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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
SABRINA KÉSIA DE ARAÚJO SOARES
IMBRICAÇÕES ESTÉTICO-POLÍTICAS NAS INTERVENÇÕES DO COLETIVO
APARECIDOS POLÍTICOS
FORTALEZA – CEARÁ
2015
SABRINA KÉSIA DE ARAÚJO SOARES
IMBRICAÇÕES ESTÉTICO-POLÍTICAS NAS INTERVENÇÕES DO COLETIVO
APARECIDOS POLÍTICOS
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e
Sociedade do Programa de Pós-Graduação
em Políticas Públicas e Sociedade do Centro
de Ciências Sociais Aplicadas (CESA), da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Políticas Públicas e Sociedade.
Área de Concentração: Políticas Públicas e
Sociedade.
Orientador: Prof. Pós-Dr. Alexandre
Almeida Barbalho
FORTALEZA – CEARÁ
2015
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Sistema de Bibliotecas
Soares, Sabrina Késia de Araújo. Imbricações Estético-Políticas nas Intervenções doColetivo Aparecidos Políticos [recurso eletrônico] /Sabrina Késia de Araújo Soares. - 2015. 1 CD-ROM: il.; 4 ¾ pol.
CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF dotrabalho acadêmico com 161 folhas, acondicionado emcaixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).
Dissertação (mestrado acadêmico) - UniversidadeEstadual do Ceará, Centro de Estudos SociaisAplicados, Programa de Pós-Graduação em Sociologia,Fortaleza, 2015. Área de concentração: Políticas Públicas eSociedade. Orientação: Prof. Ph.D. Alexandre de AlmeidaBarbalho.
1. Arte Política. 2. Espaço Público. 3.Resistência. 4. Memória. I. Título.
À minha sobrinha, Tamyres, por me ensinar
o amor e me fazer afirmar a criança existente
em mim.
Ao Igor, que segue comigo inventando
moinhos de vento.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todas as pessoas que de algum modo cruzaram meu caminho, vibraram e
acreditaram comigo na realização deste trabalho.
Ao professor e orientador Alexandre Barbalho, pela calma, paciência e disposição em
construir comigo este percurso.
À banca avaliadora da qualificação, que se repete na defesa, Professora Kadma Marques e
Professora Deisimer Gorczevski, pelo tempo e disponibilidade dispensados à leitura do
trabalho e principalmente pelas contribuições que vieram e virão a enriquecer a pesquisa.
Agradeço ao Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS), seus
professores e funcionários, especialmente a secretária, Cristina Pires, pela atenção e cuidado,
sempre pronta à ajudar e fazer com que as coisas aconteçam, mesmo passando do seu horário
de almoço.
À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP)
pelo financiamento da pesquisa através da bolsa concedida .
Gratidão ao Alexandre Mourão, Stella Pacheco, Sara Nina e em especial ao Marquinhos,
integrantes do Coletivo Aparecidos Políticos, pela acolhida, pelas possibilidades de inventar,
criar e intervir e me descobrir nesse percurso, por me ajudar a ver onde só existia ruídos.
Agradeço também por entenderem os momentos em que busquei minhas ilhas de silêncio em
meio a tanta turbulência em mim.
Ao Coletivo de Pesquisa In(ter)venções, lugar onde tudo começou, agradeço pela partilha de
tanta coisa bonita, pelos encontros, descobertas, e afetos ao longo de três anos, além dos
amigos e amigas feitas daquele período, em especial a Fabíola Gomes, por me ensinar que
desterritorializar é preciso e não dói e a Jéssica Barbosa, com quem sigo aprendendo e
inventando.
Aos colegas integrantes da Pesquisa Arte | Espaço Comum | IntenCidades, João Miguel,
Fernanda Meireles, Rafaela Kalaffa, Alexandre Ruoso, Ceci Shiki, Joana Schroeder, Ana
Lilu, pelos encontros, conversas e cervejas tomadas juntos.
Ao Grupo de Estudos PPGARTES / ICA UFC pelas contribuições teóricas.
Aos amigos incríveis do Coletivo Audiovisual do Serviluz, Pedro Fernandes, a querida
Fabíola Gomes e ao Gerardo Santos, por me apresentarem sempre algo novo de um lugar
mágico chamado Titanzinho, por me ensinarem que o bom mesmo é fazer as coisas juntos e
na rua, e por me proporcionarem a imersão no universo que me fascina, o audiovisual.
Agradeço as colegas de mestrado e amigas irmãs, Ana Paula, Deinair, Lidiane e Jaiane, pelo
carinho, atenção e cuidado e risadas.
À Wilma Farias, por me mostrar que é preciso encontrar um tempo em mim e por dias mais
próximas e trocas e partilhas que foram mais que importantes para a finalização da escrita.
À Carla Galvão, pelas conversas inquietantes e eloqüentes e pelos abraços que emanam
sempre boas energias.
Toda minha gratidão à Deisimer, pelas constantes perturbações, por me ensinar a argumentar,
mas principalmente por entender meu tempo, sua amizade nesse processo fez com que eu me
inventasse, crescesse e expandisse.
Aos amigos irmãos que a vida me deu: Evilene Abreu, Beatriz Lopes, Nadson Fernandes,
Mariana Cordeiro, Dayane Falcão, Bruno Fernandes, todos sempre presentes mesmo que
distantes fisicamente.
Ao amigo querido amigo Renan Menezes (in memorium), de quem tenho uma imensa
saudade.
À minha tia Lúcia, ao meu tio Frivaldo e a minha avó Mariinha, pelo suporte, carinho e
acolhida de sempre e principalmente horas mais delicadas.
À Rosangela Bezerra, por abrir suas portas recebendo-me como uma filha e me incentivar
sempre.
Ao meu pai, Valdir, pelo amor, cumplicidade e compreensão nos momentos de distância.
A minha mãe, Graça, por me ajudar a crescer todos os dias e a ver o mundo de possibilidades
ao meu redor.
Aos meus irmãos.
Ao Igor e Tamyres, a quem dedico esse estudo.
“Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras fatigadas de informar.
Dou mais respeito às que vivem de barriga
no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o
sotaque das águas Dou respeito às coisas
desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões. Prezo a
velocidade das tartarugas mais que a dos
mísseis. Tenho em mim um atraso de
nascença. Eu fui aparelhado para gostar de
passarinhos. Tenho abundância de ser feliz
por isso. Meu quintal é maior do que o
mundo. Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos como as boas moscas. Queria
que a minha voz tivesse um formato de
canto. Porque eu não sou da informática: eu
sou da invencionática. Só uso a palavra para
compor meus silêncios.”
(O apanhador de desperdícios – Manoel de
Barros)
RESUMO
O presente trabalho apresenta apontamentos acerca dos processos de criação do Coletivo
Aparecidos Políticos, focando em uma das primeiras intervenções realizadas pelo Coletivo
logo no início de sua constituição, a intervenção “o que resta da ditadura” e dois processos
de intervenção realizados com o Coletivo: o primeiro produzindo imagens nos espaços
públicos da cidade, a partir de fotografias de familiares de mortos e desaparecidos; e o
segundo momento a partir da performance Operação Carcará, realizada dentro do Salão de
Abril. Nesse sentido, o trabalho busca construir e perceber as potencialidades presentes nas
intervenções propostas pelo Coletivo, operando a relação/tensão existente entre arte e
política, que evoca a dimensão de resistência nessas intervenções, produzindo nos espaços a
construção de uma memória plural. Como aporte metodológico, utilizo a pesquisa-
intervenção lançando mão dos procedimentos do cartógrafo no sentido de perceber como as
intervenções se constituem potencialmente capazes de interferir no regime visível,
produzindo a construção de mundos. Como corpus teórico procurou-se conferir espaço aos
estudos da arte e da política como também da filosofia e sociologia, cujas proposições
estivessem alinhadas e estabelecessem conexões com a invenção/criação do Coletivo em
meio ao espaço da cidade de Fortaleza. A relevância do trabalho consiste em produzir um
estudo que traga análises sobre o trabalho do Coletivo a partir da perspectiva da imersão nas
intensidades vividas. Para além, produzindo análises sobre os trabalhos do Coletivo que
tornou-se referência dentro do campo da arte contemporânea em torno da memória, verdade
e justiça.
Palavras-chave: Arte Política. Espaço Público. Resistência. Memória.
ABSTRACT
The current work present brief notes about the process of Coletivo Aparecidos Políticos
creation, focusing on one of the first interventions makes by the collective at the beginning
of your constitution, the intervention what last from dictatorship and two process of
intervention making with the collective: the first take picture an public space the city, stating
with relative picture of dead and missing and the second moment with the Operação Carcará
performance a held inside of the Salão de Abril At the point, the work hopes the build and
realize the present potential in the intervention proposed by the collective. Operating the
inter relationships among arts and politicos and that among art and policy that evokes
dimensions of resistance. That produce in those places the construction of a plural memory.
As methodological contribution. I use the intervention-research taking of the cartographer
procedures in an effort to see how the interventions potentially constituted are capable to
affect the visible regime, producing the construction of the word. As theoretical corpus it
tried to give space to art studies and policy. As also to philosophy and Sociology, whose
proposal when aligned and establish connections with what has been created and direct by
the collective amid the space Fortaleza.
Key Word: Politic Art. Public Space. Resistance. Memory.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura – 1 Criações no #OcupeAquário 47
Figura – 2 Criação/invenção da resistência no #OcupeAquário 48
Figura – 3 Cartaz lambe-lambe Jana Moroni 60
Figura – 4 Cartaz lambe-lambe Maria Lucia Petit 60
Figura – 5 Rebatismo Centro de Cidadania Edson Luis 62
Figura – 6 Fachada Centro de Cidadania Edson Luis 63
Figura – 7 Rebatismo Praça do Preso Político Desaparecido 64
Figura – 8 Mapa cita Praça do Preso Político Desaparecido 65
Figura – 9 Feira da Memória – Praça do Preso Político Desaparecido 65
Figura – 10 Intervenção Urbana Pelo Ar – SPA das Artes 66
Figura – 11 Exposição/Ocupação Galeria Antônio Bandeira 68
Figura – 12 Coletivo Aparecidos Políticos em Marabá 69
Figura – 13 Abertura da Exposição Prestes no Ceará 70
Figura – 14 Painel Aparecidos Políticos na Exposição Arquivo das Sombras 71
Figura – 15 Intervenção UECE Itaperi – Jornada para Não Esquecer Jamais 72
Figura – 16 Intercâmbio Argentina 73
Figura – 17 Curso Ativismo criativo 74
Figura – 18 Exposição Transições Latinas – Inauguração do Ateliê 75
Figura – 19 Intervenção 01 de abril – 2014 77
Figura – 20 Performance homem encapuzado -“O que resta da ditadura” 85
Figura – 21 Performance homem sentado -“O que resta da ditadura” 86
Figura – 22 Cartazes lambe-lambes de mortos e desaparecidos políticos 91
Figura – 23 Montagem Exposição Ausências – Bergson Gurjão 110
Figura – 24 Fotografias: Alex Xavier, Iure Xavier e Bergson Gurjão 113
Figura – 25 Av. Aguanambi – intervenção lambe-lambe 116
Figura – 26 Av. Aguanambi – criação imagem Iure Xavier 118
Figura – 27 Av. Aguanambi – criação imagem Iure Xavier - Olhares 118
Figura – 28 Av. Aguanambi – Ditadura nunca mais 119
Figura – 29 Av. Aguanambi – transeuntes 121
Figura – 30 Paraquedas montados 135
Figura – 31 Paraquedas montados prontos para lançamento 136
Figura - 32 Abertura Salão de Abril 141
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CAMP Centro de Assessoria Multiprofissional
FERES Fórum de Educação da restinga e Extremo Sul
GAC Grupo de Arte Callejero
GRIM Grupo de Pesquisa da Relação Infância de Mídia
ICA Instituto de Cultura e Arte
IFCE Instituto Federal do Ceará
MPL Movimento Passe Livre
ONG Organização não governamental
RENAP Rede Nacional dos Advogados Populares
SAJUS Serviço de Assessoria Jurídica Universitária Popular
UECE Universidade Estadual do Ceará
UFC Universidade Federal do Ceará
23º BC 23º Batalhão de Caçadores do Exército
SUMÁRIO
1. LINHAS E PERCURSOS ................................................................................................... 17
1.1 A ESCOLHA DO MÉTODO DE PESQUISA: PESQUISA-INTERVENÇÃO E A
ATITUDE DO CARTÓGRAFO” COMO ESTRATÉGIA DE
PESQUISA................................................................................................................................ 29
1.1.1 Pesquisa-Intervenção no Brasil ..................................................................................... 32
1.2 APOSTAS E ESTRATÉGIAS PARA PESQUISAR COM O COLETIVO APARECIDOS
POLÍTICOS .............................................................................................................................. 33
2. CRIAÇÃO E RESISTÊNCIAS: BREVES APONTAMENTOS SOBRE
INTENSIDADES CONTEMPORÂNEAS ............................................................................ 38
2.1 BREVE OLHAR SOBRE A DITADURA NO BRASIL ................................................... 50
2.2 O COLETIVO APARECIDOS POLÍTICOS – PERCURSO E INTERFERÊNCIAS NOS
ESPAÇOS DA CIDADE .......................................................................................................... 54
2.2.1 Intervenção como proposta............................................................................................ 56
2.2.2 Percurso e intervenções do Coletivo Aparecidos Políticos ........................................ 58
3. IMAGENS, PERFORMANCES E TEXTOS COMO INSCRIÇÃO DA AUSÊNCIA –
ANÁLISES DE “O QUE RESTA DA DITADURA” .......................................................... 79
3.1 “O QUE RESTA DA DITADURA” E SEUS AFETOS INTENSIVOS ............................ 82
3.2 O LUGAR DA FOTOGRAFIA NA INTERVENÇÃO ...................................................... 89
3.3 PROCESSOS DE MEMÓRIA NO CONTEMPORÂNEO ................................................ 92
3.3.1 Memórias no espaço público ......................................................................................... 96
3.4 ATRAVESSAMENTOS DA ARTE POLÍTICA .............................................................. 99
4. NARRATIVA HÍBRIDA: IMAGENS E PALAVRAS – A NÃO COMEMORAÇÃO
DO GOLPE MILITAR A PARTIR DAS INTERVENÇÕES DO COLETIVO
APARECIDOS POLÍTICOS. .............................................................................................. 104
4.1 AGENCIAMENTOS E PRODUÇÕES ............................................................................ 108
4.2 ENCONTROS URBANOS EFÊMEROS ........................................................................ 115
4.3 INTERFERÊNCIAS URBANAS: DO ROSTO AO CORPO ......................................... 122
4.4 SEGMENTOS MOLARES E MOLECULARES: ATRAVESSAMENTOS
IMANENTES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ......... 127
5. QUANDO A INTERVENÇÃO URBANA EVIDENCIA O PODER DO ESTADO
FRENTE AÇÕES CONTRA HEGEMÔNICAS: RELATOS DA INTERVENÇÃO
OPERAÇÃO CARCARÁ .................................................................................................... 130
5.1 O CONTAR DE UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA POLÍTICA – OPERAÇÃO
CARCARÁ ............................................................................................................................. 131
5.1.1 O não como potência ................................................................................................... 142
5.2 DEMOCRACIA: ARTE TRAÇANDO OUTRAS FORMAS DE UMA CONSTRUÇÃO
PLURAL ................................................................................................................................. 143
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 148
REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 151
ANEXO................................................................................................................................... 159
ANEXO A – CLIPPING DE NOTÍCIAS COLETIVO APARECIDOS
POLÍTICOS.................................................................................................... ......................... 160
17
1. LINHAS E PERCURSOS
Poderia começar a escrita do presente trabalho por diversas entradas. Pela
fantasia das cidades em Italo Calvino; a partir das imagens inventadas ao longo do caminho
com o que era possível (câmeras, celular); a política no seu sentido mais filosófico e que sem
dúvida exerce sobre mim uma imensa atração; a resistência em desobediência civil de David
Thoreau, o começo e uma inspiração antiga que me impulsionou a pensar muitas questões,
dentre elas a vida enquanto comum; pela música Mistério do Planeta dos Novos Baianos
que nos lança a “jogar o corpo no mundo e acreditar na lei natural dos encontros”; ou mesmo
pelos incontáveis documentários assistidos, imagens que tomam a vida cotidiana como
elemento sublime, todos esses pontos intimamente ligados à minha trajetória e constituição
enquanto ser social e político.
Mas penso que iniciar o presente trabalho apresentando meu percurso com uma
pesquisa iniciada em 2011 e as implicações com o método escolhido para seguir
pesquisando, e que dão o tom do presente estudo, é apresentar consequentemente meu
percurso como pesquisadora que vem sendo desenhado e intensificado nos últimos anos, uma
experiência ancorada no fazer-saber, caminho que como indica Passos e Barros (2009), o saber
emerge a partir da experiência do fazer.
Acredito que apresentar desde já esse percurso é a melhor escolha para a
compreensão das redes de forças as quais me fazem chegar ao encontro do objeto da presente
pesquisa, um caminho atravessado por encontros e articulado em redes de singularidades. Um
percurso que me fez pesquisadora que experimenta e vive o método como forma de estar no
mundo.
Em 2011, começa a se desenhar um caminho de aproximações, agenciamentos,
encontros corpóreos e incorpóreos, de afetos, desejos e ao mesmo tempo a imersão no
processo de me conhecer e de afirmar minhas escolhas e tomadas políticas diante das questões
que tomam a vida como cerne, onde as relações e experiências coletivas/colaborativas é o que
de fato interessa e instiga o viver/pesquisar.
Após conversas com amigos tomei conhecimento de uma
professora/pesquisadora em comunicação, professora Deisimer Gorczevski1, recém chegada
1 Pela proposta da pesquisa e confiança a mim depositada, trago como proposta construir o texto utilizando o
verdadeiro nome das pessoas que atravessaram os movimentos da presente pesquisa. Desse modo, abro mão da
utilização de pseudônimos.
18
do Rio Grande do Sul e que montava um grupo de pesquisa intitulada Pesquisa
In(ter)venções Audio-visuais das Juventudes em Porto Alegre e Fortaleza2, coordenada em
Fortaleza pela professora Deisimer, e em Porto Alegre pela professora Nair Silveira. A
Pesquisa tinha como objetivo:
[...] acompanhar processos de intervenções audio-visuais das juventudes em territórios de criação, produção e circulação, na perspectiva de cartografar como
os jovens (e seus coletivos) experimentam o poder de intervir e inventar – seja
através de ONG’s, alianças com elas ou em coletivos autônomos – bem como
analisar a incidência de tais intervenções nas políticas públicas na configuração de
práticas micropolíticas, em Fortaleza e Porto Alegre3.
Na abertura do processo de seleção de bolsistas para a pesquisa, diversas pessoas
interessaram-se pela proposta, mesmo aquelas que não possuíam vínculo institucional com a
Universidade. Entre diversos inscritos, a maior parte alunos da Universidade Federal do Ceará
e mais especificamente do Instituto de Cultura e Arte (ICA) dos mais diversos cursos, foi
selecionada uma estudante para permanecer como bolsista remunerada, a estudante do curso
de graduação em Cinema e Audiovisual Maria Fabíola Gomes. Os demais participantes do
processo de seleção foram convidados a permanecerem como pesquisadores voluntários.
Compunham a pesquisa estudantes de graduação, mestrandos e estudantes já
formados que nutriam o desejo de seguir pesquisando, como foi o meu caso. Encontrei na
proposta da Pesquisa muitos pontos em comum com o trabalho que desenvolvi para a
conclusão de curso da graduação em Comunicação Social, desenvolvido em 2010. A partir da
TV Janela, ONG que no período trabalhava com produção audiovisual feita por jovens no
bairro Planalto Ayrton Senna, periferia de Fortaleza, desenvolvi meu trabalho sobre
comunicação alternativa e popular.
Logo no início da pesquisa era possível apontar diferenças significantes em
relação ao modo como outros grupos de pesquisa da universidade eram compostos e
funcionavam. Primeiramente, pela proposta de reunir alunos independente do curso, mas que
tivessem interesse em pesquisar intervenções que trabalhavam a comunicação atravessados
2 A pesquisa foi realizada no Instituto de Cultura e Artes, em parceria com o Grupo de Pesquisa da Relação
Infância de Mídia (GRIM), vinculado à Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, e com o grupo de Pesquisa
Educação e Micropolíticas Juvenis, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, além do Centro de Assessoria Multiprofissional (CAMP) e do
Fórum de Educação (FERES), ambos em Porto Alegre. Mais detalhes podem ser acessados no blog da pesquisa.
Disponível em: http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/ 3 Texto retirado da Memória produzida das atividades do Coletivo no primeiro ano. Disponível em:
http://issuu.com/yishay/docs/memoria_pesquisa_intervencoes2011.2?e=6873425/1518056 Aceso em 20 de
19
por outros campos do conhecimento, principalmente intervenções sonoras, visuais e
audiovisuais. Segundo, pela abertura à pessoas que desejavam seguir pesquisando, mesmo
não estando regularmente matriculado em um curso da universidade, corroborando o
institucionalismo dos grupos compostos exclusivamente por pesquisadores da instituição.
Ao contrário do institucionalismo e acreditando na potência de produzir com, a
pesquisa buscou desfazer essas barreiras que por vezes acabam distanciando a universidade da
sociedade, abrindo-se assim aos encontros e trocas, interferências diversas que passaram a
atravessar o grupo. Uma pesquisa que tomou por base, o conceito de rizoma, com múltiplas
entradas, sem meio nem fim, mas que transborda e cresce sempre por entre o meio,
constituindo multiplicidades ao longo do percurso, esse agregado de dimensões que nos
tomam ao longo do processo.
Tendo como abordagem teórico-metodológica a pesquisa-intervenção e apostando
na cartografia como uma das estratégias capazes de dar conta do acompanhamento de
processos, a pesquisa iniciou tomando como dispositivo os encontros semanais entre os
participantes da pesquisa. Aqui o dispositivo é tomado como “práticas e funcionamentos que
produzam efeitos”, segundo Kastrup e Barros (2009, p.81). O dispositivo corresponde a um
conjunto de práticas que engloba discursos, organizações, enunciados e como afirma Deleuze
(1990, p.55) os dispositivos “são como as máquinas de fazer ver e falar, tal como são em
Foucault. A visibilidade não se refere à luz em geral que ilumina objetos pré-existentes”.
Portanto o dispositivo auxilia o pesquisador a construir as linhas que permeiam um território.
Eram encontros que propiciavam a partilha de experiências nos mais diversos
campos. Ao mesmo tempo, nos preparávamos para reuniões tomando o debate de textos que
nos conduziam ao acompanhamento com os territórios existenciais. Além de nos auxiliar a
operar o método, as contribuições dos textos produziam em nós o desmanche da metodologia
como algo rígido e fixo para nos apresentar as linhas de fuga propostas pelo rizoma. Logo
uma pesquisa rizomática é aberta, de múltiplas entradas, apresentando linhas de intensidades
(DELEUZE & GUATTARI, 2011a, p.30).
Como a proposta da pesquisa era de que as questões e o próprio território de
pesquisa fossem definidos a partir do caminhar, não tínhamos um território de pesquisa pré-
estabelecido. Fomos conhecendo os territórios dos quais os integrantes da pesquisa faziam
parte e mapeando outros existentes na cidade que também nos interessavam.
outubro de 2014.
20
Pela expressividade do ritmo, pelo acolhimento e efervescência, escolhemos
seguir acompanhando intervenções propostas por jovens participantes da Associação de
Moradores do Titanzinho, localizada no bairro Serviluz em Fortaleza. É importante dizer que
mesmo tomando o Titanzinho como território de pesquisa, a ideia do coletivo era de que cada
integrante pudesse desenvolver seus projetos em paralelo, com a pesquisa em andamento e a
partir do encontro no percurso, com as aproximações e as diferenças.
Ao passo que “habitávamos” o Titanzinho, íamos sendo apresentados e nos
aproximando de outras experiências e fazeres que tinham como proposta: comunicação
alternativa, cinema/audiovisual, artes, teatro e intervenções das mais singulares que logo
passaram a compor a pesquisa como convidados. É importante também citar que redes de
conversações iam aos poucos sendo construídas a partir das Rodas de Conversas, outro
dispositivo adotado pela pesquisa.
Em uma das reuniões do Coletivo de Pesquisa In(ter)venções, mais
especificamente em outubro de 2011, conversávamos sobre experiências de coletivos e
intervenções na cidade. Fernanda Meireles, integrante da Pesquisa In(ter)venções e naquele
período mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC, nos contou do
Coletivo Aparecidos Políticos, grupo o qual um amigo “zineiro”4
participava.
Formado inicialmente por três estudantes do curso em artes visuais do
Instituto Federal do Ceará (IFCE)5, nesse período composto por Viviane Rocha, Ton Almeida
e Alexandre Mourão. A proposta do coletivo era evidenciar de maneira sensível, os modos de
atualização da repressão do Estado como vestígios do período ditatorial vivenciado no Brasil.
No entanto, a proposta do grupo centrava-se em tornar visível por meio de processos
artísticos, os muitos nomes e rostos de mortos e desaparecidos pela ditadura militar no Brasil.
A pesquisadora Fernanda relatava que naquela semana o Coletivo6
estava no
acampamento do II Festival Latino Americano da Juventude em Fortaleza7, debatendo
rebatismo social, apropriação urbana, memória, verdade e justiça e a democratização dos
meios de comunicação. Além disso, realizavam em tempo real a transmissão das atividades
que aconteciam no acampamento por meio da Zuada Rádio Livre, frequência 103,5 FM.
Nos relatos de Fernanda, ao final da programação da rádio, o Coletivo realizou a
4 Assim Fernanda chama todos os amigos que fazem fanzines. 5 Essa era a composição do Coletivo Aparecidos Políticos em meados de 2011. Ao longo dos anos de atuação, o
Coletivo foi passando por outras formações, as quais serão apresentadas ao longo do trabalho. 6 Sempre que me referir a Coletivo em maiúsculo, estarei me referindo ao Coletivo Aparecidos Políticos.
7 O acampamento foi realizado entre os dias 8 e 11 de outubro de 2011 na praia da Cofeco, em Fortaleza.
21
leitura dos nomes de 140 mortos e desaparecidos políticos pela ditadura militar. Naquele dia,
tudo o que Fernanda conseguiu contar, ainda que pouco, nos tomou e esse foi o primeiro
relato que tivemos do Coletivo que trazia como proposta trabalhar intervenções que
transitavam entre arte e política, de intervir na cidade e em seus fluxos, o que já era
suficiente para nos afetar e produzir o desejo de que buscássemos aproximações.
Ainda que breve, a narrativa de Fernanda foi o bastante para contagiar todos os
presentes no encontro. Queríamos saber quem eram, o que faziam e qual a proposta do
Coletivo com essas intervenções. Queríamos chegar perto, ter o contato, dispor nossos desejos
ao encontro. Fui afetada, e como nos diz Deleuze (1978, pag.9), um afeto alegre, capaz de
produzir um agir. E é logo nas variações de afetos vividos, que algo convocava-me ao
movimento de pesquisar (LAZZAROTTO E CARVALHO, 2012, pag.26). Ao mesmo tempo
em que me fascinei, os questionamentos tomavam-me, invadidos também de sensações.
Perguntava-me quais as inquietações que moviam essas pessoas que não viveram o período
ditatorial, a mexerem nessa ferida recente e ao mesmo tempo tão delicada do país? Quais
eram os desejos ali em jogo? O que cada um trazia? Qual a dimensão dessa resistência? O que
conduzia os participantes a pensar a arte como potência de intervenção social?
Quando me pegava pensando no Coletivo e no relato feito por Fernanda, podia
imaginar de maneira muito nítida, a leitura dos 140 nomes dos desaparecidos e mortos pela
ditadura. Podia ouvir como se estivesse com o ouvido colado no rádio o nome e sobrenome de
cada um. Esse imaginar é provocador de um composto de sensações potentes e ainda capaz de
encarnar o acontecimento. Imaginar “se coloca como invenção de si e do mundo: tornar
visíveis forças que não estão visíveis” (DIAS, 2012, p.129).
Ao mesmo tempo me pegava tentando puxar pela memória, lembranças das aulas
de história que abordassem o estado de exceção vivido entre 1964-1985. Pouco me vinha, não
conseguia lembrar de nenhum professor tomando esse momento como um dos piores da
história do país. Meus pais, ao contrário de muitos outros e paradoxalmente igual a muitos,
viveram aqueles anos de agitação na mais completa apatia. Esses eram pontos que naquele
momento me inquietaram profundamente, o conhecer de maneira muito superficial aquele
momento que trouxe resquícios tão profundos para todos os segmentos da sociedade e que
torturou e calou tantas pessoas de modo brutal.
O próprio nome do Coletivo nos dava pistas de que algo daquele período não
havia desaparecido, a memória, a resistência como invenção e o desejo de verdade e justiça,
aguçados por novos fazeres políticos continuavam vivos. Os demais participantes e também a
22
professora Deisimer, coordenadora da Pesquisa In(ter)venções, sentiram-se instigados, afinal,
havia aproximações com o objetivo da pesquisa que vinha cartografando em Fortaleza e Porto
Alegre, intervenções de jovens que se organizavam em coletivos, ou mesmo sozinhos, mas
que tivessem como proposta intervir na cidade e em seus fluxos a partir de fazeres
comunicacionais e artísticos.
Combinamos com Fernanda de que ela nos colocaria então em contato. Comecei a
pesquisar na internet e encontrei o site do Coletivo8
que dava mais informações: quem eram
seus integrantes, um pouco das intervenções que já haviam sido realizadas, além das
inspirações teóricas e mesmo de intervenções na rua que os norteavam. Ficamos
compartilhando informações e conversando sobre essa experiência de um fazer que trazia arte
e política, naquele primeiro momento entendido como algo separado. Esse primeiro conceito
foi o que nos moveu a pesquisar, a querer chegar mais perto e a pensar que essas
novas organizações coletivas carregam uma carga política muito forte. É também, um dos
conceitos centrais no presente trabalho. Não a política tradicional, mas o conceito de
política em um campo alargado, visto como a irrupção de algo que abala as estruturas do
consenso.
Em fevereiro de 2012, por meio de um edital da Secultfor, o Coletivo realizou, na
Galeria Antônio Bandeira9
a Exposição/Ocupação Rádio Arte: Memórias e Resistência. A
proposta primeiramente era refletir sobre os resquícios da ditadura militar e segundo, a
ausência de democracia nos meios de comunicação, que deriva da incompleta justiça de
transição no país. Assim a proposta era de que artistas, coletivos e movimentos sociais se
apropriassem da rádio Zuada e criassem suas programações, feita a cada dia com um grupo
diferente.
Por intermédio de Fernanda e também com contatos por email realizados pela
Pesquisa In(ter)venções, fomos convidados a participar um dia da programação juntamente
com Fernanda que iria falar sobre Fanzine e a cidade. Foi nosso primeiro contato direto.
Conversamos sobre a experiência do coletivo de pesquisa no Titanzinho, sobre os desejos e
também de convergências, e de como os fazeres em arte também nos interessava. Participei
do momento acompanhada dos demais integrantes da Pesquisa: Fernanda, professora
Deisimer, Fabíola, bolsista da pesquisa. Também tínhamos como convidada Janaina Bento,
8 Para conhecer o site do Coletivo Aparecidos Políticos acessar: http://www.aparecidospoliticos.com.br/ 9 A galeria é um equipamento da Prefeitura Municipal de Fortaleza que abriga exposições de artes visuais.
http://www.galeriaantoniobandeira.ce.gov.br/a-galeria/a-galeira
23
que fez parte de projetos da ONG Aldeia e que naquele momento vinha participado de
atividades da Pesquisa, inclusive em Porto Alegre.
Após o término da nossa participação, resolvemos ir caminhando até o centro,
pois tínhamos tempo para conversar mais um pouco, sobre os nossos fazeres. Seguimos
caminhando e logo fomos alcançadas por Marquinhos10
, integrante do Coletivo. Marquinhos
nos falava sobre os filhos e do quanto eles gostavam do centro da cidade.
Achamos interessante a companhia dele, mesmo que breve. Percebemos que essa
aproximação, naquele momento, era tão natural que parecíamos próximos a ele de outros
tempos. Talvez seja um pouco do que nos fala Deleuze (2006, pág.7) de que é tudo uma
questão de estar sensível aos signos emitidos pelo outro, a necessidade da atenção mesmo que
nos momentos de deriva.
Daquele dia em diante estreitamos os laços. Passamos a nos interessar ainda mais
pelas ações do Coletivo e a escrever sobre as inquietações que essas intervenções nos
provocavam. Em paralelo, vimos ganhar força e em Porto Alegre, ações do Levante Popular
da Juventude11
, que vinha produzindo intervenções abordando a ditadura também pelo
viés artístico, mais precisamente por meio do teatro, produzindo encenações de torturas em
frente as casas de torturadores, ações conhecidas como escrachos12
. Encontramos nos dois
territórios de pesquisa, Fortaleza e Porto Alegre, essa nova aproximação. Enquanto o Levante
propunha ações mais diretas e incisivas, os Aparecidos Políticos trabalhavam com a ordem do
sensível, no entanto sem perder a força e o caráter transgressivo da arte, recorrendo
10 Seu nome é na verdade Marcus Venícius, mas todos o conhecem e o mesmo prefere ser chamado de
Marquinhos. 11 Com atuação em dezessete Estados brasileiros, o Levante Popular da Juventude é um movimento que surge
em 2005, no Rio Grande do Sul. Jovens que se apresentam como militantes organizados com o objetivo de lutar
pela transformação social propondo um “Projeto Popular para o Brasil” com o desejo de renovação das práticas
políticas no país. Um movimento que se propõem descentralizado na perspectiva de ampliar as ações e
experienciar outras formas de organização juvenis atuando em diferentes cidades e envolvendo múltiplos setores
e movimentos sociais. Nos centros urbanos, participam jovens do meio estudantil e universitário e nos setores
camponeses são os jovens da Via Campesina, bem como os que buscam alternativas na construção de seus
movimentos e a relação com um projeto popular. Dentre as mobilizações e agitações realizadas pelo Levante,
enfatizamos os “Escrachos”, ato político que acontece nas ruas, geralmente em frente às residências ou locais de trabalho dos envolvidos em praticas de crimes durante a ditadura militar. Nas manifestações os jovens
encenam atos de tortura que marcam acontecimentos ocorridos durante o período da ditadura no Brasil. O
principal objetivo dos Escrachos é denunciar os crimes praticados por esses agentes e defender a instalação da
Comissão da Verdade nas mais diversas instituições, no sentido de afirma o direito à memória, a verdade e a
justiça. 12 Também conhecido como escraches, a ideia é de produzir um constrangimento ou uma denúncia em frente a
casas ou mesmo locais de trabalhos, de pessoas que tiveram relação ou mesmo praticaram crimes de tortura e
morte durante o regime militar. A ação que já é feita na Argentina, toma o Brasil em 2012 por meio de ações do
Levante Popular da Juventude. (Texto retirado do Blog da Pesquisa In(ter)venções. Disponível em:
http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/territorios-levante-popular-da-juventude.html)
24
principalmente as expressões da arte urbana.
A fim de conhecer mais sobre as intervenções do Coletivo Aparecidos Políticos
no espaço público de Fortaleza, em especial, resolvemos convidá-los para a VI Roda de
Conversa da Pesquisa In(ter)venções13
, outro dispositivo adotado pela pesquisa na busca de
criar aproximações com outros coletivos da cidade. As intervenções apresentadas muito
tinham a nos falar desses fazeres artísticos e comunicacionais pela cidade, tomando a política
como cerne de produção artística.
Durante a Roda de Conversa, percebíamos que o Coletivo recorria aos “dizeres”
do Filósofo Jacques Rancière, quando o autor afirma que “arte é política”. Para o Coletivo as
intervenções produzidas eram intervenções artístico-políticas e afirmavam isso baseado nas
palavras do mesmo autor. Foi o bastante para que me sentisse ainda mais curiosa, definindo
desde então a primeira categoria teórica para seguir pesquisando: arte política. Essa era a pista
para seguir, uma vez que sigo convicta da necessidade de uma dose de tomada política, a
entendendo enquanto partilha e desentendimento, para sairmos do estágio de letargia que por
vezes parecemos imersos.
No mesmo dia da Roda de Conversa, nas paredes do prédio de comunicação da
UFC, realizamos a projeção de vídeos produzidos pelo Coletivo. Era a primeira vez que algo
era projetado nas imensas paredes brancas do prédio. Esse foi o segundo despertar, já que
vídeo e fotografia sempre foram duas linguagens das quais nutri o desejo de aproximação e
também de fazer. O Coletivo de Pesquisa foi o impulsionador desses desejos e comecei a
experimentar de forma mais intensa as duas linguagens.
Comecei a participar cada vez mais das atividades do Coletivo, queria
acompanhar de perto e decidi que aquela seria a pesquisa que desejava desenvolver, também
envolvida pela vontade de construir modos de ser e estar no mundo ligados à cultura, à arte e
à comunicação, conectados com o fazer político. Algo que fosse potente no sentido de
produzir desterritorializações. Pesquisar para mim, sempre teve e sempre terá um sentido
atravessa uma escolha de quais modos de existir.
A partir da Roda de Conversa chegamos ainda mais próximos dos fazeres do
Coletivo. Começamos a estabelecer uma relação de afinidade entre coletivos, pois comecei a
participar de forma mais intensa do que conseguia acompanhar. Nas atividades do Coletivo,
tomei a câmera também enquanto dispositivo de agenciamento e passei a realizar registros em
13
Para visualizar imagens o convite-apresentação da Roda de Conversa acessar:
http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/roda-de-conversa-fortaleza-com.html
25
fotografia e vídeos.
Naquele momento já havíamos estabelecido contatos por meio das redes sociais.
Passei a receber mensagens de Alexandre, integrante do Coletivo, pedindo as fotos do dia
anterior para serem postadas na página que o Coletivo mantém no Facebook. Logo fui
incluída na lista de e-mails por onde comecei a acompanhar e as vezes disponibilizando-
me para fazer algo nos momentos em que eles se viam mais atarefados. Nesse período o
Coletivo tinha outra composição, sendo os integrantes Marquinhos, Stella e Alexandre. Além
do email, conversávamos também via troca de mensagens pela rede social.
Depois de um período, Marquinhos e Stela também começaram a participar das
atividades da Pesquisa In(ter)venções no Titanzinho, território da pesquisa. Começamos a nos
implicar e a nos conhecer mais. Conhecer o que tínhamos de proximidade e o que entre nós
eram diferenças. Marquinhos, a partir da aproximação com a Pesquisa, passou a contribuir em
alguns momentos no Titanzinho facilitando oficinas de estêncil.
Após o ingresso no mestrado percebo que esse momento fez com que eu
pudesse estar ainda mais presente nas atividades e intensidades propostas pelo Coletivo
Aparecidos Políticos. Não eram mais participações pontuais, mas um “estar com” cada vez
mais recorrente.
Comecei a me aproximar ainda mais de Marquinhos, principalmente por
morarmos em bairros próximos, sempre voltávamos juntos após as atividades que
realizávamos pelas imediações do bairro Benfica. Conversávamos sobre a vida, as desilusões,
dificuldades, desejos e principalmente sobre as ações do Coletivo Aparecidos Políticos.
