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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA
DAISY DAMASCENO ARAÚJO
São Luís 2009
DAISY DAMASCENO ARAÚJO
“NÓS JÁ ESTAMOS EM CIMA DESSE CHÃO”:
A questão da terra quilombola do Rio Grande – Bequimão - MA
Monografia apresentada ao Curso de História Licenciatura da Universidade Estadual do Maranhão, como requisito parcial para obtenção do título de graduação. Orientador: Prof. Msc. Marivânia Leonor Souza Furtado
São Luís 2009
Araújo, Daisy Damasceno “Nós já estamos em cima desse chão”: a questão da terra quilombola do Rio Grande-Bequimão-MA / Daisy Damasceno Araújo. – São Luís, 2009. 91 f. Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual do Maranhão, 2009. Orientador: Profa. Msc. Marivânia Leonor Souza Furtado 1.História oral 2.Comunidade quilombola 3.Terra I.Título CDU: 94(812.1).027
DAISY DAMASCENO ARAÚJO
“NÓS JÁ ESTAMOS EM CIMA DESSE CHÃO”:
A questão da terra quilombola do Rio Grande – Bequimão - MA
Monografia apresentada ao Curso de História Licenciatura da Universidade Estadual do Maranhão, como requisito parcial para obtenção do título de graduação. Orientador: Prof. Msc. Marivânia Leonor Souza Furtado
Aprovada em: ____/____/_____
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Msc. Marivânia Leonor Souza Furtado (Orientador)
_________________________________________________
Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho
__________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto Ribeiro Rios
AGRADECIMENTOS
Como agradecer com palavras sentimentos e emoções compartilhadas? Ao término
dessa “macro-história” que envolveu a minha graduação eu queria poder agradecer com
as devidas palavras o quanto algumas pessoas foram importantes para mim:
À grande responsável por essa “vitória”: minha mãe, que com todas as adversidades se
mantém guerreira. Obrigada por depositar tamanha confiança na sua “filhinha caçula”.
À senhora o meu imenso amor, respeito e gratidão eterna.
Ao meu pai que, mesmo numa distância razoável de mim, manteve-se presente. A
distância não me impediu de amá-lo e respeitá-lo de forma intensa.
Às minhas irmãs Alessandra, Heloneida e Elizângela, que compartilharam comigo os
bons e os maus momentos. Crescemos e cresceremos juntas. A elas o meu sincero amor.
Aos meus sobrinhos Vinícius, Lívia, Marcelinho e Mariana (que está por vir) que,
enquanto eu tentava escrever a monografia corriam pela casa nos fins de semana,
fazendo “zuada” suficiente para a minha inspiração.
Aos meus cunhados Carlos e Marcelo, por “quebrarem meu galho” tantas vezes.
Às minhas tias Sé e Bibi, que estavam sempre dispostas a ajudar.
Aos meus primos Carlinhos, Amanda e Ohana, por se fazerem sempre presentes.
Ao meu “N’amour”, Bruno Fernando, que me acompanhou nesses últimos meses de
produção. A minha gratidão pelas intensas horas de companheirismo, paciência e
“inspiração”; pela produção conjunta e por tamanha compreensão. Sem ti tudo seria
mais difícil.
À minha grande amiga e orientadora “Vânia”, pela paciência, compreensão, puxões de
orelha, e eterno carinho. A ti os méritos dessa produção; e a Saul, que em todos os
momentos dessa produção se fez presente, ajudando de todas as formas possíveis.
Aos meus professores:
Henrique Borralho, sempre ele, o mais presente, o mais amigo, o parceiro no reggae e
de sempre. Obrigado por contribuir de forma tão significativa.
Paulo Rios, pelos contatos agradabilíssimos, pelas leituras indicadas, pelo aprendizado
transmitido, pela solicitude e pela rica contribuição na “história oral”.
Aos professores Alan Kardec e Marcelo Cheche, pelo conhecimento transmitido e pela
“constante” aproximação e credibilidade.
Aos amigos da minha “grande história” vivida nesses cinco anos de Uema, aos quais
agradeço infinitamente por todas as Esbórnias compartilhadas:
Paulo, pelo companheirismo desde os primeiros dias, e por tudo que vivemos juntos;
meu grande amigo. Obrigada por ainda se fazer tão presente.
Renata e Arlin, impossível separá-las: obrigada pela fiel amizade.
Mariana, Nazaré e Fábio, que nos abandonaram no meio do caminho.
Fefê, por tudo que vivemos juntos; daquele tempo tenho as melhores lembranças.
Jorge “da Capadócia”, meu irmão amigo, sempre tão poético e tão companheiro.
Clenílson, pela “sutileza” sempre presente nas horas certas. A ti meu imenso carinho.
Leandro, pelo companheirismo nos quatro anos de graduação.
Marco, um presente que Deus me deu. Obrigada por tudo e por nunca dizer “não”.
Ricardo e Gilvan, cimério das estepes e padauã, em qualquer que seja a ordem. Vocês
foram a grande descoberta nessa grande história.
Roberta, pela dedicação em todas as horas; e Desni pelo imenso carinho.
E aos demais “agregados” que, vez ou outra, se fizeram presentes.
Aos funcionários do APEM, pela confiança, amizade, e pelo imenso carinho: Sil, Dona
Raí, Dona Lourdes, Dona Helena, Dona Wilma e Dona Ironilde.
Aos funcionários do Iterma e dos Cartórios de Alcântara, pelos dados fornecidos.
Aos amigos da minha antiga história, desde a época das bolinhas de papel em sala de
aula e das colas mal feitas nas provas de cálculo; pelos quais morro de encantos e
carinhos eternos.
Em especial à Nanda, Lili e Tetê que em todos os momentos se fizeram presentes.
Às amigas do grupo de pesquisa, pelas viagens ao Rio Grande e por compartilharmos
tantos momentos, em especial à Ana Nery, pela solicitude e companheirismo.
Aos amigos que me emprestaram livros e computador.
À Allanne, pelo carinho e solicitude.
Aos amigos estagiários do APEM: Henrique, Fábio, Uslan, Valine, Dave, Rafael,
Danilo, Osni, Camila, Eduardo e Wilker, pela constante presença.
Aos amigos do curso de Ciências Sociais da UFMA, em especial Iza, Danilo, Mariana,
Larissa.
E aos meus novos amigos que chegaram na hora certa, e me encheram de alegria:
Nanny, Luciano, Rafaelzinho e Thyago.
A todos o meu imenso carinho, e gratidão.
A todos os moradores do Rio Grande que, narrando suas
histórias, me permitiram interpretá-las, escrevê-las e
reproduzi-las. Como eu queria conseguir agradecer à
altura, tamanha confiança e receptividade.
“Essas parte onde tem esses morador mais antigo são o pessoal
negro que vieram (...) O Rio Grande é chegado em
descendência africana (...) Eu tô contando gente é coisa real,
não é inventando história”.
“Aqui ninguém tem documento de terra registrado, escriturado.
Só umas pessoas que pagam imposto, depois que o Engenheiro
passou aqui desmarcando pedaço de terra... e as famílias que
têm esse papelzinho pensam que a terra é deles. (Seu Agnaldo,
“filho do Rio Grande”).
“Os sem-terra ainda tão brigando por um pedaço de terra pra
viver. Nós não, nós já estamos em cima desse chão”. (Seu
Chita, “filho do Rio Grande”).
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo apresentar as discussões em torno do direito
constitucional brasileiro, expresso no artigo 68 dos Atos das Disposições
Constitucionais Provisórias (ADCT), que garante às comunidades remanescentes de
quilombos a posse e titulação de suas terras. Com o olhar voltado para o estudo de caso
da terra quilombola do Rio Grande, localizada no município de Bequimão - MA, a
discussão gira em torno da pesquisa documental em arquivos e cartórios, com
documentos do século XIX, e do registro da memória coletiva da comunidade por meio
da história oral, visando a investigação dos sujeitos de direito desse território. No intuito
de contribuir com a efetivação do direito são analisadas as discussões em torno do
termo quilombo, das dificuldades de regularização dessas terras e das políticas públicas
destinadas a esse segmento social específico.
Palavras-chave: História oral – Comunidade quilombola – Terra.
ABSTRACT
This paper aims to present the discussions around the Brazilian constitutional
law, expressed in Article 68 of the Acts of the Provisional Constitutional provisions
(ADCT), which ensures the remnants of Quilombo communities the ownership and
titling of their lands. With a look toward the case study of land Quilombola the Rio
Grande, located in Bequimão - MA, the discussion revolves around the desk research in
archives and notary, with documents of the nineteenth century, and the record of the
collective memory of community through oral history, to research the subject of law of
that territory. In order to contribute to the effectiveness of the law are considered in
discussions about the term quilombo, the difficulties of regulating such land, and public
policies aimed at this particular social segment.
Key-words: Oral history - Community Quilombola - Land.
LISTA DE SIGLAS
ACONERUQ Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
CCN/MA Centro de Cultura Negra do Maranhão
APEM Arquivo Público do Estado do Maranhão
FCP Fundação Cultural Palmares
ITERMA Instituto de Terras do Maranhão
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MNU Movimento Negro Unificado
PVN Projeto Vida de Negro
ÍNDICE DE FIGURAS, QUADROS E TABELAS
QUADRO 1: Árvore genealógica I – Ancestralidade negra e ancianidade de
ocupação do território...............................................................................................
QUADRO 2: Árvore genealógica II – Ancestralidade negra e ancianidade de
ocupação do território...............................................................................................
QUADRO 3: Árvore genealógica III – Ancestralidade negra e ancianidade de
ocupação do território...............................................................................................
TABELA 1: Terras de Quilombos Tituladas no Estado do Maranhão
(1999 – Setembro de 2007).........................................................................................
TABELA 2: Estrutura Sócio-econômica e cultural do Rio Grande......................
FIGURA: Croqui das casas do Rio Grande............................................................
TABELA 3: Calendário da Festa de Santo Antônio...............................................
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SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS........................................................................
2 REMANESCÊNCIA QUILOMBOLA: História, direitos e ressignificação
2.1 Os quilombos sob a ótica historiográfica: Permanências e rupturas...........
2.2 Ressignificando pra garantir: O texto constitucional e as novas propostas
3 POR UMA HISTÓRIA DESTE LUGAR: A Comunidade do Rio Grande
segundo a memória de “seus filhos”............................................................................
3.1 A preciosidade da “imprecisa” história oral...................................................
3.2 Entre “disse me disse”: (Re)escrevendo a história oral do Rio Grande
entre a oralidade e o escrito..........................................................................................
3.2.1 Os documentos sobre o título da terra: O que “eles dizem” e o que dizem
sobre eles.........................................................................................................................
3.2.1.1 O Iterma e os Cartórios de Alcântara.............................................................
3.3 “A raiz do Rio Grande é chegada em descendência africana”: A
ancestralidade negra e a ancianidade do território....................................................
4 A SITUAÇÃO QUILOMBOLA NO MARANHÃO E O RIO GRANDE:
Entraves e benefícios da política territorial................................................................
4.1 Os impasses do direito “quilombola”: Conflitos e contradições....................
4.2 Caracterizando o Rio Grande: A vida cotidiana e as políticas públicas
destinadas aos remanescentes quilombolas.................................................................
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................
REFERÊNCIAS.................................................................................................
ANEXOS.............................................................................................................
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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente trabalho apresenta como temática central a questão da terra
quilombola do Rio Grande, situada na microrregião do litoral ocidental maranhense, no
município de Bequimão. Com foco nas discussões em torno do direito constitucional
garantido pelo artigo 68, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, que
garante a titulação das terras remanescentes de quilombos, esse estudo traz à tona a
análise dos procedimentos formais para a regularização fundiária deste território.
Inicialmente a intenção era desenvolver um estudo que vislumbrasse a questão
agrária e os “conflitos” constantes neste âmbito de disputas por terras, demarcação de
territórios e legalização de espaços já ocupados. Em acompanhamento do trabalho feito
pela professora Marivânia Furtado na dita comunidade, teria surgido o interesse em
desenvolver uma pesquisa documental e memorialística do Rio Grande, visando
alcançar um dos procedimentos exigidos pelo Estado para que esta terra fosse
reconhecida como quilombola.
O estudo de caso da comunidade do Rio Grande, que têm sido sujeito de
pesquisas antropológicas, sociológicas e políticas, surgiu assim como a possibilidade de
encaixar o interesse nos estudos referentes aos conflitos de terras com a tentativa de
investigação dos procedimentos legais sobre a titulação de um espaço ocupado por uma
comunidade com presunção de ancestralidade africana.
Apresenta-se ainda enquanto uma tentativa de contribuição com os estudos
antropológicos desenvolvidos neste espaço, acreditando que o processo de pesquisa
histórica é significativo para a compreensão das práticas simbólicas de ocupação de
territórios e para a análise do sentimento de pertencimento destas terras ditas
“remanescentes de quilombos”.
O interesse no aprofundamento da pesquisa baseou-se também no fato de que na
comunidade do Rio Grande nenhum levantamento das possíveis fontes documentais de
titulação dessa terra teria sido realizado até o presente momento, nem em Arquivos ou
Cartórios. Para a realização dos procedimentos formais da titulação desse espaço, a
pesquisa documental traz uma relevância significativa, não apenas no sentido de
pesquisar os sujeitos de direito da terra, mas por manter diálogo constante com a
história oral.
Nessa perspectiva a produção desse estudo torna-se relevante também para a
produção historiográfica maranhense, enquanto enriquecimento para os estudos com
foco na questão agrária e para as pesquisas sobre o tema, visto que, no Maranhão tem-se
efetuado um amplo mapeamento da ocorrência de terras de negros e comunidades
remanescentes de quilombos.
É sob essa perspectiva que a metodologia aplicada nesse estudo consistiu na
pesquisa documental, envolvendo um levantamento cartorial das possíveis fontes
históricas que possam vir a comprovar o caráter particular ou devoluto das terras da
comunidade do Rio Grande.
A pesquisa documental realizou-se no Arquivo Público do Estado do Maranhão
(APEM), onde foram analisados os Registros de Terras Públicas datados de meados do
século XIX; no Cartório de Alcântara, onde segundo a memória oral dos moradores
estaria o possível título de posse do território; e no ITERMA (Instituto de Terras do
Maranhão) que se apresenta enquanto “facilitador” do processo de execução da política
agrária do Estado do Maranhão, com autoridade para reconhecer as posses legítimas e
titularizar os respectivos possuidores.
Essa pesquisa documental baseou-se nos relatos orais de ancianidade do
processo de ocupação quilombola deste espaço. Assim sendo, o desenvolvimento desta
pesquisa apresentou como método de procedimento o uso da história oral, coletando
dados da memória coletiva e individual dos moradores, e estabelecendo um constante e
“inevitável” diálogo entre documentos e oralidade.
As leituras sobre a questão agrária no Brasil e no Estado do Maranhão, com
destaque para os conflitos de terra e tentativa de legalização de terras quilombolas,
contribuíram para a construção do referencial teórico que me permitiu compreender o
tema em foco. É importante destacar que como fonte imprescindível encontram-se os
trabalhos já realizados no Maranhão sobre a questão quilombola, tomando como
referência os processos de legalização de outras comunidades já reconhecidas e
tituladas, e aquelas com processos em andamento.
No primeiro capítulo a discussão travada gira em torno do texto legal, apresentando
a história e os direitos que envolvem a “remanescência quilombola”, com destaque para a
análise do texto constitucional e do termo quilombo sob a perspectiva historiográfica.
A história de formação das ocupações quilombolas tem sofrido mudanças
significativas. Longe de alcançar um padrão de organização e concentração, hoje a
historiografia repensa as diversas formas de ocupação dos quilombos. Alguns se originaram
da fuga dos africanos escravizados, outros por meio de compra ou herança de terras,
conquistadas após longo período de trabalho escravo, outras pelo abandono dos senhores
após crises econômicas, dentre outras possibilidades. Seja qual tenha sido o caminho para
sua formação, o quilombo possibilitou aos africanos e afro-descendentes escravizados
passarem da condição de escravos para camponeses livres.
Isso suscita um outro debate que diz respeito às questões conceituais que
permeiam o significado do termo quilombo, uma discussão que tem acompanhado todo
esse processo de luta pela titulação das terras ocupadas por remanescentes de
quilombolas. Conceituar quilombo tem feito parte desse campo fértil de conflitualidades
em torno da ocupação, titulação e garantia de direitos sobre a terra ocupada.
No 2º capítulo, a abordagem gira em torno do registro da história de ocupação
do Rio Grande e da ancestralidade negra presente em sua memória e história, registro
necessário para o processo de regularização e reconhecimento da terra quilombola em
questão.
Baseando-se na memória oral dos moradores do Rio Grande sobre a provável
data e origem de ocupação destas terras, a intenção era fazer a pesquisa documental em
Arquivos, Cartórios e Institutos de Terras no intuito de investigar os registros
documentais da possível propriedade particular da terra do Rio Grande, em
contraposição à ancianidade da ocupação “quilombola” desse território.
A delimitação temporal da pesquisa documental foi compreendida inicialmente a
partir da segunda metade do século XIX, pois de acordo com a memória coletiva da
comunidade a ocupação dessas terras é superior a cento e cinqüenta anos. Essa memória
coletiva, perpetuada ao longo dos anos pela comunidade Rio Grande, servirá de base
para a o processo de garantia dos direitos constitucionais.
Cabe ressaltar que a pesquisa não girou somente em torno da relação constante
entre a história oral e as fontes documentais históricas; foi além, analisando as práticas
simbólicas desenvolvidas nos dias de hoje, que identificam os moradores do Rio Grande
enquanto “remanescentes quilombolas”.
Partindo da análise histórica documental e oral da comunidade do Rio Grande, a
proposta é contribuir para o debate sobre a efetivação e demarcação de territórios
quilombolas no Estado do Maranhão, na tentativa de alcançar um fim social, ligado
intimamente à possibilidade de inserção da comunidade, sujeito desta investigação, no
cômputo das políticas públicas específicas para este segmento étnico-social.
O terceiro e último capítulo traz como foco as dificuldades e irregularidades
encontradas pelas terras quilombolas no processo de reconhecimento e regularização
fundiária, conjugada com a apresentação da vida cotidiana do Rio Grande, envolvendo o
trabalho na roça, a estrutura educacional, o lazer, a saúde, dentre outros elementos
observados.
Através de um levantamento exploratório prévio foi identificada a ausência do
poder público nessa comunidade, o que se manifesta em elevado grau de pobreza e
exclusão social evidente, palco profícuo para articulação do movimento social. Muitas
dessas terras encontram-se localizadas em zonas críticas de conflito e tensão social, no
entanto percebe-se que tal realidade vivenciada suscita um sentimento de pertencimento
e identidade engendrada na própria conflitualidade de ocupação do território.
Partindo da interpretação de Fernandes, que discute a questão agrária baseando-
se na discussão sobre a conflitualidade e desenvolvimento territorial, a resposta para a
concentração da estrutura fundiária, e os processos de expropriação dos camponeses e
assalariados por diversos meios, é a luta, a reforma, a resistência na terra e a perspectiva
de superação da “questão agrária”. (FERNANDES, 2008, p.199).
A partir da compreensão de que este é um conflito por terra, onde comunidades
rurais negras desencadeiam uma luta constante por demarcação de seus espaços, a
titulação da terra propiciaria a busca por garantia de direitos a indivíduos que estão em
situação de exclusão e lutas por ações e políticas de reconhecimento.
Neste sentido é importante ressaltar como umas das diretrizes desse estudo as
relações entre o poder público e as demandas apresentadas pelas comunidades
quilombolas na atualidade, num movimento social específico, que tem a luta pela
regularização de seus territórios um dos seus principais focos.
O Maranhão, enquanto um espaço político, formalmente constituído, apresenta
uma intensa diversidade quanto ao uso e ocupação territorial. Do ponto de vista da
diversidade étnica tem sido território de disputa de nações indígenas, regionais e
quilombolas. Como resultado da luta pela garantia do direito constitucional da
propriedade da terra quilombola, têm-se atualmente no Maranhão vinte comunidades
que já regularizaram formalmente a titulação de seus territórios.
Entretanto, do total de mais de setecentas comunidades existentes no estado,
segundo levantamento atual, esse quantitativo demonstra que o número de terras
tituladas seria inexpressível diante da amplitude da demanda.
A comunidade do Rio Grande, povoado entendido pelos regionais como sendo
um território ocupado “por pretos”, possui mais de setenta famílias que se reproduzem
socialmente através do trabalho agrícola, da pesca e da criação de animais de pequeno
porte. Essas famílias ocupam esse território secularmente, onde se desenvolvem de
forma coletiva e mantém uma tradição particular que inclui manifestações culturais e
saberes locais: festas de santos, forró de caixa e outras práticas culturais não
sistematizadas. Diversos são os costumes e formas de vida das mesmas, porém algo lhes
é específico e fundamental: o usufruto comum da terra; fator que pode explicar a
resistência desses grupos até os dias de hoje.
