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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA MARCELO SILVA NUNES CONFLITOS NAS TERRAS DO CALVÁRIO: um estudo sobre a luta pela posse da terra em Boa Vista, Rosário – MA (1988-2004) São Luís 2007

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO MARCELO SILVA … · universidade estadual do maranhÃo centro de educaÇÃo ciÊncias exatas e naturais departamento de histÓria e geografia curso

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

CURSO DE HISTÓRIA

MARCELO SILVA NUNES

CONFLITOS NAS TERRAS DO CALVÁRIO: um estudo sobre a luta pela posse da terra em

Boa Vista, Rosário – MA (1988-2004)

São Luís

2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

CENTRO DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

CURSO DE HISTÓRIA

MARCELO SILVA NUNES

CONFLITOS NAS TERRAS DO CALVÁRIO: um estudo sobre a luta pela posse da terra em

Boa Vista, Rosário – MA (1988-2004)

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Estadual do Maranhão para

obtenção do grau de Licenciado em História.

Orientador: Prof.º Dr. Josenildo de Jesus Pereira

São Luís

2007

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MARCELO SILVA NUNES

CONFLITOS NAS TERRAS DO CALVÁRIO: um estudo sobre a luta pela posse da terra em

Boa Vista, Rosário – MA (1988-2004)

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Estadual do Maranhão para

obtenção do grau de Licenciado em História.

Orientador: Prof.º Dr. Josenildo de Jesus Pereira

Aprovada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof.º Dr. Josenildo de Jesus Pereira

Orientador

________________________________________ Prof.ª Ms.ª Marcea Milena Galdez Ferrera

1º Examinador

________________________________________ Prof.º Dr. José Henrique de Paula Borralho

2º Examinador

3

À minha avó

4

AGRADECIMENTOS

A Deus pela força que me deu durante toda a minha vida acadêmica, abrindo os meus

olhos para além do que podiam ver. Louvado seja o nome do Senhor!

Aos meus pais, por terem me proporcionado o melhor que eu poderia receber: amor,

atenção, carinho e cuidado. Aos meus irmãos que mesmo sem darem uma palavra,

demonstravam todo o apoio ao meu trabalho.

Aos meus amigos de Caxias que sempre torceram por mim, Laécio, Neta e Jose. Aos

companheiros de curso, Rafael, Jorge, Tatiane, Elivaldo, ao meu grande amigo Jonas que

acompanhou o meu desenvolvimento até a conclusão deste curso. Aos meus quase dois

irmãos, Leandro e Fortaleza, por me suportarem nas horas de longa prosa sobre os caminhos

que nossas vidas estão seguindo.

Aos professores do Curso de História, pela grande disposição em oferecer uma

graduação de qualidade. Em especial agradeço ao professor Alan por ter sido um pai desde os

meus primeiros passos nesta universidade, aconselhando e estimulando a fazer sempre o

melhor. À professora Marivânia por ter me dado a oportunidade de fazer a pesquisa de campo

que mudaria a minha vida. Ao professor Henrique Borralho pelo exemplo de independência

no magistério. Ao professor Fábio pelos conselhos no estágio.

Ao pesquisador Deusdédit Leite pelas entrevistas concedidas e relatórios de suas

viagens à Rosário.

Ao professor Josenildo pela orientação deste trabalho, pelas puxadas de orelha e pelos

conselhos.

A todos que direta ou indiretamente contribuíram de alguma forma para a realização

deste trabalho, deixo os meus sinceros agradecimentos.

5

“Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem

campo a campo, até que não haja mais lugar, e

ficam como únicos moradores no meio da

terra!”

Isaías 5, 8

6

RESUMO

Os remanescentes de comunidades quilombolas vêm ganhando destaque na questão

agrária, desde a promulgação de uma lei em 1988 que lhes garante a propriedade da terra. A

lei, porém, é ambígua quanto aos critérios definidos para identificação e reconhecimentos dos

sujeitos de direito. Como resultado, outros grupos de posseiros procuraram legalizar por meio

da referida lei, a posse da terra que vêm ocupando, determinando entre os sujeitos envolvidos

os critérios para a elaboração da nova identidade. Para este trabalho monográfico, definiu-se

estudar os conflitos ocorridos na comunidade Boa Vista, no período de 1988 a 2004,

envolvendo de um lado extrativistas; e do outro, um multifacetado grupo de posseiros que

encontrou no compartilhamento das experiências de violências, agressões e abusos sofridos

um novo sentimento de coletividade e de pertencimento àquela terra, representado na

construção de uma nova identidade. A organização da resistência tem como liderança os

moradores vinculados à religião pentecostal, cuja ação despertará a contenda com outros

grupos religiosos locais. A variedade de situações vividas pelos moradores da comunidade,

impulsionou o uso das fontes orais como embasamento para esta pesquisa.

PALAVRAS-CHAVES: Conflitos, Identidade, Experiência, Resistência.

7

ABSTRACT

The quilombolas communities remaining have been overcoming prominence in the

agrary questions, since the promulgation of a law in 1988 that secures to their the land’s

property. However, the law is ambiguous in relation to the defined criterion to right subjects

identification and recognitions. As the result, other gruops of possessives searched to legalize,

by this law, the land’s possession that have been occupying, determining among the involved

subjets the criterions to the development of the new identity. To this monographic work, it

was defined to study the conflicts those wre happend at Boa Vista community, since 1988 at

2004 period, envolving the people who extract the nature resources by one side, ande in the

other side, a many faces possessive groups os people that found a new feeling os collectivity

and of pertaining to that land, represented in the building of a new identity, throught the

violence, aggression and suffered abuses experiments of share. The resistence organization

has as leadership the dweller linked to pentecostal religion, whose action will arwake the

contention with another local religious groups. The diversity of situations lived by the

community dwellers was an incentive to the use of spoken sources as basement to this

research.

Keywords: Conflicts, Identity, Experience, Resistence

8

LISTA DE SIGLAS

ABA – Associação Brasileira de Antropologia

ACONERUQ – Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

FCP – Fundação Cultual Palmares

CCN – Centro de Cultura Negra

CUT – Central Única dos Trabalhadores

INCRA – Instituto de Colonização e Reforma Agrária

ITERMA – Instituto de Colonização e Terras do Maranhão

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

ONG – Organização não-governamental

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 10

2. OS PRETO SOMO NÓS: a construção da identidade quilombola 15

2.1 Identidade e Quilombo em discussão 17

2.2 Comunidade Boa Vista: elementos de uma identidade 27

3. A ORGANIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA 36

3.1 Roça, grilagem e resistência 38

3.2 A Associação 43

3.3 Os conflitos internos 47

4. PENTECOSTAIS EM AÇÃO 56

4.1 É necessário conscientizar primeiro 60

4.2 A desmobilização coletiva 65

CONCLUSÃO 71

REFERÊNCIAS 74

APÊNDICE 78

10

1. INTRODUÇÃO

Os conflitos agrários envolvendo as comunidades de remanescentes de quilombo se

tornaram mais freqüentes no Brasil, após a década de 1950, em função da implantação de

grandes empresas extrativistas, hidrelétricas, madeireiras e o avanço da fronteira agro-

pecuarista. Como resultado as populações que viviam nas áreas afetadas fugiam para outras

localidades, principalmente para os centros urbanos, ou resistiam por meio das mobilizações

coletivas.

A dinâmica conflituosa passou a envolver cada vez mais camponeses à medida que as

Associações e Sindicatos de Trabalhadores Rurais proliferavam pelo país, tornando-se as

formas mais importantes de organização e luta política dos camponeses (MARTINS, 2000;

NUNES, 2007). Na década de 1980, uma parcela da população rural começou a chamar a

atenção de políticos e pesquisadores por causa da especificidade do grupo ameaçado de

expropriação: os remanescentes de comunidades quilombolas que desde a criação da Lei de

Terras (1850), vêm sendo expulsos de suas áreas historicamente ocupadas, acabam por se

interiorizar nas matas do oeste brasileiro.

O que vai ocorrer, a partir dos anos 80, é a grande quantidade de conflitos fundiários

envolvendo essas comunidades, principalmente por causa da grilagem. Na tentativa de

solucionar a questão, representantes do movimento negro no Brasil começaram a pressionar o

Congresso Nacional para aprovar leis que pudessem beneficiar os remanescentes quilombolas.

No ano de 1988, centenário da Abolição, os deputados federais aprovaram o artigo 68, para

ser aplicado em caráter provisório, que garante “aos remanescentes de comunidades

quilombolas que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,

devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

No entanto, os debates que antecederam a votação da lei não chegaram à conclusão

acerca dos critérios que definiriam quem poderia ser chamado de remanescente. Alguns

órgãos federais – Fundação Cultural Palmares e Incra - foram criados para discutir a questão

ao longo dos anos, apresentando resultados temporários de pouca expressão.

Em 1996, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) definiu os remanescentes

quilombolas como grupo étnico, atribuindo como elementos de identificação a organização

interna que promove a criação dos laços de afetividade e solidariedade entre os sujeitos

sociais, cuja territorialidade é marcada pelo uso comum da terra. O novo conceito abrange a

11

dinâmica das transformações no cenário fundiário que afetaram o modo de vida dessas

populações, mais tarde os cientistas sociais passaram a denominá-las de comunidades negras

rurais ou povoados negros, termos equivalentes às comunidades de remanescentes

quilombolas.

De posse desse discurso, várias organizações vinculadas ao movimento negro

passaram a mobilizar populações “negras” pelo interior do país, na esperança de assegurar-

lhes a posse de terras que estejam ocupando. Um exemplo foi o que ocorreu na comunidade

Boa Vista, localizada no município de Rosário-Ma.

Neste trabalho foram analisadas as transformações sócio-culturais ocorridas nessa

comunidade, como implicações dos conflitos com empresas extrativistas que invadiram a área

nos anos 1980. A discussão é feita em três momentos, focando a construção de uma nova

identidade, a identidade quilombola; a organização da resistência empreendia por alguns

moradores, e por fim, os conflitos envolvendo os grupos religiosos que vivem no local.

Boa Vista é uma área habitada, em maioria, por várias famílias de posseiros que se

instalaram na região, a partir dos anos 70. De acordo com Luna (1984, p, 13) “ocupantes de

terras devolutas que não possui o título de propriedade”. Uma outra parte da população era

constituída pelos remanescentes de ex-escravos que trabalharam numa fazenda de cana de

açúcar, cujo proprietário era uma família de sobrenome Baima. Sem informações que

pudessem auxiliar no estudo sobre a história do lugar, seguiu-se os relatos orais narrados por

alguns moradores. Estes afirmam que os escravos receberam aquelas terras como doação feita

pela referida família antes dela partir para a França, no final do século XIX.

Conta-se ainda que até o início dos anos 1970 os remanescentes de escravos que

viviam na área desenvolveram uma agricultura de subsistência e uma forma de organização

das relações internas que garantia a manutenção dos laços de identidade. Quando começam a

chegar as primeiras famílias de agricultores vindo do interior do Estado - expulsas de suas

terras por fazendeiros, são feitos acordos aonde os “chegantes” usufruiriam da terra mediante

o pagamento do foro com parte da produção agrícola de cada família.

Os contatos amistosos entre remanescentes e migrantes garantiram a sobrevivência dos

grupos por um bom tempo. Mas com a chegada da Pedreira Anhanguera as primeiras

dificuldades começaram a aparecer. Apresentando documentos cartoriais de compra daquelas

terras, representantes da empresa extrativista começaram a negociar a saída das famílias da

área. Após serem deslocadas para um novo local, os grupos de moradores teriam que

12

enfrentar uma outra ameaça de expulsão. Vários empresários nordestinos implantaram olarias

na região, para a fabricação de telhas e tijolos a serem vendidos nos municípios próximos a

Rosário. As tensões entre os posseiros e os extrativistas irão acarretar em várias mudanças nas

estruturas física, social e cultural de Boa Vista.

Apesar da amplitude de temas que poderiam ser abordados com o caso desta

comunidade, foram sistematizados apenas três capítulos para esta pesquisa. No primeiro,

apresentou-se um breve panorama acerca dos debates em torno da ressemantização dos

termos quilombo e remanescentes quilombolas, as novas denominações atribuídas a essas

populações e o processo de construção da identidade quilombola empreendido por um grupo

de moradores de Boa Vista, visando a regularização de suas ocupações.

Ao fazer uma discussão acerca das populações negras rurais, foi importante mostrar

como os laços de solidariedade existentes entre os membros, assim como as regras definidas

para inclusão e exclusão de sujeitos, foram responsáveis pela manutenção da unidade do

grupo. Para os que vivem nas chamadas “terras de preto” – marcadas por um anti-capitalismo

– a territorialidade se constitui um forte fator de identidade. “Ela envolve as relações com os

recursos naturais e contribui pra que os aspectos culturais se consolidem” (PVN, 2003, p, 16).

Contudo, o artigo 68 definiu que os sujeitos devem “estar ocupando as suas terras” para

receberem os títulos; sendo assim, colocou-se a questão: a identidade coletiva, ou quilombola,

só pode ser construída a partir da fixação em um território? Pois os estudos analisados

indicaram a grande mobilidade espacial de grupos negros que desde as primeiras alforrias não

garantiram o acesso a terra.

Apesar da grande mobilidade agrária, os grupos de posseiros negros conseguiram

manter algumas de suas tradições, repassando-as através das gerações. A mudança no modo

de vida destes grupos muitas das vezes se dava, quando estes entravam em contato com outros

sujeitos: um grande proprietário que lhes oferecia a terra para o cultivo mediante o pagamento

do arrendamento; ou homens livres sem-terra e marginalizados que procuravam abrigos

nessas comunidades.

No segundo capítulo o foco é a organização da resistência realizada por um grupo de

moradores ligados à Casa de Oração que está sob a tutela da Assembléia de Deus de Rosário.

Os membros são comumente chamados de evangélicos ou, para os cientistas da religião,

pentecostais. A ação deste grupo teve como fator preponderante a ameaça de derrubada do

templo por um dos donos das olarias. O dirigente e um membro da congregação indignaram-

13

se com aquela situação e começaram a mobilizar outros fiéis a resistirem às investidas dos

grileiros. Como resultado, o grupo de moradores que tomou consciência dos fatos lançou-se à

construção da Associação de Pequenos Agricultores Rurais de Boa Vista.

Inseridos na luta pela terra, alguns moradores que compartilhavam da mesma situação

de opressão, pobreza e ameaças, forjaram uma nova identidade social expressas nas práticas

políticas e culturais implementadas durante os conflitos. Esse é o momento em que se forja a

classe1, como um fenômeno histórico composto por uma multidão de experiências em relação

umas com as outras e, num constante fazer-se, e não uma categoria analítica ou estrutural.

Apesar do interesse comum em defender a ocupação da terra, a mobilização da

comunidade não garantiu a unidade do grupo. As lideranças entraram em discordância quanto

à forma de resistir ao avanço dos grileiros, ocasionando na cisão dos associados. Estes

conflitos internos abrangeram também a esfera religiosa colocando pentecostais, católicos e

praticantes de culto-afro numa disputa pela sobrevivência das práticas religiosas durante a

mobilização para a resistência.

O processo de conscientização dos moradores para defesa do acesso à terra, é

promovido, no primeiro momento pelos pentecostais. Essa ação é analisada no terceiro

capítulo focando as implicações internas e externas para este grupo religioso. Vários fatores,

como a ameaça de derrubada do templo, os conflitos com os praticantes do culto-afro

resultantes da tentativa de evangelizá-los, irão contribuir para algumas das transformações no

cenário religioso da comunidade de Boa Vista.

A mudança na visão social de mundo do grupo envolvido na defesa das terras,

definida por Lowy (2002, p, 13) como “todos aqueles conjuntos estruturados de valores,

representações, idéias e orientações cognitivas”, representou o abandono de algumas das

práticas culturais exercidas por alguns moradores. Ou seja, não significa que a luta pela posse

da terra seja uma luta pela reprodução de um sistema tradicional, pelo reavivamento de

condições passadas, como é difundido por alguns antropólogos. É uma luta contra a

expropriação, e muitas das vezes, por condições de sobrevivência num sistema de mercado.

O que se terá é uma luta promovida por um grupo que agrega múltiplas identidades,

mas que no compartilhamento de experiências puderam organizar uma forma de resistência

1 A classe “surge quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas) sentem e articulam a ‘identidade’ de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus.”. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 10.

14

que comportasse os interesses envolvidos na disputa. O desenrolar da questão contou ainda

com a participação de representantes do movimento negro, cujo discurso pela afirmação

étnica fora de suma importância para a construção da identidade quilombola entre os

associados de Boa Vista.

O discurso elaborado pelos agentes envolvidos no processo de reconhecimento da

territorialidade étnica da comunidade em questão, nos levou a adotar a história oral como

metodologia para esta pesquisa. As experiências individuais representadas nos relatos orais

consistiram na narração de uma vida marcada por conflitos, violências e humilhações. Para

definição de história oral, buscamos em Delgado (2005, p. 15) a seguinte compreensão:

É um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e

documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas,

testemunhos, versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas

dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais.

Além disso, podemos verificar em cada entrevista a forma como a experiência do

conflito pela posse da terra é lembrada na memória individual. Através do contato direto com

o sujeito histórico podemos observar suas impressões acerca da realidade do espaço ocupado,

suas temporalidades e concepções de coletividade, etnia e religiosidade. Com base nos

depoimentos, voltamos nossa atenção para a definição de memória. Segundo Nora (1993, p.

18), a memória emerge de um grupo que ela une, no entanto,

a atomização de uma memória geral em memória privada dá à lei da

lembrança um intenso poder de coerção interior. Ela obriga cada um a se

relembrar e a reencontrar o pertencimento, o princípio e segredo da

identidade. Esse pertencimento, em troca, o engaja inteiramente.

Podemos usar este pensamento para discutir de que maneira as experiências vividas

por cada indivíduo são aglomeradas na forma de uma memória coletiva, logo de uma

identidade étnica. Conforme os estudos de Lang (apud. BOM MEIHY, 1996, p.35)

escolhemos como fontes para nossa pesquisa os relatos orais, por estes “serem uma narração

mais restrita, mais direcionada por uma determinada temática.” Assim focamos a experiência

dos conflitos – agrários sociais e religiosos - experimentados por cada entrevistado.

15

2. “OS PRETO SOMO NÓS”: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE QUILOMBOLA

A comunidade Boa Vista fica localizada numa área a 4 km do centro da cidade de

Rosário-MA. De acordo com informações colhidas no Dicionário Histórico e Geográfico da

Província do Maranhão, aquele lugar recebeu o nome de Itapecuru Grande, após a construção

do Forte Vera Cruz (ou do Calvário) em 1620, pelo capitão-mor Bento Maciel Parente, tendo

a função “de repelir os ataques de gentios (índios) que embaraçava as plantações” 2, na

Ribeira do Itapecuru.