Marquinhos é desde o início alguém importante, de maneira a provocar sentidos e sensações,
impulsionando-me ao fazer artístico e afirmando até mais do que eu, minhas invenções a
partir da fotografia.
No dia 01 de abril de 2013, em atividade de rememoração ao golpe militar, o
Coletivo realizou uma intervenção no Mausoléu Castelo Branco14
, colocando cerca de 150
barcos de papel com a imagem de mortos e desaparecidos políticos em uma das piscinas que
ornamentam o espaço. Dentro do barco uma vela possibilita ver o rosto impresso no papel.
Na ocasião, os integrantes do Coletivo convidaram pessoas próximas ao Coletivo,
foi quando recebi o convite de Alexandre. Participando da ação e ao mesmo tempo com a
câmera acoplada ao meu corpo, criava imagens daquele momento em que cada um dos
14 Mais detalhes da intervenção na seção 2.2.2 que apresenta o percurso do Coletivo Aparecidos Políticos.
26
presentes, com o barco em mãos, lia o nome do seu desaparecido e todos os outros
respondiam em voz alta: “presente”, colocando em seguida o barco na piscina. O grito de
“presente”, rompia com a construção de que falávamos de um desaparecido, para evocar a sua
presença, mesmo que simbólica. No decorrer da ação, parentes e amigos de desaparecidos
falavam daquele momento, da memória das pessoas que morreram lutando por um ideal
democrático. Um momento único e forte, que pela potência derivada, conseguia evocar algo
daquele período e dos seus “homenageados”.
Com as imagens capturadas, fiz uma rápida edição para apresentação na IX Roda
de Conversa em Porto Alegre – Memórias da Ditadura e Políticas de Resistência em Tempos
de Democracia, que teve como objetivo discutir políticas de resistência de coletivos de
jovens que problematizam práticas da ditadura a partir de intervenções urbanas. A Roda de
Conversa, articulada pela professora Deisimer e pela professora Nair, reuniu um bom número
de estudantes e pesquisadores interessados na temática. Na ocasião contamos com a
apresentação dos envolvidos na pesquisa e montagem do livro "Não calo, Grito: Memória
Visual da Ditadura Civil- Militar no Rio Grande do Sul", Carla Simone Rodeghero e Dante
Guimaraens Guazzelli, produzido em parceria com o CAMP (Centro de Assessoria
Multiprofissional). Além da apresentação do Projeto “Ausências Brasil”, com fotografias de
Gustavo Germano, realização da ONG Alice - Agência Livre para Informação Cidadania e
Educação, mostrando de modo muito particular e ao mesmo tempo forte, imagens dos
arquivos familiares de mortos e desaparecidos.
O encontro que durou toda uma tarde e uma parte da noite, rendeu uma incansável
conversa que apresentou diferentes modos de abordar a memória, maneiras de lidar com
contextos históricos, políticos e sociais do país de modos distintos. Realizar esse intercâmbio
naquele momento, foi muito significativo tanto para o amadurecimento da pesquisa, quanto
para mostrar que as pistas que vinha seguindo eram consistentes.15
Após a Roda de Conversa em Porto Alegre, apresentei o vídeo que havia
s ido editado para aquele momento ao Coletivo Aparecidos Políticos, que imediatamente
disponibilizou o material no seu site. Essa questão do vídeo também constituiu um ponto
importante para nos aproximarmos, já que o Coletivo tinha o desejo de inventar e produzir
materiais audiovisuais e naquele momento a integrante que desenvolvia esse trabalho havia
saído.
15
Para conferir a programação da Roda de Conversa, com os convidados à participar acessar o link:
http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/ix-roda-de-conversa-porto-alegre.html
27
A partir do conviver com o Coletivo, alguns padrões e marcadores foram surgindo
durante o percurso. Abro mão do conceito categorias, muito ancorada nos apontamentos de
Pellanda (2003, 2008), para quem as “categorias não são adequadas para lidar com uma
realidade complexa e em devir” (2008, p.1080). Uma primeira dimensão dos dados é pensar
que são padrões que se conectam no sentido de que a realidade vai sendo configurada por
meio da repetição desses padrões. Os marcadores, enquanto segunda dimensão, correspondem
aos pressupostos teóricos mais importantes do quadro teórico utilizado. Esses pressupostos
vão sendo aplicados a essa realidade que emerge.
Desse modo, nas conversas e trocas de e-mail entre os integrantes dos
Coletivos, a ideia de uma resistência sempre era tomado como algo que evoca força e
criação. Fui então me dando conta que correspondia a um dos marcadores da presente
pesquisa. Por vezes interrogava-me que forma de resistência era essa que se ancoravam para
falar, já que hoje a resistência pode ser tomada por diversas entradas.
Por meio das conversas e dos momentos de acompanhamento de algumas
intervenções, as evidências apontavam que, para o Coletivo, o termo evocava certa
ambiguidade. Ao mesmo tempo em que tomavam resistência como ato contrário, como recusa
e negação, que se evidenciava em seus discursos, evocavam também a resistência como
potência inventiva e criativa, de que nos fala Deleuze (2011a) a partir de suas ações.
Durante conversas em encontros mais informais, percebi que muito falavam do
espaço público, da tensão estabelecida entre o público e o privado, além da potência da
estética nesses espaços, do quanto existe potencia nas construções estéticas que tomam a rua.
Decidi assim seguir com essa pista, espaço público, como o segundo padrão e marcador.
A partir da Pesquisa In(ter)venções, das aproximações que vinha tendo com os
Aparecidos Políticos, o desejo de estar ainda mais perto, bem como os fazeres com o Coletivo
me conduziram a participação como integrante. O convite muda minha condição de alguém
que acompanha e intervém pontualmente para me tornar integrante. É o início da partilha de
fazeres políticos e artísticos, além da amizade que se constituía e se fortalecia a cada encontro,
a cada e-mail trocado, a cada momento compartilhado ao final dos encontros. Não havia
mais a possibilidade de me dissociar daquilo que já era um dos meus universos.
Pesquisar e viver estavam, portanto, intimamente imbricados. Já não era mais a
mesma. A partir dos agenciamentos constituídos ao longo do tempo, fui aspirada e
multiplicada, partilhando com os demais integrantes esse sensível que a memória dos mais de
400 mortos e desaparecidos políticos. A questão da memória também se apresenta enquanto
28
marcador importante, por esse motivo também compõe as análises que seguem.
Ao mesmo tempo em que sigo intervindo com e no Coletivo, as novas
experiências muito têm interferindo em mim, no modo como tenho lançado meu olhar ao
mundo, no constituir de novos fazeres/saberes. Tudo se reconfigurou em uma velocidade que
não consigo explicar. O espaço, o tempo, o sensível, a percepção do espaço público e da
memória desses lugares. As escolhas estéticas também já se modificaram e por tais
interferências, o caminhar sem metas pré-fixadas, foi significativamente fundamental para
minha constituição como pesquisadora.
Chegamos ao fim da Pesquisa In(ter)venções no final de 2013. Ao longo do
percurso de dois anos e meio tivemos diversos encontros e muitas pistas por onde poderíamos
seguir. Durante o percurso fomos atravessados por processos artísticos intensificados no
Titanzinho, mais especificamente com o processo de pintura da fachada da Associação de
moradores, momento que encontramos artistas locais, como Ceci Shiki e o próprio
Marquinhos, com oficinas de estêncil, grafite e colagem de cartazes lambe-lambes16
. Do
encontro com Wriel, grafiteiro da própria comunidade do Titanzinho e articulado com artistas
da cidade, que também colaboraram nas intervenções, além da própria Fernanda, nas oficinas
de fanzine de portas abertas levando à cidade um pouco desse lugar, através de textos e
imagens.
Percebemos, nessas intervenções, a potência para seguir pesquisando com as
múltiplas linguagens artísticas, mais especificamente, problematizando a relação existente
entre arte e política. Nessa perspectiva, buscamos intervir em diferentes espaços da cidade de
Fortaleza, inventando encontros com singularidades, subjetividades, modos de conviver e
circular nela.
Tomando o encontro de desejos de seguir pesquisando e afirmando o percurso
realizado pela Pesquisa In(ter)venções, montamos um projeto a várias mãos chamado Arte |
Espaço Comum | IntenCidades, aprovado no início de 2014 no Programa de Pós-Graduação
em Artes e que reuni pesquisadores, estudante e artistas participantes do processo anterior de
pintura da fachada da Associação de Moradores. Com a coordenação da professora Deisimer
Gorczevski o projeto teve as seguintes autorias: Anna Lúcia dos Santos, Fernanda Meireles,
João Miguel Lima, Rafaela Kalaffa e Sabrina Araújo. Como co-autores: Alexandre Ruoso,
Cecília Shiki, Joana Schroeder, Marcos Venicius, Fabiola Gomes e Wilma Farias. Contou
16
A técnica consiste na colagem de cartazes, seja imagens ou desenhos, impressos em papel e colados nos
espaços da cidade a partir de cola branca ou cola caseira, feita a base de farinha de trigo.
29
ainda com os coletivos aliados: ONG ZINCO17
– Centro de Estudo, Pesquisa e Produção em
Mídia Alternativa, Aparecidos Políticos, Projeto de Extensão "Se essa rua fosse
nossa" – UFC18
, Coletivo Audiovisual do Titanzinho e Coletivo In(ter)venções. O projeto
teve como proposta, seguir pesquisando a partir das pistas: resistência, arte política e espaço
público, buscando o cruzamento de pesquisas que são singulares e ao mesmo tempo comuns a
todos. A aposta na amizade, nos afetos tristes e alegres, nos encontros, na criação de
possibilidades outras de resistir a cidade e inventar outros modos de estar nesse lugar, é o que
nos motiva a seguir inventando e intervindo.
1.1 A ESCOLHA DO MÉTODO DE PESQUISA: PESQUISA-INTERVENÇÃO E A
“ATITUDE DO CARTÓGRAFO” COMO ESTRATÉGIA DE PESQUISA
A complexidade da realidade social, a multiplicidade de fenômenos sociais e
subjetivos e a demanda por uma efetiva contribuição de trabalhos acadêmicos com a vida tem
nos colocado, enquanto pesquisadores, diante de um desafio pertinente, inventar
procedimentos metodológicos que sejam ao mesmo tempo mais abertos e inventivos quando
nos referimos a pesquisas em ciências humanas. Métodos esses capazes de produzir
conhecimento afirmando outros possíveis, extrapolando os limites da representação,
rompendo com o positivismo das ciências humanas e colocando as verdades produzidas no
ato de pesquisar, sempre como algo provisório, sendo reinventado em cada pesquisar.
Não tenho a pretensão de travar aqui uma discussão ou mesmo considerar qual o
melhor ou pior caminho metodológico a realizar, muito menos apresentar o método que
escolhi para seguir meu percurso, enquanto proposta revolucionária do conhecimento, longe
disso. Até mesmo porque a escolha metodológica implica dois pontos importantes: primeiro o
desejo do pesquisador de qual caminho traçar e o segundo o próprio campo de pesquisa muito
diz ao pesquisador quais procedimentos necessitam ser adotados.
É ainda interessante pensar que não se refere a noção de técnica ou enquadre do
campo o que define o caráter da pesquisa-intervenção, mas esse tipo de pesquisa implica
justo a posição que o pesquisador ocupa nos jogos de poder, a sua implicação com o saber
17
Para conhecer a ONG Zinco ver a dissertação de Meireles (2013) “Cartas ao Zine Esputinique: escritas de si e
invenções de nós da rede”. 18 Intervenção realizada com os estudantes de Arquitetura da UFC e moradores da Rua Lauro Vieira Chaves,
uma comunidade ameaçada pela remoção, em Fortaleza. O trabalho é uma continuidade do mutirão iniciado no
SENEMAU-2012 (Seminário Nacional dos Escritórios Modelo de Arquitetura) sediado pelo Canto.
30
científico e abertura para a criação de zonas de desestabilização.
Rosário e Aguiar (2012, p.1263) nos falam da tradição que tem o Brasil em
trabalhar com pesquisas qualitativas, sobretudo nas ciências sociais. Mas há grandes tensões
sobre que tipo de abordagem utilizar, se quantitativa ou qualitativa, e também uma
polarização de onde empregar uma ou outra. O que se observa é que enquanto pesquisas
quantitativas se empenham em trazer à ciência a exatidão e segurança, pesquisas qualitativas
tem se imbricado muito mais com a representação da realidade.
Mesmo sendo abordagens distintas, não anula-se a possibilidade de combinação
dos dois métodos na realização de uma mesma pesquisa. No entanto, como já
citado anteriormente, é necessário que a produção científica se coloque para além da exatidão
e representação de objetos, mas que se comprometa com a produção de conhecimento em que
o agenciamento de práticas reais sejam capazes de ampliar possibilidades de vida.
Tentando fugir de todos os impasses metodológicos, a questão central deve ser “como
investigar processos sem deixá-los escapar por entre os dedos” (PASSOS; KASTRUP;
ESCÓSSIA, 2012, p.08).
Como pesquisadores do campo das ciências humanas e sociais, nossas perguntas
necessitam de uma abordagem que consiga indagar sobre os modos de viver, de existir e de
pensar. Compreender um sistema de vida a partir das suas múltiplas formas de constituição.
Nesse sentido parece-me que a abordagem qualitativa é a que de fato consegue aproximar tais
questões no presente estudo.
Santos (2002) têm afirmado a crise pela qual tem passado a ciência moderna e
demonstrado preocupação quanto a contribuição da produção de conhecimento para a
sociedade. Para o autor, vivemos um momento de transição científica,
sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria
revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser
também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente). (SANTOS, 2002,
p.37)
É justo por esse caminho, do percurso realizado com o Coletivo de Pesquisa
In(ter)venções e também a partir do Coletivo Aparecidos Políticos, que me despertou pensar o
pesquisar, a produção do conhecimento como domínio do conviver, de que nos fala
Maraschin (2004, p.100). Logo o observar e o explicar são erguidos a partir do acoplamento
entre organismo e meio, ou seja, sobre a dinâmica estrutural do ser vivo ligado ao modo como
a vida se organiza, apresentando desde logo uma imersão no funcionamento da vida ao invés
31
da tentativa precipitada de responder o que ela é.
No entanto, existe um nível de complexidade nesse pesquisar que se coloca além
da mera representação de objetos e exige que o pesquisador traga para a pesquisa uma
dimensão sensorial, já que observar a vida e compreendê-la requer a realização de um
percurso vivo, imbricado ainda em uma rede de conversações. Esse tipo de pesquisa requer
um tempo em campo, tempo esse que só poderá ser precisado pelo conviver.
Nesse sentindo, penso que empregar a pesquisa-intervenção como aporte
metodológico e lançar mão da “atitude do cartógrafo” (GORCZEVSKI, 2007, pág.44) como
estratégia, é o que mais conseguiria abarcar os momentos de acompanhamento de processos
junto ao Coletivo Aparecidos Políticos. No percurso, a subversão inicia justo pelo sentido
tradicional de método: não um caminhar no sentido de alcançar metas pré-fixadas, mas de
fazer com que a meta se torne efeito do caminhar, que surja a partir do percurso (PASSOS;
BARROS, 2012). Logo, o método é uma aposta à experimentação e não uma aplicação, como
falam Passos; Kastrup; Escóssia, (2012).
Apesar de já serem diversas as pesquisas que tomam a intervenção e a
cartografia como metodologia de trabalho, pesquisas essas nos mais variados campos como
da psicologia, educação, comunicação, saúde, arte e ainda filosofia, ainda é evidente a grande
desconfiança da ciência moderna com pesquisas que têm como foco acompanhar processos de
subjetivação. Mas apostar na intervenção como processo de coengendramento, de criação de
si e do mundo é, ao mesmo tempo, um modo de resistir aos processos de institucionalização
que tomam o método como algo fixo e que objetivamente deve ser seguido como uma espécie
de prescrição.
Esses que não se deixam captar por métodos que fatalmente levariam a
representação dos seus objetos de pesquisa, são muitas vezes questionados quanto a
cientificidade de seus trabalhos, quanto ao rigor do método e validade perante a ciência.
Quanto ao rigor, não se trata de tomá-lo pela rigidez, muito menos como questão de um abrir
mão,
[...] mas esse é ressignificado. O rigor do caminho, sua precisão, está mais próximo
dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo, de que fala Canguilhem. A precisão não é tomada como exatidão, mas como compromisso e interesse, como
implicação na realidade, como intervenção. (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA,
2012, p.11)
32
1.1.1 Pesquisa-Intervenção no Brasil
Leituras e pesquisas dão conta de uma tradição da pesquisa-intervenção
frente a outros métodos empregados em pesquisa. Há também uma densa contribuição teórica
de grandes nomes de diversas áreas do conhecimento como pedagogos, filósofos, artistas,
psicólogos e ainda de cientistas sociais. É importante dizer que a pesquisa-intervenção é
tomada como prática metodológica inicialmente por psicólogos, os quais tinham uma atuação
assentada na pedagogia na busca pelo rompimento do institucionalismo e das múltiplas
práticas cristalizadas nesse campo de conhecimento.
As décadas de 1950 e 1960 marcam esse momento histórico de ruptura,
ressignificações metodológicas e desnaturalização das práticas, que passaram a ser colocadas
em análise. A efervescência política na França de caráter descentralizador e principalmente os
conflitos de Maio de 1968, responsável pela contestação de diversos aspectos da vida em
sociedade, foram os principais fatores para que esse rompimento eclodisse.
No Brasil, são décadas de grande insurgência popular e ao mesmo tempo de
resistência. Vivia-se um contexto de grande agitação e ao mesmo tempo de uma forte
repressão política com o exílio de militantes e intelectuais do país, causando uma
desmobilização dos movimentos populares.
No entanto, a resistência continuava mesmo que por meio da
“clandestinidade”. Nesse contexto, é interessante citar o método desenvolvido por Paulo
Freire, que tem como cerne, uma educação popular que fugisse os tradicionais modelos de
limitar o educando a decorar letras e formar palavras. A questão central da metodologia era
que, independente de classe, sexo, cor ou religião, o educando tivesse acesso aos direitos
básicos e, por meio de uma escolarização das camadas populares, respeitando seus processos
cognitivos e mesmo seu cotidiano, eles pudessem contribuir para a transformação social.
Paulo Freire, mesmo não tendo o devido reconhecimento nacional, é mundialmente celebrado
como pedagogo que realizou um caminho de desnaturalização das práticas pedagógicas no
país.
No campo da psicologia, na qual a pesquisa-intervenção é cada vez mais
recorrente, foi o momento de experimentar a psicologia social no desenvolvimento de
processos educativos, especialmente junto a grupos e organizações das camadas populares.
Nesse sentido, a porta de entrada da pesquisa-intervenção no Brasil se dá por esses dois eixos
em específico: educação e psicologia.
33
Logo é possível apontar que produziu-se nesse período uma densa articulação
entre a psicanálise e os movimentos políticos de esquerda, o qual também coincide com todo
o movimento relacionado à reforma na saúde mental. Questionavam-se diversos aspectos
institucionais, dentre eles os jogos de poder evidenciados nas práticas, além do claro
afastamento entre teoria e prática.
Denominado de movimento institucionalista, era evidente a contraposição a
cristalização das práticas nas diversas instituições. A aposta do movimento se deu então na
dissolução desses territórios constituídos para evocar a criação de outros capazes de
subverter a noção de instituição como algo regular e normatizado, reapresentando a instituição
como a “retenção do processo de criação que por fuga, por ruptura, gera realidade”
(AMADOR, 2012, p.136).
A Pesquisa-intervenção surge então no fluxo do movimento institucionalista
com dois sociólogos da educação, Lourau (1993;1996) e Lapassage (1979;1989) em
conversação com Guatarri (1987) e outros pensadores da época, como o próprio Foucault
(2008;2009a;2009b). Lourau, como principal nome, leva adiante a pesquisa-intervenção e
fala da necessidade em apresentar as implicações do pesquisador em situação de pesquisa
como aspecto fundamental no desenvolvimento do seu trabalho científico, mesmo essa
implicação sendo fortemente negada.
A possibilidade de intervir, apresentada por Lourau, apresenta como possível a
produção de desmanche das posições, como a clássica polarização sujeito-objeto, ainda muito
evidente na pesquisa-ação, para provocar o saber como algo contido no regime de
intervenção. O processo implica, portanto, em colocar as práticas em análise, rachar as coisas
para delas extrair as visibilidades, e rachar as palavras no sentido de extrair os enunciados,
como nos fala Deleuze (2010) reafirmando o pensamento de Foucault. Desse modo o
processo se constitui como uma espécie de busca dos fios que compõem a trama.
1.2 APOSTAS E ESTRATÉGIAS PARA PESQUISAR COM O COLETIVO APARECIDOS
POLÍTICOS
Embora não seja a única estratégia da pesquisa-intervenção, aposto na atitude do
cartógrafo como valioso caminho de investigação. Isso porque o interesse em pesquisar com o
Coletivo Aparecidos Políticos se dá justo pelo ato de acompanhar um processo artístico da
ordem do invisível, do micropolítico, que só terá sentido se vivido na sua intensidade.
Seguindo as pistas de Deleuze e Guattari (2011a), formuladores da cartografia, a aposta se dá
34
justo na construção de intercessores, interferências e agenciamentos a partir de movimentos
múltiplos e que, diferente da ciência moderna,
[...] não visa isolar o objeto de suas articulações históricas, nem de suas conexões
com o mundo. Ao contrário, o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede
de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando
conta de suas modulações e de seu movimento permanente (BARROS;
KASTRUP, 2009, p.57).
Para Suely Rolnik, a cartografia é para os geógrafos a representação de um plano
estático, diferentemente do que o método cartográfico em ciências humanas significa. A
cartografia de que falamos trata de um território que antes de ser geográfico é existencial,
exigindo do pesquisador o movimento com o objeto, no sentido de compreender suas
modulações. Rolnik (2006) afirma que:
a cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o
desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros:
mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (ROLNIK, 2006, p.23).
É necessário, portanto, a imersão no plano das intensidades em que o território se
encontra, logo cabe ao cartógrafo dar língua aos afetos e estar atento as linguagens que vai
encontrando no percurso.
Em Cartografia Sentimental, Rolnik traça um “manual” do cartógrafo, com o
objetivo de “direcioná-lo” para sua pesquisa. A priori, a autora alerta de que não existem
direções prefixadas,
restaria saber quais são os procedimentos do cartógrafo. Ora, estes tampouco
importam, pois ele sabe que deve “inventá-los” em função daquilo que pede o
contexto em que se encontra. Por isso ele não segue nenhuma espécie de protocolo
normalizado. (ROLNIK, 2006, p.68).
O mergulho do cartógrafo se dá, portanto, nas intensidades da vida e seu
princípio é desde logo:
[...] extramoral: a expansão da vida é seu parâmetro básico e exclusivo, e nunca
uma cartografia qualquer, tomada como mapa. O que lhe interessa nas situações
com as quais lida é o quanto a vida está encontrando canais de efetuação. Pode-
se até dizer que seu princípio é um antiprincípio: um princípio que o obriga a estar
sempre mudando de princípios. É que tanto seu critério quanto seu princípio são
vitais e não morais. (ROLNIK, 2006, p.68)
35
Ao longo do trajeto e mais especificamente da Pesquisa In(ter)venções, a leitura
do livro Pistas do Método da Cartografia, organizado por Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e
Liliana da Escóssia, foi o encontro com o método que apontava outras possibilidades para
seguir pesquisando. Passei então a tomar o envolvimento com o Coletivo Aparecidos
Políticos, enquanto um pesquisar “com” algo e não “sobre” algo. Como afirma Passos e
Barros (2012, p.31) “conhecer o caminho de constituição de dado objeto equivale a caminhar
com esse objeto, constituir esse próprio caminho” ao mesmo tempo em que me constituía
pesquisadora.
Durante o percurso, fui percebendo que o campo empírico é muito mais um
território existencial, onde a expressividade é mais significante e que sua existência só é
possível a partir do momento em que há expressividade do ritmo, constantemente em
processo de produção. Assim, percebi que não havia outro caminho para o processo de
habitação de um território se não a imersão nas próprias situações cotidianas.
No sentido de produzir dados ao invés de coletá-los, como é proposto pelo
método cartográfico, lancei mão de alguns dispositivos que durante o percurso
contribuíram com a produção de informações, dispositivos pudessem operar tanto no
sentido metodológico como também de intervenção. O primeiro dispositivo foi a aposta em
encontros semanais que já acontecem no Coletivo Aparecidos Políticos. O momento é
reservado para a partilha de experiências, fazeres, criar coletivamente as ações do
Coletivo, bem como planejar e avaliar as ações propostas.
Pensando na importância e necessidade de escrever e atentar sempre para os
acontecimentos junto ao Coletivo, a escrita de um diário de bordo se colocou como aspecto
importante, composto não só pela escrita, mas apostando no uso de tecnologias visuais,
sonoras e audiovisuais como possibilidade de construção do presente diário. A aposta no
diário segue as indicações do que Barros e Passos (2012, p.172) apontam como necessário
para o trabalho da pesquisa, a qual “deve ser sempre acompanhado pelo registro não só
daquilo que é pesquisado quanto do processo mesmo do pesquisar.”
Nesse contexto e emaranhado de conexões de gestos, fazeres e pessoas, o desejo
de realizar a presente pesquisa se constituiu. Na verdade, é um percurso atravessado por
implicações que foram responsáveis pela produção de uma rede intensiva, um rizoma com
muitas entradas e muitas saídas. Por esse motivo, interessa no presente trabalho analisar três
situações distintas, a primeira uma intervenção que produz intensidades e mesmo não tendo
vivenciado o processo de criação, as imagens do registro demanda um olhar atento. Outros
36
dois momentos foram vivenciados com o Coletivo Aparecidos Políticos, desde a concepção
da ideia até o momento de produzir na rua. Os três trabalhos apresentam questões pertinentes
que nos conduzem a compreender, se não, problematizar algumas questões: primeiro quais as
potencialidades presentes nas intervenções propostas pelo Coletivo, segundo como o Coletivo
opera a relação entre arte e política e terceiro qual a dimensão da resistência nessas
intervenções.
Para fins práticos, a presente pesquisa foi estruturada em seis capítulos. No
primeiro discorro a presente introdução que possibilita ao leitor compreender como a pesquisa
se constitui a partir do percurso do pesquisador. É apresentado ainda as implicações
metodológicas, pertinentes ao processo.
No segundo capítulo apresento breves apontamentos acerca dos movimentos de
criação e resistência em meio ao contemporâneo, destacando, sobretudo, os acontecimentos
políticos e sócio-culturais dos anos mais recentes, situando ainda o contexto de Fortaleza. A
partir da existência de coletivos e grupos que criam resistências diversas em meio aos espaços
da cidade de Fortaleza, situo o Coletivo Aparecidos Políticos e trago, em uma seção, um
breve percurso do Coletivo.
Como proposta de imersão, construo, no terceiro capítulo, uma análise de uma das
primeiras intervenções do Coletivo, “O que resta da ditadura?”. A proposta não se dá pela
perspectiva cronológica e aqui fujo um pouco da proposta que é apresentar percursos vividos
com o Coletivo. No entanto, a intervenção apresenta uma enorme potência a partir de uma
criação híbrida, agregando imagens, performance e escrita. Nesse momento, situo questões
relacionadas à memória, corpo e espaço, e funcionam como uma espécie de intervenção
disparadora e referência para o processo de criação do Coletivo.
No quarto capítulo apresento o processo vivido junto ao Coletivo na produção da
intervenção em rememoração aos 50 anos de instauração da ditadura do país. No contexto da
entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade, a data não poderia passar em branco,
demandando do Coletivo uma ação que evidenciasse, no espaço da cidade, as intensidades da
memória. O momento de criação busca inspirações no Projeto Ausências, que trabalhou no
Brasil, a partir de fotografias de álbuns dos familiares de mortos e desaparecidos, a
reconstrução das imagens, porém, evidenciando a ausência desse desaparecido pelo regime. A
intervenção, que trouxe fotografias de Bergson Gurjão, Iure Xavier e Alex Xavier, apresentou
um corpo intensivo, político para pensar a construção de modos de subjetivação política a
partir das imagens.
37
O processo da Operação Carcará ainda ecoa em cada um dos integrantes do
Coletivo Aparecidos Políticos e apresento esse processo que mobilizou o fechamento do
espaço aéreo da cidade de Fortaleza por um dia. Questões como democracia e de como a arte
produz desmanches sociais são apresentados no quinto capítulo, que explora a potencialidade
desse momento que colocou o Coletivo diante de uma ordem policial, o impedimento do
lançamento de 140 paraquedas de brinquedo. Na conclusão, apresento apontamentos dentro
do campo de vivências e percepções junto ao Coletivo, apresentando outros possíveis dentro
do processo de pesquisa que demanda uma escrita que perpassa o campo das sensações. Trago
nesse momento o apontamento de outros possíveis no fazer da arte como possibilidade de
erigir mundos.
38
2 CRIAÇÃO E RESISTÊNCIAS: BREVES APONTAMENTOS SOBRE
INTENSIDADES CONTEMPORÂNEAS
Antes mesmo de adentrar nas intensidades vividas com o Coletivo Aparecidos
Políticos, mais especificamente apresentando e problematizando questões dos processos de
criação vivenciados com o Coletivo, dimensiono, mesmo que breve, o contexto social,
político e urbano de anos mais recentes. A partir desse dimensionamento é possível perceber
uma grande mobilização que abre espaço para a afirmação de novos modos de vida e a
invenção/criação de resistências, sobretudo, nos espaços públicos das cidades brasileiras.
Para tanto, se faz necessário lançar o olhar para o cenário contemporâneo
marcado por profundas transformações ocorridas nos campos econômico, cultural e
político. Ao que me parece, pensar que a modificação desses espaços corresponde a lógica
acelerada imposta pelo modelo capitalista na sua incessante reinvenção, se apresenta como
uma pista a ser seguida, e também necessária, na tentativa de compreender a complexidade
desses acontecimentos.
Essas transformações, em níveis diferenciados e obedecendo particularidades, são
vivenciadas tanto por países ocidentais como pelos orientais. Países que apresentam um
cenário marcado por contestações e contradições políticas que por sua vez, conduzem as
sociedades a se organizarem na reivindicação por melhores condições de existência nas
grandes metrópoles.
No entanto, essa atuação tem se mostrado diferenciada, sobretudo na maneira
como questionam e reivindicam essas transformações e a realidade dos cenários urbanos. São
modos de fazer que colocam em evidência as fragilidades das organizações partidárias e
mesmo da sociedade civil em lidar com as novas dinâmicas e mobilizações sociais existentes,
o que tem ocorrido em praticamente todos os países.
Nas últimas décadas têm surgido modos de engajamento político, caracterizados
pelo descrédito nas formas tradicionais de participação. Vemos surgir outro conceito de
filiação política, que não passa pelos mecanismos de institucionalização. Peter Pal Pelbart
(2013) descreve que:
talvez esteja nascendo outra subjetividade política e coletiva, aqui e outros pontos do
planeta, para o que carecemos de categorias. Mais insurrecional, de movimento
mais do que partido, de fluxo mais do que disciplina, de impulso mais que
39
finalidades, com um poder de convocação incomum, sem que isto garanta nada, muito menos que ela se transforme no novo sujeito da história.19
Ao mesmo tempo, organizações em coletivos independentes tem tomado cada vez
mais os espaços urbanos como lócus de produção, criação e circulação. Trago o termo
independente para pensar que não há nesses grupos uma orientação partidária ou amarras que
prendam esses coletivos nas estruturas segmentares. Mas o que dá consistência à esses grupos
é a noção de resistência enquanto produção de vida e mundos em meio aos espaços urbanos.
Nas palavras de Pelbart (2003), a resistência empregada nas produções do contemporâneo,
podem assim serem expressas:
Se na modernidade a resistência obedecia a uma matriz dialética, de oposição direta das forças em jogo, com a disputa pelo poder concebido como centro de
comando, com os protagonistas polarizados numa exterioridade recíproca, mas
complementar, o contexto pós-moderno suscita posicionamentos mais oblíquos,
diagonais, híbridos, flutuantes. Criam-se outros traçados de conflitualidade, uma
nova geometria da vizinhança ou do atrito. Talvez com isso a função da própria
negatividade, na política e na cultura, precise ser revista. Como diz Negri: “Para a modernidade, a resistência é uma acumulação de forças contra a exploração que se
subjetiva por meio de uma ‘tomada de consciência’. Na época pós-moderna,
nada disso acontece. A resistência se dá como a difusão de comportamentos
resistentes e singulares. (PELBART, 2003, p.142)
Observamos que a insurgência de tais coletivos tem tomando força pelo mundo e
que a partir de suas especificidades, desafiam a ordem vigente na condição de criar modos de
existência. Dentre os protestos que imprimem certa semelhança, vale citar a Primavera Árabe,
o Occupy, nos EUA, os Indignados, na Espanha, o de defesa da Praça Taksins, na Turquia até
chegarem na América Latina, uma insurgência difusa no mundo inteiro. Primeiro no Chile,
por meio da mobilização de estudantes, se espalhando pela Argentina, Uruguai até chegar ao
Brasil.
Em Fortaleza, assim como em outros lugares do país e mesmo do mundo, o
que torna-se evidente é que não são só outros modos de se relacionar com a política. É
importante deixar claro desde logo, que política, no presente trabalho, deve ser entendida não
como exercício do poder ou luta pelo poder. Seu âmbito não se define nas leis e instituições,
mas deve ser compreendida tal como presume Rancière (2012):
19 “ANOTA AÍ: EU SOU NINGUÉM”. Folha de São Paulo, São Paulo. 19 de mar. 2013. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/07/1313378-peter-pal-pelbart-anota-ai-eu-sou-ninguem.shtml>.
Acesso em 20 de outubro de 2014.
40
A política é a atividade que reconfigura os quadros sensíveis no seio dos quais se definem os objetos comuns. Ela rompe com a evidência sensível da ordem
“natural” que destina os indivíduos e os grupos ao comando e a obediência, a
vida pública ou a vida privada, ao assiná-los desde logo a um certo tipo de espaço
ou de tempo, a certa maneira de ser, de ver e de dizer. Esta lógica dos corpos no
seu lugar dentro da distribuição do comum e do privado, que e também uma
distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, e aquilo a que propus
nomear com o termo de policia. A política é a pratica que rompe com essa ordem
da policia que antecipa as relações de poder na própria evidencia dos dados
sensíveis. Ela o faz através da invenção de uma instância de enunciação coletiva
que redesenha o espaço das coisas comuns (RANCIÈRE, 2012, p. 60).
Encarar a política por essa ótica se apresenta, portanto, como modos de resistir
ao instituído rumo ao plano do instituinte20
, às contradições criadas pelo Estado e à
normatização da vida nas cidades aceleradas, ao mesmo tempo em que encarna modos de
existir nesses espaços.
É sintomático, e aqui me arrisco apontar, a existência de aspectos estéticos em
ações políticas que tem se constituído na esfera coletiva do contemporâneo, ou vice-versa.
Nesse contexto, a estética é tomada a partir do seu sentido original no grego aesthesis, que
significa “conhecimento sensorial, experiência sensível, sensibilidade” de que fala Chauí
(2003, p. 281). Para Rancière (2011, p. 06) a “experiência estética implica o livre jogo da
faculdade intelectual e da faculdade sensível”, logo os dois autores desvinculam, em suas
falas, a experiência estética como sendo algo ligado a ideia do belo.
Os coletivos que se proliferam nas cidades são das mais variadas frentes, no
entanto, o que mais se percebe são coletivos que inventam outros modos de vida, contestando
os acontecimentos produzidos pela ordem estatal. São frentes que tomam como objetivo, a
intervenção nos temas: mobilidade urbana, direito à cidade, movimentos de ecologia e que
encontram na arte possibilidades de criar e intensificar as relações com o mundo, instaurar
dissensos nos modelos vigentes. A partir de signos, gestos, performances e/ou objetos,
produzem vínculos com o universo comunicacional e simbólico desses espaços.
É importante deixar claro que não há, nesses coletivos, nenhuma pretensão de
trazer resoluções à vida caótica dessas cidades - de tomar a frente e produzir essa
transformação efetivamente - uma vez que as transformações estruturais desses espaços
acabam se dando no plano da macropolítica. O que interessa é pensar que esses coletivos
exprimem interesses que incidem no aparelho estrutural estatal. Vale situar, como afirmam
20
De acordo com Escóssia (2009, p.690), “Simondon (1989, 1964) denomina este plano, instituinte das forças,
de transindividual e afirma que ele é da ordem do coletivo, entendido como espaço-tempo entre o individual e o
41
Deleuze e Guattari (2012) tudo é político, no entanto esse político é ao mesmo tempo
macropolítica e micropolítica, ainda que macro e micro não se refiram aos binômios
Estado e sociedade, grande ou pequeno. O macro se refere a política do plano, linha que
recorta os sujeitos a partir das oposições binárias, segmenta os objetos e as unidades de
tempo.
Interessa perceber que esses movimentos do contemporâneo operam na ordem da
micropolítica que são, ao contrário da macro, linhas dos afetos, devires, intensidades
determinadas pelos agenciamentos que o corpo produz. Como Deleuze e Guattari (2012,
p.105) afirmam “a micropolítica não se define no que lhe concerne pela pequenez de seus
elementos, mas pela natureza de sua massa – o fluxo de quanta, por sua diferença em relação
à linha de segmentos molar”. As micropolíticas instauram mudanças imateriais,
imperceptíveis, no entanto, atuante no território sociopolítico “já que alteram sua dinâmica
subjetiva, afetiva, política e ética” (DOTTO, 2013, p.283).
Nesse sentido, os movimentos do contemporâneo dizem respeito ao encontro de
corpos no espaço público, produzindo intervenções capazes de criar zonas de deslocamento,
movimentos e ocupações de espaços a partir da visibilidade de singularidades negadas e vozes
silenciadas ao longo da história, ou ainda, são movimentos que seguem por linhas de fuga
desterritorializantes (DELEUZE; GUATTARI, 2012) e agenciamentos políticos.
Há a partir dessa desestabilização, outra conotação do público e do privado, do
que é ser coletivo e ser individual. Estas outras configurações sociais provocadas por esses
agenciamentos, dificilmente podem ser mensuradas, mas de fato delineia-se outro espaço
público, assim como outra conceituação do político. Movimentos que emergem a partir das
fugas desses espaços, indo de encontro à produção de uma democracia pluralista como aponta
Mouffe (2003).
As manifestações ocorridas nos últimos anos em Madrid, Lisboa, Nova York,
Atenas, Roma, Istambul, Tunísia e, mais recentemente no Chile, Argentina, Uruguai e no
Brasil, são exemplos claros de que esses acontecimentos fogem a qualquer modelo de
organização política que opera no plano do instituído. Do contrário, resistem e re-existem a
partir da invenção de movimentos desterritorializantes.
Penso que é significante citar o quanto a arte, por meio de diversas
manifestações como o grafite, a música, o teatro e, principalmente, o cinema emergem
social, espaço dos interstícios. Plano de criação ou de coengendramento das formas individuais e sociais, origem
de toda mudança, plano do movimento
42
como importantes aspectos na recomposição do imaginário social. Tais manifestações se
apresentam como fértil terreno para sociedades que buscam uma reinvenção diante das
profundas transformações políticas e sociais que marcam o mundo contemporâneo.