2 REMANESCÊNCIA QUILOMBOLA: História, direitos e ressignificação.
Mil novecentos e oitenta e oito: A Lei Áurea comemorava seu centenário.
Completavam-se cem anos da resolução que havia decretado o fim da escravização no
Brasil. Uma trágica experiência de vida que havia assolado cerca de quinze milhões de
africanos que, arrancados de seus lugares de origem, constituíram-se como a principal
força de trabalho da formação social brasileira.
Dentre os grandes acontecimentos deste ano, acontecera a promulgação da
Constituição Cidadã, que apresentava no artigo 68 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) a garantia do direito territorial às comunidades
remanescentes de quilombos1. Em ano de “comemorações” pelo fim do regime
escravocrata e de reinvidicações em torno da Lei Áurea, que inaugurou formalmente um
novo status jurídico para a questão racial no Brasil, emergiam necessidades de
reparação do poder público para com os descendentes de africanos escravizados.
Essa reparação surgiria formalmente expressa no texto constitucional, no entanto
as discussões em torno desse direito permaneceriam “silenciadas” até o ano de 1995,
sete anos depois da promulgação da constituição, quando se comemorava o tricentenário
da morte de Zumbi dos Palmares. Neste ano, o tema dos quilombos, da rebeldia negra e
de “suas heranças”, começava a ganhar força e a fazer-se presente na imprensa, nos
debates políticos e nos meios acadêmicos, impulsionando assim, a mobilização de
muitos movimentos sociais na luta pela garantia de direitos às comunidades
“remanescentes quilombolas” (ARRUTI, 2006).
Um século depois da abolição formal da escravidão no Brasil, o termo quilombo
e suas significações ressurgiriam no campo das disposições legais, e em torno do texto
constitucional surgiam as indefinições, as ambiguidades e as críticas em torno da forma
como o artigo direcionou este direito, utilizando como base um conceito jurídico
construído na época colonial para designar quilombo.
O problema amplia-se justo nessa construção semântica e na apropriação de um
conceito histórico para dar conta de uma realidade atual, expressa na “remanescência” e
1 O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) garante que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
na permanência de caracteres do termo histórico. A discussão em torno do conceito de
quilombo e do seu uso histórico ao longo dos séculos havia ganhado impulso nos novos
olhares historiográficos acerca dos estudos sobre a escravidão no Brasil.
Pensando a escravidão sob um novo olhar, com foco na resistência, nas
negociações e na concepção de mundo dos próprios escravos, sujeitos desse complexo
sistema escravocrata, a historiografia começava a “revolucionar” e a inovar nas
produções acerca deste tema. O surgimento desses novos olhares sobre a escravidão e
sobre a luta pela “liberdade” (representada na figura dos quilombos) tornava-se
fundamental para a análise do texto constitucional. E nesse processo de
“ressignificação” e “inovação” das análises, a promulgação da Constituição Federal
Brasileira de 1988 surgia como expressão da força deste tema nos debates públicos
brasileiros, em especial pelo surgimento de novos sujeitos políticos: os remanescentes
quilombolas.
Almeida apresenta uma discussão coerente sobre este tema, com ênfase para o
texto constitucional e sua aplicabilidade, discutindo a sematologia do termo quilombo
em virtude do surgimento de novas identidades.
“Uma leitura possível é que os legisladores teriam partido do passado para chegar à idéia de quilombo e o trataram como mera “sobrevivência”, reeditando elementos da definição jurídica do período colonial (...). De categoria de atribuição formal, através da qual se classificava um crime, quilombo passa a ser considerado como categoria de autodefinição, provocada para reparar um dano” (ALMEIDA, 1996, p. 16, grifos do autor).
Se o uso histórico do conceito de quilombo havia surgido no Brasil para designar
sujeitos que fugiam à ordem e iam de encontro à lógica escravista de dominação, este
mesmo conceito havia sido reapropriado no texto constitucional como forma de garantir
um direito e reparar um dano histórico para com os afro-descendentes no Brasil.
Nessa perspectiva, o estudo de caso da terra quilombola do Rio Grande, no
município de Bequimão - MA, vem trazer à tona a discussão sobre o direito territorial
proposto pelo artigo 68, apresentando um “processo de recuperação e reenquadramento
de memórias até então recalcadas, e a revelação de laços históricos entre comunidades
contemporâneas e grupos de escravos que, de diferentes formas e em diferentes
momentos, teriam conseguido impor sua liberdade à ordem escravista” (ARRUTI, 2006,
p. 28).
Para que seja reconhecida como terra quilombola, a comunidade do Rio Grande
precisa apresentar ao Estado dados que comprovem essa “herança histórica para com a
opressão sofrida”. Entretanto, comprovar esse vínculo exigiria dos novos sujeitos
políticos um processo de autodefinição e da busca de uma nova identidade, refletida na
relação com um passado de escravidão; além do registro da ancianidade de ocupação do
território e de constantes relações aproximativas entre o quilombo histórico e o
quilombo contemporâneo, como se o uso do conceito conseguisse dar conta das plurais
situações atuais.
2.1 Os quilombos sob a ótica historiográfica: Permanências e rupturas
O processo de escravização compôs a história brasileira por mais de trezentos
anos e os números nos envergonham. Segundo dados apresentados por Gomes e Reis
(1996), estima-se que para o Brasil vieram perto de 40% dos africanos, quase metade do
número de africanos escravizados que chegaram às Américas. Homens e mulheres que
obrigados a abandonar o “mundo livre” seguiram viagem ao “mundo da escravidão”,
recepcionados com maus tratos, açoites, penas, fome e exploração do trabalho.
Esse sistema, no entanto, era complexo e permeado por relações de conflitos e
negociações constantes entre escravo e senhor; tais relações não foram unicamente de
dominação e submissão. Se o Brasil viveu mais de trezentos anos de escravidão, viveu
também a má digestão de conviver com sujeitos que nem sempre assistiram ao
empreendimento escravocrata como meros espectadores. Foram capazes de criar e
recriar estratégias necessárias para a sua “libertação”, e para a construção de uma
“história de luta pela liberdade”, a exemplo dos diversos quilombos existentes durante o
auge do regime escravocrata, e mesmo no seu período de declínio. Segundo Gomes e
Reis,
“Onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente. [...]. Houve, no entanto, um tipo de resistência que poderíamos caracterizar como a mais típica da escravidão – e de outras formas de trabalho forçado. Trata-se da fuga e formação de grupos de escravos fugidos.” (GOMES; REIS; 1996, p. 9).
Essa perspectiva tem acompanhado a lógica de escrita proposta pela
historiografia brasileira nas últimas duas décadas do século XX, que vem apresentando
estudos que visam ampliar as análises referentes à dualidade das relações entre escravos
e senhores. A idéia de “ressignificar” também esteve associada ao direito garantido no
artigo 68 da atual Constituição Federal.
Com a promulgação da nova Constituição Cidadã surgiram as discussões em
torno desse termo histórico. O termo “quilombo” nos possibilita uma gama variada de
interpretações a seu respeito e analisar essa categoria nos leva à percepção de um termo
que nem sempre foi encarado da mesma forma.
Justo por que o direito constitucional garante o território para os seus
“remanescentes” é que se fez necessário os debates sobre este termo, seu uso, conceitos,
formação e organização ao longo da história. Com a ampliação dos debates políticos e
acadêmicos, e da mobilização conjunta entre comunidades negras rurais e movimentos
sociais, o uso histórico do “quilombo” ganhou força e novos contornos.
A crítica à apropriação de um termo histórico, seguindo as concepções coloniais
e/ou imperiais para englobar novos sujeitos políticos e garantir a eles direitos históricos
de reparação surgiria assim que se fizesse perceptível a dificuldade de englobar num só
termo diversas possibilidades de situações. Em virtude de sua complexidade, fazia-se
necessário o redimensionamento do termo quilombo para abarcar a pluralidade de
comunidades negras rurais existentes no Brasil; ocupações que, sofrendo constantes
expropriações de suas terras ocupadas secularmente, hoje são categorizadas como
remanescentes quilombolas na tentativa de garantir a regularização de suas terras.
A formação dessas organizações sociais, e o uso do termo quilombo pelas
autoridades e pelos próprios grupos quilombolas foi, como veremos adiante, fruto de
uma relação estabelecida com o conceito do quilombo africano. No entanto, como
mostra Gomes e Reis, compôs a realidade das Américas onde vicejou a escravidão. Os
autores nos mostram os diversos nomes e lugares onde essas organizações sociais
tiveram repercussões:
“A fuga que levava à formação de grupos de escravos fugidos, aos quais frequentemente se associavam outros personagens sociais, aconteceu nas Américas onde vicejou a escravidão. Tinha nomes diferentes: na América espanhola, palanques, cumbes, etc.; na inglesa, maroons; na francesa grand
marronage (para diferenciar da petit marronage, a fuga individual, em geral temporária). No Brasil esses grupos eram chamados principalmente quilombos e mocambos e seus membros, quilombolas, calhambolas ou mocambeiros.” (GOMES; REIS; 1996, p. 10, grifos dos autores).
A primeira definição de quilombo enquanto categoria histórica demarca um
termo jurídico-formal. Em 1740, o Conselho Ultramarino havia definido quilombo
como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada,
ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele” (MOURA, 1994
apud ALMEIDA, 1996). O significado dessa definição abarcou as disposições legais
vigentes no período colonial e as leis provinciais postas em prática pelas políticas
repressivas do período imperial, permeando as produções históricas acerca do tema.
Segundo Almeida, “os elementos constitutivos da conceituação de quilombo
abrangeriam ações em grupo, que deliberadamente negariam a disciplina do trabalho,
localizadas às margens do circuito de mercado”. Sob essa ótica, o autor apresenta cinco
características que, para ele, sempre aparecem de forma combinada, como se fossem
partes integrantes de uma totalidade definitória de quilombo. Seriam elas: a) fuga; b)
quantidade mínima de fugidos; c) localização marcada por isolamento relativo – “parte
despovoada”; d) moradia consolidada ou não; e) capacidade de consenso traduzida
pelos “pilões” ou pela reprodução simples que explicitaria uma condição marginal aos
circuitos de mercado (ALMEIDA, 1996, p.13). O autor analisa essa representação
jurídica da seguinte forma:
“A representação jurídica se volta para enunciar o que estaria “fora” do mundo do trabalho legalmente instituído. Estabelece um divisor de águas, separando os lugares ermos, despovoados e com domínio absoluto da natureza, daqueles onde o processo e povoamento e colonização estabeleceu unidades produtoras orientadas pela política colonial. A menção aos “pilões” evidencia a classificação como crime das atividades de autoconsumo, que consolidariam, de maneira mais duradoura, pela capacidade reprodutiva, o ato de fuga, enquanto recusa dos mecanismos coercitivos de disciplina do trabalho e negação do império da grande propriedade monocultora” (ALMEIDA, 1996, p.13).
Algumas análises divergiam do conceito proposto pelo Conselho Ultramarino,
mas continuavam a apresentar permanências. Em fins do século XVII alguns cronistas
coloniais destacavam a resistência quilombola e as dificuldades para erradicá-las.
Segundo a análise de Gomes e Reis (1996), os cronistas abordavam os quilombos em
suas escritas principalmente para exaltar o poder que as autoridades tinham de reprimir
essas organizações “subversivas”. O Quilombo dos Palmares, por exemplo, teria lugar
nas linhas da história militar no Brasil; no século XIX poucos seriam os avanços na
escrita sobre este tema. E a partir dos anos 30 do século XX é que surgiriam reflexões
mais sistemáticas relativas aos quilombos nos estudos afro-brasileiros.
Pensar o “quilombo” utilizado na contemporaneidade nos remete a reflexões
condizentes e necessárias para a compreensão de sua historicidade, tanto no seu uso pela
historiografia, quanto pelas definições jurídicas históricas e atuais. Primeiro poderíamos
nos ater à gênese do seu uso, muito bem expressa na análise travada por Munanga sobre
a origem e o histórico do quilombo em África. O autor apresenta um dado de suma
importância, pois dificilmente se vê nas análises históricas e historiográficas a presença
da relação deste termo com seu lugar de origem e as situações nas quais surgiu.
Segundo levantamento histórico feito por ele,
“O quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos de línguas bantu (Ki-lombo, aportuguesado Qui-lombo). Sua presença e seu significado no Brasil tem haver com alguns ramos desses povos bantu cujos membros foram trazidos e escravizados nesta terra. Trata-se dos grupos Lunda, Ovimbundu, Mbundu, Congo, Imbangala, etc... cujos territórios se dividem entre Angola e Zaire. Embora o quilombo (Ki-lombo) seja uma palavra de língua umbundu, de acordo com Joseph C. Miller, seu conteúdo enquanto instituição sócio-política e militar é resultado de uma longa história envolvendo regiões e povos aos quais já me referi. É uma história de conflitos pelo poder, de cisão dos grupos, de migrações em busca de novos territórios e de alianças políticas entre grupos alheios” (MUNANGA, 2001, p. 21).
Essa compreensão é fundamental para entendermos o sentido da formação dos
quilombos no Brasil. Sob a perspectiva de permanências e comparações, Munanga
esclarece sobre as adaptações e aproximações que possivelmente aconteceram no Brasil:
“O quilombo brasileiro é sem dúvida uma cópia do quilombo africano reconstruído pelos escravizados para se opor a uma outra estrutura escravocrata, pela implementação de uma outra estrutura política na qual se encontraram todos os oprimidos (...). Imitando o modelo africano, eles transformaram esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os oprimidos da sociedade: negros, índios e brancos, prefigurando um modelo de democracia pluriracial que o Brasil ainda está a buscar”. (MUNANGA, 2001, p. 30).
Analisar a escrita de Munanga e as aproximações que o autor faz entre o
quilombo africano e o quilombo brasileiro nos remete à outra análise historiográfica,
discutida por Arruti em sua obra sobre o estudo de caso do quilombo alagoano
Mocambo.
Pegando o fio de discussão do mesmo, poderíamos dizer que a análise de
Munanga aproxima-se de uma corrente historiográfica voltada para o viés culturalista
(denominada por Arruti como resistência cultural). Tendo como tema central a
persistência ou a produção de uma cultura negra no Brasil, alguns autores tentariam em
suas escritas aproximar, ou mesmo encontrar “africanismos” e “sobrevivências
africanas” no modo de vida dos quilombos brasileiros, como expressão maior de
resistência cultural (ARRUTI, 2006).
Este tema teria surgido na primeira década do século XX, quando Nina
Rodrigues em 1905 caracterizou Palmares como uma forma de persistência da África no
Brasil (ARRUTI, 2006, p. 72). Outros nomes da historiografia brasileira, marcadamente
reconhecidos por estudos pioneiros sobre quilombos no Brasil, seguiriam os estudos de
Nina Rodrigues e se destacariam na historiografia propondo uma escrita com viés
culturalista. Entre eles poderíamos destacar Arthur Ramos, Edison Carneiro e em
seguida Roger Bastide, em meados do século XX, cada autor propondo especificidades
e análises teóricas no sentido de ver o quilombo “como um projeto restauracionista, no
sentido de que os fugitivos almejariam restaurar a África neste lado do Atlântico”
(GOMES, REIS, 1996, p.11).
Segundo essa corrente, “a organização social dos aquilombados era identificada
a um esforço “contra-aculturativo”, uma resistência à aculturação européia a que eram
submetidos os escravos nas senzalas” (GOMES, REIS, 1996, p.11). Esses estudos
foram e continuam a ser de suma importância para a historiografia; ainda que nas
últimas duas décadas do século XX as produções históricas apresentem novos olhares,
não deixaram, portanto, de apresentar permanências para com os paradigmas propostos
pelos autores dessa corrente.
As análises sobre os enfoques mais recorrentes nos estudos sobre quilombos vão
além do viés culturalista. Ainda segundo a discussão feita por Arruti, e também por
Gomes e Reis, os estudos sobre quilombos enfatizaram também, em meados do século
XX, o caráter da resistência política, buscando identificar as formas pelas quais as
classes populares se comportaram frente à ordem dominante, com foco para as relações
de poder representadas pelos quilombos. Os estudos dos quilombos brasileiros sob essa
perspectiva surgem dos protestos políticos e alguns intelectuais marxistas, como
Aderbal Jurema, escreveriam sobre revoltas escravas como exemplificação da luta de
classes no Brasil (GOMES, REIS, 2006, p. 12).
Nesse sentido, surgem os estudos de Clóvis Moura, José Alípio Goulart e Décio
Freitas, e mantêm-se algumas análises propostas por Roger Bastide e Edison Carneiro,
este último teria suas escritas influenciadas pela sua forte ligação com o Partido
Comunista Brasileiro, propondo uma interpretação classista da luta de Palmares. Muitos
desses estudos visavam romper a idéia propagada nos anos 30 por Gilberto Freyre, de
que teria existido no Brasil uma “escravidão romântica”, permeada por relações
escravistas “harmoniosas”. Se as análises revisionistas propostas pela “escola paulista”
(incluem-se aqui Octavio Ianni, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso)
havia enfatizado o processo de “coisificação” do escravo, limitando as análises sobre a
resistência desses sujeitos políticos, os autores que abordaram a questão da resistência
política trataram de enfatizar tal resistência.
Em fins da década de 1970 e início da década de 1980 o quilombo seria
novamente reapropriado pelo movimento negro brasileiro, como fiel representante da
resistência negra. As referências desse “uso político” dos quilombos, destacadas por
Arruti, seria primeiramente representada pela criação do Grupo Palmares, em Porto
Alegre-RS, na redescoberta de Palmares como evento histórico representativo da “raça
negra”, em 1971 (ARRUTI, 2006, p. 76). Em seguida, o autor destaca Abdias do
Nascimento, que publicou em 1980 seu livro intitulado O Quilombismo. Dando um
caráter “histórico-humanista” ao sentimento e à experiência quilombola, Abdias propôs
que:
“o ‘quilombismo’ fosse adotado como um projeto de ‘revolução não violenta’ dos negros brasileiros, que teria por objetivo a criação de uma sociedade (o ‘Estado Nacional Quilombista’) marcada pela recuperação do ‘comunitarismo da tradição africana’, aí incluída a articulação dos diversos níveis de vida com vistas a assegurar a realização completa do ser humano e a propriedade coletiva de todos os meios de produção” (ARRUTI, 2006, p.76).
As análises mais recentes sobre quilombos e escravidão no Brasil, registrados
nas décadas de 1980 e 1990, surgiriam com a perspectiva de ampliar os olhares e as
concepções sobre este fenômeno histórico. Amplas não apenas no sentido de superar as
propostas historiográficas que enfatizavam a “coisificação do escravo”, as relações de
“dominação e submissão”, ou mesmo a busca por africanismos – expressos na
problemática cultural - e a resistência política, fruto de uma influência marxista. Para
Gomes e Reis, esses novos olhares,
“Renovaram a discussão do fenômeno por que desistiram da busca frenética de sobrevivências africanas e, ao mesmo tempo, da rigidez teleológica do marxismo convencional, atualizando o debate a partir de novas perspectivas da historiografia recente, em particular aquela que vem inovando nas últimas três décadas os estudos da escravidão dentro e fora do país. Estudos que, de resto, muito devem à renovação da historiografia marxista, que procurou incorporar a seu universo de preocupações, via antropologia social, os aspectos simbólicos e rituais da vida em sociedade, contextualizando-os historicamente. Mas, acima de tudo – e ponha ênfase nisso – , reflete-se nesses novos estudos a preocupação pela pesquisa documental, com a descoberta e análise de fontes manuscritas e orais que ampliam bastante nosso conhecimento sobre quilombos em várias regiões do Brasil e apontam para uma complexa relação entre os fugitivos e os diversos grupos da sociedade em torno de nós” (GOMES; REIS, 1996, p. 13-14).
Em fins da década de 80, o artigo 68 dos ADCT recolocou em cena o tema dos
quilombos no Brasil, agora sob a pauta de pleitear um direito tardio, se levarmos em
considerações todos os danos e consequências causadas aos afro-descendentes
brasileiros. Ser “negro” neste país significava, entre muitos fatores, sofrer os danos
discriminatórios causados pela “herança escrava”, ora representado pelos estereótipos
criados por essa descendência.
A abolição da escravatura trouxe consigo uma contradição expressa na forma de
inserção do ex-escravo no mundo do trabalho livre. No entanto, mediante todas as novas
barreiras e forma de dominação em novas bases, o afro-descendente manteve-se
marginalizado e inferiorizado, e o direito constitucional visava garantir a titulação das
terras ocupadas pelos remanescentes dos africanos escravizados. Ressignificar os
conceitos para abarcar a diversidade seria uma das alternativas encontradas para o
problema gerado pelo texto legal, permeado de ambiguidades. Em função disso, os
problemas em torno dessa “remanescência” não tardariam em surgir.
