americano.

Todo este discurso tipológico puritano chegou até nós, em geral por meio de

sermões proferidos por líderes políticos e religiosos daquela comunidade. E uma forma de

sermão muito utilizada por estes pregadores é chamada de Jeremiad. De maneira geral, neste

tipo de sermão, o pregador costumava relembrar o pacto entre Deus e os crentes, bem como a

279 Idem. Ibidem. Pág. 22. 280 Idem. Ibidem. Pág. 32. 281 HILL, Christopher. A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Pág. 186. 282 Idem. Ibidem. Pág. 186. 283 CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Católicos y Puritanos em La Colonización de América. Stanford: Stanford University Press, 2006. Pág. 274. 284 Idem. Ibidem. Pág.281.

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punição coletiva, caso as leis fossem transgredidas285. Podem ser considerados sermões deste

tipo aqueles proferidos publicamente em dias de jejum e oração, humilhação e de ação de

graças, renovação de uma aliança entre Deus e o povo286. A Jeremiad foi exaustivamente

pesquisada por Bercovitch. Segundo ele:

“[...] the American jeremiad, a mode of public exhortation that originated in the European pulpit, was tranformed in both form and content by the New England Puritans, persisted through the eighteenth century, and helped sustain a national dream through two hundred years of turbulence and change. The American jeremiad was a ritual designed to join social criticism to spiritual renewal, public to private identity, the shifting “signs of the times” to certain traditional metaphors, themes, and symbols. To argue that the jeremiad has played a major role in fashioning the myth of America is to define it at once in literary in historical terms [...]”287

Estes traços da Jeremiad se perpetuaram, segundo o autor, na retórica e oratória,

na literatura, no nacionalismo e na própria identidade norte-americana. Uma vez que ele

acredita que a Jeremiad sobreviveu ao declínio dos puritanos da Nova Inglaterra, ascendeu a

um ritual nacional de progresso contribuindo para o sucesso da república288.

Nós acreditamos, assim como Bercovitch, que este discurso tipológico do século

XVII permaneceu ao longo dos séculos posteriores (com intensidades diferentes de uma

época para outra), mas que houve uma intensificação dele na segunda metade do XIX, pela

série de motivos que já elencamos anteriormente. Por meio dos textos recuperados e

republicados neste período e pela popularidade que foi dada a eles, muito pintores produziram

obras artísticas inspiradas nestas narrativas. O que se deve levar em conta, como afirma

Flávia Tatsch, é que “[...] as imagens visuais nunca estão desconectadas de uma realidade

social [...]” 289, elas foram produzidas em um contexto específico e, mesmo que por vezes sem

intenção, colaboraram para produzir uma coleção visual sobre a memória oficial que estava

sendo construída.

Carlo Ginzburg, ao discutir a eficácia das imagens comparando as eróticas de

Ticiano e as sacras290, nos alerta que é necessário levar em conta alguns problemas que as

imagens podem apresentar ao ser analisadas, os quais adaptamos para a nossa análise: 1-

como atua a imagem, o que está sendo representado, se o espectador se identifica com a

285 OLIVEIRA, Lúcia. Americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. Pág. 132. 286 BERCOVITCH, Sacvan. The American Jeremiad. Wisconsin: Wisconsin University Press, 1978. Pág. 20. 287 Idem. Ibidem. Pág. 11. 288 Idem. Ibidem. Pág. 15. 289 TATSCH, Flávia Galli. A construção da imagem visual da América: gravuras dos séculos XV e XVI. 2011. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Pág. 274. 290 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Cia das Letras, 2014. Pág. 119.

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imagem e se o espectador se identifica com o que está sendo representado; 2- a realidade da

qual participa o espectador e a realidade representada na pintura, uma relação que é

condicionada pelos códigos (cultural e estilístico) em que a imagem é formulada; 3- O que é a

imagem? A intencionalidade que está por trás da imagem é, muitas vezes, mais difícil de

decifrar, elas assumem novos significados através do tempo, para além das intenções dos

autores/pintores291.

Acreditamos que uma obra de arte é também um monumento, já que ela é fonte de

representação e compreensão de acontecimentos históricos. Além disto, é um monumento

representativo da civilização na qual foi produzida292.

Um monumento é um sinal do passado, aquilo que pode evocá-lo e aquele que

tem o poder de perpetuação das sociedades históricas (voluntária ou involuntariamente) 293.

Neste sentido, ele é também um lugar de memória. Os “lugares de memória” são, como

resumiu Luiz Estevam Fernandes, locais materiais ou imateriais nos quais se encarnam ou

cristalizam as memórias de uma nação, no qual se cruzam memórias pessoais, familiares ou

de um grupo. Podem ser monumentos, igrejas, bandeiras ou quadros. Eles são, muitas vezes,

locais simbólicos que servem como identidade de um grupo294. Para Pierre Nora, a memória

caracteriza-se por ser uma experiência viva, imutável fundamental na existência das

sociedades primitivas295. Na sociedade contemporânea, marcada pelo esquecimento causado

pela rapidez de suas transformações, necessita-se da história para materializar a memória que

foi desconectada do grupo que a formulou296, pois, a partir da modernidade e com a

aceleração do tempo, o elo que unia presente e passado se rompeu, deixando o presente sem

passado. Assim, como não há mais memória, necessita-se de lugares. Desta forma, como a

história destruiria a memória, esta só pode se reconstruir através dos lugares. “[...] há locais de

memória porque não há mais meios de memória.” 297.

291 Idem, Ibidem. Pág. 120-121. 292 SCHLICHTA, Consuelo A. B. D. A pintura histórica e a elaboração de uma certidão visual para a nação no século XIX. 2006. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná. Pág. 12. 293 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1996.Pág. 510. 294 FERNANDES, Luiz E.O. Patria mestiza Memória e História na invenção da nação mexicana entre os séculos XVIII e XIX. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Pág. 21. 295 NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, 1993. Pág. 8 296 FERNANDES, Luiz E.O. Patria mestiza Memória e História na invenção da nação mexicana entre os séculos XVIII e XIX. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Pág. 21. 297 NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, 1993. Pág. 7

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Ainda que não partilhemos da noção hierárquica que Nora dá à história e à

memória, utilizamos sua definição de lugar de memória. Partindo desta definição, entendemos

que os lugares de memória envolvem batalhas pela memória do passado. Para se caracterizar

como lugar de memória, partindo da definição cunhada por Nora, eles têm necessariamente de

ter uma materialidade, serem simbólicos e funcionais. Acreditamos que as pinturas escolhidas

cumprem estes requisitos propostos pelo autor.

Estes lugares de memória respondem geralmente a demandas e interesses políticos

precisos, já que toda memória é, fundamentalmente, criação do passado, uma reconstrução

engajada do passado298. São nestes lugares de memória que o Estado e os diferentes grupos

sociais apreendem o mundo e reconstroem suas identidades299, já que:

“A memória é ativada visando, de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto, do presente). Reformar o passado em função do presente via gestão das memórias significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que a memória se expressa (das relíquias aos monumentos, aos arquivos. Símbolos, rituais, datas, comemorações...). Noção de que a memória torna poderoso (s) aquele (s) que gere (m) e controla (m).”300

4- A Colônia em imagens

Ao compor nossa série documental, optamos por dividi-la cronologicamente em

quatro grupos. Nosso recorte temporal se estendeu especificamente de 1843 a 1914.

Acreditamos que, ao dividi-la em grupos, dentro deste período, haveria uma maior dimensão

do que era mais importante pintar em cada uma destas épocas, e, embora o contexto maior de

grandes mudanças políticas e sociais, já trabalhadas anteriormente, seja comum à maioria

delas, há aspectos que são mais reforçados ou silenciados.

No primeiro grupo, analisamos quatro pinturas, produzidas no período anterior à

Guerra Civil, entre os anos 1843 e 1859. No segundo, as imagens se entendem do início do

conflito militar, em 1864, ao período de reconstrução no pós-guerra, em 1882. No terceiro, as

pinturas foram produzidas na virada do século XIX para o XX, entre 1899 e 1900. O quarto

grupo, analisado apenas no capítulo 3, é focado apenas em imagens do Thanksgiving, pintadas

nos anos que antecedem a Grande Guerra, entre 1912 e 1914.

298 BRESCIANI, Stella.; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (RES) Sentimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2009. Pág. 42-43. 299 Idem, Ibidem. Pág. 42. 300 Idem, Ibidem. Pág. 42.

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4- 1. Antebellum (1843- 1859)

O período que antecedeu a Guerra Civil foi particularmente importante para a

comunidade artística. Esta geração cumpriu os anseios das anteriores ao se articular como

uma classe de profissionais301, criando associações em diferentes estados, como Washington

ou Maryland302. Nova York se tornou a capital artística do país, que passou a contar com

revistas especializada em artes, como The Crayon ou a Cosmopolitan Art Journal303.

Na década de 1830, no final do governo de Andrew Jackson, o arquiteto John

Trumbull propôs anexar novas pinturas históricas à Rotunda, no Capitólio, com cenas

históricas que, segundo ele, despertariam emoções patrióticas a quem as visse, o que não

acontecia com as anteriores, uma vez que as pessoas não se reconheciam nelas304. Assim, em

1836, o Congresso aprovou a encomenda de quatro pinturas para a Rotunda, com o intuito de

expor os momentos históricos significativos para a fundação da república: Landing of

Columbus, de Vanderlyn; Bapstism of Pocahontas, de John Gadsby Chapman; Embarkation

of the Pilgrims, de Robert Walter Weir; a quarta pintura, encomendada a Inman, nunca foi

completada, pois o pintor morreu logo depois. Pinturas, portanto, que estabeleceriam o frágil

balanço entre um passado imperfeito e um futuro glorioso305.

A importância e o significado da figura de Colombo para os americanos já foi

mencionada. Ele representava a jornada entre o velho e o novo306. Nossa atenção focou-se no

painel produzido por Weir por ele representar os temas que se discutiram até aqui. No entanto,

a pintura produzida por Chapman também nos inquieta.

John Chapman nasceu na Virgínia, em 1808. Recebeu instrução de outro pintor

histórico, George Cooke, e estudou na Filadélfia e na Itália. Mudou-se posteriormente para

Nova York, onde virou membro da Academia Nacional de Design, se tornando um famoso

ilustrador de livros e revistas e realizando uma série de pinturas históricas. Recebeu, em 1837,

a incumbência de pintar uma cena histórica significativa307. Optou pelo batismo de

301 HARRIS, Neil. The Artist in American Society: The Formative Years (1790- 1860). Chicago: The University of Chicago Press, 1966. Pág. 254. 302 Idem. Ibidem. Pág. 255. 303 Idem. Ibidem. 304 BARKER, Virgil. American Painting: History and Interpretation. New York: The Macmillan Company, 1950. Pág. 463. 305 SEELLYE, John. Memory’s Nation: The Place of Plymouth Rock. Chapel Hill: UNC Press, 1998. Pág. 252. 306 Idem. Ibidem. Pág. 252. 307 BARKER, Virgil. American Painting: History and Interpretation. New York: The Macmillan Company, 1950. Pág. 464.

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Pocahontas. Anteriormente, o pintor já havia elaborado uma cena em que John Smith é salvo

por Pocahontas e, talvez por isto, tenha optado por este tema. O painel foi terminado em 1839

e exposto no ano seguinte308.

Figura 3: CHAPMAN, John. Bapstism of Pocahontas309

De acordo com o mito em torno do acontecimento, a índia teria sido a primeira a

ser batizada em um assentamento inglês em solo americano, entre os anos de 1613 e 1614. A

imagem serviria, a princípio, para reforçar a relação pacífica entre os europeus recém-

chegados e os indígenas que já habitavam o território, a fusão entre a cultura aborígene e a

europeia310. Isto é muito significativo de ser representado em um governo que promoveu a

remoção dos indígenas de seu território.

Na cena, a índia aparece usando uma roupa branca, assim como o Reverendo. Há

uma separação entre a parte clara, na qual ocorre o batismo, com pessoas trajando vestes

brancas, em oposição ao lado escuro, no qual se encontram os indígenas, a tribo de

Pocahontas, exibindo uma variedade de emoções. O pintor tenta representar a dimensão 308 https://www.aoc.gov/art/historic-rotunda-paintings/baptism-pocahontas. Acesso em 18/01/2018. 309CHAPMAN, John. Bapstism of Pocahontas, 1840. Óleo sobre tela. 12’ x 18’. Disponível em: https://www.aoc.gov/art/historic-rotunda-paintings/baptism-pocahontas. Acesso em: 18/01/2018. 310 SEELLYE, John. Memory’s Nation: The Place of Plymouth Rock. Chapel Hill: UNC Press, 1998. Pág. 252.

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trágica desta conversão (vista nas emoções negativas dos indígenas) e, em última instância, da

miscigenação. Apesar de a pintura retratar um momento de fundação diferente das imagens

dos peregrinos e do Mayflower, a dimensão religiosa prevalece aqui, assim como lá.

Figura 4: Esboço de John Chapman do quadro Bapstism of Pocahontas311

A pintura de Chapman, assim como a de Weir, foi impressa em notas de dinheiro

emitidas entre os anos de 1863 e 1875. Isto demonstra o quanto a memória pelo controle do

passado e da memória da fundação do país estava em disputa, antes da Guerra Civil, já que os

painéis representam dois destes momentos, e posteriormente na impressão destas imagens.

Robert Walter Weir nasceu em Nova York, no ano de 1803. Era um artista

autodidata, embora possuísse alguma instrução formal. Viajou pela Europa, onde fez cursos

de artes em Florença e Roma. Teve uma longa carreira como instrutor militar nos Estados

Unidos e, depois de aposentado, montou um estúdio em Nova York. Pintou e expôs uma série

de retratos, paisagens e algumas pinturas históricas312.

311Esboço de John Chapman do quadro Bapstism of Pocahontas. Original em: Capitólio. Disponível em: https://www.aoc.gov/art/historic-rotunda-paintings/baptism-pocahontas. Acesso em: 18/01/2018. 312 https://www.aoc.gov/art/historic-rotunda-paintings/embarkation-pilgrims. Acesso em: 18/01/2018.

81

O trabalho foi encomendado em 1837, concluído em 1843, e visto pela primeira

vez no Corps of Cadets e na Military Academy de West Point, onde o pintor era instrutor.