Em meio as intensidades políticas e sociais que eclodiram nos últimos anos em
diversos países, as expressões artísticas são tomadas enquanto proposição de redesenhar a
rede de afetos que compõem o cotidiano, as vidas e paixões que insistem em pulsar nos
muros, visíveis e invisíveis desses países.
Abro um parêntese para mencionar artistas brasileiros que são referências
marcantes no que concerne pensar arte imbricada aos movimentos da vida. Helio Oiticica,
Lygia Clark e Cildo Meireles, são apenas alguns desses nomes que constroem, cada um a seu
modo, o cruzamento inevitável entre arte-vida.
Para pensar, portanto, os movimentos contemporâneos como potência de criação
de “mundos”, trago como significativo pautar os acontecimentos do ano de 2013, no Brasil,
que afirmou a produção de modos de vida por meio da resistência aos dispositivos de poder,
produzindo re-existência. Nessa concepção, o que surge é a invenção de outros modos de
existir e habitar o mundo.
Em 2013 vimos insurgir um levante que já se anunciava nos anos anteriores,
mas que de modo inesperado toma corpo a partir de junho e julho de 2013. O levante mostrou
a reconfiguração pela qual passa o público e o privado, são conceitos constantemente
tensionados após o nascimento da modernidade (COCCO, 2014).
Diversas insatisfações tomaram jovens, idosos e adultos cansados das
contradições que parecem engolir as cidades. São descontentamentos e insatisfações de
diversas ordens, mas podemos apontar como principal delas, os altos investimentos em obras
de megaeventos, como a Copa do Mundo de 2014, e as Olimpíadas de 2016, na cidade do Rio
de Janeiro.
Assistimos investimentos bilionários sendo despendidos em estádios e obras
megalomaníacas enquanto os serviços mais básicos necessários para o “bem estar” coletivo,
como saúde, educação, segurança pública, políticas de habitação, de mobilidade urbana e
mesmo questões ambientais, relegadas a planos distantes. Eram essas as insatisfações que
estampavam cartazes de manifestantes por todo o país, levando a teoria do bem estar social
sustentada a duras penas pela massiva propaganda governamental, cair por terra, revelando
um “paraíso em crise”.
Existem outros pontos responsáveis pela ida de milhares de pessoas às ruas,
43
mostrando profunda indignação com a configuração política do país, onde impera, sem
constrangimentos, a grosseira cultura do compadrio e do nepotismo, além da corrupção
arraigada nas mais distintas esferas, atingindo circunstâncias patológicas.
A eleição do pastor Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados do Brasil, no início de 2013, gerou também
grande polêmica por conta de suas declarações homofóbicas e racistas, fazendo o país se
indagar de quais manobras e argumentos se utilizam os partidos políticos para elegerem
pessoas cujas competências não condizem com as exigências do cargo. De fato, o que essa
comissão necessitava naquele momento - e necessitará sempre – é de um corpo administrativo
com o olhar capaz de ultrapassar as limitações de uma democracia que nega justiça às
minorias, que por sua vez necessitam ser tomadas como parte do todo.
As manifestações também eram contra as manobras de injustiça e a violência
praticada pelo Estado que como soberano, faz viver os corpos dóceis, aptos e úteis à servidão
do modelo capitalista (FOUCAULT, 2005) e deixa morrer, ou no caso do país, faz morrer os
invisíveis que ousam lutar por qualquer direito. Assim mostraram as violentas remoções de
periferias localizadas nos centros das cidades brasileiras, tentativa de higienizar os espaços
urbanos para os megaeventos.
Indignou ainda as mortes contra moradores de comunidades no Rio de Janeiro,
como o caso do pedreiro Amarildo, torturado, assassinado e até então desaparecido da
Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha; a morte dos 10 moradores da Favela da Maré
em junho de 2013 durante operação da Tropa de Elite da Polícia Militar, e da
empregada doméstica Claúdia Silva, moradora do Morro do Madureira que depois de ter sido
alvejada por um tiro, foi colocada no porta-malas do carro da Polícia Militar que a levaria à
um hospital, mas que acabou sendo arrastada em via pública com o carro em movimento,
depois do porta-malas se abrir.
Todos esses casos têm algo em comum: mostram que moradores de favelas,
periferias e subúrbios do país não têm acesso a qualquer direito e que só mobilizaram a
sociedade a refletir sobre tais acontecimentos pelo nítido requinte de crueldade que os
envolve. Essa é a democracia a qual o país da Copa e a metrópole olímpica vivem
constantemente, uma democracia forjada na subordinação, opressão e dominação que silencia
de maneira brutal os sujeitos invisibilizados pelo rolo compressor que é o sistema capital.
O aumento de 20 centavos no preço das passagens do transporte coletivo das
principais capitais, foi o estopim de uma série de revoltas que se alastraram pelo país tomando
44
todos de surpresa em véspera de Copa das Confederações21
. Ao contrário do que se divulgou
no período, essas mesmas manifestações já ocorriam antes de junho e julho, tendo início ainda
em fevereiro na cidade de Porto Alegre a partir da organização do Bloco de Luta22
. O grupo,
depois de tomar as ruas e montar acampamento em repartições públicas, conseguiu manter o
valor da passagem municipal.
Quando a proposta de aumento chega a São Paulo, a mobilização, inicialmente
do Movimento Passe Livre (MPL), toma proporções nunca imaginadas se quer por quem
encabeçava o movimento, que seguia gradativamente ampliando a rede de articulação que
ligou bairros, comunidades, movimentos sociais e estudantis. A pauta inicial tomava a questão
do transporte público como direito fundamental para a efetivação dos demais direitos sociais e
evidenciava que as manifestações não eram exclusivamente por conta dos 20 centavos, mas
pelas 20 tantas insatisfações nacionais que até então não haviam provocado um levante
nacional.
As redes sociais Facebook e Twittter, tiveram papel fundamental, uma vez que
foram tomadas como ferramentas contra-hegemônicas diante dos tradicionais23
meios de
comunicação. Não funcionaram apenas como dispositivo comunicacional, mas se
constituíram ao longo do processo enquanto principal mecanismo de articulação e divulgação
dos atos que tinham, na grande maioria, dia, local e horário para iniciarem bem como a
confirmação de milhares de pessoas em eventos organizados no site Facebook.
Durante as manifestações se experimentou novas formas de compartilhar
imagens em tempo real, como nos mostrou os Mídias Ninjas, “(Narrativas Independentes
Jornalismo e Ação) que cobriram colaborativamente as manifestações em todo o Brasil”
(BENTES, 2013, p.15). Através do sistema de streaming vídeo24
, os Mídias Ninjas
conseguiram criar outra forma de experienciar a ida às ruas, mostrando episódios que até
então eram ocultados pela mídia tradicional, o que acabava por colocar em cheque a postura
adotada por esta, frente às manifestações que incendiavam o país. Nas palavras de Bentes
(2013, p.15) “o midialivrismo e o midiativismo se encontram numa linguagem e
experimentação que cria outra partilha do sensível, experiência no fluxo e em fluxo, que
21 A Copa das Confederações funciona como um ensaio para a Copa do Mundo. 22 O Bloco de Luta foi um movimento criando em 2013 na cidade de Porto Alegre, composto por pessoas,
movimentos sociais, organizações e Coletivos, no sentido de reivindicar por um transporte público de qualidade.
(Texto retirado do site http://blocodeluta.noblogs.org/. ). 23 O livro @Internet e #Rua – Ciberativismo e mobilização nas redes sociais mostra exatamente essa relação. 24
De acordo Zanetti (2013) a streaming é uma plataforma que permite a transmissão em tempo real de conteúdo
audiovisual.
45
inventa tempo e espaço, poética do descontrole e do acontecimento”.
Enquanto os grandes meios de comunicação entoavam um discurso de
aconselhamento a realização de manifestações pacíficas e sem violência, diferenciavam os
manifestantes entre pacifistas e vândalos, na tentativa de impor modos específicos de
protestar. Logo, ações que se desviassem do ato de caminhar e segurar cartazes, sem
“atrapalhar” a organicidade dos espaços, eram tomadas como ato de vandalismo.
Independente de serem realizadas por pacifistas ou por “vândalos”, o simples fato
de dispor o corpo na rua e compor a multidão - esse conjunto de singularidades que na busca
de suas necessidades, sejam elas corporais, materiais e de seus desejos - assumindo a vida
como comum, para tomar o pensamento de Negri (2005). Essa mesma multidão foi recebida
com balas de borracha, bombas de efeito moral e sprays de pimenta, um cenário de sensações,
cheiros e sons nunca experimentado pela maioria presente. Desse momento em diante, as
ações policiais, sobretudo das polícias militares, passaram a ser contestadas pelo visível
despreparo e desproporção empregada na mobilização contra os manifestantes.
Ao mesmo tempo, jovens com dispositivos móveis, câmeras fotográficas e
celulares, tomavam as ruas criando e inventando suas imagens em vídeos e fotografias.
Rapidamente diversas composições de vídeos e fotos eram compartilhadas nas redes com os
que se faziam presentes nos protestos e com aqueles que apenas acompanhavam as
manifestações pela internet. Por conta das novas mídias e da produção de conteúdo
alternativo, milhares de pessoas puderam comparar as informações divulgadas pela mídia
tradicional e pelos midiativistas. Desse modo, era possível acessar diversos aspectos presentes
nessas imagens, captados por olhares distintos, dentre esses aspectos, a visível manipulação
de imagens e discursos da mídia tradicional, agora desmoralizada, desmentida e que também
passava a ser alvo de protesto nas grandes capitais.
É ainda curioso observar como as formas de se manifestar e resistir em dias de
manifestações eram múltiplas, o que mostrava que os movimentos das décadas de 70 e 80,
como Diretas Já e o movimento dos Caras-Pintadas, muito haviam se modificado. Os carros
de som já não davam o tom das ruas e as bandeiras partidárias foram rechaçadas pelos
manifestantes. Os “sem bandeiras” improvisavam paródias puxadas por bandas de latas,
performances, encenações teatrais, frases escritas nos muros que mexiam com o imaginário e
desejo, e imagens inventadas em dias de protestos, revelando que o estar nas ruas, na união de
corpos e ânimos, era a potência revigorante do país na busca exasperada de transformar a
“carne” em novas formas de vida. Quanto a essa potência da multidão, vimos a aglutinação e
46
constituição de singularidades e ao mesmo tempo a produção de novas subjetividades:
A união de corpos e a união de ânimos, constituídas naturalmente pela física do
indivíduo como causa interna das ações, a união dos ânimos propiciada
naturalmente pela psicologia dos afetos e a união dos corpos e ânimos determinada naturalmente pela lógica das noções comuns como convivência entre as parte de
um mesmo todo, permitindo a sua concordância quanto ao que lhes é útil, fazem
com que a reunião dos direitos (os numerosos indivíduos como participantes que
apenas compõem um todo) se torne a união dos direitos (a causalidade comum dos
constituintes para obtenção de um mesmo efeito). Essa união não é uma passagem
do menos ao mais, não é algo meramente quantitativo, mas sim é a criação de uma
potência nova, a multitudo, origem e detentora do imperium. O imperium é a
potência da massa unida como se fosse uma única mente e a multitudo, o indivíduo
coletivo singular, consoante a definição da individualidade (união dos componentes
para uma ação única que os transforma em constituintes de um todo) e da
singularidade (existência finita na duração, portante, acontecimento). O imperium, “direito definido pela potência da massa”, é a ação coletiva ou a potência coletiva
que se organiza como civitas ou res pública. (CHAUÍ, 2003, p. 163, 164).
As manifestações mostravam que a multidão se expunha para além da aglutinação
de corpos, era muito mais complexo como apresenta Chauí (2003), uma constituição natural
baseada nos desejos, nas experiências e aspirações das singularidades que compõem o
comum.
Fortaleza também foi às ruas, experimentando coletivamente a violência e
repressão policial. Se inventou e também resistiu aos grandes investimentos em detrimento à
cidade25
. Em julho de 2013, logo após a Copa das Confederações e seguindo o fervor das
manifestações nacionais, ocorrem dois episódios que mostram o tamanho da potência e da
vontade de resistir a como o poder público “organizava” a cidade por meio da política do
concreto e do asfalto, das magníficas autopistas e da verticalização infecunda, foram eles o
#Ocupe Aquário e o Ocupe Cocó.26
É inquietante olhar à cidade e ver as inúmeras contradições, como é o caso
do Aquário do Ceará. Imaginar que justo um dos estados que mais sofre com o problema da
seca consegue aprovar um orçamento de aproximadamente 261 milhões para a construção do
primeiro aquário internacional da América do Sul, localizado em uma das regiões mais
25 Vale abrir aqui um parêntese e citar os movimentos de resistência da cidade ainda no ano de 2010 em
Fortaleza. A comunidade do Serviluz, situada geograficamente na região portuária da cidade, resiste a proposta
de instalação do estaleiro que acarretaria a remoção da comunidade. O projeto do governo estadual foi
desaprovado pela prefeitura municipal e pelos próprios moradores, uma das comunidades mais antigas da cidade,
uma verdadeira ilha urbana fortemente visada pela especulação imobiliária. 26 Para mais informações sobre o #Ocupe Aquaário acessar: < https://acquarionao.wordpress.com/
http://www.cbg2014.agb.org.br/resources/anais/1/1404158242_ARQUIVO_AndreLimaSousaArtigocompletoCB
G2014.pdf; http://actacientifica.servicioit.cl/biblioteca/gt/GT20/GT20_dePntesGodim.pdf>.
Para mais informações sobre o movimento Ocupe Cocó acessar:
<http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10939/1/2014_dis_gmlopes.pdf>.
47
valorizadas de Fortaleza. Logo na sua apresentação houve a contestação com os gastos da
obra e outros pontos que aparentemente não mostravam preocupação para os executores do
projeto, como a remoção de cerca de 2.400 moradores da comunidade Poço da Draga,
comunidade centenária bem ao lado da megalomaníaca obra e que ironicamente enfrenta
problemas básicos, como o saneamento. Rapidamente artistas, historiadores, uma parte dos
fortalezenses se organizaram articulando o movimento Quem Dera Ser um Peixe. O grupo
articulado com os moradores da própria comunidade, não só contestaram a construção do
aquário, mas se mobilizaram para resistir e permanecer no local.
A resistência se deu de forma criativa e inventiva, a partir da “difusão de
comportamentos resistentes e singulares”, referido por Negri (2003, p.130). Com uma
programação inteira iniciando às sextas-feiras e se estendendo até o domingo pela manhã,
diversas pessoas acamparam em frente à obra localizada no calçadão da Praia de Iracema e
uniram esforços para dizer de forma criativa que não queriam a construção de um aquário
naquele local, muito menos a remoção da comunidade (ver Figuras 1 e 2).
Figura 1 - Criações no #OcupeAquário.
Fonte: Quem Dera Ser um Peixe, 2012.
48
Figura 2 - Criação/invenção da resistência no #OcupeAquário.
Fonte: Quem Dera Ser um Peixe, 2012.
Além da própria comunidade envolvida nesse processo, a cidade abraçou a causa
e durante o final de semana atípico podiam ser vistas projeções e grafites feitos sobre
os tapumes da obra, encenações teatrais, performances, malabares, rodas de capoeira, cirandas
dentre outras manifestações onde era possível tomar a potência da comunidade imbricada às
potências da arte. Ao mesmo tempo, as manifestações eram assistidas pela vigilância atenta da
Polícia Militar, instalada em uma base no mesmo local. Mesmo com a continuidade da obra,
aquela ação produziu discussões e afetou a população que discutiu sobre o que acontecia e a
forma como acontecia.
Em paralelo a ocupação do aquário, mais precisamente no mesmo final de
semana, deu-se início a derrubada de árvores no Parque do Cocó para a construção de um
viaduto, considerado pela Prefeitura Municipal a solução ao problema do trânsito daquela
região. Mesmo enfrentando problemas de degradação ambiental, o Parque é uma das poucas
áreas verdes que a cidade abriga e é considerado um dos maiores parques urbanos da América
do Sul. O início da derrubada fez com que, inicialmente, um grupo em específico da
cidade, Crítica Radical27
, se dirigisse ao Parque e se acorrentasse as árvores no sentido de
impedir que fosse dada sequência a derrubada, uma vez que trinta já haviam sido
27 Grupo formado ainda na década de 70 em Fortaleza e que resiste ao poder do capital e domesticação da vida.
Membros do grupo têm uma extensa trajetória de lutas sociais que vêm desde a Ditadura Militar, da qual
participaram ativamente. Para conhecer mais sobre o grupo acessar o site. Disponível em:
49
cortadas e pelo menos outras 70 viriam a baixo. Esse era o pontapé inicial da ocupação que
ficou conhecida como “Ocupe Cocó”.
Rapidamente mais grupos e pessoas de diversos setores da sociedade aderiram à
causa, grupos que eram não só contra a construção do viaduto, mas insatisfeitas com outros
desmandos do governo municipal e estadual que seguiam no desenvolvimento de projetos de
grande impacto na cidade e que em contrapartida, não eram discutidos com a população. Era
clara a reivindicação pelo direito à cidade e a participação democrática em discussões de
quais espaços se queria construir para viver. Rapidamente diversos manifestantes
permaneceram acampados no Parque a fim de que o diálogo fosse estabelecido. Em
contraposição, outra parte da população se manifestou a favor da construção do viaduto,
criando o movimento #viadutosim.
Começou a se pensar e elaborar alternativas para a construção do viaduto a partir
do envolvimento de arquitetos e estudantes de arquitetura que criaram um concurso de
alternativas com projetos pensando na abertura de canais de diálogos com os governos.
Tentativas em vão, já que em nenhum momento o prefeito de Fortaleza ou mesmo seus
assessores se faziam presentes nas discussões das propostas apresentas como alternativas.
A disputa pela permanência no local foi então levada a esfera jurídica e entre idas
e vindas de liminares, a Justiça Federal acaba concedendo à Prefeitura de Fortaleza a
reintegração de posse do Parque, garantindo a construção do viaduto. A Polícia Militar
cumpre a decisão oficial transformado o acampamento e arredores em um verdadeiro campo
de batalha. Enquanto a polícia reprimia com bombas, gás e muita pancadaria, os
manifestantes faziam de paus e pedras suas armas, outros subiam em árvores na tentativa de
escapar da violência e ao mesmo tempo de impedir que a derrubada continuasse.
Foram 84 dias intensos de produção criativa, debates políticos, aulas públicas e
mais uma vez se estabeleceu uma resistência onde a criatividade transborda, sobra, fazendo
emergir um campo de singularidades heterogêneas e insurgentes que constituem modos de
vida. Produziram-se vídeos, fez-se intervenções, sarau com poesia, shows, oficinas, sessões
de criação de fanzines, noites de ciranda em meio as árvores e rodas de capoeira. Uma
comunidade se formou, acolhedora e que nos colocava diante de uma “partilha do sensível”
de que nos fala Rancière (2010), desse sensível que é o cotidiano e os desejos de
transformação.
<http://criticaradical.org/>.
50
2.1 BREVE OLHAR SOBRE A DITADURA NO BRASIL
Em meio a toda efervescência política do país, se faz necessário lançar um breve
olhar sobre aspectos da ditadura militar no país, sobretudo por 2014 ter marcado os 50 anos de
instauração do golpe. Nesse momento de ebulição política, muitas práticas do Estado, ainda
do período ditatorial foram reatualizadas e por isso se faz pertinente lançar o olhar, pautando
como Estado e sociedade lidam com a memória do período e principalmente com a memória
dos seus mortos, desaparecidos.
Talvez não haja palavras para descrever o horror vivido no Brasil entre 1964-
1985, um dos períodos políticos mais tensos enfrentados pelo país com a instalação do golpe
militar. No entanto, muito tem sido discutido e produzido a cerca daquele período, que
inquieta ao mesmo tempo em que assombra o presente. Dos 21 anos de sombra vividos, ainda
sabemos pouco se comparado ao que de fato existiu e aconteceu. De forma gradativa vamos
conhecendo histórias, relatos que nos sensibilizam a pensar sobre os horrores do passado e
os resquícios que insistem em permanecer, atualizados constantemente na ação do Estado.
São relatos dos mais fortes e assombrosos desde mortes e torturas, até a vivência em celas
menores do que os corpos presos na tentativa da domesticação.
Por mais cruéis e intensos que possam ser tais relatos, nunca conseguiremos
dimensionar esses acontecimentos. Nossos corpos livres, nossas famílias, nunca saberão a dor
pela qual passaram e ainda passam familiares de mortos, torturados e desaparecidos políticos.
Os sobreviventes do horror carregam as mais duras marcas na memória e em seus corpos. Por
mais impregnados que estejam esses relatos - pela ausência, perda, frustração e dor - nunca
seremos afetados da mesma forma.
Passado 30 anos desde o fim do golpe, impressiona perceber que as memórias
desse período continuam privadas, guardadas como os segredos que eram ocultados durante o
período. De forma contraditória o cotidiano das cidades e também do campo abrigam
símbolos e nomes desse processo. São símbolos que imperam como as forças brutais daquele
período, o que revela a produção de uma memória excludente e ao mesmo tempo autoritária.
No entanto, essa memória excludente evidencia a existência de uma democracia construída a
partir do consenso e da aceitação, pois como afirma Mouffe (2003) há, em uma democracia
verdadeiramente plural, posições que são irreconciliáveis e que por isso necessitam ser
reconhecidas.
Nesse sentido, negar ou esconder os nomes dessa memória contribui para
51
promover uma espécie de “apagamento”, aspecto esse que durante anos recebeu o reforço do
Estado, conferindo o que Galeano (1999, p.214) afirma ser “o preço da paz, enquanto nos
impõe uma paz fundada na aceitação da injustiça como normalidade cotidiana. Acostumaram-
nos ao desprezo pela vida e à proibição de lembrar”. Essa na verdade se apresenta como
o maior terror e mais profundo resquício desse momento histórico, evidenciando que mais
uma vez as vítimas desse período são atingidas de forma não menos violenta, uma espécie de
segundo desaparecimento.
Vale aqui realizar um recorte importante para problematizar o conceito de vítima,
a partir do interessante trabalho de Figueiredo e Aydos (2013) e também no trabalho de Sarti
(2011). Quando se fala em “vítimas da ditadura militar” rapidamente vêm como referência às
pessoas presas, torturadas, mortas e desaparecidos pelo regime ditatorial no Brasil. A
construção da concepção de vítima no contemporâneo têm operado como “forma de conferir
reconhecimento social ao sofrimento, circunscrevendo-o e dando-lhe inteligibilidade”
(SARTI, 2011, p.54). Cabe então refletir que a construção da vítima supõe necessariamente a
existência de um agressor como também o contexto de violência, que no caso da ditadura é
representada pelo regime de exceção.
Como apontam Figueiredo e Aydos (2013) o conceito de vítima foi sendo
construído ao longo do tempo. Inicialmente, ainda na década de 70, a noção de vítima não era
tomava representação social, somente com o exílio de militantes é que se começa a construir a
noção de vítima. Nem mesmo os militantes, certos dos seus “papéis de militantes”, se
consideravam vítimas, já que como apresenta Figueiredo e Aydos (2013) torturas, exílios e
prisões faziam parte do ethos militante. Nos apontamentos de Sarti (2011) é na transição para
o processo de democratização que a noção de vítima se constitui de modo latente. Nesse
período, a noção da vítima se constrói pela alteridade e pelos contrastes presentes. De um lado
os que “perderam” e sofreram, do outro os que perpetraram crimes, mas que permaneciam em
sociedade, seguindo suas vidas.
Atualmente o conceito de vítima se expande, não se restringindo apenas
aqueles que sofreram diretamente com a máquina engendrada da repressão, mas também seus
familiares que sofriam privações e que passavam por situações as quais não escolheram, uma
desclassificação do sujeito ao mesmo tempo em que é exposto a situações de
vulnerabilidade28
. Ao longo do tempo as inúmeras produções e também trabalhos retratam o
28
O conceito de vítima se apresenta como algo denso, por esse motivo trago apenas apontamentos para a
formulação desse conceito. Aponto interessantes trabalhos que contribuem no aprofundamento do conceito:
52
militante, personagem que sofreu danos físicos e psicológicos enquanto vítima, expressão
essa que se cristalizou. É bem verdade que os danos foram produzidos dos dois lados,
mas em um sistema de forças o que se observa é que o Estado operou apresentando
todo o seu potencial de “guerra”.
Ainda com relação ao confisco da memória, o que diversos estudos
historiográficos apontam é que, em praticamente todos os países latino-americanos que
sofreram com o estado de exceção, essa é uma prática que insurge com força, no entanto, o
processo de desmemorização é ainda mais brutal no Brasil. Os 400 mortos e
desaparecidos29
durante o período da ditadura não impressionam, não são conhecidos e sequer
mobiliza a sociedade brasileira a pensar os 21 anos de sombra vividos pelo país, o que
evidencia que esses desaparecidos e mortos são de fato as sobras do período.
Enquanto isso, países vizinhos, Argentina e Chile, que também passaram por
regimes ditatoriais, insistem em clamar por justiça e trazer a memória de seus mortos e
desaparecidos de múltiplas maneiras, seja por meio de protestos, como fazem as mães da
Praça de Maio30
, ou mesmo na construção de memoriais, monumentos e espaços, que para
além de homenagear os mortos e desaparecidos, reatualizam a memória do período no sentido
de que possam ser sempre lembrados para que nunca mais aconteça.
Tem sido interessante perceber que mesmo com o amplo “esquecimento” da
sociedade, como também do Estado que aposta no “esquecer para conciliar”, tem
emergido modos construtivos e singulares de trazer à tona a memória de um passado tão
recente. São modos que também produzem visibilidade de uma parcela esquecida da
sociedade brasileira, como é igualmente o caso de negros, índios e demais minorias31
(étnicas, religiosas) que não tem o reconhecimento de suas singularidades perante o Estado
Jimeno (2010); Sarti (2011); Saunders (2008); Aydos (2002); Gasparotto (2008). 29 Esse número é até então o oficial divulgado pela Comissão Nacional da Verdade, não contabilizando cerca de
2mil indígenas Waimiri-Atroari desaparecidos pelo regime como citado no 1º relatório do Comitê Estadual da
Verdade. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf/r_cv_am_waimiri_atroari.pdf>.
Acesso em 20 de outubro de 2014. 30 Mulheres, já idosas, que tiveram seus filhos desaparecidos e que se reúnem todas as quintas-feiras em frente a Casa Rosada buscando manter vivo na memória dos argentinos, o desaparecimento de seus filhos. 31 Aqui parece interessante trazer a abordagem de Deleuze (2010, p. 59; 63-64) sobre minoria que afasta a noção
de menor como o reduzido para dizer: [...] minoria não designa mais um estado de fato, mas um devir no qual a
pessoa se engaja. Devir-minoritário é um objetivo, e um objetivo que diz respeito a todo mundo, visto que todo
mundo entra nesse objetivo e nesse devir, já que cada um constrói sua variação em torno da unidade de medida
despótica e escapa, de um modo ou de outro, do sistema de poder que fazia dele uma parte da maioria. De acordo
com este segundo sentido, é evidente que a minoria é muito mais numerosa que a maioria. Por exemplo, de
acordo com o primeiro sentido, as mulheres são uma minoria, mas, pelo segundo sentido, há um devir-mulher de
todo mundo, um devir-mulher que é como uma potencialidade de todo mundo e, a exemplo dos próprios
homens, até mesmo as mulheres têm que ter devir-mulher. Um devir-minoritário universal. Minoria designa a
53
democrático de direito.
Cito então a importância das políticas de reparação do Estado, perante os crimes
cometidos pelo regime militar, que mesmo não trazendo de volta as vítimas dizimadas, se
constituiu como o primeiro passo na reparação aos familiares e torturados. Menciono ainda as
políticas públicas de memória, que por meio do Arquivo Nacional, da Comissão da Anistia e
Comissão Nacional da Verdade, tem desenvolvido ações no sentido de garantir o acesso a
informações e divulgação de material que subsidie o aprofundamento de questões
relacionadas ao período. Essas informações, guardadas por muito tempo, conservaram o
direito daqueles que posam como paladinos da democracia.
Trabalhando a partir desses dois conceitos, verdade e memória, parece
interessante apontar o quanto a verdade desempenha uma “força coercitiva” na realidade, logo
a verdade factual é superior ao poder, existindo assim contingências, passivas de
contrariedades como coloca Arendt (1995). É nesse sentido que o desenvolvimento de
políticas públicas tem sido importante, pois reside na ideia de uma verdade única o
grande risco do autoritarismo e formas de dominação das quais fala Foucault (2012) e como
nos diz Mouffe (2003), essas são maneiras de desconhecer o pluralismo de valores que
indiscutivelmente estão presentes na esfera pública.
Verdade e memória dialogam no sentido de que enquanto a primeira se liga ao
acesso a informação e ao conhecimento dos fatos - logo uma dimensão muito mais objetiva -
a memória é tomada como campo da construção de referências sociais conectadas à
subjetividade, lembrança individual e coletiva.
Mesmo tendo avançado em muitas questões, é necessário apontar que há ainda
muitos entraves no reconhecimento dessa memória, bem como no reconhecimento das vítimas
do horror do Estado. Isso porque os interesses e poderes de quem um dia torturou e
assassinou, continuam preservados, o que acaba por produzir antagonismos. Neste momento
interessa refletir a dimensão de uma política dos antagonismos, inerente às relações humanas
que segundo Mouffe (2006, p.174) “pode tomar muitas formas e emergir em diferentes tipos
de relações sociais”.
Chamo atenção para a arte contemporânea que de modo singular tem despertado
para criação de formas sensíveis de recortar e de reapresentar os processos políticos e sociais
do país, sobretudo no sentido de tornar visíveis os invisíveis, que por não integrarem
potência de um devir, enquanto maioria designa o poder ou a impotência de um estado, de uma situação.
54
mercados consumidores nem serem contados como parte do corpo social, a eles são negados
muitos direitos incluindo a própria condição de existência.
O percurso do Coletivo Aparecidos Políticos tem sido nesse sentido, algo que
desperta um olhar curioso, uma das várias formas de produzir um sensível sobre o período
ditatorial. São pessoas que não vivenciaram o período da ditadura militar, no entanto
convivem com os resquícios e carregam consigo o desejo de construir nos espaços públicos da
cidade, a visibilidade dos mortos e desaparecidos pelo regime.
O Coletivo se interroga ao mesmo tempo em que interroga a cidade, seus espaços
e o próprio Estado do que foi feito da memória dos desaparecidos e mortos pela ditadura, um
ponto na história do país que vive movimentos constante de idas e vindas. Interrogam ainda
sobre o poder autoritário do Estado diante aos acontecimentos passados (e também dos mais
recentes) e da impunidade que permanece latente para os que cometeram crimes de lesa-
humanidade. De longe nenhum motivo aparente, mas de perto o senso de justiça vivo em
cada integrante do Coletivo, histórias singulares que se entrelaçam, desejos comuns e
subjetivos que formam um coletivo de forças, utilizando o conceito de Escóssia e Tedesco
(2012).
2.2 O COLETIVO APARECIDOS POLÍTICOS – PERCURSO E INTERFERÊNCIAS NOS
ESPAÇOS DA CIDADE
Por meio de uma narrativa carregada de emoções e afetos, Alexandre conta
como foi acompanhar a chegada dos restos mortais do guerrilheiro Bergson Gurjão, morto na
Guerrilha do Araguaia. Mais precisamente em 2009 o “corpo”32
de Bergson foi entregue à sua
família, que depois de 37 anos de aflição, buscas e incertezas, pode então cumprir o ritual
fúnebre que é velar e enterrar o seu morto.
Quase 40 anos depois e o peso do real no simbólico: Uma caixa leitor, uma caixa.
Eu estava longe, mas via, como de perto, algo que se movia... Eu imaginava o quão
quente era ali, depois de anos em terra úmida. E de repente o real pesou: as ossadas de uma pessoa.
Não queria ver, apesar de imaginar, o que ali estava na minha frente... Como será
que estavam esses ossos nessa caixa? Ossos, que de tão fechados, mostravam um
corpo cearense bem aberto como nossas veias, nossos olhos, nossas memórias.
32 Me refiro corpo para pensar no cumprimento de um ritual fúnebre. No entanto o que foi entregue à família foi
apenas os restos mortais de Bergson, uma ossada localizada ainda em 1996 em uma escavação realizada no
Araguaia. A confirmação de que a ossada era de Bergson Gurjão só veio 13 anos depois, um trabalho realizado
pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SDH) e pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos.
55
Sim eu me lembro! Mesmo aos meus 25 anos que há quase 40 anos pessoas caíram por um “crime”... Eu me lembro e ainda escuto velhos carrancudos e bofejantes
dizerem que “eles mereciam”, “era uma guerra”, “bando de...” Sim, como não
lembrar disso? Como olhar pra aquela caixa e não escutar um barulho vazio e
ensurdecedor?
Esse peso, essa caixa.
Então, eu estava perto, mas via como de longe, algo que se distanciava: algo que
fazia e faz, em um inquietante silêncio como daquela caixa, homens silenciarem
em seus cargos públicos e em seus cômodos lares... algo que sempre fez esses
homens se esquivarem ao serem apontados: TORTURADORES!
A distância leva isso... Um peso que ainda sangra e cheira a corpo de gente vindo da terra... Um peso tão forte – que sempre retorna – chamado: Justiça e Memória. (Texto de apresentação retirado do site do Coletivo Aparecidos Políticos)33
Esse episódio foi o impulso para a formação de um coletivo que tem como
proposta a busca dos mortos e desaparecidos pelo regime ditatorial. Busca essa não
exatamente pelo material, pelo concreto, corpos ou vestígios materiais deles, mas sim pelo
peso simbólico que é a memória. A criação do Coletivo teria como proposição produzir
sensíveis do período e reapresentar aos espaços, interferindo nas memórias e lugares,
criando fissuras e fazendo caber no mundo e nesses espaços, os invisíveis que até então
não cabiam, que não eram contados no cálculo produtivista do país, como afirma Moacir dos
Anjos34
.
A cerca desse momento, enquanto o que dispara o desejo de produzir sensíveis
sobre os mortos e desaparecidos, parece interessante pensar a partir do que Rancière (2007)
apresenta, são momentos de completa irrupção que o artista sofre. É como se o sensível se
marcasse agora na carne, um encontro com o real que desorganiza nossas experiências
cotidianas. Rancière (2007, p.137) então afirma que:
Para tanto, é preciso que o artista tenha ele próprio passado "do outro lado", que ele
tenha vivido algo de demasiado forte, de irrespirável, uma experiência da natureza
primordial, da natureza inumana da qual ele retorne "com os olhos avermelhados" e
marcado na carne.
Durante o período de formação do Coletivo, Alexandre graduado em psicologia
pela Universidade de Fortaleza, e no período estudante em Artes Visuais pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE, integrava o grupo Meio
Fio de Pesquisa, coletivo de artes formado por estudantes e artistas sob a coordenação do
artista, curador e professor Herbert Rolim ligado ao IFCE.
33 Texto disponível em: http://www.aparecidospoliticos.com.br/sobre-nos/ Acesso em 12 de julho de 2013. 34
Fala de Moacir dos Anjos, na aula aberta “A representação da sobras” realizada pelo Programa de Pós-
Graduação em Artes da UFC, no dia 22 de nov. de 2013.
56
O grupo Meio Fio lançava como proposta, trabalhar a arte como modo de
interação com o espaço urbano, considerando o contexto histórico, social, político e cultural.
A participação de Alexandre no grupo, além da imersão em pesquisas e propriamente no
universo artístico brasileiro, são também pontos que inspiraram as ações do Coletivo
Aparecidos Políticos na rua. Na verdade, o que pude perceber a partir da aproximação com o
Coletivo, é que há uma abertura e acolhimento à expressividade artística de cada participante,
indo de encontro ao que Escóssia e Tesdesco (2012, p.100) afirmam ser a “exposição de
corpos em seu estado de variação o mais intensivo” o que potencializa:
[...] a criação de novas formas que não pertenciam a nenhum dos componentes já existentes e nem ao somático desses. É do encontro, do contágio recíproco ali
operado entre as diferenças puras, constituintes do plano coletivo de forças, ou
coletivo transindividual, que as novas formas ganham realidade.
Falar da constituição do Coletivo é ir apresentando as mudanças, entradas e saídas
que foram ocorrendo ao longo do tempo, o que mostra como movimento constante, um
Coletivo em eterno devir. Por questões particulares, cada um que entrou e saiu, foi se
conhecendo e se experimentando durante o processo de intervir, afirmando seus caminhos
com o Coletivo e em outros momentos, cruzando esses caminhos. Os movimentos foram
muitos, as idas e vindas também, por esse motivo trago como proposta ir apresentando mais
os acontecimentos que foram se dando ao longo do tempo, do que propriamente ir
apresentando as pessoas. Isso será realizado na medida do caminhar.
2.2.1 Intervenção como proposta
Antes mesmo de adentrar no percurso do Coletivo Aparecidos Políticos, é
importante situar sua aposta na intervenção urbana, conceito que tem se expandido nos
últimos anos por meio de diversas práticas e gestos em meio ao espaço público das cidades. É
importante também situar a carga que tem o conceito de intervenção no trabalho do Coletivo,
que trabalha a memória de pessoas mortas e desaparecidas durante o regime de exceção.
Nesse momento a ideia da intervenção segue a lógica que cabe em uma das cinco definições
encontradas para o verbo intervir, encontrada no dicionário Houaiss (2013). Nesse contexto,
intervir é sinônimo de interpor determinada autoridade, usar do poder no intuito de controlar.
O termo intervenção ganha outra conotação no Coletivo, e passa a ser
tomando como possibilidade de subjetivação da experiência em meio aos espaços da
57
cidade, prática que insere a arte no circuito dos espaços públicos, interferindo nos fluxos e
indo de encontro a construção de outras imagens desses espaços.
Na verdade para o conceito de intervenção se abrem inúmeras possibilidades de
interpretação, não havendo uma definição única. O conceito parece ter as linhas que definem
seus contornos também borradas, mas sua concepção nasce, especialmente no Brasil, com
trabalhos Hélio Oiticica, Flávio de Carvalho, Lígia Pape e Lygia Pape e ainda os trabalhos de
Antonio Manuel e Cildo Meireles, segundo Cocchiarale (2004). São artista que a partir de
seus trabalhos provocam a invenção de novas formas de sociabilidade por meio de práticas
que valorizem o gesto, a convivência e a interação em meio ao espaço. Logo, na intervenção,
o processo artístico está imbricado nos processos cotidianos e se dá enquanto possibilidade de
interferência no que já se tem consolidado enquanto espaço e também enquanto ação nesses
espaços.
No entanto, o conceito de intervenção tem se alargado a partir das experiências
criadas pela arte urbana, prática que tem afirmado a intervenção enquanto deslocamento
não para fora, mas pelo contrário, segue dentro da própria prática com o intuito de criar
visibilidades. O conceito ganha visibilidade a partir das práticas contemporâneas que buscam
inserir a arte no circuito dos espaços públicos, aproximando arte e cidade. Nesse contexto, se
redefine o lugar da obra que passa a integrar linguagens diversas, espaços e outras
visibilidades, somente possível a partir desses outros espaços que constroem a possibilidade
de uma arte vivencial.