2.2 Ressignificando para garantir: O texto constitucional e as novas propostas
O texto exposto na Constituição Federal Brasileira apresentava a garantia de um
direito: o reconhecimento e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes
quilombolas. Este mesmo texto trazia à tona uma série de interrogações; parte integrante
dos trâmites burocráticos que pautariam a discussão e concretização em torno de um
direito parcialmente garantido: Quais os critérios que definem uma comunidade
quilombola? Como as comunidades teriam conhecimento deste direito se a maioria
encontra-se em povoados rurais onde o Estado parece não existir e não possuir nenhuma
finalidade concreta? Como garantir tal direito a sujeitos sociais que não têm
conhecimento de possuí-lo?
Mais do que as indefinições de como adquirir a conquista desse direito e de
como fazer com que os seus possuidores tomassem conhecimento de sua existência, a
questão central – inicialmente - surgiria em torno do termo quilombo, e da
remanescência expressa no caráter de permanências e preservação de uma organização
social teoricamente pertencente há um tempo pretérito.
Como vimos na discussão historiográfica apresentada, o termo quilombo foi
objeto de diversos estudos sobre a resistência escrava no Brasil. Os novos escritos, sob
novos olhares e perspectivas, ainda que permeados por permanências e rupturas dos
antigos paradigmas, serviriam de base para as novas concepções, instigadas pelas
“indefinições” do artigo 68 do ADCT. Nesse sentido, agora como construção jurídica, o
termo quilombo acabaria sendo encarado como uma conversão simbólica do próprio
quilombo como metáfora.
Para Almeida, o fato do termo quilombo, a partir de 1988, deixar de ser encarado
como representante de um crime contra a ordem dominante, para ser atribuído como
categoria de autodefinição, já implica consequentemente num processo de
ressemantização de seu significado. A mudança é expressa, inicialmente, na redefinição
de quem fala. Se no conceito histórico de quilombo os sujeitos sociais que compunham
essa organização apenas eram relatados pela fala oficial, geralmente daqueles que os
reprimiam, o direito constitucional de 1988 propunha uma inversão dos discursos.
Apesar da mudança de posição de onde é produzida esta categoria, encará-la como parte
de uma época pretérita continuaria a ser um fator recorrente (ALMEIDA, 1996, p.17).
Poderíamos inserir nessa discussão o dado apresentado por Arruti, que analisa a
gênese do direito quilombola como uma construção jurídica fruto do improviso e do
impasse entre seus segmentos criadores no momento de sua formulação. Para o autor:
“É fundamental, porém, compreender que os formuladores da lei não dispunham de elementos suficientes para prever seus efeitos criadores. A intenção do legislador, fantasmagoria e recorrentemente citada nos textos de hermenêutica jurídica, dificilmente pode ser reivindicada como chave de
compreensão dessa nova realidade. Ao tentarmos dar conteúdo sociológico a essa suposta “intenção” no caso do “artigo 68”, encontramos pressupostos obscuros e confusos, um conhecimento muito limitado da realidade que nele se faria representar e uma discussão que, em momento algum, apontou para o futuro, mas sempre para o passado” (ARRUTI, 2006, p. 67).
O mesmo autor nos apresenta dados significativos para a compreensão desse
impasse. Partindo da idéia divulgada por um constituinte integrante da Comissão de
Índios, Negros e Minorias, “o artigo 68 dos ADCT teria sido incorporado à Carta ‘no
apagar das luzes’, em uma formulação ‘amputada’ e, mesmo assim, apenas em função
de intensas negociações políticas levadas por representantes do movimento negro do
Rio de Janeiro” (ARRUTI, 2006, p.67).
O Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN/MA), em sua cartilha de
comemoração pelos vinte anos do Projeto Vida de Negro (PVN), nos diz que o
CCN/MA, e o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), como apoio
da Associação Afro-Brasileira do Rio de Janeiro, articularam-se e na 1ª Convenção
Nacional de Negro pela Constituinte (realizada em Brasília/DF, no dias 26 e 27 de
agosto de 1986), convocada pelo Movimento Negro Unificado (MNU), apresentaram a
proposta de uma norma que garantisse os direitos das comunidades negras rurais no
Brasil.
Segundo dados do próprio CCN/MA, essa proposta constitucional teria sido
encaminhada à Deputada Federal Constituinte Benedita da Silva, que a teria apresentado
ao Congresso Nacional Constituinte. Depois de aprovada, tal proposta teria dado origem
ao artigo 68 do ADCT, em 05 de outubro de 1988.
Entretanto, Arruti nos apresenta um relato de um militante do movimento negro
no Maranhão – Ivo Fonseca – que teria sido consultado na época da introdução do
artigo na Carta, mas não pôde contribuir com nenhuma sugestão. “Assessores da
deputada Benedita da Silva teriam entrado em contato com o Centro de Cultura Negra
para recolher propostas, ‘mas foi coisa muito de repente [e] eu mesmo não tinha
nenhuma discussão preparada para isso.” A seguir, o autor apresenta um dado de
interessante análise:
“Segundo Flávio Jorge, do Fórum Estadual de Comunidades Negras de São Paulo, a militância negra na época tinha, de fato, mais dúvidas que certezas com relação ao artigo e o seu texto final teria sido resultado de um esgotamento do tempo e das referências de que o movimento dispunha para o
debate, mais do que de qualquer consenso. A decisão teria passado, principalmente, pela avaliação de que seria necessário lançar mão do ‘momento propício’, mesmo que não se soubesse ao certo o que se estava fazendo aprovar. Tanto o desconhecimento sobre a realidade fundiária de tais comunidades por parte dos constituintes quanto o contexto de comemoração do Centenário da Abolição (“nós vinculamos que quem votasse contra o “artigo 68” poderia levar a pecha de racista”) formaram o caldo ideológico que permitiu o surgimento do “artigo 68”. Só uma coisa parecia estar fora de discussão, segundo o deputado Luís Alberto (PT/BA) – coordenador nacional do MNU: que o “artigo 68” deveria ter um sentido de reparação dos prejuízos trazidos pelo processo de escravidão e por uma abolição que não foi acompanhada por nenhuma forma de compensação, como o acesso à terra” (Apud ARRUTI, 2006, p. 68, grifos do autor).
A partir desse dado, torna-se “compreensível” o porquê das ambiguidades
presentes no texto constitucional. Poderíamos compreender então que metaforizar o
termo quilombo permitiu que sua simbologia pudesse ganhar voz no plano nacional e
oficial, sem fazer inicialmente distinções entre sua contemporaneidade ou sua
historicidade, na forma de um artigo constitucional.
O consenso construído e reproduzido pelas autoridades, pela historiografia e
pelo próprio imaginário social a cerca dos quilombos começava a se desfazer com a
atualização do termo quilombo. Para Almeida, este é o ponto: “O reconhecimento legal
do que está (esteve) “fora”, do que sobrou, do “remanescente” ou do que perdeu o poder
de ameaçar” (ALMEIDA, 1996, p. 17).
“.Cada grupo tem sua estória e construiu sua identidade a partir dela. Existe, pois, uma atualidade dos quilombos deslocada de seu campo de significação “original”, isto é, da matriz colonial. Quilombo se mescla com conflito direto, com confronto, com emergência de identidade para quem enquanto escravo é “coisa” e não tem identidade, “não é”. O quilombo como possibilidade de ser, constitui numa forma mais que simbólica de negar o sistema escravocrata. É um ritual de passagem para a cidadania, para que se possa usufruir das liberdades civis. Aqui começa o exercício de redefinir a sematologia, de repor o significado, frigorificado no senso comum” (ALMEIDA, 1996, p.17)
O direito constitucional exige como pré-requisito de reconhecimento enquanto
remanescente quilombola o critério da autodefinição. Anteriormente, os próprios
camponeses de ascendência escrava – africana ou indígena – foram “treinados” para
negar a existência do quilombo, que comprometeria a posse de suas terras e tornava
ilegais suas pretensões de direito. O que antes era negado, agora poderia ser positivado.
Nesse sentido, Almeida diz que:
“O artigo 68 resulta por abolir realmente o estigma (e não magicamente); trata-se de uma inversão simbólica dos sinais que conduz a uma redefinição do significado, a uma reconceituação, que tem como ponto de partida a
autodefinição e as práticas dos próprios interessados ou daqueles que potencialmente podem ser contemplados pela aplicação da lei reparadora de danos históricos” (ALMEIDA, 2006, p.17).
A autodefinição apareceria, posteriormente, como um avanço para o processo de
regularização de terras quilombolas. O Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003
regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
No parágrafo 1º, do artigo 2º, o decreto determina que a caracterização dos
remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da
própria comunidade. 2
A identidade social e étnica, agregada à antiguidade de permanência no território
e à reprodução de um modo de vida característico, incluindo manifestações culturais e a
história comum do grupo são fatores relevantes para o processo de identificação dos
remanescentes quilombolas, e o decreto 4887/03 foi criado na tentativa de viabilizar o
processo de regularização, e acelerar a regularização e titulação das terras quilombolas.
Essa discussão, portanto, não poderia ser encerrada sem antes fazer menção ao
uso do termo “remanescentes”, o mesmo utilizado para descrever a situação das
comunidades indígenas no Nordeste. Estabelecendo laços com o passado de
determinados grupos sociais, buscando aproximações com os antigos quilombos, ou
mesmo partindo do pressuposto “do que sobrou”, o termo “remanescentes”, no caso do
artigo 68, “surge para resolver a difícil relação de continuidade e descontinuidade com o
passado histórico, em que a descendência não parece ser um laço suficiente” (ARRUTI,
2006, p. 81). O uso de uma categoria histórica (quilombo), agregada a um termo de
origem estatal (remanescente), ganharia papel importante no cenário constante das
classificações, sendoapresentada por Arruti da seguinte forma:
“(...) o termo “remanescente” introduz um diferencial importante com relação ao outro uso do termo quilombo, presente na Constituição brasileira de 1988. Nele, o que está em jogo não são mais as “reminiscências” de antigos quilombos (documentos, restos de senzalas, locais emblemáticos como a Serra da Barriga etc.) do artigo 215 (Seção II “Da Cultura”), mas “comunidades”, isto é, organizações sociais, grupos de pessoas que “estejam ocupando suas terras”, como diz o “artigo 68”. Mais do que isso, diz respeito, na prática, aos grupos que estejam se organizando politicamente para garantir
2 BRASIL. Decreto-lei n°. 4887, de 20 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto/2003/D4887.htm.
esses direitos, e por isso reivindicando tal nominação por parte do Estado. Portanto, o que está em jogo em qualquer esforço coletivo pelo reconhecimento oficial como comunidade remanescente de quilombo são sempre (até o momento) os conflitos fundiários em que tais comunidades estão envolvidas, e não qualquer desejo memorialístico de se afirmar como continuidades daquelas metáforas da resistência escrava e do “mundo africano entre nós”, que foram os quilombos históricos” (ARRUTI, 2006, p.81-82, grifos do autor).
Partindo do caráter de remanescente e pensando na garantia territorial expressa
no artigo 68, o conceito de quilombo ganha um incentivo a mais para o processo de
atualização do seu conceito. Este termo teria contribuído de forma significativa para os
novos olhares sob os quilombos e sua historicidade, ainda que sua compreensão seja
aparentemente evidente.
Um caráter importante apresentado por Almeida seria a relação constante entre
“terras de preto” e “remanescentes de quilombos”, constantemente encarados como
grupos inevitavelmente associados. Essa aproximação constante poderia ter sido fruto
do caráter repressivo que marcou o termo quilombo. “Admitir que era quilombola
equivalia ao risco de ser posto à margem. Daí as narrativas míticas: terras de herança,
terras de santo, terras de índio, doações, concessões e aquisições de terras”.
(ALMEIDA, 1996, p.17, grifos do autor).
Hoje, as comunidades que pleiteiam o direito constitucional de garantir a
titulação de suas terras apresentam algumas dessas denominações: “terras de preto,
terras de santo, terras comuns”. O uso dessas categorias no Maranhão é constante entre
as comunidades negras rurais e as formas de tentativa de comprovação da ancianidade
do território, exigida pelo Estado para o reconhecimento e titulação oficial de suas
terras, também se baseiam nessas nomenclaturas.
As novas propostas conceituais acerca do conceito de quilombo vêm abarcar a
complexidade e diversidade de características das terras que podem ser reconhecidas
como tal. “O conceito de quilombo não pode ser territorial apenas ou fixado num único
lugar geograficamente definido, historicamente ‘documentado’ e arqueologicamente
‘escavado’” (ALMEIDA, p.18, grifos do autor).
De acordo com muitos dos historiadores, antropólogos e cientistas em geral,
envolvidos nesse processo identitário e territorial em torno dos remanescentes
quilombolas, já sob a perspectiva dos novos olhares e sob a concordância da grande
diversidade de processos, incluem na caracterização dos quilombos não apenas o
binômio fuga/isolamento, com ocupação de terras livres, mas também as heranças,
doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, a
permanência nas grandes propriedades, engenhos e casas-grandes, e ainda a compra de
terras durante o regime de escravidão e após sua “extinção”.
Reconhecer uma comunidade como quilombola e garantir a ela a posse legal de
suas terras, costumeiramente envolvidas em conflitos fundiários e lutas constantes pela
posse da terra, travadas em geral com grupos dominantes (geralmente fazendeiros e
grandes empresas estatais e privadas) requer uma série de critérios e procedimentos.
Garantir aos sujeitos de direito a regularização de suas ocupações seculares exige desses
“novos sujeitos políticos” trâmites burocráticos complexos, como em geral costumam
ser, e muitas vezes inviabilizam o processo.
O estudo de caso objeto desta pesquisa tem sido um fiel representante de toda a
complexidade que envolve esse tema. Acompanhar a comunidade quilombola do Rio
Grande na construção de uma identidade tanto “étnica” quanto de “luta” para alcançar
um fim, tem ajudado a entender o processo de reconhecimento dos sujeitos de direito
dessa terra. E além disso: fez-me realizar uma pesquisa (ainda inacabada) de registro e
(re)construção da história da comunidade e de seus moradores, me permitindo percorrer
a memória e narrar a história desse lugar, visando cumprir um dos critérios de
reconhecimento estabelecidos pelo Estado.
3 POR UMA HISTÓRIA DESTE LUGAR: A Comunidade do Rio Grande segundo a memória de “seus filhos”3.
Construir ou reconstruir a história comum dos moradores do Rio Grande
significa muito mais do que a tentativa de transformar em texto escrito os relatos orais
desta comunidade; mais do que a tentativa de compreensão de uma memória coletiva
construída ao longo dos anos; e muito além da busca incessante de dados que dêem
sentido aos interesses desta pesquisa.
Escrever ou reescrever a história comum de um povo, seja ele negro, branco,
indígena, imigrante, vai além do desejo de se fazer história através de palavras,
interpretações, compreensões e indagações; neste caso, (re) escrever a história da
comunidade do Rio Grande parece, portanto, se concretizar em um objetivo real: a
garantia de um direito, e a consequente importância deste registro para o
reconhecimento desta terra como terra quilombola.
Longe do intuito de escrever este texto de forma romântica, como expressão do
reconhecimento da opressão histórica vivida pelos afro-descendentes no Brasil, o estudo
de caso da terra quilombola em questão parte de um pressuposto bem definido: os
procedimentos de Certificação de Comunidades Quilombolas e os critérios
estabelecidos pela Fundação Cultural Palmares (FCP)4.
Esta mesma fundação, criada em 1988 para dar apoio a essas comunidades,
define os remanescentes quilombolas de acordo com o Decreto 4887/03: “os grupos
ético raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria,
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com formas de resistência à opressão histórica sofrida”. 5
Um dos primeiros procedimentos destacados pela FCP diz respeito à
necessidade de organização da comunidade em uma Associação legalmente constituída.
O Rio Grande já possuía uma Associação de Moradores, que foi “reativada” para essa
3 Cf. ANEXO A. 4 Entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura, instituída pela Lei Federal nº. 7.668, de 22.08.88, tendo o seu Estatuto aprovado pelo Decreto nº. 418, de 10.01.92, cuja missão corporifica os preceitos constitucionais de reforços à cidadania, à identidade, à ação e à memória dos segmentos étnicos dos grupos formadores da sociedade brasileira, somando-se, ainda, o direito de acesso à cultura e a indispensável ação do Estado na preservação das manifestações afro-brasileiras. 5 Cf. nota 2.
necessidade; devendo esta mesma associação apresentar à FCP Ata da Assembléia
convocada para o processo de autodefinição de “remanescentes de quilombos”.
Partindo desta definição exige que as comunidades remetam à FCP como
procedimento de certificação, caso as comunidades possuam, dados, documentos ou
informações, tais como fotos, reportagens, estudos realizados, entre outros que atestem
a história comum do grupo ou suas manifestações culturais, ou em qualquer caso,
apresentação de relato sintético da trajetória comum do grupo (história da
comunidade).6
Foi partindo desses pressupostos que o povoado do Rio Grande, distante cinco
quilômetros da sede do município de Bequimão, no Litoral Ocidental Maranhense,
começara a ganhar “vida” e a fazer parte da produção historiográfica maranhense e
brasileira, agora como personagem central de uma história, que em vez de vislumbrar o
processo de escravidão sofrida, pretende contribuir para a tentativa de reparar os danos
causados pela escravidão, que fizeram dos descendentes de africanos escravizados
sujeitos oprimidos pela desigualdade social no mundo de hoje.
No início da leitura de dois grandes nomes da historiografia brasileira, João José
Reis e Eduardo Silva, em análise da resistência escrava e das possíveis negociações
estabelecidas no Brasil escravocrata, deparei-me com a seguinte afirmação: “o
personagem central deste livro é o escravo”. 7
Tão longe e tão perto da escrita sobre escravidão, o meu intuito era escrever não
sobre o escravo, mas sobre a posteridade temporal deste termo, concretizada ou não na
necessidade de “comunidades negras rurais” se autoatribuírem enquanto remanescentes
de africanos escravizados e poderem assim garantir a titulação de suas terras, ocupadas
tradicionalmente.
De acordo com as leituras, os estudos de caso e as análises da luta por
legalização de terras quilombolas no Brasil, em especial no Maranhão, um fator pareceu
6 Portaria nº. 98 de 26 de novembro de 2007, da Fundação Cultural Palmares, que trata sobre os Procedimentos de Certificação de Comunidades Quilombolas, por Edvaldo Mendes Araújo. (<http//: www.cultura.gov.br>). 7 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
se sobressair dentre as minhas interpretações e indagações: a construção da identidade
quilombola surgia a partir da necessidade da luta pela regularização de suas terras.
Ao contrário de muitos outros casos onde essa identidade foi construída como
forma de garantir a terra em constantes disputas e conflitos entre empresas, grileiros,
latifundiários e instituições diversas, o caso do Rio Grande surgiu sem muitos conflitos
aparentes (ainda que os próprios moradores tenham relatado a existência de alguns
conflitos em um passado próximo).
Em fins de 2007, em reunião com professores do município de Bequimão, a
orientadora desta pesquisa estabeleceu o primeiro contato com um “filho” do Rio
Grande, seu Agnaldo, de 57 anos, também professor de ensino fundamental da única
escola existente na comunidade.
Em conversa informal sobre a quantidade de comunidades quilombolas na
região, próximo ao município de Alcântara (espaço de referência no cenário nacional de
comunidades quilombolas), seu Agnaldo comentou sobre a história de seu povoado,
suas características, o uso da terra comum, história da ocupação, e a herança negra
presente na cor e na cultura daquele povo.
Iniciavam-se os primeiros passos a caminho da titulação comum da terra do Rio
Grande. E meu primeiro contato surgiria por volta de um ano depois, quando fui
convidada a conhecer a comunidade, em razão do interesse por questões agrárias e por
temas referentes à luta pela terra.
De início surgem as indefinições, as lacunas, as interrogações. Seria o Rio
Grande uma comunidade remanescente de quilombo? O primeiro olhar parece querer
captar muitas informações, reconhecer espaços, demarcar territorialidades, perceber
identidades e tentar encontrar as respostas para muitas perguntas. Um aspecto era
inegável: o Rio Grande começava a se mobilizar, focalizando no objetivo de alcançar a
titulação de suas terras, e a encaminhar os processos burocráticos necessários para o
reconhecimento perante FCP.
Para isso a comunidade precisava comprovar a história comum do grupo e a
ancestralidade negra, fatores que a definiriam como terra quilombola. A reafirmação de
uma identidade baseada na necessidade do grupo era cada vez mais clara vista sob o
meu olhar. E a história do Rio Grande segundo a memória de seu povo começava a
ganhar força na oralidade e a se render à escrita, necessária para a titulação desta terra,
ainda sob o risco de não alcançar este fim, caso não atenda aos critérios estabelecidos
pelo Estado.
3.1 A preciosidade da “imprecisa” história oral
Enquanto buscava a resposta de tantas inquietações iniciavam-se as pesquisa em
Arquivos, Cartórios, Institutos de Terras e o principal: começavam-se os registros dos
relatos orais, tão importantes para a construção e desenvolvimento deste trabalho. Eu
diria que a oralidade é a peça fundamental desta escrita. Os relatos dos moradores do
Rio Grande sobre a provável data de ocupação destas terras são o suporte da pesquisa
documental.