Esta se tornou sua pintura mais famosa. A princípio, ele queria pintar a cena do Mayflower

Compact, mas o tema já havia sido proposto para Samuel Morse313. A descrição usada por

Weir para criar a imagem foi a de Nathaniel Morton no New-England’s Memorial e o

Magnalia Christi Americana, de Cotton Mather314. Em 1857, Weir pintou uma versão menor

do quadro, que está hoje no Museu de Artes do Brooklyn. A pintura sofreu pequenas

mudanças na luz e aumentou o foco nas três figuras centrais. A imagem foi reproduzida em

diversas gravuras e impressa em notas e moedas dos EUA. Em 1860, a pintura foi danificada

por um raio durante a construção da nova cúpula. Em 1875, a Pilgrim Society encomendou

uma recriação da pintura com Edgar Parker, que se encontra no museu315.

313 SEELLYE, John. Memory’s Nation: The Place of Plymouth Rock. Chapel Hill: UNC Press, 1998. Pág. 252. 314 Idem, Ibidem. Pág. 253. 315 http://www.pilgrimhallmuseum.org/ce_history_paintings.ht. Acesso em: 23/03/2017.

82

Figura 5: PARKER, Edgar after WEIR, Robert. Embarkation of the Pilgrims316.

As características de excepcionalidade e as metáforas religiosas que estão

presentes nos mitos fundacionais e na cultura norte-americana são comuns à maior parte das

pinturas. A tela retrata a saída dos peregrinos da Holanda a bordo do navio Speedwell, em

1620, como está pintado na parte inferior central. Os passageiros deste navio se juntariam

posteriormente aos do Mayflower, depois de problemas da embarcação.

No centro da imagem, os homens aparecem fazendo orações pedindo proteção

divina, o que pode ser afirmado com base nos olhares elevados ao céu das personagens

centrais. A frase God with us aparece escrita na vela, no canto superior esquerdo. A Bíblia na

mão de William Breuster é um elemento significativo para a representação dos puritanos.

Como afirma Cañizares-Eguerra, os puritanos rechaçavam o uso da cruz pelos católicos, pois

consideravam uma prática de idolatria, no entanto, tomavam a Bíblia como um talismã317.

316 PARKER, E. after WEIR, R. Embarkation of the Pilgrims, Original: 1843/ Cópia: 1857/ Recriação: 1875. Óleo sobre tela, 12’ x 18’. Original: Capitólio/ Cópia: Brooklyn Museum of Art /Recriação: Pilgrim Hall Museum. Disponível em: http://pilgrimhallmuseum.org/ce_history_paintings.htm. Acesso em: 24/03/2017. 317 CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Católicos y Puritanos em La Colonización de América. Stanford: Stanford University Press, 2006. Pág. 163.

83

Para Bercovitch, os puritanos foram especialmente extremados em sua insistência no

princípio da sola scriptura318.

As mulheres e crianças aparecem ao redor, reforçando o mito de que estes

colonos viriam de forma definitiva para o novo continente, e não apenas para explorá-la,

como os católicos espanhóis. A ideia de que “[...] os puritanos vieram para a América não

para usurpar, mas para reclamar; não para deslocar uma cultura alienígena, mas para recuperar

o que já era seu por promessa [...]” 319. No lado esquerdo da pintura, é possível enxergar um

arco-íris, em um céu mais claro, simbolizando o pacto que Deus fez com estas pessoas, assim

como fez com Noé, após o dilúvio.

As cerimônias judaicas, em geral casamentos, são realizadas embaixo de uma

tenda, confeccionada em tecido e esticada por quatro varetas, que representa um novo lar.

Esta simbologia é recuperada na pintura, isto porque são incontáveis as associações entre os

puritanos e judeus, povo escolhido por Deus que vai ao encontro de sua nova morada, a Terra

Prometida.

As armas que aparecem em primeiro plano deveriam ser usadas para enfrentar os

perigos que os esperava no Novo Mundo. Ao fundo, estão pessoas se despedindo. O episódio

foi narrado por Bradford e utilizado por Morton em seu texto, e é perceptível como a narrativa

serviu de projeto para que o pintor produzisse sua obra:

“At length, after much travell and these debats, all things were got ready and provided. A smale ship[U] was bought, & fitted in Holand, which was intended as to serve to help to transport them, so to stay in ye cuntrie and atend upon fishing and shuch other affairs as might be for ye good & benefite of ye colonie when they came ther. Another was hired at London, of burden about 9. score; and all other things gott in readines. So being ready to departe, they had a day of solleme humiliation, their pastor taking his texte from Ezra 8. 21. And ther at ye river, by Ahava, I proclaimed a fast, that we might humble ourselves before our God, and seeke of him a right way for us, and for our children, and for all our substance. Upon which he spente a good parte of ye day very profitably, and suitable to their presente occasion. The rest of the time was spente in powering out prairs to ye Lord with great fervencie, mixed with abundance of tears. And ye time being come that they must departe, they were accompanied with most of their brethren out of ye citie, unto a towne sundrie miles of called Delfes-Haven, wher the ship lay ready to receive them. So they lefte ytgoodly & pleasante citie, which had been ther resting place near 12. years; but they knew they were pilgrimes,[V] & looked not much on those things, but lift up their eyes to ye heavens, their dearest cuntrie, and quieted their spirits. When they [37] came to ye place they found ye ship and all things ready; and shuch of their freinds as could not come with them [73]followed after them, and sundrie also came from

318 BERCOVITCH, Sacvan. “A retórica como Autoridade: puritanismo, a Bíblia e o mito da América” (p. 141-158). In: Religião e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Tradução de Sérgio Lamarão. Pág. 145. 319 Idem. Ibidem. Pág. 149-150.

84

Amsterdame to see them shipte and to take their leave of them. That night was spent with litle sleepe by ye most, but with freindly entertainmente & christian discourse and other reall expressions of true christian love. The next day, the wind being faire, they wente aborde, and their freinds with them, where truly dolfull was ye sight of that sade and mournfull parting; to see what sighs and sobbs and praires did sound amongst them, what tears did gush from every eye, & pithy speeches peirst each harte; that sundry of ye Dutch strangers yt stood on ye key as spectators, could not refraine from tears. Yet comfortable & sweete it was to see shuch lively and true expressions of clear & unfained love. But the tide (which stays for no man) caling them away yt were thus loath to departe, their Revēd: pastor falling downe on his knees, (and they all with him,) with watrie cheeks comended them with most fervente praiers to the Lord and his blessing. And then with mutuall imbrases and many tears, they tooke their leaves one of an other; which proved to be ye last leave to many of them.”320

As pessoas retratadas na pintura são personagens reais que aparecem no esboço

feito pelo pintor. O homem que está ao centro com a Bíblia na mão é William Breuster, o

governador Carver aparece de cabeça curvada e chapéu na mão, e o pastor John Robison, com

os braços estendidos, com o olhar elevado ao céu. Os dois últimos aparecem trajando roupas

tradicionais puritanas. De acordo com John Seelye, o fato de estarem sendo retratadas

diferentes pessoas em um semicírculo - e que, apesar de serem retratados como os três

personagens centrais, eles não estão em posições dominantes - daria ao quadro conotações

democráticas321, ainda que a composição piramidal central concentre as figuras de autoridade.

Ainda segundo Seelye, Weir opta por retratar o embarque ao invés do

desembarque porque este seria o exato momento em que ocorre o rompimento do velho

mundo corrupto e se inicia a purificação pela qual estes peregrinos passariam para preservar a

verdadeira palavra de Cristo322. Em uma “heroic resolve in facing o future ”323.

320 BRADFORD, W. Of Plymouth Plantation. Boston: Wright & Potter Printing CO, 1908. Pág. 72-73. 321 SEELLYE, John. Memory’s Nation: The Place of Plymouth Rock. Chapel Hill: UNC Press, 1998. Pág. 254. 322 Idem. Ibidem. Pág. 253. 323 Idem. Ibidem. Pág. 254.

85

Figura 6: Esboço de Robert Weir do quadro Embarkation of the Pilgrims324

A segunda pintura retrata o mesmo episódio que a anterior, a saída dos peregrinos

da Holanda rumo ao Novo Mundo. As personagens, no entanto, ainda não embarcaram. A

pintura foi produzida pelo artista inglês Charles Lucy.

O pintor nasceu em Norton Canon, na Inglaterra em 1814. Estudou em Londres e

Paris e se tornou famoso por suas pinturas históricas, ganhando muito prêmios. O quadro

Departure of the Pilgrims from Delft Haven foi finalizado em 1847, quando ganhou um

prêmio na competição do Westminster Hall. Ficou exposta na Royal Academy durante todo o

ano de 1848. Depois de sua morte, em 1873, suas obras foram vendidas em Londres. A

pintura se encontra atualmente no Pilgrim Hall Museum, em Massachusetts.

324 Esboço de Robert Weir do quadro Embarkation of the Pilgrims. Disponível em: https://www.aoc.gov/art/historic-rotunda-paintings/embarkation-pilgrims. Acesso em: 24/03/2017.

86

Figura 7: LUCY, Charles. Departure of the Pilgrims from Delft Haven325

Nesta imagem, a maior parte dos cânones permanece: o olhar elevado aos céus, a

Bíblia em destaque e a presença de homens e mulheres. As personagens oram e se despedem

umas das outras. O barco que os espera aparece ao fundo. A figura central é do reverendo

John Robinson (que não chegou a embarcar e morreu antes que pudesse ir à América),

reforçando o caráter religioso da empreitada.

Lucy pintou ainda outra cena dos peregrinos, em 1850, seu desembarque em Cape

Cod. A pintura foi perdida, mas sua reprodução se encontra no Museu do Patrimônio

Nacional, em Massachusetts. A imagem é uma das mais famosas e reproduzidas sobre o tema.

As personagens aparecem com os olhos elevados ou ajoelhados orando em forma

de agradecimento. Há presença de mulheres e crianças (com um brinquedo na mão, no lado

direito, ou no colo, dos lados esquerdo e direito). O barco, ao contrário da primeira cena do

pintor em que está próximo, aparece afastado, como se estivesse indo embora, sinal de que

325 LUCY, Charles. Departure of the Pilgrims from Delft Haven, 1847. Óleo sob tela. Original: Pilgrim Hall Museum, Plymouth, MA, Estados Unidos. Disponível em: http://pilgrimhallmuseum.org/ce_history_paintings.htm. Acesso em: 18/01/2018.

87

estes peregrinos não tinham a intenção de voltar, ainda que saibamos que o barco permaneceu

ali por todo o inverno.

O mais curioso destas imagens é a popularidade que elas alcançaram. Elas foram

produzidas por um pintor inglês, que pintava uma cena histórica de seu país, a colonização da

América, e, no entanto, foram compradas por americanos, estão expostas em museus no país e

são extremamente populares e consumidas como representação de um momento histórico que

fundou a nação.

Figura 8: LUCY, Charles. Landing of the Pilgrims326

Peter Frederick Rothermel nasceu na Pensilvânia, em 1812, ficou muito

conhecido por suas pinturas com temas históricos. Estudou primeiramente na Filadélfia, mas

se especializou na Europa, em Roma. Ao retornar aos Estados Unidos, foi eleito como

membro da Academia de Belas Artes da Pensilvânia.

A pintura, de 1854, retrata o desembarque dos peregrinos em Plymouth Rock e é

uma das principais obras da Kirb Collection of Historical Paintings, da Lafayette College Art

Collection.

326 LUCY, Charles. Landing of the Pilgrims, 1850. Disponível em: https://digitalcollections.nypl.org/items/510d47d9-9e29-a3d9-e040-e00a18064a99. Acessado em: 18/01/2018.

88

O desembarque dos peregrinos é um dos eventos mais simbólicos da construção

do mito de origem puritano. Nele se condensam e estão representadas várias metáforas cívico-

religiosas que continuaram a ser usadas nos séculos seguintes. No geral, estas pinturas sempre

reforçam as ideias de sacrifício, virtudes e coragem327, características que os americanos

acreditavam, posteriormente, ter herdado.

Figura 9: ROTHERMEL, Frederick. The Landing of the Pilgrims at Plymouth Rock328

O artista faz uma representação do desembarque dos peregrinos um pouco

diferente das demais. Embora os elementos citados anteriormente também estejam presentes

nesta pintura, as representações da cena adquiriram tons mais dramáticos. Enquanto imagens

como a de Charles Lucy parecem estáticas, a de Rothermel nos dá a impressão de uma

narrativa em movimento, desde o esforço da personagem no canto inferior direito para segurar

o barco, até o desembarque de Mary Chilton em meio às ondas do mar bravo.

327 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 45. 328 ROTHERMEL, Frederick. The Landing of the Pilgrims at Plymouth Rock, 1864. Óleo sobre tela, 105.7 x 139.4 cm. Original: Kirby Collection of Historical Paintings. Disponível em: https://artcollections.lafayette.edu/kirby-collection-of-historical-paintings/. Acesso em: 24/03/2017

89

Para John Seelye, a preocupação do pintor era tentar retratar um fato histórico,

mais do que reforçar as dimensões míticas do episódio329. Esta era, sem dúvida, uma

preocupação dos outros pintores. O artista, assim como os demais, mesmo que de forma

involuntária, também colabora para a construção imagética deste mito.

Ao contrário das demais pinturas, que utilizaram as narrativas de Bradford (ou

textos que as citavam) como fonte para seus quadros, Rothermel inspirou-se no poema de

Felicia Hemans, “The Landing of the Pilgrims in New England”, de 1825 para construir sua

obra.

The Landing of the Pilgrim Fathers in New England330

The breaking waves dashed high

On a stern and rockbound coast,

And the woods against a stormy Sky

Their giant branches tossed.

And the heavy night hung dark The hills and waters o’er,

When a band of exiles moored their bark

On the wild New England shore.

Not as the conqueror comes,

They, the true-hearted, came; Not with the roll of the stirring drums,

And the trumpet that sings of fame.

Not as the flying come,

In silence and in fear;—

They shook the depths of the desert gloom With their hymns of lofty cheer.

Amidst the storm they sang,

And the stars heard, and the sea:

And the sounding aisles of the dim woods rang

To the anthem of the free!

The ocean eagle soared

From his nest by the white wave’s foam:

And the rocking pines of the forest roared,—

This was their welcome home!

There were men with hoary hair Amidst that pilgrim band:—

Why had they come to wither there,

Away from their childhood’s land?

There was woman’s fearless eye,

Lit by her deep love’s truth; There was manhood’s brow serenely high,

329 SEELLYE, John. Memory’s Nation: The Place of Plymouth Rock. Chapel Hill: UNC Press, 1998. Pág. 98. 330 HEMANS, Felicia Dorothea. The Landing of the Pligrim Fathers, 1850. In: APPELBAUM, Diane. Thanksgiving: An American Holiday, An American History. New York: Facts and File, 1984. Pág. 2-3.