Em 1802, o cabido3 representado pelo Arcedíago Antônio Coelho Zuzarte e o Mestre-

Escola João de Bastos e Oliveira, dirigiram-se à Câmara da capital solicitando o

desmembramento da freguesia de Rosário, pois esta fazia parte do distrito de Itapecuru. A

extensão de toda a freguesia de Rosário compreendia 196 fazendas, 226 sítios, 333

agricultores, 27 negociantes, 52 artistas, além de indivíduos brancos e forros de um e outro

sexo, tinha 10. 179 escravos, com ao todo 12. 174 almas. Após a divisão couberam à

freguesia de Rosário 9 léguas de terreno com 157 fazendas e 6. 725 almas. Em 1866, a

população de Rosário era de 16. 126 pessoas, distribuídas da seguinte forma: 12. 610 livres e

3. 516 escravos. 4

A região que hoje é chamada de Baixada maranhense é marcada pela baixa densidade

populacional, fora utilizada para a instalação de muitos engenhos de açúcar, requisitando para

isso a exploração de extensas faixas de terras para o cultivo da cana. A desagregação da

grande propriedade, trouxe a oportunidade para grupos de homens livres pobres e escravos

libertos de obterem, a partir da negociação com o latifundiário, pequenos lotes desta área para

o cultivo de gêneros alimentícios que ajudavam na subsistência e abasteciam o comércio

local.

Com o fim do regime escravista, muitas famílias de grandes fazendeiros acabaram

endividadas tendo que recorrer ao arrendamento de parte de suas terras e à venda de seus

cativos para garantir a própria subsistência. De acordo com as informações encontradas no

processo de demarcação das terras encaminhado pelo líder da comunidade Boa Vista em

2002, ao Incra-MA, havia uma família de sobrenome Baima que possuía uma fazenda de

2 Cf. MARQUES, César Augusto. Dicionário Historiográfico-Geográfico da Província do Maranhão. Rio de Janeiro. Fon-Fon e Seleta, 1970. p, 284 3 Corporação dos cônegos de uma catedral. 4 Id., ibid., 1970, p. 286

16

algodão com o nome de Boa Vista naquelas terras próximas ao Forte do Calvário dentro do

povoado chamado Cachoeira. Antes de deixarem a região, os Baima teriam doado parte de

suas terras aos poucos escravos que ainda trabalhavam na fazenda, após a Abolição, sem ter

registrado esta ação em cartório. Os novos moradores passaram então a chamar aquelas terras

de Boa Vista dos Pretos e a desenvolver a agricultura familiar, ou roça, como forma de

subsistência.

Foto 1: Família de posseiros que vieram de outras regiões para Boa Vista.

Fonte: NUNES, Marcelo Silva. Outubro, 2005.

Os poucos remanescentes dos escravos libertos que vivem atualmente na área, contam

que a família Baima, de origem francesa, era muito boa para com os empregados e escravos.

Esses moradores também destacam as inúmeras festas ocorridas na comunidade onde se

dançava o Pelá: “havia naquela época muitos pretos de excelentes vozes que faziam a cantoria

ser ouvida até em Rosário” 5.

Sobre a recente situação da comunidade, são apresentadas algumas informações pelo

líder comunitário, que atende pela alcunha de Caipira, em um dos anexos do processo

encaminhado ao Incra:

Esta área até pouco tempo era conhecida como Boa Vista dos Pretos. Hoje

em sua totalidade é ocupada por grileiro, donos de cerâmicas, imigrantes

5 Algumas informações acerca da história da comunidade de Boa Vista foram obtidas por meio de relatórios produzidos após as visitas realizadas pelo arqueólogo Deusdédit Carneiro Leite Filho à região, nos anos de 1990 e 2007.

17

dos estados do Ceará, Pernambuco e da Paraíba, que além de explorar mão

de obra, expulsaram os antigos moradores da área, levantando cerca e

proibindo os pequenos agricultores de cultivarem a sua subsistência, ou

agricultura familiar. (Histórico de Boa de Vista feito pelos membros da

Associação de Moradores, out. 2005)

Esse relato apresenta importantes características para compreensão da comunidade

Boa Vista. Primeiro, são apontados os “invasores”- donos de cerâmicas - que, na versão dos

moradores, intitularam-se donos daquelas terras mediante a apresentação do documento de

compra registrado no cartório da cidade e, autenticado no ITERMA, em São Luís; isso teria

dado origem aos conflitos na região, durante os anos 1980. Em segundo lugar, faz-se

referência ao tempo de ocupação da terra, ao citar os “antigos moradores da área”, denotando

a presença de dois momentos de ocupação da área: primeiro, os antigos moradores –

remanescentes das famílias de escravos libertos; e em seguida, os mais recentes – que vieram

de outras localidades, a partir da segunda metade do século XIX. Em terceiro lugar é citada

como forma de garantir a subsistência dos moradores, a agricultura familiar. De posse dessas

informações, foi possível elaborar esta pesquisa que traz nesta primeira parte alguns

comentários acerca da história das comunidades quilombolas, assim como o processo de

construção desta identidade por um grupo de moradores da comunidade Boa Vista, a partir de

2003.

Para iniciar esta discussão, sabe-se a princípio que no decorrer dos séculos, as

comunidades que surgiram a partir dos antigos quilombos passaram por uma série de

transformações, sobretudo, na maneira em que o grupo se percebia, ou seja, a identidade que

fora construída ao longo do tempo. Como conseqüência, a partir da década de 1970,

historiadores e antropólogos realizaram uma discussão à procura de uma terminologia que

superasse a versão cristalizada no século XIX acerca dos remanescentes de quilombo, a fim

de incorporar as mudanças ocorridas no interior dessas comunidades.

2. 1 Identidade e quilombo em discussão

Compreendendo-se a construção da identidade quilombola pelo grupo de moradores

que organizaram a resistência em Boa Vista, por meio da Associação de Pequenos

18

Agricultores Rurais, como parte do processo de luta pela terra, foi necessário encontrar uma

definição acerca do termo identidade que pudesse dar conta da situação em questão.

Por causa de sua polissemia, este vocábulo tem sido discutido e definido sob vários

enfoques científicos, possibilitando a sua aplicação nos mais diversos contextos. É

interessante observar que na atual conjuntura mundial, têm-se discutido os efeitos da

globalização e mundialização da economia, aonde as chamadas identidades nacionais vêm

perdendo espaço para as transformações culturais provocadas pela aproximação das culturas

através dos meios de comunicação e formação de grandes blocos econômicos: como é o caso

da internet e da União Européia. Nesse contexto levanta-se uma questão: como definir

políticas públicas para as minorias étnicas num mundo em constante resignificação

identidária? Em cima dessa problemática procurou-se uma definição para o termo identidade

que apontasse alguns fatores que levam à sua construção pela ditas minorias étnicas. Por isso,

tomou-se emprestado a interpretação de Brandão (1986, p. 42), que compreende a identidade

como o produto do contraste e da diferença, assim:

as identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto

com o outro; a poder ou não construir por conta própria o seu mundo de

símbolos e, no seu interior, aqueles que qualificam e identificam a pessoa, o

grupo, a minoria, a raça, o povo. Identidades são, mais do que isto, não

apenas o produto inevitável da oposição por contraste, mas o próprio

reconhecimento social da diferença.

Brandão apresenta dois elementos essenciais para a elaboração da identidade: o

confronto com o outro e o reconhecimento social da diferença. Quanto ao primeiro, observou-

se na análise dos conflitos fundiários ocorridos na comunidade Boa Vista que o grupo que

empreende a resistência aos invasores não é homogêneo na sua composição social; logo, na

luta pela defesa das terras ocupadas, os segmentos sociais (indivíduo, família, grupos

religiosos, entre outros) passam a compartilhar dos mesmos interesses numa situação

conflituosa, sem abrir mão dos traços que lhes são característicos. Para ficar mais claro, o

historiador britânico E. P. Thompson explica que “é no processo de lutas sociais que se forja

a identidade social” 6, ou seja, num contexto envolvendo as disputas de interesses entre

grupos antagônicos, aquele que está na condição de explorado, ou submetido, tem em si 6 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, 1987, p. 10.

19

mesmo gerado um sentimento de pertença como resultado de experiências comuns (herdadas

ou partilhadas) entre os membros desse grupo.

O segundo elemento enfatiza as relações estabelecidas entre o grupo que reivindica a

identidade, com os outros grupos dentro e fora do espaço social. Neste caso o grupo

mobilizado luta para que a identidade étnica que foi elaborada seja reconhecida pelos demais

grupos que residem na comunidade e na sociedade em geral. A base para a organização desta

coletividade será o discurso feito pelas lideranças do lugar que tentam promover a

disseminação da auto-afirmação étnica como meio de fortalecer os laços que mantém a

coletividade viva diante das pressões e ameaças dos grileiros. Para isso, entram nesse trabalho

de conscientização e mobilização dos moradores na luta pela defesa da terra ocupada,

organizações não-governamentais, partidos políticos e movimentos sociais que apresentam a

comunidade os instrumentos legais para se chegar à posse efetiva da terra.

Assim, outros casos de luta pela terra envolvendo essas populações deram às lutas

camponesas no Brasil um caráter étnico à medida que isso aceleraria o processo de

regularização fundiária desta parcela da sociedade. A criação de leis e decretos para amenizar

o problema dos conflitos agrários, trouxe não só mudanças na terminologia aplicada aos

sujeitos do direito – os remanescentes das comunidades quilombolas -, como também nos

critérios usados para definir a identidade destes grupos.

O artigo 68 dos ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias), da

Constituição de 1988, que garante: “aos remanescentes das comunidades de quilombo que

estejam ocupando suas terras é reconhecida à propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-

lhes os títulos respectivos”, é fruto das pressões políticas promovidas pelos movimentos

sociais no final da década de 1980, quando se comemorava o centenário da abolição. A

Câmara dos Deputados, pressionada pelos movimentos sociais e temerosa da acusação de

racismo, fez com o artigo fosse aprovado, sem maiores debates.

O texto da referida lei não definia com precisão quem seria beneficiado, logo várias

interpretações foram sendo feitas pelo corpo da Câmara, acarretando em problemas quanto à

aplicação do referido artigo. A solução foi investir na criação de órgãos de alcance nacional

que pudessem realizar pesquisas acerca dos quilombos e remanescentes quilombolas.

Ainda que nunca tenha tido a força e disseminação que passa a ter depois dos anos 70,

o quilombo sempre foi um tema que instigou o imaginário político. A sua primeira definição

se dá no corpo das legislações colonial e imperial, de uma forma explicitamente indefinida,

20

que buscava abarcar sob um mesmo instrumento repressivo, o maior número de situações,

bastando para a sua caracterização, a reunião de cinco (colonial) ou três (imperial) escravos

fugidos, formassem eles ranchos permanentes (colonial) ou não (imperial). 7 A concepção de

uma coletividade isolada, autônoma, vivendo da agricultura de subsistência e do roubo, que

existira somente até a final do século XIX, induz grupos políticos e juristas a declararem a

inexistência de comunidades com tal modo de vida, no contexto atual.

Foi o caso da comunidade do Rio das Rãs, onde as argumentações levantadas pelos

grileiros e empresários interessados em obter a posse da terra para a realização dos seus

empreendimentos econômicos, ainda sustentam a idéia dos quilombolas viverem em locais

isolados, distantes da “civilização”, e que, portanto, não poderiam perpetuar-se até os dias de

hoje. Em carta dirigida ao Ministro da Justiça, em 1º de abril de 1993, o ex-deputado

Élquisson Soares, advogado de Carlos Newton Vasconcelos Bonfim, fazendeiro que desde

1981 alega ter comprado a Fazenda Rio das Rãs, afirma que “tomando o termo ‘quilombo’ na

sua acepção histórica e semântica: quilombo - núcleo de escravos fugidos; esconderijo de

escravos no mato; habitação clandestina onde se acoitavam os negros fugitivos, Rio das Rãs

não pode ser considerada quilombo.” Em outra peça de defesa do mesmo fazendeiro, os

advogados, dirigindo-se à Justiça Federal, citam o jurista José Cretella Júnior que diz,

textualmente:

Esta última regra [Art. 68] é utópica. Quando caíram os quilombos, os

lugares foram queimados e arrasados, presos os homiziados, e reconduzidos

às senzalas de onde haviam fugido, situados a léguas de distância dos

centros de maior concentração, as cidades. Não houve continuidade de

ocupação das terras. (CRETELLA, Apud. SILVA, 2000, p, 18).

A construção de uma imagem do quilombo como núcleo de escravos fugidos, foi

construída pela historiografia brasileira por meio da reprodução de informações adquiridas na

documentação oficial, nos tempos da colonização e da monarquia. Veja então, algumas

formas como os quilombos foram interpretados ao longo do processo histórico, para em

seguida compreender como ocorreu a ressemantização deste termo, pelos cientistas sociais,

movimentos a favor da causa negra e autoridades do poder público.

7 Cf. ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. “Quilombos: sematologia face a novas identidades”. Em Frechal – terra de preto, quilombo reconhecido como reserva extrativista. São Luís: SMDDH/CCN – PVN, 1996

21

Esta discussão acerca da historiografia dos quilombos no Brasil tem duas

problemáticas: a relação do escravo liberto com a terra; e a sua afinidade com os demais

membros do grupo, observando as práticas, representações e a organização da coletividade.

Segundo o Conselho Ultramarino, em 2 de dezembro de 1740, quilombo é definido

como: “Toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda

que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões nele.” Este tipo de descrição

perpetuou-se pela historiografia oficial, destacando alguns elementos que foram analisados

por Almeida (2006) da seguinte forma: 1. fuga; 2. uma quantidade mínima de fugidos; 3. o

isolamento geográfico em locais de difícil acesso e mais próximos de uma “natureza

selvagem” que da chamada civilização; 4. moradia habitual, referida no termo rancho; 5.

autoconsumo e capacidade de reprodução simbolizada na imagem do pilão de arroz. Os

aspectos em destaque são os que mais se repetem nas interpretações acerca dos quilombos.

Em geral existiu, paralelamente à formação do aparato de perseguição aos fugitivos, uma rede

de informações que ía desde as senzalas até muitos comerciantes locais. Estes últimos tinham

grandes interesses na manutenção desses grupos porque lucravam com as trocas de produtos

agrícolas por mercadorias que não eram produzidos no interior do quilombo.

A estabilidade da produção agrícola aparece nas legislações e documentações oficiais

como o principal recurso para a sobrevivência dos quilombos. Veja algumas destas

considerações.

Em 21 de fevereiro de 1765, dom Luís Diogo da Silva, governador de Minas Gerais,

recorreu ao Regimento de 1722, determinando que, “para se constituir ou se reputarem negros

quilombolas, seja preciso, não só acharem-se em rancho para cima de 4, mas ver neles pilões

e modos que indiquem conservarem-se no mesmo rancho” 8. Logo o despacho de 1765

impunha, portanto, para o reconhecimento da existência de um quilombo, a necessidade de

fixação geográfica dos quilombolas – ranchos – e exigia a presença de pilão, ou seja,

elemento que comprova a estabilidade produtiva dos quilombolas. O pilão era um instrumento

que servia, entre outras funções, para transformar o arroz colhido em alimento. Este elemento

representou no contexto da época, o símbolo do autoconsumo e da capacidade de reprodução,

contribuiu também para explicar tanto as daquele grupo com os comerciantes atuantes nos

mercados rurais quanto sua contradição com a grande plantação monocultura.

8 Cód. 59 SCAPM. Apud: FIABANI. Alberto. Mato, Palhoça e Pilão: o quilombo da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004). São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 270

22

Ainda em 1757, os oficiais da Câmara de São Salvador dos Campos dos Goitacás, situado

no Norte do atuais Estado do Rio de Janeiro, entendiam por quilombo os trabalhadores

cativos que “estivessem arranchados e fortificados com ânimo a defender-se [para] que não

sejam apanhados”. Os ranchos eram aqueles em que ficam “por se repararem do tempo”.

Estipula-se também que se achado “de 6 escravos para cima que estejam juntos, se entenderá

também [por] quilombo” (FIABANI, 2005, p, 271). Nesse caso, além de anotar a estabilidade

(arranchamento), a definição enfatiza fortemente o aspecto militar do quilombo – “fortificado

com ânimo a defender-se”. Registrando, como veremos características dos quilombos não

apenas dessa região e época. Por outro lado, o elemento qualitativo – reunião de “6 escravos

[fugidos] para cima” definia um quilombo, por sobre o caráter qualitativo da reunião.

Por sua vez, o artigo 12, da Lei nº. 236, votada em 20 de agosto de 1847, pela Assembléia

Provincial do Maranhão, defina por quilombo ao “escravo aquilombado, logo que esteja no

interior dos matos, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião de 2 ou mais

com casa ou rancho” (PVN, 2003. p. 31). A definição maranhense de quilombo desqualifica a

distância de localização e reduz ao mínimo – 2 – o número de cativos fugidos. Portanto, dois

trabalhadores escravizados, vagando pelas florestas maranhenses, a poucos metros de uma

fazenda, poderiam ser apreendidos como quilombolas.

Veja que a documentação citada antecede o ano de 1850, quando ocorre a promulgação da

Lei de Terras no Brasil, alterando as formas de adquirir os lotes de terras. Este fato colocaria

em choque as concepções do camponês e do Estado acerca da propriedade, pois para o

primeiro, a legitimidade da posse da terra estava baseada no trabalho; já para o segundo, esta

era garantida a partir da compra. Até então os grupos de escravos alforriados e os que fugiam

das fazendas para os quilombos, tinham como modelo de organização econômica a agricultura

familiar com a geração de excedentes, descrita por Mário Maestri como:

doméstica de subsistência baseada na força de trabalho autolibertada do

escravismo e na existência de terras devolutas, o caráter livre da produção e

na necessidade de relações com a formação escravista para elevar a

produtividade do trabalho social foram, a nosso entender, as determinações

fundamentais dos quilombolas agrícolas. (MAESTRI, Apud: FIABANI,

2005, p. 160).

23

Neste momento tem-se a transição de boa parte do contingente de trabalhadores

escravos para o campesinato livre. De acordo com Andrade (1989, p, 16), este termo

“compreende apenas aqueles que não foram ainda expropriados dos meios de produção.” Esse

conceito coloca o uso e a ocupação da terra e dos demais recursos naturais disponibilizados no

território como a base para a organização da produção econômica e das relações sociais

estabelecidas pela coletividade. Sabe-se que a livre produção agrícola pelo trabalhador

escravizado inicia-se quando este ainda tem sua vontade submetida à do seu senhor. Este

último para não perder a mão de obra escrava, negociava um pequeno lote de terra cujo

ocupante o usaria para formar roçado próprio, de modo a suplementar a ração deficiente. De

acordo com Queiroz (1993, p. 14), “nas regiões canavieiras da Bahia muitos senhores

permitiam ao negro escravizado trabalhar por conta própria aos domingos e dias santos,

simplesmente para prover a própria subsistência”.