Como a comunidade seria possivelmente detentora do direito territorial
quilombola, procedi a investigação dos registros documentais da possível propriedade
particular, em contraposição à ancianidade da ocupação “quilombola” desse território,
sustentada na memória coletiva do Rio Grande, transmitida oralmente por seus “filhos”.
Essa é uma nomenclatura usada comumente por alguns dos moradores do Rio Grande
ao exporem o sentimento de pertença a essa terra; em geral Seu Agnaldo usa o termo
“filhos do Rio Grande” como forma de identificar determinados moradores que,
nascidos ou não naquela terra, são parte da história do lugar e acabam se identificando
enquanto tal.
Longe da tentativa de comprovar a existência ou não de documentos sobre a
posse particular da terra baseada na oralidade; ou ainda que pareça mera contestação da
oralidade em razão da existência de documentos que contestem a ocupação e
propriedade coletiva da terra; a idéia aqui é ir além da perspectiva de comprovação,
fazendo um diálogo constante entre o texto escrito e o oral, compreendendo as
limitações e abrangências de ambos, e as lacunas conseqüentes de tal aproximação.
Em sua escrita sobre a história oral, Albuquerque Júnior apresenta uma
discussão coerente sobre a dualidade oral/escrito, quando afirma que:
“O oral não deve ser oposto dicotomicamente ao escrito, como duas realidades distintas e distantes, mas como formas plurais que se contaminam permanentemente, pois haverá sempre um traço de oralidade riscando a escritura e as falas sempre carregarão pedaços de textos”. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 230).
Em conversa com os moradores sobre os possíveis “donos”, a possível ocupação
e o tempo em que ocupam aquelas terras, as informações coletadas são analisadas de
forma que os dados possam ajudar na busca de um possível título “documental” da
terra, ou na complexa descoberta de encontrar os sujeitos de direito daquele território.
No entanto, independente dos títulos encontrados, dos documentos registrados e da
memória coletiva do Rio Grande, oral e escrito são “formas plurais que se
‘contaminarão’ permanentemente” nesta escrita, agindo sempre como complementares,
de forma interpretativa e longe de alcançar “uma verdade”, mas trabalhando sempre
com os diversos discursos construídos para a obtenção de um fim, levando em conta os
silêncios, o “não dito”, e valorizando-os.
“(...)Esse ethos do silêncio, que marca uma forma de se relacionar com o passado, reveste de grande cuidado o trabalho com a memória: ele não pode ser visto como um simples “resgate” ou compilação de histórias que estejam prontas para revelarem o que “realmente aconteceu”. A memória é produto do processo de mobilização, ao mesmo tempo em que o ato de lembrar e instituir tal memória é parte desse processo. Como sugere Becker (1996), a história oral está incluída naquilo que Jaques Ozouf chamou de “arquivos provocados”, isto é, fontes que precisam ser arrancadas ou extraídas de seu esquecimento por um ato de vontade” (ARRUTI, 2006, p. 216).
Em leitura sobre as especialidades e abordagens do campo da história, Barros
define a história oral como “uma subdivisão historiográfica relacionada ao tipo de
fontes com a qual o historiador trabalha, neste caso os testemunhos orais”, enfatizando
ainda que a história oral é muito mais um método do que um enfoque teórico, ou um
caminho temático (BARROS, 2008, p.132).
Esta tem sido uma discussão recorrente no campo da história, talvez por que a
história oral tenha começado a ganhar força dentro da historiografia, que por muito
tempo criticou o uso deste “método”, principalmente em torno da crítica recorrente à
história do tempo presente, ou da contemporaneidade, em contraposição ao uso do
documento com possuidor dos fatos e da “verdade” tal como aconteceu num tempo
“passado”.
Muito ainda se discute sobre a imprecisão da história oral, sobre as incógnitas
que ela parece suscitar, ou mesmo sobre as “desconfianças” do seu uso em produções
historiográficas. Em paralelo ao uso do texto escrito e da opção pela oralidade, Barros
traz uma abordagem significativa:
“A imprecisão do oral não nos deve enganar; também existem espaços dissimulados que se escondem na documentação escrita, contornando silêncios e falseamentos, revelando segredos que o próprio autor do texto não pretendia revelar, mas que escapam através da linguagem, dos modos de expressão, da súbita iluminação que se espalha pelo texto quando o confrontamos com o outro nesta prática que é hoje chamada de ‘intertextualidade’. Sem falar nas múltiplas vozes, na polifonia que pode ser extraída de um texto (...)” (BARROS, 2008, p.133).
Depois de documentos lidos, procuras em registros da época, análises de relatos
orais e escutas repetidas das gravações por inúmeras vezes para compreensão de uma
fala, é hora de selecionar, fazer escolhas e usar os materiais colhidos para alcançar os
meus próprios interesses, definidos para a escrita deste texto.
Fazendo das palavras de Albuquerque Júnior as minhas, afirmo que após “Horas
de entrevistas registradas, horas de escuta atenta, horas de emoções partilhadas, horas de
trocas de experiências, chega o momento de se produzir o conhecimento histórico”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 232-233).
3.2 Entre “disse me disse”: (re) escrevendo a história do Rio Grande entre a
oralidade e o escrito.
Dialogar entre memória e escrita, transitar entre pesquisa de campo e pesquisa
documental, permitir aproximações entre a história e a antropologia, e construir a escrita
baseada nas múltiplas interpretações que a oralidade oferece me levou a compreender
que a história do Rio Grande, permeada por discursos que ora se unem, ora divergem, se
daria através da construção de uma narrativa “não linear”, mas sinuosa, sinuosidade que
“se deve justamente à complexidade e instabilidade do próprio objeto” 8.
A “dificuldade” de construção dessa narrativa, demarcada justamente pela
complexidade do objeto, acabou tornando-se um “passeio agradável” entre a
documentação do século XIX e início do século XX, e os relatos orais produzidos na
atualidade, resultando em uma narrativa que focaliza a história comum do Rio Grande,
reconhecendo sua complexidade e respeitando suas lacunas.
8 MONTEIRO, John M. Prefácio. In. ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru, SP: Edusc, 2006.
A primeira das conversas gravadas foi com seu Agnaldo, o grande responsável
pela nossa ida ao Rio Grande. Seu Agnaldo confessou que preferia ser questionado, para
que ele pudesse apresentar as informações que me interessavam. Tal prerrogativa me
fez lembrar das várias inquietações que a história oral nos oferece, entre elas a constante
“dúvida” suscitada na idéia que o entrevistado constrói sua fala a partir do roteiro criado
pelo entrevistador para o momento da entrevista, resultando na produção de um
conhecimento baseado na interferência do pesquisador/entrevistador sobre a fala do
entrevistado, e vice e versa.
O importante é que à medida que minhas dúvidas sobre a história do Rio Grande
iam surgindo os relatos orais me ajudavam a desvendá-las, me oferecendo novas
histórias, novas perspectivas de compreensão e novas possibilidades de análises.
Alguns de meus “preciosos” informantes nasceram na década de 1950, como
Seu Agnaldo e Dona Elza, e se dispuseram a nos contar a história da comunidade
através de elementos presentes em sua memória individual, mas pertencentes a uma
memória coletiva construída ao longo dos seus anos de vida.
Pollak, em sua discussão sobre memória e identidade social, apresenta os
elementos constitutivos da memória individual ou coletiva, destacando os
acontecimentos vividos pessoalmente e os acontecimentos “vividos por tabela”, estes
últimos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. A
esse respeito afirma:
“São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorram um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada” (POLLAK, 1992, p.201).
Os mais velhos também tiveram suas vozes enaltecidas nesse processo,
relataram suas origens, suas memórias e o que restou do “passado”. Ao escutar as
primeiras histórias sobre a ocupação do território, os discursos apresentavam pontos em
comum, algumas divergências e diversas constatações sobre a forma como a terra fora
ocupada; dei-me conta de que a terra do Rio Grande é muito mais “plural” (no sentido
das formas de ocupação) do que as indicações percebidas no primeiro olhar pareciam
querer identificar.
O percurso para (re) escrever essa história baseava-se em um longo caminho,
refletido na proposta de escutar os mais velhos (e também os mais novos), investigar os
lugares de origem de seus familiares, tentar perceber a relação de identidade construída
naquele espaço, analisar o sentimento de pertença àquele lugar, e buscar o que sobrou
da memória propagada por seus antepassados, presentes até hoje, e/ou “recuperada”
para este fim; com foco em um ponto: a descendência africana na ocupação da terra do
Rio Grande.
3.2.1 Os documentos sobre o título da terra: O que eles “dizem”, e o que dizem
sobre eles.
Como destaquei acima, a narração desta história mesclaria oral e escrito, no
intuito de fazer com que o diálogo entre ambos propiciasse o registro da história do Rio
Grande, necessário para o reconhecimento desta terra como terra quilombola. Esse
aspecto tornou-se claro nas primeiras conversas com os moradores, quando estes
relataram a existência de um “possível” título da terra, pertencente à família Nogueira.
No entanto, para que se iniciasse uma pesquisa documental sobre a titulação da
terra do Rio Grande era necessário compreender a territorialidade, demarcando o espaço
e investigando os limites da terra. Uma das principais providências foi justamente
estabelecer os limites do Rio Grande, segundo a concepção de territorialidade dos
moradores.
Tal necessidade havia surgido do levantamento de dados realizado no Arquivo
Público do Estado do Maranhão (APEM), onde foram pesquisados os mapas
organizados pela Delegacia Regional de Recenseamento e desenhados por Rosa
Mochel, referentes aos municípios maranhenses (sem data precisa, provavelmente
referente à década de 1970); e os livros do Registro de Terras Públicas, datados da
segunda metade do século XIX.
Neste levantamento inicial foi identificado um primeiro problema: a comunidade
do Rio Grande não fora registrada no mapa de Bequimão e nos registros de terras do
século XIX.
Existia um Rio Grande no município de Alcântara, não se tratando
especificamente da terra ocupada pela comunidade pesquisada. De início pensei que
poderia se tratar do mesmo povoado, já que o município de Bequimão pertenceu durante
algum tempo ao município de Alcântara, até ganhar autonomia em 1935. No entanto,
nas próprias conversas com os moradores, estes diferenciaram as duas localidades.
Nas pesquisas documentais no APEM foram investigadas as possíveis posses de
terra desta região. Os livros dos Registros de Terras Públicas, mencionados acima,
(pertencentes anteriormente ao Instituto de Colonização e Terras do Maranhão -
ITERMA - e agora parte integrante do acervo do APEM) ajudaram na pesquisa
documental. Foram eles: Livro de Registros de Terras da Freguesia de Santo
Antônio e Almas - 1854 -1857 (Santo Antônio e Almas era o antigo nome do
município de Bequimão, quando este era apenas uma freguesia); Livro de Registro
Paroquial das Terras da Freguesia do Apóstolo São Mathias da Cidade de
Alcântara – 1854 – 1857.
Na primeira conversa com Seu Agnaldo pedi para que ele me informasse os
limites da terra, para que pudéssemos achar com mais facilidade a localização do Rio
Grande na documentação histórica, em virtude da inexistência desse nome nos registros.
Ele me diz que:
Seu Agnaldo: Então, esses limites os antigos aí tudo falava, os limites que tinha. Aqui, a terra se limita com a terra da Santa, uma mulher chamada Santa, que tinha aqui do outro lado, um povoado que tem lá pro lado do Bebedouro (...) Terra de Santa Rita. Aí depois vem a terra do... eu não sei nem como é o nome, que hoje em dia é Zé Mingau que é dono, ele comprou do ex dono que é o... um homem chamado Vicente Almeida. (...) Limita com as daqui do Rio Grande. Aí vem as terras aqui do Benfica, que hoje em dia é... Num sei se ainda é de Luizinho, mas era de Luizinho. Aí depois vêm as terras dos Rodrigues, da Beira de Campo. (...) Aí depois vem as do... aqui do Raimundo. (...) Aí depois vem as terra dos Cantanhede, que é aqui já do Monte Palma. Aí depois tem a terra dos Ramalho, principalmente aquele pessoal lá do Ariquipá. Hoje em dia é o povo de lá que, falam que já até, como é que se diz? Eles... Essas terra lá diz que já foi liberada pra eles, né? (Pesquisadora): O Ariquipá entrou com processo de reconhecimento enquanto terra quilombola. S. Agnaldo: É, isso. E a terra do Rio Grande ficou no meio dessa terra todinha. Terra do Rio Grande que eles... eu nem sei, num sei nem dizer bem se na época, se lá nessa escritura tá terra do Rio Grande. Eu num posso nem afirmar isso. Por que sabe, de uma hora pra outra eles vem mudando nome. Aqui por exemplo eles falavam que aqui também eles chamavam Santo Antônio e Alma. Depois outra geração mais nova que eles começaram a adaptar Rio Grande, Rio Grande. Mas na época também não sei se é esse
nome que tá lá. O certo é que o pessoal dos Nogueira que falavam que eram os que tinham o título da terra.
Os limites expostos na fala de Seu Agnaldo foram: Terra de Santa Rita
(próximo à Bebedouro); Terra de Zé Mingau (ex-dono: Vicente Almeida); Terra do
Benfica; Terra dos Rodrigues (Beira de Campo); Terra do Raimundo; Terra dos
Catanhede (Monte Palma); Terra dos Ramalho (Ariquipá, comunidade quilombola
reconhecida pela Fundação Cultural Palmares). Um outro fator que demarca os limites
do Rio Grande é representado em uma concepção peculiar de territorialidade: existem
quatro pontos limites representados por quatro pedras, que teriam sido colocadas pelos
mais velhos da comunidade, como forma de demarcar o espaço territorial do Rio
Grande (Cf. Anexo B).
Com base nesses dados esbocei algumas suposições imediatistas. A primeira
dizia respeito à própria mudança do nome da comunidade com o tempo. Com a
“geração mais nova” começaram a adaptar Rio Grande, nome dado em razão de um dos
principais rios que banha o povoado. E outra suposição seria a possível ligação entre o
Rio Grande e a terra quilombola do Ariquipá.
Em conversa com Dona Elza Rodrigues, “filha” do Rio Grande, de 57 anos, ela
afirma que não conheceu outro nome; seus pais, também filhos do Rio Grande, “nunca
lhe falaram outro nome”. Quando eu lhe informava sobre a inexistência do nome do Rio
Grande nos registros mais antigos, D. Elza responde:
D. Elza: Não tem né?! Vai ver que é por que nunca foi pro mapa né?! Pessoal é tudo meio enrolado, mas agora tá mudando já, mas só que dantes esse pessoal era muito enrolado aqui no Rio Grande, muito. Pesquisadora: Como assim enrolado? D. Elza: Assim, não sabiam ler, não queriam desenvolvimento, num sabe? Não tinha desenvolvimento e não tinha contato com essas pessoas, era difícil. Meu pai nunca foi na cidade, nasceu aqui, se criou, e nunca foi em São Luís. Mamãe que já foi depois de velha. Agora eu não conheço outro nome senão Rio Grande.
Sobre este assunto temos a declaração de seu Joquinha Borges, de 81 anos. Seu
Joquinha mora atualmente em Bequimão, foi professor do Rio Grande quando seu
Agnaldo ainda era criança e nos anos que lecionou na comunidade residiu lá, criando
um vínculo com o local e com muitos dos moradores que permanece até hoje.
Contemporâneo de muitos dos mais velhos e conhecedor de boa parte da história do
povoado, seu Joquinha conversou conosco sobre o Rio Grande.
Pesquisadora: O senhor sabe se a terra sempre se chamou Rio Grande? Seu Joquinha: Não, foi o pessoal que botaram o nome de sítio do Rio Grande, mas lá antes eu acho que era TERRA DO COQUE. Botaram apelido devido o rio, e começaram a chamar Rio Grande, Rio Grande, Sítio do Rio Grande. Lá não tinha esse nome, isto é, que eu saiba não. Pesquisadora: Mas quando o senhor nasceu já era Rio Grande? Seu Joquinha: Era Rio Grande, o sítio do Rio Grande, que faz festa de Santo Antônio.
Quando perguntei a alguns moradores sobre essas demarcações, apresentadas
anteriormente por Seu Joquinha, eles me informaram que Coque é linguagem antiga,
que quando muitos deles se “entenderam” foram os mais velhos dizendo que o Rio
Grande era da Serraria até o Coque. A partir das diversas falas podemos entender que o
Rio Grande estava nas mediações do Sítio do Coque, ainda que não esteja claro se era
limítrofe ou pertencente às terras do Coque.
Estabelecidos os “limites”, baseados nessa representação social, e com as
informações sobre os prováveis nomes antigos da comunidade, eu poderia reiniciar as
pesquisas documentais. No entanto a oralidade também havia indicado uma das
informações principais, conjugada com os limites: a discussão em torno do título da
posse desta terra. Esta foi uma das primeiras interrogações feitas aos moradores: se a
terra estaria em nome de particulares. A esse respeito Seu Agnaldo diz o seguinte:
Eu quando me entendi já achei os mais velhos falando que tinha essas escritura, do Rio Grande, e que era da família dos Nogueira, e que o nome exato que tava lá eu não sei. Eles dizem que era da família dos Nogueira, essa escritura queimou, eles tinham essa escritura e essa escritura é registrada no livro do Cartório de Alcântara, queimou bem pertinho aqui da onde a gente mora. Mas quando eu me entendi já não tinha mais, eu já achei a história, eles falando que tinha. (...) dizendo eles que era uma escritura registrada, que nesse tempo os cartório era tudo em Alcântara, tudo daqui ia pra Alcântara.
A partir deste dado referente à propriedade do Rio Grande em nome de
particulares, iniciei a procura no registro de terras em busca do sobrenome Nogueira e
das ocupações referentes à terra do Coque. O resultado foram documentos registrados
no Livro 2989 -Livro de Registro de Terras da freguesia de Santo Antônio e Almas-
(1854-1857), mencionado acima. Com este sobrenome foram encontrados dois
registros. O primeiro documento se referia a espaços territoriais presentes na terra do
Rio Grande. Dizia o seguinte:
[página 17] Declaro eu abaxo a meu rogo assignado, que sou Senhor e possuidor de um quinhão de terras na paragem9 denominada Tapuitininga, seguindo da Serraria do Coche, tendo a minha situação na tapera do finado José Ignácio Rodrigues e Bitancourth, do Districto da Freguesia de Santo Antônio e Almas, termo da [página 18] Comarca de Alcântara, sitas nas terras que foram do finado Joaquim Antônio Rodrigues Bitancourth, místicas com as dos herdeiros do finado João Antônio Rodrigues Bitancourth, de cuja porção de terra ignoro as braças que tem, por terem sido herdadas de meu Pai Félix Francisco Nogueira, por quantia e não por braças, E por eu não saber ler e escrever, roguei ao Senr. “João Paulo Pereira” este por mim fizesse e assignasse. Freguesia de Santo Antônio e Almas, 23 de junho de 1855. Rogo do Senr. Antônio Pedro e Nogueira. João Paulo Pereira.
10
As terras mencionadas neste Registro de Terras parecem apresentar limites e
espaços pertencentes (ou nas mediações) da terra do Rio Grande. Serraria é uma
localidade dentro do povoado, assim como Sítio Velho, Mangueiral, São Raimundo,
Aldeia, entre outros. No que se refere ao Coque, seu Joquinha me diz que era uma
fazenda de brancos (Sítio do Coque), que limitava com o Rio Grande. Segundo relatos
de moradores, atualmente não existem casas nesse local, apenas mangueirais e taperas,
que indicam a “existência de vida” que um dia se fez naquele espaço.
O segundo documento presente no Livro 2989 referia-se a um povoado de nome
Bacurizeiro, também situado nas mediações do município de Bequimão, próximo ao
povoado do Benfica, limítrofe com o Rio Grande. Apresentava o seguinte registro:
[Página 28] Declaro eu abaixo assignado que sou Senr. e possuidor de uma porção de terras, sitas no Segundo Districto da Freguesia de Sancto Antõnio e Almas, da Comarca de Alcântara, na paragem denominada Bacuriseiro, que seu [compto] são sessenta braças de frente, com o fundo de meia légua, místicas às terras do falecido Antônio Rodrigues Bitancourth, e D. Leonarda Maria Frazão; as quais obtive por compra que fiz a Bonifácio Rodrigues, e sua mulher Anna Isabel. Sancto Antônio e Almas. 30 de Dezembro de 1855. Aleixo Antônio Nogueira. 11
Esses dois documentos datam de 1855. É provável que estes registros tenham
sido frutos da Lei de Terras de 1850, a lei nº. 601, de 18 de setembro de 1850, que
dispõe sobre as terras devolutas do Império 12. No século XIX, a terra passa a ser
9 Paragem: s.f. Espaço de mar, acessível à navegação; sítio onde se pára; qualquer região; Ex. Que você faz por estas paragens? In: NASCENTES, Antenor. Dicionário da Língua Portuguesa da Academia Maranhense de Letras. Rio de Janeiro: Bloch Ed., 1988. 10 Documento nº. 54, p. 17 do Livro 2989 - Livro de Registro de Terras da freguesia de Santo Antônio e Almas- (1854-1857). Série: Repartição Especial das Terras Públicas. Setor de Códices. Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). 11 Documento nº. 92, p. 28 do Livro 2989 - Livro de Registro de Terras da freguesia de Santo Antônio e Almas- (1854-1857). Série: Repartição Especial das Terras Públicas. Setor de Códices. Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). 12 http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L0601-1850.htm
encarada de uma outra perspectiva e a ser incorporada à economia comercial, mudando
a relação do proprietário com este bem. Uma valiosa mercadoria, capaz de gerar lucro
tanto por seu caráter específico quanto pela sua capacidade de produzir outros bens. De
status social, característico dos engenhos do Brasil Colonial, a terra passa a adquirir um
caráter mais comercial.