No Coletivo Aparecidos Políticos, o conceito de intervenção é permeado pela arte
urbana, pelas possibilidades de criar no espaço urbano as imagens e a memória dos mortos e
desaparecidos políticos. Trazem como proposta interferir nos fluxos na paisagem concreta do
espaço da cidade, bem como nas subjetividades que permeiam esses espaços, dando conta de
outras experiências em meio ao campo.
A aposta do Coletivo nas intervenções tem como proposta situar, demarcar a
existência dessa memória, e como já mencionado anteriormente, a intervenção parece violar
o pensamento, podendo até se utilizar do ruído, mas que carrega enquanto desejo a
possibilidade de se perceber a palavra. O que se produz nessas intervenções, são os contornos
de um período, inscrevendo no contexto da cidade essa memória.
58
2.2.2 Percurso e intervenções do Coletivo Aparecidos Políticos
Na medida em que o Coletivo foi realizando, criando suas intervenções no
espaço público da cidade de Fortaleza, foi ganhando notoriedade, se tornando referência no
campo da memória, mas, sobretudo, de uma arte que toma enquanto proposta produzir
rearranjos sensíveis, deslocamentos imagéticos e variação nos espaços. Esse aspecto
atravessa todo o trabalho do Coletivo ao longo dos anos de atuação. Proponho apresentar
esse percurso não exatamente pensando em uma perspectiva cronológica, mas se exatamente
pela possibilidade de aqui refletir ou mesmo perceber a variação de intensidades que vai
constituindo o Coletivo.
“Os Ex-Sem-Voto” é a primeira intervenção realizada pelo Coletivo logo em
outubro 2010, na programação da Bienal Internacional de Dança do Ceará. Em seu primeiro
processo criativo o Coletivo propõe ao mapeamento de espaços na cidade, sobretudo no
centro, que carregam o peso dos conflitos e dos gritos. São lugares, que de maneira direta ou
indireta, possuíam alguma relação com o período ditatorial. A opção pela rua, pelo espaço
tido como comum surge como algo certo, por ser o cerne das contradições é também nela o
lugar em onde as provocações devem surgir, logo o Coletivo assume a tensão existente entre o
público e o privado.
Essa tensão parece ser aspecto característico dessa arte urbana, que como fala
Peixoto (2002), a partir dos anos 60 passa a negar os espaços convencionais destinados à
“exposição artística”, galerias e museus, para afirmar a potencialidade dos espaços da cidade.
O muro surge nas ações do Coletivo como esse lugar de tensões, que brinca também com o
ser/estar público ou privado, tomado pelas práticas artísticas que passam a ser reconhecidas
enquanto modos de subjetivação política.
A opção pelo muro como espaço político, artístico e também espaço da
comunicação urbana nas ações do Coletivo, parte das inspirações em trabalhos que tomam
este como território das visibilidades. Logo é possível destacar os trabalhos dos coletivos:
Acidum, Grupo de Arte Callejero – GAC, Poro e o trabalho do Coletivo Político Quem, que
acabaram por se tronar inspirações para o trabalho do Coletivo Aparecidos Políticos. São
coletivos que também produzem no espaço público a concepção de outros usos, capazes de
extrapolar a marca fronteiriça que separa o que é comum do que é particular.
A ação proposta pelo Coletivo consistia em afixar cartazes com fotografias
ampliadas dos desaparecidos, imagens essas de documento de identificação oficial ou mesmo
59
do arquivo da polícia que passaram a compor a paisagem da cidade. Ao lado das imagens, de
maneira descomprometida com o acabamento, a tinta, preta ou vermelha escorria escrevendo
os nomes dos que se foram, juntamente com o ano do episódio. Também escreveram em uma
das intervenções, o pedido de afastamento de José Armando Costa, funcionário público à
frente da Corregedoria Geral dos Órgãos Públicos de Segurança, uma espécie de ouvidoria
da polícia. O motivo das frases no muro era a relação direta de José Armando com sessões de
espancamento contra ex-presos políticos cearenses.
Ao mesmo tempo, partes do corpo humano, escupida em madeira, também
compunha a obra no sentido de fazer referência a tortura, ao esquartejamento de corpos,
práticas comuns durante o período. Essas partes eram fixadas nas paredes ao lado das imagens
e nomes (ver Figuras 3 e 4).
A ação proposta, era baseada no ato de dispor partes que representam o corpo em
salas e principalmente santuários, ação denominada de os ex-votos, prática muito comum no
Nordeste e Sul do país. Por meio de elementos materiais, as pessoas agradecem a intervenção
miraculosa ou graça recebida, depositando esse objeto que representa, na maioria das vezes, a
parte do corpo que recebe a graça. No cenário da arte contemporânea destaca-se Efrain
Almeida, artista plástico que busca na religiosidade, a inspiração para seus trabalhos com
esculturas e também no trabalho do pai, artista local do interior do Ceará, situado
especificamente em uma região marcado pelo ex-votos. (VERAS FILHO, 2014)
Colocando partes do corpo, o Coletivo tem como intenção produzir uma
linguagem que afete, tratando da concretude desse corpo, da materialização, mas sobretudo de
um corpo que se torna intensivo. Parece então interessante pensar o conceito de corpo sem
órgãos desenvolvido por Deleuze e Guattari (2012a), um corpo inimigo da
instrumentalização e do adestramento, que ao invés de seguir o padrão de um corpo
produtivo, envereda pela possibilidade de torná-lo intensivo. Logo o CsO, com se refere o
autor a corpo sem órgãos, corresponde a essa desorganização do organismo para torná-lo
intensivo, tomando o que verdadeiramente é seu: a potência de existir. Por isso, na
intervenção não interessa se o que o Coletivo expõe são pedaços da materialidade do corpo,
pernas, braços, cabeças, o que importa é a intensidade de modo “desorganizado”.
Desde logo fica claro a intenção do Coletivo em fazer alusão a guerrilheiros que
experimentaram outras formas de sentir a vida, produzir e serem afetados, mas que agora são
postos nesses espaços como modo de experimentação contínua, uma “vida” que se
expande e cria novas realidades.
60
Figura 3 - Cartaz lambe-lambe Jana Moroni
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.
Figura 4 - Cartaz lambe-lambe Maria Lucia Petit
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.
Em 2011, dentro da programação da Jornada Para Não Esquecer Jamais, o
Coletivo também criou nos espaços da cidade. O evento realizado todos os anos durante o
mês de rememoração do golpe militar, busca reunir uma série de atividades acerca da
memória, verdade e justiça no Ceará. Nesse período compunha o Coletivo Viviane Rocha
(cineasta) e Daniel Muskito (grafiteiro e fotógrafo), além de Alexandre e Ton.
Mais uma vez o Coletivo insiste na fixação de cartazes com imagens dos
61
desaparecidos nos muros de Fortaleza, apresentando como novidade a criação de
performances durante a ação, que recebeu o nome “O que resta da ditadura”35
. A proposta de
intervenção foi pensada a partir da aproximação com o Coletivo Curto-Circuito, que também
próximo das questões relacionadas à ditadura e da arte urbana, encarregou-se de conceber a
ação performática.
A intervenção proposta centraliza-se, sobretudo na experiência da exploração do
corpo a partir da sua capacidade de gestualidade. Os gestos desse homem produzem afetos
quando encontram outros corpos, o que faz pensar na sua potência política, desnudo da
segurança e certeza do mundo cotidiano.
A partir de um chamado a organizações, movimentos sociais e sociedade civil, o
Coletivo realizou no dia 28 de março de 2011 o “rebatismo popular” do Centro Social Urbano
Presidente Médici para Edson Luís. Durante o momento foi realizada a leitura de uma carta
manifesto enquanto o nome de Médici era apagado por um dos integrantes do Coletivo que
logo em seguida escreveu com tinta vermelha o nome do estudante Edson Luís, morto no
mesmo 28 de março de 1968 por Policiais Militares em meio a manifestação estudantil
(ver Figura 5).
Havia naquela ação uma coragem muito maior do que até eles achavam que
teriam, afinal era o rebatismo de um local público, era ir de maneira direta contra o poder do
Estado, que decisivamente regulamenta o que pode ou não ser feito no espaço “público”. A
ocasião funcionou também como articuladora com outros movimentos, como a própria
Associação da Anistia 64/68 com mais de doze anos de atuação no Estado. Contou ainda com
a presença do Coletivo Curto-Circuito, Instituto Frei Tito de Alencar, Rede Estudantil
Combativa e Classista, Organização Resistência Libertária e integrantes da peça teatral “Filha
da Anistia”.
35
No presente trabalho há um capítulo que aprofunda as questões da performance em questão, por isso não será
apresentada agora com riqueza de detalhes.
62
Figura 5 - Rebatismo Centro de Cidadania Edson Luis
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.
No período do rebatismo, houve uma grande comemoração por ser uma ação que
consentia ao espaço outro significado, um movimento que até então a cidade não havia
experimentado. Trazia o peso de uma intervenção política, mas que se propunha ser antes de
tudo artística. Era um modo de dizer que outras pessoas participaram desse processo e isso é
o que sustenta a legitimidade da ação que mais uma vez tensiona os limites do público e do
privado.
Durante cerca de um ano o nome de Edson Luís permaneceu nomeando o Centro
Urbano. No ano seguinte o prédio seguiu abandonado pelo poder público, sendo desativado
logo em seguida. Uma das primeiras ações foi demolir a parte de concreto (ver Figura 6) onde
a pintura revelava o nome de Edson Luís nomeando o espaço. Mesmo diante de tais
circunstâncias, a ação ainda é lembrada com potência por muitos, e fez perceber e desejar que
mais ações desse sensível ocorressem na cidade.
63
Figura 6 - Fachada Centro de Cidadania Edson Luis
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.
O Coletivo continuou a realizar rebatismos tão potentes quanto o realizado no
Centro Urbano. Em outubro de 2011, um outdoor fixado bem frente ao 23º Batalhão de
Caçadores do Exército, localizado no bairro Benfica, estampava um chamado para encontro
de confraternização de oficiais da reserva, trazendo o seguinte texto: “relembrar é viver”. No
sentido de produzir contraponto e questionar o que orgulhosamente o exército relembra como
ato glorioso, o Coletivo propôs no mesmo dia e horário um “relembrar é viver” de mortos e
desaparecidos políticos. Na intervenção que tinha como proposta a ocupação do espaço, a
praça fora rebatizada com o nome de “Praça do Preso Político e Desaparecido”, recebendo
uma placa que fazia referência ao lugar além do busto de uma mulher desaparecida política
(ver Figura 7).
Na IX Roda de Conversa36
da Pesquisa In(ter)venções, Alexandre nos fala
como sendo um dos grandes momentos de tensão:
A gente tava produzindo a ação quando de repente veio um soldado perguntar o que a gente tava fazendo e se tínhamos autorização para intervir naquele espaço.
Explicamos para ele o que era e que nosso objetivo não era de afrontar ninguém,
fizemos o ato de forma tranqüila, mas mesmo assim plantaram dois soldados para
vigiar o que fazíamos. (Transcrição da fala de Alexandre na Roda de Conversa no
dia 04 de jun. de 2013).
36
Para ver as imagens da Roda de Conversa e ter acesso ao áudio gravado pela Zuada Rádio Livre acessar:
<http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/roda-de-conversa-fortaleza-comunicacao.html>.
64
Figura 7 - Rebatismo Praça do Preso Político Desaparecido
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.
Em fevereiro do ano seguinte, o Jornal O Povo, ao produzir matéria para o
caderno de esportes, indicando locais de possíveis confrontos entre torcedores no entorno do
Estádio Presidente Vargas - PV, localizado no Benfica, cita a praça incorporando o nome
concedido pelo Coletivo durante a intervenção de rebatismo, Praça do Preso Político e
Desaparecido (ver Figura 8). A posição da mídia nesse caso, também legitima a ação e torna
visível a apropriação do nome pela cidade, não consistindo o rebatismo um mero ato
simbólico e pontual.
65
Figura 8 - Mapa cita Praça do Preso Político Desaparecido
Fonte: Matéria do Jornal O Povo cita Praça do Preso Político Desaparecido,
2012.
A partir do rebatismo da praça, surgiu a Feira da Memória que tinha como
objetivo, criar um espaço de convivência entre as pessoas da cidade e mesmo do bairro
Benfica. Ocupar a praça era reverter seu estado de abandono visível para criar um espaço de
memória. A feira seguiu por dois anos e acontecia sempre no primeiro sábado de todo mês
(ver Figura 9). Qualquer pessoa podia participar levando o que tivesse interesse em trocar,
já que a proposta não consistia em criar um espaço objetivando transações comerciais, mas
um espaço de escambo.
Figura 9 - Feira da Memória – Praça do Preso Político Desaparecido
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.
66
Em novembro do mesmo ano, o Coletivo participou dentro da programação do II
Festival Latino Americano das Juventudes de Fortaleza. Além de realizarem a transmissão ao
vivo, direto do acampamento e das ações que lá aconteciam, o Coletivo participou ainda de
debates sobre o rebatismo popular e a importância dessa discussão como também de ações
que partissem de movimentos juvenis. Como já citado anteriormente, durante a transmissão o
Coletivo realizou a leitura dos nomes de 140 mortos e desaparecidos políticos pela ditadura. O
momento no acampamento foi a possibilidade de encontrar a cidade e ampliar os fazeres do
Coletivo, inclusive encontrando outras experiências locais e de fora do estado.
As articulações do Coletivo foram ampliadas e assim levadas a outros estados. A
visibilidade que o Coletivo foi adquirindo, fizeram com que em 2011, fossem convidados à
participar no SPA Artes, em Recife, com a Intervenção Urbana Pelo Ar, por meio da
freqüência 103,5 e com oficina de Rádio Arte apresentando como proposta discutir
mídia livre e questões relacionadas à arte no Brasil (ver Figura 10).
Figura 10 - Intervenção Urbana Pelo Ar – SPA das Artes
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.
No mesmo ano, o Coletivo participou da programação de outros eventos, também
propondo intervenções, como a distribuição de arquivos relacionados ao período, letras de
músicas emblemáticas, até arquivos sigilosos do DOPS, dentro do Encontro Nacional de
Advogados Populares (RENAP) realizado em Fortaleza. Participou ainda com a Intervenção
Urbana pelo Ar, na programação do II Manifesta, evento que reuniu diversos artista, coletivos
e grupos do cenário local, seguindo a inspiração do Movimento Massafeira, realizado em
67
1979 e que naquele período também reuniu diversos artistas cearenses, no Teatro José de
Alencar, em um movimento musical que apresentava a grandeza dos artistas locais
(ROGÉRIO, 2011).
Em 2012 o Coletivo começou a pensar em proposições artísticas em espaços
edificados, como galerias e museus, levando a linguagem da rua para o “cubo branco”.
Pretendiam fazer desse espaço algo inventivo, que extrapolasse o plano e o fixo que evocam
tais espaços. É também nesse período que o Coletivo passa a se interessar e buscar no plano
das formas, mais especificamente em editais de arte, possibilidades de ir mais longe
geograficamente, produzindo intervenções também em outros estados.
Ainda em 2012, o Coletivo foi convidado à participar da programação do projeto
Percursos Urbanos, organizado pelo Centro Cultural do Banco do Nordeste. A ação teve como
propósito explorar diferentes espaços do território de Fortaleza por abrigarem essas memórias
que são desconhecidas por muitos de seus moradores. O percurso deu então a dimensão
existencial à cidade, muito mais que sua dimensão geográfica a partir de seus planos e mapas.
Logo em seguida o Coletivo participa do edital de Exposição/Ocupação da
Galeria Antônio Bandeira. Selecionado, o Coletivo permanece durante um mês com
exposição sobre os mortos e desaparecidos do período e também com as transmissões ao vivo
da programação diária e diversificada, mobilizando artistas locais e movimentos da sociedade
civil ao diálogo. Também foram expostos trabalhos de coletivos e artistas do país que
trabalham a temática da ditadura como o Coletivo Quem (ver Figura 11). A exposição
recebeu, principalmente, a visita de estudantes da rede municipal de educação, um momento
que funcionou enquanto suporte educacional.
68
Figura 11 - Exposição/Ocupação Galeria Antônio Bandeira
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.
Já com a aprovação no Edital Rede Nacional Funarte Artes Visuais – 8ª Edição
(2011), o Coletivo segue para as cidades de Campinas (SP) e Marabá (PA) onde desenvolveu
oficinas de rádio arte além da realização de intervenções. A escolha dos estados e locais se
deu por serem linhas latentes de resistência37
durante o período. Para além, Campinas
configura- se como espaço de referência para os movimentos de rádio livre e alternativa frente
às experiências nacionais, e Marabá por ter sido uma das regiões a abrigar um dos maiores
focos de resistência durante o período: a Guerrilha do Araguaia, episódio que movimenta a
sociedade na busca por esclarecimentos e responsabilização do Estado pelos diversos crimes
cometidos contra militantes e moradores locais.
O intercâmbio não só aproximou o Coletivo de articulações nacionais, como
também do peso real que tem os dois lugares, das histórias e vivências que permanecem como
uma “nuvem negra naquele lugar” que carrega o peso da história, (ver Figura 12). Marquinhos
em conversas, falava o quanto aquele lugar tinha um peso que não era possível explicar:
Andar nas ruas lá era uma coisa muito estranha, como se os conflitos ainda
existissem lá sabe? Se bem que lá ainda existem pessoas que naquele período ajudavam o exército a caçar guerrilheiros no mato. Até hoje mandam matar pessoas
que desobedecem ou fazem algo que desagrade. É muito louco tá lá e saber que
várias pessoas morreram naquele lugar. (Transcrição da conversa com Marquinhos na sede do Coletivo em maio de 2013).
37 Para acessar o cronograma das atividades desenvolvidas acessar: <http://www.funarte.gov.br/wp-
content/uploads/2012/04/Cronograma-de-atividades_Projeto-Intervencao-urbana-pelo-ar_2012_Rede-Nacional-
Funarte-Artes-Visuais-8a-Edicao_Grupo-Aparecidos-Pol%C3%ADticos_CE.pdf>.
69
Figura 12 - Coletivo Aparecidos Políticos em Marabá
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2012.
No mesmo ano o Coletivo participou do intenso calendário de atividades da 33ª
Caravana da Anistia, que já havia percorrido diversas cidades do país. Ainda na programação,
o Coletivo entregou uma bandeira com a assinatura do grupo para compor a colcha de retalhos
de movimentos sociais e organizações que lutam pelo direito à memória, verdade e justiça no
país.
Os chamados cada vez mais recorrentes à compor mesas de discussões e outros
importantes debates locais, articulados à movimentos sociais, davam a dimensão da tamanha
articulação e visibilidade que o Coletivo havia alcançado. Ao mesmo tempo, assinalava para
um momento muito mais político do Coletivo do que propriamente artístico. Com uma grande
demanda de participação em eventos e também a partir da participação no Comitê Estadual de
Memória Verdade e Justiça, as ações na rua foram se tornando cada vez mais pontuais.
A proposta de construir intervenções em espaços físicos seguiu. A convite da
Associação da Anistia 64/68 realizaram a Exposição Prestes no Ceará, na própria sede da
Associação, momento que contou com a presença de ex-gerrilheiros, estudantes,
personalidades políticas além de Anita Leocádia Prestes, filha dos militantes Olga
Benário e Carlos Prestes. Na ocasião, Anita falou do percurso de seu pai no Ceará e
também da necessidade de tornarmos sempre à temática da ditadura na perspectiva de não
tropeçarmos nesse passado. Na imagem a baixo, (ver Figura 13) segue uma composição que
apresenta a movimentação em frente a Associação 64/68, o momento em que Anita fala,
além do Coletivo que pousa ao lado do grafite do rosto de Carlos Prestes e Alexandre
70
Mourão em um momento de fala. No mesmo dia Anita lançou o livro Luiz Carlos Prestes –
o combate por um partido revolucionário (1958 - 1990).
Figura 13 - Abertura da Exposição Prestes no Ceará
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2013.
São convidados pela Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza em parceria
com a Butuca Produções, à participarem juntos da construção de um espaço destinado à
memória em um dos lugares que foi centro clandestino de tortura, a Secretaria de Cultura
de Fortaleza, lugar que abrigou a sede da Polícia Federal. A construção do memorial da
resistência abriga a exposição permanente “Arquivo das Sombras” e apresenta um conjunto
de imagens, áudios, registros fotográficos, marcas deixadas em uma cela que contam as
experiências vividas por presos políticos.
O mesmo espaço abriga um painel criado pelo Coletivo que fica localizado na
entrada da exposição. A composição do painel faz uso de imagens de presos e desaparecidos
por meio da técnica do estêncil a partir do uso de múltiplas cores. Por cima da imagem o
Coletivo instalou um imenso vidro que possibilita a intervenção dos visitantes que não são só
espectadores, mas participam da obra a partir do momento que passam a escrever nesse
vidro. As frases são várias, desde “ditadura nunca mais” a “Viva Marighella”. Na imagem a
baixo (ver Figura 14) é possível ver inscrições sobre a superfície e ao fundo as imagens dos
desaparecidos criadas a partir do estêncil. As imagens agora são coloridas, não mais a partir
da tinta preta, como visto nas ruas.
71
Figura 14 - Painel Aparecidos Políticos na Exposição Arquivo das
Sombras
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2013.
Após premiação no Edital Leonilson de Artes Visuais38
com o projeto Caminhos
da Ditadura, o Coletivo propõe uma aproximação de experiências de Justiça de Transição na
Argentina e convida o Grupo de Arte Callejero - GAC39
,
que há 17 anos produz
intervenções no sentido de contestar a memória dos espaços e na busca por verdade, memória
e justiça em seu país. O coletivo é a principal inspiração para as ações dos Aparecidos
Políticos que vinculam a experiência do GAC às interferências na memória e em políticas de
transformação do país.
A vinda do GAC para Fortaleza se deu pensando na programação em
rememoração aos 49 anos do golpe militar , por meio de parceira do Coletivo com outras
organizações dentre elas o curso de História da Universidade Estadual do Ceará, UECE.
A partir das aproximações foram produzidos, no campus Itaperi, intervenções, debates e
oficinas. As intervenções consistiam na fixação de cartazes com imagens de mortos e
desaparecidos, imagens essas que permanecem desgastadas pelo tempo, mas com o peso de
figuras emblemáticas (ver Figura 15).
38 Prêmio oferecido pela Secultfor
72
Figura 15 - Intervenção UECE Itaperi – Jornada para Não Esquecer Jamais
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2013.
Dentro da mesma programação do mês de rememoração, e também contando com
a presença do GAC, o Coletivo por meio de convites a pessoas próximas ao Coletivo, artistas,
coletivos, membros da sociedade civil organizada além de ex-presos políticos, realizou uma
intervenção no Mausoléu Castelo Branco, local construído e mantido pelo Estado para
guardar os restos mortais do ex-presidente e ditador Humberto de Alencar Castelo Branco.
A intervenção, detalhada anteriormente, consistia em colocar barcos de papel com
as imagens de desaparecidos e iluminados por uma vela, em uma piscina que ornamenta o
entorno. Em meio a discursos e gritos de “presente”, a intervenção chamava a atenção ao
mesmo tempo em que despertava a curiosidade de quem passava pelo local. A ação, que não
havia sido informada aos responsáveis pela segurança do Mausoléu, foi assistida atentamente
por um grupo de policiais presentes no local.
Realizando o caminho inverso, seguindo a proposta do edital, o Coletivo GAC
recebe os Aparecidos Políticos em Buenos Aires onde também realizaram intervenções e
participaram de debates e outros eventos na cidade. Na ocasião os integrantes Marquinhos,
Stella e Alexandre, puderam conhecer e sentir as disparidades existentes nos dois países
quanto ao reconhecimento de seus mortos pela ditadura. Buenos Aires com seus memoriais e
museus parece preservar a memória daquele período, fazendo caber esses mortos entre os
sobreviventes do horror do Estado. A figura 16 mostra algumas das atividades realizadas pelo
Coletivo na Argentina.
39 Para ver ações do Coletivo e conhecer mais acessar o site: http://grupodeartecallejero.blogspot.com.br/
73
Figura 16 - Intercâmbio Argentina
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2013.
Pensando em pulverizar ações e desejos de intervenção, além de seguir o calor das
revoltas nacionais e também locais no ano de 2013, o Coletivo organiza, por meio da parceria
com a Pesquisa In(ter)venções, o Curso de Ativismo Criativo (Módulo I), com “aulas” sobre
arte política e ativismo criativo direcionadas à movimentos sociais, militantes, estudantes,
educadores, “jovens da periferia”. O texto abaixo é esclarecedor quanto aos objetivos do
curso:
A ideia é que o curso seja uma maneira de apresentar algumas experiências de Ativismo Criativo no intuito de possibilitar a criação de formas de intervenção artística ou manifestação política afim de convergi-las com as lutas sociais locais; como também aprofundar algumas práticas já em desenvolvimento, atentando para os riscos de não sobrepujar a arte à política e vice-versa.40
Além de textos e debates sobre as possibilidades de explorar as intensidades
cotidianas por meio da arte política, o curso contou com oficina de estêncil e vivência no
acampamento Ocupe Cocó. Na figura 17 é possível ver momentos teóricos e práticos do
curso, além de um momento do Coletivo no acampamento.
Existem muitas questões a serem debatidas quanto a proposta do curso,
abordagem metodológica, questões que pude perceber durante o acompanhamento das
atividades, no entanto não adentrarei em tais questões nesse momento. O que realmente
40 Texto retirado da página do Coletivo em rede social. Disponível em:
<https://www.facebook.com/photo.php?fbid=403813989738835&set=pb.100003307123208.-
2207520000.1407826913.&type=3&theater>.
74
interessa é perceber o quanto as possibilidades de criação e resistência apresentadas pelo
Coletivo, instigou muitas pessoas da cidade, como também de outros estados, surgindo a
demanda de coletivos em outros estados querendo a realização do curso.
Foram cerca de vinte participantes e o Coletivo contava ainda com uma lista de
espera, mesmo sendo esse um módulo mais teórico. Existiu no Coletivo o desejo de lançar o
Módulo II, o que seria “um momento mais prático” nas palavras de Alexandre. No entanto,
a falta de recursos próprios para a realização é um dos entraves que o coletivo
enfrenta.
Figura 17 - Curso Ativismo Criativo
Fonte: Pesquisa direta, Sabrina Késia de Araújo Soares, 2013.
Em outubro de 2013, o Coletivo passa a contar com um espaço físico, uma
espécie de ateliê dentro da Associação da Anistia 64/68, denominado de Aparelho, fazendo
referência ao local, que no contexto da ditadura, era usado como refúgio pelos grupos
políticos clandestinos. O local é onde ocorrem os encontros semanais, armazena-se material
de criação e também onde se realiza algumas transmissões da Zuada Rádio Livre.
A partir da aproximação, agora física, com a Associação 64/68, o Coletivo
enxerga a possibilidade de fazer com que as pessoas da cidade, sobretudo as juventudes,
conheçam o espaço que abriga um acervo de livros, jornais e documentos do período, além de
ser ponto de encontro de ex-presos políticos que sobreviveram ao regime ditatorial. É
também dos desejos do Coletivo que o espaço possa ser um lugar de aproximação de outros
grupos, coletivos de arte e movimentos sociais, evidenciando a construção de redes de
75
criação.
Nesse sentido, é interessante pensar que como afirma Salles (2008), nunca
atuamos sozinhos no processo de criação, o processo se constrói por meio de uma rede
formada por referências, encontros, aproximações. Essas interações são complexas e formam
um conjunto que apresenta infinitas possibilidades ao Coletivo. Nas relações estabelecidas
com esses grupos, bem como na abertura do espaço, fica evidente o quanto o Coletivo
acredita que não pode atuar de modo isolado e que as redes de conversação são importantes
para ligar os processos de luta por memória com outras questões.
A inauguração do Aparelho (ver Figura 18) contou com exposição do Coletivo em
parceria com o artista cearense Rafael Lima Verde expondo uma série de ilustrações chamada
Sacro Rebellis. As ilustrações criadas por Rafael para aquele momento, tomaram, em
momento posterior, o Farol Antigo do Mucuripe41
, gerando grande discussão sobre
apropriações dos espaços públicos e o abandono de equipamentos pelo órgãos competentes.
Figura 18 - Exposição Transições Latinas – Inauguração do
Ateliê
Fonte: Pesquisa direta, Sabrina Késia de Araújo Soares, 2013.
A proposta de ser um espaço que pode ser apropriado por outros grupos
conseguiu se fortalecer e o Coletivo, além de realizar suas reuniões, festas e exposições nesse
41
Para mais informações sobre a intervenção realizada no Farol do Mucuripe acessar:
<http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2013/11/19/noticiasjornalvidaearte,3164851/artistas-grafitam-
76
lugar, abriu as portas junto à Associação da Anistia 64/68 para que outras entidades e grupos
pudessem realizar suas atividades. São acolhidas no local, com periodicidade, as reuniões do
Comitê pela Desmilitarização, formações do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária
Popular (Sajus)42
, reuniões do Levante Popular da Juventude e do Fórum Antimanicomial.
Sem contar em outras atividades que acontecem esporadicamente.
Em 2014 as propostas de intervenção na rua são retomadas pelo Coletivo. No
ano que completa os cinquenta anos do golpe, mais especificamente no mês em que se
rememora o golpe militar, o Coletivo volta a realizar intervenções nas ruas de Fortaleza. São
propostas três ações que ganham destaque e reascende no Coletivo o desejo de voltar a
produzir intervenções sensíveis nos espaços da cidade. Na primeira intervenção o local
escolhido foi o muro do 23º BC, localizado na Av. 13 de Maio no bairro Benfica, um ex-
centro de tortura do Exército citado inclusive no relatório final da Comissão Nacional da
Verdade.
Afixar espelhos com imagens de mortos e desaparecidos, essa era a ação que
homenageava as vítimas do horror e todos os que sofreram inesgotáveis sessões de tortura
naquele local (ver Figura 19). Na calada da madrugada o muro do 23º BC recebeu as imagens
dos desaparecidos colocadas em espelhos. No dia seguinte, logo ao amanhecer, como já se
esperava e imaginava, as imagens já não compunham o muro, evidenciando a efemeridade da
ação. Os registros logo foram disponibilizados na rede de internet, abrindo e também fazendo
com que as pessoas pudessem relembrar a data, e mais especificamente, os mortos e
desaparecidos.
farol-do-mucuripe.shtml> 42 Grupo dos estudantes do Curso de Direto da Universidade de Fortaleza – Unifor.
77
Figura 19 - Intervenção 01 de abril - 2014
Fonte: Pesquisa direta, Sabrina Késia de Araújo Soares, 2014.
A segunda intervenção será melhor detalhada em um dos capítulos, pois se trata
de um processo vivido, o que aponta diversas questões as quais merecem um olhar apurado. A
intervenção teve como proposta retornar a trabalhar imagens fotográficas de mortos e
desaparecidos. Agora não mais fotografias de documentos de identificação ou arquivos
policiais, mas imagens familiares que mostram essas pessoas em suas vidas, em seus
cotidianos, antes dos acontecimentos. Trata-se de imagens que só foram possíveis de ser
conseguidas pela aproximação do Coletivo com membros familiares.
Foram fixadas duas grandes imagens, uma delas um homem sentado em uma
cadeira de balanço em uma varanda, a fotografia de Bergson Gurjão, imagem cedida pela
irmã Tânia Gurjão. Já na segunda imagem, Iure Xavier, irmão de Iara Xavier, militante na
década de 70 da Aliança Libertadora Nacional.
As imagens foram fixadas em baixo de um viaduto de intenso fluxo de pedestres
localizado na Av. Aguanambi em Fortaleza. No momento de fixação, pessoas curiosas
perguntavam do que se tratava, quem eram aquelas pessoas. Outras, apenas observavam de
longe, na tentativa de entender o que se passava.
A terceira intervenção, proposta dentro do 65º Salão de Abril, também
corresponde a um dos capítulos a serem contados enquanto processo dentro do presente
trabalho. Por esse motivo, detalhes e problematizações estarão presentes no decorrer do
referido capítulo.
78
Denominada de Operação Carcará, a proposta consistia em lançar de um
helicóptero cerca de 140 miniparaquedas de brinquedo com os rostos dos desaparecidos,
no entorno do 23ºBC, ação essa que seria acompanhada por artistas, curadores e pessoas
presentes no espaço. Diante de um aparato do exército, capaz de mobilizar o fechamento do
espaço aéreo e ordenar que a aeronave contratada para realizar o lançamento dos
miniparaquedas pousasse, a ação não havia encerrado por ali. Com horário marcado para
acontecer, a mobilização de curiosos, imprensa e também curadores do Salão acontecia em
frente ao 23ºBC, que contava com um intenso aparato dos soldados posicionados em suas
guaritas além de carros com homens armados. O Coletivo, “impedido de realizar a ação”,
retornou ao Salão para contar o ocorrido. O que o Coletivo provocou consistiu na
possibilidade de tornar visível aquilo que aparentemente não mais existe. Evidenciou ainda a
potência da arte e o quanto as propostas artísticas em meio aos espaços produzem tensões e
resistência no seu sentido macropolítico, de uma força reativa.
79
3. IMAGENS, PERFORMANCES E TEXTOS COMO INSCRIÇÃO DA AUSÊNCIA –
ANÁLISES DE “O QUE RESTA DA DITADURA”
A impossibilidade de dissociar os processos artísticos da vida cotidiana me leva a
construção de uma análise do percurso do Coletivo enquanto realizador daquilo que autores
como Márcio Seligman (2008), Moacir dos Anjos (2014), Angélica Mellendi (2014), Tania
Rivera (2014) e Leila Danziger (2014) tem tomado em suas análises, situando a arte
contemporânea produzindo a inscrição da violência.
Essa possibilidade de inscrição vem respondendo aos movimentos de violência
que marcam o cotidiano e fraturam a sociedade. A resposta à esses movimentos já não parte
da própria violência, o que sempre foi uma tendência muito comum e recorrente se
observarmos com atenção os processos sociais e políticos ocorridos ao longo de décadas no
ocidente e oriente. Mas é possível apontar que a arte é o principal dispositivo que responde a
contrapelo os recortes de violência que marcam a história e que de maneira inaceitável são
constantemente atualizadas no contemporâneo.
Aqui vale citar desde logo artistas e trabalhos renomados e conhecidos
internacionalmente que de modo sensível, reinstauram o real nos aproximando dele, de modo
que seja possível apreender não só com os olhos, mas a partir do campo dos afetos que
marcam o encontro entre corpos. Nesse sentido aponto para o trabalho da fotógrafa Cláudia
Andujar43
que ainda na década de 70 criou um ensaio fotográfico com os índios Yanomamis,
relegados ao esquecimento; ou mesmo do Chileno Alfredo Jaar que a partir do trabalho
Untitled desenvolveu uma exposição que nos coloca diante dos mecanismos de construção de
visibilidade social, narrando paralelamente em duas linhas do tempo distintas, os
acontecimentos de um mesmo período: o assassinato de cerca de um milhão de ruandeses e as
capas da revista Newsweek, um dos maiores meios de notícia do mundo, que no mesmo
período concedia destaque a outros acontecimentos banais do mundo.
Há ainda trabalho de artistas ligados diretamente a arte e memória como o
de Naomi Salomon, que por meio de exposição organizou objetos encontrados nos campos de
concentração nazista; do artista Horst Hoheisel44
que desenvolveu trabalhos conceituais
entorno do Holocausto e também sobre os regimes militares no Brasil, Uruguai e Chile; o
impressionante trabalho de Doris Salcedo que a partir de cadeiras presas no prédio do Palácio
43
Para acessar imagens do trabalho acessar: http://povosindigenas.com/claudia-andujar/ 44 Para conhecer os trabalhos de Horst acessar: http://hoheisel-knitz.net/
80
da Justiça da Colômbia, narra o massacre ocorrido em 1985 naquele lugar.
São trabalhos que reúnem a potência da arte em criar perceptos, pensado como
propõe Deleuze (2010, p.175), enquanto “pacotes de sensações e de relações que
sobrevivem àqueles que os vivenciam”, logo uma potência que comporta a força do devir, e
que pelo modo singular de tocar as sensações, nos fazem enxergar esses acontecimentos de
modo singular.
Os exemplos são inúmeros nessa linha de trabalho, mas o mais importante é
refletir o quanto essas criações têm conduzido a um importante papel político na construção
de identidades dispostas nas bordas da ordem global. São escolhas estéticas diversas que
apresentam toda potência de singularizar essas identidades, conceito que evoca processos de
afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepções como indicam
(GUATTARI;ROLNIK, 1996; GUATTARI, 1992; GUATTARI, 2001).
Essa disposição artística tem nos reelaborado diante das mais terríveis práticas de
violência que inacreditavelmente são naturalizadas e se tornam invisíveis no cotidiano opaco.
Logo reelaboramo-nos no sentido de enfrentar a violência de modo criativo, sensível,
dialógico e consequentemente “não violento”45
, pela capacidade da arte em lidar com as
diferenças que nos tomam, criando agregados sensíveis.
A arte agora puxa para si a tarefa de inscrever o desaparecimento, a dor e a
violência, construindo uma espécie de reelaboração da perda por meio de mecanismos
capazes de fazer com que essa mesma dor adquira novos sentidos. Um movimento de
transformação, onde dor e o sofrimento são potencializados em algo maior. Arte engajada,
arte ativista, arte social e arte política, termos que nos conduzem a pensar que a arte não está
fechada em si, mas atrelada à outros dispositivos e, sobretudo, comprometida com uma ordem
do sensível e da vida, que aqui se apresenta enquanto vida comum.
A proposta é refletir sobre esse movimento que tem marcado as artes
contemporâneas, assumindo a necessidade de inscrever essa “memória do mal” em uma
sociedade marcada pela ilusão de superação, sobretudo no que desrespeita as situações pós-
conflitos políticos e aqui me volto para a pós-ditadura militar especificamente no Brasil.
Cada artista tem apontado para um fato esquecido no tempo, rasurado pelas
memórias hegemônicas, ao passo que lançar um olhar singular para esses fatos tem produzido
45
É interessante pensar que o termo violência tem distintas formas e dimensões. Interessa pensar o não-violento
no sentido de não gerar danos físicos, aquilo que não afeta o corpo em sua forma física, o que não exclui a
possibilidade de produzir uma violência psicológica.
81
narrativas diversas em contraposição às formas comuns de narrar esses acontecimentos. Como
fala Mellendi (2014, p.39) esses novos processos do contar fazem com que esses fatos sejam
“colocados em nossas mãos como se fossem folhas secas ou borboletas mortas. Quiçá
possamos revivê-las, deixá-las perfumar e voar por aí”.
É o que tem criado o Coletivo Aparecidos Políticos com suas escolhas estéticas e
políticas, produzindo intervenções que transitam entre a denúncia e o lembrar dos mortos e
desaparecidos pela ditadura civil-militar 1964. São proposições que contestam as práticas
repressoras do Estado no contemporâneo, que por meio de ações e discursos tendem a
conceber o pensamento da “eliminação do inimigo”. Aqui tem interessado pensar as potências
de afeto que permeiam o trabalho do Coletivo e especificamente o quanto esses processos
evocam a instauração de ficções, tensões, a produção de novas relações, aspectos que como
veremos adiante, Rancière (2010) concebe serem comum tanto no campo da política como no
campo das artes.