Sobre a comercialização dos excedentes agrícolas, os quilombolas já vinham

mantendo relações “ora conflituosas, ora amistosas, com diferentes membros da sociedade

envolvente” 9, como é o caso de alguns comerciantes que habitavam próximos aos

quilombos; junto com estes outros sujeitos sociais - escravos libertos, livres pobres e alguns

senhores de engenho – possibilitavam aos quilombolas a obtenção de algumas vantagens nas

trocas comerciais, além de uma ampla rede de contatos que permitiam a defesa do território

contra as incursões oficiais.

Ter uma base econômica que permitia a sobrevivência de um grande grupo significou,

desde o seu início, uma organização sociopolítica com posições e estrutura de poder bem

definidas, até porque “o inimigo externo”, caracterizado pelas invasões freqüentes, vinha

impondo, ao longo da história, a necessidade de uma defesa competente da área ocupada. A

complexa rede de relações que passaram a ser estabelecidas entre os quilombolas e os homens

livres, foi denominada por Flávio Gomes como campo negro. Uma rede que podia envolver,

em determinadas regiões escravistas brasileiras, inúmeros movimentos sociais e práticas

sócio-econômicas em torno de interesses diversos. “O campo negro, construído lentamente,

acabou por se tornar palco de lutas e solidariedade entre os diversos personagens que

vivenciaram os mundos da escravidão” 10.

A importância em destacar o envolvimento dos quilombolas com os demais sujeitos

sociais, é de poder rever a idéia de que essas comunidades estariam isoladas no meio do mato, 9 REIS, João José. GOMES, Flávio. Liberdade por um fio. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 332 10 Op. cit. p. 282

24

longe dos grandes centros, e a salvo das investidas das tropas governamentais. Pesquisas

recentes como a de Gomes (2000), ao mesmo tempo em que ajuda a romper com o mito do

isolamento, traz uma outra questão: as relações estabelecidas com outros grupos sociais,

permitindo a entrada de alguns destes elementos no quilombo, afetara de alguma forma a

manutenção da identidade étnica? Até então, o quilombo teria abrigado outros elementos

além de africanos e afro-descendentes e que a presença de elementos livres nos quilombos

não basta para descaracterizá-los, ela é suficiente para mostrá-los enquanto um abrigo para

outros elementos marginalizados e perseguidos no âmbito da sociedade escravista.

Com a transformação processual da mão-de-obra escrava em trabalhadores livres,

estes sujeitos procuraram se estabelecer em um lugar onde pudessem garantir a sobrevivência

de suas famílias. Aqueles que não conseguiam manter a estabilidade da posse da terra, após a

década de 1950 – quando ocorre a criação das Ligas Camponesas no Brasil -, a historiografia

brasileira convencionou chamá-los de posseiros. Termo que na visão de Luna (1984) pode ser

explicado como:

o lavrador que trabalha na terra sem possuir nenhum título legal, nenhum

documento reconhecido legalmente e registrado em cartório que o define

como proprietário, é classificado como ocupante da terra, nos censos

oficiais, ou como posseiros, na linguagem comum. (...) O posseiro é

lavrador pobre, que vende no mercado os excedentes agrícolas do trabalho

familiar, depois de ter reservado uma parte da sua produção para o sustento

da sua família. (LUNA, 1984, p. 13-14)

De acordo com a Lei de Terras (1850), a concessão de sesmaria – grandes lotes de

terra - tinha precedência legal sobre direitos de posseiros; isso significou a constituição de um

grande número de “agregados” que perderam a posse de suas propriedades agrícolas, em

virtude destas terem sido vendidas como sesmaria. Caso o novo proprietário concordasse com

a permanência destes trabalhadores rurais, estes estariam submetidos ao regime de “troca de

favores”, que, de acordo com Martins, as relações estabelecidas entre senhor e agregado:

ultrapassam o trabalho e as relações de trabalho, já que a concepção de

favor, como prestação pessoal, mas recíproca, envolve não apenas a

produção material, mas a própria lealdade das partes. (..) Envolvia, por isso,

25

desde as relações materiais, a concessão de terras em troca de parte dos

gêneros alimentícios produzidos, até a recíproca lealdade, até a trama

religiosa e do compadrio, pelo qual o agregado colocava seu filho sob tutela

e proteção do fazendeiro-padrinho, tecendo uma teia de relações sagradas

de prestação e lealdade recíprocas. Podemos ver então que o campesinato

era multifacetado, pois os grupos sociais que usufruíam da terra, o faziam

de várias formas. (MARTINS, 1981, p. 36-37)

Vemos, pois, que a maior parte dos trabalhadores que tiveram acesso às terras,

conseguiram mediante algum tipo de acordo estabelecido com um grande proprietário. A

concepção de posse da terra defendida pelo posseiro tem como substrato uma terra que se

define e se constitui a partir da morada e cultivo. A morada (casa-domicílio-família) é a base

da organização do trabalho e da produção, e efetiva através dela, o direito à terra.

Nesse sentido, a terra de cultivo e morada se opõe às relações de mercado enquanto

estrutura básica, oferecendo resistência à lógica capitalista da acumulação. Tal aspecto não

significa que, enquanto unidade de produção/consumo, esteja alheia às trocas mercantis, mas

que as desenvolve a partir das necessidades e perspectivas do grupo doméstico.

Mediante essa negação do valor de mercado, mostra a existência de uma racionalidade

que se estabelece a partir de uma sociabilidade, de um direito, de uma moral, que negam

princípios capitalistas de produtividade e de rentabilidade que valorizam o capital. Ao

contrário, o cálculo econômico no sentido de um empreendimento familiar busca a

valorização do trabalho como categoria estrutural das relações de produção.

Decorrentes disso, os termos que definem uma agricultura camponesa precisam ser

discutidos não a partir de uma economia de mercado, como normalmente é feito, mas

buscando-se sua definição a partir de características específicas no interior dessas unidades,

algo que se situa mais na esfera da autonomia da produção do que na dependência da

circulação. De acordo com Oliveira (2001, p. 4), as concepções acerca do trabalho e posse da

terra caracterizam o direito costumeiro, cujas práticas sociais permitiram a apropriação de

matas, águas e terras, mostrando uma legitimidade que é expressa numa jurisprudência

camponesa, na qual podemos identificar dois eixos sempre presentes que orientam tais

práticas: os laços de descendência e os laços de territorialidade, constituindo-se sob a forma

de terras de uso comum.

Segundo Almeida (1996, p, 183), as terras de uso comum seriam caracterizadas como:

26

situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido livre e

individualmente por um determinado grupo doméstico de pequenos

produtores diretos ou por um dos seus membros. Tal controle se dá através

de normas específicas instituídas para além do código legal vigente e

acatadas, de maneira consensual, [pelos] vários grupos familiares, que

compõem uma unidade social. Nesses casos, são “os laços solidários e de

ajuda mútua [que] informam um conjunto de regras firmadas sobre uma

base física considerada comum, essencial e inalienável”.

Essa territorialidade, marcada pelo uso comum, é submetida a uma série de variações

locais que ganham denominações específicas, segundo as diferentes formas de auto-

representação e auto-nominação dos segmentos camponeses, tais como Terras de Santo,

Terras de Índios, Terras de Parentes, Terras de Irmandade, Terras de Herança e, finalmente,

Terras de Preto, esta última categoria, segundo o mesmo autor “compreende aqueles domínios

doados, entregues, ocupados ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, às famílias de

ex-escravos a partir da desagregação de grandes propriedades monocultoras”.

Assim o campesinato emergente durante o regime escravocrata no Brasil assumiu

"múltiplas faces", ou melhor, "múltiplas identidades", pois como disse Martins (1981) os

grupos sociais que usufruíam da terra o faziam de várias formas, o que também determinava a

organização social da comunidade. Observa-se então que na transição da condição de escravo

para a de camponês livre, a posse da terra é a base para a sustentação deste indivíduo, com

uma ressalva: segundo Schmitt (2006, p.14), "o trabalho livre sobre a terra não garantiu, de

forma alguma o acesso dos ex-cativos a ela no momento posterior a abolição”. Dessa forma,

inúmeros conflitos ocorreram pelo Brasil tornado-se mais intensos ao longo do século XX,

principalmente por causa dos impactos causados pelos grandes projetos empreendidos pelos

governos, como a construção de hidrelétricas e mineradoras; além disso, o avanço da fronteira

agrícola e a extração de madeira foram outros fatores que ameaçavam a estabilidade da

ocupação da terra pelas populações rurais.

A luta pela posse da terra no Brasil levou os camponeses, a partir da década de 1950 a

organizarem-se em pequenos grupos que mais tarde seriam movimentos sociais de amplas

dimensões nas regiões mais violentas. È o caso das Ligas Camponesas no Nordestes, em

27

especial no Maranhão e no Pará; e do Movimento Negro, principalmente na Bahia. Visando a

manutenção da posse da terra calcada na noção de direito costumeiro, os camponeses exigiam

a proteção contra a invasão das chamadas terras devolutas por empresários e grileiros,

iniciando uma luta pela Reforma Agrária que chega até nossos dias sem ter alcançado

resultados expressivos, mas acumulado diversas mortes de trabalhadores rurais envolvidos em

conflitos fundiários.

Com a aprovação do artigo 68, os grupos de remanescentes quilombolas deram início

a um resgate de sua identidade étnica construída com base na ancestralidade e no tempo de

ocupação do território, bem como as práticas e representações simbólicas tradicionalmente

implementadas pela comunidade. Nesse momento, uma avalanche de processos pedindo a

regularização e titulações das terras causaram diversas polêmicas em torno do conceito de

quilombo entre políticos, juristas, representantes dos movimentos sociais e cientistas sociais,

criando-se a necessidade de redefini-lo ou dar-lhe um novo sentido.

O exemplo da comunidade Boa Vista, não é atípico. As transformações que ocorreram

desde a chegada de alguns empresários do setor extrativista à região, alteraram sobremaneira

o modo de vida local, principalmente no que se refere às representações da identidade dos

moradores. Tudo isso se refletiu numa nova reconfiguração da comunidade, gerando

condições para a construção não só de uma, mas de múltiplas identidades. A partir daí, os

conflitos travados dentro da área não envolverá apenas dois grupos homogêneos, mas também

outros grupos sociais que lutam tanto pelos seus espaços territoriais, quanto pela afirmação

dos referenciais identitários.

2.2 Comunidade Boa Vista: elementos de uma identidade

A população da comunidade de Boa Vista, conta hoje com pequenos agricultores de

origens regionais distintas, mas que compartilham do mesmo espaço. A principal

característica do lugar é o conflito com os donos de uma pedreira e alguns ceramistas que

entraram na região, nos anos 1980, mediante a compra de lotes das terras devolutas e, os mais

recentes, fizeram uso da “grilagem”. Este termo é sinônimo da ação de empresários e grandes

latifundiários que fazem uso da violência e falsificação de documentos para expropriar

agricultores de terras devolutas.

28

Nos primeiros anos em que a Pedreira Anhanguera S. A. se fixou nas terras próximas

ao Forte do Calvário, o contato com as mais de vinte famílias que viviam na área, fora

pacífico. Nesse tempo que a “terra era liberta”, os moradores organizavam sua produção em

torno da agricultura familiar, com a divisão da terra em roças, sendo a quantidade de linhas

cedida de acordo com o tamanho da família. Durante esse tempo, conviviam dois grupos de

pessoas: os que tinham laços de parentesco com as famílias de escravos libertos que

receberam aquelas terras por doação; e outros que vieram de várias regiões do Estado.

Os últimos remanescentes dos escravos descendiam de duas famílias: a do seu Geraldo

Nunes e a de Diomedes; O outro grupo composto por migrantes, era em maioria ligado ao Sr.

Sebastião Alves da Silva, autor do seguinte relato:

Moro aqui há 40 anos, aqui está um sofrimento para os moradores: aqui era

a fazenda dos brancos; do garapé de São Brás até a cachoeira tem agora 9

cerâmicas. Essa terra está no brasão que é do Estado. Só têm duas cerâmicas

registradas, e as crianças e os trabalhadores tirando tijolo quente do forno.

Essa firma Anhanguera (Redimix) botaram todo mundo pra cá sem direito a

nada; entraram em 1982, tirando pedra para o Porto do Itaqui, lá no garapé

do Fama onde eu morava. Todas as duas, a pedreira e as cerâmicas, elas não

têm terra da Boa Vista. O Forte está por fora da área, tinha o paredão da

Fazenda Boa Vista, tinha igreja e sino, meteram máquina levaram o sino, se

procurar ainda tem resto dos alicerces. 11

O relato de seu Sebastião traz informações a respeito dos primeiros contatos com os

extrativistas, sobretudo das implicações da presença destes para a comunidade. Após quatro

anos de convivência, os moradores foram deslocados das terras do garapé do Fama, para uma

área a 4 km do centro de Rosário. Nesse tempo, os donos da Pedreira construíram uma escola

de ensino básico para as crianças da comunidade e também para os adultos. Segundo os

moradores, quando saiu a decisão da justiça concedendo aquelas terras para os empresários, a

escola foi derrubada e muitas famílias foram expulsas da área, sendo a grande maioria

remanescente dos escravos libertos.

A partir desse momento as famílias de posseiros vão se organizar na nova área

mediante a demarcação da terra realizada pelos funcionários da Pedreira. Como alguns

11 Entrevista gravada durante a visita da equipe do DPH-MA à comunidade Boa Vista, em agosto de 2007.

29

moradores prestaram serviços para a empresa, esta se responsabilizou por indenizá-los

auxiliando na construção de suas novas casas. Durante os primeiros anos no novo local, as

famílias podiam contar com uma ampla área para o cultivo de gêneros agrícolas, dividida

conforme as regras estabelecidas e obedecidas de forma consensual pela comunidade.

Apesar disso, houve a diminuição da área explorada por esses moradores cujos relatos

apontam para um tempo de liberdade, quando a terra não tinha dono. Nesse tempo as famílias

poderiam cultivar suas roças em qualquer lugar, assim como retirar o babaçu para ser trocado

no comércio local por mercadorias. A palha para cobrir as casas, a madeira e outros recursos

naturais estavam limitados pelas cercas que definiam os limites da propriedade da Pedreira.

Ainda conforme os relatos destes moradores, a empresa nunca apresentou o

documento que mostra os reais limites das terras compradas. Isso os levou a acreditar que

toda a área pertencia à Anhanguera S.A., deixando a população sob a tensão de ser expulsa a

qualquer momento. Um outro efeito do deslocamento territorial dessas famílias vai ser a

organização dos grupos religiosos. De um lado, os praticantes de culto-afro que vão demarcar

dois terreiros para a realização de seus rituais, e de outro, os católicos que se dirigiam à Igreja

Matriz de Nossa Senhora do Rosário, para participarem dos festejos e missas.

Com o passar do tempo a Pedreira deu início a um processo de expansão, que pôs fim

a área de cultivo das famílias que havia se aglomerado em um núcleo de povoamento. Este

fator foi determinante para a saída de muitos remanescentes de escravos da comunidade,

deixando apenas as famílias de agricultores que chegaram ao final do século XX.

Durante os anos 1980, empresas extrativistas entraram ilegalmente na área para

explorar a argila usada na produção de tijolos e telhas. Dez anos depois, eram nove cerâmicas

atuando dentro da comunidade; houve uma grande oferta de empregos que atraiu pessoas de

Rosário e outras de município próximos, muitas delas resolveram se fixar na área obtendo um

lote de terra para a construção de suas casas. Nesse tempo, foram contratadas mulheres,

crianças e homens de todas as idades que exploraram violentamente as margens do rio

Itapecuru, devastando a vegetação e causando erosões absurdas no solo que antes era usado

para o cultivo de gêneros alimentícios.

No ano de 2002, grande parte da população de Boa Vista já era composta por

agricultores que haviam chegado à área há pelo menos 15 anos, e pelas famílias vinculadas ao

seu Sebastião, ocupante há 40 aos, agora o imigrante mais antigo da área. Os remanescentes

de escravos somavam apenas cinco famílias que viviam dispersas pela região.

30

Naquele mesmo ano, houvera uma série de atritos entre os ceramistas e os pequenos

agricultores, em virtude dos primeiros ampliarem as dimensões de suas propriedades sem o

consentimento ou qualquer acordo prévio com os moradores. De acordo com o relato de seu

Caipira, um dos ceramistas empregou cerca de 10 homens armados para vigiarem as cercas da

propriedade, em caso de invasão por algum morador. Discussões, ameaças e violências

praticadas pelos “vigias” das empresas, tornaram-se cada vez mais constantes em Boa Vista.

Quando um dos ceramistas, de naturalidade pernambucana, decidiu derrubar a Igreja

Evangélica edificada por um grupo de moradores pentecostais, houve resistência de alguns

deles que resolveram organizar uma comissão para discutir os problemas da comunidade,

principalmente os conflitos territoriais. No mês de junho (2002), a comissão formada contava

com representantes de praticamente 40 famílias que habitavam em Boa Vista naquela época.

Um detalhe interessante é o grande contingente de evangélicos membros da Igreja local que

saíram em defesa das terras onde a instituição fora construída.

Em 16 de junho de 2002, os moradores reunidos em assembléia fundaram a

Associação dos Pequenos Agricultores Rurais de Boa Vista. No primeiro ano de

funcionamento não houve relatos de conflitos com os ceramistas nem com a Pedreira,

caracterizando um período de relativa paz. Nesse tempo, o líder da Associação, seu Raimundo

(Caipira) foi em busca de contatos com o poder público local na tentativa de obter benefícios

e melhorias para as famílias de Boa Vista.

A partir de setembro de 2003, o contato estabelecido com uma ONG – organização

não-governamental – levou seu Caipira a tomar conhecimento acerca do artigo 68 da

Constituição de 1988, e a iniciar o processo de levantamento de informações sobre a história

da comunidade, bem como a identificação dos elementos que pudessem inseri-la na condição

de comunidade negra rural.

As histórias narradas pelos últimos remanescentes de escravos que vivem em Boa

Vista, auxiliaram na produção de um texto feito por seu Caipira que conta como a

comunidade se tornou terra de remanescentes de quilombo. Após uma série de visitas à

Aconeruq – Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, em São Luís – o líder

comunitário conseguiu que representantes desta ong realizassem palestras na Associação de

Boa Vista, conscientizando os associados sobre a importância da auto-afirmação étnica para o

fortalecimento do grupo na luta pela posse da terra.