90

And the fiery heart of youth.

What sought they thus afar?

Bright jewels of the mine?

The wealth of seas, the spoils of war?— They sought a faith’s pure shrine!

Ay, call it holy ground,

The soil where first they trod:

They have left unstained what there they found,—

Freedom to worship God.

O poema foca-se em narrar os perigos e as dificuldades enfrentadas pelos

peregrinos na travessia e na chegada ao Novo Mundo. A noite tempestuosa e o mar agitado

estão presentes na pintura. É reforçada, no poema, a oposição entre os conquistadores que

teriam vindo apenas atrás de riquezas e aqueles que vieram com o verdadeiro coração em

busca de um santuário em que tivessem liberdade para praticar sua fé. No poema e na pintura,

é exaltada a determinação heróica dos peregrinos em enfrentar uma perigosa travessia em

nome da liberdade, característica que os americanos recuperam como sua.

A última pintura produzida antes da guerra e analisada na pesquisa retrata a

assinatura do Mayflower Compact. O tema deste quadro é muito caro aos americanos, pois

este documento teria sido a primeira “constituição” dos Estados Unidos, e como afirma

Sellers, “[...] foi um acordo de auto-governo, inspirado por ideias puritanas radicais sobre o

governo da Igreja. [...]”331. 41 homens adultos assinaram este documento, antes de

desembarcarem em Cape Cod: “[...] os colonos formavam um “corpo político civil”, que

governaria a todos segundo a vontade da maioria e prometia ‘toda devida submissão e

obediência’ às “leis justas e iguais” da colônia ”332. Na comunidade puritana estava a base da

democracia norte-americana e o Mayflower Compact seria a prova disto.

331 SELLERS, Charles. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990. Pág. 25. 332 Idem, Ibidem. Pág. 25.

91

Figura 10: MATTESON, Tompkins. Signing the Compact on Board the Mayflower333

Tompkins Matteson nasceu em Nova York, em 1813. Estudou na National

Academy of Design. Ficou conhecido por retratar em suas obras temas históricos, patrióticos

e religiosos. Ele pintou o quadro Signing the Compact on Board the Mayflower em 1853. Foi,

porém, gravada em 1859 por Gauthier e não se sabe o que aconteceu com a pintura original.

Como não se conheciam muitos métodos de conservação de pinturas no século XIX, não era

incomum que algumas obras de arte desaparecessem ou fossem manchadas, assim, muitos

pintores se dedicaram a produzir gravuras de quadros famosos, como é o caso deste e do de

Charles Lucy.

Esta foi a primeira pintura famosa sobre o a assinatura do Mayflower Compact334.

A imagem tem o objetivo de enfatizar a base civil e corporativa do episódio335. A pintura

claramente se inspira no quadro de Weir, a presença das armaduras no convés é quase uma

cópia da pintura dele. A presença da tenda também é um elemento em comum, com a

diferença que há uma luz providencial que invade o ambiente em direção ao documento, no

333 MATTESON, Tompkins. Signing the Compact on Board the Mayflower, 1853. Disponível em: http://www.loc.gov/pictures/item/2005684450/. Acesso em: 18/01/2018. 334 GARDELLA, Peter. American Civil Religion: What Americans Hold Sacred. New York, Oxford University Press, 2014. Pág. 32. 335 SEELLYE, John. Memory’s Nation: The Place of Plymouth Rock. Chapel Hill: UNC Press, 1998. Pág. 464.

92

centro da imagem, no ponto para o qual estão olhando as pessoas. William Brewster está com

a pena na mão prestes a assinar o documento, sua mão levantada representa a importância da

escrita para os puritanos336, além da presença da Bíblia no banco ao lado da mesa, elementos

essenciais no momento em que eles firmam o pacto.

4- 2. A Guerra Civil e o período de Reconstrução (1864-1882)

A classe artística tinha adquirido, às vésperas da Guerra Civil, certo prestígio

econômico e social. Inúmeras pinturas históricas e paisagens eram encomendas por

associações e organizações, e houve até mesmo um maior investimento por parte do poder

público. Nesta época, muitos ministros e entidades religiosas voltaram-se para as artes, de

forma geral337. O período entre a Guerra Civil e a reconstrução no pós-guerra foi marcado por

uma forte religiosidade, principalmente ligada aos assuntos públicos, de ambos os lados em

disputa - isto não significa negar que esta ligação já não existisse antes, ela existia, como já

colocamos. Não me refiro aqui a um reavivamento como o do século XVIII, mas talvez a um

apego maior à religião em um momento de crise e ruptura.

Esta religiosidade estava inserida em todo o universo cultural e histórico norte-

americano, e os artistas, de um modo geral, seguiram este movimento.

“[...] the increasing distance the profession stood the interest and enthusiasm of the mass public, and the growing distrust of their achievements were by products of this entente. But for a brief moment, America´s native school basked in the warmth of community approval and clerical blessing.”338

Esta forte religiosidade aparece mais intensificada nas pinturas do período. Ainda

que ela seja o tema central tanto das que foram analisadas antes quanto nas produzidas depois,

alguns elementos são mais presentes nas quatro produzidas neste momento.

A primeira delas, The Arrival of the Pilgrim Fathers, foi pintada em 1864 pelo

pintor espanhol Antonio Gisbert. Ele foi premiado por esta pintura com a medalha de Primeira

Classe na Exposição Nacional de Belas Artes no mesmo ano. Estudou em Madri e Roma,

além de ter sido diretor do Museo del Prado de 1868 a 1873. Posteriormente, por divergências

políticas, mudou-se definitivamente para Paris, onde morreu.

336 Idem. Ibidem. Pág. 465. 337 HARRIS, Neil. The Artist in American Society: The Formative Years (1790- 1860). Chicago: The University of Chicago Press, 1966. Pág. 298. 338 Idem. Ibidem. Pág. 300.

93

Figura 11: GISBERT, Antonio. The Arrival of the Pilgrim Fathers339

O reverendo aparece no centro da pintura, em posição de destaque com as mãos

estendidas e agradecendo a Deus por terem chegado ao seu destino. A Bíblia está em sua mão

direita. As outras personagens aparecem com os olhares elevados aos céus ou ajoelhadas em

sinal de gratidão. O Mayflower aparece ao fundo, como é comum a estas imagens.

Gisbert era conhecido por sua atuação política e por retratá-la em suas pinturas.

Para ele, os peregrinos e sua empreitada rumo à América, são a representação de um grito em

defesa da liberdade340. Ainda que o pintor seja espanhol e que sua história não se cruze com a

norte-americana, e mesmo que ela não tenha se tornado tão popular quanto as demais,

acreditamos que o quadro está em profundo diálogo com as outras pinturas que foram

produzidas no período. A presença dos peregrinos no imaginário norte-americano não

encontrou eco somente em seu teritório, mas também fora dele, o que pode ser comprovado

pelo trecho da narrativa de Bradford:

339GISBERT, Antonio. The Arrival of the Pilgrim Fathers, 1864. Óleo sobre tela, 58x80.5 cm. Coleção particular. 340https://www.museodelprado.es/aprende/enciclopedia/voz/gisbert-perez-antonio/fde17e75-6924-482f-8997-f1ad8b259484. Acesso em: 18/01/2018.

94

“Being thus arived in a good harbor and brought safe to land, they fell upon their knees & blessed ye God of heaven, who had brought them over ye vast & furious ocean, and delivered them from all ye periles & miseries therof, againe to set their feete on ye firme and stable earth, their proper elemente.341.

Em 1867, o pintor anglo-americano George Boughton pintou o quadro Pilgrims

Going To Church. O artista nasceu em 1833, na Inglaterra, mas mudou-se ainda criança para

Nova York, onde iniciou sua carreira artística, sendo inicialmente influenciado pelos pintores

da Escola do Rio Hudson. Estudou na Europa (na Inglaterra e na França), para onde se mudou

posteriormente. Embora tenha aberto seu estúdio em Londres, se tornou muito popular nos

Estados Unidos por suas pinturas que retratavam temas do período colonial do país342. Ele

expôs suas obras nas principais galerias americanas e se tornou membro da Academia

Nacional de Design de Nova York. Além disto, foi um ilustrador famoso, tendo inclusive

ilustrado os livros de Nathaniel Hawthorne (A Letra Escarlate, em especial) e os poemas de

Henry Wadsworth.

Esta pintura foi exibida na Royal Academy of Arts em Londres, em seguida foi

comprada por Robert L. Stuart, em 1868 e emprestada para Exposição do Centenário na

Filadélfia, em 1876. Foi amplamente reproduzida em gravuras nos Estados Unidos.

Figura 12: BOUGHTON, George Henry. Pilgrims Going to Church343

341 BRADFORD, W. Of Plymouth Plantation. Boston: Wright & Potter Printing CO, 1908. Pág. 94-95. 342 http://www.avictorian.com/Boughton_George_Henry.html. Acesso em: 18/01/2018. 343 BOUGHTON, George Henry. Pilgrims Going to Church, 1867. Óleo sobre tela, 110.5 x 170.2 x 10.2 cm. Original: New York Historical Society. Disponível em: http://www.nyhistory.org/exhibit/pilgrims-going-church-0. Acesso em: 18/01/2018

95

Neste quadro, o pintor retrata os peregrinos indo à Igreja. Na cena, que lembra

uma procissão, as pessoas atravessam a paisagem vasta coberta pela neve para chegar ao local

de culto. Dois homens portando armas vão à frente e outros dois, atrás, vão protegendo a

comunidade. O pastor, com a Bíblia à mão, e sua esposa seguem à frente guiando os demais.

Nesta imagem, é possível interpretar ainda outro aspecto muito caro aos puritanos:

a da salvação coletiva. Para eles, não era possível separar a vida espiritual da vida

comunitária344. Assim como deixaram a Inglaterra acreditando que a não-purificação daquela

religião representaria a condenação de toda a comunidade, era importante que, no novo

mundo, todos se esforçassem para a salvação coletiva.

Boughton, ao contrário dos demais pintores que optaram por representar os

aspectos dramáticos e heróicos da travessia (o mar revolto, os peregrinos ajoelhados

agradecendo ou desfalecidos pela viagem), retrata uma cena cotidiana, mas não menos

representativa. As famílias, agora estabelecidas em um novo continente onde suportam

invernos severos para praticar livremente sua religião, direito que teriam conquistado de

forma autônoma.

“[...] Boughton’s scene is intimate and private and conveys the fear, bravery, and piety experienced by this small congregation. The heroic moments, then, exist not only in battle scenes—as depicted in works such as Emanuel Leutze’s Washington Crossing the Delaware — but also in the nameless individual, or group of individuals, who faced visible and invisible threats to practice their religion and lead a life free from persecution [...]”345

Henry A. Bacon nasceu em 1839, em Massachusetts. Alistou-se no exército da

União em 1861, no qual foi artista de campo para o jornal ilustrado Frank Leslie, enquanto

servia na infantaria. Depois de ser ferido, foi estudar pintura figurativa em Paris, e foi aceito

na École National Supérieure des Beaux-Arts, onde estudou com Alexandre Cabanel. Em

1877, Bacon terminou o quadro The Landing of the Pilgrims.

344 MILLER, Perry. Errand into the Wilderness. New York: Harper &Pow, 1956. Pág. 142. 345 http://behindthescenes.nyhistory.org/pilgrims-going-to-church-thanksgiving-and-the-pilgrim-in-public-memory/. Acesso em: 18/01/2018.

96

Figura 13: BACON, H. The Landing of the Pilgrims346

A pintura retrata a chegada dos peregrinos a Cape Cod. A figura de destaque é

Mary Chilton, que teria sido a primeira pessoa a pisar na nova terra. Mary tinha 15 anos e

veio junto com seus pais, James e Susanna Chilton, que morreram no primeiro inverno. Na

pintura, John Alden aparece ajudando Mary a desembarcar347. A presença de mulheres e

crianças, mais uma vez, reforça a ideia de colônia de assentamento e da importância das

famílias na construção do Novo Mundo.

O momento do desembarque é associado à chegada dos judeus à Terra Prometida.

Os puritanos tinham em alta conta a ideia de que eles eram o novo povo de Israel. “em termos

simbólicos, a jornada rumo ao futuro Estados Unidos tomava assim a forma de um êxodo do

“novo Egito” (Inglaterra) e da fundação do Reino de Deus na nova “Terra Prometida” [...]

“348. A perigosa travessia do Atlântico seria como a travessia do Mar Vermelho ou do deserto

do Sinai (há associação com ambos). O desembarque do Mayflower seria a ruptura definitiva

346 BACON, H. The Landing of the Pilgrims, 1877. Disponível em: http://pilgrimhallmuseum.org/ce_history_paintings.htm. Acesso em: 24/03/2017. Original: Pilgrim Hall Museum 347 SEELLYE, John. Memory’s Nation: The Place of Plymouth Rock. Chapel Hill: UNC Press, 1998. Pág. 387. 348 FONSECA, Carlos. “Deus Está do Nosso Lado”: Excepcionalismo e Religião nos EUA. Contexto Internacional. Rio de Janeiro, vol. 29, no 1, janeiro/junho 2007, p. 149-185. Pág. 157.

97

entre o Velho e Novo Mundo, a Nova Canaã que os peregrinos estavam construindo. “[...] O

primeiro evento fundador dos americanos, os Pilgrim Fathers que deixam a velha Europa

cruzando o Atlântico, retoma aquele que funda Israel: a fuga do Egito e a travessia do mar

Vermelho [...]” 349.

Para Joutard, o papel dos pintores foi decisivo para reforçar estas ideias, já que a

presença de um vasto horizonte aberto e da vegetação selvagem (wilderness) foram essenciais

como representações da Terra Prometida e do Novo Éden350.

4- 3. O início do Século Americano (1899-1900)

Já passados trinta anos desde o fim da Guerra Civil e o período de reconstrução,

os Estados Unidos adentram o século XX como uma das principais potências econômicas do

mundo. Sua população cresceu vertiginosamente e cidades como Nova York e Chicago se

consolidaram como verdadeiras metrópoles351. Agora, com suas fronteiras geográficas

definidas, os americanos se lançaram a projetos imperialistas, visando ao controle de

territórios pelo mundo todo, mas em especial na região do Pacífico. Era necessário, mais uma

vez, expandir sua fronteira, mesmo que não fisicamente. Agora, mais importante do que criar

uma identidade que os mantivesse unidos, era espalhá-la e para o resto do mundo.