No artigo 1º ficam proibidas as aquisições de terra devolutas por outro título que
não seja o de compra. Essa lógica traz à tona uma série de considerações, entre elas a
busca incessante de tentar afastar da mão dos colonos a posse das terras, já que os
preços eram altos e de difícil alcance para pequenos produtores. Os debates em torno da
abolição da escravatura eram cada vez mais recorrentes – o fim do tráfico de escravos
datava de 1830 e era uma realidade concreta – para substituir essa mão-de-obra escrava,
um novo grupo viria à tona: os imigrantes. A idéia, portanto era afastar a posse da terra
dos colonos, dos ex-escravos que viriam a surgir e dos imigrantes que chegariam. A
única maneira de afastar em curto prazo esses grupos sociais da propriedade da terra era
valorizando-a e tornando-os impossibilitados de possuí-la.
Os grandes proprietários fraudavam facilmente a lei, fazendo parecer que a
ocupação ocorrera antes de 1850, se beneficiando do dispositivo legal que reconhecia
todas as posses anteriores a essa data, independente do tamanho das terras. É provável
que esse registro que possivelmente faz menção aos limites do Rio Grande tenha sido
feito no intuito de garantir a posse da terra de grandes proprietários, possivelmente
proprietários das terras do Coque e do Ariquipá, visando afastar a posse por parte de ex-
escravos que se concentravam naquela região.
Em conversa com D. Eugênia Martins, de 70 anos, ela nos fala sobre as
primeiras famílias e as histórias sobre os possíveis donos:
Dona Eugênia: As primeiras famílias quando eu me entendi era meu tio Paulo (Paulo Veiga, avô de Seu Agnaldo), era um Nogueira ali, era Marciana, que morava com Estevão, mãe de Severo, era uns lá pra Aldeia (povoado dentro do território do Rio Grande). Agora aqui dentro do Rio Grande, dentro do Rio Grande mesmo, era meu tio Gino, Romão Luís, Leôncia, Salustiana, era os morador daqui, e era o Lodijero velho. Esses tempo quase não tinha gente aqui, só eles mesmo. Agora essa terra aqui eu compreendi sempre eles dizendo que era de Lodijero.
A partir desse segundo dado surgia uma incoerência ou misturas de informações.
Primeiro tínhamos a informação de que o título da terra pertenceria a um Nogueira, e
posteriormente surgiu a informação de que a terra estaria no nome de Lodijero
Rodrigues. Este dado de que a terra seria de Lodijero poderia ter surgido da relação
deste com sua ex-mulher, Rosa de Lima, filha de José Cândido Nogueira.
Na fala de Dona Eugênia, o que mais chama atenção é a convicção da mesma
quando afirma que:
Dona Eugênia: Agora eles dizem, uns tem terra, o outro tem terra, mas ninguém tem terra, a terra é comum, é do Estado; Nós mora, cada um no seu pedacinho, mas a terra é do Estado; tem cercado aí, tem um pra ali, mas aqui ninguém tem terra.
Essa é uma fala corriqueira entre os moradores e que me chamou bastante
atenção. Eles estão sempre a mencionar o que ouviram dizer sobre o título, ou sobre
posse da terra nas mãos dos Nogueiras, de Lodijero Rodrigues, ou de qualquer outro.
Mesmo sem nunca terem visto essa documentação, eles estão sempre a reproduzir o que
ouviram falar. Ainda que este seja um dado que ficou “registrado” ao longo dos anos na
memória da comunidade, em momento algum a possível propriedade da terra em nome
de particular se torna uma ameaça a eles, pois se consideram sujeitos de direito daquele
território, ocupado secularmente.
Os nomes mencionados nos Registros de Terras Públicas pertencentes ao acervo
do APEM – transcritos acima – que poderiam possivelmente estar relacionados com
localidade do Rio Grande e consequentemente estavam registrados com o sobrenome
Nogueira, não encaixavam com os relatos orais da geração de mais velhos da
comunidade. Surgiria neste instante um impasse. Os dados colhidos pareciam mostrar
um conflito constante de luta pela titulação da terra, entre sujeitos que aparentemente
queriam garantir a posse do território.
Alguns moradores possuem documentos de um cadastro de posse que teria sido
feito pelo INCRA. Dona Josefa, por exemplo, possui este documento, fruto do incentivo
de um antigo prefeito amigo de sua família; temendo que ela pudesse perder seu
pedacinho de terra na localidade Serraria – dentro da terra do Rio Grande – a incentivou
fazer o cadastro de sua terra; entretanto existe apenas o cadastro de posse, a titulação
nunca foi feita.
Para a comprovação de alguns dados teria que ser feito um levantamento
cartorial, neste caso nos Cartórios de Alcântara, em razão do antigo vínculo entre os
territórios de Alcântara e Bequimão. Porém, antes disso, foi realizada uma pesquisa no
ITERMA, para tentar identificar a atual situação das terras de Bequimão, e se possível
identificar o caráter – devoluta ou particular – das terras do Rio Grande.
3.2.1.1 O Iterma e os Cartórios de Alcântara
Como mencionei anteriormente, os documentos citados acima e datados do
século XIX eram registros pertencentes anteriormente ao Instituto de Colonização e
Terras do Maranhão – ITERMA. Criado pela Lei 4.353 de 09 de novembro de 1981, o
ITERMA tem como objetivo “executar a política agrária do Estado, organizando a
estrutura fundiária, com amplos poderes de representação para promover a
discriminação administrativa das terras estaduais, de acordo com a legislação federal
específica; executa a política agrária do Estado com autoridade para reconhecer posses
legítimas e titularizar os respectivos possuidores, bem como incorporar ao patrimônio
do Estado as terras devolutas, ilegitimamente ocupadas e as que se encontram vagas” 13.
Diante das indefinições em torno do possível título da terra do Rio Grande, fui
até o ITERMA na tentativa de tentar verificar a situação das terras devolutas do Estado,
e se o Rio Grande estaria incluído. O resultado não foi dos melhores. Depois de várias
visitas até o Instituto, estabelecendo contato com a Coordenadoria de Ação Fundiária,
fui informada de que, na década de 1980, por volta de 1985/1986, uma empresa de
consultoria e projeto teria realizado no município de Bequimão um mapeamento para
saber a situação das terras daquele município. Através de uma discriminatória
administrativa seria feito o registro de quais terras seriam devolutas e quais estariam em
nome de particular. Dependendo dos resultados encontrados nas visitas às terras e aos
supostos proprietários, iniciaria o levantamento cartorial.
No entanto, mais de vinte anos depois desse possível cadastro de posse
realizado no município, a empresa que teria feito o trabalho nunca entregou os dados
coletados. Existe nesse ponto uma lacuna referente ao município de Bequimão. No
acesso que tive à sala dos arquivos de registros do ITERMA, encontravam-se outros
13 http://agriculturanomaranhao.blogspot.com/2007/05/conhea-o-iterma.html. Último acesso em 30/06/2009
municípios da baixada maranhense, exceto Bequimão e alguns outros. Tentei ainda ter
acesso ao Memorial Descritivo de algumas propriedades de terras, facilitado pelas
devidas coordenadas geográficas do território, entretanto não foi possível, ainda com
toda a solicitude dos funcionários. Um processo burocrático e de difícil acesso. Estes
mesmos funcionários apresentaram-me uma outra solução: Buscar a Certidão de
Registro do Imóvel Rio Grande – Bequimão, nos registros cartoriais de Alcântara.
Nas visitações aos cartórios de Alcântara, o objetivo era fazer o levantamento
documental das possíveis propriedades e terras da área do Rio Grande, desde meados do
século XIX até o ano de 1935, momento em que o município de Bequimão teria ganho
autonomia. A pesquisa foi trabalhosa. Primeiro por que o nome “Rio Grande” teimava
em inexistir. Sobre este fator, a senhora Benita, tabeliã do Cartório de 1º Ofício de
Notas e Anexos, me relatou ser um fato comum pessoas irem até o cartório atrás de
registros de terras que mudaram de nome. Para esta Tabeliã, o fato de uma pesquisadora
está procurando um registro de terra de um território que mudou de nome, era um fator
corriqueiro.
Não foi encontrado nenhum registro que fizesse menção à posse de terra em
nome de particulares no povoado do Rio Grande, assim como foi no outro cartório da
cidade – Cartório Civil – da tabeliã Rosalva. Encontrei registros do Benfica, Beira
Campo, Ariquipá, Coche, Monte Palma, mas Rio Grande, não.
3.3 “A raiz do Rio Grande é chegada em descendência africana”14: A
ancestralidade negra e a ancianidade do território.
Os relatos orais e a própria documentação histórica nos fazem compreender que
a terra do Rio Grande é uma terra ocupada tradicionalmente, o que de certa forma
comprova a ancianidade de ocupação do território e a define como uma comunidade
com trajetória histórica própria e dotada de relações territoriais específicas. Essas
características fazem parte dos critérios estabelecidos pelo Estado para reconhecimento
de terra quilombolas.
Quando o decreto-lei N°. 4887 de 20 de novembro de 2003 foi aprovado, visava
regulamentar os procedimentos para “a identificação, o reconhecimento, a delimitação,
14 Fala de Seu Agnaldo, em entrevista realizada em 25/04/2009.
a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por
remanescentes de quilombo” 15. A partir desse pressuposto tal decreto passou a
considerar como remanescentes de quilombos os “grupos étnico-raciais com presunção
de ancestralidade negra relacionada com formas de resistência à opressão histórica
sofrida”, como já asseverado anteriormente.
Sendo assim, para que o Rio Grande fosse reconhecido como terra quilombola
fazia-se necessária a apresentação de dados que ratificassem a pertença étnica de seus
moradores como descendentes de africanos escravizados, confirmando assim a
presunção de “ancestralidade negra” do grupo. Discutir sobre ancestralidade negra entre
os moradores do Rio Grande é sempre um assunto cauteloso. O cuidado na forma como
se deve tocar nesse assunto tornou-se essencial. Ser descendente de negros africanos
que foram escravizados significa para muitos deles carregar um estigma depreciativo,
daí a opção de negar tal estigma. Talvez seja mais fácil negar a pertença étnica e
considerar-se “de fora”, do que “assumir-se” enquanto membro de um grupo étnico que
apresenta as marcas da descendência de uma trágica experiência de vida: a escravidão.
De início esse foi um fator que me inquietou bastante. Eu tentava entender como
alguns membros da comunidade faziam questão de assumir-se e de aderir à causa,
enquanto outros pareciam querer negá-la; por isso o cuidado com os termos e categorias
ao conversar com alguns dos “filhos” do Rio Grande. A palavra “escravo” era sempre
recebida com um olhar de desconfiança. É do conhecimento de muito deles a existência
da escravidão no engenho do Ariquipá, terra limite com o Rio Grande, hoje uma terra
remanescente de quilombos. Dona Eugênia narra que:
No Ariquipá mamãe me contava que tinha era gente dos olhos azul (...) E tinha uns preto da África aí nessa escravidão; diz que eles trouxeram preto da África, mas eles matavam quase tudo; mamãe sempre me contava que os mais velhos contavam pra ela que “davam” era muito neles, chega escutavam eles gritando, diz que botava no fogo, queimavam; era triste.
Como vimos no capítulo anterior, a atualização do termo quilombo permitiu
uma inversão de posições sociais. Se no passado ser quilombola ou ter ligações com
quilombos significava manter-se à margem da sociedade, hoje o papel se inverteu. Ser
remanescente de quilombos exige um processo de autodefinição e um reconhecimento
15 Cf. nota 2.
público e legal de um caráter étnico antes negado. Sobre esta perspectiva, Bourdieu faz
uma análise coerente, e nos afirma que:
O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação pública do estigma constituído assim em emblema – segundo o paradigma ‘black is beautiful’ – e que termina na institucionalização do grupo produzido (mais ou menos totalmente) pelos efeitos econômicos e sociais da estigmatização. É, com efeito, o estigma que dá à revolta regionalista ou nacionalista, não só as suas determinantes simbólicas, mas também os seus fundamentos econômicos e sociais, princípios de unificação do grupo e pontos de apoio objectivos da acção de mobilização (BOURDIEU, 2007, p. 125).
Para alguns moradores do Rio Grande assumir essa pertença étnica começaria a
fazer sentido assim que a história da comunidade começasse a ser “recuperada” e
registrada, para alcançar um fim maior: a regularização e titulação de suas terras. A
“ancestralidade negra” se faria presente nas diversas frentes de ocupação da terra do Rio
Grande e em alguns outros elementos, como por exemplo, no nome de um dos rios que
corta o povoado: o Rio dos Fugidos. Sobre esta nomenclatura dona Matilde, esposa de
seu Agnaldo me diz que:
D. Matilde: A minha avó contava que o nome do Rio era Fugido por que o pessoal vinha fugido da escravatura; tinha aquela velha que morava lá. Eu digo minha avó, mas era minha sogra. A minha sogra me contava que ia fazer a roça, na época tava nova, ela ia fazer roça pra lá e eu ia com ela. Aí ela achava caco de vidro, achava caco de pote, aí tinha aquela fornalha de forno, que eles tinham trabalhado no forno né?! Aí a minha sogra, que eu chamava de vó, ela falava assim: Aqui foi os escravos que vieram lá do engenho do Ariquipá e fizeram moradia aqui, aí morava aqui na beira desse rio, e por isso o nome do rio é fugido. Aí lá era caco de tigela, lá era caco de pote, lá era caco de tudo, a gente achava. Ainda acha tudo isso lá, que nunca se acaba. Aí ela falava que era os fugido que fugiram de lá, e vieram e fizeram essa moradia, e moravam lá. E tinham muito esse ferro velho, tudo, aquele forno. Ela falava que eles faziam forno pra mexer farinha aí dentro dos matos, na beira do rio. Faziam aquele forno de barro, e lá mesmo eles plantavam a mandioca e lá mesmo eles faziam a farinha. Ela me contava muito. E tinha mesmo umas tapera velha que eles moravam. Aí nós ia pra lá assim trabalhar e ela me contava. Ela falava também que tinha uma preta velha que veio num sei de onde e morava lá num mato mais ali que eles chamam de Brilhante, na beira de um rio também, lá tem umas juçareira, ela falava que era essa mulher que morava lá, e que tinha vindo também de lá, do Ariquipá, foi pessoas que vieram do Engenho morar praí.
Esse relato nos apresenta alguns pontos centrais para essa discussão. O primeiro
diz respeito ao nome do rio, que estaria ligado à resistência escrava. Como relatou dona
Matilde, o nome do rio se deu em razão das concentrações de escravos que teriam
ocupado as suas margens para construir habitações. Em análise dos quilombos
maranhenses, Assunção nos ajuda a entender esse fenômeno:
Contrariamente ao Nordeste açucareiro, onde a Zona da mata se limita a uma faixa relativamente estreita do litoral, o Maranhão apresentava, em quase toda a parte norte do seu território, abundantes matas com muitos rios e riachos. Isso implicou durante muito tempo uma ocupação mais tênue do espaço e favoreceu o estabelecimento de quilombos nas cabeceiras dos rios, nos locais mais afastados das florestas, zonas não ocupadas pelas grandes lavouras. Além do mais, grande parte dessas matas no centro da província escapava totalmente ao controle do Estado. Era uma longa fronteira, além da qual desertores, quilombolas e outros fugitivos podiam sentir-se relativamente seguros (ASSUNÇÃO, 1996, p.434).
Em pesquisa da ancianidade de ocupação do território do Rio Grande foram
identificadas algumas frentes de ocupação. Essas frentes de ocupação estavam
interligadas e representavam a mistura característica do Rio Grande, todas relacionadas
à ancestralidade escrava – ocupações quilombolas – e a relação destas com camponeses
livres. É importante ressaltar a localização do Rio Grande. Um dos fatores que
explicaria a ancestralidade africana seria a proximidade do território com muitos
engenhos, como o engenho do Ariquipá, Tijuca, Palestina, dentre outros. E mais, o Rio
Grande era passagem para muitos outros povoados, freguesias e portos de embarque;
muitas famílias acabavam ficando “no meio do caminho e construindo suas moradias”;
Seu Agnaldo nos diz que:
Seu Agnaldo: (I) Essas parte onde tem esses moradores mais antigo são o pessoal negro que vieram, agora não se sabe. Veio de Ariquipá? Aqui tem gente que veio até de Viana, tem geração aqui até de Viana, do tempo que foi liberado a escravidão. Se criou uma pessoa aqui que ela disse que quando ela nasceu já tinha sido abolido... eu ainda conheci ela aqui, chamava Antônia Besouro, ela era bisavó de Canuta. Ela veio de lá, criança. Teve uma família que trouxe. A mãe dela era escrava. (II) O pessoal lá do sítio, do sítio velho, eles falam também que era também os negros, que vieram de outra fazenda, lá de perto do Paricatiua, chamado Canjiqueira, que vieram pra cá, uma família só. (III) Veio família lá de Alcântara, negros também, que fizeram casa lá de quem vai pro Ariquipá, um localzinho que tem lá, chamavam Coque, lá tem um Mangueiral velho também, essas famílias moravam lá. Por final, a minha avó quando veio de Alcântara ela foi trazida por eles, garota, bem negrinha, ela foi trazida por essa família. (IV) Às vezes eles vinham, se escondiam, ficavam aí um tempão e ninguém olhava. Por que peixe tinha a vontade, farinha é como se diz, plantavam no mato, como índio, como se diz naquele tempo. Aí ficava lá aquela família. As vezes a pessoa sozinha ficava aí dentro do mato, sozinha. Por que o meu avó, velho, contou pra minha mãe que quando ele se entendeu tinha um senhor que morava sozinho lá em cima da cabeceira do rio. A minha mãe não conhecia, só via dizer. Hoje em dia ainda tem lá, ainda acha é muita pedra de Benedito, diz que era Benedito o nome dele, era um negro, morava lá. Logo na entrada do Rio dos Fugidos tinha uma casa bem grande.
Esse relato expressa as diversas frentes de ocupação que povoaram o Rio
Grande. Inicialmente alguns grupos de escravos, ou mesmo escravos em pequena
quantidade teriam se “refugiado” no meio das matas, nas proximidades do Rio dos
Fugidos. No período de declínio do regime escravocrata e com o fim da abolição formal
em 1888, as povoações começaram a se concentrar mais próximas da sede do município
de Bequimão (Santo Antônio e Almas e Cabeceira) e de outros municípios (como as
Vilas e Freguesias de Alcântara, Viana, entre outros).
Escravos vindos de Engenhos como Coche, Tijuca, Palestina e Ariquipá
formariam uma das frentes de ocupação que povoariam a comunidade do Rio Grande. A
família de dona Canuta, por exemplo, seria descendente de uma escrava que veio do
Ariquipá, como mostra a Árvore Genealógica I, apresentada abaixo.
QUADRO 1: Árvore genealógica I – Ancestralidade negra e ancianidade de ocupação do território
[A mãe de Antônia Mangaba foi escrava no Ariquipá - antigo Engenho e hoje comunidade
remanescente de quilombo] Antônia Mangaba (Besouro) (filha do Rio Grande) Vitor Tucum Chica Besouro (vindo do povoado Pé de Chumbo) Boaventura Costa + Zé Besouro Justino Galo Januário Maurício (Besouro Velho) Tolentino Carlinda Margarido (80 anos) Canuta (73 anos) (família morando no Rio Grande) Fonte: Daisy Damasceno Araújo.
Outra frente de libertação teria vindo da Canjiqueira (como a família do pai de
Dona Elza) e de Alcântara (como a família do pai de Seu Agnaldo, que teria vindo de
Castelo – hoje comunidade já reconhecida oficialmente como remanescente
quilombola), ambas representadas na Árvore Genealógica II, apresentada abaixo.
