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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO – UEMA CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECEN DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA LELLYA ALVES BARBOSA O QUE AS FONTES TÊM A DIZER SOBRE OS CAVALEIROS? DER ARME HEINRICH (1195) E O LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA (1279-1283): uma análise da cavalaria perfeita São Luís 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO – UEMA

CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECEN

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

CURSO DE HISTÓRIA

LELLYA ALVES BARBOSA

O QUE AS FONTES TÊM A DIZER SOBRE OS CAVALEIROS? DER ARME

HEINRICH (1195) E O LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA (1279-1283):

uma análise da cavalaria perfeita

São Luís

2008

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LELLYA ALVES BARBOSA

O QUE AS FONTES TÊM A DIZER SOBRE OS CAVALEIROS? DER ARME

HEINRICH (1195) E O LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA (1279-1283):

uma análise da cavalaria perfeita

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Estadual do Maranhão - UEMA, para

obtenção de Grau em História Licenciatura.

Orientadora: Prof.ª Dra. Adriana Maria de Souza Zierer

São Luís

2008

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BARBOSA, Lellya Alves

O que as fontes têm a dizer sobre os cavaleiros? Der Arme Heinrich (1195) e o Livro da Ordem de Cavalaria (1279-1283): uma análise da cavalaria perfeita/ Lellya Alves Barbosa.- São Luís, 2008.

68 p.

Orientadora: Prof.ª Dr(a). Adriana Maria de Souza Zierer.

Monografia(Graduação)–Curso de História – Universidade Estadual do Maranhão, 2008.

1. Cavaleiro. 2. Igreja. 3. Valores Cristãos. 4. Idade Média. I. Título.

CDU: 94(100).”05/...”

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LELLYA ALVES BARBOSA

O QUE AS FONTES TÊM A DIZER SOBRE OS CAVALEIROS? DER ARME

HEINRICH (1195) E O LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA (1279-1283):

uma análise da cavalaria perfeita

Aprovada em: 08/04/2008

BANCA EXAMINADORA

Adriana Maria de Souza Zierer

( Orientadora)

Ana Lívia B. Vieira

1º Examinador (a)

Fábio Henrique Monteiro Silva

2º Examinador (a)

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A minha querida família Sebastião, Josefa,

Leana e Feliciana

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“...O erudito que não tenha o gosto de olhar à volta de si mesmo,

nem para os homens, nem para as coisas, nem para os

acontecimentos, merece talvez, como dizia Pirenne, que lhe

chamem de um prestimoso antiquário. Mas deveria ter o bom

senso de renunciar ao nome de historiador”.

(Marc Bloch)

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, não podia deixar de agradecer a Deus. Sem a confiança no seu

inestimável poder, nada disso seria realizado.

Aos meus queridos pais, pelo apoio, força, conselhos, proteção, carinho e

principalmente muito amor. Sebastião e Josefa não tenho palavras para expressar tanta

gratidão, ou melhor, tenho: Amo muito vocês, obrigada pelo que me tornei!

Sou grata a minha avó Feliciana pelas orações e confiança em mim creditada.

A minha irmã Leana, pelo auxílio nas horas difíceis, pelas palavras amigas. Sem ti

a vida perderia o sentido. Obrigada por me suportar!

A minha querida madrinha Vânia que, apesar do momento difícil que se encontra,

sempre torceu por mim.

À Adriana Zierer, pela ajuda inestimável, sem o auxílio e incentivo a mim

dedicados, pouco teríamos realizado. Mais uma vez: Obrigada, querida professora!

Aos meus professores, do Colégio Valmar, do Centro de Ensino Médio Edison

Lobão e claro, do curso de História da UEMA, dos quais busquei apreender os melhores

ensinamentos.

Aos meus amigos do curso de História, turma do primeiro semestre de 2003:

Alanna, Sílvia, Pollyanna, pelo calor humano tão necessário; Tatiane, Cleonice, André,

Eduardo, Marco Aurélio, Rafael, Netinho. Pessoas que com gestos, idéias, críticas me

proporcionaram bons momentos na Universidade.

Sou grata também aos colegas (ex e atuais) do Centro de Cultura Popular

Domingos Vieira Filho- Casa da Fésta pelo estímulo e preocupação nesse momento tão tenso

que foi a elaboração desse trabalho.

À Neila, que se dispôs a me ajudar.

Às outras tantas pessoas que torceram pela realização desse sonho. A todas sou

grata e a elas fica nosso sincero agradecimento

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RESUMO

A sociedade medieval, tal como outras sociedades históricas apresenta sua estrutura

social. De acordo com a teoria das três ordens (divisão em oratores, bellatores e laboratores)

as pessoas eram distinguidas pela função que exerciam. Cabia a cada um desses segmentos

desempenhar o seu papel nessa estrutura. Entre esses estavam os cavaleiros, grupo que tinha

por finalidade o aspecto defensivo. Por estarem envolvidos em lutas privadas, emboscadas,

cercados de muita destruição, representavam a violência da época medieval. Aos olhos da

Igreja, a cavalaria, deveria empreender seus serviços a favor da Cristandade, da luta contra os

infiéis. Para tanto, tentou controlar a agressividade causada por esses homens através de

assembléias de paz, do recrutamento dos seus serviços e da promoção de valores cristãos.

Assim, os guerreiros estariam pautados na obediência à Igreja e, sobretudo a Deus. Devido

seu prestígio, seu destaque nas atividades militares, a cavalaria passa a ser retratada nas

produções literárias. Nesse sentido, em Der Arme Heinrich (O Pobre Henrique), romance

escrito no século XII podemos observar a descrição de um cavaleiro, suas glórias alcançadas,

bem como a presença da doutrinação cristã. Assim como, em O Livro da Ordem de Cavalaria

(1279-1283), Ramon Llull propunha um modelo de cavaleiro cristão, responsável pela

pacificação social e propagador da fé católica. É a construção desses modelos de cavaleiros

que nos interessa.

Palavras-chave: Cavaleiro-Igreja-Valores Cristãos-Idade Média

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ABSTRACT

The medieval society, just as other historical societies presents its social structure.

In agreement with the theory of the three orders (social division in oratores, bellatores and

laboratores) the people were distinguished by the function that they exercised in society. It fit

to each one of those segments to carry out his/her role in society. Among those they were the

knights, group that had for purpose the defensive aspect. For they be werer involved in

deprived fights, ambushes, fences of a lot of destruction, represented the violence of the

medieval times. To the eyes of the Church, the chivalry, should undertake their services in

favor of the Christianity, of the fight against the infidels. For so much, it tried to control the

aggressivines caused by those men through peace assemblies, of the recruitment of their

services and of the promotion of Christian values. Like this, the warriors would be ruled in the

obedience to the Church and, above all to God. Due its prestige, its prominence in the military

activities, the chivalry becomes portrayed in the literary productions. In that sense, in (The

armer Heinrich), romance written in the century we can observe a knight’s description, their

reached glories, as well as the presence of the Christian doutrination. As well as, in The Book

of Chivalry Order (1279-1283), Ramon Llull proposed a model of Christian knight,

responsible for the social pacification and propagator of the Catholic faith. It is the

construction of those models of knights that interests us.

Key-words: Knight-church-values-Middle Ages

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ILUSTRAÇÕES

1- Cavaleiros em Torneio (também chamado de Melée. Museu de Tours, miniatura

florentina, final do séc. XIV) ............................................................................................

23

2- Herr Wernher Von Teufen. Codex Manesse. Séc. XIV ……………………………. 26

3- A cavalaria normanda investe contras as forças de Haroldo. Começa a Batalha

de Hastings. Na cena, são sete cavaleiros, tendo à frente arqueiros. Tapeçaria de

Bayeux (c. 1070-1090) .......................................................................................................

45

4- A viagem de Ramon Llull a Túnis e sua disputatio com os líderes religiosos

mulçumanos. Iluminura VII do Breviculum...................................................................

51

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

1. O CENÁRIO OCIDENTAL: A SOCIEDADE TRIPARTIDA ............................ 14

2. O CAVALEIRO E A DONZELA EM DER ARME HEINRICH: UMA

ANÁLISE DA CAVALARIA IDEAL ......................................................................

26

3. A CAVALARIA NA VISÃO DE RAMON LLULL: UMA PROPOSTA DE

REGIMENTO SOCIAL ............................................................................................

45

3.1 Breve Biografia de Llull ..................................................................................... 45

3.2 As viagens e uma só missão: a propagação da fé católica ............................... 48

3.3 Ramon Llull e sua proposta doutrinária em O Livro da Ordem de Cavalaria

.....................................................................................................................

53

3.4 Der Arme Heinrich e O Livro da Ordem de Cavalaria: o que essas fontes

podem ter em comum? ...............................................................................................

58

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 62

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 65

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INTRODUÇÃO

A escrita da história apresenta hoje novas abordagens, entre as quais o estudo do

imaginário. Herdeiro da História das Mentalidades, o Imaginário consiste num objeto

complexo. Seus domínios históricos articulam as imagens visuais, verbais e mentais com a

própria vida social. “O imaginário mostra-se desta forma uma dimensão tão significante das

sociedades humanas como aquilo que corriqueiramente é encarado com a realidade efetiva”

(BARROS, 2004, p.91).

De acordo com Le Goff (1994, p.13), “até o mais prosaico dos documentos pode

ser comentado, quer na forma quer no conteúdo, em termos de imaginário”. Tal

documentação permite ao historiador assumi-la como espaço de pesquisa.

O presente estudo, inserido no contexto da historiografia medieval, mais

especificamente no campo da História do Imaginário, propõe uma análise a respeito da

cavalaria, do cavaleiro ideal no final século XII até meados do XIII. Embora a produção sobre

a cavalaria medieval seja considerável, as fontes ainda dão margens aos questionamentos.

Esta pesquisa pretende contribuir para o conhecimento dessa sociedade no período acima

abordado e principalmente da função dos cavaleiros, pois havia todo um imaginário acerca

desse grupo.

Observar a sociedade medieval nesse período significa analisar um momento

marcado pelo olhar poderoso da Igreja. Essa instituição elaborou a vida medieval uma visão

de mundo fundamentalmente religiosa. Para ela, o homem tinha um destino espiritual; devia

preocupar-se com a salvação e, sua missão era ajudá-lo. Desse modo, buscou exercer controle

ideológico sobre a vida dos indivíduos. Pretendia que seu sistema de valores fosse a única

verdade a propagar-se. Foi ela a mediadora dos vários segmentos daquela formação social.

Na literatura do ano 1000 destacou-se um modelo de sociedade tripartida: os

clérigos, os guerreiros e os camponeses. Os que oram, os que lutam e os que trabalham.

Situada no cume hierárquico das três ordens, a Igreja, pretendeu moralizar o mundo dos

bellatores. “Através da literatura clerical composta para um auditório guerreiro, pouco a

pouco foi tomado uma ideologia própria ao grupo de cavaleiros, a ideologia cavaleiresca...”

(COSTA, 2000, p. 29).

Desta forma, este estudo monográfico apresenta uma análise a respeito do

cavaleiro ideal na virada do século XII para o século XIII, momento a partir do qual houve

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uma forte produção literária voltada para as aventuras cavaleirescas. Procura-se mostrar os

elementos que caracterizam o modelo de “bom” cavaleiro, tão difundido pelos membros da

Igreja.

A pesquisa fundamentou-se principalmente na fonte literária Der arme Heinrich

(O pobre Henrique), romance escrito por volta de 1195 pelo ministerial alemão Hartmann

Von Aue. O estudo dessa fonte é importante para compreendermos aspectos do imaginário

medieval, bem como de ideologias vigentes no controle das relações sociais. Essa fonte

apresenta importantes informações sobre a visão do modelo de cavaleiro, da mulher e

principalmente da posição religiosa a ser seguida.

Este trabalho também utilizou o Livro da Ordem de Cavalaria, provavelmente

escrito entre os anos 1279-1283 pelo filósofo catalão Ramon Llull. De conteúdo doutrinário, o

livro pretende auxiliar na formação dos novos pretendentes à cavalaria. Esta obra é de suma

importância, já que registra os códigos cavaleirescos necessários aos que almejam se tornarem

bons cavaleiros. A produção de Ramon Llull tem o intuito de converter os infiéis ao

catolicismo.

O período delimitado para o estudo do ideal de “bom” cavaleiro, a virada do

século XII para o século XIII, é marcado por transformações sociais, econômicas e políticas

importantes, como o intenso crescimento populacional, o investimento no setor agrícola

acompanhado do aperfeiçoamento das técnicas agrárias, propiciaram a sobrevivência de um

maior número de pessoas, bem como a Igreja alargava os seus pressupostos, instituindo

cargos e nomeando funções. O contrato feudo-vassálico ganhava expressão. A literatura

passava a expressar essa sociedade.

O trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, procuramos destacar as

transformações ocorridas na sociedade medieval ocidental em meados dos séculos XII e XIII,

período considerado para alguns historiadores como fim da Idade Média Central e início da

Baixa Idade Média. Assinalamos também a teoria das três ordens, ressaltando a importância

dos guerreiros a cavalo nesse sistema.

No segundo capítulo, tratamos da análise cavaleiresca, tomando como base a

fonte literária Der arme Heinrich (O pobre Henrique), traçando o perfil de cavaleiro a ser

seguido, sua relação com Deus e a sociedade. Além disso, enfatizamos a presença feminina no

romance, destacando o papel destinado a mulher nesse meio social.

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O terceiro capítulo analisa a proposta de Ramon Llull sobre a sociedade, dando

ênfase ao estudo da cavalaria em sua obra. Além disso, destacamos a relação entre o romance

Der arme Heinrich e o Livro da Ordem de Cavalaria no que dizem respeito ao modelo do

“bom” cavaleiro. Utilizando-se do conteúdo doutrinário exposto por Ramon Llull, tentamos

observar se o cavaleiro apontado pelo ministerial Hartmann Von Aue se enquadra no modelo

almejado pela produção luliana. Buscou-se estabelecer pontos de contato entre as duas fontes

já que ambas destacam a importância da harmonia com Deus como princípio norteador das

ações dos cavaleiros. Procurou-se compreender a visão acerca do cavaleiro nas duas fontes.

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1. O CENÁRIO OCIDENTAL: A SOCIEDADE TRIPARTIDA

Em meados do século XI a Europa passava por transformações sociais e

econômicas. A expansão demográfica que se processava de forma rápida trazia consigo

alterações. A economia agrária foi revigorada e diversificada. Uma nova ordem passava a se

delinear; os historiadores costumam chamá-la de sistema feudal.