31

A partir daí as lideranças começam a disseminar entre os moradores a concepção da

identidade quilombola existente entre todos aqueles que ocupam as terras de Boa Vista. A

história de que as terras haviam sido doadas para os escravos da fazenda Boa Vista, pela

família Baima, é repassada a cada morador e nas reuniões ocorridas na Casa de Oração e na

Associação, que desde aquela data recebeu o acréscimo de Quilombola.

O mais interessante nessa atitude foi perceber que o resultado da mobilização a favor

da construção de uma identidade étnica, expressou-se num aglomerado de sujeitos e grupos

sociais que apresentavam características culturais diversas. Pentecostais, católicos,

agricultores e remanescentes das famílias de ex-escravos, juntos em torno de um mesmo ideal,

garantir o direito a terra por meio de uma associação de interesses comuns, impressos na

unidade do grupo mobilizado, que defende o reconhecimento de uma identidade comum a

todos os membros.

Diante desse quadro elaborou-se a seguinte questão para esta pesquisa: quais os

critérios usados para a definição dos sujeitos de direito apontados no artigo 68? Como foi

dito, o termo remanescentes de comunidade quilombola passara por diversas interpretações,

pois a realidade dessas populações está longe do que imaginava o legislador, preso ainda a

uma visão cristalizada pela historiografia acerca dos quilombos.

O “artigo 68” não apenas reconheceu o direito que as “comunidades remanescentes de

quilombos” têm às terras que ocupam como criou tal categoria política e sociológica, por

meio da reunião de dois termos aparentemente evidentes – quilombos e remanescentes

quilombolas (ARRUTI, 2002; NUNES, 2007). Ou seja, mesmo se tratando de um novo

cenário de reconhecimento, certas demandas de caracterização dessas comunidades são feitas

ou traduzidas com base em estereótipos ou enquadramentos que pouco ou nada correspondem

às suas realidades. Nessa direção, faz sentido supor que, muito embora a expressão

"remanescentes das comunidades dos quilombos" tenha sido cunhada como categoria jurídica

geradora de direitos, esse reconhecimento não suprime a possibilidade de problematizá-la no

quadro das dificuldades decorrentes do próprio processo de sua interpretação.

Vale ressaltar que as pesquisas realizadas pelos técnicos dos órgãos federais nas

comunidades, para a formulação dos laudos antropológicos, deram cada vez mais impulso

para necessidade de ressemantização do sujeito citado na lei. Depois de algumas propostas

apresentadas pela Fundação Cultural Palmares, o Grupo de Trabalho sobre Comunidades

32

Negras Rurais da ABA – Associação Brasileira de Antropologia elaborou uma versão

“científica” para a definição dos remanescentes de quilombo.

Em meio a uma série de negativas (não se referem a resíduos, não são

isolados, não têm sempre origem em movimentos de rebeldia, não se

definem pelo número de membros, não fazem uma apropriação

individual da terra...) essa “ressemantização” definia os

remanescentes de quilombos como “grupos que desenvolveram

práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de

vida característicos num determinado lugar”, cuja identidade se

define por “uma referência histórica comum, construída a partir de

vivências e valores partilhados”. (ARRUTI, 2002, p. 19)

Nesse sentido, eles constituiriam “grupos étnicos”, isto é, “um tipo organizacional que

confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou

exclusão” segundo a definição de Fredrick Barth (1969), mas cuja territorialidade seria

substancialmente caracterizada pelo “uso comum”, pela “sazonalidade das atividades

agrícolas, extrativistas e outras” e por uma ocupação do espaço que teria “por base [os] laços

de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade”. (ABA,

1994)

Assim, parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida em que os

indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a grupos familiares que

se relacionam a lugares dentro de um território maior. Nesse espaço, a organização da

coletividade servirá de base para a construção das relações intra e intergrupais, cujo fim é a

identidade étnica. Assim, ao contrário da visão histórica que os legisladores do artigo 68

tinham dos remanescentes de quilombo, a definição elaborada pela ABA coloca essas

populações num patamar específico dentro do campesinato brasileiro. Nesse contexto o

conceito de grupo étnico de Frederick Barth (1969), ajuda a pensar as comunidades negras

rurais a partir dos próprios referenciais concebidos por seus membros, como a organização

interna para a defesa das terras ocupadas, a partir da retomada da identidade quilombola. Ou

seja, na passagem do racial ao étnico, os signos de distinção teriam seus sinais invertidos,

deixando de representar estigmas, para assumir um sentido de solidariedade e identificação.

33

Nesse sentido, um grupo racial tornar-se-ia um grupo étnico a partir do momento em que,

aceitando a distinção que lhe é imposta pela maioria, passa a utilizar-se politicamente dela na

formação de agrupamentos autônomos ou com interesses e reivindicações comuns.

Esse processo ocorre na Comunidade Boa Vista, também identificada por seus

moradores como "terras de preto", ou "território negro", que enfatiza a sua condição de

coletividades camponesa, definida pelo compartilhamento de um território e de uma

identidade. De acordo com Almeida (1989), após a Abolição, as comunidades rurais formadas

nos quilombos resolveram ocultar esta denominação, por causa do caráter nocivo que ainda

representava à sociedade. Dessa forma, as famílias que ocupavam esses territórios elaboraram

uma terminologia que mistificava a posse legítima do lugar, com base na ocupação e no uso

comum da terra; assim surgiram as terras de preto.

Essa denominação perpetuou-se entre os remanescentes das famílias quilombolas para

indicar que aquele território lhes pertencia desde o fim da escravidão, sendo hereditariamente

repassado de acordo com as normas do direito costumeiro. Assim, a ressemantização do

quilombo começa pelo seu avesso, como uma ressemantização daquela autodenominação

relativa às modalidades de uso comum, que passa a ser vista como narrativa mítica,

legitimadora da territorialidade (terras de preto) e do grupo que, de qualquer forma, foi criado

pelo sistema colonialista e escravocrata. Por isso, a elevação do rótulo quilombo, hoje, estaria

relacionada não ao que o grupo de fato foi no passado, mas à sua capacidade de mobilização

para negar um estigma e reivindicar cidadania.

O processo de ressemantização começa pela auto-atribuição feita pelos grupos

engajados no reconhecimento de suas identidades. Para isso, o papel desempenhado pelos

movimentos sociais, ongs, instituições religiosas e órgãos do governo federal é

conscientização das comunidades negras rurais acerca dos benefícios a que têm direito, de

acordo com o Artigo 68. No Maranhão, ongs com o Centro de Cultura Negra e Aconeruq

realizam trabalhos de mapeamento, ação e apoio no reconhecimento jurídico-formal das

comunidades remanescentes de quilombo.

Em Boa Vista, as visitas dos técnicos da Aconeruq, bem como as palestras realizadas

por seu Caipira, foram de suma importância para a auto-afirmação étnica dos moradores.

Observe a fala de dois moradores que participaram das reuniões e palestras realizadas na

Associação:

34

Eu sei que aqui é uma área histórica de remanescentes de quilombos, e foi

descoberto agora, depois que nós fundamos a Associação de Pequenos

Agricultores. Foi uma coisa que surgiu, assim que descobrimos que esta

terra tinha direitos. Depois de documentada a Associação, descobrimos que

essa terra é de quem mora nela. (Nilton de Assis Moreira, dirigente da

Igreja Evangélica local, entrevista, outubro,2002).

Nós temos histórias dos escravos, mas não tínhamos idéia de que a terra

podia ser nossa. Agora que o Caipira fundou a Associação, já trouxe o

papel, já leu, nós sabemos agora de quem é as terras, e quem doou para os

escravos. (Maria Bomtempo, agricultora, entrevista, 2002)

Nos dois relatos percebe-se o papel ativo do presidente da Associação na disseminação

– por meio do discurso – dos benefícios que podem ser adquiridos com a valorização da

etnicidade. Essa atitude, ao mesmo tempo em que buscava a unidade da comunidade, gerou

conflitos com alguns membros que não aceitavam serem chamados de quilombolas,

justamente por não terem qualquer laço de ancestralidade com estes grupos pelo estigma que

o termo trazia consigo. Dessa forma, foi necessário o uso de uma pedagogia interna de contato

pessoal com cada família, independente do credo religioso.

Por fim, as discussões acerca da ressemantização do termo remanescentes de

quilombos definiram como critérios a serem usados pelo Estado para o reconhecimento dessas

comunidades, a existência de uma identidade social e étnica por eles compartilhada, bem

como a antiguidade da ocupação de suas terras e, ainda, suas práticas de resistência na

manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar.

Essa análise foi ainda reforçada com a promulgação do Decreto n.º4. 887, de 20 de

novembro de 2003, que fortaleceu o ato de auto-afirmação étnica pelos sujeitos como o

principal elemento para o seu reconhecimento:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins

deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,

com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,

com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à

opressão histórica sofrida.

35

Com esta última definição pode-se chegar a algumas considerações acerca do processo

de luta pela terra na comunidade Boa Vista. Em primeiro lugar, as definições dadas ao termo

remanescentes de quilombo pelos pesquisadores da ABA, e recentemente pelo governo

federal como resultado dos estudos realizados pela Fundação Cultural Palmares, enfatizam o

tempo de ocupação da terra, expresso na elaboração de uma territorialidade específica – terras

de preto -, e a ancestralidade negra como traços de uma relação entre as comunidades negras

rurais e o passado histórico. Partindo desses critérios, buscou-se durante as visitas à

comunidade Boa Vista elementos que confirmassem a auto-atribuição de remanescentes feita

por alguns moradores. No entanto, após as primeiras entrevistas pode-se constatar que aquelas

famílias que viviam espremidas entre as cercas dos ceramistas e donos da Pedreira, não

possuíam qualquer vínculo com o passado histórico daquele lugar.

Os poucos remanescentes dos escravos libertos que receberam as terras das mãos da

família Baima, até o final desta pesquisa, não passavam de cinco famílias. Estes praticamente

não se envolveram de fato na luta contra os invasores, por causa das expropriações e

violências sofridas por outras pessoas. Além disso, a desestruturação do modo de vida da

comunidade baseado na agricultura familiar, em função da redução forçada da área de cultivo,

forçou os moradores a dependerem da extração ilegal de madeira do mangue, da pesca e dos

programas sociais do governo federal..

A construção de uma identidade quilombola idealizada no discurso de seu Caipira

encontrou muitos adeptos. Contudo, a falta de resultados expressivos e aumento das tensões

com os ceramistas, desencadearam uma série de conflitos internos, enfraquecendo a

Associação. Recentemente, no mês de setembro de 2007, uma equipe de antropólogos do

Incra realizou diversas entrevistas com os moradores mais antigos de Boa Vista, comparando-

as com as informações deste estudo ainda em curso, foi possível concluir que a comunidade

Boa Vista não apresenta elementos de uma identidade étnica, que possa caracterizá-la como

remanescente de quilombo.

A seguir, far-se-á uma discussão acerca dos conflitos internos ocorridos entre os

diferentes grupos que convivem na comunidade, os quais desenvolveram estratégias distintas

para defenderem as terras que ocupam e manterem vivas suas práticas culturais e religiosas.

36

3. A ORGANIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA

Neste capítulo discute-se a respeito dos elementos que fizeram parte do processo de

resistência organizado e conduzido pelos moradores de Boa Vista, por meio da Associação.

Destacou-se que a gênese social de um grupo – o de remanescentes de quilombo – acontecera

frente às disputas de terras que envolveram posseiros e extrativistas. A partir do artigo 68 das

ADCT, da Constituição de 1988 e do decreto 4.887/2003, os moradores de Boa Vista

formalizaram a unidade do grupo por meio do conceito de identidade quilombola visando os

benefícios assegurados pela lei, como a titulação das terras ocupadas pelos mesmos.

Para realizar esta análise, procurou-se ver de que a forma as lutas camponesas vieram

se aprimorando ao longo da história destes conflitos no Brasil. Viu-se que a partir dos anos

1950, as ligas camponesas e os sindicatos rurais se tornaram as principais formas de

organização e luta política desta parcela da sociedade. A adoção dessas práticas elevou os

números de conflitos pela posse da terra à medida que o Estado se mostrava irredutível à

concentração fundiária. “Exemplos de conflitos agrários que acabaram em massacres de

trabalhadores rurais foram os ocorridos em Eldorado dos Carajás (PA) e na região do Bico do

Papagaio (sudoeste do Maranhão)” (FERRAZ, 2000, p. 36).

Durante o período compreendido entre 1950 e 1975, houve um aumento significativo

no número de posseiros. Esses, sobretudo na década de 70, deslocaram-se das regiões

litorâneas do Nordeste e Sudeste para a região amazônica e o Centro-Oeste. Em decorrência

desse processo de migração, praticamente, em todos os Estados do país eclodiram conflitos e

lutas pela terra envolvendo camponeses, de um lado, e grandes empresários, grileiros e

latifundiários de outro lado. “No Maranhão ocorreram mais de 128 conflitos envolvendo em

alguns deles, mais de mil pessoas, em 1979” (MARTINS, 1986, p. 98). É nesse momento que

iniciam os primeiros confrontos entre povos indígenas e grupos econômicos, fazendeiros

interessados em desalojá-los de suas terras.

No Maranhão, pode-se citar como um dos grandes projetos implantados que trouxe

conseqüências desastrosas para as comunidades rurais, o caso da implantação do CLA –

Centro de Lançamento de Alcântara. Este provocou a desestruturação econômica de dezenas

de comunidades de remanescentes quilombolas em função da expansão da base. Os grandes

projetos implantados pelos governos federal e estadual causaram mudanças significativas nas

relações sociais no campo. Isso porque a grilagem foi se tornando a principal via de acesso

37

dos empresários a terra com o apoio ou a omissão do poder público, pois se utilizam da

violência para desapropriar os posseiros, ora determinando seus ranchos e suas plantações; ora

prendendo os que resistem em cárceres privados onde, em geral, são torturados; ora

eliminando-os fisicamente.

Segundo Regina Luna (1984, p. 46), a grilagem envolve um processo bastante

complexo de apossamento ilegítimo de terras e tem sido observada em várias situações, pois

“as terras são objetos de grilagem cartorial, falsificação de títulos e documentos em cartórios,

dificultando a reconstituição da cadeia dominial e permitindo a ação dos grileiros com maior

facilidade”.

Para enfrentar as expropriações, os posseiros passaram a se organizar em Associações

de Agricultores ou se filiarem a algum Sindicato de Trabalhadores Rurais na tentativa de

obter algum apoio jurídico. Com o passar dos anos foi havendo um crescimento de ações nos

tribunais da justiça comum e trabalhista movidas por lavradores, pelos movimentos sindicais

que resultaram em contratos coletivos de trabalho envolvendo diferentes frações do

campesinato brasileiro, tais como pequenos sitiantes, posseiros e parceiros. Estes são indícios

de um forte ímpeto na luta por uma autêntica cidadania que vem adquirindo substância,

sobretudo com a luta pela terra.

A micro-região da baixada maranhense, até o início da década de 1980 apresentava

uma razoável concentração fundiária onde 11,07% dos estabelecimentos estavam nas mãos de

proprietários, que representavam 84, 2% da área total ocupada. Com relação à pequena

produção, os posseiros possuíam 47, 7% dos estabelecimentos e 8, 74% da área total. À

primeira vista, este quadro tende a chamar a atenção porque a região da Baixada é uma área

de ocupação antiga do Maranhão, onde, portanto, o posseiro deveria ter uma participação

pequena. Ocorre que esta região, por ser alvo de periódicas enchentes e se ocupar de uma

pecuária extensiva, não havia experimentado, ainda, o processo de cercamentos definitivo das

propriedades, fato este que deu uma boa margem para conservação da categoria do posseiro.

A partir do final da década de 1980, uma série de transformações na estrutura

econômica do país influenciaria na organização do campesinato para defender as terras

devolutas. No período da chamada redemocratização do Brasil (1985), o debate em torno da

Reforma Agrária é retomado. Neste momento surge o MST – Movimento dos Sem Terra – e

vários sindicatos de trabalhadores rurais foram criados com o objetivo de forçar o governo a

desapropriar as terras consideradas improdutivas. Em contrapartida, os latifundiários

38

organizaram a UDR – União Democrática Ruralista – com um grande número de

representantes no Congresso Nacional e em governos estaduais. A atuação da bancada

ruralista tem impedido que a reforma agrária seja concretizada no Brasil, porque significaria

prejuízos para os membros da UDR.

Após a promulgação da Constituição de 1988, foi elaborado o 1º Plano Nacional de

Reforma Agrária que previa a desapropriação de 43.090 milhões de hectares de terra e o

assentamento de 1,4 milhões de famílias em cinco anos. Mas, no final do governo Sarney

(1989), apenas 10% das metas do plano haviam sido atingidas. O Programa da Terra lançado

no governo Collor, em 1992, previa o assentamento de 400 mil famílias de trabalhadores

rurais sem-terra até 1994. No entanto, o presidente do Incra, Oswaldo Russo, revelou, porém,

que Collor conseguiu assentar apenas 22.591 famílias. Assim, vários projetos de reforma na

estrutura fundiária foram colocados em pauta, mas sem obter os resultados esperados.12 Como

reação à inépcia do governo, a eclosão de conflitos agrários pelo país, levou o poder executivo

a acelerar o processo de desapropriação de terras improdutivas, sem, entretanto conseguir uma

solução definitiva para o problema.

3. 1 Roça, conflitos e resistência

Nesta seção se discute a respeito de mudanças ocorridas no modo de vida da

comunidade Boa Vista, bem como da gênese da organização da resistência tendo se como

referências as experiências relatadas pelos moradores envolvidos no conflito direto com os

extrativistas. Os relatos contemplam um período anterior ao definido para a pesquisa (1988), e

avançam até o momento em a resistência é desmobilizada no ano de 2004.

Como fora discutido, a identidade quilombola construída pelo grupo de moradores de

Boa Vista engajados na defesa do templo religioso e de suas “propriedades”, faz parte de uma

conjuntura que envolve várias identidades que se transformam conforme o contexto e sua

percepção pelos sujeitos envolvidos. A preocupação que se teve na crítica das fontes orais foi

de entender que as histórias relatadas são representações dos acontecimentos passados, que

trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às identidades e aspirações

12 Sobre a Reforma Agrária, Cf. MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da luta pela terra. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

39

atuais. Assim, se pode dizer que nossa identidade molda nossas reminiscências; que se

acredita ser no momento o que queremos ser a partir do que se julgou ter sido.

Partindo da noção de temporalidades - “uma relação entre múltiplos tempos presente

no ato de rememorar pelo sujeito” (DELGADO, 2005, p. 12) - compreende-se que o

entrevistado aponta acontecimentos que funcionam como referenciais temporais para marcar

uma época de sua vida. Um exemplo é o momento da chegada da Pedreira Anhanguera que

deu fim a um período em que a “terra não tinha dono”, aonde o era trabalho livre e usufruto

coletivo dos recursos naturais era garantido pelas regras do direito costumeiro. Depois que

houve a expulsão das famílias das terras do Calvário, o sentimento era de medo e apreensão

quanto à ocupação, expresso na seguinte fala: “Todo mundo é amedrontado, todo mundo tem

medo da Redimix” 13.