QUADRO 2: Árvore genealógica II – Ancestralidade negra e ancianidade de ocupação do território
1 - FAMÍLIA DE DONA ELZA E SEU CHITA Plácido BENEDITA RODRIGUES + RAIMUNDO RODRIGUES ESTEVAN RODRIGUES
GUILHERMINA RODRIGUES + VICENTE RODRIGUES (vindo da Catingueira) ISABEL ANTÔNIO ELZA (57 anos) CHITA (50 anos) RICARDO ANTÔNIA + ZÉ PETROLINO JOSÉ TEREZA IVONETE DIONÍSIO VERÔNICA (8 anos) 2 – FAMÍLIA DE SEU AGNALDO PLÁCIDO ESTEVAN RODRIGUES + PAULO VIEGAS ALEXANDRE NOGUEIRA + ANÍSIA RODRIGUES (Castelo – Comunidade quilombola de Alcântara)
HONÓRIA VIEGAS + ALFREDO NOGUEIRA JOANA + (família do Ariquipá) AGNALDO + MATILDE (e 7 irmãos) JÚLIO
SÔNIA
(Atual presidente da Associação de Moradores do Povoado Rio Grande)
Fonte: Daisy Damasceno Araújo
Seu Joquinha relatou uma das frentes de ocupação de ancestralidade africana
que teria ocupado o Rio Grande (Cf. Árvore Genealógica III). Uma escrava chamada
Marciana teria vindo “bolando” com seu irmão e ido para o Rio Grande, já na época de
declínio do sistema escravocrata. Chegando ao Rio Grande a escrava de nome Marciana
teria “dado de namoro” com Januário (filho de escrava com senhor de engenho) e irmão
da bisavó de seu Joquinha. Desse relacionamento teria nascido alguns dos moradores
mais velhos do Rio Grande: Romão Luís, Salustiana e Leôncia Velha, esta última avó
de seu Luís Mariano (o atual “dono do santo”, cuja festa secular – sem data exata de
início - é realizada no mês de junho todos os anos em honra e devoção a Santo
Antônio); conforme mostra a Árvore Genealógica III, a seguir:
QUADRO 3: Árvore genealógica III – Ancestralidade negra e ancianidade de
ocupação do território
(escrava vinda de Alcântara) Marciana + Januário (já morava no Rio Grande - filho de negra com dono de fazenda) Anacleto (Beira Campo)
Romão Luís Salustiana Leôncia Velha Odinéia Nogueira (vinda do Benfica) Lodijero Rodrigues + Gregória Pires
Leôncia Nova Martinha + Pio Carlos + Josefa Mariano Anastácia (“A cozinheira”) (84 anos)
Luís Mariano (“o dono” do Santo Antônio) Militão
“Dos Santos”
Fonte: Daisy Damasceno.
Sobre essa mistura presente na história de ocupação do Rio Grande, expressas na
família de seu Carlos Nogueira, vinda do Benfica, e na família materna de sua esposa
Dona Josefa (e seus irmãos dona Anastácia e seu Mariano), vinda de Beira Campo, seu
Agnaldo nos diz que:
Agora esse pessoal mais, mais, que foram misturando, já foi outro povo que veio, que chamavam de branco, que já era de outra localidade, como daqui que chamam Beira de Campo, teve outras pessoa que vieram fazer casa, e montaram família aqui.
Aqui chegamos a um ponto importantíssimo: O povoado do Rio Grande
apresentaria características clássicas e ressignificadas de um quilombo: Clássicas no
sentido de apresentarem dados que comprovam a ocupação de uma área inicialmente
isolada, próxima a rios, e por representar um lugar onde se tentava viver longe da lógica
escravista e junto de iguais (sujeitos oprimidos pela escravidão e posteriormente a
mistura com camponeses livres). E ressignificadas no sentido de não apresentar uma
unidade, um consenso sobre a herança quilombola: sem casa de engenho, ou título de
doação de terras, ou herança deixada por senhores, sem a denominação terra de preto e
terra de santo (apesar de alguns moradores dos arredores se referirem ao Rio Grande
como “terra da festa de santo Antônio”, e fazer menção aos moradores como “os pretos
do Rio Grande”).
A terra quilombola do Rio grande, portanto, sustentou em sua memória coletiva
e “seletiva” – por isso rejeitada por alguns -, a memória de uma resistência à opressão
histórica sofrida por seus ascendentes. Muitos deles assumiram a causa e tem adotado
para si essa pertença étnica, que aos poucos vai ganhando força e fazendo sentido em
suas lutas constantes para se manterem naquele chão.
4 A SITUAÇÃO QUILOMBOLA NO MARANHÃO E O RIO GRANDE:
Entraves e benefícios da política territorial
Como apresentado anteriormente, o artigo 68 dos ADCT, visando garantir o
direito territorial às comunidades ditas remanescentes quilombolas, havia trazido à tona
diversas questões. A primeira teria girado em torno da atualização do conceito de
quilombo, necessária para abarcar a pluralidade de situações que envolviam as
comunidades negras rurais que pleiteavam esse direito. Essa necessidade de atualização
havia surgido em virtude das indefinições expressas no texto constitucional que,
metaforizando um termo utilizado no passado, dificultava o processo de reconhecimento
e titulação dessas terras.
Entretanto, a atualização do termo quilombo, proposta especialmente por
historiadores, antropólogos e por movimentos sociais, não havia resolvido as
dificuldades a serem enfrentadas e superadas por essas comunidades quilombolas.
Muitos conflitos e contradições envolvem essa questão; são longos e complexos os
trâmites burocráticos para o processo de reconhecimento e titulação das terras, e levam
anos para se concretizarem. Identificada a terra quilombola através dos levantamentos
feitos em geral por movimentos sociais e associações quilombolas, iniciam-se os
diversos e complexos procedimentos de certificação exigidos pela Fundação Cultural
Palmares.
Além da exigência de ata de assembléia confirmando a autodenominação
quilombola assinada pelos moradores, também são exigidos dados que comprovem a
história comum do grupo, sua ancestralidade negra e opressão histórica, e solicitação de
certidão de autodefinição, que deve ser enviada ao Presidente da FCP. Todos esses
procedimentos, conjugados com os problemas em torno da questão fundiária no Brasil,
atrelada a interesses do Estado e de grandes proprietários rurais, são indicativos que
continuam, depois de vinte e um anos de promulgada a Constituição Cidadã, a impedir e
a apresentar irregularidades no processo de garantia desse direito.
4.1 Os impasses do direito “quilombola”: Conflitos e contradições
Para análise dessa situação podemos tomar como base a situação quilombola no
Maranhão, com o olhar voltado em especial, no caso dessa pesquisa, para a comunidade
quilombola do Rio Grande. Centenas de outras comunidades maranhenses envolvidas
nesse processo têm sofrido os danos causados pelo descaso do Estado, que têm se
mostrado ineficiente no plano das garantias e efetivação do direito legal.
Entre todos os estados da federação que se encontram envolvidos na luta por
legalização de terras remanescentes de quilombos, o Maranhão é o estado que apresenta
o maior número de comunidades entre as recenseadas, sem incluir aquelas que ainda
não tomaram conhecimento de seus direitos.
Alguns dados apresentados pela historiografia maranhense especializada neste
tema nos ajudam a entender a atual situação do Estado e o número significativo de
comunidades quilombolas existentes. Apresentando a mais alta porcentagem da
população escrava do Império (55%), o fenômeno quilombola teria marcado a história
do sistema escravocrata no Maranhão. Sobre essa perspectiva, Assunção nos apresenta
um dado histórico que contribui para a análise desse dado quantitativo. Diz que:
“Existentes desde o início do século XVIII, os quilombos no Maranhão constituíram um fenômeno endêmico da sociedade escravista, sobretudo depois da introdução maciça de escravos a partir do último quarto desse século [...] Para o século XIX, porém, sua ocorrência é amplamente documentada nos periódicos, na correspondência das autoridades militares, policiais e judiciárias ou nos relatórios dos presidentes da província. Pode-se afirmar que no Maranhão existiram poucas fazendas escravistas sem quilombos ao seu redor. É difícil estabelecer seu número porque, sendo o quilombo uma formação social oculta, praticamente os únicos dados de que dispomos foram produzidos por agentes encarregados do seu extermínio. Em muitos casos não sabemos nem a origem do quilombo mencionado nem o número de pessoas que aí viviam. Muitas vezes as notícias se limitam a mencioná-lo, sem maiores detalhes.” (ASSUNÇÃO, 1996, p. 436, grifos meus).
Em dados informativos de 2007, a Associação das Comunidades Negras Rurais
e Quilombolas do Maranhão – ACONERUQ – informou que havia em torno de 360
comunidades quilombolas associadas e que ao todo existiriam mais de 600 comunidades
em 134 dos 217 municípios maranhenses. A FCP apresenta, entre os anos de 2004 e
2009, um total de 151 comunidades reconhecidas no estado do Maranhão (Cf. ANEXO
C).
O Rio Grande, por exemplo, não foi recenseado em nenhum dos levantamentos
preliminares realizados no estado do Maranhão. Sendo assim é muito provável que
outras comunidades ainda se encontrem fora dos dados já registrados. Têm-se uma
informação não especializada de que algumas comunidades próximas ao Rio Grande,
como Pontal, Quindiua, Santa Rita e Ariquipá seriam comunidades quilombolas.
Entretanto, destas, somente a comunidade do Ariquipá entrou com um processo de
reconhecimento junto à Fundação Cultural Palmares para sua identificação formal.
Segundo Silva e Furtado (2009), observando esse dado da ACONERUQ e
comparando-o ao dado apresentado por Anjos (2006), que registra o total de 734
comunidades quilombolas distribuídas em apenas 69 municípios maranhenses, existiria
assim um quadro díspare quanto ao quantitativo de comunidades quilombolas no
Maranhão. Segundo as autoras, “A questão da política territorial para comunidades
quilombolas é tão sintomática que não existem sequer dados que, ao serem cruzados,
expressem a mesma realidade quanto à existência dessas comunidades”.
Na década de 1980 o Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN/MA) e o
Projeto Vida de Negro(PVN) teriam realizado trabalho pioneiro – transformado
posteriormente em relatório - fazendo um levantamento de comunidades quilombolas
no estado. Na verdade, foi feito um levantamento de agrupamentos negros rurais, entre
os quais foram identificadas comunidades originadas de antigos quilombos
maranhenses. Entretanto, como mencionei, esse foi um levantamento inicial e muitas
comunidades deixaram de ser recenseadas.
Em 2008 foi elaborado um Relatório de pesquisa do perfil socioeconômico da
população do Território Quilombola de Alcântara16, que aborda a questão quilombola
na federação e no estado do Maranhão. Esse relatório traz como dado a existência de
mais de 700 comunidades, quase 800, entre reconhecidas e tituladas, apesar de não
mencionar os municípios, a quantidade exata de comunidades e seus nomes. Esse dado
estaria de acordo com o dado apresentado por Anjos (2006).
Souza Filho, em sua obra sobre Os Pretos de Bom Sucesso (2008) apresenta um
dado que ratifica a disparidade entre os quantitativos, quando afirma que:
As estatísticas acerca do número de comunidades quilombolas espalhadas pelo país está longe de ser confirmado. O Ministério do Desenvolvimento Agrário aponta a existência de 743 áreas de remanescentes de quilombos espalhadas em mais de 30 milhões de hectares. Outros indicativos dos
16 Organizado por João Carlos Nogueira: uma parceria do Governo do Estado, da SEAGRO (Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural), IICA (Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura) e do Instituto Agontinmê.
movimentos sociais apontam para a existência de mais de duas mil comunidades (SOUZA FILHO, 2008, p.17, grifos do autor).
Se atualmente registram-se no Maranhão mais de 700 comunidades
quilombolas, o dado apresentado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)
estaria incompleto.
Em estudo realizado pelo Centro de Cartografia Aplicada e Informação
Geográfica da UNB, foi constatado que existiam, em 2005, 2.300 comunidades
quilombolas no Brasil. Porém, hoje já são por volta de 3.000 comunidades. Até o fim de
2008, foram emitidas 1.087 certidões, que reconhecem 1.305 comunidades. Segundo a
referida pesquisa, o ano com mais emissões foi 2006 (390), seguido por 2005 (332).
Entre os anos de 2006 e 2007, o número de certidões emitidas caiu para 141, até chegar
nas 127 certidões de 2008.
Essa queda pode ter sido influenciada pelas acusações de fraude que teria sofrido
a Fundação Cultural Palmares. Em 2007, por exemplo, a FCP foi acusada de fraude no
processo de registro do auto-reconhecimento de uma comunidade na Bahia, São
Francisco do Paraguaçu. A investigação interna teria sido motivada pela imprensa
baiana. Entretanto, depois da sindicância para apurar os fatos, o presidente da fundação,
Zulu Araújo, teria afirmado que dos 1.170 processos de reconhecimento até aquele ano,
não existe nenhuma prova e nenhum indício de que houve fraude, nem na solicitação,
nem nos procedimentos feitos pela Palmares.17 Segundo a mesma referência, o
presidente da FCP teria afirmado que há de 3 mil a 3,5 mil comunidades remanescentes
de quilombos, mas por conta da pequena estrutura e da pouca verba poucas foram
certificadas até o presente momento.
A disparidade entre dados e levantamentos são um dos problemas que dificultam
o processo de garantia de direitos. Nesse ponto o caso do Rio Grande começa a
sobressair-se, tanto na incoerência dos dados quantitativos referente ao número de
comunidades existente no estado do Maranhão, quanto nos procedimentos exigidos pelo
Estado para que as comunidades se tornem beneficiárias do direito constitucional.
No que tange à primeira questão pode-se dizer que, como em nenhum dos
levantamentos já realizados no estado a comunidade do Rio Grande é listada como
17 http://www.palmares.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=508
remanescente quilombola, conclui-se que o mapeamento feito das comunidades
quilombolas existentes no Maranhão estaria no mínimo incompleto (SILVA;
FURTADO; 2009).
Esse fator pode ser ratificado se levarmos em consideração outras comunidades
que, assim como o Rio Grande, ficaram à margem desse recenseamento; talvez pelo
motivo que expus no capítulo anterior deste estudo, por ser o Rio Grande uma
comunidade quilombola que apresenta um caráter clássico e ressignificado no que tange
ao conceito de quilombo, metaforizado no texto constitucional.
No capítulo inicial eu havia levantado alguns questionamentos sobre a garantia
do direito exposto no artigo 68 dos ADCT: “Como as comunidades teriam
conhecimento deste direito se a maioria encontra-se em povoados rurais onde o Estado
parece não existir e não possuir nenhuma finalidade concreta? Como garantir tal direito
a sujeitos sociais que não têm conhecimento de possuí-lo?”.
Sobre estas questões, ligadas à incoerência dos dados expostos nos
levantamentos de terras quilombolas no Maranhão, as autoras Silva e Furtado (2009)
levantam alguns pontos interessantes de análise:
A quem caberia, de fato, o levantamento da realidade territorial quilombola nas unidades da federação? Ao sujeito que deve implementar o direito, no caso ao Estado, ou aos sujeitos beneficiários de tal direito, no caso as próprias comunidades? Caso a resposta contemple a segunda opção, não seria essa a maneira mais eficiente de negação de direitos uma vez que tais comunidades não estão municiadas de elementos formais para entendimento de “seus” direitos e sobretudo das exigências procedimentais para a conquista dos mesmos? (Idem).
No caso específico do Rio Grande, o primeiro contato estabelecido, como
mencionado anteriormente, teria sido fruto da aproximação entre a orientadora deste
estudo com um “filho” do Rio Grande – Seu Agnaldo - que expôs o caráter
“remanescente quilombola” da comunidade. Esse teria sido o incentivo mor para o
início dos trabalhos desenvolvidos. A partir desse contato, a universidade – representada
na figura da professora e dos alunos – foi a principal responsável por essa “organização”
no Rio Grande, levando conhecimento e informação.
E as outras comunidades quilombolas que não tiveram essa “oportunidade”?
Como garantir esse direito? Como identificá-las e reconhecê-las? Como saber se elas
existem? Devem-se tomar como referência somente as terras que apresentam as
nomenclaturas específicas, como terra de preto, mocambo, dentre outras. Como pode o
Estado conceber no Decreto 4887/03 a autoatribuição como único critério para o
reconhecimento formal de sua pertença étnica, sem que antes essa comunidade tenha
conhecimento de seus direitos?
Ainda sob a discussão feita por Silva e Furtado (2009), é retomada uma das
questões centrais em torno das contradições expressas entre “as trajetórias históricas
dessas comunidades e os ditames de uma sociedade baseada na racionalidade
moderna”:
Segundo os critérios apresentados pela Fundação Cultural Palmares para efetuar a certificação das comunidades negras rurais como “quilombolas” faz-se necessária: apresentação de uma ata que ateste que a comunidade tomou a decisão formal de se reconhecer como quilombola, cujo documento deve ser acompanhando de uma lista de presença, devidamente assinada pelos presentes no ato deliberativo, e, em qualquer caso a comunidade pleiteante deve apresentar “relato sintético da trajetória comum do grupo (história da comunidade)”. Notadamente, uma das características básicas das comunidades quilombolas é a tradição da oralidade. Os saberes próprios, as estratégias de manipulação dos elementos da natureza e as regras de convívio social são repassados de geração à geração através dos cantos, das manifestações estéticas e dos relatos orais. A partir do momento que se exige o registro, por escrito dessas experiências se impõe uma lógica de dominação, na qual se deixa implícita a subalternização dos saberes tradicionais dessas comunidades. Tal contradição se evidencia, sobretudo, porque para que sejam reconhecidas como quilombolas devem atestar vínculo histórico com a opressão. Não seria essa exigência uma atualização das formas de opressão pelas quais têm passado essas comunidades, e a manutenção da tradição oral uma forma de resistência? (Idem, grifos meus).
Um dos critérios exigidos pela FCP diz respeito ao relatório sintético da
trajetória comum do grupo (história da comunidade) que, como manda o “racionalismo
moderno”, deve ser remetido de forma escrita. Transformar o oral em escrito é algo
trabalhoso e incapaz de expressar todos os sentimentos que compõem os relatos orais.
Como transcrever sentimentos de emoção? Risadas? Silêncios? Enclausurando-os
dentro de um parêntese? Esse é um processo árduo e vai de encontro a muitas das
lógicas tradicionais das comunidades
Foi assim no processo da coleta de dados realizado no Rio Grande, onde
utilizando a memória coletiva da comunidade e valorizando a tradição da oralidade,
tentei registrar e transformar em escrita a história da ocupação, a ancestralidade africana
e ancianidade de ocupação do território. Muitos dos mais velhos não sabem ler nem
escrever e dizem ser privilégio das crianças hoje terem a oportunidade de estudar, ainda
que de forma tão precária e sem condições reais para se manterem na escola por muito
tempo.
Esses entraves do discurso oficial expressam de forma coerente a discrepância
referente ao número de comunidades quilombolas existentes no Maranhão e o número
de terras tituladas no estado. A tabela abaixo apresenta as comunidades tituladas até
setembro de 2007, entretanto têm-se a informação de que hoje já temos por volta de 30
comunidades tituladas no Maranhão.
TABELA 1: Terras de Quilombos Tituladas no Estado do Maranhão (1999 – Setembro de 2007)18
Comunidades Hectares Município Org. Exp. Ano Era dos Coqueiros 1.012 Codó Iterma 1999
Mocorongo 163 Codó Iterma 1999 S. Antônio dos Pretos 2.139 Codó Iterma 1999
Genipapo 589 Caxias Iterma 2002 Cipó dos Cambaias 2.440 S. João do Sóter Iterma 2002
Santa Helena 345 Itapecuru Mirim Iterma 2006 Jamary dos Pretos 6.613 Turiaçu Iterma 2003
Olho d'Água do Raposo 188 Caxias Iterma 2005 Altamira 1.220 Pinheiro Iterma 2005
S. Sebastião dos Pretos 1.010 Bacabal Iterma 2005 Usina Velha 1.162 Caxias Iterma 2006
Agrical II 323 Bacabeira Iterma 2006 Santo Inácio 1.364 Pedro do Rosário Iterma 2006
Santana 202 Santa Rita Iterma 2006 Bom Jesus dos Pretos 217 Candido Mendes Iterma 2006
Santa Isabel 838 Candido Mendes Iterma 2006 Lago Grande 907 Peritoró Iterma 2006
20 comunidades 21.935 Fonte: PROJETO VIDA DE NEGRO. Terra de Preto no Maranhão: quebrando o mito do isolamento. Coleção Negro Cosme. Vol. III. São Luís: SMDH/CNN-MA/PVN, 2002.
A titulação das primeiras terras - Eira dos Coqueiros, Mocorongo e Santo
Antônio dos Pretos, todas no município de Codó – viria somente onze anos depois do
direito garantido no artigo 68 da Constituição Federal.
18 Fonte: Relatório de pesquisa do perfil socioeconômico da população do Território Quilombola de Alcântara – 2008, p. 53.
Aqui se faz coerente relatar o caso da comunidade de Bom Sucesso (hoje já
reconhecida pela FCP), “uma terra de preto localizada no município de Mata Roma, na
parte Leste do Estado do Maranhão, cuja ocupação remonta ao período da escravidão,
mais precisamente à primeira metade do século XIX” (SOUZA FILHO, 2008, Nota do
autor). Segundo pesquisa realizada, as terras de Bom Sucesso foram concedidas por
meio de sesmaria, em fins do século XVIII. No início do século XIX, mediante a
doação por herança, os pretos passaram a controlar uma grande extensão das terras.