As razões para estas mudanças foram muitas. A partir dos séculos IX e X, as

invasões no ocidente europeu, assim como a instabilidade social decorrente delas, vão

reduzindo de intensidade. Dessa forma, uma maior estabilidade efetivou-se a medida que a

curva demográfica voltou a subir.

O intenso crescimento populacional nesse período criou a necessidade do

surgimento de novas áreas produtivas, estabelecendo investimentos no setor agrário. Diante

disso, o movimento de arroteamentos passou a ampliar áreas cultivadas, ocupar terrenos

incultos e inóspitos. Houve vários tipos de arroteamentos que proporcionaram a expansão do

terreno das aldeias, criando novas terras aráveis, modificando a paisagem rural, dando lugar a

novas povoações e possibilitando a diversificação de culturas.

Este processo tomou uma dimensão econômica muito diferente quando deixou de

ocorrer no contexto da terra da aldeia com limites fixos e passou para fora destes. Assumiu

então o aspecto duma verdadeira conquista, de que resultou uma extensão duradoura da área

de produção alimentar. “Esta derrota do mato foi, sem qualquer dúvida, o grande

empreendimento econômico do século XII da Europa Ocidental” (DUBY, 1993a, p.216)

Apesar dos terrenos incultos pertencerem aos ricos, havia interesse por parte deles

na extensão agrícola, já que o alargamento desses campos proporcionou aumento dos

rendimentos. “Foram eles que permitiram que os baldios fossem desbastados e divididos,

tirando daí lucros imprevistos” (DUBY, 1993a, p.219). Por outro lado, o movimento das

arroteias favoreciam a migração, pois muitos camponeses se deslocavam em busca de terras

para cultivarem.

Houve um aperfeiçoamento nas técnicas agrícolas, proporcionando o

desenvolvimento da produção agrária, tais como: a charrua pesada, sistema trienal e a nova

atrelagem de animais. A primeira propiciou o cultivo em solos mais profundos, devido sua

capacidade de remoção da terra; já o segundo, de especial importância, auxiliou no aumento

das áreas produtivas e alterou os hábitos alimentares, possibilitou o aumento dos rendimentos

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e, o último aperfeiçoamento gerou maior agilidade nos animais, pois não mais os

machucavam. Além disso, o arado arcaico foi melhorado através da adição de peças de ferro à

madeira, auxiliando no contato com o solo. “O aperfeiçoamento do arado e da junta foi

decisivo para o progresso econômico e o crescimento demográfico em geral” (DUBY, 1993a,

p.212). Além disso, em certas regiões mais prósperas houve substituição de bois por cavalos

para trabalhar o solo. Por serem mais rápidos, os cavalos, diminuíam o tempo de trabalho.

Vale enfatizar que o ferro também foi utilizado na fabricação das ferramentas agrícolas e na

ferradura para os animais de tração. Dessa forma, o melhoramento da tecnologia propiciou

vantagens na vida rural seja através da extensão da terra cultivada e até mesmo dos

rendimentos colhidos.

A vida rural a partir do ano mil conhece, apesar das diferenças e das nuanças

regionais, uma uniformidade bastante grande, e essa uniformidade é marcada

por progressos técnicos importantes. Trata-se de sinais de uma eficácia

maior do trabalho dos homens e, primeiro, da atividade de base, a preparação

do solo (LE GOFF, 2007a, p. 77).

Torna-se importante ressaltar que a ausência de epidemias contribuiu para a

diminuição da mortalidade, auxiliando no crescimento populacional. Além disso, com o

aumento da produção de alimentos nos séculos XI-XII, houve desenvolvimento do padrão de

vida. “O efeito mais marcante da expansão agrícola foi o de diminuir os obstáculos à

fragmentação dos grupos familiares e permitir a sobrevivência de um número maior de

indivíduos...” (DUBY,1993a, p.199). Ora, se as epidemias estavam cessando e o nível de

produção agrícola estava em alta, conseqüentemente isso auxiliava na redução da mortalidade.

O movimento migratório também foi acentuado nessa fase. Os homens se

deslocavam em busca de suprir suas necessidades, seja imposta pela agricultura ou pela

guerra. Houve migrações das mais diversas formas, assim sintetizadas por Franco Jr (2001

p.22): migrações sazonais (como no inverno, a busca de pastos ainda verdes), migração sem

instalação, como o movimento de errantes (marginais, clérigos), peregrinação a centros

religiosos, atração dos centros urbanos nos séculos XII-XIII, mobilidade militar (Cruzadas),

etc.

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Entre os séculos XI-XII houve também propagação de igrejas. A arquitetura

religiosa sofreu transformações, seja pela necessidade de alargamento pelo crescimento do

número de fiéis ou, até mesmo pela busca de rivalidade entre comunidades, cada uma

querendo apresentar sua igreja mais luxuosa. “As igrejas de peregrinação, por sua vez, não só

passaram, desde o século XI, a ser maiores como a apresentar uma planta que comprova o

crescente afluxo de peregrinos” (FRANCO JR, 2001, p. 24).

Ao se falar das relações sociais por volta do século XI não se pode deixar de

mencionar um dos temas mais instigantes que permeiam o campo historiográfico: o sistema

feudal. Fruto das mais diversas definições, o feudalismo, ainda causa polêmica.

O que se deve chamar de feudalismo ou termo correlato (modo de produção

feudal, sociedade feudal etc) é o conjunto da formação social dominante no

Ocidente1 da Idade Média Central, com suas facetas política, econômica,

ideológica, institucional, social, cultural, religiosa. Em suma, uma

totalidade histórica, da qual o feudo foi apenas um elemento (FRANCO JR,

2001, p.88)

Pode-se mesmo falar em “feudalismos” já que, em diferentes regiões, houve

formas diferenciadas do modo de produção feudal, entretanto, isto não impede de destacar

algumas características deste sistema. A partir da combinação das instituições germânicas e

romanas, o sistema feudal foi se delineando.

A sociedade feudal estrutura-se em relações de dependência pessoal, ou

vassalagem. A fidelidade era a base sobre as quais se firmavam os laços feudais, ficando

estabelecido os direitos e obrigações de ambas as partes. A relação de suserania e vassalagem

era recíproca, direta entre membros das camadas dominantes. Apesar de a reciprocidade ser o

traço marcante dessa relação, o senhor feudal deveria ser mais poderoso que seus vassalos. O

vassalo oferecia ao senhor, ou suserano, fidelidade e trabalho, em troca recebia proteção. “O

feudatário recebia alguma coisa do senhor feudal, na maioria das vezes terras e pessoas, as

quais trabalhavam a terra” (MILITZER, 2001, p.22). Esse compromisso era legitimado

através de um juramento feito sobre a Bíblia e na presença de relíquias sagradas e muitas

vezes um beijo entre os dois selava o compromisso.

1 Na época carolíngia, era sinônimo de Império e Europa.

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É necessário ressaltar também a relação servil, que estabelecia o domínio dos

senhores feudais sobre os servos. O senhor oferecia terras para os servos trabalharem e em

troca havia pagamento pelo uso do terreno. Entre as obrigações servis estavam: corvéia,

trabalho gratuito dos servos nas terras senhoriais, em geral três dias por semana; talha, taxa

em forma de produtos; banalidade, tributo pelo uso do forno, do moinho; taxa da mão-morta,

tributo pela transmissão de herança, entre outras.“O sistema feudal repousa economicamente

na posse da terra e no direito de cobrar um certo número de taxas. Isso gera uma hierarquia

social e uma hierarquia de poder” ( LE GOFF, 2007b, p.66).

Na organização do sistema feudal as terras eram divididas em partes distintas: a

propriedade do senhor feudal, chamada de domínio ou manso senhorial; o manso servil, que

se constituía, nas terras arrendadas aos camponeses e subdivididas em tenências e as terras

comunais, constituídas pelas áreas de pasto, bosques e florestas, que eram exploradas tanto

pelo senhor feudal como pelos servos.

Diante dessa estrutura social não se pode deixar de mencionar o importante papel

exercido pela Igreja. Como produtora ideológica, essa instituição impunha regras de conduta

buscando disciplinar a vida dos indivíduos. Atuava em vários níveis da sociedade,

apresentando uma sólida organização hierárquica, sendo o alto clero ligado à aristocracia e o

baixo clero ligado às camadas mais humildes. A sua missão era auxiliar as pessoas a encontrar

seu destino espiritual. Acumulando uma grande riqueza material, tornou-se a grande senhora

feudal. De tudo que era produzido uma parte deveria ser entregue a Igreja, já que ela fazia a

mediação entre os homens e Deus.

A ecclesia foi a instituição dominante do sistema feudal europeu...A ecclesia

era uma instituição dominante na medida em que todos os habitantes da

Europa medieval estavam obrigatoriamente relacionados com ela, que as

regras ditadas por ela tinham um valor geral (pan-europeu) e coativo, e que,

acessoriamente, nem de longe suas posses fundiárias e sua capacidade de

acumulação material tinham equivalente (GUERREAU, 2006, p.447)

Com o reconhecimento do Cristianismo como religião oficial, a Igreja, passa a ser

relacionada com o Estado, conquistando dessa maneira destaque naquele conjunto social.

Igualmente, o clero era visto pela população como representante de Deus na terra, tendo sido

dotado de poderes extra-humanos. Os clérigos exerciam o papel de mediadores entre os

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homens e Deus e, um dos seus principais instrumentos de mediação foram os sacramentos.

Além disso, a Igreja apresentava mecanismos contra a contestação de seus pressupostos:

excomunhão (rejeição individual); heresia (rejeição coletiva).

Era muito difícil, insisto neste ponto, para os homens e as mulheres da Idade

Média ter um contato direto com Deus, isto é, um contato sem a mediação da

Igreja. Portanto, através dela é que muitos cristãos da Idade Média buscaram

um acesso a Deus que sentissem como contato verdadeiro e individual (LE

GOFF, 2007b, p.98).

A Igreja elaborou uma visão religiosa da sociedade. Ao refletirem na organização

de uma sociedade cristã segundo a vontade de Deus, dividiam-na em ordens ou funções. Para

tanto, surgiu no círculo de intelectuais a teoria das três ordens, ou seja, a divisão da sociedade

entre oratores, bellatores e laboratores. Em primeiro lugar, estavam os clérigos, sendo

atribuída a função de orar pela salvação de todos. Cabia a segunda ordem, os guerreiros,

proteger as outras duas classes. E por último, os trabalhadores, possibilitariam através do seu

ofício o sustento dos homens de religião e da guerra. “A oração, os combates e o trabalho nos

campos eram considerados, embora a um nível diferente de dignidade, como os três aspectos

fundamentais da vida civil, os três pilares do mundo cristão” (CARDINI, 1989, p.57). Esse

esquema se apresenta na literatura por volta do ano mil, tendo origem na cultura indo-

européia. Entretanto, essa proposta foi aperfeiçoada, entre elas pelo bispo Adalberon de Laon

por volta do ano 1025, onde ele destacou:

O domínio da fé é uno, mas há um triplo estatuto na Ordem. A lei humana

impõe duas condições: o nobre e o servo não estão submetidos ao mesmo

regime. Os guerreiros são protetores das igrejas. Eles defendem os

poderosos e os fracos, protegem todo mundo, inclusive a si próprios. Os

servos, por sua vez, têm outra condição. Esta raça de infelizes não tem nada

sem sofrimento. Fornecer a todos alimentos e vestimenta: eis a função do

servo. A casa de Deus, que parece una, é portanto tripla: uns rezam, outros

combatem e outros trabalham. Todos os três formam um conjunto e não se

separam: a obra de uns permite o trabalho dos outros dois e cada qual por

sua vez presta seu apoio aos outros (FRANCO JR, 2001, p.89)

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Como se pode notar, a mentalidade dos medievos era marcada por essa estrutura

social bem definida. Situados no cume hierárquico das três ordens, os oratores, justificavam

sua superioridade e pregavam a submissão do povo as regras, como forma de obter o reino de

Deus. Essa era, portanto a determinação: desde a criação, Deus tinha distribuído tarefas

específicas a cada homem. Por sua vez, a distinção das pessoas era feita de acordo com a

função que exerciam (ordem) e não pelo poder aquisitivo que possuíam (classe). Dessa forma,

a classificação dos indivíduos partia de uma ordem divina. “A significação mais imediata

desse esquema é que todos, através da ordem à qual pertencem, têm seu lugar no plano

divino, mas também que todos devem permanecer em seu lugar” (DEMURGER, 2002, p.15).

Essa era uma leitura da sociedade a partir de uma interpretação religiosa.

No que diz respeito à segunda ordem, ou seja, os bellatores, objeto de nosso

estudo, sua principal vocação era combater. Tratava-se de homens agrupados em torno de um

príncipe tendo por finalidade a defesa, o aspecto militar. “Esses homens, escolhidos por sua

perícia no manejo das armas e lealdade ao seu senhor, comporão paulatinamente o cerne da

futura ordo equestris, i.e., da cavalaria medieval” (BRAGANÇA JR, 2004, p.119). A

cavalaria ocupou um lugar cada vez mais importante a partir da época carolíngia, porém a

origem desses cavaleiros é de difícil precisão.

Os historiadores continuam divididos a esse respeito. Os que minimizam a

mutação feudal por volta do ano 1000 vêem neles a própria emanação da

autoridade permanente. Confundem de bom grado a cavalaria, poder de

governo e nobreza. Aqueles que, ao contrário, sublinham essa mutação,

tendem a exagerar o alcance das perturbações que resultaram no

enfraquecimento do poder central. Também superestimam a escalada

econômica de uma nova “classe social”, a dos cavaleiros, originários das

camadas mais favorecidas do campesinato. Auxiliares dos castelões, eles

teriam participado da exploração dos camponeses sujeitos a seu poder, taxas

e exações (FLORI, 2007, p.46)

Apesar da discordância de opiniões, é necessário destacar que o combate armado

era a principal especialização dos cavaleiros. Convém acrescentar que as principais operações

militares desenvolvidas por esses homens consistiam em buscar estratégias de fuga,

facilitando a saída no caso de ataques a fortalezas. “O equipamento do cavaleiro compõe-se

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de armas ofensivas, que são a lança e a espada, esta empunhada quando a lança se parte no

choque e é preciso combater de perto, no improviso, no corpo a corpo” (FLORI, 2006,

p.188). Como a lança apresentava um forte poder de trespassar o corpo dos combatentes havia

a necessidade de reforçar a armadura dos cavaleiros por isso, as vestes tornavam-se cada vez

mais protegidas. Quanto aos cavalos utilizados, tratava-se de animais vistosos, chamados

“destrier”, treinados para os combates.