Foto 2: Olarias instaladas em Boa Vista. Fonte: NUNES, Marcelo Silva. Outubro, 2005

De acordo com os relatos, vivia-se melhor próximo ao Forte, pois cada família tinha

roça de onde tiravam o sustento, trabalhavam com a extração de babaçu, lenha e plantação de

banana que era comercializada com os barqueiros que atracavam em um pequeno porto que

ficava ao pé do Forte. Essa forma de organização da exploração da terra – a roça - é parte de

um tipo de produção agrícola baseada no trabalho familiar, isto é, “uma unidade econômica

que se circunscreve num território regido por normas consuetudinárias de trabalho e

13 Entrevista dada por seu Pedro Saraiva, agricultor, 53 anos. Outubro de 2005.

40

convivência social, reconhecidas e respeitadas pelos moradores da área e pelos vizinhos”

(PVN, 2002, p, 37).

As famílias que habitavam nas terras próximas ao Forte do Calvário tinham um modo

de vida baseado na coletividade camponesa reforçada pelos laços de parentesco e de

solidariedade. A ancestralidade da ocupação do território pelos remanescentes de ex-escravos

e as práticas culturais que denotavam a presença de religião afro, são os elementos que

marcam a fala dos moradores de Boa Vista e de comunidades adjacentes quando se referem

àquelas terras como terras de preto. A boa convivência com os agricultores que chegaram à

comunidade permitiu uma flexibilidade entre as manifestações religiosas: católica e afro.

De acordo com seu Geraldo, agricultor de 57 anos, sempre houve na Boa Vista muitas

festas aonde o povo participava do Tambor de Mina, Dança do Côco e Dança do Lelê. Nesse

tempo – antes do aumento das tensões com os extrativistas -, as pessoas eram mais unidas,

pois todo o mundo ajudava na preparação das festividades, na arrumação dos terreiros e da

capela de São Benedito, que hoje não existe mais.

Para os mais velhos moradores de Boa Vista, o tempo em que a terra não tinha dono,

sempre será citado para se remeter a um período de prosperidade na produção agrícola. Os

bons relacionamentos regulados pelo direito costumeiro, criavam as condições para a

realização das festividades em homenagem aos santos católicos e aos orixás. Dessa forma, a

vida no passado é vista como mais tranqüila, e o presente marcado por ações externas que lhes

obriga a lutar intensiva e arduamente pela sobrevivência.

Após a chegada da Pedreira Anhanguera o modo de vida dos boavistanos

desestruturou-se ainda mais, quando as primeiras olarias começaram a ser instaladas na área

para onde as famílias haviam sido remanejadas. Nos anos 1990, muitas famílias de

remanescentes foram expulsas por conta da grilagem, restando apenas alguns membros que

resistiam às ameaças de expropriação e violência. Uma importante mudança ocorrera nas

relações de solidariedade estabelecidas entre os posseiros. Com a saída de muitas famílias da

área e o beneficiamento de alguns moradores que tiveram suas terras demarcadas pela

Anhanguera, houve muitas discussões acerca da organização da ocupação das novas terras.

Sem acordo, os moradores começaram a cercar lotes de terras em tamanhos desproporcionais

causando divergências e insuflando uma atitude individualista quanto à propriedade da terra.

Dessa forma, a coletividade cedeu lugar ao individualismo aonde cada família seria

responsável pelo cultivo e a defesa de seu lote de terra. A reciprocidade que preservava o

41

modo de vida camponês, como os graus de confiança interpessoal se alteraram. Os mutirões

foram abandonados em vista da luta que para cada um se impõe no dia-a-dia.

De acordo com as entrevistas realizadas, no biênio 2005/2006, com os moradores do

povoado, quando chegaram os primeiros imigrantes vindos de Pernambuco, Ceará, Paraíba,

para a procura de terras devolutas para construir empresas extrativistas, a insegurança gerada

pela presença dos empresários e a incerteza sobre quem realmente era dono daquelas terras,

colocou as famílias numa posição ainda mais isoladas entre si. Segundo estes há mais de vinte

anos que os extrativistas vêm amedrontando a comunidade usando empregados armados para

proteger a área invadida por eles praticando todo tipo de violência.

O senhor Benedito Severino César (Benedito Pernambucano), dono de uma das nove

olarias que atuam em Boa Vista, Olaria Maranata, foi o primeiro a conseguir o título de

proprietário de uma parte das terras do povoado. Este empresário teria firmado acordo com

funcionários do cartório da cidade de Rosário e do Instituto de Terras do Maranhão

(ITERMA) para que obtivesse a garantia de que não havia ninguém residindo na área, a qual

foi comprada sob a forma de propina. O Pernambucano também se aproximara de uma

parcela dos ocupantes daquelas terras oferecendo proteção e recursos para a lavoura dos

pequenos agricultores, em troca de apoio à instalação da Olaria Maranata.

Ao que tudo indica os conflitos com os extrativistas ocorrem em vários momentos: o

primeiro se dá quando gerentes da Pedreira resolvem aumentar a área de extração sobre o

espaço usado por algumas famílias para o cultivo. Como resultado, estes moradores passaram

a transpor as cercas da empresa com objetivo de continuar a coleta do babaçu e da lenha. Não

houve confrontos diretos, a Pedreira enviou alguns representantes para conversar com as

famílias acerca dos limites da propriedade que em caso de transgressão poderia levar a prisão

dos invasores.

O acordo feito com a Pedreira envolvia a promessa de que as famílias receberiam

novas terras para o cultivo, casas de alvenaria e até uma escola. Nos primeiros cinco anos de

convivência com os donos da empresa, não houve reclamações por parte das famílias de

remanescentes de quilombo, já que alguns membros receberam casas de tijolos e puderam

trabalhar nas olarias, até mesmo a escola chegou a ser construída. Contudo, esse período de

boas relações foi suficiente para a empresa extrativista conseguir o título de propriedade das

terras próximas ao Forte do Calvário iniciando a partir daí as expropriações.

42

Num segundo momento, as olarias começaram a expulsar as famílias cometendo atos

de violência como a queima de casas, destruição de plantações e ameaças de morte. Os

moradores reagiram derrubando as cercas de algumas dessas empresas que os impedia de

chegar até o rio Itapecuru e ter acesso às poucas roças, o que gerou um grave confronto entre

funcionários das olarias e os agricultores, sendo necessária a intervenção da polícia civil. Os

relatos dos moradores de Boa Vista têm o tom de denúncia contra os crimes praticados pelos

extrativistas, não só contra a vida humana, mas também contra o meio ambiente. Em

entrevista cedida no mês de outubro de 2005, o agricultor Raimundo Rocha contou que até o

ano de 2003, “o gerente da pedreira Anhanguera teria colocado 10 pistoleiros fortemente

armados, totalmente preparados com rádio de comunicação, prontos para invadir as terras

ocupadas pelos boavistanos”.

Os casos de agressões físicas são inúmeros. Seu Raimundo também contou que no dia

13 de setembro de 2003 foi duramente agredido quando retornava de Rosário para Boa Vista:

“me derrubaram da bicicleta, me empurraram, me ameaçaram de morte, que íam me matar e

eu tenho sofrido muito com essas agressões”. Por diversas vezes seu Raimundo procurou a

polícia local para prestar queixa contra seus agressores, mas estes dificilmente apareciam na

delegacia quando eram intimados a prestar esclarecimentos.

O descaso do poder público diante das denúncias de intimidação e violências

praticadas pelos funcionários das olarias, levou os moradores a não procurar o apoio das

autoridades locais. Além do mais, a situação de abandono em que a comunidade se

encontrava desassistida pela prefeitura, aumentou ainda mais a revolta dos moradores. Até o

ano de 2004 nenhum dos jagunços que agrediu seu Raimundo havia sido preso.

Com a criação da Associação de Pequenos Agricultores Rurais, os moradores

obtiveram diversos benefícios por meio do cadastro das famílias em programas do governo

federal, como Bolsa-família, PETI, e Luz no Campo. Contudo, os serviços públicos que

deveriam ser oferecidos pela prefeitura de Rosário como saneamento básico, asfaltamento de

ruas, abastecimento de água, escola, posto de atendimento de médico, etc, nunca chegaram à

área.

O que mais intrigou ao observar esse quadro foi ouvir, em entrevista realizada com o

secretário de Assistência Social de Rosário, em março de 2004, que Boa Vista é a única

comunidade rural que recebe poucos benefícios, em virtude das lideranças do povoado se

recusar a cooperar com o poder local. Porém, seu Caipira negou a acusação e se defendeu

43

dizendo que a razão para a prefeitura não atuar na comunidade se deve ao fato da maioria das

olarias do município funcionar nesta área, além da própria pedreira Anhanguera ligada à

Redimix. Segundo o agricultor, o poder público beneficiou-se na venda das terras de Boa

Vista para os extrativistas; porém não nos foi possível averiguar esta acusação.

Um outro aspecto do trabalho do Secretário rosariense é ação da secretaria nas

comunidades rurais identificadas como áreas de remanescentes quilombolas. Segundo ele, o

trabalho de identificação de comunidades de remanescentes de quilombo no município, bem

como a conscientização das raízes históricas e identidade étnica dos moradores é feita pelo

próprio secretário através de palestras dadas dentro das Associações que foram criadas em

parceria com a referida Secretária. Até mesmo a entrada no pedido do processo de

reconhecimento das comunidades de remanescentes de quilombo, junto ao Ministério da

Cultura e à Fundação Palmares é dado pelo secretario. Também nos foi afirmado que em Boa

Vista nunca ocorreram casos de agressões, expropriações ou disputas de terras; e sim, que

algumas pessoas tem se aproveitado dos poderes delegados pela Associação para se auto-

beneficiarem com a cobrança das taxas dos associados.

Apesar de toda a discussão entre o poder público local e as lideranças de Boa Vista, é

importante destacar que as marcas dos conflitos internos e externos à comunidade se tornaram

mais claras – para os moradores do povoado – a partir da fundação da Associação de

Pequenos Agricultores Rurais Quilombolas de Boa Vista em 2002.

3. 2 A Associação

Com a fundação da Associação, o grupo de moradores mobilizados por seu Caipira e

Nilton, puderam ter um centro onde as estratégias para a resistência foram traçadas

coletivamente. Neste momento, as experiências vividas e compartilhadas por esta população

são as bases para a unidade grupal. Para as lideranças o campo de atuação da instituição seria

obter melhorias para a comunidade, bem como representar o corpo de associados nos

conflitos com os extrativistas.

Exemplos como o de Boa Vista ocorrem no campesinato brasileiro no momento em

que o acesso a terra está ameaçado. Fenelon (2004, p. 275) faz uma explicação acerca do

processo de construção das Associações de Trabalhadores Rurais, aonde os sujeitos

envolvidos assumem uma nova atitude na luta pela terra.

44

Foi na experiência partilhada no interior destas organizações de moradores

que foram ampliando a sua consciência, passando a dirigir suas ações tendo

como referência não somente suas famílias ou “os outros mais

necessitados”, mas os problemas e as dificuldades vividas no cotidiano das

comunidades.

Partindo deste pressuposto, observou-se no comportamento dos associados em Boa

Vista uma preocupação que ia além da esfera individual. Se antes da chegada das primeiras

empresas os laços de solidariedade entre os moradores eram profícuos para a unidade entre as

famílias, com a Associação estes laços foram restabelecidos mesmo de maneira restrita a um

determinado grupo.

Foto 3: Prédio da Associação em Boa Vista Fonte: NUNES, Marcelo Silva. Outubro, 2005

No trabalho de mobilização dos moradores o destaque vai para seu Caipira -

constantemente citado nas entrevistas como o principal agente deste processo. Além disso, os

entrevistados apontam para o agricultor como o responsável pelo “descobrimento das raízes

étnicas” dos moradores. Um bom exemplo é o de dona Maria Bomtempo, agricultora que se

mudou da comunidade Boa Vista para Rosário há alguns anos, mas continua associada.

Conforme o relato, soube que era remanescente dos escravos que trabalharam na fazenda da

família Baima, quando seu Caipira trouxe o histórico elaborado por ele com a ajuda dos

depoimentos dos mais velhos habitantes da área. Assim, tanto ela quanto os demais

45

moradores que ouviram esse discurso ficaram sabendo dos direitos que lhes são assegurados

por lei, caso a terra ocupada seja reconhecida pelos órgãos públicos como propriedade

pertencente aos remanescentes quilombolas.

Outro morador que participou da mobilização foi o dirigente da Casa de Oração de

Boa Vista, Nilton de Assis Moreira. Segundo ele, “a terra é fruto que Deus deixou para o

povo que pertence á ela. Aqui é uma área histórica de remanescentes de quilombo e foi

descoberta agora, depois que nós fundamos a Associação de Pequenos Agricultores”. Acerca

da religiosidade e dos grupos religiosos tratar-se-á mais adiante. Contudo se pode dizer que a

igreja local teve um papel fundamental na arregimentação de forças a favor da defesa da

ocupação da terra; pois, mesmo em meio a um cenário marcado por vários conflitos, algumas

famílias conseguiam viver em comunhão seguindo os dogmas da religião protestante. Esse

espírito de coletividade foi a base para a formação da Associação, tanto que seu Nilton hoje é

o vice-presidente dessa instituição.

Como liderança comunitária o dirigente atribuí “a Associação uma importância muito

significativa, pois é através dela que nós vamos conseguir os benefícios e os projetos para cá;

porque tudo que vem do governo federal é via Associação”. É possível perceber que os

interesses que levaram à criação da Associação de Boa Vista, vão além do pleito pela posse da

terra. O individualismo era notado quando os associados reivindicavam benefícios que

pudessem melhorar a situação de suas famílias. Projetos sociais como construção de casas

populares, o auxílio financeiro dado aos moradores cadastrados no programas do governo

federal, são exemplos de que cada família vinculada à instituição procurava sobreviver

independente do resto da comunidade.

Dessa forma, há de perceber que não se deve confundir o pleito por titulação das terras

ocupadas ou que perderam em condições arbitrárias e violentas, com os critérios de

constituição e formação histórica da coletividade. Pois é possível perceber a falta de vínculos

de uma parcela considerável de agricultores com a história da comunidade e com a luta pela

resistência no lugar. Pois, a maior parte da população de lugar é composta por pessoas que

vieram do centro de Rosário ou de outros municípios, atrás de trabalho nas olarias e nas terras

que ainda não tinham sido ocupadas. No entanto, a Associação juntamente com o discurso

“conscientizador” propagado pelas lideranças acerca dos direitos reservados aos posseiros que

se auto-afirmam quilombolas, são elementos fundamentais para a agregação do pluridentitário

grupo boavistano.

46

Para compreender essa relação entre consciência e experiência tomou-se emprestado o

pensamento de E. P. Thompson.

A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações

de produção em que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente.

A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em

termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e

formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o

mesmo não ocorre com a consciência de classe. (THOMPSON, 1987, p,10)

As condições em que estão vivendo os sujeitos serão fundamentais para definir o tipo

de experiências que estes terão nas esferas sociais, econômicas, políticas e culturais. Numa

situação conflituosa ou de exploração envolvendo mais de um grupo social, as experiências

acumuladas pelos sujeitos irão aparecer, em termos culturais, sob a forma de um sistema de

idéias, valores, instituições e tradições próprias de um determinado grupo social. Estas

manifestações são as expressões da consciência de classe. Em outras palavras, para Thompson

a cultura vinculada à noção de experiência social faz com que as pessoas não experimentem a

sua própria história apenas como idéias, mas, também como sentimentos lidando com eles

como normas, obrigações familiares e de parentesco e reciprocidades; valores (ou através de

formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas.

Um outro argumento que subsidia a idéia de comunhão de interesses em meio a um

grupo pluriétnico é dado pelo Projeto Vida de Negro, cujas pesquisas têm apontado para as

implicações das formas de organização e participação do campesinato na elaboração de

estratégias de enfretamento que tendem a somar esforços na busca da valorização do grupo,

da atuação coletiva. Nesse contexto, tem sido visível a articulação na construção e

fortalecimento de grupos locais. Apesar deste tipo de mobilização acontecer em comunidades

de remanescentes quilombolas que não sofreram alterações significativas em seus modos de

vida e culturas, esse argumento também se aplica a realidade do povoado em questão.

A experiência do processo de grilagem compartilhada pelos moradores não foi

suficiente para construir uma coletividade com laços de solidariedade fortes e recíprocos.

Outros elementos como a crença religiosa comum a um grupo e os laços de parentesco entre

alguns moradores foram fundamentais na mobilização dos sujeitos para organizarem a

resistência a partir da fundação da Associação de Pequenos Agricultores Rurais. A abertura

47

para outros indivíduos foi dada paulatinamente, e vista com desconfiança por alguns membros

da diretoria da instituição.

Antes da chegada dos representantes das organizações não-governamentais que vão

auxiliar na instrução dos associados quanto à elaboração da identidade étnica quilombola, a

Associação viveu um período de instabilidade com a saída de alguns membros e o aumento

das tensões com os grileiros.

3. 3 Os conflitos internos

A composição social da população boavistana é caracterizada pela diversidade cultural

de seus habitantes. Desde a convivência nas terras do Forte do Calvário, as famílias de

posseiros distinguiam-se conforme a crença religiosa; classificação esta definida pelos

pentecostais que foram entrevistados. Como a produção agrícola e as atividades extrativistas

eram reguladas pelas normas do direito costumeiro, o modo de vida era praticamente o

mesmo para todos os habitantes. O deslocamento para a nova área desestruturou essa forma

de organização, contudo não alterou a relação entre os grupos religiosos. Apesar do esforço

individual em assegurar a sobrevivência em meio às pressões dos grileiros, a comunidade

manteve as tradições dos festejos e dos rituais afro.

O fato que desequilibrou essas relações foi a chegada de outros agricultores que

vieram de regiões próximas a Rosário, com o objetivo de conseguir trabalho nas olarias ou na

Pedreira Anhanguera. Muitos destes “chegantes” compartilham da religião evangélica de

vertente pentecostal que é caracterizada pelo anticatolicismo e o combate às religiões de

matriz africana com umbanda, candomblé e outras similares.