Penso ser importante situar os movimentos que me fazem fugir nesse momento
inicial da proposta metodológica do presente trabalho. Mesmo apostando na pesquisa
intervenção, acompanhando e intervindo com o Coletivo Aparecidos Políticos ao longo de
dois anos, indico a necessidade de lançar o olhar para a primeira intervenção realizada pelo
Coletivo e que subsidia compreender as transformações ocorridas na forma singular de
inscreverem a violência por meio de construções estéticas.
A construção de uma análise da intervenção “O que resta da ditadura” é também
uma forma de operar os conceitos presentes no trabalho do Coletivo sendo eles: arte política,
memória (coletiva/individual) e cidade. Três aspectos que conduzem as produções do
Coletivo e que marcam os novos modos de redesenhar o urbano por meio da arte política
enquanto esse possível.
A opção por apresentar o trabalho, que é um dos primeiros do Coletivo, não
acontece pela sua perspectiva cronológica, mas sim pela enorme potência na composição da
ação que aglutina escrita, performance e imagem como aspecto único. Esse é também o
primeiro momento de contágio com o trabalho do Coletivo.
Não posso deixar de expor minhas inquietações enquanto alguém que pesquisa e
se implica, diante desse modo de recortar os acontecimentos do mundo e o quanto essa
intervenção tem a capacidade de nos mobilizar a pensar os contextos urbanos e também o
campo das artes visuais, que cada vez mais agência novas possibilidades de criação.
Nesse sentido, buscarei não uma leitura partilhada de cada expressão, mas ao dar
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contornos específicos a cada uma delas, até porque é necessário e se mostra impossível a
realização de uma leitura única, proponho então pensar o quanto a arte se vale cada vez mais
de processos híbridos no construir de um percurso. O que o Coletivo tem realizado é recorrer
a criação que toque no âmbito da política, de uma questão que nos sensibiliza pensar a história
do país e o quanto ainda estamos imersos nesse passado. Tentarei a seguir, apresentar em
certa medida, as potências presentes na intervenção, constantemente revisitada por intermédio
do registro audiovisual, e que a cada momento incorpora novos significados. Afetos que
sempre produzem, no entanto em intensidades distintas.
3.1 “O QUE RESTA DA DITADURA” E SEUS AFETOS INTENSIVOS
Como já citado anteriormente, “O que resta da ditadura” foi realizado em 2011
dentro da programação da Jornada Para Não Esquecer Jamais, evento realizado todos os anos
durante o mês de rememoração do golpe militar. O Coletivo Aparecidos Políticos, em
parceria com o Coletivo Curto-Circuito - coletivo ligado a performances e as implicações da
arte no espaço público urbano - disparam a intervenção “O que resta da ditadura”46
,
realizada nas ruas de Fortaleza. Naquele momento, a produção da performance pelo Coletivo
Curto-Circuito tinha como âncora a realização de uma performance para a exposição Sala
Escura da Tortura47
, com curadoria e produção do Instituto Frei Tito de Alencar, apresentada
na Assembléia Legislativa do Estado do Ceará.
Durante a intervenção fotografias de Frei Tito, Ieda Santos, Áureliza, Dinaelza
Santana, Lucia Maria, Antonio Theodoro, Saraiva Neto, Jana Moroni, José Montenegro e
David Capistrano, desaparecidos e mortos pelo regime civil-militar de 1964 que integraram,
naquele momento a paisagem visual da cidade. Nomes e identidades que permaneceram por
muito tempo entre a linha da opacidade, entre a visibilidade familiar e a invisibilidade social.
Essas imagens e nomes são partes de uma memória fragmentada e contribuem na construção
de uma memória coletiva, como fala Halbwachs (2004) são pontos de vista, ramificações que
organizadas em rede constroem essa memória maior.
Foram utilizadas fotografias dos mortos e desaparecidos a maior parte deles
constando em listas oficiais. Penso que essa opção do Coletivo já se coloca como aspecto
interessante de se pensar. No país o que marca, uma das grandes tensões, quando se fala nos
46
Link de acesso a intervenção: <https://www.youtube.com/watch?v=xi1nkLPESWo>. 47 Para acessar o livro da exposição Sala Escura da Tortura:
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mortos e desaparecidos pelo regime, é o não reconhecimento de todos os atingidos pela
ditadura. Pessoas que não tinham, necessariamente, envolvimento político, mas que do
mesmo modo sofreram torturas, foram mortos ou continuam desaparecidos, o que amplia o
conceito de desaparecido não restringindo aos militantes políticos.
É importante citar ainda, nomes e casos de mortos ou desaparecidos que circulam
nas rodas de debates, nomes esses amplamente reconhecidos pela atuação, mas que por muito
tempo não integravam a lista oficial ou se quer eram reconhecidos. No entanto Alexandre,
integrante do Coletivo, fala que a escolha dos nomes/imagens não se deu por serem ou não
oficiais:
A nossa intenção nunca foi de personificar um morto e desaparecido em específico.
Sabíamos desde sempre que muitos daqueles nomes integravam a lista oficial e que
há muitos anônimos que não são lembrados. Mas nesse caso em específico
estabelecemos alguns critérios, como inserir os nomes de mortos e desaparecidos
cearenses assim com o gênero feminino. Em alguns pontos estabelecíamos relação:
em frente a Casa do Estudante colocamos o Antonio Theodoro porque foi lá que ele estudou. Próximos aos centros de tortura colocamos os cearenses desaparecidos.
(Transcrição de entrevista realizada com Alexandre Mourão, em 10.10.2014)
Talvez a dimensão da escolha seja a primeira tensão referente ao trabalho do
Coletivo, já que produzir um recorte sensível do mundo nos impele consequentemente ao ato
de escolher, de preferir um ou outro. Ao mesmo tempo é importante citar o quanto a arte
trabalha com recortes do mundo, e ao que se apresenta o escolher, nesse caso, não se
configura como esquecimento consciente. No entanto vale a reflexão se a escolha,
especificamente na intervenção proposta pelo Coletivo por nomes oficiais, não seria um
segundo momento de exclusão desses mortos e desaparecidos, já que há tantos outros nomes e
histórias nesse processo que merecem ocupar o mesmo lugar de visibilidade. Em
contraposição é como se a opção pelos nomes oficiais, pelos casos que se tornaram
conhecidos, fosse um modo de afirmar que esses rostos tivessem se tornado a “face” de
milhões “sem rosto” e “sem nome” que não integram as listas oficiais.
Desses escolhidos, as fotografias selecionadas, ao que indica retiradas de arquivos
familiares ou mesmo de documentos, foram ampliadas pelo Coletivo na busca de produzir
contraste com o espaço urbano a partir de sua fixação nos muros. Na verdade, essa estratégia
do Coletivo é como quem deseja dar a esses invisíveis a verdadeira dimensão que lhes cabe na
sociedade.
<https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/tito.pdf>.
84
Vale citar que a identidade visual ganhou reforço a partir da escrita em tinta preta
e vermelha, do nome desse morto ou desaparecido, seguido da pintura “morto pela ditadura” e
“desaparecido pela ditadura”, fragmentos que vem a indicar o rastro sutil de ausência e
presença paradoxalmente. Nesse sentido, a escrita também cumpre o papel de imagem
revelando aspectos não só verbais como também simbólicos, dando ainda mais sentido às
fotografias dispostas nesses espaços, que como um grito sufocado emerge, irrompem no
cotidiano desse tempo presente.
É a partir da escrita do nome que se evoca a possibilidade de individualizar,
nomear esses invisíveis que por muito tempo se encontraram além da linha abissal, termo
cunhado por Santos (2007) para distinguir visíveis e invisíveis dos processos sociais. Para o
autor, do outro lado da linha “há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética”
(2007, p.04). Para Rancière (1996, p.37) são seres sem nomes, logo “aquele que não tem
nome não pode falar” emite apenas ruídos de prazer e dor ao invés de palavras.
A reflexão de Rancière (1996) nos remete de imediato a pensar o quanto os
últimos trinta anos o ato de silenciar consistia em enclausurar imagens, sons e cheiros do
sofrimento, para que o tempo cronológico, enquanto aliado do Estado, cumprisse o papel de
apagar essas marcas do passado. Assim o ruído equivale a tentativa exasperada da memória se
sobressair e reconhecer os que tombaram nesse caminho como os sem nomes, os sem rostos e
os ruídos, constantemente presentes entre nós e nos espaços da cidade.
É nesse sentido que o uso do nome se torna significativo para esses desaparecidos,
que durante muito tempo sobreviveram na clandestinidade, relegando seus nomes. Agora o
nome parece evocar a própria existência, a possibilidade de ser reconhecido pela sua
identidade oficial. É como se a possibilidade de ser chamado pelo nome apresentasse várias
palavras relacionadas ao período e a sua ausência, nomeando em meio aos acontecimentos, os
danos desse período. Nomear pode ser tomado como ato de conceder a palavra ou mesmo a
premissa de ser visto e ouvido na ágora (ARENDT, 2010).
Simultâneamente a escritura dos nomes e frases nos muros, se cria uma
performance no mesmo ambiente. Um homem encapuzado vestindo calça jeans e camiseta,
vestes que também nos remete a um tempo-espaço anterior. Nos movimentos que obedecem a
um tempo lento, o performer leva as mãos à cabeça e põe a girá-la em um gesto sufocante,
como quem tenta se libertar do capuz, indumentária comumente utilizada nas práticas de
tortura durante o regime (ver Figura 20). Ou ainda a performance joga com a relação do
corpo e tempo presente, um corpo sufocado pela velocidade e urgência dos processos
85
urbanos intermitentes.
Figura 20 - Performance homem encapuzado -“O que resta da ditadura”
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.
O gesto lento vai de encontro às questões que tomam a cidade e que também
perpassam pela questão do corpo, que necessariamente “precisa” responder aos estímulos
desse espaço com gestos que correspondam a velocidade do mesmo. Na intervenção, o corpo
responde a partir da ordem do homem lento, do qual fala Santos (2007), se referindo a
materialidade do corpo para mencionar a experiência na tessitura urbana. São lentos por
tomarem um ritmo outro, negando a velocidade imposta pelo contemporâneo que promove o
anestesiamento dos corpos nos cotidianos urbanos. No entanto, essa lentidão não se refere a
um tempo objetivo, mas subjetivo, um tempo em que é possível ver e perceber melhor do que
qualquer outro essa cidade e seus espaços, para além das fabulações imagéticas que nos
tomam, como afirma Santos (2007).
A performance joga com tempos distintos: se refere ao passado, aos
acontecimentos contidos nesse tempo anterior, mas ao mesmo tempo nos toma no presente e
nos faz pensar como nosso corpo encontra esse outro corpo, e como esse corpo encontra o
corpo urbano a partir da lógica que rege o tempo cronológico nesses espaços.
Em outro momento um homem sentado em uma cadeira vestindo apenas
uma cueca, tem as mãos amarradas para trás, os olhos vendados por um pano vermelho e o
tornozelo preso as pernas da cadeira (ver Figura 21). Nessa outra performance não há
qualquer reação, apenas a inércia do corpo que pela fisionomia, possível de ser visualizada
nas fotografias retiradas do vídeo, mostradas a seguir, parece não mais esboçar qualquer
reação perante a situação. É como se esse corpo reelaborasse sua forma de resistir, agora por
meio do silêncio que também nos diz muito sobre esse processo.
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Figura 21 - Performance homem sentado - “O que resta da ditadura”
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.
Durante as duas performances o que existe são apenas os gestos de corpos, em
processo de afetação, e a ausência desses mesmos gestos, mas que pela construção comportam
a mesma intensidade, produzem afetos cada uma ao seu modo.
Em meio aos ruídos do espaço público, vestígios de um silêncio que marcam as
situações de violência no cotidiano desses espaços. Silêncio que não significa uma mera
ausência, mas “ato de escapar à responsabilidade de manter a memória que sustenta o mundo.
Esquecimento, memória e responsabilidade se interpenetram e formam, dessa maneira, uma
tríade que edifica e mantém a condição humana”. (NASCIMENTO, 2011, p.95)
Por meio do vídeo é possível ver as diversas reações provocadas nos transeuntes.
Alguns passam apressados sem olhar. Outros olham discretamente e seguem o caminho, mas
há aqueles que acometidos pela curiosidade e afetados pelas imagens e gestos que compõe a
intervenção, querem chegar mais perto, perguntar, saber do que se trata e se deixar afetar.
O estranhamento é, no entanto, o que marca e parece inevitável diante de
situações que nos desestabilizam. Talvez escrita, imagem e performance não sejam
suficientes perante os pormenores dos acontecimentos uma vez que há muitos detalhes em
meio ao híbrido que nos puxam à curiosidade, que nos impelem a chegar ainda mais perto.
Alexandre Mourão fala de algumas reações mais fortes:
Havia obviamente muito estranhamento e curiosidade. Algumas foram marcantes
como a de um jovem, de nossa idade aproximadamente. Ele se aproximou da gente perguntando o que era aquilo que fazíamos. Chegamos no assunto “ditadura
militar” e ele nos revelou que não sabia o que havia sido a “ditadura”. Outra
reação bem interessante foi em frente a Casa do Estudante, local onde o
desaparecido político Antonio Theodoro viveu e presidiu. Fixamos a imagem do
mesmo em frente a casa e iniciamos a performance. Foi então que o presidente do
espaço chegou pra gente bastante contente em nos ver realizando aquele trabalho
ali, de alguém que foi tão significante par aquele espaço. (Transcrição de entrevista
realizada com Alexandre Mourão, em 10.10.2014)
87
Um campo aberto de sentidos, as experiências e o encontro de corpos parecem
trazer à tona as intensidades vividas nesses espaços e o quanto o outro é por sua vez
ressignificado, a partir da criação de novos contextos e na intervenção do Coletivo a partir dos
contextos urbanos.
A performance a partir do que Cohen (2002, p.704) indica, corresponde a
experiência do movimento onde as fronteiras entre arte e vida são borradas dando conta de um
caráter mais radical, capaz de ampliar as fronteiras da experimentação artística encarando
enquanto experiência de vida. É uma vivência que dá margem a busca pela
desterritorialização por meio de processos artísticos.
Ainda segundo o autor, a performance prescinde qualquer elemento prefixado se
valendo da liberdade no ato de criação, o que nos põe a pensar que os gestos do performer se
apresenta como sendo um campo aberto de criação e nunca uma representação, cópia fiel de
um acontecimento.
Reside na arte essa capacidade de nunca se fundir por completo no real, mas sim
de se difundir, na perspectiva de uma criação. É nessa intenção que a performance abriga uma
contextualização, leituras de espaços e gestos de modo singular e que parte desses processos
de criação que também a imersão do performer e os modos como esse encarna os processos
de vida.
Nesse sentido, a construção da performance na intervenção do Coletivo parece
conseguir, se não preencher, minimizar a ausência de imagens de torturas que tem
representado um buraco na história e nos registros visuais do país. Essas imagens,
reconhecidamente difíceis de serem processadas, precisam compor a memória visual desse
momento para que seja possível criar condições de interpretação e considerar os
acontecimentos enquanto parte do processo histórico-social e não um acidente de percurso,
como aponta Dias (2012) a cerca das considerações errôneas que acabam sendo realizadas
acerca do regime militar.
A performance, na intervenção proposta, corresponde a um ato de criação que se
dá a partir da narração verbal, do relato de torturados que carregam a construção dessa
imagem na memória individual e as marcas no corpo. Enquanto resultado de um processo
artístico livre, a performance se constrói tomando como referência os elementos verbais,
reelaborando e também levando em consideração as experiências individuais do performer.
São gestos que carregam a “silenciosa violência” praticada durante as sessões
de tortura e que no espaço da cidade são recriados com potência de afeto, possíveis pelo
88
encontro entre corpos. Corpos que como fala Deleuze (1978) residem neles a potência de
afetar e ser afetado ao mesmo tempo, como numa espécie de mistura de corpos que entram
em processo de afecção. É, portanto, “uma mistura de dois corpos, um corpo que se diz agir
sobre outro, e um corpo que recolhe o traço do primeiro” (1978, p.06).
São performances que extrapolam o regime da representação e criam um modo
singular de perceber que os gestos falam de uma violência contra muitos corpos, nesse sentido
a intervenção parece transitar entre o individual e o coletivo simultaneamente, criando fissuras
no próprio modo de pensar. Busco nas reflexões de Gil (1997, p.35) pensar que o “corpo não
fala, faz falar” e tomo o corpo nessa performance como o que produz essa fala, diz sobre
horror da tortura, do silêncio e do invisível, transformando o gesto em muitas vozes quando
deslocado para o espaço comum, expropriando memórias privadas para compor a construção
de uma memória coletiva.
Esse mesmo corpo, que outrora passava pela instrumentalização da vida, corpos
docilizados (FOUCAULT, 2008), agora ocupam os espaços públicos predestinados à vida
comum. São corpos que desobedecem a predeterminação de tempos, movimentos e
enunciados para alcançarem a subjetivação política, aqui entendido como ações que
reconfiguram o campo da experiência sensível (RANCIÈRE, 2012). Parece pertinente a
escolha do Coletivo Aparecidos Políticos pelo corpo, explorando sua capacidade e
potencialidade de afeto, testando seus limites e gestualidades. Corpo que passa a ser visto não
mais como centro de poder, mas como ponto de nossas experiências sensoriais, como lugar
próprio da arte.
O corpo é na obra, o próprio dispositivo na busca pela habilitação das dimensões
espaciais e sensoriais da nossa experiência no mundo, na tentativa de nos conduzir ao contato
com o sensível do que vivenciamos nos espaços públicos e privados. Corpo que se desloca a
partir dos dispositivos audiovisuais e da estratégia do Coletivo em ampliar o alcance da
performance.
A possibilidade de acessar a intervenção é possível por meio do recurso
audiovisual. As imagens, capturadas, editadas e montadas ganham um significado próprio.
São imagens que ampliam a ação a partir do momento em que são levadas para o espaço
virtual e que por meio dos diversos acessos ganham outros espaços. Para Matesco (2012,
p.06) os recursos imagéticos, seja o vídeo ou fotografia, são “apenas registros incompletos de
uma temporalidade anterior” não dando conta da complexidade do trabalho em toda sua carga
performativa artística, mas funcionam como uma espécie de testemunhas da obra.
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Tomando, sobretudo o corpo nesse processo Duve (1981) considera a
performance como arte que implica a copresença do performer e público em espaço e tempo
reais. Essa assertiva de Duve parece frágil diante das produções atuais que apostam nos
recursos audiovisuais como possibilidade de deslocamento desse tempo-espaço presente para
outros tempos-espaços. Como afirma Mello (2008) é cada vez mais recorrente a utilização do
vídeo, seja como forma de registro para que se tenha acesso a ação, ou mesmo como produção
de vídeoperformance que passam a integrar as redes de compartilhamento ou mesmo
deslocam o espaço da rua para museus e galerias por meio desses processos.
Não pretendo questionar aqui a possibilidade de afetos a partir da co-presença,
mas do quanto o corpo passou a ser associado a outros elementos, além de como o próprio
vídeo e a fotografia são capazes de romper com a construção espaço-temporal. É inegável a
potência audiovisual em tempos onde a imagem recobre toda a vida em sua totalidade, onde
já não se concebe a vida distante ou mesmo apartada do registro. São formas de afetar
distintas e aqui não é possível dizer como esses afetos se constituem, em que medida e em que
grau afetam.
É justo nesse sentido que o trabalho do Coletivo se atrela a quebra desse espaço-
tempo que agora são recortados e enquadrados, afirmando o possível da arte e a subversão das
cristalizações para apresentar as potencialidades do vídeo, cada vez mais exploradas.
3.2 O LUGAR DA FOTOGRAFIA NA INTERVENÇÃO
As fotografias também realizam essa quebra de espaço e tempo. Aqui cito o
quanto essas imagens, sobretudo a imagem enquadrada dos rostos, parte do corpo que mais
distingue uma pessoa das demais, parece seguir uma espécie de ritual que vem se
materializando na cultura pós-ditadura latino-americana. São imagens que parecem obedecer
a uma lógica de enquadramento e que se tornou aspecto marcante e presente nos processos de
memória coletiva desses países marcados pela busca de seus entes, desaparecidos durante o
regime.
Ao longo dos anos essas fotografias acabaram operando como único
documento que confrontava o Estado acerca do desaparecimento de pessoas. Somente por
meio delas era possível afirmar que aquele desaparecido existiu, que teve uma vida antes
mesmo de ser subtraído do seu cotidiano. É por esse motivo que essas imagens se
tornaram importante instrumento de denúncia da ausência dessas pessoas, ao mesmo
tempo em que se tornaram ferramenta de busca diante da incerteza da morte.
90
Se por um lado essas imagens carregam a incerteza da vida, é quando são
levadas as ruas, muros e outros espaços públicos que indubitavelmente conseguem reconstruir
o pertencimento à vida, evocando a possibilidade do lembrar em uma dimensão de
reconstrução e não um mero resgate do passado. É nessa mesma dimensão que essas imagens,
ocupando lugares e espaços, interpelam o passado, o próprio Estado e a justiça.
Assim a fotografia cumpre, na intervenção proposta pelo Coletivo, muito mais
que a possibilidade de materializar para a sociedade o morto ou desaparecido ou mesmo um
modo de identificação, mas se coloca como possibilidade de clamar por justiça em meios ao
processo de desmemorização e encarar a vida em meio ao processo de construção histórico-
social da memória coletiva. Na verdade é quando colocadas em um campo aberto de
interpretações que essas imagens borram identidades.
Nas imagens que compõem as intervenções propostas pelo Coletivo, chama
atenção a posição frontal, o caráter sério, as vestes que denunciam ser aquela imagem parte de
um documento em um tempo já distante. Esses aspectos reunidos indicam que essas imagens
são, na verdade, parte de uma identificação formal, por mais que não seja possível dizer que
espécie de documento seja. Mas é o enquadramento do rosto, o mesmo utilizado em
fotografias 3x4 habitualmente empregada para fins burocráticos, o que elucida ser de fato
essa imagem artefato de registro para documento. Na verdade é apenas dessa maneira que
vemos esses desaparecidos enquadrados, em uma fotografia 3x4. As poucas fotografias de
família parecem não compor essas memórias ou são relegadas aos arquivos pessoais como
uma espécie de preservação das boas lembranças.
Não só na intervenção desenvolvida pelo Coletivo, como também no trabalho
de outros artistas, como é o caso de Rosangela Rennó, Paulo Brusky, Claudia Andujar, a
fotografia ocupa o lugar de dispositivo central nas composições que trabalham a memória. Ao
mesmo tempo em que essas imagens revisitam o passado elas nos interrogam no presente a
partir do desaparecimento, da ausência de qualquer indício de vida ou de morte desses
desaparecidos.
Além da possibilidade de recordar os acontecimentos passados, as imagens
trabalhadas pelo Coletivo Aparecidos Políticos cumprem o papel de reverter a condição de
ausente e como afirma Catela (2012, p.113):
A partir dessas imagens, enfrenta-se simbolicamente a categoria coletiva de “desaparecido”, “assassinado” ou simplesmente “morto” (a qual engloba todas as
individualidades sem distinção de sexo, idade, temperamento, trajetória) e se pode
mostrar uma existência individual, uma biografia. Essas fotos devolvem uma noção
91
de pessoa, aquela que, em nossas sociedades, condensa os traços mais essenciais: um nome, um rosto, um corpo.
Logo a condição de “desaparecido” é excluída a partir do momento em que
os traços e rastros são dispostos nos muros. Como o minucioso trabalho de um arqueólogo,
esses traços são o que contribuem para a construção da presença. São esses traços e imagens,
recobertos por novos significados, construídos a partir das novas relações sociais e mesmo das
novas identidades que as interpelam. Enquanto fragmento do mundo, a fotografia do morto ou
desaparecido tem a capacidade de transportar um espaço-tempo anterior para o presente,
carregado de novas significações, agora disposto em um campo aberto.
Essas fotografias passaram a compor a memória social do país e se outrora eram
relegadas ao espaço privado, com o passar do tempo passaram a compor documentos
nacionais e internacionais. Desde logo são imagens que deixaram de pertencer as famílias
para pertencer a todos que de algum modo estão ligados as questões relacionadas à memória,
verdade e justiça no país.
Na imagem abaixo (ver Figura 22) Frei Tito (na imagem da direita) e Antônio
Theodoro (na imagem esquerda), imagens também capturadas do vídeo “O que resta da
ditadura” no momento em que essas fotografias foram dispostas no espaço comum, como que
um ato de ornamentação transpondo espaço e tempo.
Figura 22 - Cartazes lambe-lambes de mortos e desaparecidos políticos
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2011.
Na intervenção do Coletivo é curioso como essas imagens jogam com os
limiares do público e do privado. No espaço em que são instaladas, o modo como são
dispostas logo nos remete a molduras antigas, corroídas pelo tempo e dispostas nas salas de
casas também antigas, onde a fotografia do morto na parede da sala é uma espécie de
rememoração constante, hábito comum na cultura brasileira. Nas casas essas imagens são
92
expostas geralmente nos lugares mais altos, uma espécie de altar, de culto a esse morto como
se a presença fosse sempre constante, ao mesmo tempo em que se esvai, sendo corroída
pelo tempo denunciada pelo envelhecimento do papel.
O espaço da rua agora remonta o espaço da casa, em dimensões maiores e
recorrendo ao texto, sobrepondo camadas e mais camadas de tinta envelhecidas dos muros da
cidade, como uma espécie de várias peles desse tecido social. É como se naquele momento,
imagem e escrita correspondessem a mais uma dessas camadas que o tempo cumprirá o seu
papel de “apagamento”, fossem portanto uma única imagem.
3.3 PROCESSOS DE MEMÓRIA NO CONTEMPORÂNEO
Ao problematizar as intervenções do Coletivo Aparecidos Políticos é impossível
deixar de citar o quanto o trabalho cumpre um papel de memória e ao mesmo tempo um papel
político no contemporâneo. Na verdade, podemos colocar de antemão que a questão da
memória tem sido cada vez mais recorrente em diversos campos de estudos, em especial nas
ciências sociais e histórias e mais recentemente nos processos artísticos que afirmam essa
memória enquanto processo político, em vistas de responder o presente e vislumbrar o futuro.
Em diversos âmbitos falamos da memória que a largos passos se tornou
problemática central nos debates políticos e culturais, sobretudo no que se refere a memória
política e social do país, marcada por profundos embates. Como afirma Menezes (1992), essa
memória vive sob a polaridade do lembrar/esquecer, “caminhos que não conduzem ao
presente” (p.10).
Abro aqui um parêntese para citar o quanto tem se intensificado, nos últimos
dez anos, a efetivação de políticas de verdade e memória acerca da ditadura civil-militar
no Brasil. De modo mais incisivo se experimentou nos últimos anos, governo da
presidente Dilma Rousseff, a ampliação do debate sobre as memórias da ditadura militar,
discussões essas que repercutem também no campo midiático, espaço conflituoso e de
construção de memórias hegemônicas.
É importante citar o quão representativo é esse momento para o quadro político do
país, já que se trata de uma ex-militante presa durante o regime militar além de ser a primeira
mulher eleita presidente no país. Certamente essas políticas e ações que vem se fortalecendo
no âmbito cultural e político, representam escalas que ainda podem e necessitam ser
ampliadas. Mas não há como negar os largos passos dados nos últimos anos, avanços
significativos se compararmos as décadas passadas, cujo contexto era marcado pela
93
inexistência de debates. As políticas de memória são nesse contexto, o que asseguram o
fortalecimento social de garantias e da não repetição.
Vivenciamos a efervescência da memória não só concernente às ditaduras e aos
momentos pós-conflitos. Vale então recorrer ao pensamento do teórico alemão Huyssen
(2001) para quem afirma vivenciarmos o que chama de uma “cultura da memória”. Esse
aspecto tem se concretizado por meio dos processos de democratização e do acesso aos
arquivos, da profunda preocupação com o esquecimento que se apresenta irrecuperável. Mas
o que realmente nos põe a pensar é como o conceito de memória tem sido capturado pela
indústria cultural e ganhado reforço dos meios de comunicação de massa. É como se a
memória tivesse se tornado em artigo de consumo em tempos de um presente partido em
instantes. Seja na moda, na música, na própria arquitetura da cidade, consumimos o passado
agora revestido de novos atrativos e significados.
Mesmo em tempos de uma “cultura da memória” é inegável a carga paradoxal que
essa carrega, já que vivenciamos ao mesmo tempo uma espécie de amnésia, apatia e a
incapacidade de lembrar os processos históricos tão vitais, pois nos conduziram ao presente, e
como causa e efeito esse mesmo presente se tornará passado. (HUYSSEN, 2000)
A memória como coloca Huyssen (2000, p.1), se tornou uma das preocupações
centrais no âmbito político e cultural das sociedades ocidentais e aqui é importante dizer que
me refiro a memória coletiva. Mesmo as dualidades do lembrar/esquecer (já citado
anteriormente), passado/presente, são aspectos eminentes ao processo. No entanto há que se
colocar que passado e presente estão mais imbricados do que se poderia imaginar. Passado e
presente são indissociáveis e é impossível mantermos o olhar fixo no presente sem olhar esse
passado. Como apresenta Deleuze (2006, p.126):
(...) cada atual presente não é senão o passado inteiro em seu estado mais
contraído. O passado não faz passar um dos presentes sem fazer com que o outro advenha, mas ele nem passa nem advém. Eis por que, em vez de ser uma dimensão
do tempo, o passado é a síntese do tempo inteiro, de que o presente e o futuro são
apenas dimensões. Não se pode dizer: ele era. Ele não existe mais, ele não existe,
mas insiste, consiste, é”.
Pensando enquanto um conceito enérgico, Menezes (1992) apresenta que a
memória deve ser vista como processo permanente, ato que se faz a partir da sua construção e
reconstrução, sendo que a “memória de grupos e coletividades se organiza, reorganiza,
adquire estrutura e se refaz num processo constante, de feição adaptativa” (MENEZES, 1992,
p.11), sempre um devir, um vir a ser, sempre em fluxo e transformação.
94
É por esse motivo que a “tradição (memória exteriorizada como modelo) nunca se
refere a nenhum corpo consolidado de crenças, normas, valores, referências definidas na sua
origem passada, mas está sujeita permanentemente à dinâmica social” (1992, p. 11), o que
torna impossível pensarmos a memória enquanto resgate do passado, uma vez que sua
elaboração se dá no presente.
Nesse sentido, Gibbons (2007) tem atentado para um aspecto interessante sobre a
memória no contemporâneo, na verdade é como se ansiasse por esse posicionamento acerca
da memória e do arquivo em tempos de outros fluxos e encontros, outras possibilidades de
inscrição. Segundo o autor, memória não é mais um arquivo com dados fixos e inalterados,
mas um conceito pessoal, subjetivo e em permanente reconstrução. Gibbons (2007) entende a
memória como aspecto central para a nossa compreensão e também do mundo, sendo os
arquivos componentes concretos no processo de manutenção da memória e que auxiliam de
forma integral no funcionamento da sociedade.
O que o autor nos apresenta é a possibilidade de a memória ser trabalhada de
outros modos, não negando o lugar do arquivo, pois é ele quem subsidia no processo de
construção da memória que necessita ganhar outros modos de constituição para que possa ser
pensada, adquira novos significados em meio aos processos urbanos do presente que
contém esse tempo anterior.
O sociólogo francês Halbwaschs (2004) trabalha com a premissa fundamental
de que a memória se constitui pelas lembranças de um grupo, o que o garante como unidade.
Na compreensão do autor só lembramos na medida em que nos inserimos em uma perspectiva
de grupo, portanto ela é uma reconstrução do passado dinâmico, onde tomamos dados do
presente e o inserimos em uma perspectiva de grupo. Residi também na perspectiva do autor
essa referência do passado contido no presente, não existindo memórias completamente
isoladas, pois estão sempre “apoiadas” pela constituição de um presente dinâmico, em
constante reformulação. (HALBWACHS, 2004).
Mas a cerca da memória em Halbwaschs (2004), é necessário estar atento para um
aspecto em específico. Para ele a memória é o que garante a unidade de uma sociedade.
Podem ser configuradas por percepções que se opõe, mas devem reforçar a garantia da noção
de unidade e coesão social.
Entretanto Michael Pollak (1989) expande suas considerações e toma a memória
como sendo negociação e conflito entre memórias individuais e memórias coletivas. Nesse
sentido a memória entra em disputa sendo confrontadas, sobretudo, as memórias tidas como
95
hegemônicas cristalizadas ao longo dos anos e que acabam sendo dotadas de estabilidade,
adquirindo duração. O que se observa é que a memória se insere na perspectiva de poder,
operando a partir de uma relação de força e sendo colocada em uma dimensão do
conflito, logo do político, eliminando qualquer margem de pensamento da memória enquanto
aspecto consensual.
As concepções do historiador Pierre Nora (1993) convergem para as assertivas
anteriores e considera que a memória deve ser encarada como um acontecimento sempre
atual, carregada por grupos vivos e por essas considerações, inserida em um movimento de
constante transformação ao invés de uma memória que repousa.
Retornando o pensamento de Gibbons (2007) para quem o processo de memória
já não corresponde apenas ao acesso aos arquivos, trago a reflexão do quanto a questão da
memória tem recebido uma atenção considerável no domínio artístico. Tradicionalmente a
palavra arquivo nos remete a uma organização de dados, geralmente relacionado ao processo
de escrita e produção de textos, pilhas e pilhas de papéis que como afirma Latour (2000) é
uma “inscrição plana” (2000, p.223), se referindo ao estudo de uma ciência em laboratório. A
arte contemporânea tem insistido em resistir ao esquecimento e a força totalitária da ordem
instituída. Logo a intervenção do artista no presente consiste em um posicionamento político
de tradução da realidade e também enquanto um dever de memória.
Tomando a memória a partir de inscrições que nos desterritorializam, que nos
reelaboram transformando esses arquivos em novas significações, a intervenção “o que resta
da ditadura” nos transporta assim para um tempo espaço outro, nos colocando ainda de
encontro a constituição de blocos de sensações e afetos no presente.
São rastros do passado que no remetem não só a esse tempo anterior, mas ao
presente vivo, o que nos faz pensar o quanto arte e memória concatenam passado e presente
em vistas de outras possibilidades de interpretação que fujam as prefixações dos arquivos
fixos. São processos na verdade que nos conduzem a vitalidade política que enxerga o
passado, presente, mas principalmente vislumbra seu futuro.
O processo artístico do Coletivo se apresenta, portanto, como o que Deleuze e
Guattari (1992) definem enquanto acontecimento. O conceito transcende o pensamento de um
espaço-tempo ordenável se apresentando na verdade como o que emana desse espaço-tempo.
“O que resta da ditadura” se liga ao que está na égide do Aiôn, um tempo das intensidades,
das vivências e dos devires, pertencendo ao tempo da imanência (DELEUZE, 2007).
O que a intervenção propõe é o encontro com a diferença que é sempre intensiva e
96
exerce sobre o pensamento certa violência que força o pensar. A intervenção é acontecimento
porque também exerce certa violência sobre o passado, provocando em certa medida o seu
deslocamento e rompimento da ideia, já citada anteriormente, de um progresso sem vistas
para esse tempo anterior. É nesse sentido que podemos considerar a produção de memória por
meio da arte, sobretudo no trabalho do Coletivo, como se tratando de um acontecimento
potente evocando outras possibilidades de memória, pronto a responder ou problematizar as
questões do presente.
“O que resta da ditadura” carrega ainda dois aspectos que Halbwaschs (1990)
considera constituir o plano da memória, sendo eles reconhecimento e reconstrução.
Reconhecimento porque em certa medida o Coletivo trabalha imagens, textos e gestos que
nos conduz a pensar que aquela composição de algum modo passa a nos habitar. Como se o
trabalho do artista fosse exatamente o de samplear48
, se apropriar de imagens e gestos que
habitam o cotidiano, não como uma repetição, mas como processo de criação que emana a
subjetivação política. Logo a ideia do reconhecimento é encarada aqui como a sensação do “já
visto” como coloca o autor. Reconstrução por não se tratar de uma repetição linear dos
acontecimentos vivenciados no passado, mas sim um modo de reelaboração artística por meio
de agenciamentos, produzindo deslocamento de tempos e espaços e elaborando um espaço-
tempo diferente. Um quadro de preocupações e interesses atuais, localizada num tempo, num
espaço e num conjunto de relações sociais. São esses aspectos que fazem a intervenção do
Coletivo algo singular, que joga também com as questões espaciais e de tempo e que nos
evocar a pensar politicamente, uma vez que instaura fissuras nos modos de sentir e perceber
os acontecimentos.
3.3.1 Memórias no espaço público
A partir das breves colocações a cerca da memória e do quanto se tem pensado
reconfigurações para os espaços designados à memória, vale aqui suscitar diálogos entre as
configurações desses espaços e a intervenção do Coletivo, que desde o primeiro momento
mexe com a cristalização desses espaços, tencionando rua e museu. Pretensamente o Coletivo
escolhe o espaço público como lócus das poéticas visuais e sonoras em seus trabalhos e logo
em “o que resta da ditadura”, uma das primeiras intervenções, afirmam o espaço da rua
48
Termo usado no Hip Hop para designar uma montagem que leva trechos de várias músicas. Viveiros de Castro
tem pensado o conceito enquanto possibilidade de inventar maneiras de articular discursos.
97
enquanto lugar de memória.
Há uma coerência na proposição do Coletivo, uma vez que levar aos espaços da
cidade a memória do processo político e social do país é também falar dos embates ocorridos
nesse espaço, na rua. Logo é nele onde a memória se constrói, sendo passível de outras
significações agora por meio da arte.
O que tem ficado claro é que o uso recorrente do espaço público para
manifestações estéticas e mesmo da memória, se apresenta na verdade como estratégia de
aproximação entre corpo e corpo urbano, entre corpo e a memória, seja por meio das
estratégias imagéticas, sonoras ou corporais. O fato é que esses modos conduzem à
percepções sensoriais, por meio de leituras sensíveis de arquivos que guardam escritos,
imagens, fragmentos de memórias que agora compõem a memória coletiva.
O espaço público, lócus de todas as contradições do contemporâneo é
reafirmado no trabalho do Coletivo a partir de uma perspectiva museológica, depositário do
passado nos aspectos materiais e também simbólicos, mas que se transforma a cada momento,
a cada nova intervenção proposta. Nesse sentido a intervenção “o que resta da ditadura”
apresenta possibilidades dos espaços dessa cidade serem praticados, tornando esse espaço
“outro corpo urbano” capaz de suscitar outros modos de apreensão, de reflexão e intervenção
na cidade.
Me refiro intervenção não só a cerca das questões relacionadas ao período
do regime de exceção vivido no país entre 1964-1985, mas outras questões que tem tomado o
contemporâneo e que se desvelam mais potentes de suscitar discussões e pensamentos quando
levados à esfera da produção estética e dispostos nos espaços de trânsito. São criações que
refazem não só o lugar da memória como também o lugar da arte.