Trabalhando por dez anos para assegurar os direitos de herança e liberdade, passaram a
ter o controle da área. “Já no século XX, por atos seguidos de grilagem e regularização
fraudulenta dessas áreas, perderam parte considerável de seu território” (Idem).
Os primeiros contatos estabelecidos pelo antropólogo Benedito Souza Filho com
a comunidade de Bom Sucesso foi em 1993. Em 1998 preparou o relatório
antropológico de identificação de Bom Sucesso, no mesmo ano em que esta pesquisa
transformou-se em Dissertação de Mestrado. Souza Filho dá seu depoimento quanto à
burocracia desse processo:
Somente dez anos depois da realização do relatório antropológico de identificação, após permanecer um longo período adormecido na Fundação Cultural Palmares, fui informado que o processo encontrava-se tramitando na Superintendência do INCRA no Maranhão com vistas à regularização fundiária. Isso por conta da iniciativa da antropóloga do INCRA que, ao tomar conhecimento da existência desse relatório antropológico hibernado nos arquivos da Fundação Palmares, tomou providências para que a parte fundiária tivesse andamento. Cabe salientar que em anos anteriores, já havíamos solicitado ao INCRA reiteradas vezes, sem sucesso, que fosse dado andamento aos procedimentos necessários com vistas à regularização. Não sabemos mais quanto tempo levará para que os quilombolas de Bom Sucesso possam ter assegurado definitivamente o direito a seu território tal como assegura a Constituição Federal. (SOUZA FILHO, 2008, p.16, grifos meus).
Esse processo de morosidade traz consigo danos diretos aos sujeitos que
pleiteiam o direito territorial. Muitos deles se “empolgam” com a efervescência da
discussão, com as identidades “reafirmadas” para alcançar um fim, e com os benefícios
que tal reconhecimento pode acarretar em favor da comunidade. Mas, de tanto
esperarem, muitos acabam desmotivados e com a idéia de que tudo não passou de “um
sonho”. A partir desses dados fica claro que o reconhecimento dessas terras é apenas um
dos “milhões” de passos a serem dados a caminho da titulação e garantia de direitos.
Em fins de 2008, estive envolvida com a questão da terra quilombola de Bom
Sucesso, mantendo contato com “fazendeiros” do sul do país que há sete anos haviam
comprado parte daquelas terras e agora estavam em disputa constante pelo território
com os pretos de Bom Sucesso. Em meu período de estágio no Arquivo Público do
Maranhão – APEM – por volta de fins do ano de 2008, fui encarregada de pesquisar e
fazer transcrições de algumas cartas de sesmaria para sujeitos que moravam em Mata
Roma - MA. Depois disso seriam estabelecido constantes contatos com o casal de
fazendeiros por telefone.
Depois de documentos transcritos, entre eles testamentos em que alguns
senhores deixavam heranças a seus escravos, fui informada que os supostos
proprietários haviam recebido um documento do INCRA informando que parte
daquelas terras (1000 hectares, de um total de 9.000 correspondente ao tamanho total da
fazenda) deveria ser desapropriada, em razão de pertencer ao território quilombola de
Bom Sucesso. O casal então, estava atrás de dados históricos que questionassem essa
herança por parte dos escravos e os dados apresentados no relatório feito por Souza
Filho.
Esse é um dos principais fatores apresentados nessa luta constante por
regularização de terras quilombolas na federação: os constantes conflitos de terras que
envolvem essas áreas, geralmente uma luta travada entre a comunidade quilombola e
alguns “gigantes” e contra interesses do próprio Estado, que constantemente apresenta
dificuldades em reconhecer os direitos quilombolas. No caso de Alcântara, incluiu em
seus projetos para comercialização no mercado aeroespacial o uso de territórios
quilombolas, em razão de suas posições geográficas.
Os impedimentos que envolvem o processo de reconhecimento e titulação de
territórios se refletem entre interesses privados – empresas e latifundiários – e estatais,
representados no interesse desses segmentos sociais em controlar áreas estratégicas,
como muitas das áreas quilombolas. “Para além das certezas estatísticas observa-se que
o que está em jogo é um área de 5% do total de 850 milhões de hectares do território
brasileiro” (ALMEIDA, 2005 apud SOUZA FILHO, 2008). Em complementação ao
dado apresentado por Almeida, o autor nos diz que:
Pode-se imaginar a preocupação em transferir para os quilombolas esse volume de terras, o que representaria a exclusão de uma fatia significativa do
estoque de terras disponíveis nas transações de compra e venda. Nesse sentido, a regularização dos territórios quilombolas implicaria a retirada do mercado de terras de um volume expressivo. Se existe muita terra em jogo, que justifica o interesse de muitos em evitar que sejam transferidas aos quilombolas, existe também outras áreas, que não muito diferente daquelas de interesse se setores privados, interessam ao Estado (Idem, p. 17, grifos do autor).
No caso do Rio Grande temos dois exemplos de conflitos emblemáticos: um
deles diz respeito a um fato acontecido na década de 1990, quando um engenheiro teria
visitado as terras do Rio Grande no intuito de fazer campo agrícola no local, o que
desapropriaria muitas famílias. Entretanto esse empreendimento teria sido barrado pela
mobilização dos moradores da comunidade, que impediram a utilização de seus
territórios para essa finalidade.
O outro, menos aparente, e percebido apenas por alguns dos moradores, diz
respeito às terras de Zé Mingau, limítrofes com as terras do Rio Grande. Segundo
relatos de alguns moradores, o fazendeiro a cada ano que passa, “puxa um pedacinho de
cerca pra dentro da área do Rio Grande”, aumentando a sua área e diminuindo as da
comunidade.
Garantir a regularização da terra quilombola do Rio Grande significa não apenas
resolver os atuais conflitos existentes, como também impedir os conflitos fundiários
posteriores, tão recorrentes na história agrária do Maranhão, onde pequenos
proprietários, posseiros, indígenas e quilombolas têm seus territórios constantemente
ameaçados.
Quando que as comunidades quilombolas de Alcântara imaginaram que teriam
seus territórios ameaçados pelo Centro de Lançamento de Alcântara? E os pretos de
Bom Sucesso, imaginavam que latifundiários sulistas iriam grilar suas terras? A
regularização de todas as terras quilombolas da federação deve ser efetivada antes que
novos conflitos se tornem mais evidentes e coloquem em risco a reprodução sócio-
cultural e política dessas comunidades de forma autônoma nesses espaços ocupados
secularmente. E devem garantir, além da regularização das terras, políticas públicas
eficazes que possam contribuir para a melhoria da qualidade de vida dessas
comunidades pobres, oprimidas ao longo da história.
4.2 CARACTERIZANDO O RIO GRANDE: O descaso do Estado e as políticas
públicas destinadas às comunidades quilombolas
Distante 5 km da sede do município de Bequimão, no litoral ocidental
maranhense, o povoado do Rio Grande é uma comunidade que vive da subsistência de
suas plantações e criação de animais, e mantêm-se secularmente ocupando este
território, preservando suas tradições e modo de vida peculiar.
Através de um levantamento prévio, podemos constatar uma ausência do poder
público nessa comunidade, o que se manifesta em elevado grau de pobreza e exclusão
social evidente. A estrutura sócio-econômica e cultural do Rio Grande dá-se da seguinte
maneira:
TABELA 2: Estrutura Sócio-econômica e cultural do Rio Grande POVOADO ASPECTOS ANALISADOS
RIO GRANDE
ESTRUTURAS
-Cerca de 70 famílias; -Escola (Ensino Fundamental: 1º a 4º série) - Igrejas (1 Católica e 1Assembléia de Deus); -Campo de Futebol; -Barracão de Festa (de alvenaria) -Casa de Farinha (três)
SANEAMENTO BÁSICO, ENERGIA ELÉTRICA E ABASTECIMENTO DE ÁGUA.
- Não há energia elétrica em todas as residências; -Não existem fossas sépticas; -Não há sistema de abastecimento de água
PRODUÇÃO DO TRABALHO AGRÍCOLA
- Mandioca, arroz, feijão, milho, algumas frutas e leguminosas.
Tipos de maquinários para fazer a roça
-Patacho, enxada, foice e coivara ou garrancho;
CONDIÇÕES DE TRABALHO:
Riscos do Trabalho
-Acidentes com instrumentos cortantes
LAZER E MANIFESTAÇÕES
• Futebol • Forró de caixa • Tambor de Crioula • Festejo de Santo Antônio (11 e 12 e 13
de junho) • Festejo de Nossa senhora da Conceição
(11 e 12 de outubro) Fonte: Ana Nery C. Lima e Fernanda Mendes (Grupo de Pesquisa Representações sociais, etnicidade e
desenvolvimento regional).
Como podemos verificar no quadro acima, a comunidade apresenta cerca de 70
famílias, que tem como base de sustento a roça (com o plantio de milho, arroz,
mandioca e legumes) e a criação de animais, como galinha, porco, pato e gado (algumas
famílias, em menor número, criam gado para corte e venda da carne e cavalo para
locomoção) sendo as duas atividades voltadas para a subsistência, quando não é
estabelecida a venda ou troca entre moradores de povoados vizinhos.
A prática da roça e os instrumentos utilizados são bastante rudimentares, típicos
de muitas comunidades “pobres” rurais; a pesca em algumas épocas do ano também é
uma prática de subsistência; e algumas pessoas desenvolvem artesanato, em geral para o
comércio entre povoados, ou mesmo na sede do município.
Segundo relato de seu Agnaldo, nas décadas de 60 e 70 havia extração de babaçu
na região e os moradores comercializavam com as empresas Oleama e Primor, na
capital maranhense. Seu Agnaldo também relatou que há 15 anos o governo distribui,
através da Secretaria da Agricultura, sementes na sede do município de Bequimão,
política agrária que beneficia os moradores dos povoados vizinhos.
As condições sanitárias são precárias, não existindo fossas sépticas, sendo os
banheiros localizados fora das casas. Algumas fossas também são coletivas,
dependendo da proximidade das moradias. A água é coletada em poço, existindo
pouquíssimas residências com água encanada. E a coleta de lixo não existe pelo serviço
público, quando o lixo não é jogado em algum terreno, é queimado. Como podemos
verificar no quadro acima, não há energia elétrica em todas as residências, e não existe
posto de saúde.
Como podemos perceber no Croqui da Comunidade (Cf. Anexo D), as casas
encontram-se devidamente espalhadas ao longo do território. A comunidade possui um
campo de futebol – uma das principais atividades de lazer, com times de futebol
masculino e feminino - e à sua frente encontra-se um galpão de alvenaria, onde
geralmente são realizadas as festas da comunidade.
As casas em sua grande maioria são de barro, existindo algumas de alvenaria, e
obedecem geralmente o padrão estrutural apresentado no quadro abaixo:
FIGURA: Croqui das casas do Rio Grande
Fonte: Stéfani Melo (Grupo de Pesquisa Representações sociais, etnicidade e
desenvolvimento regional).
Um outro fator que expressa o descaso do Estado para com as comunidades
rurais em geral, diz respeito à educação. Na comunidade do Rio Grande existe apenas o
anexo de uma escola municipal do povoado de Beira Campo, da qual Seu Agnaldo é
professor; uma escola de ensino fundamental (de 1ª à 4ª série), com condições
estruturais precárias: apenas três compartimentos e dois professores. Ultimamente têm
se realizado aulas noturnas aos mais velhos da comunidade, que não sabem ler nem
escrever. Os jovens da comunidade deslocam-se diariamente à sede de Bequimão.
Algumas crianças recebem a assistência do Bolsa Família, programa assistencialista do
governo federal.
Ainda assim, mediante toda essa situação de descaso, o Rio Grande continua a
reproduzir sua tradição, expressa no usufruto coletivo da terra. A roça, com todas as
limitações para a sua prática, nunca deixa de ser feita e é uma prática social que permeia
a vida coletiva dos moradores, e garante seu sustento. Podendo ser feita por uma
família, ou por várias, não há conflitos na demarcação e escolha das partes de terra que
serão roçadas.
A produção econômica de subsistência é uma característica histórica do Rio
Grande e ratifica a constatação de que esta é uma terra de uso comum, onde as práticas
sociais em geral são feitas de forma coletiva, lógica transmitida às gerações mais novas.
Na produção de farinha, esse caráter “comum” é novamente comprovado. Como
existem três casas de forno na comunidade (uma delas secular), o uso é feito de forma
coletiva. Segundo relato de moradores, cada família que usa a casa de farinha doa 3 kg
da sua produção para o dono da mesma, como “gratidão” e para a própria “manutenção”
da casa de forno.
Outro caráter comum enfatizado diz respeito à festa de Santo Antônio. A
organização das novenas, do espaço da festa, do altar e andor do santo, das comidas, da
procissão, todo esse processo é feito de forma conjunta. Além de expressar a
religiosidade do povoado, a festa de Santo Antônio caracteriza o Rio Grande quando os
“de fora” se referem à comunidade como a terra da festa de Santo Antônio. O festejo
também apresenta elementos de aproximação identitária que transcende as fronteiras
geográficas. Muitas pessoas “de fora”, que não moram mais no Rio Grande, mas que
são filhas daquele chão, voltam à comunidade para participar da festa. Segue calendário
e sistemática dos acontecimentos festivos:
TABELA 3: Calendário da Festa de Santo Antônio Dia 31 de maio
De 1 a 11 de junho 12 de junho 13 de junho
Início do festejo Novenas (ladainha) [Cada família é
responsável por um dia da novena]
Primeiro dia de festa, com radiola de reggae à noite.
Encerramento do festejo com a
procissão no final da tarde e reggae a
noite. Fonte: Grupo de Pesquisa Representações sociais, etnicidade e desenvolvimento regional.
Mediante a breve apresentação sócio-política e econômica do Rio Grande, pode-
se perceber o descaso, já mencionado, do estado para com essas comunidades. O
alcance de alguns benefícios geralmente é feito pela própria comunidade, como a
criação da Associação dos Moradores do Povoado do Rio Grande, fundada em 1994
com 52 pessoas, visando trazer energia para o povoado. Recentemente a comunidade se
mobilizou para pleitear um orelhão público, mas a comunidade permanece sem o acesso
à comunicação telefônica e o Estado continua a não exercer nenhuma influência
concreta em suas vidas.
Como podemos perceber no estudo de caso do Rio Grande, as comunidades
quilombolas em geral estão entre as mais pobres e menos assistidas pelas políticas
públicas estatais. Se as políticas públicas voltadas para as comunidades quilombolas não
têm atendido às necessidades das famílias, ou quando atendem assim o fazem de forma
precária e insuficiente, esse descaso é ainda maior no que se refere às comunidades
ainda não reconhecidas e tituladas.
Em análise anterior falávamos das dificuldades e irregularidades cometidas pelo
Estado no processo de reconhecimento de comunidades quilombolas, devido à
complexidade das exigências, dos entraves do discurso, da negligência de informação
aos sujeitos de direito e das décadas que se levam para a regularização das terras.
É fato que as comunidades necessitam do aparato do Estado para obterem
melhores condições de vida e ainda que as políticas destinadas aos remanescentes
quilombolas sejam ínfimas, são elas que, no momento, visam garantir “melhores
condições” de vida aos quilombolas.
Duas políticas voltadas para a vida das comunidades quilombolas no Brasil
seriam o Programa Brasil Quilombola e a Agenda Social Quilombola que, segundo a
proposta inicial, visa a melhoria das condições de vida e ampliação do acesso a bens e
serviços públicos das pessoas que vivem em comunidades de quilombos no Brasil.
O Decreto Nº. 6261 de 20 de novembro de 2007, que dispõe sobre a gestão
integrada para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola, afirma no Art. 2º que
este programa compreende ações voltadas para o acesso a terra, a infra-estrutura e
qualidade de vida, a inclusão produtiva e o desenvolvimento local, e a cidadania;
visando, segundo o Art. 3º, alcançar prioritariamente as comunidades quilombolas com
índices significativos de violência, baixa escolaridade e em situação de vulnerabilidade
social.
Cabe analisar se as propostas do Estado contemplam a efetivação dos direitos
para esse segmento social e se de fato tem sido implementadas, ou se continuam
meramente no âmbito formal. Vinte e um anos se passaram desde que o direito foi
formalmente garantido e o que se observa na prática, tomando o caso do Rio Grande
como exemplar, é que essas comunidades continuam a enfrentar grandes problemas,
cotidianos e burocráticos, que dificultam o acesso ao direito.
Com relação à questão quilombola evidencia-se que o Estado continua a
elaborar políticas públicas para sujeitos que nem se quer sabem da existência de tais
direitos. Como resultado da atual situação histórica e sociológica manifestam-se os
impasses e ambiguidades em torno da remanescência quilombola, que continuam a
ganhar espaço na burocracia estatal, no meio acadêmico e no movimento social
específico.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas leituras preliminares para a construção deste estudo, o direito expresso no
artigo 68 da Constituição Federal apresentava-se como um avanço do ponto de vista das
políticas públicas voltadas para a questão racial no Brasil. Ainda que tenha sido fruto do
improviso e de muitos impasses, representava um marco no âmbito das políticas que
visavam reparar o dano histórico sofrido pelos afro-descendentes e suas consequências
na atualidade.
Se pensarmos do ponto de vista das garantias e das políticas de igualdade racial
no Brasil, o artigo 68 apresenta formalmente um status jurídico pertinente, mas nem por
isso eficaz. Esse ato constitucional suscitou inicialmente uma “falsa impressão”, como
se o reconhecimento da propriedade definitiva e o título da terra emitido pelo Estado
fosse algo “já garantido”. O que se está a questionar não é a existência dos
procedimentos para a identificação de uma terra quilombola, necessários para este fim, e
sim a complexidade dos mesmos, que conjuntamente com outros fatores, dificultam o
processo de reconhecimento.
Como apresentamos inicialmente, o termo quilombo e sua conceituação,
propagada pela historiografia e impregnada no imaginário social, precisou ser
atualizado para abarcar a gama de situações que envolviam o contexto atual.
Compreendendo a diversidade de comunidades negras rurais e tomando como base as
indefinições do texto legal, ressignificar um termo histórico utilizado pela Constituição
Federal representava uma das propostas que visavam facilitar o processo de
regularização de terras quilombolas, além de poder abarcar um número maior de
comunidades remanescentes que se encontravam “fora” da conceituação clássica de
quilombo.
A terra quilombola do Rio Grande encontra-se envolvida em todo esse processo
que vai desde a sua “descoberta” e reconhecimento como quilombola, até a
regularização e titulação de suas terras. Como não constava em nenhum dos
levantamentos quantitativos equivalente às comunidades quilombolas no Maranhão, o
Rio Grande iniciava os primeiros passos “começando do zero”. De início as
investigações se davam na tentativa de identificar o caráter quilombola da comunidade,
com olhar voltado para a identificação dos verdadeiros sujeitos de direito da terra.
E ao longo da pesquisa outros problemas viriam à tona. Entre um dos critérios
principais exigidos pela Fundação Cultural Palmares, encontrava-se a necessidade de
comprovação da ancestralidade negra e da ancianidade de ocupação do território. Foi
partindo desse ponto que se iniciaram os primeiros registros da história da comunidade
e a busca por elementos que comprovassem a “herança” quilombola da terra, expressa
nos mais variados relatos de seus moradores.
Esse foi um dos momentos mais “emocionantes” da pesquisa. O registro da
memória oral dos moradores do Rio Grande começava a fazer sentido na vida de cada
um dos informantes, sempre muito solícitos e convictos de que aquela pesquisa poderia
representar para a comunidade muito mais do que um simples “resgate” de suas
memórias, expressava o alcance de um direito e a conquista definitiva de suas terras.
Emocionante também para mim que, a cada visita, conversa informal e gravações por
horas, me via envolvida num mundo maior, compreendendo cada vez mais a
importância daquele registro para uma comunidade onde o descaso do Estado é visível.
As comprovações de que o Rio Grande era uma terra quilombola ganhava força
em cada registro elaborado com base na história oral. As pesquisas documentais iam se
cruzando a todo instante com o que ficou na memória. Cada informante expunha à sua
maneira o que a memória individual e coletiva havia selecionado. No entanto, nem
todos encaravam a identidade quilombola da mesma forma, havia quem a recusasse.
Mas ao longo de nossas visitas, alguns destes iam aos poucos compreendendo a
importância de “assumir-se”. A causa parecia ganhar forma e sentido.
Se perguntássemos sobre a herança negra, sobre os ex-escravos que viveram
naquelas terras e sobre a opressão histórica vividas pelos anciãos da comunidade, os
relatos fluíam. Entretanto, o termo quilombola não era de conhecimento de muitos. Para
alguns deles “os quilombolas” éramos nós, que havíamos levado o conhecimento dessa
forma de resistência escrava até eles.