A partir do ano 2000, conforme relatou seu Caipira, os boavistanos viveram um

intenso período de tensões entre os grupos religiosos que só terminaria com a desmobilização

dos associados em 2004. Sabe-se que desde o início do funcionamento das olarias na

comunidade, os moradores passaram mais de 10 sem oferecer qualquer tipo de resistência ao

avanço destas empresas. O medo de ser expulso ou até mesmo morto, cerceava qualquer

tentativa de reagir à onda de violência e destruição propagada por esses extrativistas. As

famílias que não haviam sido expulsas sobreviviam a partir de pequenas plantações, da pesca

e da coleta ilegal de mangue para fabricarem o carvão que depois seria vendido para as

próprias olarias.

48

Esse clima de opressão veio a ser questionado no ano de 2002, quando seu Caipira e o

dirigente da Casa de Oração pentecostal decidiram mobilizar os fiéis contra a ameaça de

derrubada do templo. Com a fundação da Associação naquele mesmo ano, os moradores

dividiram-se em dois grupos: os associados e os não-associados. Estes últimos eram

compunham a grande maioria da população da área. Durante o primeiro ano da Associação, as

lideranças tiveram a difícil tarefa de aumentar o número de membros, para isso, seu Caipira

recorria ao contato pessoal com cada família. Neste momento, as diferenças religiosas vieram

à tona. O preconceito mútuo entre os credos frustrou por um longo período as expectativas do

presidente da Associação. Contudo, uma mudança no Estatuto daquela instituição imposta por

Seu Caipira, permitiu que pessoas que já haviam saído da comunidade e outras interessadas

em obter um lote de terra depois da regularização e titulação da área pudessem se associar.

A atitude de seu Caipira desagradou alguns membros da Associação que prontamente

se afastaram. Como estes eram ligados por laços de parentesco ao seu Sebastião – ex-1º

Secretário – acabaram constituindo um grupo independente para resistir aos grileiros por meio

de acordos e concessões.

Desde o ano de 2002 até o final de 2003, os moradores a favor de uma luta direta

contra os grileiros estavam unificados em torno da Associação presidida por seu Caipira. Com

a formação do grupo independente sob a liderança de seu Sebastião, o presidente da

Associação passou a ser acusado de se favorecer utilizando o dinheiro das taxas cobradas

junto aos associados para despesas pessoais.

Seu Sebastião ao romper com a entidade foi acompanhado por toda a sua parentela –

num total de 12 famílias. Ambos as lideranças se acusam de facilitação aos donos das olarias

para que estes obtivessem terras dentro da área para a extração da argila. Caipira conta que

mesmo antes de fundar a Associação, “não houve nenhuma resistência por parte de alguns

moradores que facilitaram para as empresas invadirem a área e se proclamarem donos”. O

agricultor acusa o seu Sebastião de favorecer os grileiros ao depor a favor destes, em troca de

uma quantia de vinte reais, quando uma Igreja construída em homenagem a São Benedito,

pelos escravos da região no século XIX, foi demolida pelas escavadeiras usadas para a

retirada de argila.

Conforme os relatos dos moradores, alguns funcionários da Pedreira vieram até a

Associação para se filiarem e obter pequenos lotes de terras para o cultivo de gêneros

agrícolas. Ao se firmarem na comunidade, os funcionários construíam suas casas com argila e

49

as cobriam com palha de babaçu, logo depois iniciavam o plantio. Com a chegada do tempo

da colheita, estes sujeitos vendiam as terras para as olarias que imediatamente instalavam suas

máquinas para extração da matéria-prima. Seu Sebastião diz que a razão para esta destruição

era a falta de cuidados da Associação na hora de escolher os seus sócios.

Mais tarde foi possível perceber que os conflitos internos ocorriam também na esfera

religiosa. Os membros da Casa de Oração iniciaram uma campanha de evangelização na

tentativa de conquistar mais fiéis entre os moradores de Boa Vista; isto acarretou na

conversão de alguns praticantes de religião afro diminuindo o contingente de membros, o que

resultou no fechamento de seus terreiros. As tensões entre pentecostais e os membros do

culto-afro serão abordados mais a fundo no próximo capítulo.

Além das dificuldades enfrentadas com a saída do grupo de associados por seu

Sebastião, a Associação de Pequenos Agricultores Rurais Quilombolas de Boa Vista ainda

sofria com a impossibilidade de reunir seus mais de 40 sócios, em 2003. Entre os motivos

para esta situação há destaque para o medo causado pelas ameaças e violências praticadas

pelos pistoleiros e o desânimo de alguns membros que não acreditam na conquista do direito

sobre a terra. Os poucos que ainda permanecem na Associação têm interesse apenas na ajuda

financeira oferecida pelo governo federal às famílias cadastradas no PETI (Progama de

Erradicação do Trabalho Infantil).

Apesar das contendas entre os grupos de posseiros, cabe destacar o empenho das

lideranças em manter a resistência contra o avanço dos extrativistas sobre as terras da

comunidade. E com a entrada dos representantes das ongs que trabalham com a causa

quilombola no Maranhão, haverá a convergência dos grupos no tocante ao uso do discurso da

auto-afirmação étnica, isto é, buscar a regularização das terras por meio do reconhecimento da

“identidade quilombola”. A luta coletiva pela posse da terra assumiu um caráter étnico aonde

cada liderança se lança sobre uma parcela da população local – aproveitando as famílias

interligadas por laços de parentesco – para conscientizar acerca desta estratégia.

No processo (na maioria, se não na totalidade das vezes, conflituoso) de nomeação de

um grupo como "remanescente", produzem-se uma série de mudanças que atingem aquelas

comunidades, tanto na sua relação com os que as rodeiam, sejam as populações vizinhas, os

poderes locais ou os aparelhos de Estado; quanto nas relações entre seus próprios atores, com

acomodações, disputas e muitas vezes a própria criação de chefias e formas de ordenamento

político com a alteração dos significados atribuídos às festas e rituais, com a reelaboração da

50

memória e com a alteração do status dos guardadores da memória que passam a desempenhar

um papel sem precedentes na vida do grupo (TRINDADE, 2004; NUNES, 2007).

No tocante à memória dos grupos, um ponto a destacar é a relação entre as histórias da

ocupação de algumas famílias de agricultores que chegaram mais recentemente à

comunidade, e os poucos remanescentes de ex-escravos que ainda vivem na terra. Como a

iniciativa para o “resgate” das raízes negras partiu daqueles primeiros, os mais velhos

moradores tiveram apenas a função simbólica de representarem a verdade acerca da história

de Boa Vista. Isso mostra que a relação dos chegantes com a terra em disputa, durante o

período de ocupação, não trazia as marcas de uma ancestralidade comum entre os grupos. Os

“pretos da Boa Vista” – denominados assim pelos atuais moradores - preferem não se

envolver com a luta pela posse da terra, em virtude de muitos dos seus parentes terem sido

expulsos do lugar e pelo fechamento dos seus locais de culto. Ainda assim, as histórias

narradas por eles são de suma importância para compreender a história de Boa Vista com o

seu passado escravocrata e o presente conflituoso.

Além das informações concedidas pelos remanescentes, as lideranças locais buscaram

informações em todos os meios disponíveis para comprovar que as terras ocupadas foram e

são terras de preto. Quanto a isso seu Sebastião saiu na frente em função de residir na

comunidade há quarenta anos. Hoje com 74, este morador diz ser detentor de uma grande

parcela das terras de Boa Vista, pois as cultivava antes da chegada das olarias e dos atuais

moradores. Sebastião chegou a trabalhar para a empresa Pedreira Anhanguera até o momento

em sofreu um acidente no joelho esquerdo tentando levantar um carro de mão carregado de

tijolos. Depois de dispensado sem receber nenhuma remuneração, o indignado ex-operário

derrubou uma das cercas colocadas pela referida empresa que reagiu acionando a polícia de

Rosário. O morador não chegou a ser detido, pelo contrário, o senhor Thomaz de Melo Cruz

(proprietário da Pedreira) resolveu lhe fazer um acordo para que não derrubasse as cercas de

arame farpado. De acordo com o próprio Sebastião, a empresa pagou a construção de uma

casa e liberou uma quantia de dois mil reais divididos em dez parcelas mensais de duzentos

reais para as despesas pessoais. Apesar dos benefícios, o morador nunca foi ressarcido por ter

sido demitido da referida empresa em função do acidente que sofrera. Outro problema

enfrentado por Sebastião foi a desapropriação de seus familiares por um outro grileiro, o

senhor Benedito Severino César, o Pernambucano.

51

Os conflitos entre os posseiros foram se tornando mais intensos à proporção que a

comunidade mostrava sinais de resistência. O cenário é desolador. Como foi dito Boa Vista

não dispões de serviços de água encanada e de saneamento básico. As formas de obter água

são através do único poço artesiano do lugar onde constantemente encontram cobras, sapos e

animais mortos; e dos açudes que se formam nos buracos deixados pelas escavadeiras de

propriedade das olarias. A energia elétrica ajuda a manter os poucos eletrodomésticos

usufruídos pelas famílias, sobretudo, geladeira e televisão.

As laterais da estrada que cortam a área em disputa nos proporcionam uma visão do

resultado do processo de segregação ocorrida em Boa Vista. Na margem direita, para quem

entra na comunidade, vimos que as olarias ocupam mais de 80% da área, colocando cercas e

até mesmo muros de tijolos para impedir o acesso dos trabalhadores rurais ao rio Itapecuru e

as terras que antes eram cultivadas por eles. À margem esquerda, a população se espreme em

um pequeno lote de terra degradado pela extração de argila e, constantemente, poluído pelos

dejetos e lixo plástico. Enquanto de um lado o domínio da área é exercido em grande parte

por seu Benedito, o Pernambucano; de outro, são as cercas da Redimix que empurram os

moradores cada vez mais para fora da comunidade.

Segundo Sebastião, as terras circunvizinhas ao Forte do Calvário pertencem às Forças

Armadas da Marinha e uma outra parte – denominada de Fama – fora vendida a um

empregado da Redimix conhecido com Geraldo, hoje falecido. Estas terras foram cultivadas

por seu Geraldo desde que as recebera de seu pai. Nascido e criado nas redondezas do Forte,

este morador era detentor de um amplo bananal cuja produção era vendida para Rosário e

municípios próximos. O transporte muitas das vezes era feito de barco, devido à proximidade

com o rio Itapecuru, estabelecendo naquele lugar um ponto de compra e venda de

mercadorias. De acordo com os mais velhos, havia um pequeno porto na região que na década

de 1960 serviu para troca de diversos gêneros alimentícios por sal e algodão.

Os moradores contam que as famílias de Geraldo e Sebastião dividiam as terras do

Fama, sendo que a maior parte ficava com o primeiro. Com a chegada da Redimix, Geraldo

fez um acordo para vender as terras para o representante da empresa, porém sem comunicar

Sebastião, o qual nada recebeu e acabou sendo expropriado de suas terras. Um detalhe

interessante é que ambos trabalharam na Pedreira Anhanguera e foram demitidos pelo mesmo

motivo: acidente de trabalho. Geraldo sem emprego e sem terra para plantar investiu o

52

dinheiro ganho na venda das terras do Fama em outra plantação de banana numa área além

dos limites que o separava da área de exploração da Redimix.

Apesar de ter residido em outra área, Geraldo acabou sendo surpreendido pelo

expansionismo da empresa que destruiu o bananal e colocou sua casa em risco. Este morador

recorreu à justiça para defender suas terras que segundo ele pertenciam aos seus ancestrais

beneficiados com a doação feita pela família Baima que vivera naquela região desde o século

XIX. Acabou ganhando a causa, mas morreu por razões até hoje desconhecidas. Sua esposa,

Dona Maria Bomtempo, diz que Geraldo vinha sofrendo com as ameaças de alguns

funcionários da empresa que requeria as terras, e que logo após a morte do morador, sua casa

foi invadida e a documentação do processo fora roubada. Mais tarde a Pedreira aumentou sua

área de exploração e repassou aos moradores à idéia de que a empresa era a verdadeira dona

daquelas terras.

Após um longo tempo, os moradores de Boa Vista só tomariam consciência da

grilagem praticada pelos extrativistas, no momento em que seu Caipira começou a mobilizar a

comunidade e buscar informações sobre a área nos órgãos que tratam da questão fundiária no

Estado. A desconstrução da idéia de que os grileiros têm direito legal sobre as terras da

comunidade, também é feita pelas lideranças e reforçada pela Aconeruq.

Na memória de uma pequena parcela de moradores, as lembranças de um tempo de

abundância e liberdade contrastam com a atual condição da coletividade. Um detalhe é que

apesar de maioria da população não ter nascido na comunidade, todos conhecem a história do

lugar. Alguns por terem ouvido falar; e outros, tomando conhecimento na convivência com os

mais velhos.

Tal como ocorre na comunidade Boa Vista, encontra-se na literatura usada neste

trabalho monográfico algumas explicações acerca do envolvimento de comunidades negras

rurais em conflitos agrários. Embora a demarcação e titulação coletiva de terras sejam

reivindicadas pelo grupo, por meio das associações, isso não encerra a noção de propriedade

que o grupo tem. Dessa forma, surgem conflitos produzidos por problemas fundiários como a

venda de terras, a negociação com os grileiros. As comunidades experimentam uma espécie

de persuasão coletiva de seus membros mostrando-lhes a importância de se auto-definirem

quilombolas. Nesse momento, a universidade, acadêmicos, assessorias e o movimento negro

entram em cena conduzindo uma discussão de cunho histórico e conceitual. Entretanto, surge

53

um outro problema ao qual se chama atenção: a intervenção de órgãos do Estado na definição

de quem é ou não quilombola e quem têm direito a terra. (TRINDADE, 2004; NUNES, 2007)

Segundo Castro (2001, p, 4), no processo de luta pela posse da terra, “tensões internas

surgem nos movimentos e exigem de seus membros reflexões que, ao serem feitas, geram

uma pedagogia interna para a consecução de seus objetivos e criação de seus quadros.” Com

base nesse destaque se analisa a participação de órgãos públicos e ongs ligadas ao movimento

negro, no Maranhão, no que se refere à conscientização dos direitos assegurados às

comunidades negras rurais.

No caso de Boa Vista, os associados receberam o apoio da Aconeruq para a

mobilização dos moradores para o resgate da identidade negra na comunidade. O discurso

difundindo por esta entidade colocou em choque as visões dos posseiros em relação às suas

origens étnicas, principalmente por causa da maioria dos ouvintes serem membros da religião

pentecostal que rejeita os referenciais que dão suporte à identidade quilombola. Veja o que diz

seu Caipira quanto à participação dessa ong

A Aconeruq têm nos dado total apoio para o reconhecimento da área como

quilombola; já me levaram até para Brasília. Foi realizada na comunidade

uma oficina para a preparação das pessoas no que diz respeito ao

significado de comunidade quilombola. (entrevista, outubro, 2005)

A Aconeruq, como instituição defensora dos direitos da população remanescente

quilombola, atua em todo Estado do Maranhão promovendo a luta por políticas públicas,

organizando associações, cooperativas, gerando desenvolvimento sustentável a partir das

potencialidades de cada comunidade visitada. O seu Caipira a procurou após uma Conferência

sobre meio ambiente que ocorrera no Sesc Olho D’água, em São Luís. Desde esse momento,

diversas visitas foram realizadas pelos técnicos da instituição que fizeram um levantamento

acerca do histórico da área e entrevistas com os moradores. Após esse trabalho as informações

forma encaminhadas ao Incra para análise; em seguida, este órgão deu início ao processo de

demarcação dos limites da área onde esta a comunidade. Com a participação das referidas

instituições, alguns moradores passaram a se envolver mais com a luta pela posse da terra. As

palestras realizadas pelo representante da Aconeruq foram de vital importância para a

revitalização da identidade étnica dos moradores que viram na auto-afirmação a possibilidade

de defenderem suas terras.

54

Outro efeito da participação da Aconeruq foi o fortalecimento da figura de seu

Caipira, o qual passou a ser o porta-voz da comunidade no diálogo com as esferas do poder

público. A sua participação em eventos, seminários, simpósios e conferências garantiram-lhe

os contatos com representantes de outras instituições.

O MST e a CUT também auxiliaram seu Caipira na sustentação do projeto político de

criar a Associação de Pequenos Agricultores Rurais, mesmo que em menor expressão, se

comparado à participação da Aconeruq. Com base nas entrevistas realizadas com o líder

comunitário, as contribuições das duas organizações se resumem ao apoio financeiro para

suprir os gastos de viagens a São Luís e Brasília; e na elaboração de documentos, cartas e

disponibilidade de acesso a telefones para contatar antropólogos e advogados das instituições.

Talvez a importância maior que todas essas entidades tiveram na vida da comunidade foi,

justamente, a conscientização das famílias vinculadas à Associação quanto à questão

quilombola. Apesar da cisão entre as lideranças, a idéia da auto-afirmação permaneceu entre

os grupos.

Agora, sobre o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, os posseiros de Boa

Vista classificam a postura desta entidade face aos conflitos agrários, como inerte, omissa e

subjugada aos interesses da prefeitura local. Seu Caipira contou que o Sindicato sempre foi

negligente aos apelos dos moradores agredidos pelos funcionários das olarias, às

expropriações sofridas e a destruição de suas terras. Alega também que o atendente da

referida instituição não lhe repassava as ligações dos órgãos de São Luís e Brasília.

As maiores reclamações dos moradores de Boa Vista, em relação ao Sindicato, se

referem ao não pagamento das aposentadorias dos contribuintes. Seu Sebastião diz que

contribuiu para o Sindicato por quase 20 anos e não consegue se aposentar pela instituição. A

mãe de seu Caipira, de 82 anos, sofre com a omissão da entidade para avaliar o processo de

aposentadoria.

Além da falta de apoio dos órgãos locais, a Associação ainda sofreu com as acusações

do secretário de Assistência Social, o qual apontou que em seu trabalho de catalogação e

envio de processo para reconhecimento de áreas rurais como terras de comunidades

quilombolas, Boa Vista não se enquadra nos critérios estabelecidos pela Secretaria por ter

menos de cinco famílias consideradas remanescentes de escravos. Atualmente, as

comunidades que tiveram seu processo de reconhecimento encaminhado por esta Secretaria

55

receberam os títulos de propriedade das terras ocupadas e uma placa colocada pelo poder

local indicando o nome da comunidade e o título de terras de quilombolas.

De 2004 até hoje, a falta de entendimento entre os grileiros e ocupantes têm se

refletido no aumento do número de expropriações e na extensão das cercas. A violência

também aumentou. Denúncias de espancamentos são constantes. Em março de 2007, o seu

Caipira teve sua casa incendiada por três empregados da Olaria Maranata, sendo dois deles

presos. O morador se encontra, na cidade de Marabá-Pará. O vice-presidente da Associação e

dirigente da Igreja Evangélica Assembléia de Deus, Nilton de Assis, arrumou um emprego no

município de Periz de Cima e só aparece na comunidade aos domingos.