É pensando a cidade enquanto cidade museu que somos forçados a realizar outras
leituras desses espaços que necessitam ser pensados transpondo a noção de espaços
preservacionista, para entendê-los enquanto espaço aberto à novas significações e leituras
possíveis, oferecendo possibilidades de apropriação, percepções e de significados. É por meio
das diversas possibilidades de uso de espaços e tempos na cidade, que reside a
impossibilidade de separar a rua e o museu e passamos a compreendê-la enquanto espaço
plural que acolhe as singularidades, poéticas que se manifestam nesses espaços.
Nesse sentido, os lugares de memória extrapolaram a noção do espaço físico
destinado para tal fim, extrapola a ideia do museu enquanto lugar fechado e ganha o espaço
da cidade que necessita ser percebido para além de um lugar dos passantes. É pensando
98
em outras possibilidades que Nora (1993) considera que os lugares de memória são espaços
que garantem a fixação de lembranças e de sua transmissão, estando sempre carregado de
simbolismos, pois caracterizam experiências vividas por determinados grupos. Para Nora
(1993) os lugares de memória se constituem a partir de uma tríplice acepção: são lugares
materiais, onde a memória social se ancora e pode ser apreendida pelos sentidos,
independente de ser o museu ou mesmo a rua; são lugares funcionais, que independente das
estratégias empregadas acabam exercendo a função de alicerçar memórias coletivas e são
simbólicas porque é onde essa memória coletiva se expressa e se revela.
Talvez o termo mais caro a Nora, seja pensar que esses lugares cumprem uma
função. Não quero aqui adentrar em méritos do conceito, mas cabe a reflexão se a
desobrigação desses espaços não é na verdade o caminho mais curto para se atingir o
significado que de fato interessa: pensar que essas memórias, assim como a arte, enquanto
criação de perceptos, afetos e entendendo que todo lugar é possível.
As considerações de Nora nos fazem pensar que o trabalho do Coletivo vai de
encontro a cristalização de memórias no espaço urbano, que ao mesmo tempo tem afirmado as
potencialidades desses espaços que comporta outros tempos-espaços. Na ação do Coletivo há
a possibilidade da construção de significações para os espaços da cidade, há a construção
desses espaços enquanto espaços de memória, na verdade é a atribuição do real sentido a
esses espaços, logo o artista é também um negociador das diversas memórias existentes na
malha urbana, fazendo caber aquilo que não era visível.
A intervenção do Coletivo nos espaços públicos consegue, no contexto da cidade,
atribuir memórias a determinados lugares que por meio de gestos, imagens e sons atravessam
a condição de não-lugares para a condição de um lugar de memória, retomando o termo de
Pierre Nora.
Há na construção da intervenção pelo Coletivo a ideia de que a cidade não
é definida somente a partir de sua identidade política e social, mas corresponde a um sistema
simbólico de produção de sentidos, de representação cultural e da presença de diversos
discursos. A cidade de Fortaleza, assim como muitas outras, é o resultado da sobreposição de
épocas, de memórias fragmentadas trabalhadas pelo Coletivo por meio da arte contemporânea
que significa na verdade, não um olhar fixo no presente e no futuro, como já citado
anteriormente, mas o que a proposição artística do Coletivo propõe é justamente deslocar esse
tempo presente para que possamos compreendê-lo mais do que qualquer outro.
Afirmar que a intervenção “o que resta da ditadura” carrega o contemporâneo
99
demanda de nós reflexões a cerca do termo que, como apresenta Agambem (2009) é ser
contemporâneo. Ser contemporâneo é extrapolar as fronteiras do tempo presente. O
Contemporâneo na intervenção do Coletivo é na verdade um tempo que comporta outros
tempos. É uma proposição estética que ao invés de se alinhar com o seu tempo o percebe de
modo anacrônico, produzindo deslocamentos que conduzem a apreensão e percepção desse
tempo, mais do que os outros que mantém o olhar fixo nesse tempo.
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que
adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a
relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um
anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em
todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque,
exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre
ela. (AGAMBEN, 2009, p. 59).
Com o olhar no seu tempo, o que o Coletivo consegue perceber é o escuro em
meio as luzes do século, como afirma Agamben (2009). Nesse escuro ao invés da mera
ausência o Coletivo percebe aspectos que lhe diz respeito e que ao mesmo tempo não cessa de
interpelá- lo. O que há de contemporâneo na intervenção “o que resta da ditadura” é justo sua
capacidade de analisar criticamente o seu tempo olhando outros tempos, percebendo espaços e
o cotidiano dessas cidades, onde os não-lugares passam a ser percebidos dentro do processo
artístico não se deixando cegar pelas luzes do século.
3.4 ATRAVESSAMENTOS DA ARTE POLÍTICA
A diversidade de linguagens as quais o Coletivo Aparecidos Políticos recorre,
passando pela fotografia, grafite, performance, a escrita e a própria construção do vídeoarte,
especialmente na intervenção “o que resta da ditadura”, dão conta de duas dimensões cada vez
mais recorrentes no panorama das artes visuais no Brasil, primeiro da singularidade nos
trabalhos que são constituídos a partir de processos híbridos e segundo pela dimensão do
conflito tão presente também nesses trabalhos que desobedecem tempos e espaços e que
desobedece, sobretudo, as convenções vigentes para afirmar sua presença no mundo a partir
da distinção.
Vale situar que essa mesma distinção é operada a partir da quebra de tabus
dos quais ela precisa, de forma contraditória, para afirmar sua diferença de tudo o que existe.
É como se a negação da autoridade que parte de um sistema de valores, fosse o start para que
a diferença possa existir de modo expressivo. É nesse sentido que é possível dizer talvez
100
que toda arte que consegue expandir o seu lugar de existência no mundo se coloca como
transgressora, desfazendo regras, ignorando convenções e por sua vez alargando o campo de
percepção da realidade do mundo.
É nesse fluxo que a intervenção “o que resta da ditadura” opera, produzindo
afetos, deslocando corpos, tempos e espaços, produzindo conflitos, tensões e dissensos tão
necessários para a compreensão do mundo partido e como Rancière (2007, p.226) coloca o
dissenso se apresenta como a capacidade de “sempre reexaminar as fronteiras entre o que é
suposto ser normal e o que é suposto ser subversivo, entre o que é suposto ser ativo, e,
portanto, político, e o que é suposto ser passivo ou distante, e, portanto, apolítica”. “O que
resta da ditadura” toca nesses pontos, vai de encontro ao limite do que nos é apresentado
como curso natural dos processos históricos para nos dizer que há aspectos outros que
necessitamos repensar. Modos e práticas de memória que nos colocam diante da possibilidade
de criar um dos muitos modos possíveis de singularizar mortos e desaparecidos pelo regime
militar do país.
O dissenso enquanto “regimes de sensorialidade” (RANCIÈRE, 2012, p.59)
toca, portanto, nas duas dimensões que tem interessado pensar a ação do Coletivo Aparecidos
Políticos: arte e política. Se visualiza o dissenso nas duas formas de ruptura do mundo e aqui
arte e política não devem ser tomados enquanto aspectos separados, mas como único, onde
arte e política se fundem na busca da reconfiguração de perceptos. É justo por serem dois
modos distintos de recortar o mundo que arte e política estão desde logo ligadas.
Assim, o dissenso deixa de ser o mero conflito de ideias e sentimentos para se
expandir e adquirir uma dimensão política. E é necessário também entender que a política de
que falamos não é o exercício ou luta pelo poder, ou mesmo definida nas leis e instituições,
mas que se constitui nos processos cotidianos e também nos processos artísticos.
Entender que a intervenção “o que resta da ditadura” se trata na verdade de uma
intervenção que evoca as possibilidades da arte política é compreender que a política tem
assumido lugares e formas múltiplas no contemporâneo, extrapolando os limites institucionais
que colocam a política como relativo a grupos específicos. Essa noção da política não
contempla as práticas que vem sendo desenvolvidas no cotidiano, não contempla desde logo a
ação do Coletivo Aparecidos Políticos que se debruça em trabalhar questões da ditadura
ativando o pensamento político por meio da criação sensível. Como apresenta Ranciére (2012,
p.59):
101
[...] a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das competências - e incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer
no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam
o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum para
mostrar o que não se via [...].
É possível dizer, portanto que a estratégia do Coletivo é exatamente a mudança de
referencial do que é visível e enunciado, mostrar de outro modo o que não era facilmente visto
na sociedade, mortes e desaparecimentos abjetos que retornam aos espaços de enunciação
produzindo rupturas no tecido sensível das percepções e na dinâmica dos afetos. A
intervenção cumpre assim o papel de ficcionar o real para que esse possa ser pensado. Ficção
como coloca Rancière (2012) não diz respeito a criação de um mundo imaginário, é
oposição ao mundo real, no entanto opera na produção de dissensos construindo “relações
novas entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação”
(p.64). São na verdade rearranjos materiais de signos e imagens, “[...] das relações entre o
que se vê o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (RANCIÈRE, 2010, p.59).
Assim, o Coletivo produz o ensaio de tensões que mobilizam o passado como pano de fundo,
atualizado na presença dos corpos em meio aos fluxos da cidade, construindo ficções.
Em “o que resta da ditadura” há a mudança da nossa percepção dos
acontecimentos sensíveis, na nossa maneira de relacionar os acontecimentos com o que
vivenciamos cotidianamente nos espaços da cidade. Talvez reside nessas intervenções a
possibilidade de problematizarmos muitas questões que nos tomam e que por vezes nos
cegam no contemporâneo. “O que resta da ditadura” está na verdade articulada com uma série
de questões que não só a relação com a ditadura militar e o desaparecimento e morte de
pessoas durante o período, mas está também atrelado a uma série de acontecimentos situados
no espaço-tempo presente, repletos de conexões como as situações de violência que desnudam
a posição do Estado.
Falar do período é uma estratégia da qual o Coletivo se vale para situar um tempo-
espaço anterior que se reatualiza nas práticas cotidianas do agora. É também a possibilidade
encontrada de tornar visíveis esses que no processo político-social do país representam a
invisibilidade humana. A potencialidade da arte no trabalho do Coletivo conduz a
possibilidade de fugir das formas regulares de organização da vida e dos arquivos, produzindo
deslocamentos que abandonam a representação para evocar a criação de afetos, sensações e
perceptos. Reside na intervenção a criação de equivalentes sensíveis de uma experiência de
estar no mundo, dando a outros a possibilidade de ter acesso a esse acontecimento singular, a
essa experiência de mundo.
102
A performance, as fotografias envelhecidas e ampliadas nos muros da cidade
foram os modos encontrados pelo Coletivo de partilhar esse sensível que não é visível.
Partilhar o sensível é definido por Rancière (2010) como:
O sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha
do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes
exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de
espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como
um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha.
(RANCIÈRE, 2010, p.15)
A partilha do sensível é o resultado de um tensionamento existente no corpo
social estruturado. Há nessa partilha partes que ocupam o seu lugar e aqueles que não têm
lugar, aqueles Rancière (2010) denomina de "a parte de parte alguma". É essa parte a espinha
dorsal na intervenção, os mortos e desaparecidos que de modo singular são responsáveis por
perturbar a referida ordem em nome da igualdade de todos os sujeitos políticos enquanto seres
falantes, na intervenção “O que resta da ditadura”.
É importante dizer que as construções estéticas que lidam com essas tensões de
visibilidade, são sempre maneiras provisórias de se partilhar esse sensível e que a todo o
momento emerge maneiras singulares de também realizar o papel de agente da memória por
meio da arte contemporânea.
É por meio do processo que funde arte política, que o que se produz no lugar de
objetos, são relações com o mundo, logo formas ativas de se organizar e estar em
comunidade. É como se a vida sempre partilhada em fragmentos, sempre isolada pelas
individualidades pudesse agora ser pensadas eliminando essas partilhas e fragmentações.
O que se encontra no cerne de “o que resta da ditadura” é a capacidade de outros
corpos, distantes no tempo e no espaço, se apoderarem do seu destino e confrontarem a vida
naquilo que podem, conferindo potencialidade à paisagem da exclusão e da indiferença social
construindo uma subjetivação política.
Nesse sentido partilhar o comum é tomar para si aquilo que cabe à todos e falar
dos desaparecidos e mortos pelo regime, se desprendeu desse tempo passado e das pessoas
que vivenciaram o período para tomarem outros pensamentos e corpos que podem falar e
produzir afetos. São pessoas, que assim como o Coletivo Aparecidos Políticos, acreditam que
essas práticas de deslocamento e de produção sensível se concretizam como único modo de
visibilizar e de tomar parte nesse comum.
“O que resta da ditadura” se materializa em uma intervenção de arte política
103
justo pela sua capacidade em nos desestabilizar, em produzir e fazer com que ao mesmo
tempo em que me dou conta do outro, dou conta de mim e dos afetos produzidos que esse
outro me produz. Há uma descomunal potência de afeto capaz de mobilizar o corpo social não
na busca de um consenso a cerca dos mortos e desaparecidos, mas na busca de um
pensamento político onde esses possam caber, modos esses de sensibilização que me arrisco a
dizer, talvez só seja possível por meio da arte.
104
4. NARRATIVA HÍBRIDA: IMAGENS E PALAVRAS – A NÃO COMEMORAÇÃO
DO GOLPE MILITAR A PARTIR DAS INTERVENÇÕES DO COLETIVO
APARECIDOS POLÍTICOS.
O que marca o presente capítulo é a imersão em uma das intervenções do Coletivo
Aparecidos Políticos, momento de intensidades artísticas e políticas e de experimentação nas
ruas de Fortaleza. O momento se apresenta significativo, uma vez que marca o retorno do
Coletivo a produzir intervenções nos espaços da cidade depois de um período imerso em
outras atividades que conduziram o Coletivo a operar nas formas. Foi o momento de buscar
outros espaços capazes de dar visibilidade não só as produções estético políticas, mas que
também fosse possível apresentar o posicionamento do Coletivo diante das questões que
regem o cotidiano desses espaços. A intervenção se coloca como momento do Coletivo se
voltar mais uma vez à produção de tensionamentos a cerca da memória dos mortos e
desaparecidos políticos, agenciando e afirmando a arte urbana.
Importante situar o contexto no qual a intervenção se deu. 2014 seguia com
agitações muito latentes, na verdade uma espécie de continuação das manifestações de 2013
em proporções e intensidades bem específicas. As escritas nos muros dimensionavam um
verdadeiro levante contra o poder, e as práticas instituídas. A partir de frases, deixavam
latente o descontentamento e a leitura que era feita dos instrumentos, técnicas e dispositivos
governamentais como sendo a de um “Estado ditador”, frase pichada no muro de uma das
residências situada próximo ao Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará –
UECE, localizada no Bairro de Fátima, em Fortaleza.
O ano de 2014 também marcou os 50 anos de instauração do golpe militar. A
data não poderia passar em branco, não só por se tratar de uma data marcante, mas por
demandar da sociedade a produção de dissensos, criações de movimentos capazes de
perturbar esse momento. Há ainda o desejo e a necessidade de produzir o desmanche da
imagem de “comemoração da revolução”, como é comumente lembrado. Incomodou
profundamente perceber como a data inspirava em diversos grupos a ideia de comemoração
que na imprensa ganha sempre local privilegiado, como aponta Dias (2012). Esses
apontamentos evidenciam sempre a necessidade de instaurar fissuras no modo de pensar, de
contrapor mundos e que essas mesmas fissuras sejam capazes de criar outros modos de pensar
e agir diante os acontecimentos.
As “comemorações” necessitavam de contrapontos. Eles emergiram por meio
105
de ações realizadas por coletivos articulados em torno da verdade, memória e justiça do
período ditatorial. O Cordão da Mentira49
, coletivo que mistura música, especificamente o
samba, teatro, movimentos sociais e carnaval, saiu às ruas cantando seus sambas para lembrar
que os resquícios ainda estão presentes. O Levante Popular da Juventude articulado com o
MST, realizou um escracho50
em frente a residência do então coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra, acusado de coordenar cerca de 500 sessões de tortura durante o regime. Nas
ações se evidencia a potência dos dissensos e a possibilidade de afirmar modos de
subjetivação política. Apresenta um campo de conflitos e de posições que justo por serem
contrárias produzem em nós outras percepções.
Aqui apresento o quanto é importante, e necessário, tomar outras experiências
que não só sejam capazes de tornar nítido os conflitos políticos e sociais em torno dessa
memória. Especificamente a partir da ação do Coletivo Aparecidos Políticos produzindo
inquietações e levando essas memórias às ruas, produzem coengendramentos, conduzem a
emergência de subjetividades políticas em meio ao espaço urbano.
O ano nos colocou não só a pensar memória, verdade e justiça, mas o quanto
aquele momento reatualizava questões e muitas marcas do período ditatorial. Mais uma vez o
exército tomava as ruas em meio a um enorme esquema de segurança articulado e
intensificado em torno da Copa do Mundo. Preparados para reprimir qualquer manifestação
contrária ao megaevento, que por sua vez acabou deixando ainda mais latente as diversas
contradições existentes nas cidades.
É claro que todo esse movimento que circunda o aparato de segurança, se deu
em uma dimensão muito diferente do que ocorria durante o período ditatorial, mas conseguiu
espalhar pelas cidades brasileiras uma imensa sensação de vigilância que colocava grupos e
coletivos a cuidar de suas ações em meio aos espaços da cidade, fossem públicos ou privados.
Foram diversos os momentos em que se ouviu pessoas próximas dizerem que “todo cuidado
era pouco”, se referindo a como os grupos de inteligência do Estado vinham intensificando a
vigilância em torno de diversos grupos, tivessem eles ligações partidárias ou não.
A articulação do Coletivo Aparecidos Políticos em rede, o colocava em situação
privilegiada na obtenção de informações sobre determinados acontecimentos que pelo temor,
acabavam circulando de forma subterrânea, em poucas rodas de conversa e que eram
49 Para conhecer as ações do coletivo acessar: <https://cordaodamentira.milharal.org/2014/03/18/ha-50-anos-
o- golpe-civil-militar-o-aviversario-pode-ser-deles-mas-a-rua-e-nossa/>. 50 Para ver imagens do escracho acessar: <http://www.revistaforum.com.br/mariafro/2014/03/31/levante-
106
pulverizadas entre os demais grupos, coletivos e ou militantes espalhados pelo país. Mesmo
que todos os cuidados parecessem exacerbar o que se vivia, toda atenção era necessária, uma
vez que vivenciávamos nesse período, meses de uma democracia restritiva e mesmo a arte,
enquanto dispositivo produtor de tensões e agenciamentos passava pelos mecanismos de
vigilância do Estado. Esse modo de operar tornava visível a clara oposição entre um “nós”
“eles”, que a partir do momento em o “eles” representa uma ameaça, essa relação é convertida
em uma relação de amigo/inimigo, oposição que marca a democracia liberal evidenciando
uma relação de antagonismo como aponta Mouffe (2007).
Pesquisar e intervir com o Coletivo Aparecidos Políticos me colocava ainda mais
próxima das tensões e negociações existentes. Situava-me dentro dos acontecimentos que se
passavam no Coletivo e naquele ano, exatamente em abril já faziam 6 meses de intervenção
com o Coletivo, enquanto integrante.
Naquele momento minha intervenção já me colocava em condição de propor
ações, de me posicionar frente as decisões e escolhas estéticas políticas do Coletivo. O
próprio Coletivo me demandava outro modo de estar, que perpassa pelo corpo e pela partilha
de desejos. Nesse sentido fui me construindo, deixando aflorar meus desejos de criação
artística e subjetivação política. Desse modo fui assumindo posições e mesmo nas coisas
mínimas fui percebendo a construção de uma confiança e cumplicidade que se fortalecia nos
gestos cotidianos. Ter minha própria chave de acesso ao ateliê do Coletivo, assumir o controle
da conta bancária, gestos que se tornaram comuns à nós e que evidenciavam e marcavam
minha participação como efetivamente integrante do Coletivo. Aqui se apresenta o quanto a
abertura para o exterior possibilita uma vida “disposta a admitir a diferença e aceitar o novo,
o aberto, a contingência, o efêmero, o estranho” (ORTEGA, 2001, p. 1).
A amizade q u e permeia o Coletivo, produz o mundo comum e ao mesmo
tempo em que uni, separa os indivíduos, existindo sempre uma distância entre eles, o que
garante a condição da pluralidade. Pensar a amizade no coletivo se liga, portanto, a ideia de
inventar modos de sociabilidade, contrapondo a noção de fraternidade e do amor romântico,
como assinala Aguiar (2010).
Parece interessante entender a amizade no Coletivo, a partir do que Ortega (2001)
considera como sendo a dimensão política da amizade. Arendt (1983) também apresenta essa
dimensão tomando a amizade como amor mundi, que corresponde a capacidade de se associar
popular- da-juventude-escracha-o-coronel-torturador-brilhante-ustra/>.
107
aos outros por meio da palavra e da ação. É ainda um modo de partilhar a partir do discurso,
os acontecimentos mundanos, não no sentido de nos voltarmos à nossa intimidade, mas como
Arendt (2010, p.62) afirma “o mundo comum, reúne-nos na companhia uns
dos outros e, contudo, evita que colidamos uns com os outros”. Arendt (2010) ainda afirma:
conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto
entre os que nele habitam, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e
estabelece uma relação entre os homens. (ARENDT, 2010, p. 62)
A amizade se encontra como esse intermediário, possibilitando a partilha de algo
em comum, ao mesmo tempo em que diferencia seus participantes por meio da comunicação
e das ações. Na relação de amizade o que predomina é o desejo de partilhar o mundo, de se
voltar para fora produzindo outras formas de vida, o que evoca um agir, para além do pensar.
É na medida em que a amizade preserva a pluralidade humana, a partir de um mundo
partilhado, que ela pode ser pensada como um conceito político.
Pensar a amizade no Coletivo Aparecidos Políticos é pensar que essas relações
necessitam do mundo para florescer. Nosso apego exacerbado à interioridade, a ‘tirania da
intimidade’, não permite na maioria das vezes, o cultivo de aproximações necessária para a
amizade, pois esse lugar se forja na aproximação entre os indivíduos, do mundo
compartilhado - espaço da liberdade e do risco -, das ruas, das praças [...].” (ORTEGA, 2001,
p.61-62).
A partir das condições também de experimentação, fui sentido meu corpo nesse
lugar se constituindo enquanto um corpo político. Haviam questões, desde o primeiro contato,
as quais desejava interferir, mas me cabia também enquanto pesquisadora, aguardar o
momento apropriado. Foi assim a construção das intervenções do mês que marcou os 50 de
instauração da ditadura no país, uma intervenção atravessada por muitas questões e tensões
que nos conduziu a pensar, estrategicamente, modos de fazer fluir esse sensível. Para além foi
o momento de fazer com que o medo e as tensões vivenciadas nos espaços da cidade,
potencializassem a criação de afetos, que como coloca Deleuze (1978) a partir de Spinoza,
fossem capazes de nos fazer agir ao invés de nos paralisar. O momento foi a chave para
repensar as práticas do Coletivo até aquele momento, atravessado por múltiplos fluxos, novos
agenciamentos criadores, produção de novas realidades e pensar as diferenças que se
aproximam no sentido de interferir no que aparentemente é dado como certo.
108
4.1 AGENCIAMENTOS E PRODUÇÕES
Cada vez mais atravessados pelos cuidados com os fazeres do Coletivo e
entendendo a necessidade da produção de uma intervenção que falasse de um corpo intensivo,
capaz de produzir um pensar que perpassasse também as emoções. O Coletivo decide que
retornar os espaços da cidade reinventado as imagens dos rostos dos desaparecidos pela
ditadura seria então o caminho a ser seguido. É importante deixar claro que as decisões são
sempre atravessadas por questionamentos e nunca se chega ao consenso pleno. Acho que a
ideia de consenso deve aqui também ser eliminada para pensar que são sempre
negociações, pois como apresenta Rancière (1996) o consenso exclusivo se desfaz quando
mundos singulares se abrem desfazendo as partes que supostamente estão dadas para se
instaurar o dissenso, o que possibilita a promoção de formas de resistência ao que é
consensual. Desse modo foi sendo constituída a intervenção do dia 01 de abril, uma
intervenção onde se ensejava a produção de algo novo.
As subjetividades individuais davam conta dos muitos caminhos possíveis que nos
impeliam a operar negociações e tomar os conflitos, desacordos e negociações que a todo
momento nos colocavam em posição de incerteza. Movimentos que mostrava-nos que era
necessário nos render a modos de vida com os quais se produzia certa identificação,
invocando um espaço simbólico de construção de um “comum” que são essas memórias que
nos tomam.
É seguindo essa linha de raciocínio que o Coletivo toma como desejo de ação,
desestabilizar e interferir experimentando, de outros modos, as imagens dos desaparecidos
políticos nos espaços da cidade, trabalhando o que marca o Coletivo por meio do que se tem
de mais evidente: as fotografias em vida, a busca incansável pelas memórias, busca essa que é
conduzida pela arte que fala desse corpo que é político, e como apresenta Deleuze e Guattari
(2012) é uma superfície composta de traços e linhas intensivas.
Minhas implicações se davam no campo de uma pesquisa, mas, sobretudo de
alguém que desejava intervir criando campo de desestabilizações, produzindo posições
subjetivas de invenção a partir dos fluxos de conversações e nas dinâmicas dos encontros
corporais. Exponho então minhas inquietações sobre o retorno as imagens dos desaparecidos
enquadrados nas imagens 3x4, e os afetos produzidos em mim em uma das Rodas de
Conversa da Pesquisa Intervenções. O momento disparou múltiplas inquietações,
principalmente a cerca de como o Coletivo poderia operar, como poderia evocar a existência e
109
produzir outros modos de intervir a partir de imagens.
Na participação da Roda de Conversa em Porto Alegre51
, em maio de 2013, o
momento reuniu processos singulares de falar sobre modos de resistência e sobre como a
memória da ditadura vinha sendo trabalhada por diversos Coletivos e grupos. Na ocasião,
apresentei o trabalho do Coletivo Aparecidos Políticos ao mesmo tempo em que me
aproximei de experiências de grupos situados em Porto Alegre. Aproximo-me do trabalho e
do processo de criação da Exposição Ausências, realizada pela ONG Alice – Agência Livre
para Informação, Cidadania e Educação, de Porto Alegre em parceria com a Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República – SDH/PR52
. O projeto, idealizado pelo
fotógrafo argentino Gustavo Germano, cuja família também sofre a ausência de um dos
irmãos, aspecto que motivou o fotógrafo a iniciar o trabalho com imagens que evidenciam a
ausência dos entes queridos.
O trabalho teve inicio na Argentina, onde a ditadura, instaurada em 1976
produziu em apenas oitos anos, a impressionante soma de aproximadamente 30 mil pessoas
mortas e desaparecidas, de acordo com informações da Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos Políticos, vinculada a SDH/PR. A exposição contava de dois momentos
distintos das vidas de militantes políticos do período, reconstruindo o buraco deixado pelo
desaparecimento e ao mesmo tempo evidenciando o desaparecimento. A exposição conta
a história de dezoito casos, doze brasileiros e seis argentinos, que tem em comum, a
ausência de seus parentes.
O trabalho se dá em cima de uma reconstrução. Duas imagens contrastadas, na
primeira o registro de uma pessoa em seu cotidiano, reunido com amigos ou familiares,
momento que desconstrói por completo a imagem de um militante para produzir a imagem de
um jovem de vida intensiva como a de qualquer outro jovem daquele período. Na imagem
seguinte, disposta horizontalmente, se faz a reconstrução da imagem, anos depois, com as
pessoas dispostas do mesmo modo como na imagem anterior, no entanto há uma lacuna que
violenta o olhar. Alguém que esteve presente na imagem anterior, mas que já não aparece na
imagem seguinte, uma lacuna que não é possível reconstruir por meio do corpo. No entanto o
que ocupa esse espaço é apenas a ausência, a saudade e a dor que se estabelece por completo.
A sobreposição de imagens tece elos entre tempos distantes. Por vezes, são
51 Para visualizar o convite da Roda de Conversa bem como as imagens do momento acessar:
<http://pesquisaintervencoes.blogspot.com.br/p/ix-roda-de-conversa-porto-alegre.html>. 52 Para mais informações acessar a página da Comissão disponível em: < http://cemdp.sdh.gov.br/
110
imagens de paisagens que revelam a especificidade de seus lugares de origem outras,
momentos em suas casas no convívio com os seus. Na imagem abaixo (ver Figura 23) uma
das composições presente na exposição. A imagem é do arquivo pessoal da família de
Bergson Gurjão. Na primeira imagem aparecem Bergson ao lado da então namorada,
Simone, e de sua irmã, Tânia Gurjão. Na imagem seguinte a mesma cena, no mesmo cenário
e a ausência de Bergson, morto no Araguaia em 1972.
Figura 23 - Montagem Exposição Ausências – Bergson Gurjão
Fonte: Página Socialista Morena53
O contraste violento produzido pelas imagens, nos coloca a buscar
compreender as razões daquela ausência, como se os nossos olhos, diante daquela exposição
e inquietos, buscasse angustiadamente, no momento em que fita a imagem, encontrar esse
desaparecido. Ao mesmo tempo a imagem produz em nós questionamento se é mesmo um
desaparecido, de que modo desapareceu, já que o registro fotográfico primeiro desloca a
imagem do desaparecido político abrindo à outras significações e leituras.
Fica evidente a proposição do fotógrafo de construir uma subjetivação política
para essas imagens intensivas, imagens que capazes de expressar a vida em sua plenitude,
deslocando a construção anterior de como conhecemos e o modo como acessamos as imagens
desses mortos ou desaparecidos políticos, sempre por meio da imagem de um documento. A
construção da fotografia expressa, assim, a vida que insiste em se apresentar de outros modos,
uma construção em que o artístico vai de encontro a subjetivação política das imagens.
As fotografias apresentadas me afetaram de um modo peculiar, dispararam em
mim o desejo de intervir e de produzir tensões no modo como o Coletivo Aparecidos Políticos
operava seus trabalhos a partir das fotografias 3x4 dos desaparecidos, um trabalho sempre de
53 Disponível em: <http://socialistamorena.com.br/familias-amputadas/>. Acesso em jan. 2015.
111
enquadramento e que de forma paradoxal nos conduz a voltarmos novamente o olhar onde
aparentemente não há nada a ser visto, em um movimento que nos chama a transformação,
conectando passado e presente para pensar o futuro como verdadeiramente um gesto político
(LEVY, 2011).
Disparo no Coletivo a possibilidade de que a intervenção do dia 30 de março
provoque nos espaços a produção de outros modos de percepção, onde a vida seja a potência
sensível de mobilizar e agenciar afetos, fazendo da arte verdadeira máquina de guerra, como
indicam Deleuze e Guattari (1996). Com o tempo, fui percebendo também o quanto, para o
Coletivo, a produção das intervenções buscava, sobretudo, afetar as forças militares e demais
instituições do Estado que abrigam torturadores e participantes dos desaparecimentos e
mortes. Percebo nas falas, o quanto os locais escolhidos para se criar as intervenções eram, na
maioria das vezes, pensados a partir de tais questões, o que também foi me inquietando.
Centramos-nos em realizar duas intervenções. Uma exatamente no dia 01 de abril
utilizando as imagens 3x4 no muro do 23º Batalhão de Caçadores – 23º BC, e outra a partir da
colagem de lambe-lambes de imagens desses desaparecidos seguindo a mesma linha das
imagens familiares apresentadas na exposição Ausências, imagens essas em escala ampliada.
É essa a intervenção que será, portanto, apresentada com mais riqueza de detalhes.
As articulações e inquietações se davam no sentido de como o Coletivo chegaria
até as imagens familiares desses desaparecidos políticos, pois o que sabíamos era que essas
fotografias guardadas com todo apreço por familiares, acabam sendo imagens que carregam
uma presença, uma densa carga emocional para a família.
Para acessar essas imagens o Coletivo acaba se valendo da proximidade com
familiares de dois militantes em específico: Iara Xavier, ex-militante da ALN que teve o
companheiro Arnaldo Cardoso e os irmãos Iure Xavier e Alex de Paula, executados por forças
repressoras; e Tânia Gurjão, irmã de Bergson Gurjão, militante também morto pelo regime
ditatorial. Logo a possibilidade de acessar essas imagens, além das conversas com Iara e
Tânia, tornaram-se potencializadoras desse momento que significou o encontro de desejos.
Para Iara e Tânia, o Coletivo era naquele momento, a quem confiavam suas memórias,
reminiscências privadas que deixavam esse lugar para se tornarem parte de uma obra pública
e recente. Tornar-se assim, ignitor das lembranças de quem com ela tenha agora contato
nesses espaços. É como se naquele momento o Coletivo produzisse um falar em nome de um
“nós”, criando formas de enunciação coletiva, formando o tecido dissensual que criam
“possibilidades de enunciação subjetivas” (RANCIÈRE, 2012, p.65), próprias a ação do
112
Coletivo.
Tânia e Iara, por terem construído uma proximidade com o Coletivo, já haviam
compartilhado em momentos anteriores, algumas dessas imagens familiares, fragmentos de
um tempo e vida. O que se apresenta na verdade é que esses familiares passam a conceber a
intensidade dessas fotografias. Quando deslocadas para o fora, carregam a possibilidade de se
transformarem em intensidades, de produzirem certa violência sobre o pensamento dando a
ver para além de uma imagem, ou ainda nas palavras de Ortega (2009, p.55) “o exterior, o
fora, constitui uma dimensão construtiva da existência”. Uma ação “contra o passado, sobre
um presente, em favor de um por vir” (Deleuze e Guattari, 1996, p.144), uma verdadeira
experimentação que por esse motivo se constitui enquanto constituição artística e não apenas
enquanto construção histórica.
Sinto nesse momento, que começa a se produzir outro modo do Coletivo se
experimentar enquanto grupo que se propõe partilhar de uma memória, criando interferências,
onde as diferenças tensionadas e acolhidas se apresentam como possibilidades de reconfigurar
o sensível diante da ausência. São imagens que rompem com o enquadramento da vida em um
retângulo 3x4 inventado novos modos de existência.
Diante da disponibilidade das imagens, tínhamos dimensão da responsabilidade
que carregávamos, uma vez que já não se tratava de imagens partilhadas no plano comum,
mas de memórias pessoais das famílias, do domínio privado, imagens que produzem a
atualização da vida familiar, que deixavam os álbuns para ganharem os muros.
Eis que somos apresentados a três fotografias. Em um momento do Coletivo em
Brasília, no encontro com Iara Xavier que nos coloca as imagens de Iure Xavier e Alex
Xavier. Em Fortaleza, o contato com Tânia Gurjão nos revelou imagens sensíveis dos
momentos de Bergson junto a família. Nas três imagens há um comum, não são retratados
com familiares ou amigos, no entanto sozinhos em momentos de particularidades. Imagens
que apresentam traços e vestígios capazes de fazer sentir não só a existência, mas
propriamente a presença.
Nas imagens abaixo (ver Figura 24), as fotografias que foram disponibilizadas por
Iara e Tânia. Alex Xavier é fotografado de um modo descontraído, vestindo apenas calças
com parte do corpo exposto, os traços evidenciam o rosto de uma pessoa ainda jovem, onde a
vida pulsa intensivamente. Iure em pé, mais sério, tem um dos braços cruzados. O modo
como o corpo se apresenta parece nos falar de um corpo já vivido. Na fotografia de Bergson
um enquadramento peculiar, um homem sentado em uma varanda parece contemplar o tempo.
113
Os traços parecem de alguém com pouca idade, ainda muito jovem, mesmo que as roupas
formais digam o contrário.
De antemão nenhuma das imagens nos falam de um militante político e é para
além dessa marca que as construções imagéticas nos espaços devem operar, forçando nossa
visão, exigindo de nós que “abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não
mais veremos - ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda a evidência (a
evidência visível)” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.34), mas o que se apresenta visível/sensível
a todo corpo que não apenas restrito a visão.
Figura 24 - Fotografias: Alex Xavier, Iure Xavier e Bergson Gurjão
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.
As tensões acerca da intervenção não cessam e começamos a ponderar os
possíveis locais de disposição das imagens. Proponho pensarmos a partir de uma dimensão da
desterritorialização dessas imagens, (e aqui me refiro a pensar o desterritorializar
geograficamente), que elas sejam levadas à outros espaços da cidade que não façam,
necessariamente, referência a centros de tortura ou instituições de repressão, mas que
possibilite construir a cidade como um museu aberto.
É em meio aos espaços públicos diversos que as práticas artísticas se constroem,
ao mesmo tempo em que apresentam o imaginário social. Abrindo-se a um campo de
indeterminação, a arte urbana permeia as construções simbólicas dos espaços públicos,
intervindo nos diferentes modos de construção desses espaços. Cria-se assim uma situação de
visibilidade latente, apontando ausências e que também corresponde a um modo de resistir em
meio as exclusões das cidades. Desterritorializar essas imagens é criar, desde logo,
expectativas de novas convivências.
114
Proponho que a intervenção aconteça em outro lugar que não localizado no
bairro Benfica, ponto de grande movimentação de estudantes e que concentra instituições de
ensino, além de uma intensa vida cultural. Assim, suponho que para esses, falar de
memória e especificamente dos mortos e desaparecidos políticos não tenha a mesma
intensidade quando falo para outras pessoas que, supostamente, não tem o mesmo acesso a
essas memórias, já que boa parte desses estudantes conhecem muito do que foi o período e
seus resquícios.
Não pretendo produzir apontamentos de que o Coletivo cria suas intervenções
vislumbrando determinados espaços e públicos específicos, direcionando suas intervenções, já
que a proposta é sempre de fazer com que o maior número de pessoas tenham acesso a essas
memórias. No entanto, quando se concentram nesses espaços acabam por consequência
restringindo o campo de afetação, correndo o risco de serem as mesmas pessoas que já
conhecem sobre o período e suas ausências. O que interessa é buscar outros espaços de
construção estética, produzir outras subjetivações.
Minha proposição foi então que essas imagens ocupassem outros espaços onde
pudéssemos construir enunciações dialogando com a cidade no seu sentido mais amplo, com
seus fluxos e o corpo social de modo mais intensivo, “criando novas formas de deslocamento
e ocupações, usos e contra-usos de espaços e corpos” (ZANELLA ET AL, 2012, p.139).
Logo, a busca por distintos espaços é também a possibilidades de criar linhas de fuga, nas
palavras de Deleuze e Guattari (2012), na perspectiva de designar outras leituras e escritas que
possibilitem o duplo caminho de afetar e ser afeto para que se produza o pensar, lançando
mão de estranhamentos em nós e de nossas posições.
Desse modo, proponho que as imagens sejam trabalhadas em baixo do viaduto
da Av. Aguanambi, local de saída da cidade que chama atenção pela inequívoca autonomia
que possui. O lugar abriga formas diversas de vida e também de intervenções como grafite,
pichação, cartazes de propaganda e cartazes de grupos como as constantes intervenções do
grupo Crítica Radical, que ganham visibilidade também em outros espaços da cidade. É
também local de habitação, mas principalmente de passagem e do flaneur.
Não chegamos exatamente ao consenso se seria de fato aquele o lugar, mas havia
no próprio Coletivo o desejo de novas experimentações de espaço-tempo, capazes de produzir
inquietações. Diante da dificuldade de mais uma vez encontrar palavras que caibam no
processo de reconstrução dessa memória, seguimos mais uma vez pela possibilidade de um
linguajar imagético e intensivo e como Demoly (2008) em Maturana, o linguajar evoca toda
115
nossa dinâmica corporal que não apenas a fala, palavras que saem da boca, mas que perpassa
todo corpo. Certamente as palavras enquanto signos que se misturam aos sons desses espaços,
constituem-se enquanto potência. No entanto a imagem representa a possibilidade de violentar
o pensamento no sentido de produzir rupturas, mais do que simplesmente dar a ver imagens.