Devido ao crescente prestígio do combate a cavalo, houve uma valorização da

cavalaria por parte da nobreza. “A partir do século XI cada vez mais surge a idéia da

cavalaria, um grupo que se dedica as atividades guerreiras munido de cavalo e armamento

específico, grupo esse cada vez mais associado à nobreza” (ZIERER, 2006, p.3). Assim, os

cavaleiros formavam uma parte privilegiada daquela formação social. Entretanto, por estarem

sempre empreendendo lutas privadas, caçadas, emboscadas, representavam a agressividade, a

destruição.

Os senhores, potentados locais cercados de capangas armados (os milites, em

pouco tempo chamados de cavaleiros), que contestavam as antigas doações,

espoliavam terras dos religiosos, aproveitando para pilhá-las, ameaçaram e

aterrorizaram, raptaram e exigiram resgate. Faziam pesar abuso de todo tipo

sobre as populações e igrejas que supostamente deviam proteger (FLORI,

2007, p.42).

Neste sentido, a Igreja buscou refrear a violência causada por esses homens

através de concílios de paz e da promoção de valores cristãos. Diante dos distúrbios sociais,

pilhagens, que invadiam os campos medievais, e sendo a própria Igreja vítima dessas

depredações, foram realizadas assembléias de paz. Do século X ao XII chefes eclesiásticos

empreenderam movimentos de paz para tentarem salvaguardar a população desprotegida

(camponeses, viúvas, órfãos, e até mesmo eclesiásticos) do ímpeto agressivo dos milites.

Quando a notícia destas assembléias foi conhecida de toda a população, os

grandes, os médios e os pequenos para elas se dirigiram, cheios de alegria,

unanimente dispostos a executar tudo o que fosse prescrito pelos pastores da

Igreja: uma voz vinda do Céu e falando aos homens sobre a terra não teria

feito melhor. Porque todos estavam sob efeito do terror das calamidades da

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época precedente, e atazanados pelo receio de verem retirar no futuro as

doçuras da abundância (COSTA, 2001)

Desse modo, o movimento da Paz de Deus estabelecia que os guerreiros não

deveriam atacar os membros da igreja, bem como os que não podiam se defender. Assim

como determinados estabelecimentos e bens também deveriam ser respeitados. Quem quer

que cometesse algum desses atos estava ameaçado de excomunhão. Outro mecanismo foi a

Trégua de Deus, que estabelecia uma limitação das guerras, proibindo de serem realizadas em

determinados dias, tais como a Semana Santa, Pentecostes, Advento, Quaresma. Nesse

sentido, a Igreja tentava amenizar os efeitos desses combates, na busca de pacificar a Europa

feudal. Estes concílios de ordem moral e espiritual procuravam frear a violência, o

derramamento de sangue através de regras de conduta.

A extensão dessas tréguas não obteve muito sucesso: o grande número de

concílios de paz demonstrou a relativa ineficácia das decisões anteriores.

Mas elas não eram completamente sem efeito, pois contribuíram para

associar à guerra considerações morais e religiosas, que pouco a pouco

acabaram se impondo... No entanto, para uma proteção mais eficaz, as

igrejas precisavam recorrer à ação armada (FLORI, 2007, p.43)

Esses mecanismos frearam um pouco as agressões dos guerreiros, mas não as

exterminaram. Apesar dos concílios não terem obtido o êxito previsto, eles contribuíram

para a difusão de valores por parte da Igreja, levando a elaboração de um novo tipo de

guerra e conseqüentemente dos combatentes. Aos olhos da Igreja, a cavalaria, deveria

empreender seus serviços a favor da Cristandade. Para tanto, elaborou um novo conceito

de cavaleiro, ou seja, aquele que estivesse a serviço de Deus. Por estarem prestando auxílio

aos representantes de Deus, os guerreiros, lutariam por uma causa justa. “Agora, podia

ser-se santo, mesmo servindo a Igreja por meio das armas” (CARDINI, 1989, p.60).

Acompanhada da campanha da Paz de Deus deve-se incluir as Cruzadas,

movimento que tinha por finalidade recuperar os territórios santos perdidos aos

muçulmanos. Trata-se de operações militares empreendidas sob o signo da cruz para

combater os inimigos da Cristandade. Aos participantes eram concedidos a remissão dos

pecados, a proteção da Igreja, além da suspensão do pagamento de juros. Concebida pelo

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papa Gregório VII e realizada por Urbano II em 1095, as Cruzadas foi um meio do papado

se impor frente aquela sociedade. Entre os fatores que motivaram o movimento cruzadista

se destacam:

1. A ocorrência das Cruzadas expressava a própria mentalidade de uma época.

Isto é, a influência da Igreja sobre o comportamento do homem medieval deve ser

entendida como o primeiro fator explicativo das Cruzadas. Assim, o caráter

sagrado dos locais disputados reforçava a obrigação dos homens para com Deus;

2. Muitos acreditavam que seguindo as Cruzadas, alcançariam a salvação ou, o

perdão dos pecados;

3. Tentativa de reunificação da Cristandade. O papa Urbano II queria reerguer a

unidade católica no Oriente em 1054(divisão em Igreja Católica Romana e Igreja

Ortodoxa Grega);

4. Deslocamento de excedente populacional. A partir do século X, a população da

Europa Ocidental cresceu muito, e as grandes cidades não estavam mais

“suportando” essa gente toda. Por isso, o jeito foi buscar novas terras, no Oriente;

5. Interesses comerciais;

6. Desvio da nobreza irrequieta (nobres secundogênitos) para outras localidades.

Por não terem direito à herança, esses nobres atacavam as propriedades alheias,

atacando inclusive os bens da Igreja. Assim, essa pequena nobreza viu nas

Cruzadas uma oportunidade de conquistar territórios.

Ao contrário dos movimentos anteriores (Paz e Trégua de Deus) as Cruzadas

ressaltaram o valor das guerras. Entretanto, essa era uma batalha impulsionada pela Igreja e,

por ser esta a representante de Deus entre os homens, tornava-se um combate justo, realizado

pela defesa do império cristão. Nesse caso a violência era justificada já que era posta a serviço

do Bem. Todavia, não era toda guerra que era tolerada. As “guerras justas” consistiam nos

raros casos em que o cristão poderia ter motivos para recorrer a ação armada. Então, aqueles

que lutavam na Terra Santa se tornavam “milicianos de Deus”. Apesar das Cruzadas não

terem obtido êxito do ponto de vista militar, contribuíram para um contato cultural de grande

valor.

É de reconhecer-se que, apesar de malsucedidas dos pontos de vista política

e militar, as Cruzadas proporcionaram um contato cultural muito proveitoso

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para a Europa, através do conhecimento da filosofia, ciência e literatura de

árabes e gregos. O comércio e o tráfego entre essas partes do mundo

começaram a desenvolver-se pujantemente, com evidente proveito tanto para

o papado, cuja influência e poder aumentaram, quanto para a civilização

cavaleiresca, que encontrou sua expressão máxima nas Cruzadas,

notadamente com a criação das Ordens de Cavalaria (THEODOR, 1997,

p.124)

A cavalaria representava a agressividade da época, estava sempre em

movimento, seja nas batalhas, caçadas, guerras particulares. Um dos grandes prazeres

desses guerreiros foram os torneios. No início do século XII eles estavam em alta,

mostrando principalmente o jogo da honra e do prestígio. “Era um momento no qual

aqueles homens brutos e violentos desafogavam suas energias acumuladas, e se

entregavam virilmente à luta” (COSTA, ZIERER, 2007). Os torneios consistiam em

combates coletivos havendo dois grandes partidos, sendo que alguns participantes lutavam

a cavalo (cavaleiros) e outros a pé (escudeiros, arqueiros) tinham como objetivo não a

morte dos adversários, mas sim seu aprisionamento pois, para serem liberados havia a

necessidade do pagamento do resgate. Entretanto, estava-se num campo de batalha então,

quedas desastrosas e acidentes mortais aconteciam. Os torneios eram realizados

principalmente em um campo, com bosques, clareiras, mas também podiam acontecer nos

arredores das cidades. De acordo com o desempenho do conjunto, vencia a melhor equipe.

“O torneio oferecia aos cavaleiros modestos, mas valorosos, toda uma hierarquia de

esperanças de ascensão social e de promoção econômica” (FLORI, 2005, p.106).

Figura 1 - Cavaleiros em Torneio (também chamado de Melée. Museu de Tours, miniatura florentina, final do séc. XIV)

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No entanto, a Igreja se mantinha contrária a essas práticas, condenava os torneios.

Para ela, esses combates aguçavam a rivalidade, contribuíam para o desejo de vingança; isso

quando não feria ou até mesmo se tirava a vida dos que participavam. Segundo os clérigos, os

milites deveriam pacificar a sociedade, espalhando a justiça. Para tanto, a Igreja se empenhou

em proibi-los e até mesmo chegou a negar o sepultamento em terra consagrada àqueles que

fossem mortos em torneio (II Concílio de Latrão). Todavia, com o decorrer do tempo os

torneios tomaram um rumo mais individual, mais ordenado. Deram lugar assim as justas, que

se tratavam de recontros mais organizados, com apenas dois combatentes se defrotando.

Quanto à posição da Igreja, na medida em que os torneios foram importantes

no desenvolvimento das relações sociais no interior da aristocracia, quando

estes perderam a periculosidade e passaram cada vez mais a serem jogos e

espetáculos, o papa João XXII(1316-1334) retirou sua proibição. Com as

justas, cada oponente deveria quebrar a lança de seu oponente, marcando

pontos pelo número de lanças quebradas (COSTA, ZIERER, 2007)

Ao utilizar a força armada dos combatentes em prol dos seus interesses, a Igreja,

buscava agregar a esses guerreiros valores cristãos. Houve uma tentativa de amenizar a

violência causada por esses cavaleiros ao desviar seus serviços a favor de uma boa causa,

como a proteção dos ditos indefesos (mulheres, órfãos, pobres, desarmados). Fazia-se

necessário a atribuição de objetivos, comportamentos, ideais de luta aos cavaleiros. Todos

esses imbuídos de aspectos religiosos. Dessa forma, a Igreja se aproxima de uma ordem tida

como mundana para cristianizá-la.

Assim, portanto, a teoria das três ordens abria espaço para o combatente na

ordem do mundo desejada por Deus. O movimento da paz de Deus chamava

a seus deveres aqueles que, nessa ordem, comportavam-se mal, os

cavaleiros. A trégua de Deus, canalizando e limitando sua violência,

impunha uma prova aos cavaleiros. A cruzada consumava essa evolução

oferecendo ao cavaleiro um caminho de resgate, um caminho próprio rumo à

salvação que ele podia percorrer sem abandonar sua condição

(DEMURGER, 2002, p.23)

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Pode-se perceber como os eclesiásticos se portaram diante do comportamento dos

cavaleiros. Utilizando-se da influência que exerciam na sociedade medieval se empenharam

das mais diversas formas para trazer o respeito, a obediência desses homens. Seja através da

difusão dos movimentos de Paz ou até mesmo do recrutamento dos seus serviços, o discurso

da Igreja buscou minimizar a belicosidade dos bellatores. Assim, esses movimentos

contribuíram para demonstrar qual era o perfil do guerreiro adequado aos interesses

eclesiásticos, ou seja, o do bom cristão.

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2. O CAVALEIRO E A DONZELA EM DER ARME HEINRICH: UMA ANÁLISE DA

CAVALARIA IDEAL

A cavalaria atingiu no século XI e mais especificamente no século XII sua grande

expressão. Com o florescimento das cortes principescas no século XII, um tipo de produção

literária vai se sobressair, onde o cavaleiro torna-se o personagem central, a poesia de

cavalaria, as canções de amor, as epopéias são algumas características desse período. Assim

sendo, a nobreza recorre a literatura para representar o ideal da vida cortesã.

Dentro desse universo literário destaca-se o papel de cavaleiros e ministeriais.

Portadores da cultura cortês (os trovadores pertenciam à corte por nascimento ou viviam com

o apoio de algum príncipe) e caval(h)eirescas do século XII e XII, estes entretinham as cortes

com histórias de aventuras, assuntos de cunho religioso e amoroso.

As aventiurem através de florestas misteriosas, reinos mágicos, o confronto

com criaturas diversas, as lutas e justas por minnechiche frouwen2 e contra

contendores com ou sem as virtudes caval(h)eirescas eram presumivelmente

lidas em algumas cortes determinadas e com isso tornavam-se conhecidas.

Nestes pequenos círculos desenvolveu-se, por conseguinte, este jogo

2 Termo em médio-alto Alemão que significa, damas dignas de serem cortejadas.

Figura 2 - Herr Wernher Von Teufen. Codex Manesse. Séc. XIV

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literário de entretenimento, que possuía simultaneamente um caráter

modelar (BRAGANÇA JR, 2005, p.259)

Dessa forma, ao percorrerem as diversas cortes do país, os trovadores

contribuíram para a difusão das produções poéticas. Além de servir para o entretenimento

social, a literatura traduzia as aspirações aristocráticas, contribuindo para um novo modelo de

pensar.

O movimento trovadoresco provençal influenciou correntes literárias por toda a

Europa, como por exemplo na Alemanha. Dentro do território alemão, as cantigas de amor

tem a designação de Minnesang sendo endereçadas à jovens da corte. “O poeta venera de

modo platônico e impossível a dama que se encontra em um patamar social superior”

(SILVA, 2005, p.309). Não apenas as canções de amor tiveram sucesso, como também houve

acentuada produção de poemas épicos, devido ao crescente papel dos guerreiros a cavalo na

sociedade. “Agora a nobreza cavalheiresca alemã, que tomou consciência de sua cultura

própria na época do Staufer Frederico I (Barba Ruiva), recorre à literatura para expressar

um novo sentimento de vida, afirmando a beleza da criação divina e estruturando o ideal da

nobreza” (BOSCH, 1967, p.55)

Desta forma, a crescente produção literária alemã se estabelece a partir da dinastia

dos Hohenstaufen (1138 – 1254), momento de grandeza do império Alemão marcado por uma

certa estabilidade, inclusive pela diplomacia entre as províncias. Devido esse maior

relacionamento com povos vizinhos fez-se sentir no território alemão uma cultura palaciana.

Mas especificamente, o contato cultural através das Cruzadas contribuiu para o

desenvolvimento da linguagem, alargando-se novas maneiras de olhar a sociedade. Além

disso, o contato com a poesia épica provençal influenciou na produção poética, propiciando as

idéias e valores cortesãos. “O período áureo da lírica trovadoresca e amorosa na Alemanha

coincide com o período em que a dinastia dos Hohenstaufen esteve no poder” (SILVA, 2005,

p.315). Foi durante esse período que a cena literária alemã atingiu grande destaque,

favorecendo a expressividade da linguagem.