A Associação hoje não funciona. Os moradores sentem-se amedrontados e não

participam das reuniões mensais. Seu Sebastião é a única liderança que ainda resiste contra

qualquer ameaça de expulsão. Contudo, enquanto não há decisão por parte do Incra, a

comunidade de Boa Vista vê-se abandonada. De todos os grupos sociais que antes

conflitavam, os evangélicos crescem em número e se mantém unidos na defesa das terras

onde está a Igreja. Talvez a comunhão entre eles seja uma esperança para reacender o animo

dos moradores na resistência contra o avanço do processo de grilagem. Veremos o papel

exercido por aquele grupo no próximo capítulo.

56

4. PENTECOSTAIS EM AÇÃO

Para este momento da discussão resolveu-se por focar as implicações sociais e

culturais provocadas pela ação dos pentecostais - membros da Casa de Oração - na

mobilização da comunidade contra os extrativistas que invadiram a área. Somada a essa

estratégia de resistência, os sujeitos empreenderam outras ações para lutar contra a

expropriação. Destaque para a derrubada de cercas que limitavam a área de onde se retirava o

babaçu, a lenha e a palha usada na cobertura das casas; além das denúncias de abusos e

violências cometidas pelos funcionários das empresas extrativistas que invadiram a terra. Em

meio a todo este processo, a ação dos pentecostais foi de grande relevância para o

fortalecimento da resistência coletiva na comunidade Boa Vista. Este grupo religioso deu

início à mobilização dos moradores contra os grileiros resultando na formação da Associação

de Pequenos Agricultores Rurais. As implicações decorrentes desta ação trouxeram alterações

não só na forma de encarar os invasores, mas também, nas relações intra e intergrupais.

Foto 4: Prédio da Casa de Oração em Boa Vista.

Fonte: NUNES, Marcelo Silva. Março, 2004

Caracterizado pela liturgia simples, o Pentecostalismo tem como princípios básicos o

batismo do Espírito Santo e o cumprimento de dois sacramentos: o Batismo e o Casamento. O

foco da discussão está no que se pode chamar de ideologia formada a partir dos ensinamentos

religiosos que influenciou o despertar dos posseiros para a ação política. Para tanto, tomou-se

emprestado a definição de religião dada por Maduro (1980, p. 41) que a compreende como:

57

uma estrutura de discursos e práticas comuns a um grupo social referentes a

algumas forças tidas pelos crentes como anteriores e superiores a seu

ambiente natural e social, frente às quais os crentes expressam certa

dependência e diante das quais se consideram obrigados a um certo

comportamento em sociedade com seus semelhantes.

Os crentes a quem Maduro se refere, é o grupo de pessoas que compartilham não só

crenças e ritos, mas também práticas sociais comuns dentro de um contexto particular em que

opera a religião. Assim, não é a boa vontade dos membros – ou dos líderes religiosos – que

define o desenvolvimento e o resultado de sua ação religiosa, mas a estrutura da sociedade em

que eles atuam que o faz definindo quais pontos de sua ação é viável. Em síntese, vale dizer

que é a estrutura social que condiciona os resultados mais prováveis de sua ação.

Em meios aos conflitos fundiários, a tomada de consciência pelos trabalhadores se

manifesta, em primeiro lugar, na forma como é organizada a luta pela permanência na terra,

aproximando os sujeitos que possuem interesses comuns e criando, ao mesmo tempo, as

condições para o surgimento da classe dos trabalhadores rurais (posseiros). Em 2002 foram

inauguradas a Associação de Pequenos Agricultores Rurais de Boa Vista e a Casa de Oração

vinculada à Assembléia de Deus de Rosário. As mudanças ocorridas a partir daí

caracterizaram “a tomada de consciência” da situação de carestia e opressão sentida pelos

moradores que se resolveram fazer parte da Associação. O compartilhamento, entre alguns

moradores, dessas experiências levou-os a articular um processo de luta política forjado pela

identidade de suas praticas de fé religiosa e sua consciência política de seus interesses sócio-

econômicos sintetizados na posse da terra. Assim, a experiência partilhada no interior dessas

organizações ampliou a consciência desses e de outros moradores levando-os a dirigir suas

ações tendo como referência não somente suas famílias ou os outros mais necessitados, mas

os problemas e as dificuldades vividas no cotidiano das comunidades.

De acordo com Thompson a classe é um fenômeno histórico composto por uma

multidão de experiências em relação umas com as outras e, num constante fazer-se, e não uma

categoria analítica e estrutural. Por sua vez, a consciência de classe é a forma como essas

experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores,

idéias e formas institucionais. Tal processo se verificou na comunidade de Boa Vista, pois, o

compartilhamento de experiências vivenciadas pelos moradores, bem como a iniciativa das

58

lideranças para aglutiná-los deu sustentabilidade física e política aos moradores no

enfrentamento com os grileiros. Desse modo, se pode considerar uma situação na qual o

camponês se instituiu enquanto um sujeito político em decorrência da construção de uma

identidade, de forma consciente, por meio da pratica de fé religiosa, a qual, nessas

circunstâncias, assumiu contornos mais profundos dada a sua dimensão política.

Dado a sua transitoriedade se pode compreender, também, esse acontecimento como

uma classe provável de acordo com Bordieu (2001; NUNES, 2007) considerando que os

moradores da comunidade Boa Vista por ocuparem posições comuns e estarem sujeitos a

condições semelhantes agiram, também, em prol de seus interesses assumindo e tomando de

atitudes semelhantes enquanto foi necessário. Contudo, importa não esquecer, ainda segundo

Bordieu que não se deve analisar a consciência de classe como uma espécie de cogito

revolucionário da consciência coletiva de uma entidade personificada.

Nos capítulos anteriores falou-se acerca da elaboração de uma identidade por um

grupo de posseiros ameaçados de serem expulsos das terras que vinham ocupando há alguns

anos. Quando as famílias habitavam nas terras do Forte do Calvário, os grupos religiosos

dividiam-se em católicos e de culto-afro. Nas paróquias, se homenageava São Benedito,

durante o mês de agosto. No mês de outubro, as pessoas iam, em pequenas embarcações ou a

pé, para o festejo de Nossa Senhora do Rosário organizado pela Igreja da Matriz.

Para os praticantes de culto-afro, os rituais eram realizados na própria comunidade a

céu aberto, em terreiros que ficavam dentro das terras de uma moradora, a qual não se pôde

identificar. Não havia conflitos entre esses grupos, pois as pessoas transitavam de um para o

outro, em função de não haver a presença de um templo católico no local. Assim, os católicos

buscavam nos terreiros a solução imediata para os problemas como doenças, más colheitas e

brigas familiares. Após terem sido deslocados das terras do calvário, os moradores

mantiveram suas práticas religiosas intocadas. Na área onde passaram a viver foram

demarcados dois terreiros para a realização do culto-afro.

Conforme o relato de um morador, a comunidade sempre foi unida, principalmente na

organização dos festejos para homenagear os santos e realização de rituais, danças e festas

dentro dos terreiros. Nunca houve casos de contendas entre os moradores até o ano de 2002,

quando um morador de Rosário, conhecido como Zé Maria, construiu a Casa de Oração para

os moradores convertidos ao pentecostalismo. A partir daí, campanhas de evangelização

promovidas pela Igreja Sede Assembléia de Deus de Rosário, na comunidade Boa Vista,

59

resultou em muitas conversões de famílias que praticavam o culto-afro e freqüentavam a

Igreja Católica.

Nesse contexto, as pressões das empresas extrativistas para expulsar alguns moradores

visando à apropriação da área se intensificaram. Muitos deles eram descendentes das

primeiras famílias que receberam aquelas terras após a falência da Fazenda Boa Vista. Em

conseqüência, houve a saída de vários moradores da comunidade – sobretudo dos

remanescentes de ex-escravos – implicando também na redução dos praticantes de culto-afro,

pois alguns passaram a fazer parte do grupo dos pentecostais.

As tensões agora, entrariam na esfera religiosa colocando em debate o grupo dos

pentecostais e os demais moradores de Boa Vista que viam na evangelização uma ameaça às

suas tradições. Com a construção da Casa de Oração, os pentecostais passaram a realizar seus

cultos contando com a participação dos recém-convertidos que quase não íam à Igreja Sede,

em virtude da grande distância entre esta e a comunidade. Diversos casos de contendas entre

os grupos religiosos são relatados pelos moradores. Um exemplo foi a conversão do

proprietário de um dos maiores bares que existia no local, e que mais tarde se tornaria o

dirigente da Casa de Oração. Com o fechamento do bar, Nilton de Assis Moreira teve sua casa

apedrejada várias vezes. A sua vida foi ameaçada por alguns moradores, mas permaneceu na

nova fé.

Durante o primeiro ano de funcionamento da Casa de Oração, os pentecostais

aumentaram a pressão sobre os praticantes do culto-afro. Campanhas de orações, vigílias e

cultos ao ar livre foram realizados para conclamar a comunidade a abandonar as velhas

práticas e se entregar à doutrina pentecostal. No final do ano de 2003, os dois terreiros foram

fechados por não haver praticantes suficientes. Um outro bar que ficava em frente à Casa de

Oração, também acabou fechando as portas. Este é o período em que os pentecostais

tornaram-se o maior grupo religioso da comunidade Boa Vista. Mesmo antes da fundação da

pequena igreja, eles se reuniam em outra, feita de pau a pique, coberta de palha com uma

quantidade considerável de membros – cerca de 20.

Em março de 2002, após a Casa de Oração ser inaugurada ocorreu o fato que colocaria

os pentecostais na linha de frente contra os grileiros. A experiência é relatada por Seu

Raimundo (Caipira), que era pentecostal na época. Segundo ele, o dono da olaria Maranata –

seu Benedito (Pernambucano) – teria alegado ser o dono da área em que foi construída a

instituição religiosa e as casas dos moradores que ficavam nos arredores. Essas edificações

60

seriam derrubadas para que o terreno fosse usado para extração de argila e a construção de um

novo galpão para a fabricação de telhas e tijolos. Para Caipira essa situação foi motivo de

revolta entre os pentecostais.

Nesse momento eu chamei o irmão Nilton, que hoje é o vice-presidente

atual da Associação, e disse pra ele que a solução para nós era fundar uma

Associação, para podermos ter mais uma força para lutarmos contra essas

pessoas que estavam se revoltando contra nós. (entrevista, setembro de

2005).

A partir daí as famílias dos pentecostais se reuniam sob a liderança provisória de seu

Caipira e de Nilton para defenderem não só a terra onde estão construídas a igreja e algumas

casas, mas também reivindicar melhorias nas condições de vida da comunidade. Segundo

Caipira, o percentual de evangélicos sempre foi maior entre os associados, principalmente,

pelo fato deles terem iniciado o movimento contra a ação dos grileiros. Até mesmo na eleição

para os cargos administrativos da Associação, o grupo religioso fora contemplado com a

ocupação da grande maioria destes.

4. 1 É necessário conscientizar primeiro

O maior desafio enfrentado pelas lideranças das comunidades rurais – negras ou não –

interessadas em obter a posse da terra por meio do artigo 68 é conscientizar os moradores a

respeito da importância da mobilização coletiva em torno de uma estratégia comum a todos.

As lideranças estimulam a união dos moradores para fortalecer o movimento contra a

expropriação de suas terras. Importa lembrar que a partir da tomada de consciência espera-se

que ocorra uma ruptura das relações estabelecidas no interior do grupo (ou de vários grupos)

levando-os a assumir posturas diferentes e construir outra lógica determinada pela

necessidade de sobrevivência. No que se refere à experiência de luta da comunidade Boa

Vista, o grupo religioso dos pentecostais teve que transpor a esfera das divergências religiosas

para arregimentar a comunidade sob outra forma de resistência, pois as divergências os

fragilizava em face de um inexorável enfrentamento com os grileiros de suas terras.

Antes, as famílias de Boa Vista se dividiam em sócios da Associação de Pequenos

Agricultores Rurais e os não sócios. Para os primeiros, a mudança de atitude diante dos

61

conflitos trouxe a incorporação de novos comportamentos como forma de resistência ao

criarem novas condutas sob uma nova linguagem, rituais e práticas inovadoras, a partir dos

quais um outro referencial utópico foi elaborado para se protegerem no presente e se

inserirem no futuro, ou seja, a noção de que eles eram remanescentes de quilombos.

Vale sublinhar que essa configuração da comunidade colocou em discussão a própria

maneira como os pentecostais se percebiam, uma vez que a conversão à nova fé representava

a negação de práticas de culto-afro. A auto-afirmação da identidade quilombola resgataria, em

termos simbólicos, o que foi menosprezado pelos novos membros. Nestes termos, o que se

tem configurado é uma situação complexa e paradoxal cuja inteligibilidade só é possível ao se

compreender o sentido, para eles, da terra no momento em que foi feito o pedido do

reconhecimento da terra como remanescente de quilombo. Os critérios estabelecidos de

classificação do território foram a história da terra e o fato de durante um longo período ela ter

sido ocupada por famílias descendentes dos ex-escravos. Portanto, significa que não se estava

negando a identidade quilombola construída pelos associados, mas sim as práticas religiosas

que denotavam o estigma do “negro escravizado” e que não condiziam com a nova realidade

do grupo.

Dessa forma, as lideranças tiveram como trabalho a difícil missão de conciliar os

interesses dos diferentes grupos religiosos dentro da Associação; afinal, era necessário

conseguir o apoio dos últimos remanescentes quilombolas que ainda habitavam a região para

justificar a ancestralidade da ocupação da terra. O resultado da ação das lideranças foi o

crescimento do número de associados pertencentes às várias crenças religiosas. Após um ano

de funcionamento, a Associação contava com noventa e três sócios agregando, também, ex-

moradores que viviam nos bairros periféricos da cidade de Rosário. Na pauta das reuniões

eram discutidas as condições estruturais da comunidade, bem como a carência de recursos

para as famílias que não tinham mais onde plantar. Para tentar amenizar esse quadro, a

diretoria da Associação, por meio de Programas Sociais do governo federal conseguiu

cadastrar as famílias associadas no PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e

Bolsa Família, além de obter energia elétrica pelo Programa Luz no Campo. Todas essas

conquistas aumentaram as esperanças da comunidade em conseguir a regularização das suas

terras.

62

O seu Caipira relata que à medida que outros benefícios eram trazidos para a

comunidade, via Associação, o número de filiados crescia, embora sob a desconfiança de

alguns moradores que temiam represálias dos extrativistas diante daquela mobilização.

A relação dos pentecostais com os demais grupos religiosos, em um primeiro

momento, fora pacífica, em função do trabalho destes na Associação ter dado resultados

positivos. Além do mais, os grileiros ficaram temerosos após uma visita de fiscais do Ibama –

solicitada pela Associação - que avaliou as condições do solo aonde a argila era extraída.

Tudo isso caracterizou um período de relativa paz na comunidade.

É importante destacar que a ação dos pentecostais constitui um caso isolado na história

das Igrejas Assembléia de Deus no Brasil. Sabe-se que nos últimos anos, cada vez as igrejas

evangélicas vêem buscando um espaço no cenário político nacional organizando comissões

para trabalharem em campanhas eleitorais de membros destas instituições. A presença da

Assembléia de Deus em conflitos agrários não é comum. Os pentecostais vinculados a esta

instituição têm intensificado a participação no processo de reforma agrária. Pastores passaram

a apoiar as ações dos sem-terra e, com isso, conseguiram aumentar o rebanho de fiéis. Entre

as atividades desenvolvidas está a cobrança de ações ao governo, o cadastro de famílias em

programas sociais e, em alguns casos, incentivo às ocupações.

Nesse cenário dos conflitos fundiários, a Assembléia de Deus, tida como conservadora

até os anos 90 mudou suas estratégias de evangelização atuando fortemente nos

assentamentos do MST e da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura

(CONTAG), havendo pelo menos um templo em cada área.

Em Boa Vista a autonomia exercida pela Casa de Oração possibilita uma organização

interna das práticas religiosas conforme o público que se pretende atingir. O cargo de

dirigente é reservado para a pessoa indicada pelo pastor da Igreja Sede. As demais funções

como obreiros, diáconos, evangelistas, cantores são ocupadas por membros da própria

congregação. Este é um aspecto importante das igrejas pentecostais, cujo corpo burocrático

nem sempre é composto por pessoas com instrução voltada para a função religiosa. Aqui,

essas funções são desempenhadas por posseiros, operários, aposentados que vivem em

comunidades rurais ou periféricas.

A Casa de Oração, usufruindo de liberdade para criar e desenvolver suas práticas

religiosas procurou, a todo instante, continuar com a evangelização dos moradores da

comunidade. Apesar dos grupos religiosos estarem com alguns membros vinculados a

63

Associação, os pentecostais continuavam a conclamar os últimos remanescentes do culto-afro

à conversão para o pentecostalismo, pois os mesmos, mesmo sem um local definido para a

realização dos rituais, permaneciam firmes diante do avanço cristão. Um caso interessante

relatado pela D. Maria Ribamar, esposa do dirigente da Casa de Oração, trata de um momento

em que a senhora responsável pelos trabalhos nos terreiros fora acometido por enfermidade

que a deixara de cama por muitos dias. Sem condição de ser transportada para um hospital em

Rosário e agonizando em seu leito ela mandou chamar as mulheres da Igreja Pentecostal para

“orar por ela”. Após chegar à casa da enferma, a dirigente acompanhada por um grupo de

mulheres iniciou uma longa oração pela cura daquela senhora que, ao final, sentiu-se melhor

declarando ter cessado as dores. No entanto, ao saírem da casa as mulheres ouviram do

marido daquela senhora - “isso não muda o que a gente pensa de vocês”. Tal fala expressa,

bem, a relação tensa que existia entre esses grupos religiosos.

Ao longo da realização desta pesquisa não se conseguiu informações que possibilitasse

qualificar o perfil do culto-afro praticado em Boa Vista, pois como é sabido, de modo geral,

as religiões de matriz africana recebem diferentes denominações de acordo com a região onde

se localizam no Brasil: Tambor de Mina no Maranhão, Xangô em Pernambuco, Candomblé

na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Os entrevistados não esclareceram a denominação dada

ao seu grupo religioso. Então, para efeito de classificação resolveu-se, aqui, chamá-los de

praticantes de culto-afro.

Os pentecostais que antes de se converterem eram participantes de culto-afro, também,

sabem pouco a respeito dessas experiências religiosas. Os relatos, quase sempre, se remetem

ao tempo em que a terra não tinha dono, ou seja, durante a ocupação das terras do calvário. Lá

os cultos eram livres e cheios de rituais, onde os membros sacrificavam animais, bebiam o

sangue desses, dançavam ao som dos atabaques sob o transe causado pela incorporação das

entidades. Muitas dessas experiências não foram gravadas a pedido dos próprios entrevistados

que viam no ato de rememorar esses momentos, um constrangimento e uma atitude de

fraqueza perante a nova fé. De qualquer forma, o que se percebe é um desconhecimento de

seus significados e uma desqualificação dos mesmos por considerá-los da perspectiva da nova

fé como algo desprovido de valor.