Entre o final do século XIX e o início do XX, dois pintores, Jean Gerome Ferris e

Edward Percy Moran, produziram uma série de pinturas históricas. Escolhemos quatro delas,

que retratam os temas trabalhados na pesquisa, duas de cada artista.

As duas primeiras pinturas são de Jean Gerome Ferris, o pintor, nascido na

Filadélfia, em 1863, descendente de uma família de pintores. Seu pai, tios e primos também

eram artistas famosos. Ele foi responsável e ficou muito conhecido por uma série de pinturas

históricas. A coleção conta com 78 imagens que retratam os momentos marcantes da história

dos Estados Unidos, The Pageant of Nation352 e foi considerada a maior série de pinturas da

história americana produzida por um único artista. A série completa destas imagens foi

349 JOUTARD, Philippe. “Memória e identidade nacional” (pág. 59-78). In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 71. 350 Idem, Ibidem. Pág. 72. 351 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 175. 352A coleção completa está disponível no site da Biblioteca do Congresso americano: http://www.loc.gov/pictures/item/2005692598/. Acesso em 23/03/2017.

98

exposta no Independence Hall, na Filadélfia, entre os anos de 1913 e 1930, e depois

transferida para o Congress Hall. Nos anos seguintes, foi exposta em diversos lugares, sendo

devolvida para família em seguida. Os direitos de reprodução foram vendidos pelo artista, e as

imagens se tornaram muitíssimo famosas por serem reproduzidas em gravuras, cartões

postais, calendários e propagandas.

O pintor, em sua coleção, retratou eventos que ele considerava marcantes para

narrar a história americana. Entre os momentos que fundam a nação, ele opta pela assinatura

do Mayflower Compact.

Figura 14: FERRIS, Jean Gerome. The Mayflower Compact 1620353.

De uma forma geral, nas quatro pinturas analisadas, há uma ênfase um pouco

menor nos aspectos religiosos se as compararmos às anteriores. As personagens se encontram

no convés do Mayflower para assinar o documento. Apesar da presença do reverendo, já não

há os olhares elevados aos céus, ou pessoas ajoelhadas; não há também a presença da Bíblia.

A mulher aparece na lateral, sem posição de destaque. No centro, os homens representam as

diferentes pessoas que vieram ao Novo Mundo a bordo da embarcação, ao invés da posição de

353 FERRIS, Jean Gerome. The Mayflower Compact 1620, 1899. Disponível em: http://www.loc.gov/. Acesso em: 24/03/2017. Acervo Particular.

99

destaque que os puritanos apareciam antes. Eles estão aparentemente discutindo e observando

a assinatura do documento por um deles.

No convés se encontram o reverendo, representando os puritanos, homens com

vestes mais sofisticadas e outros com mais simples. Há ainda a presença de um deles com

capacete e armadura, provavelmente um soldado, Miles Standish, representando os 41

homens que assinaram o documento. Bradford faz menção aos strangers em seu texto, além

disto, havia, com o grupo de peregrinos, criados e recrutas, enviados pelos investidores

londrinos que financiaram a viagem, na esperança de ganharem dinheiro com pesca ou

cultivo354.

A presença de pessoas de diferentes classes, religiões e profissões e a escolha por

retratar a assinatura deste documento, visto pelos americanos como um embrião da

constituição, reforçam as ideias de liberdade e democracia, tão exaltados pelos americanos.

Ao escolher este tema, o que o autor reafirma é que o início do que eles se tornaram estava lá,

na colonização da Nova Inglaterra.

A outra pintura escolhida, também de Ferris e pertencente à mesma coleção, é The

first Sermon Ashore, pintada e exposta no mesmo ano que a anterior.

354 GARDELLA, Peter. American Civil Religion: What Americans Hold Sacred. New York, Oxford University Press, 2014. Pág. 32.

100

Figura 15: FERRIS, Jean Gerome. The First Sermon Ashore355

O pastor aparece, neste quadro, no centro, no que parece mais uma exortação do

que uma oração de agradecimento, como nas imagens analisadas até aqui. Os colonos já estão

assentados, como é possível perceber pelas cabanas e pela fogueira, e agora se preparam para

explorar e enfrentar os perigos do Novo Mundo sob a benção do reverendo. Isto pode ser

depreendido pela presença de homens armados (há um deles ajoelhado em primeiro plano) em

todo o lado direito da pintura. No esquerdo, uma mulher aparece despedindo-se de seu

marido. A imagem evoca ainda, a figura de Josué, expulsando cananeus e filisteus de Canaã.

Ainda que, no século XIX, historiadores como William Prescott tenham

popularizado a imagem negativa dos conquistadores espanhóis em oposição aos colonizadores

britânicos356, nesta imagem é possível perceber semelhanças entre eles e as descrições dos

espanhóis. Não fosse pela bandeira inglesa e pelos trajes puritanos do pastor ao centro, esta

imagem poderia tranquilamente passar por uma representação da convocação para uma das

355 FERRIS, Jean Gerome. The First Sermon Ashore, 1899. Disponível em: http://www.loc.gov/. Acesso em: 18/01/2018. Acervo Particular. 356 CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Católicos y Puritanos em La Colonización de América. Stanford: Stanford University Press, 2006. Pág. 23.

101

cruzadas, mostrando que, como afirma Cañizares-Esguerra, puritanos e católicos, em suas

colonizações, não eram tão diametralmente opostos como muitos gostariam.

As duas últimas pinturas analisadas neste capítulo são de Edward Percy Moran.

Nascido em 1862, na Pensilvânia, o artista pertence à mesma família de pintores famosos de

Jean Gerome Ferris (os dois eram primos), e, assim como ele, dedicou-se a pintar temas

históricos. Estudou pintura com seu pai na Pennsylvania Academy of Fine Arts e na

Academia de Design, além de ter uma formação complementar em Londres e Paris. Mantinha

estúdios em Nova York e Long Island e expunha com frequência suas obras na National of

Design e na Brooklyn Art Association. Foi premiado em 1886 e 1888357. Ambas as pinturas

analisadas ficaram prontas e foram expostas em 1900. Elas encontram-se hoje no Pilgrim Hall

Museum. A primeira delas, The Signing of the Compact in the Cabin of the Mayflower,

também retrata a assinatura do Mayflower Compact.

Figura 16: MORAN, Edward Percy. The Signing of the Compact in the Cabin of the

Mayflower358

357 www.whitemoutainart.com. Acesso em: 23/03/2017. 358 MORAN, Edward Percy. The Signing of the Compact in the Cabin of the Mayflower, 1900. Disponível em: http://pilgrimhallmuseum.org/ce_history_paintings.htm. Acesso em: 24/03/2017. Original: Pilgrim Hall Museum.

102

Na pintura, Myles Standish ajuda William Bradford, que está com a caneta à mão.

William Brewster e John Cover, o governador, estão sentados à mesa, aparentemente

conversando. A assinatura do Mayflower Compact aparece em primeiro plano. No canto

direito, em segundo plano, estão as mulheres e crianças, mais uma vez reafirmando a presença

das famílias nesta expedição. As armas e soldados também estão presentes. Ao contrário da

imagem de Feris, os trajes aqui são militares ou mais sofisticados, no entanto, assim como ele,

não há um papel de destaque para a dimensão religiosa da empreitada, representada na figura

do líder religioso.

A presença dos livros e da variedade de personagens reforça a ideia de que os

imigrantes que vieram para os Estados Unidos eram letrados e democráticos, além de

corajosos desbravadores, e lutaram para conseguir sua liberdade. Neste quadro estão as bases

do imaginário norte-americano, e o Mayflower seria a prova disto. A outra pintura, também

do mesmo ano, retrata o desembarque dos peregrinos em Cape Cod.

Figura 17: MORAN, Edward. The Pilgrims Landing359.

359 MORAN, Edward. The Pilgrims Landing, 1900. Óleo sob tela, 23” x 29”.

103

Elementos como o vasto oceano ao fundo, a presença de mulheres e crianças e do

Mayflower estão na pintura, que, no entanto, se difere das demais pela ausência do ministro

religioso ou dos peregrinos agradecendo pela travessia.

Esta pintura opera com outro imaginário complementar ao que já foi trabalhado: o

do homem da fronteira. A base religiosa é semelhante, porém menos explicita. A ideia de que

o pai peregrino é o primeiro homem da fronteira é muita cara e simbólica aos americanos. Ele

representa o desbravador que, sem o auxílio do Estado, por uma iniciativa pessoal e esforço

individual, atravessou a primeira fronteira, o oceano, para conquistar o Novo Mundo e

construir a América.

104

CAPÍTULO 3.

A INVENÇÃO DE UMA TRADIÇÃO: O THANKSGIVING CRIADO NO SÉCULO XIX

“Celebrar es uma decisión política, no histórica, no historiográfica. Ergo, las sociedades, cuando celebran La história, no celebran pasado sino presente”.360

1-O primeiro Thanksgiving

A saída dos puritanos da Inglaterra, a travessia do oceano a bordo do Mayflower e

a chegada à região da Nova Inglaterra se tornaram parte de uma narrativa nacional, de uma

memória oficial que foi criada sobre o passado norte-americano a fim de unir um país por

meio de um projeto de nação que, na prática, até o século XIX, não havia sido exatamente

bem-sucedido.

No entanto, há ainda a complementação desta narrativa, o ponto que acreditamos

concentrar todo o simbolismo deste passado que foi reapropriado no século XIX, aquele que

se tornou o principal mito de fundação da história dos Estados Unidos: o Thanksgiving.

O imaginário norte-americano é permeado por mitos: no início da ocupação

existiam os pais peregrinos e o encontro de John Smith e Pocahontas; na Independência,

emergiram os pais fundadores, aqueles que romperam com a Inglaterra; na conquista do

Oeste, há o cowboy, desbravador da fronteira. Em momentos de grandes mudanças, o mito

emerge com sua força. Não é suficiente, para um historiador, criticar e desconstruir estes

mitos, é necessário se aprofundar na análise deles para tentar compreender seu poder na

construção histórica e cultural de identidades e memórias. É o que procuramos fazer ao

analisar o Thanksgiving.

“[...] Myth may clothe history as a fiction, but it persuades in capacity to help people act in history. Ultimately, its effectiveness derives from its functional relationship to facts.” 361.

360 TRILLO, Mauricio T. Historia e Celebración. México: Tusquets Editores, 2009. Pág. 23. 361 BERCOVITCH, Sacvan. The American Jeremiad. Wisconsin: Wisconsin University Press, 1978. Pág. 11.

105

O primeiro Thanksgiving teria ocorrido em 1621. Após a travessia a bordo do

Mayflower, os peregrinos chegaram e se estabeleceram na região da Nova Inglaterra, em

Plymouth. Metade do grupo que chegou ao novo continente não resistiu às doenças, à

desnutrição e ao frio do primeiro inverno362. Os sobreviventes, acreditando que Deus havia

dado forças especiais para que eles resistissem, antes da chegada do inverno seguinte

realizaram o Thanksgiving, ou a Festa de Ação de Graças, na qual agradeceram a Deus por

terem sobrevivido e celebraram sua primeira colheita no novo território. “[...] Junto com a

liberdade religiosa, celebrava-se a salvação e o nascimento de um povo [...] ”363, significados

que foram atribuídos ao episódio ao longo dos séculos posteriores.

É importante ressaltar, que povoar o Mayflower e toda a ocupação da Nova

Inglaterra apenas de puritanos separatistas era parte da construção mítica do episódio e do

silenciamento sobre os outros grupos que vieram a bordo da embarcação. A viagem, por

exemplo, foi financiada por uma companhia de comércio que mandou representantes para

garantir o sucesso da empreitada.

Na comemoração desse Thanksgiving, os colonos teriam utilizado a primeira

colheita de milho. Também faziam parte do cardápio o peru, ave nativa, e tortas de abóbora,

fruto cultivado no novo continente364. Para estas plantações e na pesca, os peregrinos tiveram

o auxílio de Squanto, índio que falava inglês365. Como forma de agradecimento, alguns índios

da tribo Wampanoag teriam sido convidados para a festa. Como afirma Cecília Azevedo:

“[...] O Thanksgiving representa sem dúvida uma afirmação ritual da vitória sobre a natureza (...) uma vitoria alcançada pela capacidade de se adaptar ao meio. O peru, animal nativo, e os cereais que os índios ensinaram os colonos a cultivar são a base dessa primeira ceia para a qual, em algumas versões do mito, os nativos foram também convidados a participar. Devora-se e ao mesmo tempo integra-se a natureza, os selvagens, a wilderness.” 366

362 SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990. Pág. 24. 363 AZEVEDO, Cecília. O sentido de missão no imaginário político norte-americano. Revista de História Regional 3(2) 77-90, Inverno 1998. Pág. 84. 364 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 46. 365 ADAMCZYK, Amy. On Thanksgiving and Collective Memory: Constructing the American Tradition. Journal of Historical Sociology, V. 15, N. e, 2002. Pág. 343. 366 AZEVEDO, Cecília. O sentido de missão no imaginário político norte-americano. Revista de História Regional 3(2) 77-90, Inverno 1998. Pág. 84.

106

De acordo com Paulo Ribeiro, o Thanksgiving representa um paradoxo histórico e

cultural, uma vez que ele é político e religioso ao mesmo tempo367. O feriado trata de uma

comemoração cívica e secular que não possui ligação oficial com religião alguma368, no

entanto, ela está ligada à ideia de missão/destino muito cultivada pelos puritanos e tão cara

aos americanos em geral. Apesar de não ser oficialmente religioso, ele carrega uma natureza

sagrada, “[...] capaz de reunir espiritualmente todo o povo americano através do tempo e do

espaço, dar sentido a sua história e invocar uma identidade [...] ”369.

2-A invenção de uma tradição para uma comunidade imaginada370

A primeira comemoração de Ação de Graças documentada ocorreu em 1578, onde

hoje é New Foundland, realizada por Martin Frobisher, com o intuito de agradecer o sucesso

de sua travessia371. Este, no entanto, não adquiriu o caráter mítico do Thanksgiving de 1621,

proclamado pelo governador William Bradford372. Seu relato, que ficou conhecido como o

primeiro Thanksgiving, está no livreto IV, do manuscrito conhecido como Mourt’s Relation:

A Journal of the Pilgrims at Plymouth373, de 1622.