Boa parte desse prestígio esteve relacionado a Frederico I, o Barba Ruiva. Ao

assumir o império, Frederico I representava a esperança de entendimento entre a casa dos

guelfos e a dos gibelinos, ou seja, forças políticas rivais que disputavam o mandato do trono

alemão. Pelo fato de Frederico ter parentesco com ambas as famílias, pressupunha-se uma

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possível união entre elas. “O imperador falhou em muitos de seus grandes propósitos, mas

sobrevive na memória popular como detentor de uma das mais fortes personalidades da

Idade Média” (THEODOR, 1997, p.128). Com a morte de Barba Ruiva em 1190, seu

sucessor veio a ser seu filho Henrique VI. Suas estratégias de expansão do Sacro Império

Romano Germânico foram coroadas com êxito e no âmbito interno verificou-se o

desenvolvimento de uma cultura cavaleiresca. Trata-se de um período marcado pela intensa

produção literária.

Fazia-se sentir, nas cortes e nas grandes cidades, a partir do início do reinado

de Frederico I, o impulso criador de uma cultura palaciana, que girava em

torno da vida das cortes, ao mesmo tempo que se desenvolvia um universo

próprio de idéias e valores que, entre outras coisas, se expressava num

alemão especioso, cortesão, numa linguagem que continha muitas

construções artificiais, destacando-se das “rudezas” dos dialetos populares

(THEODOR, 1997, p.128)

Nesse contexto, dentro da produção germânica merece referência os trabalhos do

ministerial Hartmann Von Aue. Cavaleiro de origem humilde, Hartmann, nasceu entre 1160 e

1170. Tendo vivido talvez no norte da França, esteve a serviço do senhores d´Aue da Suábia.

Destacou-se pela composição de Minnesang e pelos romances de aventuras Erec,

Iwein,Gregorius auf dem Steine e Der arme Heinrich. Hartmann morreu por volta de 1220 e

provavelmente participou da terceira Cruzada (1189-1192). “O romance cavaleiresco, de

procedência do norte da França, encontrou em Hartmann Von Aue, poeta e ministerial da

corte de um senhor feudal alamânico, um de seus maiores expoentes” (BRAGANÇA JR,

2004, p.121).

No que diz respeito à obra Der Arme Heinrich (O Pobre Henrique), esta foi escrita

por volta de 1195 e demonstra-nos o nobre cavaleiro Henrique que, deslumbrado com as

honras alcançadas, esquece-se de agradar a Deus, sendo dessa maneira acometido por uma

grave doença. As visitas aos médicos revelam que somente o sacrifício de uma donzela traria

a saúde de Henrique. No momento em que a jovem está prestes a ser sacrificada, o cavaleiro

se recusa a aceitar sua morte. Ao reconhecer o seu erro e dessa forma evitar a morte de uma

jovem, comove Deus, que misericordioso, cura o então cavaleiro. Assim, a obra destaca o

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cavaleiro desviado da verdade, reconduzido ao seio da sociedade cristã após sua conversão

interior.

Analisando especificamente a obra, primeiramente, Henrique nos é descrito como

sendo um nobre, apresenta-se como exemplo de cavaleiro, admirado por todos, possuidor de

excelentes qualidades: Honra (v.45); caráter (v.45); pureza de coração (v.50); firmeza (v.51);

constância (v.52); fidelidade (v.61); educado (v.73) e principalmente a graça de Deus de

fundamental importância para se viver bem.

Sem nenhuma reprovação

Eram sua honra e sua vida (v.53-54)

(...)

ele era uma flor da juventude,

um espelho da alegria do mundo,

um diamante de constante fidelidade,

uma perfeita coroa de educação.

Ele era o refúgio dos necessitados,

um escudo para seus parentes,

uma balança equilibrada da benevolência

A ele era desconhecido qualquer excesso ou escassez.(v.59-66)

(...)

nele faltava

nenhuma das virtudes

que um cavaleiro em sua juventude

deve ter para sua completa fama(v.31-34)

O que se pode destacar desse trecho é que o cavaleiro Henrique, apresenta valores

cavaleirescos propiamente ditos (honra, bravura, firmeza) agregados aos princípios cristãos,

como a pureza, a proteção aos necessitados e outros, ou seja, ele é portador de várias

qualidades das quais se esperava de um cavaleiro a serviço de Deus. Isso significa que apesar

de Hartmann Von Aue ressaltar os valores cortesãos presentes na sociedade da qual estava

inserido, não deixa de lado a infuência que os ideais cristãos também exerciam. “Sua visão de

mundo centrada no fazer literário da corte apóia-se, do mesmo modo, em uma vertente

condizente com o pensamento da Igreja Romana” (BRAGANÇA JR, 2004, p.121). É como

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se Hartmann tentasse descrever sobre essa tensão existente entre terra e céu, esse dualismo de

como agradar a Deus e aos homens.

Em relação à procedência de Henrique, nota-se que fazia parte da nobreza, ou

seja, gozava de certos privilégios, deveres particulares inerentes a sua origem.

Ele tivera em suas mãos

Nascimento e também riqueza, (v. 37-38)

(...)

Quão completas eram suas posses,

Imutável sua ascendência,

Que bem o igualava aos príncipes...(v.40-42)

A princípio qualquer indivíduo que pudesse arcar com suas despesas, poderia se

tornar cavaleiro. A necessidade de defesa era tão grande que qualquer homem forte e corajoso

se tornava um combatente. Por outro lado, isso foi ficando cada vez mais raro. O ingresso na

cavalaria evoluiu com o tempo. A partir do século XII os cavaleiros tendem a exclusividade

de uma classe hereditária, o acesso tornou-se restrito aos nobres detentores de terras e filhos

de cavaleiros.

Sociedade masculina, a cavalaria é uma sociedade de herdeiros. Os laços de

parentesco estruturam-na. O poder dos senhores vivos apóia-se na glória

dos senhores mortos, na riqueza e no renome que os antepassados legaram à

sua descendência como um depósito que cada geração transmite aquela que

a segue (DUBY, 1993b, p.49)

Em outros termos, as qualidades de ser nobre era transmitida de geração a

geração. Era congênita, repousava no sangue. Referir-se a nobreza não implicava

necessariamente o valor ostensivo, de riqueza material. Entre outras coisas, ser nobre era

condizente à dignidade, bom caráter, respeito.

Por esse meio, todavia, essa qualidade tende a se tornar hereditária na

medida em que os clérigos e os monges-redatores quase exclusivos da

documentação medieval do século XVI- anexam esse qualificativo a um

certo tipo de comportamento ligado, sobretudo à piedade que é expressa por

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fundações de Igrejas, abadias ou priorados, ligados, doações ou outros

“benefícios” dos quais eles são os recipientes. Os clérigos esperam dos

grandes tal comportamento “nobre” (FLORI, 2005, p.115/116)

As idéias de Jean Flori coadunam com a descrição de Hartmann Von Aue no

romance Der arme Heinrich, a nobreza expressa pelo cavaleiro Henrique é originária de sua

família, ou seja, por ter ascendência nobre, conseqüentemente também era digno de nobreza.

No decorrer da Idade Média, nobreza e cavalaria entrecruzaram. Existiram cavaleiros que não

eram de origem nobre, assim como, nobres que não eram cavaleiros. Além disso, a cavalaria

podia propiciar o ingresso na nobreza.

A situação muda a partir do fim do século XII, em ligação com uma forte

reação nobiliária suscitada pela ascensão econômica e social da burguesia e

dirigida contra ela. Essa reação é expressa ao mesmo tempo nos textos

históricos e na literatura. Ela leva a proibir, a partir daí, a investidura, que se

tornara altamente honorífica aos filhos de famílias plebéias. Em outros

termos, a aristocracia fecha aos não-nobres o acesso à cavalaria, que ela

reserva para seus filhos. (FLORI, 2005, p.122)

Desta forma, a valorização da cavalaria no seio da sociedade medieval, o prestígio

do combate a cavalo chamou a atenção da nobreza influenciando a adesão de um maior

número de nobres neste setor. O aumento dos custos com o cavalo, do equipamento militar

transformando a cavalaria numa atividade dispendiosa, dificultou o acesso de indivíduos

menos abastados. Dessa maneira, contribui para o exclusivismo da elite possuidora de terras.

Diante disso, a nobreza passa a exercer o controle sobre a cavalaria, tornando o título de

cavaleiro hereditário.

Outro ponto de destaque no romance Der arme Heinrich, diz respeito ao grave

erro cometido pelo cavaleiro. Pois, ao “cair” nas honras do mundo, nos prazeres terrenos,

Henrique, desrespeitou o código de cavalaria, ferindo uma das principais regras: a relação

com Deus, a graça divina necessária à sobrevivência.

No momento em que o senhor Henrique

alegrava-se com as honras e bens

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e alegrias do espírito

e com as delícias do mundo

(ele era por todos os lados enaltecido e honrado),

sua alta dignidade transformou-se em uma vida bem degradante (v.74-82)

(...)

no senhor Henrique isso ficou bem evidente:

aquele que nas mais altas glórias

vive sobre esta terra,

é para Deus um desdenhador(v.111-114)

A Igreja condenava as práticas mundanas, ou seja, a satisfação pelas coisas

materiais. O homem deveria voltar-se ao espiritual em detrimento do material. Mais do que

nunca, a salvação dos indivíduos dependia desse combate aos prazeres terrenos. A ideologia

cristã propagada pela Igreja combatia esse tipo de apego ao mundanismo, e o pecado era o

resultado dessa falta humana. Nesse aspecto, a fonte Der arme Heinrich aponta esse erro

cometido pelo cavaleiro Henrique, ou seja, a busca pelo prazer terreno em detrimento do

espiritual.

Por ter valorizado a glória do mundo em detrimento dos caminhos de Deus,

Henrique, foi castigado. Acabou contraindo uma grave doença: a lepra. “Nessa sociedade em

que o corpo é a imagem da alma, a lepra aparece como sinal do pecado” (LE GOFF, 2007a,

p.130). Pela concepção cristã homens e mulheres eram compostos tanto de um corpo

(material), quanto de uma alma (imaterial) existindo uma relação dinâmica entre eles. São

recorrentes na literatura os casos em que a alma de uma pessoa é enviada ao purgatório para

“pagar” pelas fraquezas do corpo assim como, vemos relatos do corpo ser vitimado pelas

impurezas da alma. Nesse caso, Der arme Heinrich se enquadra nesse segundo modelo. O

nobre senhor tornou-se um pobre homem.

Ele caiu pela vontade de Deus

de sua melhor reputação

em um sofrimento humilhante:

ele foi acometido de lepra.

Quando o pesado castigo de Deus

foi visto em seu corpo,

ele tornou-se repulsivo para

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homens e mulheres.(v.115-122)

De acordo com o pensamento da Igreja cabia aos homens repelir as tentações,

voltar as costas aos prazeres carnais. Consistia num esforço contínuo: a preparação para o dia

do julgamento final. No centro da luta entre o bem e o mal, os homens, deveriam enfrentar a

matéria.

Os homens e as mulheres da Idade Média aparecem dominados pelo pecado.

A concepção do tempo, a organização do espaço, a antropologia, a noção de

saber, a idéia de trabalho, as ligações com Deus, a construção das relações

sociais, a instituição de práticas rituais, toda a vida e visão de mundo do

homem medieval gira em torno da presença do pecado (CASAGRANDE,

VECCHIO, 2006, p.337)

Para isso, homens e mulheres podiam contar com o auxílio da Igreja na luta contra

as tentações, seja através das orações, peregrinações, da ajuda dos santos ou até mesmo de

amuletos (crucifixos, correntes). Por outro lado, aquele que desobedecesse os preceitos

divinos era vitimado a “pagar” pelo seu erro, podendo ser acometido por uma doença, ou até

mesmo sua alma ser enviada ao purgatório para ser regenerada. Esses exemplos são muito

encontrados na literatura produzida nesse momento, como é o caso do romance que estamos

trabalhando. Henrique fora castigado com uma grave doença por afastar-se de Deus.

Por tornar-se repulsivo, Henrique, fica desesperado “Os leprosos são, por um

lado, um objeto de caridade, de misericórdia; mas, por outro lado, são um objeto de horror

físico e moral” (LE GOFF, 2007a, p. 130). Aflito pela doença que consumia o seu corpo, o

então cavaleiro vai atrás de médicos, tentando encontrar a cura de sua enfermidade. A

esperança impulsionava Henrique a buscar auxílio:

Um pouco ele se alegrava, contudo,

com um consolo:

pois com freqüência lhe era dito,

que esta mesma enfermidade

era mui variável

e algumas vezes sanável

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Por isso várias vezes ele tinha

esperança e refletia

Ele pensou que seria

curado mui facilmente,

e portanto partiu apressadamente

segundo o conselho dos médicos

na direção de Montpellier.(v.162-174).

“Os leprosos desempenham um papel repulsivo na literatura cortesã” (LE

GOFF, 2007a, p.130-131). Para tanto, os leprosos seriam filhos de pais que tiveram relações

sexuais em períodos proibidos pela Igreja por isso, eram filhos do pecado. Os leprosos

deveriam ser separados, excluídos do restante da sociedade já que eram vistos como impuros.

Tida como uma doença incurável, somente por um milagre de Deus poderia chegar à

sanidade. Pode-se ressaltar que a eficácia curativa não provinha dos remédios e sim da

intervenção divina. Porém, o cavaleiro Henrique não havia percebido a ligação de sua doença

com seu afastamento de Deus e, volta a insistir aos médicos, apelando inclusive aos seus bens

econômicos:

Então falou o pobre Henrique:

“Por que vós me desconsolais?

Sim, eu bem tenho a força dos bens materiais:

se vós não quiserdes realmente quebrar vossa mestria

e vossa obrigação

e com isso desistir

tanto da minha prata e do ouro,

então ser-vos-ei tão favorável,

que vós me curareis mui prazerosamente.”

“Não me faltaria vontade,”

disse assim o mestre então,

“e se o remédio fosse tal,

que se o encontrasse à venda

ou que se pudesse

adquiri-lo de qualquer modo,

então eu não vos deixaria morrer.

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Porém infelizmente isso não pode ser assim

Devido a isso minha necessitada ajuda

deverá fracassar.(v.204-222) .