Nas palavras de Didi-Huberman (1998, p.77):
O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do ‘dom visual’ para se satisfazer unilateralmente com
ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre
uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta.
Entre aquele que olha e aquilo que é olhado.
Essa afirmação nos conduz pensar as intervenções artísticas enquanto
fundamentalmente criações ambíguas e plurais, o que acaba tornando-se central nas poéticas
do contemporâneo e também no trabalho do Coletivo. É necessário também perceber a
potência em outras construções que não apenas nos modos como coletivos espalhados pelo
país insistem em operar.
Esses novos modos de trabalhar o sensível, de criar a partir do que se tem em
mãos, modos muito próximos a nós, se apresenta como possibilidade do artista em “remontar
a trajetória e recompor o contorno borrado das imagens, devolvendo-nos sua nitidez” como
apresenta Bosi (1993, p.281). Cabe então ao Coletivo Aparecidos Políticos, devolver a nitidez
dessas memórias e das imagens que já não cabem no campo do privado, necessitando de
expansão nos territórios geográficos, na paisagem urbana.
Nas intervenções o Coletivo trabalha os aspectos visuais no sentido de romper
com a linearidade dos locais, de produzir rupturas no modo de apreender esses espaços. Nesse
sentido o Coletivo opta por trabalhar imagens ampliadas e como afirma Furtado e Zanella
(2007) intervir nesses espaços é evidenciar que “a experiência estética faz parte da vida do
sujeito nesse contexto urbano como uma das formas de apropriação dessa realidade” assim, as
questões da memória podem se espalhar pelos espaços, ganhando contornos e visibilidades na
cidade ordenada.
4.2 ENCONTROS URBANOS EFÊMEROS
Mergulhamos na intervenção no dia 30 de março, domingo. Data que antecedia a
semana que abria o mês de rememoração da instauração da ditadura. No momento em que
realizávamos a montagem dos lambe-lambes nos pontos escolhidos, os olhares voltados
116
pareciam ler perfeitamente o que se tratava, pareciam reconhecer os artefatos da intervenção:
cola branca, muitos papéis, um esquema de montagem na mão e pincéis de pintar parede.
Havia no local diversos trabalhadores, taxistas e mototaxistas que permaneciam ali sem
estranhar, no primeiro momento, o modo como nos dispomos no espaço.
Os papéis, distribuídos no chão, começaram a ser montados paulatinamente em
uma das colunas, que já abrigava muitas camadas de cola e papel. Havia a preocupação de
que as imagens não recobrissem pichações ou mesmo intervenções em grafite realizadas pelo
grupo Crew54
, uma vez que existe uma espécie de ética na produção estética em meio aos
espaços públicos, um modo de deixar evidente que aquilo que o outro faz é tão importante e
necessário para outras conexões com o mundo, quanto aquilo que faço.
Deparamos-nos com diversas propagandas, sobretudo de festas, serviços sendo
oferecidos, imagens de políticos, cartomante, várias e várias propagandas que recobrem essas
paredes como uma espécie de pele. Textos-imagens que vão se enraizando nas paredes da
cidade. Na imagem abaixo (ver Figura 25), o momento em que iniciávamos a colagem
dos cartazes, recobrindo imagens e textos diversos.
Figura 25 - Av. Aguanambi – intervenção lambe-lambe
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.
No momento da colagem ficamos a imaginar que as imagens as quais
disporíamos, estavam também passíveis de serem recobertas pelas mesmas propagandas no
momento seguinte. Esse start nos colocava diante de uma experiência de tempo efêmero
117
em toda sua intensidade, uma existência passageira da qual não era possível dimensionar com
exatidão sua duração e potência de afeto, restando apenas os registros, imagens e vídeos que
desempenham um regime de criação, inventando máquinas de multiplicação que escapam o
controle de sistemas de validação, como é a internet.
A partir do momento em que iniciamos a montagem das imagens, dando-lhes
volume e construindo seus contornos, era possível perceber como rapidamente a ação, que
momentos atrás parecia banal, começava também a ganhar outros contornos, construir olhares
inquietos que ao encontrar as imagens pareciam tentar estabelecer a conectividade com o
espaço, um modo de tentar situar, também dentro de sim, certa conectividade. É momento
de produzir, em habitantes e transeuntes, o desmanche das fronteiras rígidas da vida, abrindo
à possibilidades de encontro de corpos intensivos, mesmo que materialmente seja impossível
produzir esse movimento.
A fotografia abaixo (ver Figura 26) apresenta o processo de construção da
imagem de Iure Xavier ao lado outras intervenções. A frente, um homem dentro do carro
estacionado acompanhou, durante certo tempo, a construção da imagem. Em determinado
momento o homem nos chamou e perguntou do que se tratava, nas palavras dele, aquela
colagem. Na imagem seguinte (ver Figura 27), mais olhares curiosos que iam de encontro a
imagem tentando construir alguma compreensão daquele momento.
54 Para visualizar imagens acessar a página do grupo: https://www.facebook.com/VdmcrewVozDosMuros
118
Figura 26 - Av. Aguanambi – criação imagem Iure Xavier
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.
Figura 27 - Av. Aguanambi – criação imagem Iure Xavier - Olhares
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.
As perguntas mais uma vez eram inevitáveis. Tentávamos responder dentro do
que nos parecia ser possível, explicando o processo, falando dos 50 anos, mas, sobretudo, do
quanto esse momento político marcou várias famílias com a ausência dessas pessoas.
119
Falávamos da data, mas sempre fazendo referências aos mortos e desaparecidos.
Na coluna lateral o acaso nos agraciava. Encontramos uma das intervenções
realizada pela Crítica Radical. A partir de vários cartazes repetidos em preto e branco com os
dizeres: “DITADURA NUNCA MAIS! NEM MILITAR! NEM CIVIL! NEM DE
ESTADO! NEM DE MERCADO!” (ver Figura 28), o grupo convocava as pessoas para um
ato em rememoração aos 50 anos da ditadura, marcado para o dia 31 de março de 2014 com
concentração no centro da cidade, mais especificamente na Praça do Ferreira. O momento
seria articulado com outros grupos da cidade que também estão ligados aos direitos humanos
e principalmente carregam a bandeira da memória, verdade e justiça.
Figura 28 - Av. Aguanambi – Ditadura nunca mais
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.
Não por acaso a intervenção do grupo Crítica Radical também tinha como
proposta dimensionar e tornar visível esse momento político social. Apesar criarem toda uma
articulação em torno da data, pelo peso simbólico dos 50 anos, alguns dos integrantes do
grupo tinham ainda mais motivos de estarem produzindo todo o movimento e articulação.
Alguns de seus integrantes vivenciaram na pele os muitos horrores cometidos durante o
período, logo falavam da sua própria história, do que se carrega no próprio corpo, marcas
físicas e psicológicas que se estendem por toda uma vida. Um grupo político que assim como
muitos outros estão também ligados as questões concernentes a memória, verdade e justiça e
aos movimentos de produção de resistência na cidade.
O encontro com a intervenção da Crítica Radical nos revela o quão aberto são as
possibilidades e conexões estabelecidas nos espaços urbanos entre práticas estéticas. Mais do
120
que o acaso ou coincidência, existe o desejo que produz essas aproximações que não passam
necessariamente pelo estar próximo fisicamente, mas pela sintonia dos desejos em um campo
aberto de produção e subjetivação política que é a cidade. Logo são encontros sempre
possíveis de acontecer, de se misturar e intensificar as possibilidades de afeto, entendendo
desejo não enquanto conceito abstrato, mas como fala Deleuze (1989) em seu abecedário,
desejar é construir agenciamentos é propriamente construir.
A estratégia do Coletivo se deu em utilizar duas imagens, cada uma de um lado da
avenida, posicionadas de frente para quem aguarda o sinal de pedestres para realizar a
travessia da avenida, uma vez que o intenso tráfego de carros e pedestres impele o tempo de
espera. As escolhas se deram por duas imagens, de um lado a de Bergson Gurjão e do outro a
de Iure Xavier. O tempo de espera do sinal, aproximadamente de 4 minutos, era o suficiente
para que as pessoas se desconectassem da efervescência urbana e pudessem se conectar a
outros movimentos em meio aquele espaço. Ao movimento do próprio corpo a partir do
momento em que se desconecta dos fluxos outros para se conectar às micropolíticas urbanas.
O grande número de pessoas que necessitam chegar até Av. Aguanambi e seguir
por um caminho transversal, seja sentido bairro Aldeota ou sentido Benfica, impele descer na
avenida e caminhar perpendicularmente, passando por debaixo do viaduto até a parada de
ônibus mais próxima, o que coloca o corpo em conexão com esse espaço e consequentemente
encontrando essas imagens. Na imagem abaixo (ver Figura 29) é possível ver pessoas
aguardando o sinal abrir para que possam seguir o percurso. Ao fundo é possível ver a
imagem ampliada de Bergson Gurjão em meio aos transeuntes que seguem no sentido do
bairro Benfica.
121
Figura 29 - Av. Aguanambi – transeuntes
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.
Além da imagem, as palavras mais uma vez permeiam a intervenção, constituindo
o híbrido entre imagem e escrita. Na imagem de Bergson Gurjão, produzimos uma escrita por
cima da fotografia, no entanto cuidando para que a imagem de Bergson sentado na cadeira
não fosse recoberta. Em tinta vermelha a escrita de um trecho do poema “Desaparecidos” do
poeta uruguaio Mario Benedetti55
, militante que participou ativamente da vida política de seu
país até a ocorrência do golpe de estado. Texto e imagem conseguem imediatamente nos
desestabilizar, provocando questões e ambiguidades em nós: “Ninguém os explicou se já se
foram ou se são tremores sobreviventes”.
O texto é na intervenção, parte dessa presença, do visível, valendo apenas pela sua
composição com os demais elementos visuais, frases e palavras escritas. Assim elementos
visuais e textuais são tomados pelo seu entrelaçamento, logo há pesos de imagens e palavras
que juntas, formam visibilidades. Signos e formas tem aqui o peso da realidade e reconstroem
a cidade enquanto espaço das manifestações diversas.
A palavra tem na intervenção sua gramatura, seu poder de afetar tanto quanto a
imagem. É nesse sentido que mais vale perceber a imagem que recebe essa escrita, enquanto
aquilo que Rancière (2012) prefere chamar de frase-imagem e diz que não há na frase um
dizível ao mesmo tempo em que não há na imagem o visível:
55
BENEDETTI, Mário. Desaparecidos. Disponível em: < http://www.poemas-del-alma.com/mario-benedetti-
desaparecidos.htm> Acesso em: 30 mar. 2014.
122
Elas desfazem a relação representativa do texto com a imagem. No esquema representativo, a parte que cabia ao texto era o encadeamento ideal das ações,
a parte da imagem, a de um suplemento de presença que lhe conferia carne e
consistência. A frase-imagem subverte essa lógica. A função frase- imagem ainda é
a de encadeamento. Mas a partir daí, a frase encadeia somente enquanto ela é
aquilo que dá carne. E essa carne ou essa consistência, de modo paradoxal, é a da
grande passividade das coisas sem razão. A imagem tornou-se potência ativa e
disruptiva do salto, da transformação de regime entre duas ordens sensoriais. A
frase-imagem é a união dessas duas funções. É a unidade que desdobra a força
caótica da grande parataxe em potência frástica de continuidade e potência
imageadora de ruptura. (RANCIÈRE, 2012, p.56)
A potência da frase-imagem é dar a ver de modo mais evidente aquilo que os
olhos certamente procurariam entender em seu tempo. Uni heterogêneos que ao aproximar
distância e tempos revelam o “segredo” do mundo que se escondem atrás de
aparências. Texto e imagem são construções a fim de que sejamos capazes de nos aproximar
do murmúrio, e dizível e visível ainda se confundem nesse jogo que se cria. Imagem e texto,
dispostos nesses espaços, esperam que possamos nos aproximar, nos convoca a nos
reconhecermos nessas imagens como parte desse processo.
A imagem de Iure Xavier, fixada no sentido contrário, é composto pela escrita de
um trecho de “Dissidência ou a arte de dissidiar” de Mauro Iasi: “Tempos de dizer: não mais
em nosso nome!”. A frase-imagem nos convoca então a pensarmos se não estamos desde logo
falando em nome de um corpo social e não apenas de dois ou milhares de desaparecidos pelo
regime militar. Assim, a frase-imagem nos dar a enxergar que falamos de um corpo muito
maior, que sofre as interferências do Estado em momentos diversos ao longo da história.
Ao final da colagem, os olhares pareciam reconhecer as imagens, faziam conexão
entre o que se apresentava como texto e o que se propunha enquanto imagem na tentativa de
construir as conexões cabíveis. Imagens e palavras se avizinham da ruptura, o que
potencializaria a visualização do trabalho e a aproximação entre a dor íntima e o caso que se
torna público.
4.3 INTERFERÊNCIAS URBANAS: DO ROSTO AO CORPO
Recorrer a arte urbana se constitui um modo de problematizar questões
concernentes a vida em meio aos espaços urbanos a partir de produções artísticas. É por meio
da intervenção, nos espaços diversos da cidade, e mesmo em baixo de viadutos, que o
Coletivo Aparecidos Políticos constroem canais de comunicação com o corpo urbano, mas
principalmente a edificação da visibilidade política dos mortos e desaparecidos. Nessa linha,
Pallamin (2000) afirma que a arte urbana ultrapassa a concepção de intervir, deslocando para
123
a concepção de que a produção artística produz na verdade, a construção social dos espaços
de uma cidade, “uma via de produção simbólica da cidade, mediando suas conflitantes
relações sociais” (2000, p.13). Assim a arte urbana opera enquanto construção social e
simbólica dos espaços, produzindo visibilidades e materializando as conflituosas relações
sociais existentes.
Pensar a arte urbana nesse intermédio é aproximar a arte de modos de vida,
produções de mundos no espaço ambíguo da cidade e que também são produtoras de
subjetividades no campo do simbólico. Logo o que o Coletivo realiza é a criação de
ambiguidades por meio da produção de antagonismos, visibilizando o real, aquilo que falta. A
perda de alguém como capaz de comover outros e fazer pensar as causas dessa dor.
O que o Coletivo faz a partir das proposições em espaço aberto, é dialogar com as
possibilidades de criação na cidade, construindo modos de visibilidade que só são possíveis
nesses espaços. Por meio do desmanche de barreira, criando novos significados para esses
espaços.
Para Certeau (1994), os espaços da cidade estão abertos à reconstrução de sentidos
os mais variados. É tomando a assertiva do autor que trago o pensamento de que as práticas
da arte urbana estão desde já, coengendradas com o inventar processos. Dessa forma
produzem rupturas e a criação de sentidos outros, constituindo-se enquanto uma via de acesso
a esse modo de reapropriação, seja temporário ou permanentemente.
Na intervenção há a criação de significados outros para esses mortos e
desaparecidos que agora tem todo o corpo exposto, saindo do enquadramento 3x4. A aposta
do Coletivo se mostra ainda mais potente na criação de situações de visibilidade e presenças
inéditas, apontando ausências até então imperceptíveis no domínio público ou resistência às
exclusões promovidas, desestabilizando expectativas e criando novas convivências,
abrindo‐se a uma miríade de motivações.
O rosto ganha nova composição, ganha um corpo que aqui precisa ser
compreendido como fala Ribeiro (2008), não como “um corpo organismo, mas de um corpo
pulsional, intensivo, um corpo que também se faz enquanto corpo na medida em que percebe,
marca e cria memória” nesses espaços da cidade. Embora Deleuze e Guattari (2012) afirmem
a potência do rosto, e mais, que rosto e corpo não podem se confundir, o corpo pode
passar integralmente pelo rosto. Essa afirmativa nos conduz a pensar que nossa identidade
passará sempre pelas linhas do rosto que não se assemelham ao corpo, ou para além, se o
corpo não teria o mesmo poder de falar de nós como o rosto consegue.
124
Há no corpo uma intensidade profunda e se “o rosto é uma política” como aponta
Deleuze e Guattari (2012), desfazer o rosto também é, no sentido de criar a recusa do rosto e
afirmar as potências de afeto do corpo. Assim, o corpo se mostra componente indisciplinado,
que se desterritorializa a cada possibilidade de ser apreendido. O que o Coletivo resgata
quando trabalha imagens do corpo é a tensão de que corpo é memória e memória pode ser
corpo.
Não caberá adentrar aqui nos méritos a cerca do conceito de arquivo, mas fica
explícito na construção do Coletivo Aparecidos Políticos o quanto o arquivo funciona como
uma espécie de resistência contra a morte. São imagens de um corpo que resiste, mesmo que
por meio do papel, para se construir enquanto desejo de resistência que marca esses espaços.
É importante situar que tipo de resistência se propõe o Coletivo. O conceito
necessita um olhar atento, já que tomamos resistência no sentido de uma criação/invenção que
possibilite a construção de novas possibilidades de vida. A resistência no trabalho do Coletivo
deve ser tomada a partir das proposições de Deleuze, Guattari e Foucault. Nos três autores
reside o comum que é pensar a resistência não enquanto embate de poderes, um bloco maciço
que se constitui a frente do poder do Estado, que nega as subjetividades políticas que
emergem em meio aos espaços da cidade. Estado esse que busca por meio de todos os
dispositivos disponíveis, tornar invisível toda a diferença que produz um contrário e novas
subjetividades políticas. Nos três autores a resistência se abre à criação de novos espaços de
vida e pensamento, não se deixando capturar pelos dispositivos de poder.
Para Foucault (1988) o poder existe emaranhado em uma rede vasta e multiforme
de relações, logo os pontos de resistência também se apresentam em multiplicidade ou como
“focos”. Foucault (1988) aponta que as resistências apresentam-se como pontos e nós sempre
irregulares que se distribuem no jogo relacional com o poder. Essas resistências são, portanto,
capazes de produzir rupturas profundas, mas segundo o autor o comum é que elas sejam
pontos sempre transitórios em meio aos espaços.
Podem provocar levantes radicais, rupturas profundas, mas é mais comum serem
pontos transitórios. Do mesmo modo como operam as relações de poder, as resistências
provocam reagrupamentos, introduzem clivagens e decorrem de estratégias. Foucault (2003)
elabora ainda um instigante e sugestivo apontamento acerca do ponto mais intensivo da vida,
sua capacidade de resistência estaria em estado mais latente justamente quando colidem com
o poder:
125
Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de que nela o destino tome a força de uma relação com o poder? O ponto mais intenso das vidas,
aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o
poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas
armadilhas. (FOUCAULT, 2003, p. 207).
Mas há no pensamento de Deleuze um contraponto em relação às assertivas de
Foucault em relação aos dispositivos de poder. Enquanto que para Foucault esses dispositivos
normalizam e disciplinam a vida, para Deleuze (2006) os poderes acabam funcionando de
forma repressiva, já que “esmagam não o desejo como dado natural, mas as pontas dos
agenciamentos de desejo”, como bem coloca o autor (2006, p.17). Logo Deleuze evoca o
aspecto mais interessante de se pensar a resistência. Muito menos a noção de uma contradição
e muito mais como um campo social que busca fugir por todos os lados, buscando suas linhas
de fuga, de desterritorialização. Essas linhas não são necessariamente revolucionárias no
sentido mais amplo da palavra, mas é à elas que os dispositivos de poder vão a todo custo
tentar apreender.
Os dispositivos funcionam assim como uma linha de segmentaridade, constituída
de conjuntos molares - Estado e suas instituições normatizadoras. Por linha molar Deleuze e
Guattari (2012) consideram ser uma linha com poucas perturbações e se constitui de
territórios organizados. Enquanto que a linha molecular representa o fluxo que escapa pelos
lados, na busca por constituir outros territórios que não estão necessariamente livres das
linhas molares, ao passo que essa forma molar nunca está também livre dos segmentos
moleculares.
O desafio lançado por Deleuze e Guattari (2012) é então de pensar a resistência ao
lado de uma linha molecular, composta de fluxos e intensidades presentes. A resistência é
tomada, desde então, enquanto fluxo desterritorializante e não enquanto mero fluxo contra
aos mecanismos de poder, pois em certa medida, são os próprios mecanismos de poder que
apresentam resistência aos movimentos desterritorializantes que por suas singularidades
desestabilizam esses mecanismos.
Resistência evoca desde logo a possibilidade de criar o novo, já que a criação
é a mais intensa energia apresentada pela resistência. Michel Hardt (2014) em entrevista “A
resistência Antecede o Poder”, considera que o momento de criatividade latente é aquele
presente nos movimentos e nas lutas cotidianas, enquanto que o poder realiza tentativas de se
apropriar e absorver a criatividade da multidão. Quando se abre mão da criação e se passa a
querer o poder, pairando o desejo de dominar, existe a sobreposição das forças do poder sobre
os desejos de resistência.
126
A concepção de resistência em Deleuze se liga assim a uma nova forma de
resistir, que busca a superação de uma sociedade disciplinar. Assim, a ação do Coletivo em
espaços diversos implica no que Foucault (1996) reconhece nos trabalhos de Deleuze e
Guattari, como a possibilidade de expulsar de nós e do nosso cotidiano, o encantamento
pelo poder e tudo que carrega consigo, sobretudo a negação da vida e suas intensidades. Essa
resistência que, ao invés de anteceder ao poder, deve produzir modos de vida que
necessariamente não perpassem pelo poder.
A resistência no Coletivo Aparecidos Políticos é a possibilidade de criação da
existência dos mortos e desaparecidos políticos nos espaços da cidade, criando também novos
espaços de vida e pensamento. O verdadeiro ato criativo e de resistência, se apresenta quando
as imagens ampliadas dos corpos se conectam ao devir e criam uma espécie de ponte
que conduz ao acontecimento histórico e à eclosão do novo em uma estrutura marcada pelas
continuidades.
Na colagem dos lambe-lambes, a resistência é possibilidade de lutar, com todas as
forças e armas pela vida, por mais que não haja uma vida material, um corpo organizado que
se materializa diante de nós. No entanto a vida se apresenta de outro modo, evocando a
existência por meio da arte. Para isso Deleuze e Guattari (2012, p.63) apontam que:
São necessários, sem dúvida, todos os recursos da arte, e da mais elevada arte. É
necessário toda uma linha de escrita, toda uma linha de picturalidade [...] Mas a
arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para traçar as linhas de vida, isto
é, todos esses devires reais que não se produzem simplesmente na arte, todas essas
fugas ativas, que não consistem em fugir na arte, em se refugiar na arte, essas
desterritorializações positivas que não irão se reterritorializar na arte [...].
Como indica Feitosa (2007, p. 29), “todo ato de resistência é uma
resistência à morte”. Logo, ao trabalhar as imagens desses corpos, o Coletivo os afirma
enquanto sujeitos, atirando-nos ao inesperado dos espaços e a todo e qualquer modo de
existência. Resistem porque criam e inventam o próximo instante, inventam memórias e
posições desses mortos e desaparecidos na certeza de que nada está pronto e de que as
posições podem ser refeitas. Resistem porque persistem e insistem, mesmo que a morte seja
certa, que o espaço, já recoberto por tantas outras imagens, pareça não acolher essas imagens
e memórias, mesmo que os contratos já estejam feitos e que esses continuem a ocupar o lugar
de mortos e desaparecidos pela ditadura.
127
4.4 SEGMENTOS MOLARES E MOLECULARES: ATRAVESSAMENTOS IMANENTES
Linhas molares e moleculares, dois fluxos distintos, mas que nos atravessam
simultaneamente. Como afirmam Deleuze e Guattari (2012, p.99) “todo indivíduo e toda
sociedade, são, pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e
outra molecular”. Distinguem-se por não terem a mesma natureza, por não operar os mesmo
termos, nem as mesmas intensidades. São inseparáveis e nesse fluxo de coexistência passam
uma para a outra sempre em pressuposições. Assim também opera o Coletivo Aparecidos
Políticos, constituído não só pelas linhas moleculares, mas também pelas linhas molares que
se intensificaram na medida em que o Coletivo foi ganhando certa notoriedade nos espaços da
cidade.
Pensar esses movimentos é também pensar como o Coletivo se constitui em meio
ao embate entre forças e as formas que são na verdade, fluxos moleculares e molares. A
intervenção do Coletivo na Avenida Aguanambi marca esse momento de retorno aos espaços
da cidade, tornando a operar nas forças, o que realmente interessa quando se propõe pensar
enquanto coletivo que não se deixa capturar e que representa o entre, arte política.
Esse momento evidencia a passagem, ou na verdade o retorno aos fluxos
moleculares que constituem o Coletivo. É importante assinalar como Escóssia e Tedesco
(2012) afirmam, que uma atuação nas formas é quando confundimos o coletivo com o
conceito social a partir de organizações formais da sociedade e que trazem a clara oposição
coletivo indivíduo. O que interessa é pensar dois planos distintos nos quais operam o Coletivo
Aparecidos Políticos – o plano das forças e o plano das formas.
De acordo com Escóssia e Tedesco (2012), o plano das formas corresponde ao
plano do instituído, com contornos bem definidos concernentes a figuras que já possuem certa
estabilidade, enquanto que o plano das forças corresponde ao plano de relação das forças e
que desconhece grupos, regras fixas e estabilidade das posições evocando a pluralidade e o
contato entre singularidades.
Até o momento da intervenção na Avenida Aguanambi, o Coletivo foi
atravessado por um longo período em que operou seguramente no plano das formas,
voltando-se para ambientes que categoricamente tentam enquadrar o Coletivo, reduzindo ao
social. Até 2012, as intervenções do Coletivo nos espaços da cidade de Fortaleza, como
também produzindo interferências em outras cidades do país, foram intensas.
Nesse percurso o Coletivo ganhou visibilidade, chamou atenção como produzia
128
suas intervenções e como o trabalho mexia com o sensível de um modo muito peculiar,
somente possível nos processos artísticos do contemporâneo que nos desestabilizam e nos
tiram de nossas posições passivas. Havia no Coletivo a noção de um agenciamento, o mesmo
de que fala Deleuze e Parnet (1998), e que se coloca como mais apropriada na definição do
seu funcionamento nesse momento. Nesse processo de agenciamento nos colocamos em uma
linha de encontro entre dois mundos, um plano de criação e coengendramento dos seres, de
criação de mundos.
Desse momento em diante, percebe-se a intensificação do desejo de grupos e
instituições de se aproximarem do Coletivo que naquele período já se tornara referência no
sentido de sua atuação: aquele tem como propósito resistir ao apagamento da memória pelo
que evoca como potência da arte política. O tempo de criação é então sucumbido pela
participação em outros espaços que o Coletivo também desejou estar. Começa assim a operar
no plano das formas, inconscientemente se deixando capturar por esses momentos que
roubam esse tempo.
Ao mesmo tempo, e de modo contraditório, é preciso enxergar nesses espaços a
possibilidade de construir desterritorializações, espaços de enunciações capazes de apresentar
o que se constrói nos espaços urbanos. No entanto, vale refletir como o Coletivo vai se
deixando conduzir e como os desejos que surgem vão dando conta de uma forma, de uma
linha segmentar dura, que passa a sobrepor o fluxo molecular que atravessa o Coletivo.
No mesmo período surge a proposição de que o Coletivo possa se
desterritorializar geograficamente, que seja capaz de ganhar outros espaços, já que as vistas
de muitos grupos, o Coletivo já se tornara “referência” na atuação da arte política no sentido
produzir sensíveis sobre o período ditatorial evocando a presença de mortos e desaparecidos
nos espaços urbanos. Em um primeiro momento houve a proposição de que se pensasse,
articulado com outros Coletivos espalhados pelo país, a criação de células do Coletivo que
seriam regidos pelos membros situados em Fortaleza, uma espécie de institucionalização do
Coletivo. Isso nos fez perceber e também olhar com desconfiança essas proposições e desejos,
se não passavam essencialmente por uma questão de poder ao invés de resistência, exatamente
como Hardt (2014) colocava a respeito da relação resistência/poder.
A conversa no Coletivo tomou outros rumos e afirmamos o desejo de seguir
enquanto coletivo que deseja intervir e que não precisa, necessariamente, se localizar e
afirmar sua atuação a partir das linhas duras, mas atuando pela flexibilidade tão potente e tão
presente nos coletivos que buscam construir proposições artísticas que fogem as posições
129
fixadas.
Propomos assim, operar articulados à coletivos diversos espalhados pelo país,
mas que não, necessariamente, necessitassem passar pelos movimentos de institucionalização,
modelos de homogeneização tão recorrentes nas estruturas sociais do contemporâneo. Desse
modo, propomos como aponta Faro (2014, p.234) atuar “em redes e movimentos não
localizados, mas espraiados, múltiplos e colaborativos” em posições de horizontalidade que
chamam à criação contínua de outros modos de vida.
O momento operou evidenciando ao Coletivo do quão a captura é passível de
ocorrer mesmo em nós, que nos propomos outros modos de operar. Talvez por entender que
mesmo nas linhas duras é possível haver outros fluxos de vida. Passamos então a filtrar os
espaços de fala, se seriam importantes de fato para o Coletivo, e pensar cada vez mais em
articulações que fossem capazes de dar maior visibilidade para os movimentos em torno dos
mortos e desaparecidos políticos. Ocupar espaços e planos, sejam eles molares ou
moleculares, se faz necessário quando fazemos isso não em nome de desejos particulares,
mas em nome de desejos comuns. A intervenção na Avenida Aguanambi é então o momento
de afirmar a invenção de mundos, “um plano imanente e concreto de práticas e de relações
ético-políticas” (ESCÓSSIA E TEDESCO, 2012, p.98). O desejo e as ações são, portanto,
no sentido de que as singularidades possam encontrar, entrar em contato com as formas
propondo novas direções, novas possibilidades de invenção.
A arte sempre correu e sempre correrá o risco de ser veementemente cooptada
pelo sistema, não só pelo sistema da arte, mas pelo econômico, pelo político e todos os
sistemas que operam na centralização de um mundo único, sem repartições ou fraturas.
Subverter esses sistemas faz das ações do Coletivo Aparecidos Políticos, um desvio no
condicionamento da arte, tomando-a enquanto ação política. Recorro assim as palavras de
Rancière (2007, p.129) para pensar que “a resistência da obra não é o socorro que a arte
presta à política. Ela não é a imitação ou antecipação da política pela arte, mas propriamente
a identidade de ambas (idem, p.129)”. A definição de Rancière retira qualquer interpretação
de uma função política que a arte possa desempenhar, pois como afirma Adorno (1997), “a
função da arte é não ter função” dando a ver a existência de um poder estético e de
sensibilização que compõe sua resistência.
130
5. QUANDO A INTERVENÇÃO URBANA EVIDENCIA O PODER DO ESTADO
FRENTE AÇÕES CONTRA HEGEMÔNICAS: RELATOS DA INTERVENÇÃO
OPERAÇÃO CARCARÁ
Criar situações que nos conduzam a um bom encontro e nele procurar quais
elementos, sujeitos, matérias, ideias que ao entrarem em contágio com nossas potências são
capazes de formar uma potência maior, capazes de resultar em alegrias e afetos muito
maiores. Com o passar do tempo, criamos sensores corporais e uma certa sagacidade que nos
coloca diante do processo de aprender a selecionar e produzir nossos encontros. Aprendemos
a fazer uso do que aparentemente se apresenta “contra” nós, desestabilizando nossas forças,
para produzir potências de agir, evidenciando os jogos de poder, relações de força que se
estabelecem na sociedade.
Pensar nas intervenções do Coletivo é também pensar que a arte se aproxima do
campo de disputas pela democracia em meio ao cenário contemporâneo, marcado por
profundas transformações. Práticas artísticas que se apresentam não só enquanto aquilo que
segue as linhas de fuga de uma invenção política e confrontação da hegemonia dominante,
mas propriamente enquanto amplo movimento capaz de construir uma democracia radical, de
que fala Mouffe (2007) onde além de reconhecer a pluralidade humana, a partir de seus
movimentos diversos, conceba a convivência dos distintos grupos, frentes de atuação e seus
modos de vida - mesmo que de modo não harmonioso - ao invés de sua exclusão.
A Operação Carcará, performance desenvolvida pelo Coletivo Aparecidos
Políticos dentro do Salão de Abril, em Fortaleza, evidenciou os jogos de força que operam no
campo social, nas linhas molares (campo da macropolítica) como indica Guattari (1980), onde
se enfrenta o poder do Estado que insisti em produzir a institucionalização de nossas vidas.
Linhas duras, no entanto passíveis de sofrerem pequenas fissuras por meio das linhas
moleculares, onde, entretanto, se produz vida, ordem “dos fluxos, dos devires, das transições
de fases, das intensidades. Essa travessia molecular dos estratos e dos níveis, operada pelas
diferentes espécies de agenciamento, será chamada de transversalidade.” (GUATTARI;
ROLNIK, 1996, p.321).
131
5.1 O CONTAR DE UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA POLÍTICA – OPERAÇÃO
CARCARÁ
O medo, tensão, incerteza, adrenalina e ao mesmo tempo uma alegria indescritível
de mais uma vez construir um modo sensível de falar dos mortos e desaparecidos do regime
militar. Foram esses os sentimentos atravessados pelos integrantes do Coletivo Aparecidos
Políticos que dias anteriores, haviam realizado a intervenção na Avenida Aguanambi com as
imagens retiradas dos arquivos familiares dos desaparecidos políticos, o que nos dava um
novo ânimo e reascendia o desejo de estar nos espaços da cidade.
Operação Carcará. Carcará, pássaro do sertão cearense e que também se constituiu
enquanto símbolo da Aliança Libertadora Nacional (ALN)56
no Ceará. O nome sugestivo já
fornecia pistas para pensar no que poderia consistir a intervenção proposta pelo Coletivo
Aparecidos Políticos para a 65ª edição do Salão de Abril, ocorrido em 2014. Uma proposta
que se apresenta ousada, uma vez que propunha a criação de uma situação em torno do mês
de rememoração dos 50 anos da ditadura no país. A ação se apresentou enquanto modo mais
enérgico, audacioso e de embate direto contra as forças molares que regem a organicidade do
país.
O que nos produziu certo espanto foi sem dúvida, a sugestão do Salão em 2014,
apresentando a urgência de abarcar trabalhos que tinham como proposta nessa edição, a
urgência de pensar a produção artística ligada aos movimentos da vida, apontando a
emergência desse movimento frente ao que se vivia naquele momento exatamente: ano de
eleição, Copa do Mundo e de diversos acontecimentos que eclodiam em diferentes partes do
país. Trago aqui o texto curatorial para dimensionar também a heterogeneidade dos trabalhos
apresentados ao Salão, mas principalmente apresentar o olhar sensível da equipe curatorial
sobre esses trabalhos. Ao que se coloca, um olhar que percebe os entres de cada trabalho.
Alerta Laranja!
O Clima da 65ª edição do Salão de Abril é de urgência. Urgência em relação ao
contexto social de violência urbana e indiferença das instituições políticas, em
relação ao passado e ao presente que não se colocam como contingentes, contra a
arte que aspira estabilidade.
Mas atenção: nenhuma obra aqui pensa estar inventando a roda. Engajar-se crítica e
esteticamente, ainda que nem sempre esteja em voga, não é novidade e seguramente
os artistas sabem e investigam suas próprias genealogias. No entanto, acredito que
56
Organização política que sob a ideologia socialista participou da luta armada contra a ditadura militar no
Brasil.
132
o modo como esses artistas articulam tais questões indicam possíveis chaves de leitura sobre a produção contemporânea de artes visuais.
Logo de saída, em face à seleção final das obras, é preciso notar a reincidência de
um procedimento: a apropriação de imagens com conteúdo manifestadamente
político. Moldadas de acordo com as intenções dos diferentes artistas, essas cenas
aparecem recontextualizadas, comentam e apontam para os problemas que hoje
enfrentamos. Esse posicionamento crítico em relação à organização social aparece
também de forma explícita, através de apropriações de mobiliário urbano ou
burocrático, em performances, em fotografias, em pinturas. Cada obra, à sua
maneira, coloca-se diante do espectador incitando-o às bandeiras, sejam elas quais
forem. Outro grupo de artistas parece estar preocupado com (ou pelo menos me faz
perceber) questões do próprio sujeito criador, voyer ou protagonista de situações
abismais, invariavelmente solitárias. Daqueles que infligem alguma tarefa hercúlea
– raspar, esvaziar, colecionar, sustentar, sempre no limite do quase impossível - , à
técnica exaustiva da gravura ou da pintura, todos expõem-se em situações que
fazem nossas atenções gravitar entre o que se vê e o sujeito que se propôs a fazê-
lo.
Há ainda um conjunto de obras que não se subordinam tão explicitamente a esse
olhar do curador, que insiste em agrupar e visualizar aproximações. Nesse não-
grupo encontram-se por um lado, trabalhos que criam uma atmosfera de absurdo e
resistência. Por outro, trabalhos que desafiam o crítico, que escarnecem das regras e convenções pré-estabelecidas ao se submeterem religiosamente a elas. Conceituais
sim, por vezes irônicos, todos trazem consigo ventos fortes diante dos quais não
podemos ficar indiferentes.
Porto Alegre – Fortaleza, Abril de 2014.
Gabriela Motta, curadora do 65º Salão de Abril
Como o texto indica, são trabalhos que sopram ventos fortes e nos convocam a
pensar que carregamos o estranhamento em nós, no entanto, é preciso que estejamos dispostos
diante das situações, e aqui insisto em dizer, que sejam capazes de violar o pensar e nos
desperte para outras significações da vida, mesmo diante da ausência da vida. Há a
necessidade de convocar o movimento constante de um inventar-se e perceber que resistência
da vida se encontra também nos movimentos da arte.
Nesse jogo, o mundo não está dado como certo e os lugares não são estáticos,
por isso cabe aos processos artísticos romper com que se apresenta como evidência e
alcançar, na arte o próprio plano da imanência. “A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à
servidão, à infâmia, à vergonha” (DELEUZE, 1992, p.219). O gesto artístico-político se abre
ao mundo buscando, com efeito, uma imersão nas intensidades e no que é capaz de mover a
vida cotidiana. Deleuze (1992) nos diz então:
Acreditar no mundo é o que nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos
desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar
acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos
espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. [...] É ao nível de cada
tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a
um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE, 1992,
p.222).
133
Desse modo o Coletivo Aparecidos Políticos enxerga na proposta do Salão a
possibilidade de produzir o desmanche da polarização arte e vida, passado e presente para
trazer a tona o pensamento de que, no momento em que criamos, seja uma situação, objeto,
imagem e principalmente a performance, estamos também nos criando, um processo de
criação de modos de existência que escapam aos dispositivos de controle, criando desde logo
resistência.
Mais uma vez, não interessa para o presente trabalho pensar e trazer abordagens
diversas a cerca da performance. No entanto é imprescindível a busca de concepções que a
localizem enquanto processo, não correspondendo a um objeto acabado ou qualquer outra
concepção que incorra nessa compreensão, mas como apresenta Schechner (2006) a
performance se inclui nos muitos domínios da vida social, não se restringindo apenas ao
campo artístico.