O texto foi, em sua maioria, escrito por Edward Winslow, embora William

Bradford seja responsável pela primeira seção. O manuscrito foi produzido entre novembro de

1620 e novembro de 1621, e descrevia os detalhes dos acontecimentos a partir do

desembarque do Mayflower em Cape Cod, o estabelecimento dos colonos em Plymouth, as

relações com os indígenas e, por fim, o primeiro Thanksgiving. Ao compararmos este texto

com o Of Plymouth Plantation, escrito por Bradford, é possível perceber que a linguagem

utilizada é um pouco distinta. Eles narram praticamente os mesmos acontecimentos, mas o

texto de Winslow diz o que acontece com os homens quando eles enfrentam as dificuldades

naturais: clima severo, pouca comida e inimigos. No escrito de Bradford, estes

367 RIBEIRO, Paulo Rodrigues. O dia de ação de graças nos EUA: pressupostos religiosos na construção da identidade nacional norte-americana. Aedos no. 13 vol. 5, p. 132-147 - Ago/Dez 2013. Pág. 133. 368 Idem, Ibidem. Pág. 133. 369 Idem, Ibidem. Pág. 133. 370 O título faz referência aos autores Benedict Anderson e Eric Hobsbawm. Embora a teoria marxista contrarie a base teórica da pesquisa, acreditamos que representeantes do “marxismo inglês” como Hobsbawm, dão destque para uma instância cultural criadora de realidade, e não apenas ao seu papel ideológico de supressora das contradições econômicas. Assim, ele poderia harmonizar com a obra Anderson. 371 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 35. 372 Idem, Ibidem. Pág. 35. 373 BRADFORD, William; WINSLOW, Edward. Mourt’s relation or journal of the plantation ate Plymouth. Boston: J.K. Wiggin, 1865.

107

acontecimentos são descritos em uma perspectiva diferente374, com significados atribuídos a

Deus e sempre com alguma analogia bíblica.

Mourt´s Relation foi publicado pela primeira vez em Londres, em 1622375. George

Morton, puritano inglês, se mudou para Leiden, na Holanda, mas não embarcou para a

América com os primeiros colonos. Ele continuou organizando a publicação do jornal - por

isto o nome Mourt’s Relation. Em 1623, emigrou para a colônia, porém morreu no ano

seguinte. Seu filho, Nathaniel Morton, se tornou secretário da colônia e reimprimiu a seção do

primeiro Thanksgiving, do New England’s Memorial376.

O folheto foi resumido e teve pequenos trechos citados em outras publicações até

o século XVIII, quando o original se perdeu. Uma cópia foi redescoberta na Filadélfia, em

1820, e foi reimpressa inteira, em 1841. Em uma nota de rodapé, o reverendo Alexander

Young377 foi a primeira pessoa a identificar, no século XIX, 1621 como o primeiro

Thanksgiving378.

Embora o Thanksgiving continuasse sendo celebrado em alguns lugares dos

Estados Unidos, o feriado como é comemorado nacionalmente e conhecido atualmente só

adquiriu estes contornos e importância na segunda metade do século XIX. A

institucionalização deste feriado ocorreu concomitantemente à criação da memória nacional

norte-americana, no período em que o país tenta consolidar-se como uma nação.

Como bem colocou Janet Siskind, “[...] traditions are invented and nations

imagined [...] ”379. A frase é particularmente adequada à nossa pesquisa. Acreditamos que a

definição de nação como uma “comunidade imaginada”, cunhada por Benedict Anderson, é

aplicável aos Estados Unidos. Para o autor, uma nação é uma “comunidade política

imaginada” 380, que é imaginada ao mesmo tempo como limitada e soberana381. Uma nação é

mais do que apenas um território ou uma população, um governo ou a economia, é necessário 374BERCOVITCH, Sacvan (org). American Puritan Imagination: Essays in Revaluation. London: Cambridge University Press, 1974. Pág. 105. 375 BRADFORD, William; WINSLOW, Edward. Mourt’s relation or journal of the plantation ate Plymouth. Boston: J.K. Wiggin, 1865. Pag. XIII. 376 Idem, Ibidem. Pág. XIV. 377 Ministro Unitarista da Nova Inglaterra. Incluiu o Mourt´s Relation em sua compilação de documentos históricos chamada Chronicles of the Pilgrim Fathers. 378 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 35. 379 SISKIND, Janet. “The invention of Thanksgiving: a ritual of american nationality” (pág. 41-58). In: COUNIHAN, Carole. Food in the USA. New York: Routledge, 2002. Pág. 41. 380 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Lisboa: Edições 70, 2005. Pág. 25. 381 Idem, Ibidem. Pág. 25.

108

que ela tenha pressupostos em comum, que sejam compartilhados pela maior parte daqueles

que a compõe, é preciso que ela seja “imaginada”.

“É imaginada porque até os membros da menor nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem da sua comunhão [...]” 382.

De acordo com Anderson, a comunidade imaginada seria limitada porque

qualquer nação tem fronteiras finitas (ainda que elásticas). E seria soberana porque o conceito,

nascido na época do Iluminismo e da Revolução Francesa, pressupõe que o Estado soberano

seja o responsável por garantir a liberdade dentro de suas fronteiras383. A nação é ainda,

segundo o autor, imaginada como comunidade porque mesmo possuindo desigualdades, ela é

sempre pensada como uma entidade horizontal.

Para Eric Hobsbawm, “nação” pertence a um “[...] período particular e

historicamente recente [...]” 384, as nações, vistas como naturais, têm, em suas formações, um

caráter mítico, são fruto de uma série de invenções e o nacionalismo é o responsável por,

muitas vezes, transformar culturas preexistentes em nações. Sendo assim, o “[...]

nacionalismo vem antes das nações. As nações não formam os Estados e os nacionalismos,

mas sim o oposto.” 385. Concordamos com o autor no que tange ao caráter mítico e de

invenção que compõe uma nação, no entanto, acreditamos que não é possível falar de

nacionalidade, no caso dos Estados Unidos, antes das lutas pela Independência, pensando aqui

em um projeto “oficial” de nação. É com ressalvas que podemos falar de um projeto nacional

antes da Guerra Civil.

A “comunidade imaginada” norte-americana surge com o processo de

independência, assim como o forte sentimento de pertencimento a esta nova nação. No

entanto, como afirma Anderson, os laços do nacionalismo nos Estados Unidos eram

suficientemente elásticos para desencadear uma Guerra Civil menos de um século depois de

sua independência386. Isto faz com que o processo de consolidação desta nação se dê somente

após a Guerra Civil, na segunda metade do século XIX.

382 Idem, Ibidem. Pág. 25. 383 Idem, Ibidem. Pág. 26-27. 384 HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismos desde de 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. Pág. 19. 385 Idem, Ibidem. Pág. 19. 386 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Lisboa: Edições 70, 2005. Pág. 95.

109

Ainda segundo Anderson, surgiu um novo tipo de consciência, quando a nação

não podia mais ser sentida como nova, que despontou em um momento de ruptura, como é o

caso da Guerra Civil nos Estados Unidos387. Este novo nacionalismo forjou “[...] espantosas

imaginações de fraternidade (...) que emergiram “naturalmente” numa sociedade dividida

pelos mais violentos antagonismos raciais, de classe e regionais [...]”388. Estas relações

fraternas ajudam a explicar a criação de um feriado que, em tese, deveria ser aceito e

comemorado por todos (independente da origem social, cultural ou religiosa), mesmo que o

passado que estivesse rememorado celebrasse apenas uma parcela mínima da população.

Em períodos de ruptura, há a necessidade de se criar “narrativas de identidade” 389, já que em “todas as mudanças profundas de consciência, pela sua própria natureza, trazem

consigo amnésias características. Desses esquecimentos, em circunstâncias históricas

específicas, nascem as narrativas [...]”390. A narrativa de identidade, no caso americano, foi o

Thanksgiving, a memória da colônia que foi escolhida em detrimento das demais.

“[...] Desse modo, a tradição ou herança (...) nacional, longe de ser o resultado do amálgama das tradições locais, deve ser compreendida a partir das apropriações particulares ou seletivas do dito credo americano ou “religião civil” pelas diferentes regiões e comunidades políticas. ”391

O Thanksgiving, como uma narrativa de identidade, tornou-se, a partir do século

XIX, o feriado mais importante e amplamente comemorado dos Estados Unidos, ele passou a

ser uma “tradição” norte-americana. Todavia, como lembra Eric Hobsbawm, “’tradições’ que

parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas” 392.

Acreditamos que este é o caso do Thanksgiving. Ele foi criado como um marco fundador da

nação, um mito fundacional.

Como já mencionado, o manuscrito que narrava o primeiro Thanksgiving ficou

esquecido por quase um século, sendo reencontrado apenas no século XIX, e, somente em

1841, o reverendo Alexandre Young ligou este relato ao primeiro dia de Ação de Graças393.

Embora durante o século XVIII e começo do XIX existissem comemorações de Ação de 387 Idem, Ibidem. Pág. 265. 388 Idem, Ibidem. Pág. 265. 389 Idem, Ibidem. Pág. 267. 390 Idem, Ibidem. Pág. 266. 391 AZEVEDO, Cecília. “Culturas políticas e lugares de memória: batalhas identitárias nos EUA” (pág. 465-492). In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 468-469. 392 HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2006. Pág. 9. 393 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 35.

110

Graças em regiões específicas, em geral elas não tinham relação com a comemoração dos

primeiros colonos na Nova Inglaterra.

A primeira comemoração nacional do Thanksgiving se deu em 1789, quando

George Washington, na condição de presidente constitucional, assinou no dia 3 de outubro,

logo no seu primeiro ano de governo, um decreto, intitulado General Thanksgiving, em que

fazia da quinta-feira, 26 de novembro, um dia de agradecimentos a Deus394:

“Considerando que todas as nações têm o dever de reconhecer a providência do Deus Todo-Poderoso, obedecer à Sua vontade, agradecer-lhe pelas suas dádivas e humildemente implorar o Seu favor e proteção – e considerando que ambas as Câmaras do Congresso, pelo seu Comitê conjunto me pediram para ‘recomendar ao povo dos Estados Unidos um dia público de ação de graças e oração para ser guardado, reconhecendo com corações agradecidos os muitos favores do Todo-Poderoso (...). Assim, recomendo e assino que a próxima quinta-feira, 26 de Novembro, seja dedicada pelo Povo destes Estados ao serviço desse grande e glorioso Ser [...]” 395

Washington declarou ainda outros dois dias de Ações de Graças em seu governo,

mas não o tornou um feriado nacional396. Suas proclamações eram, no entanto, mais um

indicativo de guardar um dia para agradecer a Deus pelas graças recebidas do que

propriamente uma rememoração do Thanksgiving de 1621.

Os presidentes posteriores seguiram Washington, e proclamavam ou

recomendavam apenas dias específicos que deveriam ser dedicados a orações de

agradecimentos397. Em alguns estados também se observava o Thanksgiving Day. O notável

dessas proclamoções era o fato de os presidentes sempre sugerirem orações, o que, a nosso

ver, reforça a religião civil.

Com o encontro de manuscritos como os de Bradford e Morton, e um contexto de

rápidas mudanças sociais, econômicas e políticas, há o surgimento e fortalecimento de

movimentos que rememoravam o passado colonial, em especial o puritano, como forma de

afirmar uma identidade frente a este contexto. Movimentos como o Colonial Revival

ganharam força neste período e atuaram principalmente em ambientes artísticos, como a

pintura e a arquitetura. Algumas campanhas foram realizadas com o intuito de tornar o feriado

394 Idem, Ibidem. Pág. 37. 395https://millercenter.org/the-presidency/presidential-speeches/october-3-1789-thanksgiving-proclamation. Acesso em: 24/03/2017. 396 APPELBAUM, Diane. Thanksgiving: An American Holiday, An American History. New York: Facts and File, 1984. Pág. 60. 397 APPELBAUM, Diane. Thanksgiving: An American Holiday, An American History. New York: Facts and File, 1984. Pág. 64-65.

111

nacional, como o realizado pela famosa escritora Sarah J. Hale398. Ela escreveu ao presidente,

em setembro de 1863, pedindo que ele tornasse o Thanksgiving uma comemoração nacional e

anual399. Concomitantemente a estes movimentos, havia, por parte do poder público, uma

tentativa de criar uma memória nacional que partisse de um passado em comum.

Isto se intensificou ainda mais durante a Guerra Civil, que ameaçou a unidade

nacional e exigiu um engajamento ainda maior na tentativa de criar mecanismos que

pudessem impedir esta secessão. Como parte deste esforço, Lincoln tentou recorrer ao

passado para promover a pacificação e afirmar a união400 e institucionalizou como feriado

nacional, em 1863, em plena guerra, o Thanksgiving.

“[...] é neste momento, no qual o arranjo político interno mostrava sua fragilidade, que a importância de se afirmar a identidade nacional no homem americano, enquanto indivíduo e como sociedade, fez-se premente, pois a tensão resultante da separação fez expandir a necessidade de afirmação da consciência nacional. [...]” 401.

Apesar da intenção de fazer do Thanksgiving uma espécie de cimento identitário

que unisse o país em torno de um passado e um Deus em comum, a tentativa de “pôr esse

Deus a serviço da unificação” 402 não adquiriu imediato sucesso. Muitos lugares ao Sul

recusaram-se a comemorá-lo. Não por negarem a Deus, mas por negarem este passado que

lhes foi imposto. Como já afirmava Lincoln em meio à guerra: “os dois lados leem a mesma

Bíblia e oram ao mesmo Deus, e cada uma invoca o Seu contra o do outro” 403. O Sul também

possuía uma forte religiosidade ligada aos assuntos públicos, e a secessão, inclusive,

estendeu-se às igrejas. Quase todas se dividiram durante a guerra, sendo o caso mais famoso o

da Igreja Batista404. Argumentos religiosos e citações bíblicas foram exaustivamente usados

em causas pró e contra a escravidão.

Os sulistas afirmavam que sua memória tinha sido apagada em favor da

colonização na Nova Inglaterra. A adoção do Thanksgiving nacionalmente deveu-se ao triunfo

398 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 37. 399 http://www.abrahamlincolnonline.org/lincoln/speeches/thanks.htm 400 AZEVEDO, Cecília. “Culturas políticas e lugares de memória: batalhas identitárias nos EUA” (pág. 465-492). In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 471. 401 RIBEIRO, Paulo Rodrigues. O dia de ação de graças nos eua: pressupostos religiosos na construção da identidade nacional norte-americana. Aedos no 13 vol. 5, p. 132-147 - Ago/Dez 2013. Pág. 138. 402 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 38. 403 Apud SILVA, Carlos E (org.). Uma Nação com Alma de Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2009. Pág. 95. 404 Idem, Ibidem. Pág. 94.