Entretanto, Henrique recebe a notícia que sua doença não possuía cura. Não

satisfeito com a resposta, parte em busca de auxílio em Salerno, local de destaque pelas

escolas de medicina da época. E é justamente em Salerno que Henrique ouve de um sábio

médico um intrigante diagnóstico:

O melhor médico que por lá encontrou

Disse-lhe imediatamente

uma notícia singular,

que ele seria curado

e que sempre estaria incurável(v.182-186)

(...)

“Sua doença é assim:

(de que adianta que eu lhe informe?)

Há um medicamento

que ele sanará.

Porém, agora ninguém é tão rico,

Nem tão forte de inteligência,

que o possa adquirir.

Por isso vós permanecereis sempre incurável,

se Deus não quiser ser o médico.”(v.195-205)

Entretanto, o médico indica algo que poderia curá-lo. O remédio viria através do

sacrifício de uma donzela.

Vós tendes que encontrar uma donzela,

que esteja apta para casar

e também tenha vontade

de sofrer a morte por vossa causa.

Todavia, não é costume humano,

que alguém faça isso com prazer.

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Pois nada mais adianta

a não ser o sangue do coração da donzela:

isto seria o bem para vossa enfermidade(v.223-231).

Aflito, Henrique, reconhece a gravidade do seu estado e desanimado doa seus

bens, passando a se refugiar na única propriedade que lhe restou. Lá, ele se entrega aos

cuidados do camponês administrador e sua família.

Assim, ele desistiu.

Racionalmente de suas posses

Salvo uma propriedade:

Lá ele se isolou das pessoas (v.256-259)

No romance em versos destaca-se a figura de uma garota de oito anos, com

características de bondade e correção. Ela era filha do camponês administrador. A menina

oferecia amável atenção ao seu senhor, sempre disposta a servi-lo. Passados três anos, a

jovem tornou-se tão íntima de Henrique, passando a ser chamada de noiva:

Deus dera ao administrador

Conforme sua classe uma vida feliz

Ele tivera um corpo bem enrijecido

E uma mulher bem honrada

Além disso ele tinha belas crianças,

As quais bem são a alegrias do homem,

e tinha, como se contar,

dentre elas uma moça,

uma moça de oito anos.

Seu comportamento era

Assim conhecido pela correção e bondade

Não queria nunca de seu senhor

fugir um só pé.

Para o seu bem estar e saudação

Ela o servia sempre

Com o seu amável cuidado.(v.294-309)

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(...)

com devoção ele imediatamente o levou

a ser tão íntima dele,

que ele a chamava de noiva

A deixava ficar sozinho.

Ele lhe parecia totalmente puro.(v.338-343)

Outro aspecto do romance consiste no momento no qual a jovem descobre que a

saúde de Henrique seria devolvida através do sacrifício de uma donzela. Então, ela toma a

decisão de entregar sua vida em prol da saúde do seu senhor.

Quando se colocou aos pés de seu pai

e de sua mãe, como de costume,

e quando ambos adormeceram,

alguns profundos suspiros

ela retirou do coração.

Devido as dores de ser senhor

sua preocupação era tão grande,

que a torrente de seus olhos

regava os pés dos adormecidos.(v.470-478)

(...)

Quando, porém seu pai

Repetidas vezes insistiu e pediu

Que ela lhes deveria contar,

ela falou: “Vós deveis vos lamentar comigo.

O que pode nos prejudicar mais

Que o nosso senhor,

Pelo fato de que devemos perdê-lo

e com ele temos que abdicar

de bens e prestígio? (v.486-494)

(...)

Esta era sua firme decisão:

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Vivesse ela o dia seguinte,

ela explicitamente sua vida

gostaria de entregar pelo seu senhor.(v.524-527)

Impregnada pela fé, acometida pelo ideal da vida eterna, a jovem procura

convencer os pais, destacando que com a morte do senhor Henrique sua família iria à ruína.

“Eu sou, vós não quereis me impedir,

um bom remédio para ele.

Eu sou uma donzela e tenho a vontade de

antes de vê-lo perecer,

preferir morrer por ele”.(v.559-563)

(...)

Eu quero com isso fazer para mim

e para vós ambos o bem

Eu posso sozinha guardar-vos bem

de danos e sofrimentos,

ao agora vos informar isso.

Vós tendes fama e posses:

ou seja, a afeição de meu senhor,

pois ele nunca vos magoou

e também nunca vos reduziu os bens.

A vontade dele viver

é para vosso interesse.(v.611-621)

É interessante observar a forte presença da figura feminina dentro dessa obra. Na

Idade Média, é possível constatar alguns conceitos elaborados a respeito das mulheres.

Contudo, grande parte das idéias foi elaborada por homens, o que nos permite avaliar o que

um homem acredita ser o comportamento adequado de uma mulher. Neste aspecto, destacou-

se a oposição entre dois pontos de vista; um, da mulher associada a Eva, e outro da mulher

relacionada à Virgem Maria. A primeira, aliada ao Diabo, é tida como culpada pelo pecado

original, concentra em si as características de sedutora, astuciosa, perigosa, que levava o

homem a pecar. Já a segunda, que trouxe ao mundo Salvador se apresentaria recatada, pura,

bondosa.

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Muitos pensadores não acreditavam que Eva, assim com Adão, tivesse sido

criada a imagem de Deus. Preferiram considerá-la criação de Adão e assim

sendo, uma mera projeção da criação divina. Essa distinção e gradação entre

o homem, dotado da imagem divina (imago) e a mulher, detentora apenas

da semelhança divina (similitudo), fornece aos teólogos uma prova da

inferioridade natural do sexo feminino (MACEDO, 2002, p.42)

Dessa forma, como a mulher fora criada a partir da figura de Adão, se portava de

maneira frágil, devendo estar submissa à tutela masculina. Como não foram frutos diretos das

mãos de Deus, as mulheres eram criaturas mais fracas e por isso mais suscetíveis as tentações.

Não se pode deixar de considerar o discurso religioso acerca do sexo feminino. Muitos dos

escritores desse momento eram membros do alto escalão da Igreja, que se supõe, fechado às

experiências femininas. Daí se pode inferir que a figura da Virgem Maria de grande respeito e

valor no meio clerical, fosse exemplo de modelo, de perfeição de comportamento. Ao passo

que Eva, por ter levado o homem a tentação e, logo, responsável pela Queda era vista com

certo desprezo. De certa maneira, na formação da doutrina cristã houve influência de

filosofias nas quais a desconfiança sobre a carne estava ligada ao sexo feminino.

Pode-se perceber na obra que a jovem de ascendência camponesa apresenta

características relacionadas à figura de Maria, já que, aparece bondosa, pura e de bom caráter.

Além disso, ela se oferece em sacrifício pela saúde de seu senhor, assim como a Virgem

Maria daria sua vida pelo Filho.

O papel destinado, em linhas gerais, a mulher no mundo medieval ocidental

em terras germanófonas, é bem similar àquele presente em outras regiões do

sul da Europa. Decantada em poemas, as mulheres, as de estirpe nobre, na

verdade, prestavam-se especialmente a partir da difusão do casamento,

regulamentado pela igreja a progenitura e a educação dos futuros varões

(BRAGANÇA JR, 2001, p.26)

O que se esperava da mulher era conformidade, obediência, sujeição ao sexo

masculino. Seu papel consistia em cuidar do lar, servindo para criação da prole. Não bastava

ser esposa, era necessário que fosse mãe. Esse discurso elaborado em sua grande maioria por

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homens era uma forma de consolidar sua posição como superiores, assegurar-se no poder

assim, legitimava-se o papel das mulheres como inferiores e conseqüentemente submissas. A

utilização desse tipo de modelo na literatura era uma forma de justificar o papel de homens e

mulheres na sociedade como também de legar para a posteridade esses modelos de

comportamento.

Tal organização da vida feminina era útil para os eclesiásticos e agradava

aos nobres, que com a leitura e divulgação das histórias heróicas de

cavaleiros e suas façanhas, satisfaziam seu gosto literário pela utilização de

seu modus vivendi como ideal arquetípico a ser imitado e alcançado pelas

gerações posteriores (BRAGANÇA JR, 2004, p.126)

É interesssante observar que o romance de Hartmann apesar de situar-se num

período de afirmação de valores corteses, onde a mulher exaltada é uma dama nobre, há certo

afastamento dessa representação literária. Nota-se que a jovem é proveniente do campesinato,

não se encontrando num patamar superior ao do seu senhor. “Todavia, a personagem

feminina, de ascendência camponesa, através da consciência de seu lugar dentro da

sociedade medieval e de seu ato de quase martírio, transforma-se em um plano simbólico na

dama nobre” (BRAGANÇA JR, 2004, p.127).

Depois de demonstrar intensamente sua fé, os pais acatam o desejo da filha.

Então, ela se dirige a Henrique e propõe ajudá-lo. Os dois partem então para Salerno, a fim de

procederem à operação.

Assim viajou para Salerno

feliz e prestimosa

a donzela com seu senhor.(v.1059-1061)

(...)

Quando ele a levou até lá,

como planejara,

onde ele se encontrara com seu mestre,

foi dito imediatamente a este ultimo,

cheio de alegrias,

que ele tinha trazido uma donzela,

que ele solicitara conseguir,

e deixou que ele a visse.

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Isso lhe pareceu inacreditável.(v.1065-1073)

O cirurgião admirado diante de tal atitude, conversa com a moça e lhe explica os

procedimentos a serem tomados. Ela se manteve segura.

Eu te digo, o que te acontecerá:

eu te despirei totalmente nua,

e tua vergonha

será muito grande,

porque tu estarás nua diante de mim.

Eu te amarrarei pernas e brancos.

Se pelo teu corpo tu sentires muito,

considera estas dores:

eu te cortarei até o coração

e o retirarei vivo de ti(v.1094-1104)

Henrique mantinha-se apreensivo e refletindo sobre o que se passava, se recusa a

aceitar o sacrifício da camponesa, vê que somente ele é culpado pelo seu pecado. Assim

sendo, ele interrompe a cirurgia, desamarra a jovem, aceitando o destino que lhe esperava.

Agora ao vê-la tão bela,

ele falou consigo próprio:

“Tu tens um pensamento tolo,

de que tu sem o consentimento deste

desejas viver um único dia,

contra o que todos são impotentes.

Tu também não sabes bem o que tu fazes,

já que tu tens certamente que morrer,

que tu não carregues de boa vontade

esta vida vergonhosa

que Deus te deu,

e também sobre isso tu não sabes,

se a morte da criança te salvará.

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Aquilo que Deus a ti imputou,

deixa tudo acontecer.(v.1251-1265)

(...)

Ele então falou ao mestre:

“Esta criança é tão bela,

em verdade, eu não posso

assistir a sua morte;

a vontade de Deus deve acontecer comigo.

Agora deixemo-lo se levantar.(v.1282-1287)

Resignado com o seu destino, Henrique e a jovem retornaram a propriedade da

qual partiram. Por ter reconhecido ser o único culpado pela doença que o afligia e, diante

disso ter evitado o sacrifício de uma donzela, Deus teve misericórdia do cavaleiro, restituindo-

lhe a saúde e os bens. Henrique voltou a ser rico não somente em saúde como em bondade e

honra.

Quando ele, conforme seu amável plano,

Tomou ciência das idéias da donzela,

que ele as experimentara

tão completamente

como o sangrado Cristo mostrou,

o quanto lhe são caras a fidelidade e a compaixão ,

e libertou a ambos

de todo o sofrimento

e o fez imediatamente

puro e completamente saudável.(v.1379-1389)

(...)

ele tornou-se mais rico que antigamente

em bondade e em honras.

Tudo isso ele começou a dedicar

Constantemente a Deus

e observar suas ordens

melhor do que ele anteriormente fazia,

por isso sua honra é constante.(v.1449-1455)

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No que diz respeito à jovem camponesa, Henrique a tomou como esposa.

Todavia, a escolha partiu de uma decisão posta em assembléia, com a presença de parentes e

serviçais que os aconselharam. “Com sua postura madura e consciente, a jovem sem nome

adquire a legitimação para poder ser unida matrimonialmente ao seu senhor” (BRAGANÇA

JR, 2001, p.08).

Agora os sábios começaram

A aconselhá-la e a recomendar o casamento. (v.1469-1470)

(...)

Ele então lhes falou de seu intento

Ele queria, caso eles se expressassem favoravelmente,

discutir com os seus

e levar a termo a conversa com eles,

como eles sempre lhe aconselharam. (v.1472-1476)

(...)

Ele a abraçou e falou:

“A vós todos senhores é bem conhecido,

que eu através desta bondosa donzela

tenho novamente minha saúde,

donzela essa que vós aqui vedes estar ao meu lado.

Agora ela está livre de nascimento, como eu sou;

Então todo meu entendimento me aconselha,

Que eu a tome por mulher. (v.1509-1516)

Então todos falaram ao mesmo tempo,

pobres e ricos,

que aquilo acontecesse com toda razão.

Padres o bastante lá estavam,

Eles a ele deram-na como mulher. (v.1526-1530)

A literatura é uma fonte importante para perceber imagens, valores, aspirações de

uma dada sociedade. No caso do romance Der arme Heinrich é de importante riqueza para a

obtenção do retrato social desejado. A obra que enfatiza o cavaleiro, a mulher, o camponês e

Deus destaca uma série de modelos a serem seguidos. Muitas vezes as obras não visam

mostrar com precisão a vida dos personagens, mas, espera-se demonstrar como deveriam ser.

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No caso de Der arme Heinrich, o autor está inserido na sociedade retratada, sendo que os

aspectos por ele analisados são influenciados pela sua presença no contexto histórico.

A descrição da vida de Henrique vem demonstrar a relação entre os valores

terrenos e os divinos, nos quais os últimos são de suma importância para se viver bem.

Henrique representa o homem desviado da verdade e por reconhecer que esteve errado é salvo

pela misericórdia de Deus. Pode-se perceber o valor religioso influenciando na escrita de

Hartmann Von Aue, já que, o romance de aventuras cavaleirescas retrata a importância da

harmonia com Deus e adverte do perigo da dedicação à vida mundana. Der arme Henrich

reúne as qualidades ideais dos cavaleiros, ou seja, honra, caráter, disciplina e principalmente a

obediência a Deus.

Em suma, o romance em versos de cavalaria, Der arme Heinrich, de Hartmann

Von Aue nos permite uma abordagem historiográfica, na medida que seu conteúdo nos

fornece elementos que auxiliam na contextualização de uma determinada conjuntura social. A

análise dessa fonte literária contribui para o entendimento do imaginário medieval, bem como

de ideologias vigentes no controle das relações sociais desse período.