Para Mellim (2008) o termo performance também necessita ser compreendido a
partir de um sentido ampliado, pois há um número variado de concepções. Podem ser gestos,
mas também a criação de situações que convocam a experiência coletiva:
Nas artes visuais, sempre que ouvimos a palavra “performance”, é comum nos
remetermos de imediato à utilização do corpo como parte constitutiva da obra, e
nossas principais referências têm sido frequentemente os anos 1960 e 1970. Muitas
vezes, também, somo levados a pensar em um único formato, baseado no artista em uma ação ao vivo, visto por um público, num tempo e espaço específicos.
(MELLIM, 2008, p.57)
É a partir da criação de modos que não fujam aos domínios da vida cotidiana que
o Coletivo Aparecidos Políticos busca por meio de equivalentes sensíveis, encobrir a
indiferença por meio do peso das imagens e da memória dos que durante muito tempo foram
invisibilisados, que não cabiam na memória do país, ou mesmo que não integram o cálculo
produtivista. É importante situar que não cabe aqui refletir sobre parcelas de culpa, apontar
certo ou errado, no entanto, pensando nos fluxos que regem a democracia radical, reside a
necessidade de reconhecer todos dentro do sistema de evidências visíveis e dizíveis. Como
Mouffe (2007) aponta, o pluralismo é fundamental para a definição de uma democracia
moderna, o que inclui adotar formas difusas que conduzam ao pluralismo na esfera pública e
as possibilidades de reconhecimento das partes que a conformam.
A proposta da performance foi ainda um modo de instaurar fissuras no modelo
contemporâneo de produção artística, que em determinados momentos parece relegar as
manifestações artísticas impregnadas de um teor político que ultrapassa os limites físicos dos
134
espaços concebidos à arte, para se expandir nos espaços da cidade e atingir o corpo que “é um
modo de relação com o mundo; o corpo é a casa, a casa é o mundo, um corpo e um mundo
que se confundem nas práticas do cotidiano” (Silva in Galeno, 2003, p.125).
Ao contrário, o Salão de Abril se mostrou aberto não apenas aos objetos e
imagens, mas a criação de situações, mesmo que claramente não estivessem sujeitas a serem
classificadas como arte. No entanto, as potências de visibilidade das produções da arte nos
mostram aquilo que é encoberto pelos sistemas hegemônicos e nesse intermédio,
visualizamos a arte política em seu estado latente.
A maneira como a arte que não se parece com arte se relaciona com a sociedade
passa pela atenção a qualquer aspecto das formas, dos meios e situações de vida
dessa sociedade. A atuação desse tipo de arte produz-se através da vida social.
(FERVENZA, 2005, p.81. Grifos do autor).
É a própria ideia da antiarte, conceito formulado por Oiticica, que o coloca como
via de resistência da arte em direção a constituição de novas formas de vida. Não há,
assim, a distinção de maneiras de fazer ou mesmo encarar a existência de um papel próprio
do artista, separado dos contextos com os quais esteja implicado. No mergulho da afirmação
de que arte é política, a preocupação primeira será sempre de centrar-se na vida e nos
constantes embates existente ente arte e mundo.
Nesse sentido, o Coletivo Aparecidos Políticos apresentou ao Salão não a
proposta de um objeto pronto e acabado, mas uma situação vivida, contada e recontada além
de acompanhada pelos curadores. Foi o momento de acolhida da diferença na produção
artística visual que também colocou o Coletivo diante do que se apresenta como um dos
poderes hegemônicos, e mesmo diante da perda de forças perante o regime “democrático de
direito”, carrega na sua essência a exclusão e o confinamento da memória.
Enquanto proposta, a performance Operação Carcará, consistia em lançar de uma
aeronave, que inicialmente se pensou na possibilidade de ser um helicóptero, cerca de 140
miniparaquedas confeccionados pelos integrantes do próprio Coletivo. O objeto carregava na
sua fragilidade estrutural, o peso descomunal da dor e da ausência dos mortos e desaparecidos
pelo regime ditatorial.
O objeto, elaborado a partir de sacola plástica, para produzir o que em um
paraquedas normal recebe a denominação de velame - parte que se abre e diminui a
velocidade do corpo em queda; linha encerada e uma pequena garrafa de aproximadamente
9cm de altura, contendo água adicionada de corante para produzir o contrapeso.
135
A partir das extremidades das sacolas, nas cores vermelhas, amarelas e pretas,
cortadas em formato circular e medindo aproximadamente 30 centímetros de diâmetro, foram
amarradas as linhas finas de cor branca. As minigarrafas, transparentes com tampa de cor
vermelha, recebiam pelas tampas, as amarras de linha. Assim, em uma extremidade das linhas
se tinha o velame preso e na outra, a garrafa responsável pelo contrapeso.
Mais uma vez a reincidência em um procedimento: o uso de imagens, os rostos
dos mortos e desaparecidos políticos, imagens de cerca de 140 nomes estampavam as sacolas
e também as garrafas. Para as sacolas foram criados stencils, moldes que a partir da
aplicação em spray deu forma aos rostos dos desaparecidos. Para as minigarrafas o mesmo
rosto impresso na sacola, porém impressos em cor preta e em escala reduzida, cumpriam a
função de rótulo. Na imagem que segue (ver Figura 30) é possível visualizar o processo
final após a montagem dos miniparaquedas e na imagem seguinte (ver Figura 31), os 140
miniparaquedas dobrados e organizados, prontos para lançamento.
Figura 30 - Paraquedas montados.
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.
136
Figura 31 - Paraquedas montados prontos para
lançamento
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.
A região do 23º Batalhão de Caçadores57
, local de treinamento do Exército
Brasileiro no Ceará, situado em um dos bairros mais antigos de Fortaleza, foi a área escolhida
para o lançamento dos miniparaquedas. A escolha do local se deu por motivos simbólicos e
também concretos, pois durante a ditadura o local abrigou um centro clandestino para práticas
de tortura, constando inclusive no relatório entregue no final de 2014 pela Comissão Nacional
da Verdade58
.
Após a preparação do material deu-se início ao momento mais poroso da ação e
aqui contar o processo parece interessante para que se possa compreender a trama da
democracia liberal que tem na sua base, a ordem policial, o que Rancière (1996, p.41)
conceitua como “conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o
consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a
distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição” que
habitualmente é tomado como política. A ordem policial vai determinar, nas palavras de
Rancière (1996), não uma disciplinarização dos corpos, mas se esses corpos podem ou não
aparecer, logo é a ordem de regulação da ocupação dos espaços.
Essa ordem se estabelecesse de modo consensual e nesse sentido é possível
perceber o quanto vivenciamos modulações e ocupações bem definidas. Logo o primeiro
57
Me reportarei posteriormente utilizando a abreviatura 23º BC. 58 Para mais informações acessar o link:
137
impasse do Coletivo na realização da performance, se deu na tentativa de encontrar uma
empresa que se depusesse a realizar o sobrevôo na região do 23º BC. Defronte a
desconfiança das empresas que poderiam realizar o sobrevôo, eram feitas diversas exigências
para realizar o que nos parecia, diante mão “simples”. Duas empresas se recusaram de pronto
a realizar. Todas alegavam diversos motivos que não se encadeavam em uma sequência
lógica e fosse capaz de explicar coerentemente a impossibilidade, mas o que se evidenciou em
todas as falas, era a “complicação” de ser especificamente naquela região. Mesmo o Coletivo
estando disposto a pagar um valor superior ao valor real pela hora de vôo as empresas se
negavam.
Esse momento nos mostrou o temor generalizado daqueles que foram na história
do país, os maiores violadores dos direitos humanos e que mesmo após o fim do regime
militar, continuam a exercer um poder, uma espécie de dominação invisível sobre a
sociedade que continua a enxergar e a legitimar esse poder a partir do medo e do silêncio.
O desejo de realizar a ação no dia anterior a abertura do Salão se configurava
como impossível diante das inúmeras tentativas de conseguir uma aeronave que realizasse
o vôo. No final da tarde, após esgotar praticamente todas as possibilidades de que alguma
empresa aceitasse realizar o vôo, iniciamos novamente uma série de ligações, agora para o
Aeroclube do Ceará. Na primeira ligação conseguimos de pronto uma empresa que realiza
cursos, mas que também faz vôos, aceitasse realizar.
Empregamos, naquele momento, estratégias. Explicamos em que região o vôo
seria realizado, mas já não citávamos a palavra exército. Tivemos todo o cuidado e
atenção em dizer que se tratava de um trabalho realizado por um coletivo de arte da cidade
dentro de um evento com abertura no mesmo dia, deixando aberta às diversas interpretações
que pudessem ser produzidas. Após o secretário do Aeroclube se certificar da possibilidade
do vôo, fomos avisados de que sim, seria possível, e que teríamos, portanto um monomotor
disponível no dia 15 de abril aproximadamente às 16h da tarde.
Paralelamente, circulava nos veículos de comunicação da cidade e no próprio site
da Secretaria de Cultura de Fortaleza (ver ANEXO A), responsável por promover o Salão,
uma nota informando que a performance desenvolvida pelo Coletivo Aparecidos Políticos,
lançaria de uma aeronave, paraquedas com imagens de mortos e desaparecidos políticos,
dando inclusive detalhes do local e horário onde ocorreria. Aqui incide a inserção de
<http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_pagina_593_a_958.pdf>.
138
informações que seriam veiculadas pelo próprio circuito de comunicação, logo o que o
Coletivo Aparecidos Políticos faz é “utilizar o próprio sistema de distribuição como veículo
de outras proposições que o abram a uma percepção e a uma atuação crítica”.
(FERVENZA, 2005, p.81). Assim o Coletivo age pelas brechas no sentido de produzir a
afirmação do litígio e acreditando na potência dos gestos e ações.
A caminho do ateliê do Coletivo, ponto de encontro e de onde partiríamos para a
performance, já era possível notar uma movimentação atípica nos arredores do 23º BC. Havia
no pátio do quartel caminhões com homens fortemente armados e que a todo o momento
entravam e saiam do espaço. Além disso, vários soldados posicionados nas guaritas e no pátio
principal, todos atentos, como quem se preparava para receber o “inimigo”.
No horário marcado com o Aeroclube, seguimos acompanhados de um amigo
advogado para o local de decolagem. Após o acerto financeiro fomos convocados pelo
presidente do Aeroclube para sua sala, que deu início a uma série de perguntas. Começamos a
esclarecer e a falar de que se tratava aquele vôo. Iniciamos a conversa falando que era uma
performance artística dentro do Salão de Abril e com os paraquedas em mãos o Coletivo
apresentava o que seria lançado. O então presidente informa que para conseguirmos realizar o
lançamento seria necessária a liberação da torre de comando e que dificilmente a mesma
autorizaria lançar qualquer objeto naquela região. No sentido de evitar desconfiança, a partir
daquele momento já não citávamos que o lançamento seria sobre o 23º BC, mas sim nas
imediações do Instituto Federal de Educação - IFCE, situado geograficamente bem próximo
ao quartel.
Depois de muita tensão e um bom tempo tentando negociar e muito nervosismo
de ambas as partes, a torre então libera o vôo. No entanto, os pilotos que entravam na sala se
recusavam de imediato a realizá-lo temendo represália, mesmo o advogado assegurando todo
aparo judicial caso ocorresse algo. Na insistência e tentativa de convencimento, por parte do
Coletivo, eis que adentra a sala um piloto, aparentemente mais um que se recusaria diante da
proposta. Explicamos toda a situação e do que se tratava. O piloto prontamente diz que vai
realizar o vôo sim. Aparentemente emocionado com os paraquedas em mãos e achando a ação
“audaciosa demais”, nas palavras dele, o piloto passa a nos contar o que conhece sobre o
período, de quanto aquele momento marcou “a vida de muita gente”. Parecia alguém que teve
um parente ou familiar morto ou desaparecido pelo regime, ou apenas alguém com o senso de
justiça aflorado. Por um instante não acreditávamos que o acaso havia nos agraciado.
Passamos a chamá-lo de Piloto Carcará, para preservar sua imagem.
139
A atitude do piloto nos faz perceber o que Deleuze e Guattari (2012) aponta como
sendo um fluxo molecular que escapa, que mesmo as segmentaridades duras não estão imunes
aos microperceptos, de afetos, operando de outro modo. No entanto essa fuga molecular, esse
ato micropolítico não seria nada se não atravessasse essa organização molar. É logo o ponto
máximo de evidência de que molar e molecular se distinguem, mas que não são inseparáveis,
podendo coexistir.
A ação do piloto muito se aproximava de nós e dos nossos desejos. Desejos esses
de encontrar e fazer com que mais pessoas possam agir em nome dessas singularidades
negadas, independente de ter vivenciado ou não o período. Um processo onde se produz em
nome daqueles que caíram sem palavras, para que não sejam mais compreendidos como
ruídos do passado, mas enquanto discurso sempre presente.
Eis que o piloto chama o Coletivo em uma sala e instrui para que seja
separado apenas alguns paraquedas que devem ser levados em uma mochila. A estratégia
adotada é para que a torre de comando, que visualiza o deslocamento até a aeronave, não
desconfie. Por conta do tamanho da aeronave é possível que apenas uma pessoa embarque
com o piloto. Um dos integrantes, Marquinhos, embarca com a mochila contendo apenas
alguns paraquedas, uma câmera pequena e o celular para contato.
Ao decolar, o piloto repassa para a torre de comando o mapa de vôo. Inicialmente
o retorno é de que é impossível sobrevoar a região do Benfica, pois houve o fechamento do
espaço aéreo exatamente na região que compreende o 23º BC. Com o desejo de seguir
com a ação, o piloto insisti e pede autorização para sobrevoar próximo aquela região, nas
imediações do Castelão. Depois de um tempo de espera piloto e tripulante são informados de
que na verdade a aeronave se quer poderia ter decolado, uma vez que o espaço aéreo de
Fortaleza esteve fechado durante todo o dia para vôos particulares. A aeronave é então
obrigada a retornar. Enquanto isso o piloto comenta que aquela ação mexe “com coisas
pesadas” e que aquilo para muita gente seria uma afronta, o que já sabíamos, mas que nos
afetava perceber que no mar imenso de invisibilidade, encontramos outros que também
percebem o jogo de posições.
Em solo, um bom número de pessoas aguardava na Praça do Preso e
Desaparecido Político, situada em frente ao 23º BC, a mesma praça rebatizada em 2011 pelo
Coletivo Aparecidos Políticos. Aguardávamos acontecer algo, o lançamento ou não dos
paraquedas. No local a presença de algumas pessoas dentre elas curiosos, pessoas que
haviam lido a matéria no jornal, ex-presos políticos, integrantes do Coletivo, curadores do
140
Salão e também a imprensa, mobilizada pelo release lançado no dia anterior.
No momento em que aguardávamos algum sinal da aeronave, éramos vigiados
atentamente pelos soldados que se amontoavam nas guaritas e também no pátio do 23º BC. É
então que recebemos a ligação de Marquinhos, ainda sobrevoando a região do Aeroclube,
informando que não seria possível realizar o sobrevôo naquela região. A informação recebida
dava conta de que o fechamento do espaço aéreo havia sido deliberado pelo comando da 10ª
Região Militar.
Avisamos à todos presentes na praça que a aeronave havia recebido ordens para
aterrissar. Diante da ordem nos deslocamos para o Aeroclube, indo ao encontro de
Marquinhos, pois não sabíamos muito bem o que o aguardava após a aterrissagem da
aeronave. Quando chegamos, encontramos Marquinhos, visivelmente nervoso e apreensível.
Nos contava do momento em que a aeronave aterrissou. Os funcionários do Aeroclube,
também visivelmente nervosos, se dirigiram ao piloto e tripulante afirmando que aquilo não
poderia ter sido feito e de que havíamos (o Coletivo) os enganado. Imediatamente a aeronave
foi lacrada e a chave tomada das mãos do piloto. Na fala do funcionário, a revelação de que as
ordens eram expressas da 10ª Região Militar.
Saindo do Aeroclube do Ceará seguimos diretamente para a cerimônia de abertura
do Salão de Abril. Alguns presentes já haviam tomado conhecimento do ocorrido e queriam
mais detalhes. Passamos a contar o acontecido e carregávamos conosco a caixa contendo os
paraquedas que deveriam ser lançados, produzindo um bombardeio de memória no espaço
físico do 23º BC. As pessoas, atentas, ouviam estarrecidas ao relato e ficavam sem acreditar
que o anúncio de uma intervenção que faria uso daquele objeto tão pequeno e ao mesmo
tempo tão potente, produziria o fechamento do espaço aéreo de uma cidade como Fortaleza.
Na imagem que segue (ver Figura 32) o Coletivo já presente no Salão de Abril reunido com
algumas pessoas a contar o processo. Ao fundo, dois dos paraquedas que seriam lançados
ficaram dispostos no espaço físico do Salão.
141
Figura 32 - Abertura Salão de Abril
Fonte: Arquivo Coletivo Aparecidos Políticos, 2014.
De antemão nos tomava o sentimento de que a havia algo por terminar, de que a
intervenção não terminava daquela forma e que, mesmo diante do não lançamento dos
paraquedas, o Coletivo não considerava que a performance não tenha sido produzida ou
findado ali. Acho que de início, o desejo de ver os paraquedas descendo, produziram em nós o
sentimento de que a performance havia sido frustrada. Mas nos reelaboramos no sentido de
compreender que mais importante do que a queda dos paraquedas, foi o processo, toda a
movimentação da imprensa bem como do exército diante do que anunciávamos.
Havia algo ainda mais potente que era pensar as reverberações, o contar a
experiência59
que se fazia necessário e a necessidade de produzir reflexões sobre esse
processo que inquietou esse sistema em repouso, onde ao menor sinal de desestabilização, se
blinda e se mostra irredutível as práticas que buscam desestabilizá-lo. O que realmente
importa aqui é todo o processo ocorrido durante os dois dias, a intensa mobilização da
impressa diante da nota divulgada e a presença de pessoas na praça a espera do lançamento
dos paraquedas, que se quer o Coletivo tinha dimensão do que aconteceria e se seriam
de fato lançados.
59
Com algumas das imagens feitas pelo Coletivo, montamos um vídeo contando o processo. Para assistir
acessar: <https://www.youtube.com/watch?v=_edGDDBpm3I>.
142
5.1.1 O não como potência
O não lançamento dos paraquedas era em certa medida esperado. Nesse
sentido, trago a reflexão de que foi o “não realizar” que potencializou a ação, tornando-a
ainda mais visível. O “não” precisa ser visto na intervenção do Coletivo por outra perspectiva,
uma vez que quando nega consegue ao mesmo tempo potencializar o sensível e o invisível,
dando à nossa percepção o descortinamento de situações e modos de operar que repousam
no campo do imperceptível: as relações de força, modos não só de afetar, mas sobretudo de
ser afetado, diante de maneiras de fazer que desestabilizam um poder difuso. Nas palavras de
Levy (2011, p.81) são forças que afetam outras forças e forças que imanentemente não se
fecham às relações de forças, mas que se predispõe a esse embate estando assim suscetíveis
de serem afetadas por outras forças.
No momento em que se nega a possibilidade de realizar o lançamento dos
paraquedas, torna ainda mais visível e latente a memória do período, dos mortos e
desaparecidos pelo regime, deixando ver que há outro tipo de potência, a potência que
Giorgio Agambem, como assinala Castro (2012), denomina de potência de não, potência essa
que podendo passar ao ato pode também o suspender e não realizar. A potência perfaz outros
caminhos que não necessariamente o da ação, logo potente é aquilo que acolhe e deixa
acontecer e mesmo o “não” é tomado como potência de acontecimento.
Esse pensamento por mais paradoxal e contraditório que possa ser, nos
força a refletir que a potência de não é na verdade uma potência ativa, que interrompe
o fluxo exigindo da suspensão também uma ação capaz de dar a ver a potência imanente do
que viria a ser, do porvir. No cessar do que poderia ser, a intervenção se apresenta enquanto
experiência que nos coloca fora e no contato com essa força molar, nos tirando do campo da
recognição para nos fazer pensar dentre os muitos aspectos que regem a vida cotidiana.
Apresenta-nos ainda ao jogo e os limites entre público e privado, colocando em evidência a
democracia liberal para além de uma forma de governo, mas enquanto forma específica de
organizar politicamente a coexistência humana.
O não também nos coloca de modo mais evidente diante do jogo de posições que
se estabelece dentro desse modelo democrático liberal, mesmo diante da noção de uma
esfera pública onde os antagonismos deveriam ser reconhecidos para que dessa forma, fosse
possível a construção de uma concepção outra de democracia. No entanto a ação evidenciou o
quanto vivenciamos uma democracia que por sua vez não surge nos espaço público, o
143
que nas palavras de Deutsche (2001) deveria ser condição primeira. Uma vez que o espaço
público é o espaço social de negociações de diversas formas de ser/estar/fazer, logo o
impedimento se apresenta também como negação de uma subjetivação política, ao passo que
nos dá em mãos a negação de uma reconstrução da memória social e coletiva.
Negar nos coloca diante do poder de subjetivação política que permeia todo o
trabalho do Coletivo Aparecidos, arte que nos desloca na produção dessa subjetivação e nos
conduz a noção de uma democracia pluralista. Há assim não restritamente o estado de uma
relação de forças, mas constitui enquanto demonstração do direito de criação de uma
existência, uma manifestação do ausente que objetiva não mais ser compreendido enquanto
ruído, mas compreendido pela outra parte, enquanto agente da palavra, por mais que o que se
produza seja em determinado grau uma situação de desentendimento.
A arte que força o fechamento do espaço aéreo se mostra potente por evidenciar
que o espaço comum que a democracia pressupõe como espaço-tempo comum e mais,
enquanto lugar de exercício da liberdade é, por sua vez, suprimido, dando lugar ao
enquadramento de tempos e lugares específicos nesse todo, produzindo o que é próprio a cada
um desses corpos.
5.2 DEMOCRACIA: ARTE TRAÇANDO OUTRAS FORMAS DE UMA CONSTRUÇÃO
PLURAL
Impossível não falar que a intervenção produz em nós a necessidade de olhar
sempre com desconfiança para o que se coloca enquanto democracia. Na verdade vale pensar
como Rancière (1996, p.99) aponta “a democracia nunca deixou de estar sob suspeita até aos
olhos dos próprios democratas”, pois os direitos democráticos consistem em meras
formalidades pairando a sombra da verdadeira democracia.
Não pretendo aqui discutir a história da democracia ou realizar um levantamento
completo, mas apontar que há outros movimentos de construção de uma democracia que
reconhecem os modos de subjetivação política. Principalmente a subjetivação que ocorre por
meio dos processos artísticos contemporâneos, nesse processo de reconhecer o pluralismo
humano como aspecto fundamental perante uma democracia moderna, tem encarando a
inexistência de uma perfeita harmonia nas relações sociais como parte desse processo.
Mouffe (2007) elabora um interessante pensamento do quanto as práticas
artísticas tem desempenhado uma intervenção no sentido de construir uma democracia
144
pluralista em meio aos espaços. Pensa ainda na arte enquanto possibilidade de rompimento
com os consensos estabelecidos. É nesse sentido que interessa pensar não só a operação
Carcará, mas como todo o trabalho do Coletivo Aparecidos Políticos, que a proposta de
intervenção tem na sua essência a dimensão do político, logo nas palavras de Mouffe (2007,
p.67):
[...] no se debe entender la relación entre arte y política como la de dos
esferas constituídas por separado – el arte, por um lado, y la política, por outro – y entre las cuales seria necessário estabelecer uma relación. Em lo
político hay uma dimensión estética y en el arte una dimensión política.
Nessa aproximação entre arte e política, a intervenção Operação Carcará produz a
impugnação de uma ordem simbólica dada, essa é a razão de ser uma ação onde além da arte
evocar o caráter político, apresenta como possibilidade o rompimento das contradições
apresentadas pela democracia liberal.
É importante situar desde logo que estética e política não estão separadas nas
ações do contemporâneo, ao mesmo tempo não se unem por completo, estando sempre
presente a tensão entre os campos, e para Rancière (2007, p.140) “elas não podem se
unirem sem se auto-suprimirem”. Estão imbricada não no sentido da instrumentalização, mas
na própria construção de rearranjos sociais a partir da desestabilização do poder quando
produz o rompimento da ordem, fazendo “ver o que não cabia ser visto” e ouvir um
discurso que durante muito tempo só tinha lugar o barulho (RANCIÈRE, 1996, p.42),
assim os mortos e desaparecidos pelo regime também são incluídos nessa parcela
marginalizada, que não é contada e que não tem o direito a palavra.
Para Mouffe (2007) esse político pode adotar múltiplas formas e surgir a partir de
relações sociais diversas. O político é propriamente a dimensão do antagonismo, inerente a
toda sociedade humana e que emerge a partir dessas ações, indo de encontro ao que Rancière
(1996) elabora como dissenso e que deve ser tomado como caminho de resistência. Logo a
ação proposta pelo Coletivo evidencia a inexistência de uma conciliação nacional, expondo
que essa fratura da sociedade brasileira não são mais ignoradas, são agora evocadas por meios
próprios da arte.
São obras que afirmam na sua materialidade, as fissuras existente no corpo
social, dando a ver uma discordância artística que produz vibrações sensíveis e nos coloca
diante da democracia enquanto o que instaura a política ao passo que institui “sujeitos que não
coincidem com partes do Estado ou da sociedade, sujeitos flutuantes que transtornam toda
145
representação dos lugares e das parcelas” (RANCIÈRE, 1996, p.103).
Esse modo de recortar e criar equivalentes sensíveis da experiência de estar
no mundo, inclui essa parcela ao mesmo tempo em que evidencia o jogo de poder. Assim a
performance Operação Carcará evidenciou o quanto os espaços públicos estão estriados e
estruturados hegemonicamente. Nesse sentido, há a necessita de criar uma diferente
articulação entre espaços públicos no sentido de produzir uma luta contra hegemônica.
São ações como as propostas pelo Coletivo que podem contribuir de diversas
formas para a construção de novas subjetividades, capazes ainda de construir uma democracia
onde o político caminhe junto. Para isso é necessário que as práticas artísticas empreguem
cada vez mais um caráter radical, que surjam na esfera pública não só como modo de
denúncia, mas que instigue outras lutas e outros modos de evidenciar outros invisíveis, uma
parcela significativa que para a democracia liberal é reduzido ao nada.
Na busca pela democracia plural, há que ter claro que democracia não é entendida
como simples modo de governar, mas como próprio regime do político, um modo de
subjetivação política, “é a interrupção singular dessa ordem da distribuição dos corpos em
comunidade que nos propusemos conceituar sob o conceito ampliado de polícia. É o nome
daquilo que vem interromper o bom funcionamento dessa ordem por um dispositivo singular
de subjetivação” (RANCIÈRE, 1996, p.102). É nesse sentido que a Operação Carcará se
aproxima da democracia tal qual Rancière conceitual, pois o que faz é produzir um modo de
subjetivação política interrompendo a ordem, incorporando o litígio ao invés de dissimulá-lo.
É propriamente na identificação da arte com a política que se torna possível
pensar em termos democráticos de interrupção da ordem das coisas e lugares do mundo. O
próprio Coletivo Aparecidos Políticos, se coloca não apartado do mundo e das coisas que
acontecem no mundo, mas agem desde logo nesse espaço, tornando visível a ideia de que a
resistência da arte está contida nela mesma. “A resistência da obra não é o socorro que a
arte presta à política. Ela não é a imitação ou antecipação da política pela arte, mas
propriamente a identidade de ambas. A arte é política” (RANCIÈRE, 2007, p.129).
O Caminho trilhado pelo Coletivo na Operação Carcará é apostar na arte como
estratégia de estar no mundo ao mesmo tempo em que se cria mundos, de propor outra relação
com a memória dos mortos e desaparecidos políticos. A ação foi capaz de desestabilizar e
produzir, nas estruturas do Estado, uma organização de resistência em torno de manifestação
em torno da memória.
Alcançar a democracia no seu verdadeiro sentido, ou seja, enquanto poder do
146
povo, como sugere Rancière, exige também a aproximação com a política em seu sentido
radical. Essa aproximação se apresenta como condição para a quebra da normalidade que
atribui a cada sujeito o seu lugar e a sua tarefa no corpo social e só a partir da ruptura e da
quebra da ordem policial, da instauração dos dissensos e fissuras é que se pode afirmar a
existência da política.
É possível perceber a potência política na performance, pelo fato de produzir o
que Rancière (1996) propõe, por deslocar a imagem do morto ou desaparecido de lugar que
lhe era designado, mudando sua destinação. O Coletivo arranca a naturalidade desse lugar.
Reinventa a condição do morto ou desaparecido, produzindo a abertura de um espaço de
sujeito onde “qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma contagem dos
incontados, do relacionamento entre uma parcela e uma ausência de parcela”. (RANCIÈRE,
1996, p.48).
Desde logo, a democracia, protagonizada a partir da prática artística realizadas
pelo Coletivo, ocupa o lugar de criticar o regime político estabelecido e, simultaneamente, de
impedir que a política seja aspirada pelo regime da polícia. A performance proposta, interfere
também nesse pensamento, o da existência de uma política que subverte o consenso e as
posições no jogo do poder, por mais localizada que tenha sido essa ação. Há a emergência de
pensar que não existe um consenso sobre a democracia, já que na prática o que
testemunhamos é justamente um distanciamento cada vez mais acentuado do Estado
“democrático” em relação ao sentido real de democracia, ou seja, como o poder do povo.
A democracia se origina, portanto na manifestação dos sujeitos, na ruptura
produzida. Na cena do dissenso, a política toma seu lugar enquanto subjetivação do
rompimento do comum. É ainda o espaço do aparecimento de sujeitos políticos que ao
insurgirem contra o sistema estabelecido, podem também criar um espaço para liberdade. É a
partir dessa fratura na estrutura (a ordem e a instituição) que novas possibilidades são abertas
para redesenhar o que estava estabelecido.
É a partir dessa fissura que emerge a possibilidade dos sujeitos em apresentar o
novo, que o processo criativo tem lugar. Na estrutura a liberdade só pode ser alcançada por
meio de sua desestabilização. É nessa hora, e somente nessa hora, que faz sentido falarmos
em democracia, como a subversão da ordem estabelecida por um sujeito político que visa a
sua inserção na comunidade, que visa fazer com que a sua voz, até então inaudível, passe
enfim a ser ouvida. Por isso pensar que a performance nos fala apenas de mortos e
desaparecidos é um pensar limitado. Na verdade ela nos propõe pensar em muitas outras
147
invisibilidades e de muitos outros processos excludentes dentro da democracia liberal.
Democracia, como sustenta Laclau (1993) e Rancière (2010), não corresponde a
um regime político estabelecido, mas o seu contrário. Os regimes oferecem riscos eminentes,
mas que não por esse motivo, não possam ser minados, envelhecem e excluem. Transformam
os vícios em virtudes, enquanto a democracia tem o potencial de denunciá-los, de
deslegitimar o consenso e, literalmente, negar aquilo que parecia óbvio e natural.
É necessário atenção a todo esse sistema que cada vez mais nos impele ao
consenso, que é inevitavelmente o caminho mais fácil no sentido de evitar desgastes. Mas se
queremos, enquanto agentes democráticos, construirmos condições para criação de um
espaço onde todos possam ser vistos e ouvidos, precisamos ir de encontro ao tortuoso
caminho da liberdade e da promessa da democracia. O que se apresenta é que a arte tem
ocupado lugar de uma verdadeira “máquina de guerra” como apresenta Deleuze (2010).
A situação produzida na performance do Coletivo Aparecidos Políticos é da
ordem de um imponderável, reunindo possibilidade para a criação de mundos. A
movimentação afetou e continua a afetar, os corpos dos que tomam conhecimento, que
acessam aos registros, assim é uma arte que busca instalar crises. Ela cria um ato de fuga ao
controle, à ordem, às regras. Operação Carcará é uma experiência de deslocamento, um gesto
estético-político que fratura a referida ordem. Não constitui um monumento a ser
contemplado, mas um processo vivo produzindo acontecimento puro. No Coletivo Aparecidos
Políticos, a arte não fala sobre política, ela é essencialmente a própria política, para retomar a
proposição de Rancière. É na referida instância que Operação Carcará corresponde a uma obra
de resistência, de crença nas potências do mundo.
148
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A arte pensa e realiza experimentando todos os possíveis contidos no regime do
visível, invisível e sensível. Pensa a partir da utilização de materiais, palavras, sons,
sensações, conceitos, objetos. Junta, separa, remonta os pedaços de um quebra-cabeça no
intuito de analisar acontecimentos. Torna não só perceptível, mas abre o olho e aguça os
ouvidos, provoca sensações na própria pele. A arte desassossega, escapa de todo e qualquer
enquadramento, inclusive de ser arte, relançando sempre a pergunta: o que é Arte?
No percurso da presente pesquisa, analisaram-se questões concernentes às
potencias da arte em meio ao espaço público, que, produzindo deslocamentos de espaços e
tempos, construiu “outras visibilidades” que só seriam capazes no campo da arte. Interessou
analisar esse modo perculiar de lidar com a arte, considerando as intervenções do Coletivo
Aparecidos políticos, que insistem, por meio da arte política, a construção de uma memória
capaz de desenhar os contornos das imagens de mortos e desaparecidos pelo regime militar.
O presente trabalho se apresentou como proposta que visa contribuir na produção
de conhecimento acerca dos fazeres contemporâneos em torno dos processos artísticos que
visam não mais estarem isolados do mundo, mas afirmando sua conexão com ele a partir de
corpos em fuga, atentos ao instante exato de se moverem nos espaços da cidade. Nesse
sentindo, as contribuições do presente trabalho se dão não apenas no campo da arte, mas,
sobretudo no campo da democracia, que afirma outros possíveis a partir da construção de
espaços onde seja possível reconhecer a pluralidade humana em contraposição a
homogeneização da vida.
As imagens construídas pelo Coletivo nos espaços da cidade, afirmam a potência
da vida e convocam a possibilidade da existência, mesmo que por meio do papel e da tinta.
Há a insistência nessas imagens por conterem traços que nos falam não apenas de um tempo
passado, mas também de um tempo presente que nos convoca a reconhecer, nessas imagens,
muitos dos acontecimentos cotidianos encarados em muitas cidades brasileiras, um estado de
exceção silencioso que insiste em produzir números da invisibilidade social.
Na análise de uma intervenção e na vivência em duas intervenções produzidas
pelo Coletivo Aparecidos Políticos, foi possível perceber que são, de fato, um coletivo que
resiste por meio da criação e que por vezes se deixam escapar, sendo conduzidos ao
imediatismo de pensar e agir a resistência como contraposição. Esse caráter evidência que não
estamos livres das linhas segmentares que insistem em nós a todo momento. É interessante
149
perceber que há a necessidade é combater, por meio de processos que chamem à vida, a
constituição e afirmação dessas linhas que na verdade já existem em nós.
O Coletivo ao longo do percurso vem afirmando a arte política enquanto máquina
de guerra menor, capazes de traçar linhas de fuga para além do Estado e das hierarquias.
Recusam a invisibilidade de mortos e desaparecidos e ao esquecimento, constituindo-se
verdadeira máquina,
de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o
espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos: os movimentos
revolucionários (não se leva em conta o suficiente, por exemplo, como a
OLP teve que inventar um espaço-tempo no mundo árabe), mas também os
movimentos artísticos são máquinas de guerra. (DELEUZE, 1992, p. 212).
A necessidade de perceber a cidade como espaço que potencializa vivências e
encontros, é também uma das afirmações que o Coletivo Aparecidos Políticos segue
produzindo. O que tornar-se visível é a afirmação da cidade enquanto museu, ao mesmo
tempo em que desmistificam a noção de um lugar de memória enquanto um lugar fechado.
Nessas possibilidades de intervenção apresentadas, tomam ainda a possibilidade de praticar os
espaços da cidade, de vivenciá-lo em toda sua intensidade ao invés de apenas recebermos as
intervenções que as imagens e construções produzem em nós.
Enquanto o Coletivo afirma as potências de criação nos muros e propriamente nos
espaços, afirmam também a tensão existente entre público e privado como modo de visibilizar
que é uma questão que toma todos que apostam na imersão da arte a partir dos elementos da
arte urbana, uma tensão que sempre será latente e sempre irá emergir no sentido de produzir
questionamentos e discussões.
Interessou perceber a potência da criação a partir de processos híbridos, imagens,
palavras, o recurso imagético e audiovisual que são afirmados a cada intervenção como essa
potência que pode e faz com as intervenções produzam reverberações em outros espaços. São
afetos que se produzem a partir de cada detalhe da intervenção.
É importante dizer que os conflitos, as tensões existentes não se dão apenas entre
Coletivo Aparecidos Políticos e o meio externo, mas se dão também dentro do próprio
Coletivo, sendo negociados e agenciados no sentido de que se produza a partir das tensões
existentes ao invés de procurar dizimá-las.
É imprescindível falar que os momentos vivenciados com o Coletivo também
produziram afetos em mim e no modo como fui me constituindo ao longo do percurso.
Durante o processo e operando junto ao Coletivo, pude perceber o quanto nossas identidades
150
não são fixas e o quanto precisamos saber a hora de operar no plano das formas e no plano das
forças. Nunca seremos exatamente um ou outro, mas a necessidade é de que possamos existir
e re-existir sabendo lidar com os dois planos.
Desestabilizar as forças para produzir outros mundos, essa é a concepção que
carrego ao final da escrita do presente trabalho. O que o Coletivo Aparecidos Políticos
consegue realizar é a criação de um mundo sensível, onde a memória de mortos e
desaparecidos possa caber, ser visualizada e sentida em meio ao concreto, as formas
retas que padronizam a cidade. O tempo construído nas intervenções é um tempo dos afetos,
produzido a partir do encontro entre o corpo desaparecido expresso por meio do papel e o
corpo urbano.
O afeto produzido pelo Coletivo, potencializa esse corpo e mostra, que mesmo
contido no regime do invisível, as práticas permitem que se percebam, dentro das mais
diversas atividades artísticas, aquelas que trazem a força da existência. O Significado
existente nessas intervenções é propriamente o efeito dos afetos que ela produz. A capacidade
política das intervenções não é dado como certo, mas do quanto o outro vai processar essa
intervenção, do quanto aquilo vai forçar o pensar no sentido de produzir desmanches.
Portanto, para se chegar a essa arte é preciso ir com ela deslocando-se com a linha
de fuga que se constrói, e com as problematizações que acarreta. É preciso pensar com a arte
na perspectiva propriamente de uma máquina de guerra. Assim, o Coletivo Aparecidos
Políticos expressam em suas obras, modos de existência e abrigam também o que se
classificaria como algo fora da arte, dissolvendo a separação de arte e vida, individual e
coletivo, público e privado para construir mundos e produzir visibilidades comuns.
151
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159
ANEXO
160
ANEXO A – CLIPPING DE NOTÍCIAS COLETIVO APARECIDOS POLÍTICOS
Fonte: Diário do Nordeste, 2014
Disponível em: <http://blogs.diariodonordeste.com.br/roberto/cultura/a-boa-vontade-dos-aparecidos-so-isso-nada-
mais/>.
Fonte: Prefeitura de Fortaleza, 2014
Disponível em: <https://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/performance-lanca-de-aeronave-paraquedas-com-
imagens-de-desaparecidos-politico>.
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