112

Yankee, a vitória do Norte na guerra aconteceu tanto no aspecto militar quanto no campo da

memória. E, apesar da precedência histórica da Virgínia e da importância de colônias como a

Pensilvânia, que em muitos aspectos era mais livre que a Nova Inglaterra, “it is the footfall at

Plymouth Rock that American school children are taught to venerate” 405. Isto é fruto,

também, da criação do Thanksgiving como mito fundacional, que, apesar de ser tido por

muitos como uma tradição que retoma as raízes e os primórdios do povo americano, é tão

recente quanto formação desta nação.

Segundo a historiadora Jacy Seixas, em momentos agudos de crises, a presença de

mitos políticos na história se potencializa, e, nestes momentos, podemos perceber a força da

memória na construção destes mitos identitários406. Para Robertson, mitos nada mais são do

que:

"[…] stories; they are attitudes extracted from stories; they are “the way things are” as people in a particular society believe them to be; and they are the models people refer to when they try to understand their world and its behavior. Myths are the patterns—of behavior, of belief, and of perception—which people have in common. Myths are not deliberately, or necessarily consciously, fictitious. They provide good, “workable” ways by which the contradictions in a society, the contrasts and conflicts which normally arise among people, among ideals, among the confusing realities, are somehow reconciled, smoothed over, or at least made manageable and tolerable. (…) Myths are not rational, at least in the sense that they are not controlled by what we believe to be logic. […] ” 407.

Partindo desta definição de mito, o autor trabalha o Thanksgiving como o primeiro

e um dos mais importantes mitos fundacionais da história norte-americana porque nele estão

representados determinados aspectos que são, a todo instante, reforçados e incorporados por

esta cultura, além de exercer grande impacto no imaginário e nas próprias ações americanas e,

por este motivo, são importantes fontes de compreensão da sociedade. O autor reforça os

aspectos religiosos desta comemoração, mas considera que, mais do que uma festa de

colheita, o Thanksgiving foi uma cerimônia de nascimento408, que posteriormente receberia

exatamente este segundo significado: o de nascimento de uma nação, sob o signo religioso de

povo escolhido.

O Thanksgiving é parte enraizada da cultura americana, é o feriado mais

importante para grande parte dos cidadãos do país. Diferentemente do também muito 405 APPELBAUM, Diane. Thanksgiving: An American Holiday, An American History. New York: Facts and File, 1984. Pág. 126. 406 BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (RES) Sentimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2009. Pág. 55. 407 ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill & Wang, 1994. Pág. XV. 408 Idem, Ibidem. Pág. 16.

113

respeitável feriado de 4 julho, em que o aspecto político se sobressai em relação aos outros, o

dia de Ação de Graças é o momento de reafirmar e expressar os valores e as premissas da

unidade social, cultural, identitária e histórica409. Ele é o feriado em que se comemora a

família, o lar e a nação. É um ritual de afirmação, do que os americanos acreditam ter sido a

experiência dos peregrinos: a capacidade de confrontar, se estabelecer, se adaptar e civilizar o

Novo Mundo410.

Normalmente, nesta ocasião, os americanos se reúnem com as suas famílias e

realizam um jantar com produtos que simbolizam a boa colheita que os primeiros colonos

teriam extraido do solo americano, como o peru, ave nativa que ocupa lugar de destaque na

mesa, servido com gravy, acompanhado de yams (uma espécie de batata doce de cor

alaranjada), purê de batatas e bolo salgado de milho (que, de acordo com o mito, teria sido

plantado com o auxílio dos indígenas) e, de sobremesa, são feitas tortas de abóbora (pumpkin

pie) 411. O cardápio seria símbolo de uma comida forte e farta em uma representação da

fertilidade que foi encontrada no Novo Mundo (a sacralização da natureza) e fruto do trabalho

dos pais peregrinos412 - ideia ligada à concepção calvinista de trabalho. Além disto, faz parte

do protocolo que estes americanos orem e agradeçam antes da refeição em torno da mesa por

todas as graças concedidas por Deus no ano que passou, o que reforça o caráter religioso do

mito.

Joutard considera a narrativa da chegada dos peregrinos e o primeiro

Thanksgiving um exemplo de construção de um romance nacional, que para ele seria definido

como "[...] um relato histórico mais ou menos lendário que justifica a legitimidade da

existência nacional e lhe promete um futuro triunfante [...]" 413. Este primeiro romance

nacional americano apresenta características bastante específicas, que, não por acaso e com

frequência, aparecem em discursos oficiais dos presidentes norte-americanos. A chegada dos

peregrinos se baseia na ruptura com o velho mundo e na criação de um novo que, após uma

perigosa travessia, deixa a Europa e chega ao Atlântico, recuperando, assim, o episódio que

funda Israel: a fuga do Egito e a travessia do Mar Vermelho414. Esta primeira seleção

409 SISKIND, Janet. “The invention of Thanksgiving: a ritual of american nationality” (pág. 41- 58). In: COUNIHAN, Carole. Food in the USA. New York: Routledge, 2002. Pág. 41. 410 ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill & Wang, 1994. Pág. 15. 411 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 39. 412 ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill & Wang, 1994. Pág. 15. 413 JOUTARD, Philippe. “Memória e identidade nacional” (p. 59-78). In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria F.; KNAUSS, Paulo (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009. Pág. 60. 414 Idem, Ibidem. Pág. 71.

114

memorial é relembrada a cada ano pelo feriado do Thanksgiving. A referência ao passado, que

é reafirmada a cada comemoração e discurso oficial, está, de acordo com o autor, mais ligada

a uma história bíblica do que a um passado dos colonos, o que torna a dimensão religiosa

predominante415.

Toda a construção mitológica realizada em torno do Thanksgiving buscava

também a construção de uma tradição para uma nação que não possuía a narrativa de um

passado longínquo como a França ou a Inglaterra - ainda que as tradições também fossem

inventadas nestes lugares. E, como toda tradição inventada, de acordo com Hobsbawm, era

necessário que se criasse um conjunto de práticas, abertamente aceitas e de natureza simbólica

e ritual, que buscasse inculcar valores e normas de comportamentos através da repetição, o

que implicaria uma continuidade em relação ao passado, ele mesmo apropriado pela

história416. Esta prática de natureza simbólica é reafirmada todos os anos na comemoração do

feriado do Thanksgiving.

Toda construção de uma memória oficial busca atingir um imaginário popular. No

caso do Thanksgiving, esta narrativa já estava presente, o que coube ao poder público foi

sistematizar e institucionalizar esta memória de forma coletiva, tornando este passado o

oficial em detrimento dos demais. José Murilo de Carvalho, ao escrever sobre a formação do

imaginário republicano no Brasil, serve-nos como modelo para pensar como estas relações se

deram nos Estados Unidos. Para que as visões da República extravasassem o mundo extra-

elite, segundo Carvalho, era necessário atingir o imaginário, o que, em uma população com

baixo nível de educação formal, tinha de ser feito por meio de sinais mais universais, como

em imagens, alegorias, símbolos e mitos417. Embora o contexto político e social seja diferente

entre os dois países, a importância dada à construção de um imaginário por meio de outras

fontes que não sejam apenas escritas ou formais ocorreu em ambos, uma vez que: “[...] a

elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político

[...]” 418.

A criação de mitos de origem é um fenômeno universal419 que procura estabelecer

versões sobre um fato que muitas vezes está ligado ao lado vencedor de uma disputa, seja ela

415 Idem, Ibidem. Pág. 71. 416 HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2006. Pág. 9. 417 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. São Paulo: Cia das Letras, 2012. Pág. 10. 418 Idem, Ibidem. Pág. 10. 419 Idem, Ibidem. Pág. 13.

115

política ou memorial, e busca dar legitimidade à situação. Mais do que questionar o papel dos

mitos, cabe ao historiador pensar qual foi a sua importância na construção social, política,

cultural e histórica de determinado povo ou nação. Robertson, ao ser questionado sobre o

local “verdadeiro” da América e dos americanos, responde que ela reside nos mitos420, já, que

para o autor: “[...] the myths are part of the world we live in [...]”421.

A construção do Thanksgiving como mito de fundação não se deu de forma

arbitrária. Um herói, assim como um mito, deve ter a cara da nação. Como bem coloca José

Murilo de Carvalho, tem de responder a alguma necessidade ou aspiração coletiva, refletir

algum tipo de personalidade ou de comportamento que corresponda a algum modelo

valorizado coletivamente422. Quando há uma valorização de personagens como os peregrinos

do Mayflower em detrimento dos indígenas, por exemplo, é reforçado que os americanos

querem ser herdeiros desta tradição, da tradição bíblica de um povo escolhido que teria sido

purificado por uma perigosa e corajosa travessia, que reforçaria o caráter de excepcionalidade

que estaria no DNA deste povo, do seu sucesso e de sua democracia.

O Thanksgiving é a resposta à pergunta que rondava o país no século XIX: “What

holds us together?” 423. O feriado é o ritual de afirmação dos valores que eles acreditam que

estar representados na experiência peregrina, e estes valores estão de acordo com o que

pretendia a memória oficial, a responsável por mantê-los juntos.

Além do problema identitário enfrentado pelos Estados Unidos com a Guerra de

Secessão, havia ainda a questão de assimilar a massa extremamente heterogênea que chegava

ao país, americanos não por nascimento, mas por imigração. As tradições inventadas neste

período tinham que procurar atingir a maior parte destes americanos424. Estes imigrantes

foram convidados e incentivados a aceitar rituais que comemoravam a nação: o 4 de julho e o

Thanksgiving425. De acordo com Appelbaum, o maior instrumento de “americanização” é a

escola pública, na qual as crianças são ensinadas desde muito novas sobre o Thanksgiving e

incentivadas a comemorar a data em casa, com a família426. A atual importância dada a estes

420 ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill & Wang, 1994. Pág. XV. 421 Idem, Ibidem. Pág. XV- XVI. 422 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. São Paulo: Cia das Letras, 2012. Pág. 55. 423 ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill & Wang, 1994. Pág. 9. 424 HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2006. Pág. 287. 425 Idem, Ibidem. Pág. 287. 426 APPELBAUM, Diane. Thanksgiving: An American Holiday, An American History. New York: Facts and File, 1984. Pág. 222.

116

feriados e o fato de eles serem comemorados por grande parte de nascidos nos Estados

Unidos, por imigrantes, independente da religião que professam, demonstra que o objetivo

foi, pelo menos em parte, alcançado. Como coloca Janet Siskind:

“The story describes the enormous need and the trick of myth that seems to satisfy it, using an imagined past as a promise to the future, changing perceptions instead of the world. Like all myth, the power of the story of the pilgrims and the First Thanksgiving is shown by its capacity to refute experience; it is validated not by lived experience, but by the recitation of the code - in schools, in speeches, in the "common sense" of the culture, and in the self- fulfilling anactment of ritual. Incorporating the myth by talking part in the ritual celebration made of each immigrant´s journey a reliving of this dreamtime”427

3-A Religião Civil e o Thanksgiving

O Thanksgiving se tornou, segundo Bellah, o epicentro da religião civil428 porque

a comemoração deste feriado é o momento em que os elementos físicos e religiosos se

misturam com muita clareza429. Esta mistura se manifesta, sobretudo, por meio de símbolos e

ritos430. A religião civil seria uma espécie de elo entre a República e o plano de Deus, e sua

força consiste justamente em conseguir combinar as memórias religiosa e nacional.

A sustentação para esta religião civil teria sido dada por uma estrutura mitológica,

que, no caso específico dos Estados Unidos, é de base religiosa431. Mitos como a chegada dos

peregrinos e o Thanksgiving produziram imagens e símbolos ligados a uma tradição bíblica

pela qual é possível interpretar os acontecimentos históricos norte-americanos à luz destas

narrativas sagradas. A experiência colonial forneceu significados míticos para os eventos da

República432, ou seja, havia um paralelo bíblico a todo episódio importante da história

americana. E, ainda segundo Bellah:

“Behind the civil religion at every point lie biblical archetypes: Exodus, Chosen People, Promised Land, New Jerusalem, and Sacrificial Death and Rebirth. But it is also genuinely American and genuinely new [...]” 433

427 SISKIND, Janet. “The invention of Thanksgiving: a ritual of american nationality”. In: COUNIHAN, Carole. Food in the USA. New York: Routledge, 2002. Pág. 53. 428 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 34. 429 AZEVEDO, Cecília. O sentido de missão no imaginário político norte-americano. Revista de História Regional 3(2) 77-90, Inverno 1998. Pág. 84. 430 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 28. 431 BELLAH, Robert. The Broken Covenant: American Civil Religion in Time of Trial. The University of Chicago Press, 1984. Pág. 3. 432 Idem, Ibidem. Pág. 21. 433BELLAH, Robert N. “Civil Religion in America”. Journal of the American Academy of Arts and Sciences. 96 (1): 1–21. 1967. Pág. 13-14.

117

4-Thanksgiving como Cerimônia de Posse

Patrícia Seed trabalhou em seu livro Cerimônias de Posse na Conquista Européia

do Novo Mundo (1492- 1640) 434 com as práticas cerimoniais que foram utilizadas nas

instaurações do domínio colonial sobre o Novo Mundo entre os séculos XVI e XVII435, e de

como os europeus criaram uma autoridade política sobre os povos, terras e bens no

continente436. A autora compara a colonização de cinco países: França437, Espanha438,

Portugal439, Holanda440 e Inglaterra. O modo como os ingleses tomaram posse do novo mundo

nos importa, na medida em que acreditamos que a comemoração do Thanksgiving pode ser

considerada, também, uma espécie de cerimônia de posse.

Os ingleses, de forma geral, tomavam posse de um novo território por meio da

construção de casas, cercas e pela plantação de jardins441. Não havia, para os ingleses, cultivo

sem cerca, tanto quanto não havia sem o próprio trabalho442. Este sinal mundano significava a

intenção de ficar, em um sentido de permanência443. Pela legislação inglesa, o fato de se

estabelecer uma moradia fixa criava o direito de possuir o lugar444. Além disto, tornar a terra

produtiva por meio de atividades agrícolas e pastoris445 também era uma forma de possuí-la.