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3. A CAVALARIA NA VISÃO DE RAMON LLULL: UMA PROPOSTA DE

REGIMENTO SOCIAL

Este terceiro capítulo pretende enfocar o conceito de cavaleiro cristão

desenvolvido por Ramon Llull no século XIII e também, estabelecer uma relação entre o Livro

da Ordem de Cavalaria e o romance Der Arme Heinrich, já que ambas as fontes trabalham a

noção de cavaleiro nos quais os valores cristãos são de grande peso para o viver bem naquela

sociedade. Primeiramente, é importante conhecer Ramon Llull e entender a sua preocupação

com o retorno da cavalaria aos ideais cristãos, bem como sua proposta de sociedade.

3.1 Breve Biografia de Llull

Ramon Llull nasceu por volta de 1232/1235 em Maiorca. Sua família fazia parte

da nobreza, tendo seu pai auxiliado o rei Jaime I, de Aragão na conquista da ilha de Maiorca

em 1229 que estava sob domínio dos muçulmanos. Por ter feito parte desta exposição, o pai

de Llull recebeu em recompensa alguns territórios em vários pontos da ilha. Quando jovem,

Ramon Llull, foi escolhido para o cargo de pajem do futuro rei Jaime II. Mais adiante se

tornou modormo e senescal do príncipe. Dessa maneira, cresceu em meio à corte real, e teve

uma educação voltada a carreira armada.

Em sua autobiografia Vida Coetânia(1311), Llull nos revela que em sua

juventude, levava uma vida desregrada, frívola; gostava de compor trovas para as mulheres e

facilmente se envolvia com elas. No entanto, antes dos trinta anos, casou-se com Blanca

Picany e teve dois filhos, Domingos e Madalena. Porém, o matrimônio não o tornou menos

sensato, mantinha sua vida cortesã.

Figura 3 - A cavalaria normanda investe contras as forças de Haroldo. Começa a Batalha de Hastings. Na cena, são sete cavaleiros, tendo à frente arqueiros. Tapeçaria de Bayeux (c. 1070-1090)

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Ainda de acordo com sua autobiografia, aos trinta anos sua vida sofreu uma

profunda transformação. Numa noite, enquanto compunha uma canção para uma dama que

então - com palavras suas- naquele momento amava com amor vil e feiticeiro, teve a visão de

Jesus crucificado. As aparições se repetiram durante vários dias consecutivos, as quais

levaram o maiorquino a entender que se tratava de um chamado divino.

Pelas quais aparições assim repetidas, ele muito espantadamente cogitou que

desejava asseverar aquelas visões tão repetidas, e o estímulo da consciência

lhe ditava que Nosso Senhor Deus Jesus Cristo não desejava outra coisa

senão que, deixasse o mundo e totalmente se doasse à sua servidão (VIDA

COETÂNIA, 1311, p.01)

Entretanto, Llull não se julgava digno de servir ao Senhor Deus já que, até aquele

momento havia levado uma vida fútil, cheia de excessos. No entanto, teve confiança em Deus,

a ele se entregou em servidão, assim produzindo sua conversão.

Acompanhada de sua conversão configuram-se um triplo propósito, aos quais

dedicaria toda a sua vida:

1) Procurar converter os infiéis e incrédulos à verdade da santa fé católica;

2) Fazer livros, uns bons e outros melhores, sucessivamente, contra os erros

dos infiéis;

3) Fazer construir e edificar diversos monastérios, onde homens sábios e

literatos pudessem aprender as diversas línguas necessárias para que pudessem

predicar e manifestar entre os infiéis o catolicismo.

Nesse sentido, os infiéis são os judeus e especialmente os muçulmanos já que,

professavam sua fé diferentemente da cristã. Por isso, por várias vezes empreenderá viagens

para tentar convertê-los.

Houve um segundo episódio que também influenciou Ramon Llull a entregar sua

vida para a honra de Jesus Cristo. Ao assistir a festividade de São Francisco e escutar o

sermão sobre a conversão desse santo, foi tocado pelas palavras do bispo e, assim como Assis,

resolveu partir em peregrinação. Tendo deixado uma parte de seus rendimentos para o

sustento de sua família, partiu em direção a diversos santuários (Igreja de São Jaime, Igreja de

Nossa Senhora de Rocamador) afim de por em prática seus objetivos.

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...mas veio à festa daquele glorioso seráfico monsenhor São Francisco, e

ouvindo o reverendo mestre o sermão de um bispo que predicava na dita

festa, dizendo e recontando como o glorioso monsenhor São Francisco tinha

deixado todas as coisas mundanas e era totalmente entregue ao serviço da

cruz, foi tocado dentro de suas entranhas e deliberou que, vendidas as suas

possessões, ele faria o mesmo (VIDA COETÂNIA, 1311, p.02)

Para empreender sua jornada missionária, após seu período inicial de

peregrinação, Llull, decidiu dedicar-se ao estudo de gramática e de outras ciências. Começou

a aprender a língua árabe com um escravo mouro que havia comprado. Porém, transcorridos

alguns anos de convivência o dito escravo atentou contra a vida de Ramon, tendo o ferido

com um golpe de faca. Apesar dessa tentativa de assassinato, Llull não permitiu que matassem

o mouro enviando-o ao cárcere até que decidisse uma pena adequada. Por tê-lo servido,

ensinado a língua árabe, o maiorquino socorre ao auxílio divino sobre como deveria proceder

em relação ao escravo.

E, de fato, partiu à Nossa Dona de Real para pregar a Nosso Senhor Deus

que Lhe inspirasse o que faria com o dito mouro. E como houvesse feito ali

orações por três dias, e estivesse muito maravilhado que seu espírito não

descansava em dar-lhe morte ou vida, antes estava naquela mesma

perplexidade, com grande tristeza retornou à sua casa; e, quando passou pelo

cárcere onde o cativo estava, descobriu que o dito cativo estava pendurado

com a corda com que estava preso. Deu então graças a Nosso Senhor o dito

reverendo mestre, que Lhe havia tirado daquela grande perplexidade, pelo

qual tanto Lhe havia suplicado (VIDA COETÂNIA, 1311, p.03)

Após esse incidente, Ramon se retirou ao Monte Randa para dedicar-se a pregação

e ao serviço de Deus. Foi quando aconteceu outra revelação, assim descrita na Vida Coetânia:

Depois de todas estas coisas, o dito reverendo mestre subiu alto em uma

montanha chamada Randa, a qual não era muito longe de sua casa, para que

aqui melhor pudesse pregar e servir a Nosso Senhor. E como tivesse estado

aqui por quase oito dias, e um dia estivesse contemplando e tendo os olhos

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voltados para o céu, em um instante lhe veio certa ilustração divina, dando-

lhe ordem e forma de fazer os ditos livros contra os erros dos infiéis (VIDA

COETÂNIA, 1311, p. 03)

Assim, Llull recebeu uma inspiração, a “forma” de sua Arte. A partir desse

episódio empenhou-se na composição de sua Arte, seu primeiro livro se chamou Arte Maior e

depois Arte Geral. Não é nosso propósito aqui analisar o conteúdo de sua Arte. Basta dizer

que de sua vasta produção literária cerca de 280 obras chegaram até os dias de hoje. Llull

empreendeu sua filosofia a serviço da religião, da tentativa de converter judeus e

muçulmanos, de provar a existência da Santíssima Trindade.

É importante frisar que a Arte luliana é um sistema de pensamento aplicável

a qualquer tema ou problema específico, uma tentativa de unificar todo o

pensamento da cultura medieval e um instrumento para investigar a verdade

das criaturas tendo como pressuposto apriorístico a Verdade de Deus, Arte

assim criada com o objetivo de converter os infiéis (COSTA, 2000, p.14)

Apesar da intensa produção literária Ramon Llull foi um pensador leigo, não

possuía formação universitária. “Para Llull, a inspiração criadora tem sua fonte no contato

direto com Deus” (COSTA, 2000, p.20). Por mais que tenha tido ligações com as ordens

mendicantes (dominicanos e franciscanos) não aderiu a nenhuma delas. Devido aos estudos

dedicados as filosofias cristã, árabe, judaica, ao latim e a procura do entendimento entre as

diferentes religiões, Llull pode ser considerado um precursor do diálogo inter-religioso.

Por volta de 1276 foi agraciado por Jaime I com a fundação de um monastério em

Miramar, Maiorca. Consistia num local de preparação de missionários, onde, treze frades

menores, estudando línguas, principalmente o árabe, se preparavam para a evangelização dos

infiéis. Depois da fundação de Miramar, Llull parte pelo mundo na busca de obter a

construção de outros monastérios e de divulgar a sua Arte.

3.2 As viagens e uma só missão: a propagação da fé católica

Para efetuar seus propósitos, Llull se dirigiu a Roma. Entretanto, sua chegada

coincidiu com a morte do Papa Honório IV, sendo frustada sua tentativa de solicitação de

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novas escolas de língua semelhantes à de Miramar. Todavia, parte em direção a França sem

esperar a eleição de um nono papa.

Em Paris, põe-se em contato com a Universidade, no intuito de ensinar sua Arte.

Durante sua estadia travou diálogos com alguns mestres, possibilitando o conhecimento de

seus escritos. No entanto, suas propostas não foram aceitas e nem compreendidas. De volta a

Montpellier, Ramon Llull empreendeu uma revisão de sua Arte por tê-la considerado

demasiada complexa para os membros da Universidade. Nessa mesma cidade, se encontrou

com o ministro da ordem franciscana Raymundo Gaufredi que elogiou seus ensinamentos e o

recomendou a outros conventos, permitindo-lhe expor sua Arte.

De acordo com a sua autobiografia, numa segunda viagem com destino a Roma,

Llull passou por um momento de crise espiritual. Ao tentar embarcar em direção a Berbéria,

sentiu algo que lhe impedia de viajar, uma vez que se fosse até lá, os mouros o apedrejariam,

ou talvez fosse posto na cadeia pelo resto de sua vida. O medo impôs que ficasse em terra,

instalando-se depois o desespero.

E de fato, estando ele neste santo propósito, como aí houvesse já uma certa

passagem pela Berbéria, e o dito reverendo mestre já houvesse recolhido os

seus livros, sobreveio-lhe uma tentação muito forte, porque o seu

entendimento lhe ditava, assim incontinenti que ele estivesse na Berbéria,

sem deixá-lo disputar nem predicar, os mouros o apedrejariam, ou ao menos

meteriam-no em cárcere perpétuo; da qual coisa teve grande temor o dito

reverendo mestre, assim como se lembrou do Monsenhor São Pedro; e, de

fato, o dito reverendo mestre, por este temor não se moveu aquela vez,

obrigado por Nosso Senhor, ao qual nesse momento não suportaria. E, como

o barco já havia partido, tentação contrária reteve o dito reverendo mestre,

considerando que por aquele grande pecado Nosso Senhor o danaria; e não

duvidando que houvesse dado escândalo ao povo contra a fé, quase viu-se

em ponto de desespero, e tinha tanta dor dentro de sua alma, que exalou uma

parte para fora e caiu em uma grande doença, na qual esteve por um grande

tempo, e ninguém jamais conseguiu descobrir a causa. (VIDA COETÂNIA,

1311, p.05)

No trecho acima descrito percebemos o estado de dúvida que se instalou em

Ramon. Apesar desse momento conturbado em sua vida, Llull consegue superar as provações,

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mantendo seu amor a Deus acima de tudo. Reforçado espiritualmente, mas nem tanto

fisicamente, se propõe a viajar a Túnis para dá continuidade a sua missão. Entretanto, seus

amigos o impediram por considerá-lo ainda debilitado. No entanto, passado alguns dias teve

uma nova chance e, desta vez com êxito.

Ao chegar em Túnis em 1293, Ramon Llull tratou logo de colocar em prática sua

campanha missionária. Uma de suas propostas foi estabelecer contatos com intelectuais

islâmicos com a finalidade de mover um diálogo para provar qual fé era a melhor, a Cristã ou

de Maomé.

E, chegando em terra, entraram dentro da cidade, e o dito reverendo mestre

começou a procurar dia-a-dia aqueles que eram mais literatos na seita de

Maomé, declarando-os como ele havia estudado a lei dos cristãos e que sabia

bem a sua fé e os fundamentos dela, mas que tinha vindo aqui para saber a

sua seita e credulidade; e que se ele encontrasse que aquela fosse melhor que

aquela dos cristãos, e ele não pudesse provar (que a dos cristãos era melhor),

que por certo ele faria mouro. (VIDA COETÂNIA, 1311, p.06–07)

A discussão empreendida por Ramon Llull e os mouros está explicitada em Vida

Coetânia da seguinte forma:

Acomodaram-se todos os mouros conhecedores que se encontravam diante

da cidade de Túnis, alegando os mais fortes razões que sabiam e podiam em

sua seita; e como o dito reverendo mestre facilmente respondeu e satisfez a

eles, todos estavam espantados e maravilhados, e por isso ele começou a

falar e dizer assim: “-Convém manter aquela fé e crença (a cristã) a qualquer

homem sábio e letrado, qual majestade divina, a qual cada um de vocês crê e

outorga, atribuindo maior honra, bondade, poder, glória e perfeição, e todas

estas coisas em maior igualdade e concordância; e assim mesmo aquela fé e

crença (a cristã) deve ser mais exaltada e mantida a qual entre Nosso Senhor

Deus e o seu efeito possua maior concordância e conveniência. (VIDA

COETÂNIA, 1311, p.07).

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Um dos mouros presente nesse debate denunciou o beato as autoridades e ainda

propôs a sua execução de forma cruel. Um conselho foi formado e decidiram pela morte do

dito cristão. Porém, outro mouro interveio e foi determinado que a pena de morte fosse

comutada pela expulsão. Enquanto era conduzido da cadeia ao navio que o levaria da cidade,

Llull foi apedrejado, golpeado pela população.

Pouco tempo depois desse episódio se dirigiu a Nápoles onde leu publicamente

sua Arte enquanto esperava a eleição do novo Papa (Celestino V). Llull mais uma vez expõe

suas propostas, porém não são acolhidas. Apesar do fracasso em suas tentativas, não houve

enfraquecimento na produção literária luliana. Pelo contrário, seus escritos se multiplicaram,

expressando suas decepções, propósitos e também suas esperanças. E, firme na sua missão

passou ainda por Gênova, Paris, onde mantinha contato com o mundo universitário.