Ao longo da escrita, o Rio Grande foi servindo de base para a compreensão da
complexidade que envolve esse tema, desde a sua inserção nas discussões em torno do
termo quilombo, quanto nas políticas destinadas a esse segmento.
Os dados históricos apresentados pela oralidade do Rio Grande serviriam de
base para o documento que seria enviado à FCP, apenas um dos outros tantos
procedimentos necessários. A partir daí iniciar-se-ia um longo processo de luta e longa
espera pela regularização das terras do Rio Grande; os moradores ainda terão de esperar
por um longo período, em virtude da lentidão do processo e da ineficiência das políticas
voltadas para a questão racial no Brasil.
As políticas públicas destinadas a esse segmento social fazem parte de um
processo de busca por melhorias para as comunidades quilombolas, que apresentam as
marcas do descaso do poder público: são pobres, sem acesso à saúde, à educação, à
saneamento básico, à energia elétrica, à telefonia, enfim, sem as condições mínimas
necessárias para a sobrevivência.
Além de que o Estado brasileiro insiste em fazer políticas para sujeitos que não
sabem se quer da existência desse direito, como foi o caso do Rio Grande e de outras
tantas comunidades quilombolas ainda não recenseadas. O direito “teoricamente”
garantido apresenta lacunas que permanecem incompletas, mesmo depois de Decretos e
Portarias publicadas visando a melhoria e facilitação do processo de regularização.
Ainda assim essa é a forma legal para a garantia do direito e a “resolução” dos
conflitos em torno da questão racial e agrária no Brasil. Ainda que o direito esteja em
parte assegurado e “às claras” do ponto de vista das políticas de igualdade racial, este
mesmo direito permanece “na escuridão”, como se seus verdadeiros beneficiários não
tivessem meios para enxergá-lo. Resta saber quantos anos os moradores ainda terão que
esperar para enfim alcançarem seus direitos.
REFERÊNCIAS
FONTES:
MANUSCRITAS
(Arquivo Público do Estado do Maranhão)
• Repertório de Documentos para a História de Escravos no Maranhão, datados do
século XIX.
• Livro de Registros de Terras da Freguesia de Santo Antônio e Almas (1854-
1857).
• Livro de Registro Paroquial das Terras da Freguesia do Apóstolo São Mathias
da Cidade de Alcântara – 1854 – 1857.
• Registros de Alvarás e Cartas de Sesmarias (XIX).
(Cartórios de Alcântara - MA)
• Livros de Registro de Certidão de Imóvel – Registro de Terras - do Municípios
de Alcântara e Bequimão (incluindo a Freguesia de Santo Antônio e Almas
(1850-1935) – Cartório do 1º Ofício de Notas e Anexos – Alcântara – MA.
• Livro de Registro de Terras da Freguesia de Santo Antônio e Almas e do
município de Bequimão (1850-1835) – Cartório Civil – Alcântara – MA.
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______. O quilombo antigo e o quilombo contemporâneo: verdades e construções. In: XXIV Simpósio Nacional de História 2007. Associação Nacional de História – ANPUH. FILHO, Benedito Souza. Os pretos de Bom Sucesso: terra de preto, terra de santo, terra comum. São Luís: Edufma, 2008. FURTADO, Marivânia Leonor Souza Furtado. SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Respeito à igualdade pela diferença: o contexto das políticas públicas e a questão quilombola no Maranhão. Texto elaborado para publicação em Revista Acadêmica Especializada. 2009. GAMA, Alcides Moreira da. O direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades descendentes de quilombos (Setembro de 2005). In: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7396. Último acesso em: 10 de abril de 2009. GORENDER, Jacob. Regime territorial no Brasil escravista. In: STEDILE, João Pedro (org.). A Questão agrária no Brasil: o debate na esquerda-1960-1980. São Paulo: Expressão Popular, 2005. MAESTRI, Mário. A aldeia ausente: índios, caboclos, cativos, moradores e imigrantes na formação da classe camponesa brasileira. In: STEDILE, João Pedro (org.). A Questão agrária no Brasil: o debate na esquerda-1960-1980. São Paulo: Expressão Popular, 2005. MOURA, Clóvis. A quilombagem como expressão de protesto radical. In: MOURA, Clóvis (Org.). Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Maceió- AL: 2001. MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo em África. In: MOURA, Clóvis (Org.). Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Maceió- AL: 2001. NOGUEIRA, João Carlos (org.). Desenvolvimento e Comunidades Negras Rurais Quilombolas no Maranhão: Produzir para a cidadania. Relatório de pesquisa do perfil socioeconômico da população do Território Quilombola de Alcântara – MA. 2008. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro: Vértice, 1989. Vol. 2. n. 3. _____. Memória e Identidade Social. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro: Vértice, 1992. Vol. 5. n. 10. PROJETO VIDA DE NEGRO. Terra de Preto no Maranhão: quebrando o mito do isolamento. Coleção Negro Cosme. Vol. III. São Luís: SMDH/CNN-MA/PVN, 2002. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”. In: SIMSON, Olga Moraes Von. (Org.). Experimentos com história de vida. São Paulo: Vértice, 1988.
REIS, João José Reis; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SANTOS, Maria Januária Vilela. A Balaiada e a insurreição de escravos do Maranhão. São Paulo: Ática, 1983. SAUER, Sérgio. Conflitos agrários no Brasil: a construção de identidade social contra a violência. In: BUAINAIN, Antônio Márcio (coord.). Luta pela terra, reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil. Campinas, SP: UNICAMP, 2008. SHIRAISHI NETO, Joaquim. Inventário das leis, decretos e regulamentos de terras do Maranhão 1850-1996. Belém: UFPA, 1998. SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: UNESP, 2004.
ANEXO A: INFORMANTES
DONA ELZA, 57 anos, nascida no Rio Grande. É conhecida na comunidade por sua habilidade para tocar caixa (Forró de caixa). Dona Elza tem guardado em sua memória o que ouviu seus pais dizerem sobre a escravatura no território. É membro ativo da Associação.
SEU AGNALDO, 57 anos, nascido no Rio Grande e um dos principais informantes. Professor da única escola da comunidade. Era sempre apontado como um dos que detinha a memória do grupo. Conhecedor da história de ancianidade de ocupação e da ancestralidade negra do território, seu Agnaldo diz ter sido “sempre muito interessado” na história de seus ascendentes.
DONA CANUTA, 73 anos, nascida no Rio Grande. Sua família seria descendente de uma escrava vinda do Ariquipá, antigo Engenho, hoje comunidade quilombola reconhecida pela FCP. Com os filhos morando na capital, Dona Canuta nos diz que morar no Rio Grande é melhor do que em qualquer outro lugar. É um lugar onde ela pode criar seus animais e fazer sua roça tranquilamente.
DONA EUGÊNIA, 70 anos, nascida no Rio Grande. Conta-nos sobre o “disse me disse” da titulação, mas garante que ninguém tem título de terra. Lembra da escravidão contada por sua mãe de forma muito triste.
SEU CARLOS, 84 anos, nasceu no Benfica e chegou ao Rio Grande ainda criança. Como o Rio Grande era a base de muitas frentes de ocupação, Seu Carlos nos diz que era comum muitas famílias ficarem nesse “vai e vem”, mas sempre voltavam para o Rio Grande. Ele mesmo morou até em Alcântara, mas formou família no Rio Grande e mora lá até hoje.
SEU CHITA, 50 anos, é irmão de Dona Elza e nos ajudou com muitas informações. É um morador que tem aderido à causa da titulação e nos dá muitas informações sobre a ocupação da terra. Na foto, seu Chita encontra-se ao lado do Rio Grande.
DONA SÔNIA, atual presidente da Associação dos moradores do povoado do Rio Grande, compõe a geração dos “mais novos”. É da família de Seu Agnaldo, que teria vindo da comunidade quilombola Castelo, em Alcântara-MA. A família de sua mãe tem origem no Ariquipá.
DONA JOSEFA, 68 anos, é esposa de Seu Carlos. Nasceu em Beira Campo, mas considera-se “filha” do Rio Grande, e foi registrada como tal. Seu pai, Lodijero Rodrigues, era filho do Rio Grande e apontado por muitos como o morador que dizia ter o título da terra.
DONA ILDENÊ, nascida no Rio Grande, compõe a geração dos “mais novos” da comunidade. É esposa se Seu Luís Mariano, o “dono do santo Antônio”. A festa é realizada nas mediações de sua casa todos os anos. Contribuiu de forma significativa para os trabalhos de campo desenvolvidos na Comunidade.
ANEXO B: MAPA DO RIO GRANDE (Construído de acordo com as “pedras
limites” colocadas pelos antigos moradores para delimitar a área territorial do Rio
Grande).
Fonte: Stéfani Melo (Grupo de Pesquisa Representações sociais, etnicidade e desenvolvimento
regional).
ANEXO C: Comunidades Reconhecidas pela FCP no Maranhão, entre os anos de
2004 e 2009.
2004
MARANHÃO / MA
NÚMERO DE
ORDEM
COMUNIDADE MUNICÍPIO DATA - PUBLICAÇÃO
DIARIO OFICIAL DA UNIÃO
01 ÁGUAS BELAS ALCÂNTARA 10/12/2004
02 BOM SUCESSO MATA ROMA 04/06/2004
03 MATA DO SÃO BENEDITO ITAPECURU-MIRIM 04/06/2004
04 MONTE ALEGRE / OLHO D´ÁGUA DOS GRILOS SÃO LUIZ GONZAGA
25/05/2005
05 PIQUI/SANTA MARIA ITAPECURU-MIRIM 10/12/2004
06 SANTA LUZIA SANTA RITA 04/06/2004
07 SANTA MARIA DOS PINHEIROS ITAPECURU-MIRIM 04/06/2004
08 YPIRANGA DA CARMINA ITAPECURU-MIRIM 25/05/2005
2005
MARANHÃO / MA
NÚMERO DE
ORDEM
COMUNIDADE MUNICÍPIO DATA - PUBLICAÇÃO DIARIO OFICIAL DA
UNIÃO
01 ALIANÇA CURUPURU 12/07/2005
02 ÁRVORES VERDES BREJO 25/05/2005
03 BACURI DOS PIRES CANTANHEDE 06/12/2005
04 BOA ESPERANÇA BREJO 12/09/2005
05 BOA VISTA BREJO 06/12/2005
06 BOM JESUS DOS PRETOS LIMA CAMPOS 09/11/2005
07 CATUCÁ BACABAL 06/12/2005
08 CONTENDAS ITAPECURU
MIRIM 19/08/2005
09 CRIULIS E BOCA DA MATA BREJO 12/09/2005
10 DAMÁSIO GUIMARÃES 08/06/2005
11 FAVEIRA BREJO 08/06/2005
12 FILIPA ITAPECURU MIRIM
25/05/2005
13 FINCA PÉ PRESIDENTE VARGAS
25/05/2005
14 JACAREZINHO SÃO JOÃO DO
SÓTER 06/12/2005
15 JIQUIRI E SÃO RAIMUNDO SANTA RITA 09/11/2005
16 MARANHÃO NOVO CEDRAL 19/08/2005
17 MATÕES DOS MOREIRAS CODÓ 09/11/2005
18 MONGE BELO ITAPECURU
MIRIM 30/09/2005
19 MOREIRA ITAPECURU
MIRIM 19/08/2005
20 NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO SANTA RITA 06/12/2005
21 PALACETE SERRANO 30/09/2005
22 PIRATININGA BACABAL 06/12/2005
23 PITOMBEIRA BURITI 09/11/2005
24 POVOADO DE BELMONTE VARGEM
GRANDE 12/07/2005
25 RESFRIADO PERITORÓ 19/08/2005
26 SACO DAS ALMAS BREJO 30/09/2005
27 SANTA ALICE BREJO 30/09/2005
28 SANTA CRUZ BURITI 19/04/2005
29 SANTA HELENA ITAPECURU
MIRIM 30/09/2005
30 SANTA JOANA CODÓ 30/09/2005
31 SANTA JOANA CURUPURU 12/07/2005
32 SANTA ROSA ITAPECURU
MIRIM 12/07/2005
33 SANTANA DOS PRETOS PINHEIROS 08/06/2005
34 SANTO ANTÔNIO CEDRAL 19/08/2005
35 SANTO ANTÔNIO DAS SARDINHAS LIMA CAMPOS 30/09/2005
36 SANTO INÁCIO E CASTELO ALCÂNTARA 09/11/2005
37 SÃO JOSÉ BURITI 12/09/2005
38 SÃO MAURÍCIO ALCÂNTARA 09/11/2005
39 SÃO PEDRO ANANJATUBA 08/06/2005
40 SÃO PEDRO ITAPECURU-
MIRIM 12/09/2005
41 SÃO ROQUE ANANJATUBA 08/06/2005
2006
MARANHÃO / MA
NÚMERO DE
ORDEM
COMUNIDADE MUNICÍPIO DATA - PUBLICAÇÃO DIARIO OFICIAL DA UNIÃO
01 ARIQUIPÁ BEQUIMÃO 28/07/2006
02 BOLONHA CAJARI 28/07/2006
03 BOM PRINCÍPIO BREJO 12/05/2006
04 BREJO DE SÃO FÉLIX PARNARAMA 13/12/2006
05 CAMAPUTIUA CAJARI 24/03/2006
06 CAMINHO NOVO PENALVA 13/12/2006
07 CAMPO REDONDO BACABAL 12/05/2006
08 CARIONGO SANTA RITA 13/12/2006
09 CIPOAL DOS PRETOS CODÓ 13/12/2006
10 CUMUM GUIMARÃES 07/06/2006
11 ESTIVA DOS COTÓ PRESIDENTE VARGAS 28/07/2006
12 ESTIVA II E ADJACENTES (BELEZA)
CENTRAL DO MARANHÃO 07/06/2006
13 GUARACIABA BACABAL 12/05/2006
14 ILHA DO CAJUAL ALCÂNTARA 24/03/2006
15 ITAMATATIUA ALCÂNTARA E BEQUIMÃO
12/05/2006
16 JAGUARANA COLINAS 28/07/2006
17 MARMORANA E BOA HORA 3 ALTO ALEGRE DO
MARANHÃO 07/02/2007
18 MATA BOI MONÇÃO 13/12/2006
19 MONTEIRO TIMON 12/05/2006
20 PEIXES COLINAS 13/12/2006
21 SANTA MARIA VARGEM GRANDE 28/07/2006
22 SANTO ANTÔNIO SERRANO DO
MARANHÃO 31/10/2006
23 SÃO BENEDITO DO ELCIAS PERITORÓ 28/07/2006
24 SÃO ZACARIAS II SÃO JOÃO DO SÓTER 13/12/2006
25 TABOCA DO BELÉM COLINAS 28/07/2006
26 VISTA ALEGRE ITAPECURU-MIRIM 12/05/2006
2007
MARANHÃO / MA
NÚMERO DE
ORDEM
COMUNIDADE MUNICÍPIO DATA - PUBLICAÇÃO DIARIO OFICIAL DA UNIÃO
01 BEBE FUMO PRESIDENTE SARNEY 07/02/2007
02 BEM POSTA PRESIDENTE SARNEY 07/02/2007
03 CANTA GALO ITAPECURU-MIRIM 07/02/2007
04 CENTRO DOS VIOLAS SANTA RITA 07/02/2007
05 COCAL PRESIDENTE SARNEY 07/02/2007
06 CURITIBA ITAPECURU-MIRIM 07/02/2007
07 JERICÓ PRESIDENTE SARNEY 07/02/2007
08 JUSSATUBA SÃO JOSÉ DO RIBAMAR 16/05/2007
09 MANDACARU DOS PRETOS MATÕES 02/03/2007
10 MATO DO BRITO PRESIDENTE SARNEY 07/02/2007
11 MIRIM E CURITIBA ITAPECURU-MIRIM 02/03/2007
12 MIRIM ITAPECURU-MIRIM 13/03/2007
13 OITEIRO PINHEIRO 16/05/2007
14 OUTEIRO MONÇÃO 16/05/2007
15 POVOADO BENFICA ITAPECURU-MIRIM 02/03/2007
16 POVOADO MATA III ITAPECURU-MIRIM 02/03/2007
17 QUATRO BOCAS PRESIDENTE SARNEY 07/02/2007
18 QUEIMADA DE JOÃO PINHEIRO 16/05/2007
19 RIO DOS PEIXES PINHEIRO 16/05/2007
20 SANTA MARIA PRESIDENTE SARNEY 07/02/2007
21 SANTA MARIA CAJARÍ 16/04/2007
22 SANTA RITA PRESIDENTE SARNEY 07/02/2007
23 SANTANA SÃO PATRÍCIO ITAPECURU-MIRIM 13/03/2007
24 SANTO ANTÔNIO DOS PRETOS PRIMEIRA CRUZ 16/05/2007
25 SÃO FELIPE PRESIDENTE SARNEY 07/02/2007
26 SÃO FRANCISCO DO MALAQUIAS
VARGEM GRANDE 13/03/2007
27 SÃO JOSÉ ALTO ALEGRE 13/03/2007
2008
MARANHÃO / MA
NÚMERO DE
ORDEM
COMUNIDADE MUNICÍPIO DATA - PUBLICAÇÃO
DIARIO OFICIAL DA UNIÃO
01 ALTO BONITO BREJO 05/03/2008
02 BOM JESUS CODÓ 05/03/2008
03 CALDO QUENTE OLINDA NOVA 05/03/2008
04 SANTA MARIA ICATU 05/03/2008
05 TIJUCA PERI-MIRIM 05/03/2008
06 POVOADO DE SANTA LUZIA SANTA RITA 05/03/2008
07 POVOADO JAVI ITAPECURU-MIRIM 05/03/2008
08 SÃO MIGUEL ROSÁRIO 10/04/2008
09 POVOADO PEDREIRAS SANTA RITA 10/04/2008
10 PAPAGAIO ICATU 10/04/2008
11 BITIUA BACURI 23/04/2008
12 BOA VISTA DOS FREITAS SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
23/04/2008
13 POTOZINHO SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
23/04/2008
14 PROMISSÃO VELHA SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
23/04/2008
15 SANTA CRUZ SÃO LUÍS GONZAGA
23/04/2008
16 SANTO ANTÔNIO DO COSTA/VALE VERDE SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
23/04/2008
17 SÃO DOMINGOS SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
23/04/2008
18 SÃO PEDRO SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
23/04/2008
19 POVOADO DE SANTARÉM SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
23/04/2008
20 COHEB SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
13/05/2008
21 LAGO DA ONÇA PEDREIRAS 13/05/2008
22 BRASILINA ITAPECURU-MIRIM 04/08/2008
23 BOA VISTA PINHEIRO 09/12/2008
24 CIGANA GRANDE PRESIDENTE VARGAS
09/12/2008
25 CAVIANÃ PRESIDENTE VARGAS
09/12/2008
26 BOM JARDIM DA BEIRA PRESIDENTE VARGAS
09/12/2008
27 PUÇÃO PRESIDENTE VARGAS
09/12/2008
28 BURAGIR ITAPECURU-MIRIM 09/12/2008
29 PEDRINHAS SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
09/12/2008
30 SANTANA SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
09/12/2008
31 MORADA NOVA DO DEUSDETH SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
09/12/2008
32 MORADA VELHA SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
09/12/2008
33 MONTE CRISTO SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
09/12/2008
34 POTÓ VELHO SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
09/12/2008
35 MATA BURROS SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
09/12/2008
36 SANTO ANTÔNIO DOS VIEIRAS SÃO LUÍS GONZAGA DO MARANHÃO
09/12/2008
37 LAGOA GRANDE PRESIDENTE VARGAS
31/12/2008
38 BOA HORA DO PULUCA PRESIDENTE VARGAS
31/12/2008
39 BOA HORA I PRESIDENTE VARGAS
31/12/2008
40 BOA HORA PRESIDENTE VARGAS
31/12/2008
41 SAPUCAIAL PRESIDENTE VARGAS
31/12/2008
42 FILOMENA PRESIDENTE VARGAS
31/12/2008
43 LAJEADO PRESIDENTE VARGAS
31/12/2008
44 FINCAPÉ I PRESIDENTE VARGAS
31/12/2008
-
2009
MARANHÃO / MA
NÚMERO DE
ORDEM
COMUNIDADE MUNICÍPIO DATA - PUBLICAÇÃO
DIARIO OFICIAL DA UNIÃO
01 OITEIRO DOS NOGUEIRAS ITAPECURU MIRIM 05/05/2009
02 CENTRO DOS CRUZ/BELA VISTA SÃO LUIS GONZAGA DO MARANHÃO
05/05/2009
03 FAZENDA CONCEIÇÃO SÃO LUIS GONZAGA DO MARANHÃO
05/05/2009
04 SANTA ROSA SÃO LUIS GONZAGA DO MARANHÃO
05/05/2009
05 ESTIVA DOS MAFRAS MIRINZAL 05/05/2009
Fonte: www.palmares.gov.br