434 SEED, Patricia. Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo (1492- 1640). São Paulo: Editora UNESP, 1999. 435 Idem, Ibidem. Pág. 10. 436 Idem, Ibidem. Pág. 11. 437 Para os franceses, a forma de possuir uma terra era por meio de desfiles que deviam envolver a participação dos nativos, nos quais, ao final, fincava-se uma cruz na terra, como forma de obter um aparente consentimento dos indígenas, que precisava ser garantido437. Para os franceses, fazer algo cerimoniosamente significava fazê-lo conforme as regras, dispensar a cerimônia seria igualável a desrespeitar as leis (pág. 72) 438 Os espanhóis tomavam posse do novo mundo por meio da leitura de um documento, o “requerimento” (pág.: 90), que precisava ser proferido toda vez que encontravam com um índio. O documento altamente formalizado não era um pedido de consentimento, mas uma declaração de guerra (pág.: 90) caso os indígenas não aceitassem a superioridade do cristianismo (pág.: 102). A tomada de posse no caso espanhol era por meio da conquista. 439 Para os portugueses, o ritual de tomada do novo mundo se deu por meio de procedimentos técnicos, como medir a latitude (pág.: 144-145), um ritual astronômico. Eles chamavam seus métodos de encontrar novos territórios de “descoberta”. A capacidade de medir uma latitude fornecia a principal prova, para Portugal, de sua realização (pág. 144-145). Eles utilizavam, ainda, a construção de pilares de pedra ou uma cruz (pág. 170), mas estes eram secundários frente às latitudes registradas em diários de bordo e mapas. 440 Para os holandeses, a descoberta não estava ligada à primeira ancoragem em um território, mas à primeira vez que ele foi navegado (pág.: 211). Sua reivindicação de posse era dada por meio da descrição precisa das linhas costeiras desconhecidas (pág.: 212) e pelo controle do comércio (pág.: 214). A posse justificava-se porque apenas por meio de uma exploração exaustiva é que se podiam descrever os detalhes do território recém-descobertos (pág.: 221). 441SEED, Patricia. Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo (1492- 1640). São Paulo: Editora UNESP, 1999. Pág. 31. 442 HILL, Christopher. A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Pág. 187. 443 SEED, Patricia. Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo (1492- 1640). São Paulo: Editora UNESP, 1999. Pág. 31. 444 Idem, Ibidem. Pág. 31. 445 Idem. Ibidem. Pág. 38.

118

Esta forma de se apossar da terra estava ligada às metáforas bíblicas da jardinagem e do

domínio sobre a natureza selvagem (Errand into the wilderness), já analisadas no capítulo

anterior.

Tomando como base o versículo de Gênesis - “crescei e multiplicai-vos e enchei a

terra, sujeitai-a” (Gênesis 1: 28) - os ingleses acreditavam que o direito de possuir uma terra

estava no fato de torná-la produtiva, o que, aos olhos deles, os indígenas não faziam. Como os

colonos ingleses “liam a América na Bíblia”, a autorização de posse já era dada no Gênesis446.

De acordo com Seed, o trecho da narrativa de Bradford sobre a chegada dos ingleses à

América - “caíram de joelhos abençoando a Deus do céu”, que inclusive é recorrente nas

pinturas históricas - não pode ser considerada uma cerimônia de posse, mas, sim, um gesto de

gratidão por terem sobrevivido à perigosa travessia447.

Ampliando a definição de Patrícia Seed, acreditamos que o Thanksgiving pode ser

considerado uma cerimônia de posse, uma vez que a presença da colheita amplia o conceito

de jardim. Ele representa justamente o sucesso de todas estas metáforas bíblicas utilizadas

para justificar a tomada de posse. É o triunfo dos colonos sobre os elementos da natureza, a

vitória da metáfora da jardinagem, pois eles teriam transformado aquela natureza selvagem

em um jardim produtivo, como ordenara Deus. A refeição com a primeira colheita seria a

prova cabal disto.

Ao cruzar o oceano Atlântico (ou deserto, como os judeus), os peregrinos

atravessaram a primeira fronteira, e, com a festa que comemora sua primeira colheita,

comemora-se também o domínio sobre a natureza, da civilização sobre a barbárie.

5-Thanksgiving em imagens

A religião civil se traduz, como já mencionado, em símbolos e ritos, que, em

geral, estão presentes em discursos, inscrições em monumentos, numismática, em múltiplas

expressões iconográficas, em investimentos comemorativos, culto aos mortos na guerra e em

uma frequente sacralização da linguagem política - principalmente no que tange ao sentido do

destino histórico da América448. O Thanksgiving, como um destes ritos, produziu uma série de

446 Idem, Ibidem. Pág. 44. 447 Idem, Ibidem. Pág. 50. 448 CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do Ceará, 2005. Pág. 28.

119

representações iconográficas e entre elas escolhemos duas pinturas históricas que se tornaram

muito populares.

O escritor Alberto Manguel propõe em seu texto algumas formas de ler imagens

dos mais diferentes tipos (pinturas, esculturas, fotografia, etc). Dentro desta lógica, ele dedica

um dos capítulos à análise das obras de Caravaggio, que ele trata como uma espécie de

encenações de teatro. Para ele, as pinturas (ou qualquer tipo de imagen) são espaços para

representações, pois:

"[...] Uma imagem, pintada, esculpida, fotografada, construída e emoldurada é também um palco, um local para representação. O que o artista põe naquele palco e o que o espectador vê nele como representação confere à imagem um teor dramático, como que capaz de prolongar a existência por meio de uma história cujo começo foi perdido pelo espectador e cujo final o artista não tem como conhecer. O espaço do drama não está necessariamente contido apenas no palco de um teatro: a rua, a cidade toda podem ser aquele espaço, e ele pode estar espelhado no microcosmo fechado de uma tela [...]"449 .

Assim como o autor, acreditamos que as pinturas analisadas representam

encenações, teatralizações com o intuito de reconstruir um episódio do passado. Além disto, é

preciso levar em conta que: "[...] quando lemos imagens (...) atribuímos a elas o caráter

temporal da narrativa. Ampliamos o que é limitado por uma moldura para um antes e um

depois e, (...) conferimos à imagem imutável uma vida infinita e inesgotável [...]" 450.

A primeira pintura sobre o Thanksgiving é da coleção apresentada anteriormente,

The Pageant of Nation, do pintor histórico Jean Gerome Ferris, The first Thankgiving, 1621,

de 1912.

449 MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Cia das Letras, 2001. Pág. 291. 450 Idem, Ibidem. Pág. 27.

120

Figura 18: FERRIS, Jean Gerome. The first Thankgiving, 1621451.

Ferris retrata em seu quadro os peregrinos já estabelecidos no Novo Mundo, há

casas ao fundo e a mesa está posta. Todos os elementos da construção do mito dos peregrinos

estão presentes: o reverendo (com trajes típicos puritanos), os soldados (com armaduras e

armas), as mulheres (que servem e cozinham os alimentos), a criança (simbolizando as

famílias). O que incluiu quatro patamares que sustentam o mito: o self-made man, o

minuteman, Deus e a família.

Há uma separação no quadro em primeiro plano: os indígenas estão sentados no

chão do lado direito enquanto os peregrinos conversam ao redor da mesa do outro lado e a

mulher que serve os alimentos funciona como a ligação entre os dois lados, que partilham os

frutos da primeira colheita. Indígenas e europeus só aparecem se relacionando em segundo

plano, no canto superior esquerdo. Ainda que sutilmente, a separação entre a civilização e a

barbárie continua presente.

Ferris, ao pintar o primeiro Thanksgiving, tenta retratar a mitologia em torno da

comemoração. Há um sentimento geral de comunidade presente em toda a pintura, ainda que

os dois povos não se misturem. A pintura parece invocar o espírito de união que o feriado 451 FERRIS, Jean Gerome. The first Thankgiving, 1621. 1912. Disponível em: http://www.loc.gov/. Acesso em: 24/03/2017. Acervo particular.

121

pretende comemorar. Estão representados na imagem os personagens que “fundam” o povo

norte-americano: os cristãos europeus purificados pela perigosa travessia do Atlântico, e os

nativos americanos que dominavam as técnicas e a natureza do novo mundo.

O segundo quadro, The First Thanksgiving at Plymouth, foi pintado por Jennie A.

Brownscombe, um dos grandes nomes do movimento Colonial Revival452. A artista

americana, nascida na Pensilvânia, em 1850, estudou nos Estados Unidos, Paris e Roma e

ficou muito famosa por suas pinturas que retratavam o período colonial, além disto, foi uma

ilustradora e designer muito respeitada.

Um dos pontos característicos de suas obras era a presença de personagens

femininos em posição de destaque. Um exemplo disto pode ser percebido no quadro, também

muito famoso, Landing of the Pilgrims, de 1920, no qual ela retrata a chegada dos peregrinos

em Plymouth, inspirada nos quadros que analisamos anteriormente, com uma mulher como

personagem central, em uma composição piramidal que destaca ainda mais a figura feminina,

claramente inspirada em Botticelli453.

Nesta pintura sobre o primeiro Thanksgiving, também há os elementos que

demonstram o estabelecimento destes colonos na América (a cabana ao fundo). A maior parte

dos indígenas (com exceção dos que estão sentados à mesa) encontra-se separada, em

segundo plano na imagem. Na mesa, o reverendo dá graças pela primeira colheita,

representada pela refeição à mesa.

A presença do berço com um bebê, sendo balançado por uma mulher, representa o

futuro, a esperança, a nação que estava nascendo ali. A reunião dos personagens sentados à

mesa dá origem àquele bebê, que já nasceu em um novo mundo. Cada povo colaborou para o

nascimento da nação, mas pelas características do bebê, é possível perceber quem obteve a

primazia.

A imagem apresenta elementos de uma solenidade religiosa, de uma festa e de

uma comunidade, ou seja, mostra um Thanksgiving com o qual os americanos dos séculos

XIX e XX se sentiriam absolutamente confortáveis.

452 O movimento surgiu em meados do século XIX como uma expressão cultural que tentava recuperar, por meios das artes e arquitetura, aspectos do período colonial em resposta ao rápido desenvolvimento urba-industrial do período e a incorporação dos imigrantes a cultura norte americana. 453 SEELLYE, John. Memory’s Nation: The Place of Plymouth Rock. Chapel Hill: UNC Press, 1998. Pág. 17.

122

Figura 12: BROWNCOMBE, Jennie. The First Thanksgiving at Plymouth454

A pintura original se encontra hoje no Pilgrim Hall Museum, mas apareceu ao

público pela primeira vez impressa na Revista Life, atingindo um grande público455. A artista

vendeu o direito de reprodução de mais de 100 de suas pinturas, que aparecem até hoje em

revistas, jornais, livros escolares, calendários e cartões postais, o que a tornou muito popular.

Além disto, suas obras foram expostas em diversos lugares, como Nova York, Chicago,

Filadélfia e Londres.

Os elementos já mencionados, como os trajes puritanos, a presença de mulheres e

crianças representando a família e as armas que teriam sido usadas para dominar a natureza,

estão presentes também nestas pinturas. O Thanksgiving retratado nestas imagens representa

justamente o domínio dos colonos sobre a natureza selvagem, por meio do cultivo do jardim.

É possível fazer, ainda, outro paralelo bíblico: a escolha do peru como símbolo da

refeição. Ainda que não apareça na pintura, o animal é citado no texto de Bradford. O peru era

uma ave nativa, uma substituta para o frango, muito consumido na Europa. No entanto, ela é,

454 BROWNCOMBE, Jennie. The First Thanksgiving at Plymouth, 1914. Disponível em: http://pilgrimhallmuseum.org/ce_history_paintings.htm. Acesso em: 24/03/2017. Original: Pilgrim Hall Museum, Plymouth, MA, Estados Unidos 455 http://pilgrimhallmuseum.org/ce_history_paintings.htm. Acesso em: 24/03/2017.

123

também, uma espécie de maná que os colonos teriam recebido no deserto, assim como os

hebreus depois de sua saída do Egito, ele é o símbolo da abundância no deserto.

Como o acontecimento não pode ser “lembrado”, é necessário que ele seja

“narrado” 456 - a narrativa de Bradford e de Winslow sobre o Thanksgiving produziu

representações iconográficas, e é possível perceber a semelhança entre ambas ao analisarmos

elementos em comum. Por exemplo: as casas preparadas para o inverno e a abundância de

alimentos vindos da pesca, caça ou plantações, a menção da família estão presentes tanto na

narrativa quanto nos quadros:

“They begane now to gather in ye small harvest they had, and to fitte up their houses and dwellings against winter, being all well recovered in health & strenght, and had all things in good plenty; for as some were thus imployed in affairs abroad, others were excersised in fishing, aboute codd, & bass, & other fish, of which yey tooke good store, of which every family had their portion. All ye somer ther was no wante. And now begane to come in store of foule, as winter aproached, of which this place did abound when they came first (but afterward decreased by degrees). And besids water foule, ther was great store of wild Turkies, of which they tooke many, besids venison, &c. Besids they had aboute a peck a meale a weeke to a person, or now since harvest, Indean corne to yt proportion. Which made many afterwards write so largly of their plenty hear to their freinds in England, which were not fained, but true reports.”457

O elemento diferente nestes últimos quadros é a presença dos indígenas que, de

acordo como o relato de Bradford, auxiliaram os peregrinos no plantio e na caça e, por este

motivo, teriam sido convidados para o primeiro Thanksgiving. O índio Squanto é

nominalmente citado no relato como um “instrumento enviado por Deus para auxiliá-los” 458.

“The stories of contact between the Europeans and the Indians natives mark the contrast, the necessity not for adaptation but for destuction. The Indians of the North American coast - like the rest of the North American tribes in turn - were decimated by European diseases. Pocahontas saved John Smith, became a princess in the eys of Virginians, married a Virginia colonist, and moved to London - a quaint, native American, dusky, Christian princess. Squanto and his friends taught the Pilgrims to grow corn because they had run out of proper Christian grain - and having grow Indian corn, the Pilgrims invited the Indians to a Thanksgiving feast but thanked the Christian, European God. [...]” 459

O índio é necessário - tanto no mito do Thanksgiving quanto na sua representação

- como um elemento da natureza. Assim como o peru, ele é o símbolo e a lembrança do

domínio dos colonos sobre a wilderness, a domesticação do jardim. Além disto, na segunda

metade do século XIX, há uma mudança na representação dos indígenas. Se até então eram 456 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Lisboa: Edições 70, 2005. Pág. 266. 457 BRADFORD, W. Of Plymouth Plantation. Boston: Wright & Potter Printing CO, 1908. Pág. 126-127. 458 Idem, Ibidem. Pág. 116. 459 ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill & Wang, 1994. Pág. 50.

124

vistos como uma ameaça (“The only good Indian is a dead Indian”, frase atribuída ao oficial

Philip Sheridan), passou-se a construir uma imagem romantizada depois da limpeza étnica,

desaparecimento e deslocamento da maior parte deles. E é este “bom selvagem”, símbolo da

inocência, auxiliar dos colonos, que está presente na pintura.