Ramon Llull estabeleceu contato também com o Oriente, embarcando para o

Chipre por volta de 1301. Em Vida Coetânia narra esse episódio:

E de fato, estando aqui, suplicou ao rei de Chipre que fizesse vir para a sua

pregação alguns hereges que se encontravam em sua terra, oferecendo-lhe

que depois ele passaria ao sultão Babilônia e ao rei da Síria e do Egito, para

instruí-los na santa fé católica; da qual coisa o dito rei de Chipre deu pouca

atenção.

Figura 4 - A viagem de Ramon Llull a Túnis e sua disputatio com os líderes religiosos mulçumanos. Iluminura VII do Breviculum.

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O filósofo não parou por aí. Adentrou-se até a Armênia, passou pela Ásia menor,

onde fora envenenado, em Famagusta foi acolhido pelo mestre da Ordem dos Templários,

Jacques de Molay.

Numa outra visita empreendida até a África (Bugia), o beato foi preso por ter

proclamado em alta voz pelas ruas que a lei de Maomé era falsa e enganosa se dispusendo a

prová-la.

E como fosse inimigo da praça, esqueceu do perigo de morte e começou a

gritar em altas vozes: “-A lei dos cristãos é santa e verdadeira, e a seita dos

mouros é falsa e malvada, e isso eu estou preparado para provar.” (VIDA

COETÂNIA, 1311, p.09)

Depois de ter passado meio ano de reclusão num cárcere, o maiorquino, foi

expulso pelo rei de Bugia, tendo de embarcar à força rumo à Gênova. Durante essa viagem o

navio naufragou próximo a cidade de Pisa. Llull salvou-se, mas perderam-se suas roupas e

livros.

Contando já com seus setenta anos, o maiorquino parte decidido para Paris, onde

leu publicamente sua Arte e muitos outros livros. Nesse momento, retomou sua campanha

anti-averroísta, chegou até solicitar ao rei Felipe IV que extirpasse as obras de Averróis dos

estudos parisienses. Pregou ainda no Conselho de Vienne (1311-1312) onde expôs a

necessidade de criação de escolas para ensinar diversas línguas bem como, a manutenção de

cavaleiros cristãos no trabalho de conquista de Terra Santa e a promoção de livros contra os

erros dos infiéis.

Apesar de assinalar diversos momentos de Ramon Llull nessa sua empreitada

missionária, os episódios aqui registrados são apenas alguns de tantos outros realizados pelo

filósofo em sua caminhada pela difusão da fé católica. Llull morreu por volta de 1316, aos

oitenta e quatro anos provavelmente em Maiorca. Seu corpo foi enterrado no Convento de São

Francisco nessa mesma cidade.

A produção literária luliana apresenta características apologéticas e doutrinárias

com o principal objetivo de converter os infiéis. Para ele a verdadeira fé era o cristianismo e,

através dela se alcançaria a salvação. Suas obras só passaram a ter indicação de local de data

de redação por volta de 1294. Llull agiu como pregador independente e fez com que a sua

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Arte chegasse às universidades, entre reis e papas apesar de na maioria das vezes não ter sido

aceita.

Assinalamos abaixo algumas de suas produções:

1. Livro da Contemplação,

2. Doutrina para Crianças,

3. O Livro dos Anjos,

4. O Livro da Ordem de Cavalaria,

5. Félix ou O Livro das Maravilhas,

6. O Livro da Passagem,

7. Desconsolo,

8. O Livro da Alma Racional,

9. A Retórica Nova.

3.3 Ramon Llull e sua proposta doutrinária em O Livro da Ordem de

Cavalaria

Esta obra foi composta entre os anos de 1279 – 1283 e apresenta um caráter

didático, doutrinário de como se tornar um bom cavaleiro. O Livro da Ordem de Cavalaria

oferece uma proposta pedagógica, para que os cavaleiros compreendessem claramente as suas

funções, o valor da sua ordem e da ética que deveria reger esse grupo. Tratava-se de um

código que deveria ser seguido por todos aqueles que aspiravam se tornar cavaleiros.

É preciso recordar que de acordo com a mentalidade medieval, o cavaleiro fora

aquele escolhido para combater, defender a sociedade. No entanto, por terem se afastado

desses ideais, a Igreja buscou trazer de volta esses homens ao atribuir aos seus valores

guerreiros, ideais cristãos. Ao invés de empreenderem seus serviços em prol da agressividade,

teriam seu afã desviado para uma boa causa, como por exemplo, a luta pela fé cristã e a

proteção dos ditos indefesos. Isso significou a atribuição de objetivos, normas à cavalaria e, é

justamente nesse ponto que a obra de Ramon Llull se adequa.

O Livro da Ordem de Cavalaria indica que a cavalaria foi criada para que o ofício

de cavaleiro existisse. Essa doutrina fundamentava as intenções do nascimento da ordem: a

primeira era restabelecer a justiça no povo de Deus e assim combater o erro e o turvamento; a

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segunda, praticar tudo que contribuísse para recuperar a honra e a ordem (COSTA, NUNES,

2005, p.02)

O manuscrito está dividido em sete partes: Do começo da Cavalaria, Do ofício

que pertence ao Cavaleiro, Do exame do escudeiro que deseja entrar na Ordem da Cavalaria,

Da maneira segundo a qual o escudeiro deve receber a cavalaria, Do significado que existe

nas armas de cavaleiro, Dos costumes que pertencem ao Cavaleiro, Da honra que deve ser

feita ao Cavaleiro.

A obra se inicia com a figura de um eremita, ex-cavaleiro que ao retirar-se do

mundo devido sua idade avançada, sem poder portar mais armas encontra-se com um jovem

escudeiro que estava a caminho da corte de um grande rei para ser armado cavaleiro. O dito

eremita, ao perceber o não conhecimento do jovem em relação a Ordem de Cavalaria entrega-

lhe um livro para que fosse mostrado a todos os que tivessem interesse em tornar-se

cavaleiros.

Para Ramon Llull, o cavaleiro era um homem eleito entre mil homens para possuir

o ofício da cavalaria. Além disso, seu ofício era manter e defender a santa fé católica.

“...assim o Deus da glória elegeu cavaleiros que por força das armas vençam e submetam os

infiéis que cada dia pugnam em destruir a Santa Igreja” (LLULL, 2000, p.23) . Observamos

que o pensamento de Llull em relação aos cavaleiros coadunam com a proposta que a Igreja

tinha para eles, ou seja, alargar o reino de Deus combatendo os infiéis.

Segundo Llull era necessário que houvesse escolas para ensinar a doutrina da

ordem de cavalaria “...injúria muito grande é feita à Ordem de Cavalaria porque não é uma

ciência ensinada pelas letras e por não ter escolas como têm as outras ciências” (LLULL,

2000, p.21). Além disso, era conveniente que o mestre de um cavaleiro fosse também

cavaleiro. O beato também aconselha que desde a juventude, o pai ensine seu filho a cavalgar

e cuidar do cavalo.

Para o autor, os ofícios mais honrados, mais nobres existentes na Terra são os

exercidos pelo clérigo e pelos cavaleiros e por isso propõe que haja uma boa relação entre

eles. “...a maior amizade que deveria existir neste mundo deveria ser entre clérigo e

cavaleiro” (LLULL, 2000, p.25). Mais uma vez se percebe a importância que Llull atribui à

Igreja em cercar a cavalaria com seus ideais. “Isso é um forte elo de ligação entre a filosofia

luliana e a concepção das ordens militares da guerra como missão”. (COSTA, 1998, p.146)

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Além dos próprios cavaleiros, Llull defende que vários membros da nobreza tais

como imperador, rei, príncipe, condes também fossem cavaleiros e, dessa forma auxiliariam a

“reger as gentes” (LLULL, 2000, p.27). O autor ressalta ainda que a cavalaria deveria prezar

mais a qualidade que a quantidade e que mais importante que manter o corpo era a

manutenção da saúde da alma.

A princípio, Ramon Llull mostrava sua reforma de sociedade a partir do uso da

palavra, do contato com os infiéis, por meio do diálogo. Isso pode ser percebido até mesmo

pelo fato do seu interesse em estudar a língua árabe e das suas viagens missionárias.

Entretanto, já com uma idade mais avançada aceitou o uso das armas, como mecanismo de

impor ao infiel uma única crença. Nessa obra que estamos analisando aparecem alguns

trechos que reforçam essa busca ao combate armado: “Pois, assim como nos tempos

primeiros, é agora ofício de cavaleiro pacificar os homens pela força das armas” (LLULL,

2000, p.49)

No discurso produzido pelo maiorquino observa-se a retomada de valores

difundidos pelo movimento da Paz de Deus (século X), por exemplo, o papel dos cavaleiros

como protetores dos indefesos: “Ofício de cavaleiro é manter viúvas, órfãos, homens

despossuídos...” (LLULL, 2000, p.37). Ressalta os preceitos cristãos que deveriam ser

praticados pelos integrantes da ordem.

Ao cavaleiro cabia também cumprir o seu ofício, do contrário estariam

desrespeitando a vontade divina. Por isso, o cavaleiro deveria está imbuído dos mais nobres

ideais. Quais eram então esses valores que deveria apresentar? Fé, esperança, caridade,

justiça, prudência, fortaleza, temperança. Estas são as virtudes que os cavaleiros deveriam

conhecer e praticar. Além dessas, há outras que são apresentadas pelo beato: honra, lealdade,

largueza e gentileza. Por meio da prática dessas virtudes, o cavaleiro desempenharia bem as

suas funções.

Em oposição a esse bom comportamento cabia o combate aos vícios para que os

cavaleiros fossem merecedores da honra terrestre e divina. Entre os vícios que deveriam ser

evitados estavam: orgulho, avareza, mentira, deslealdade, preguiça, gula, perjúrio e luxúria (o

mais abominável). Essa fama do cavaleiro virtuoso e conseqüentemente bom cristão era para

servir de modelo à sociedade.

A ética luliana era constituída por meio de contrários, a chamada ética da

polaridade, através dos princípios de concordância e contrariedade de

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perfeição e imperfeição que podiam encontrar-se no substrato ideológico da

época, baseado na disputa entre os vícios e virtudes (COSTA, 2001, p.35)

Ramon Llull faz críticas ferrenhas aos cavaleiros que causavam desordens que

praticam crimes, roubos, violações de propriedades, violência contra pobres. Cabia também

ao bom cavaleiro combater, perseguir esses maus cavaleiros, “...por isso cavaleiro que seja

ladrão, traidor e salteador deve ser destruído e morto por outro cavaleiro” (LLULL, 2000,

p.41). Percebe-se no discurso do beato sua crítica ao mau comportamento apresentado pelos

cavaleiros e daí sua proposta do cavaleiro preservador da ordem social.

De onde a cavalaria deveria tirar seus membros? Llull responde: da nobreza. Está

notório em vários trechos do Livro da Ordem da Cavalaria que os aspirantes deveriam ser

possuidores de terras, ricos para manterem seus equipamentos e, cabia a eles controlar a

sociedade. Até mesmo porque se ele não fosse detentor de posses, poderia se voltar ao

banditismo já que a cavalaria debandava um alto custo de manutenção. Portanto, esses

aspectos materiais restringiam o acesso aos nobres.

Quando Ramon Llull escreveu o Livro da Ordem de Cavalaria, esta já era

uma ordem plenamente estabelecida na sociedade medieval. Já estava

totalmente associada à nobreza, com regras a serem rigidamente seguidas.

Era também um grupo que tinha sua linhagem baseada na hereditariedade.

(COSTA, NUNES, 2005, p.03)

Llull explicita quais as condições que permitiam o acesso do escudeiro na Ordem

de Cavalaria.

1. Ser examinado por um cavaleiro amante da Ordem de Cavalaria;

2. Amar e temer a Deus, pois sem isso nenhum homem é digno de entrar na

Ordem;

3. Ser nobre de coragem;

4. Ter idade conveniente, pois se o escudeiro é jovem demais “não pode haver

aprendido os ensinamentos” e se for velho “tem debilidade de corpo”;

5. Ter linhagem nobre;

6. Ter riqueza para poder manter a cavalaria;

7. Apresentar bons costumes;

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8. Ter conhecimento dos perigos que são destinados aos que desejam ser

cavaleiros.

Para consolidar a entrada do escudeiro na Cavalaria, era necessária uma

cerimônia, o ritual de sagração, que nos escritos de Llull está fortemente marcado pela

referência cristã. Dessa forma, o escudeiro deveria na véspera confessar, jejuar, fazer orações

e comungar. No dia da missa apresentar-se ao presbítero e prometer a manutenção da Ordem.

Assim como, relembrar os quatorze artigos da fé católica, os dez mandamentos da lei de Deus

e os sete sacramentos da Igreja. (LLULL, 2000, p.69). Nota-se o sinal do sagrado inserido

neste universo bélico. “A sacralização da função do ofício do cavaleiro pela Igreja, através

da benção da espada e do ritual da velada das ramas visava igualmente o controle deste

grupo social e o desejo de voltá-lo ao espírito cristão” (ZIERER, 2006, p.10)

O beato dedicou o V capítulo dessa obra para uma cuidadosa referência aos

paramentos do cavaleiro. Construiu uma interessante analogia entre as armas e vestimentas

com os símbolos cristãos. Assim a espada forjada à semelhança da cruz, significa que do

mesmo modo como Cristo morreu na cruz, o cavaleiro deve vencer os inimigos da cruz com a

espada. A lança representaria a verdade frente a falsidade; a cota de malha significa a

proteção contra os vícios; o escudo como defesa, significa seu próprio ofício, “...porque assim

como o cavaleiro mete o escudo entre si e seu inimigo, assim o cavaleiro é o meio que está

entre si e seu povo”. (LLULL, 2000, p.83); o elmo para evitar coisas vis, entre outros objetos

que se tornam símbolos contra os inimigos.

No capítulo VI, “Dos costumes que pertencem a cavaleiro”, o maiorquino explica

uma a uma como as sete virtudes devem ser utilizadas. Sobre as virtudes teologais, a primeira

é a fé, possibilita a crença nas obras de Deus e leva os cavaleiros a luta contra os inimigos da

Igreja. A esperança faz com que o cavaleiro lembre de Deus nas batalhas e recorra ao seu

auxílio (LLULL, 2000, p.91). A terceira é a caridade. O cavaleiro deve ser caridoso com o

seu próximo, com os pobres e ter mercê dos vencidos. Já em relação às virtudes cardeais, deve

ter justiça, agindo de maneira correta, a prudência, sabendo distinguir o bem do mal, a

fortaleza evita os sete pecados mortais e a temperança, evitando o excesso entre comer,

beber e vestir.

O ofício da cavalaria era considerado por Ramon Llull um dos mais nobres e por

isso deveria ser honrado por todos. Além disso, o cavaleiro luliano deveria ser amado, temido

e louvado (LLULL, 2000, p.109). Se morresse pela Ordem mais honras deveriam ser-lhes

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feitas pois, “...tu morres para manter a Cavalaria, então a Cavalaria está em ti como aquilo

que mais podes amar...” (LLULL, 2000, p.35)

Através do Livro da Ordem de Cavalaria, percebemos quantas responsabilidades

cabia ao cavaleiro dentro do pensamento luliano. Dentre as funções estabelecidas para esse

cargo uma se destaca: manter e defender a fé católica. Há no seu pensamento uma proposta de

cavaleiro cristão, imbuído de virtudes e inimigo dos vícios, das coisas mundanas. Por isso, o

filósofo retoma aquele modelo valorizado pela Igreja nos movimentos de Paz do século XI,

propondo uma reforma social. Através de seus princípios, o cavaleiro luliano conduziria não

só a si como a sociedade à salvação. Por isso, seu cavaleiro ideal não era mais responsável

pela desordem, pela violência como nos tempos anteriores e sim como conservador da ordem

social, propagador da santa fé cristã. Llull acreditava que o cristianismo era a verdadeira fé e

por isso deveria ser professada por todos.

3.4 Der Arme Heinrich e O Livro da Ordem de Cavalaria: o que essas fontes

podem ter em comum?

Após a análise individual dos elementos das fontes que nos propomos a trabalhar

estabelecemos agora uma comparação entre o romance Der arme Heinrich e o Livro da

Ordem de Cavalaria no intuito de observarmos os pontos de contato na visão do cavaleiro

ideal nas duas fontes.

No romance em versos Der arme Heinrich notamos o protagonista Henrique, um

nobre cavaleiro que ao se afastar de Deus, se vê acometido por uma grave doença, a lepra,

perdendo assim força e prestígio. A salvação do dito cavaleiro veio através de uma humilde

camponesa, que aceitou doar sua vida, oferecendo-se em sacrifício em prol da cura de

Henrique. Entretanto no momento que a jovem está prestes a ser sacrificada, Henrique

interrompe a cirurgia, evitando a morte da camponesa. Ao reconhecer o seu erro, Henrique é

milagrosamente curado pela misericórdia de Deus, que o recompensa pelo seu ato. No que diz

respeito à jovem camponesa, Henrique a tomou por esposa, concedendo-lhe um título de

nobreza.

No Livro da Ordem de Cavalaria, o filósofo catalão Ramon Llull elabora um

manual, uma espécie de ensinamento que auxiliasse os aspirantes à qualquer ordem de

cavalaria, mostrando uma série de preceitos de como se tornar bons cavaleiros e honrasse a

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ordem. Assim, tinha o desejo que a nobreza guerreira, principalmente os secundogênitos, que

não tinham direito à herança, tão envolvida em pilhagens se voltasse aos valores cristãos.

Com isso propomos um contato entre as duas fontes. Ao analisarmos o cavaleiro

da fonte Der arme Heinrich (O pobre Henrique) percebemos nele algumas características que

Ramon Llull defende, por exemplo:

1)Nascimento e riqueza. Em várias passagens do Livro da Ordem de Cavalaria

está destacado que somente aqueles que viessem de linhagem, ou seja, pertencentes à nobreza

poderiam exercer o oficio de cavaleiro “Linhagem e cavalaria se convêm e se concordam” (

LLULL, 2000, p.57). Ao passo que também era necessário ter posses para a própria

manutenção da Ordem “...escudeiro sem armas e que não possua tanta riqueza que possa

manter a Cavalaria não deve ser cavaleiro...” (LLULL, 2000, p.61)

2) Honra. Além de ser um dos ofícios mais honrados e merecedor de honras,

segundo Ramon Llull, o cavaleiro deveria ter honra para ser servidor da Ordem “E Cavalaria

é honrado oficio e é muito necessário ao regimento do mundo” (LLULL, 2000, p.102).

3) Firmeza no juramento. Ser cavaleiro é ter comprometimento com Deus e com

a Ordem e por isso é preciso saber qual o fardo que ela acarreta, para depois não desonrá-la.

“É mandamento de lei que o homem não seja perjuro. E se Deus e Cavalaria são

convenientes, convém que jurar falsamente não se dê naqueles que mantêm a Cavalaria”

(LLULL, 2000, p.47).

4) Sábio e educado. Entre as exigências para fazer parte da ordem de cavalaria

estão os bons ensinamentos e os bons costumes. “Segundo o exame do escudeiro que deverá

ser cavaleiro, convêm que se pergunte sobre seus conhecimentos e seus costumes” (LLULL,

2000, p.59).

5) Refúgio dos necessitados. O oficio da cavalaria existia para a proteção da

sociedade, para defender os órfãos, os despossuídos, socorrendo aqueles que necessitassem.

“... é costume da Ordem de Cavalaria que por ser grande e honrada e poderosa, vá em

socorro e ajuda daqueles que lhe estão por debaixo em honra e em força” (LLULL, 2000,

p.37)

6) Pureza de coração. Ser cavaleiro requer um coração que renegue os vícios

mundanos. Só os puros de coração deveriam ter acesso à Ordem.

7) Temperança. O cavaleiro luliano desconhecia qualquer excesso ou escassez,

ele era moderado pois, “temperança é virtude que está no meio de dois vícios : o primeiro é

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pecado pelo excesso de grandeza, o segundo é pecado por excessiva pouca quantidade”

(LLULL, 2000, p.103)

8) Virtuoso. O cavaleiro proposto por Ramon Llull deveria ser portador de

virtudes que auxiliaria a combater as tentações. Por isso deveria conhecê-las e praticá-las.

Eram sete, divididas em teologais e cardeais. “ Todo cavaleiro deve conhecer as sete virtudes

que são raiz e princípio de todos os bons costumes e são vias e carreiras da celestial glória

perdurável”. (LLULL, 2000, p.89).

9) Esperança. Essa virtude permite ao cavaleiro a confiança em Deus, a busca de

auxílio nos momentos difíceis. “Com a esperança fortalece-se e retorna a coragem ao

cavaleiro; e a esperança faz suportar trabalhos...” (LLULL, 2000, p.91)

Outros aspectos interessantes em relação aos pontos que unem as duas fontes

refere-se ao vício cometido pelo cavaleiro Henrique, isto é, a soberba, causa de sua punição.

No segundo capítulo destacamos que as glórias alcançadas por Henrique o conduziram a

queda, pois por ter sido tão enaltecido deixou que o orgulho o consumisse, entregando-se aos

prazeres terrenos. O cavaleiro luliano ao contrário, deveria combater esse tipo de vício, era

justamente um dos sete pecados que deveria evitar. Entretanto, faz uma ressalva: “se tu,

cavaleiro orgulhoso, desejas vencer teu orgulho, ajusta em teu coração humildade e

fortaleza...” (LLULL, 2000, p.99). É nesse ponto que o cavaleiro de Hartmann e o luliano

mais uma vez se encontraram, pois no momento que Henrique reconhece não ser digno do

sacrifício da donzela, instaurou-se o sentimento de humildade. Assim, Henrique recebeu a

salvação de seu corpo por reconhecer seu erro.

O personagem Henrique se assemelha ao cavaleiro luliano até mesmo na oposição

entre o bom e o mau comportamento, ou seja, seus valores cristãos levam a ter saúde e ao

contrário os mundanos o conduziram à doença. Dessa forma os valores cristãos tinham um

peso maior para se viver bem naquela sociedade. Tanto o cavaleiro de Hartmann quanto o de

Llull apontam a importância desses princípios cristãos.

Diante dessa comparação notamos o quanto o cavaleiro Henrique da fonte Der

arme Henrich poderia totalmente ser confundido com o cavaleiro ideal proposto por Ramon

Llull. Notamos que as qualidades apresentadas por Henrique se “encaixam” no modelo

luliano. Assim, fica notório a influência que ambos os autores tiveram das idéias cristãs, que

cavaleiro deveria estar imbuído dos mais nobres ideais, pois seu ofício era servir aos preceitos

divinos acima de tudo.

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Apesar dos dois autores estarem escrevendo em períodos diferenciados, um por

volta de 1195, final do século XII (Hartmann) e o outro já no século XIII, entre 1279-1283

(Ramon Llull) e, terem formações sociais diferenciadas (mesmo que ambos fossem instruídos

na carreira armada) percebe-se o quanto à cavalaria representou naquela sociedade. Em

muitas narrativas, o comportamento cavaleiresco serve como modelo para o restante da

sociedade ou, expressam como aquela sociedade se comportava.

Dessa forma, o que caracteriza um bom cavaleiro são as ações praticadas em favor

da defesa dos pobres, dos órfãos, das viúvas, da proteção geral da sociedade. Além de um

comportamento equilibrado, obediente ao seu senhor, temente a Deus e principalmente

cristão. Por mais que esse modelo fosse difícil de ser aplicado na sociedade em sua totalidade,

através da análise dessas duas fontes podemos compreender qual lugar os cavaleiros

ocupavam no medievo e quais funções deveriam desempenhar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através do estudo da fonte Der Arme Heinrich (O Pobre Henrique) foi possível

perceber uma proposta de aspiração de modelo comportamental no findar do século XII.

Reflexões semelhantes podem ser estendidas ao Livro da Ordem de Cavalaria, uma vez que

se buscou demonstrar um determinado tipo de comportamento social almejado. Ambas as

fontes tem como principal ensinamento a importância dos valores cristãos na construção

desses comportamentos que, nesses casos eram os dos cavaleiros.

Para chegarmos a esse resultado, primeiramente estabelecemos a tentativa de

“demarcar” essa sociedade medieval dos séculos XII-XIII. Período este definido pelo

historiador Hilário Franco Jr. como Idade Média Central. Recheada de transformações enche

os olhos dos que buscam conhecê-la, ao se aproximar daquele período histórico. Aspectos

políticos, econômicos se apresentam como em qualquer conjuntura social.

Avaliamos como a melhoria nas técnicas agrícolas influenciou no crescimento

populacional. Vimos que a charrua pesada, o sistema trienal e a nova atrelagem de animais

contribuíram para uma eficácia no trabalho de preparação do solo. Assim, a produção de

alimentos permitiu a sobrevivência de um maior número de indivíduos.

Ora, se a população crescia, eram necessários novos terrenos para abrigar essa

gente toda. Diante disso, arrotear terras foi a solução. Pântanos, florestas, áreas inóspitas eram

todos ocupados e assim davam lugar a novas povoações. Vale dizer que as arroteias

impulsionaram a migração, isto é, as pessoas se deslocavam para buscar terrenos. E não era só

a busca de áreas para o cultivo que levava esses homens a caminhar. Podia ser guerras,

movimentos de peregrinação e outros.

Outro dado importante foi o polêmico sistema feudal. Por mais que não se

apresentasse de forma unificada nos locais onde apareceu, uma característica importante

destacou-se: as relações de vassalagem e servis. E a fidelidade era o traço dessa relação.

Quando nos voltamos para esse estudo não podemos esquecer da função da Igreja

no medievo. Herdeira do Império Romano, nas palavras de Hilário Franco Jr., a Igreja teve

seu papel de prestígio desde o reconhecimento do Cristianismo como religião oficial. Tendo o

Papa como o maior líder espiritual no seio de sua organização, buscou exercer na sociedade

os desígnios divinos. Não foram seus membros que aperfeiçoaram o modelo de sociedade

tripartida, estabelecendo a cada indivíduo sua função e, que era essa uma ordem divina?

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Ressaltamos que dentro dessa ordem se destacava o papel dos cavaleiros, objeto

mais específico de nossa análise. Por mais que não haja concordância entre a origem desses

milites, um ponto em comum os une: sua especialização era o combate armado. E não se

tratava de um combate individual e sim coletivo. Constatamos que o ímpeto agressivo, a

brutalidade também faziam parte do dia-a-dia desses cavaleiros e, dessa forma vítimas de

várias críticas por parte da Igreja. E esta, se empenhou em apaziguar esse aspecto violento.

Tal foi a importância dos cavaleiros na Idade Média que a literatura lhes dedicou

tantas obras. Foram poemas, epopéias, canções de gesta que transmitiram e preservaram a

ação desses guerreiros. Apesar de a cavalaria não ter nascido na Idade Média, foi durante esse

período que se expandiram regras e códigos próprios de combate.

Ao utilizarmos fontes literárias como objeto de estudo tivemos a preocupação de

destacar que a Literatura pode expressar valores, imagens, aspirações de uma dada realidade.

Cabe ao historiador tentar se aproximar dessa realidade. Portanto, constitui-se uma

possibilidade de registro do movimento que realiza o homem na sua historicidade. Nesse caso,

buscamos através da literatura produzir conhecimentos a respeito de uma determinada

conjuntura social. Acreditamos que a narrativa dessas fontes nos proporcionaram uma

aproximação do que se propunha como cavaleiro ideal.

Dessa forma, no romance Der Arme Heinrich (O Pobre Henrique) observamos

que o cavaleiro Henrique era portador de valores de suma importância dentro de sua ordem.

Entretanto, Henrique também se encontrava numa estrutura que era regida pelo plano divino.

Por isso, ao quebrar o respeito em relação a essa vontade de Deus, foi vitimado a “pagar”

pelos seus atos, recebendo castigos corporais através de uma doença, a lepra. Porém, ao

reconhecer seu erro, recebeu a chance de voltar a fazer parte dessa ordem. Isso nos levou a

interpretar que havia na produção de Von Aue uma tentativa de valorização dos ideais cristãos.

Percebemos que a vida do cavaleiro deveria ser pautada principalmente na prática das virtudes

cristãs. Houve uma busca de reconciliação entre Igreja e cavaleiro

Assim como, no Livro da Ordem de Cavalaria, Ramon Llull expressou a sua

insatisfação perante o comportamento dos cavaleiros. Buscou através dessa obra guiar os

aspirantes à cavalaria, através da prática dos valores cristãos. Para ele, era necessário que os

cavaleiros propagassem a fé católica e, para isso deveriam se afastar dos pecados e seguirem a

doutrinação cristã. Llull pretendia cristianizar não apenas a cavalaria como os considerados

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infiéis (judeus e muçulmanos). Por isso, dedicou boa parte de sua vida com o objetivo de

realizar seus propósitos missionários.

Assim, esboçamos através da análise dessas fontes, os traços considerados

característicos ao modelo de cavaleiro ideal. Bem como, percebemos a confluência de

ideologias que permearam a construção desse modelo, ou seja, a proposta pela Igreja e a da

nobreza aristocrática.

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