Janet Siskind afirma em seu texto que o peru na narrativa do Thanksgiving é uma

metáfora dos indígenas460. Ele seria o símbolo da domesticação, da imposição da civilização

(representada pela cultura europeia) sobre o continente americano. Assim como as aves, os

índios eram selvagens ou domesticáveis461: “[...] as a true “native of America” the turkey,

wild and domesticated, could easily become a symbol for those other natives, constructed not

as Americans but Indians-others” 462.

Ainda de acordo com a autora, esta imagem pacífica entre colonos e indígenas

seria impensável nos séculos anteriores. Apenas depois que as memórias das guerras e dos

massacres indígenas terem desaparecido, apenas após os nativos terem seu povo e cultura

subjugados é que eles podem ser incorporados como símbolo não só do sacrifício, mas da

imagem do Éden perdido onde o índio e o peregrino podem viver: “[...] like lion and lamb,

harmoniously joined together.”463.

O mito fundacional da chegada dos peregrinos – e, em especial, o Thanksgiving -

foram usados politicamente no século XIX para a produção de uma memória que se pretendia

nacional, com o intuito de unir um país fragmentado pela Guerra Civil, assimilar as ondas de

imigrantes que chegavam aos milhões no país e dar um sentido de pertencimento a uma

população que passava por drásticas mudanças políticas, sociais e econômicas.

Quadros como estes, que retratam o Thanksgiving funcionam como uma “foto

oficial”, o desejo de realidade que os americanos tinham de que este fosse realmente o lugar

em que foram plantadas as raízes que deram origem à nação que tentavam construir no século

XIX. A aceitação progressiva do feriado por uma parcela significativa da sociedade

americana, seja por nascimento ou por imigração, demonstra este desejo. Como afirma José

Murilo de Carvalho:

460 SISKIND, Janet. “The invention of Thanksgiving: a ritual of american nationality” (p. 41-58). In: COUNIHAN, Carole. Food in the USA. New York: Routledge, 2002. Pág. 48. 461 Idem, Ibidem. Pág. 50. 462 Idem, Ibidem. Pág. 50. 463 Idem, Ibidem. Pág. 52.

125

“[...] o imaginário, apesar de manipulável, necessita, para criar raízes, de uma comunidade de imaginação, de uma comunidade de sentido. Símbolos, alegorias, mitos só criam raízes quando há terreno social e cultural no qual se alimentarem. Na ausência de tal base, a tentativa de criá-los, de manipulá-los, de utilizá-los como elementos de legitimação, cai no vazio, quando não no ridículo [...]” 464

Appelbaum afirma que os Estados precisam de heróis, mitos e lendas para fazer

uma nação, e que, quando os Estados Unidos precisaram, a Nova Inglaterra ofereceu os

peregrinos e o primeiro Thanksgiving para preencher esta necessidade465. O que a autora se

esquece de mencionar é que outras culturas também ofereceram seus cânones, mas o fato de o

da Nova Inglaterra ter sido o escolhido revela muito sobre a imagem que os americanos

construíram para si.

464 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. São Paulo: Cia das Letras, 2012. Pág. 89. 465 APPELBAUM, Diane. Thanksgiving: An American Holiday, An American History. New York: Facts and File, 1984. Pág. 127.

126

CONCLUSÃO

Nossa proposta foi analisar como uma série de pinturas históricas que retratavam

a chegada e estabelecimento dos puritanos na região da Nova Inglaterra, produzidas entre a

segunda metade do século XIX e os anos iniciais do século XX, esteve em diálogo e auxiliou

na tentativa de criação de uma memória nacional para um país que estava fragmentado por

uma violenta Guerra Civil, que vivia um período de rápidas mudanças políticas e econômicas

e, ao mesmo tempo, uma série de tensões sociais, que precisava firmar uma identidade frente

aos milhões de imigrantes que chegavam de várias partes do mundo e, ainda assim, incorporá-

los a um projeto de nação.

A intenção desta memória que estava sendo construída era encontrar um passado,

do qual todos os americanos, por nascimento ou imigração, se identificassem como herdeiros.

No entanto, inclusão e exclusão são elementos básicos da criação de identidades e memórias.

Quando se opta por uma memória, um passado ou uma representação, outras tantas são

silenciadas.

Por meio das fontes escolhidas, procuramos também, pensado-as como

representações do passado da Nova Inglaterra, buscar elementos da retórica puritana que

continuaram presentes nos séculos posteriores e forneceram a base bíblica para aquilo que se

convencionou chamar “mito da América”. Estes discursos tipológicos da colônia estão

presentes na memória religiosa norte-americana, que, combinada à memória política, dá

origem ao que Bellah chamou de religião civil norte-americana.

Como toda religião, a religião civil também produziu seus cânones, seus ritos e

seus momentos de fundação. Coube-nos na pesquisa, então, analisar estes elementos para

pensar a construção desta memória nacional.

Levando estes pontos em consideração, o objetivo central de todo o trabalho era

pensar como as representações iconográficas da colônia produziram uma memória sobre um

passado específico, que estava em diálogo com o projeto político de produzir uma memória

para a nação.

127

Assim, na primeira parte do primeiro capítulo, focamos na parte teórica que

permeou nossa pesquisa, em especial como uma imagem, de qualquer natureza, pode ser

usada como documento para o historiador e como ela atua como uma representação que

produz uma memória do passado que se quer analisar e, ao mesmo tempo, como ela é fonte de

produção de novas memórias. Ainda nesta primeira parte, mencionamos como foi construída

nossa série documental. Ela foi composta por pinturas produzidas entre os anos 1843 e 1914

e, dentro de recorte, as dividimos em quatro grupos, cronologicamente, em especial para

pensar que aspectos são reforçados ou deixados de lado em cada período. Nosso corpus

documental é composto ainda por textos escritos no século XVII por puritanos que serviram

como programa para a produção das pinturas.

O conceito de religião civil perpassou todo o nosso trabalho, assim foi necessário

historicizá-lo e apresentar uma discussão sobre alguns autores que trabalham com o termo

aplicado ao contexto trabalhado, para tentar compreender qual o seu papel na construção de

uma memória nacional.

Todo documento é produzido em um contexto social e político, sendo assim,

achamos importante pensar o lugar de produção destas imagens. Foi importante então analisar

os principais acontecimentos da segunda metade do século XIX que serviram de terreno para

as discussões levantadas nas pinturas, em especial a Guerra Civil, que, com suas gigantescas

proporções, desencadeou uma série de batalhas no campo da memória, pelo passado.

Na parte final do capítulo, analisamos duas das ideias centrais do pensamento

político e cultural dos Estados Unidos no século XIX: O Destino Manifesto e noção de

Fronteira. Elas encontram sua base discursiva na retórica puritana do século XVII e

desenvolvem com base nas metáforas, questões e conceitos desenvolvidos nas pinturas

históricas e ajudam a compreender a imagem que os americanos construíram para si.

A ideia de Destino Manifesto desenvolveu suas bases por meio de um discurso de

excepcionalismo. Deus escolheu os americanos, assim como havia escolhido os puritanos,

entre todos os povos, para se desenvolver e expandir. A ideia de missão e destino foi

convertida em uma doutrina política que serviu como justificativa, durante os séculos XIX e

XX para o expansionismo norte-americano. Complementar a esta ideia, a tese da Fronteira,

defendida pelo historiador Frederick Jackson Turner, também encontrou terreno social. A

nação, para ele, foi originada pela experiência da fronteira, que seria a linha invisível que

128

separaria a civilização da barbárie. A existência da fronteira, desde a chegada dos puritanos -

que foram, segundo o autor, os primeiros a cruzá-la - moldou o caráter americano.

O segundo capítulo foi focado na análise das pinturas históricas do século XIX.

No entanto, para compreender o que estava sendo enunciado ali, foi necessária uma análise

mais comedida no século XVII, contexto em que os textos, que serviram de narrativas para a

construção das imagens, foram escritos. Ainda neste capítulo, destrinchamos as metáforas

bíblicas que os puritanos utilizavam em seus sermões e que posteriormente foram utilizadas

pela construção do que ficou conhecido como mito da América. Metáforas como City Upon a

Hill, Errand into the wilderness, e da jardinagem permearam o imaginário norte-americano

nos séculos posteriores, e aparecem como representações nas pinturas que analisamos.

O resto do capítulo foi dedicado à análise das pinturas, que foram divididas em

três períodos dentro do nosso recorte: Antebellum (1843-1859), A Guerra Civil e o período da

reconstrução (1864-1882) e início do século americano (1899-1900). O que pretendemos

levar em consideração, na análise destas pinturas, é que, ao olhar as imagens que retratam o

século XVII, estamos vendo o século XIX sendo representado, com todas as inquietações que

este período acarretou.

O terceiro e último capítulo focou no que acreditamos ser o condensador de todas

as ideias que foram trabalhadas nos capítulos anteriores: o Thanksgiving. Ele foi alçado à

condição de mito fundacional da nação, quando, em 1863, o presidente Lincoln, com um

intuito de unir a nação separada pela Guerra Civil, o institucionalizou como feriado nacional.

A ideia de que o Thanksgiving deveria ser comemorado nacionalmente não partiu do

presidente. Havia, desde os anos anteriores, campanhas por parte de alguns meios de

comunicação e instituições, escritores e jornalistas (quase sempre ligadas à Nova Inglaterra)

para que o feriado se tornasse uma data comemorativa da nação.

O feriado não foi imediatamente aceito. Houve muita resistência, principalmente

do Sul, que reivindicava a precedência da colonização da Virgínia. O Norte foi acusado de

querer impor o seu passado como nacional em detrimento dos demais. Apesar dos conflitos

em torno do estabelecimento deste feriado, ele foi, progressivamente, sendo acatado, inclusive

pelos imigrantes que chegavam ao país, que viam na experiência puritana, de refugiados que

saíram do seu lugar de origem em busca de liberdade, um paralelo com suas próprias

trajetórias.

129

Ao final deste capítulo, analisamos duas pinturas do começo do século XX que

retratam o primeiro Thanksgiving de 1621, que simboliza uma festa pela primeira colheita que

os peregrinos fizeram no novo mundo. Nestes quadros, é possível identificar o que

acreditamos que esta refeição realmente significou: o triunfo da civilização sobre a barbárie.

O fato de terem colhido os frutos plantados na América representa o sucesso da transformação

de uma natureza selvagem (wilderness) em um jardim produtivo, como havia sido ordenado

por Deus.

Estas duas últimas pinturas foram produzidas em um contexto em que os Estados

Unidos já estavam em plena expansão militar e cultural pelo mundo. Acreditamos que estas

duas imagens, que foram exaustivamente reproduzidas nos mais diferentes tipos de mídias,

serviram como uma espécie de cartão postal do país. Ela se tornou a “foto oficial” de um

passado que os americanos tomaram como seu e que eles queriam apresentar para o resto do

mundo. Antes de dizer ao mundo quem eram, era necessário que eles descobrissem quem

foram. Eles se descobriram neste mito.

A comemoração do Thanksgiving, pela maior parte dos americanos, e o papel que

o mito dos puritanos tem neste imaginário, demonstra que, pelo menos em partes, o passado

que foi escolhido no século XIX encontrou eco e aceitação. Isto não significa dizer que esta

memória engloba a nação.

Esta memória funcionou como uma fronteira, uma cerca que dividia dois mundos,

ela serve para discernir aqueles que não pertencem à nação: os indígenas, os heréticos, no

século XVII; os ingleses e apoiadores da monarquia no XVIII; nos XIX temos indígenas

novamente e os negros que foram tornados americanos pelo tráfico de escravos.

Toda memória exclui e cria silêncios. A escolha do passado puritano como um

mito no qual os americanos teriam plantado suas raízes deixa de lado a maior parte de sua

população, no entanto, o que é mais incrível, é que ele é o passado mais amplamente

comemorado por uma parte significativa desta população. O esforço inicial de produzir união

surtiu um aparente efeito, tendo em vista a capacidade de resignificação deste passado para

fazer dele um passado coletivo.

130

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24’ x 34 1/2’. Original em: Fort Ticonderoga Museum.

Figura 3: CHAPMAN, John. Bapstism of Pocahontas, 1840. Óleo sobre tela. 12’ x 18’.

Original em: Capitólio.

Figura 4: Esboço de John Chapman do quadro Bapstism of Pocahontas. Original em:

Capitólio.

Figura 5: PARKER, E. after WEIR, R. Embarkation of the Pilgrims, Original: 1843/ Cópia:

1857/ Recriação: 1875. Óleo sobre tela, 12’ x 18’. Original: Capitólio/

Cópia: Brooklyn Museum of Art /Recriação: Pilgrim Hall Museum.

Figura 6: Esboço de Robert Weir do quadro Embarkation of the Pilgrims. Original em:

Capitólio.

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Figura 7: LUCY, Charles. Departure of the Pilgrims from Delft Haven, 1847. Óleo sob tela.

Original: Pilgrim Hall Museum, Plymouth, MA, Estados Unidos.

Figura 8: LUCY, Charles. Landing of the Pilgrims, 1850.

Figura 9: ROTHERMEL, Frederick. The Landing of the Pilgrims at Plymouth Rock, 1864.

Óleo sobre tela, 105.7 x 139.4 cm. Original: Kirby Collection of Historical Paintings.

Figura 10: MATTESON, Tompkins. Signing the Compact on Board the Mayflower, 1853.

Figura 11: GISBERT, Antonio. The Arrival of the Pilgrim Fathers, 1864. Óleo sobre tela,

58x80.5 cm. Coleção particular.

Figura 12: BOUGHTON, George Henry. Pilgrims Going to Church, 1867. Óleo sobre tela,

110.5 x 170.2 x 10.2 cm. Original: New York Historical Society.

Figura 13: BACON, H. The Landing of the Pilgrims, 1877. Original em: Pilgrim Hall

Museum.

Figura 14: FERRIS, Jean Gerome. The Mayflower Compact 1620, 1899. Acervo Particular.

Figura 15: FERRIS, Jean Gerome. The First Sermon Ashore, 1899. Acervo Particular.

Figura 16: MORAN, Edward Percy. The Signing of the Compact in the Cabin of the

Mayflower, 1900. Original: Pilgrim Hall Museum.

Figura 17: MORAN, Edward. The Pilgrims Landing, 1900. Óleo sobre tela, 23” x 29”.

Acervo Particular.

Figura 18: FERRIS, Jean Gerome. The first Thankgiving, 1621. 1912. Acervo particular.

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Pilgrim Hall Museum.

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