Diante desse quadro, se percebeu que os pentecostais ao saírem para a mobilização

visando o fortalecimento da Associação, estabeleciam relações ora conflituosas, ora pacíficas

com os demais grupos religiosos. A aversão destes últimos se dava por causa das

64

transformações ocorridas no universo religioso da comunidade a partir da ação dos

pentecostais. Somado a isso estão vários casos de desrespeito sofrido por praticantes de culto-

afro que resistiam à conversão e por pessoas que visitaram a Casa de Oração sendo o alvo de

comentários maldosos acerca de suas condutas individuais ao recusarem o convite para se

tornar membro daquela religião. Para os evangélicos, aqueles que praticam os cultos às

imagens de santos e outros rituais como acender velas para pessoas que faleceram são

exemplos de desobediência aos ensinamentos bíblicos, por isso eram condenadas por Deus.

Esse comportamento é comum para os adeptos da doutrina pentecostal. Esta se

caracteriza por um forte anticatolicismo enfatizando a ação do Espírito Santo, a crença na

volta iminente de Cristo e a salvação paradisíaca, pelo comportamento radical de sectarismo e

o ascetismo de rejeição ao mundo exterior. Mas, na convivência com os outros grupos

religiosos - mesmo alguns membros destes resistindo ao discurso evangélico - as condições

em que se encontrava a comunidade Boa Vista e a ameaça de derrubada da Casa de Oração

favoreceram a mobilização iniciada pelas lideranças pentecostais. O compartilhamento das

precárias condições de existência e a busca pela melhora de vida, o alento e a esperança diante

de uma situação tão desesperadora levou muitas daquelas pessoas pobres, sofridas e menos

escolarizadas - distantes de um catolicismo oficial, alheios a sindicatos, desconfiados de

partidos e abandonados à própria sorte pelos poderes públicos, a optarem voluntária e

preferencialmente pelas igrejas pentecostais. Nelas encontraram receptividade, apoio

terapêutico espiritual e, em alguns casos, solidariedade material.

Partindo dessa realidade, os membros da Casa de Oração promoveram uma comunhão

fortalecida pelos rituais praticados nos cultos e celebrações religiosas, pois segundo Durkeim

(apud. Guibernau, 1997, p, 84).

As verdadeiras crenças religiosas são sempre comuns a um grupo específico

que professa manter-se fiel a elas relacionadas. Estes (os rituais) não

recebidos de maneira meramente individual por todos os membros do

grupo: são o que dá ao grupo a sua unidade. Os indivíduos que compõe o

grupo sentem-se unidos uns aos outros pelo simples fato de terem uma fé

comum.

Vale lembrar que esse não era o fator determinante do processo de construção da

“nova identidade” de Boa Vista. A crença religiosa foi a responsável pelo fortalecimento dos

65

laços de solidariedade que deram impulso e ampliou o número de membros das instituições da

comunidade. No contexto do enfrentamento, o discurso religioso pentecostal sofreu algumas

adaptações em seu conteúdo. Antes o alvo das pregações era a salvação, o arrependimento

seguido da conversão, a volta de Cristo. Na dinâmica do conflito, essas questões continuaram

sendo tratadas, mas levando-se em consideração o cenário vívido pelos moradores de Boa

Vista. Dessa forma, o discurso oficial, bem como suas interpretações e definições derivadas

da mensagem fundadora do pentecostalismo seguiram as orientações que o processo de

resistência exigia.

Até a configuração da luta pela terra, o referencial religioso era visto como base

norteadora da história cotidiana desse grupo. Ou seja, para os pentecostais, os problemas da

vida eram resolvidos a partir de uma intervenção divina concreta dada ao seu engajamento

numa relação de reciprocidade como o sagrado, consubstanciada na fidelidade ao culto e aos

mandamentos da Igreja. No entanto, a possibilidade de sua expulsão da terra os fez ver, a

despeito de sua vontade, que a história em sua vivência efetiva não era como imaginavam ser.

Ainda assim, o envolvimento dos pentecostais com a luta pela terra colocou a religião como

instrumento ativo nas situações de conflito encorajando e tranqüilizando os camponeses na

medida em que se sentiam respeitando os princípios religiosos. Nessa perspectiva, a

aproximação dos grupos religiosos conduzida pelos pentecostais ocasionou o aumento de

membros deste último e a formação da Associação de Pequenos Agricultores Rurais.

O ponto de partida para a mobilização política dos moradores foi a ameaça de

derrubada feita pelo seu Benedito (Pernambucano) da Casa de Oração e moradias adjacentes.

Em face dessa ameaça, os líderes pentecostais – o seu Caipira e Nílton – organizaram os

moradores para a resistência consolidando a Associação. A partir daí ocorreu uma série de

atos de violências praticadas pelos funcionários das olarias contra os moradores, sobretudo, os

pentecostais associados causando, assim, a diminuição de membros das duas instituições. Para

completar esse quadro desalentador; um dos donos das olarias se converteu ao

pentecostalismo provocando o afastamento em massa dos fiéis da Casa de Oração.

4. 2 A desmobilização coletiva

Como é sabido, a resistência à expropriação dos posseiros da terra fez com que os

mesmos mudassem a sua noção de identidade. Nesse processo, o pentecostalismo, os novos

66

discursos das lideranças locais, as reuniões da Associação, se pode dizer que foram os fios de

sua tessitura. À proporção que os moradores eram levados a tomar consciência da auto-

afirmação quilombola, como estratégia definida para se reivindicar a posse da terra, o

referencial religioso, em si mesmo, foi sendo resignificado em função da conjuntura e das

demandas que se impunham em relação à sobrevivência da comunidade. Tratou-se, enfim, de

um fenômeno, o qual se pode chamar de transição cultural de classe, pois o conjunto de

saberes e práticas adquiridas ao longo de experiências em situações de interação foi

transformado pela práxis coletiva implicando em mudanças na maneira como a classe se

percebia e agia.

Em Boa Vista, a ação dos pentecostais na mobilização da comunidade na luta pela

posse da terra, resultou na edificação da Associação. Com a eleição de Raimundo (Seu

Caipira) para presidente e de Nílton para vice, a instituição representativa deu início há uma

série de ações visando a melhoria de condições de vida das famílias locais. Durante seu

primeiro ano houve uma trégua com os grileiros garantindo-se o fortalecimento do grupo dos

associados.

A partir do segundo semestre de 2003, as agressões começaram a ocorrer.

Funcionários das olarias foram vistos destruindo roças, matando animais, invadindo casas e

agredindo fisicamente homens e mulheres na área. O fato para as agressões se deve quando o

Sr. Benedito (Pernambucano) resolveu passar uma cerca em frente à sede da Associação

alegando ser o dono daquela área. De posse de documentos que, segundo ele, garantiam-lhe a

propriedade daquelas terras, o empresário deu ordem aos moradores que não arrancassem a

cerca ameaçando-os com funcionários armados.

O seu Caipira relatou que nesse tempo os associados reuniram-se no meio da rua e

decidiram arrancar a cerca do grileiro. A ação resultou em brigas e discussões com os

funcionários das olarias sendo necessária a intervenção da polícia local. Ao final, a cerca foi

retirada e a Associação permaneceu firme. Contudo, as retaliações continuaram aumentando o

clima de tensão na comunidade.

O pacifismo cristão ensinado nas pregações dos cultos pentecostais foi substituído por

outro apontando soluções práticas para o conflito fundiário em decorrência da mudança na

visão social de mundo de alguns pentecostais, os quais mais tarde se afastariam da religião

para se dedicarem à luta pela terra. No instante em que a transformação religiosa teve uma

incidência positiva sobre a mudança de consciência política e às práticas coletivas do grupo

67

ameaçado, a religião pode ser considerada como um elemento propulsor da politização dos

posseiros. Contudo, o desenrolar dos acontecimentos que implicaram em situações de conflito

forçou um deslocamento do referencial religioso enquanto a base discursiva para a explicação

dos fenômenos da natureza e dos acontecimentos da vida social. No contexto da luta, as

significações religiosas foram vinculadas à busca coletiva de libertação, em múltiplas

dimensões. Assim, o exercício religioso passou a ser visto como uma opção consciente, livre

e, por conseguinte, passível de questionamento.

Os relatos de pentecostais que se afastaram da religião apontam para uma

interpretação destituída de referenciais religiosos acerca dos conflitos fundiários. A luta pela

terra assumia um caráter político. O sentimento de revolta compartilhado por Seu Raimundo e

Seu Sebastião - líderes dos grupos que resistem à expropriação - fez com que a conduta cristã

pautada pelos princípios bíblicos fosse substituída pela ação política, militante, na qual era

necessário configurar práticas de resistência que garantissem a sobrevivência das famílias,

mesmo que isso fosse de encontro à ética cristã. Além das lideranças outros moradores

afastaram-se da doutrina pentecostal. Entre eles estavam membros da Diretoria da Associação

e outros que apenas freqüentavam a Casa de Oração. Dos primeiros ouviu-se que a principal

razão para o abandono da religião foi a pressão dos grileiros sobre os mesmos. Eles foram

ameaçados e agredidos fisicamente. Por isso, se decidiram sair da comunidade e da Casa de

Oração com medo de maiores represálias.

Conforme o Sr. Pedro Saraiva, ele sofreu agressões físicas por parte dos empregados

das olarias; a casa foi invadida e a sua família duramente ameaçada. Segundo ele o dono de

uma cerâmica ofereceu-lhe uma pequena quantia pelo lote de terra que estava ocupando, mas,

prontamente recusada pelo agricultor que além de pentecostal era o segundo secretário da

Associação. Um dia ao se dirigir à delegada de Rosário para denunciar os abusos e agressões

cometidas pelos grileiros, seu Pedro foi repreendido por não apresentar provas materiais.

Indignado o agricultor tentou apresentar as marcas da agressão sofrida e acabou preso. Após

três dias de detenção, o agricultor resolveu sair com a família da comunidade, desligou-se da

Associação e foi morar em um bairro da periferia de Rosário.

Casos como esses foram freqüentes durante o mandato de seu Caipira mostrando que a

resistência na terra não poderia ser feita apenas com base na fé religiosa. Era preciso que os

posseiros tivessem outros instrumentos para lutar contra a violência dos extrativistas. Foi

neste contexto, que seu Caipira passou a solicitar a visita de representantes de Ongs que

68

trabalhavam com comunidades negras rurais, no Estado, para ajudar os moradores na luta pela

regularização de suas terras. A Aconeruq foi a primeira a se dispor em ajudar a comunidade

ministrando palestras acerca do movimento negro; a importância da identidade quilombola e

os benefícios assegurados no artigo 68. A partir daí, os associados apresentariam uma outra

postura em relação aos conflitos fundiários. Ao invés de uma resistência ofensiva, direta,

física, o grupo optou pela entrada no processo de regularização das terras, como

remanescentes de quilombo. Este processo seria colocado em substituição a um outro iniciado

e 2002 por seu Caipira visando apenas a desapropriação da área, tida como reserva

extrativista.

A consciência política dos associados foi, a partir daí, formada por elementos

destacados no discurso da Aconeruq, bem como no prosseguimento dessa prática por seu

Caipira. Agora, não eram somente posseiros, pentecostais, mas remanescentes de quilombo,

cidadãos de direito. Em resumo, o deslocamento do referencial religioso foi um processo que

ocorreu sob múltiplas formas, em função da reconfiguração da ação dos pentecostais, do

discurso empreendido pelas ongs e pelas lideranças locais a favor da construção de uma nova

identidade: a identidade quilombola. O contexto para estas mudanças é marcado pelo aumento

das tensões entre grileiros e posseiros.

Analisando as transformações culturais com base nos relatos de ex-pentecostais que

deixaram a Casa de Oração, mas continuam a viver na comunidade, se destaca um fato

interessante - a conversão do Sr. Benedito (Pernambucano) ao pentecostalismo. Este fato

causou um impacto nos membros daquela congregação que viam com desconfiança a atitude

do grileiro. Conforme relata seu Caetano, desde que a igreja era feita de palha, o

Pernambucano tentou derruba-la duas vezes. Numa dessas, a mobilização dos fiéis para

defender a instituição resultou na formação da Associação. As ações de violência praticada

pelos empregados e, até mesmo, pelos filhos do empresário despertaram medo e revolta nos

moradores de Boa Vista. Os conflitos que ocorriam ao longo dos anos só aumentavam a

aversão à presença das olarias.

No tempo que seu Benedito se tornou pentecostal, as pressões para expulsar os

posseiros haviam diminuído. Ele começou a freqüentar a Igreja sede da Assembléia de Deus

em Rosário junto com suas três filhas. Para D. Maria Ribamar – esposa de seu Nilton –

durante um tempo o Pernambucano esteve de caso com uma das meninas da comunidade com

a qual mantivera relações sexuais ilícitas. Este fato o afastou da Igreja levando o Pastor da

69

Congregação sede a vir lhe visitar semanalmente para aplicação de disciplina e

aconselhamento cristão. Além disso, o grileiro deveria passar a freqüentar a Casa de Oração

para evitar maiores constrangimentos.

Desde então alguns membros deixaram de ir aos cultos e participar das atividades

promovidas pela instituição. Dos que se afastaram, nem todos tinham vínculos com a

Associação. Muitos deles viam na conversão do empresário uma forma dele se aproximar da

comunidade para depois tentar desmobilizá-la. Isso acarretou em relações conflituosas entre

os pentecostais que permaneceram na igreja e o restante da comunidade que passou a chamá-

los de traidores. Com a saída de vários membros, a Casa de Oração foi ficando sem os

recursos obtidos com as doações voluntárias dos fiéis.

Diante das dificuldades financeiras da Casa de Oração, Pernambucano passou a fazer

doações mensais volumosas que pudesse custear a manutenção do lugar. Com a saída do

dirigente, a sua esposa assumiu o cargo. D. Maria Ribamar começou a desenvolver uma série

de atividades (cultos ao ar livre, ensaios de corais, peças teatrais, celebrações) em parceria

com as congregações vizinhas objetivando a conquista de novos membros. De posse dos

recursos doados pelo empresário fiel, a dirigente conseguiu atrair uma grande quantidade de

jovens mulheres para a congregação. Até as filhas do seu Benedito passaram a se congregar

em Boa Vista.

Com exceção dos pentecostais da Casa de Oração, a comunidade até hoje reage à

presença dos donos de olarias e da Pedreira Anhanguera naquelas terras. Contudo, a luta

esfriou depois que seu Caipira teve sua casa incendiada por funcionários de uma das

cerâmicas resultando no seu afastamento da região. O vice-presidente, Nilton de Assis

Moreira, conseguiu um emprego em outro município, abandonou o cargo de dirigente e só

aparece na comunidade a cada quinze dias. Sem direção a Associação está desativada e boa

parte dos sócios saiu da comunidade à procura de novas terras para o cultivo, e outros, para

bairros da periferia da capital São Luís.

A Casa de Oração passou por modificações em sua estrutura graças aos donativos dos

novos membros. Mesmo sem um dirigente nomeado pela Igreja sede, a instituição desenvolve

suas atividades sob o comando de D. Maria Ribamar, apoiada por algumas senhoras e por

filhas de seu Benedito.

Compreendeu-se então que a ação dos pentecostais trouxe mudanças não só no

comportamento dos fiéis, mas, sobretudo nas relações entre estes e os demais grupos da

70

comunidade. Consequentemente, o enfraquecimento daquele grupo religioso deveu-se –

dentre outros fatores – à sua própria atitude de mobilização dos posseiros para a luta pela

posse da terra, transformando gradualmente a visão social de mundo dos sujeitos engajados

no processo de resistência, colocando paralela à fé religiosa, uma consciência política.

71

5. CONCLUSÃO

A análise do processo de luta pela posse da terra em Boa Vista, objetivou apresentar

algumas considerações acerca do processo de construção da identidade étnica, bem como os

conflitos internos decorridos durante o período que fora definido para este estudo. Essas

questões surgiram quando se efetuava a pesquisa de campo, colhendo os depoimentos dos

sujeitos afetados pelas transformações sócio-culturais, no momento em que se dava o avanço

das empresas extrativistas na área.

A identidade quilombola reivindicada por um grupo de posseiros, que na maioria são

recém-chegados à comunidade, foi o foco da discussão no primeiro capítulo. As entrevistas

realizadas com os indivíduos que faziam parte do referido grupo, denotaram em quase todas,

um conhecimento forjado pelos interesses das lideranças acerca do artigo 68, como os

“remanescentes de comunidades quilombolas que estejam ocupando suas terras”. Nesse

ponto, a maneira como trabalharam as lideranças locais com difusão deste discurso fez toda

diferença no resultado da mobilização dos moradores. Para estes, o fato de estarem habitando

em terras que foram ocupadas por ex-escravos era suficiente para garantir a titulação das

terras; isso é expresso na frase citada por seu Sebastião ao narrar os acontecimentos que

determinaram a saída das famílias de remanescentes que ainda habitavam em Boa Vista.

Segundo o agricultor, “como os antigos preto da Boa Vista foram expulsos da comunidade,

agora os ‘preto somo nós’ que continuamos lutando”.

A concepção que os posseiros têm da terra, é que aquele a faz produzir pode ser

considerado como o seu proprietário. O direito se legitima pelo trabalho sobre a terra bruta. O

sinal de ferro é a marca do machado que derrubou a mata, desbravou e amansou a terra,

incorporando nela o trabalho duro de quem primeiro nela trabalhou. O tempo de ocupação da

terra para os posseiros define tanto a propriedade, quanto o trabalho empreendido. Esta noção

entrou em choque com a versão capitalista de propriedade privada da terra, adquirida por

meio da compra com registro em cartório.

Os posseiros crêem no poder do acordo verbal, por este ser um instrumento

comumente usado na jurisprudência camponesa na regulamentação das relações sociais.

Contrapõem-se, então, um direito gerado pelo dinheiro e um direito gerado pelo trabalho. No

ponto de vista do primeiro, a ocupação livre da terra pelo trabalhador livre e pobre, que não

possui um documento de propriedade, é um crime, uma violação do direito de propriedade.

72

Do ponto de vista do segundo, a sobreposição dos direitos de propriedade aos direitos do

trabalhador é um roubo, um crime contra a condição humana.

Como a luta passou a se dar no campo jurídico, o trabalhador rural recorre aos

instrumentos legais que lhe parecesse acessível. Com a indefinição acerca dos termos do

artigo 68, a identificação das comunidades de remanescentes quilombolas apresenta lacunas

que dão acesso para populações rurais buscarem a auto-afirmação étnica, na tentativa de

garantirem sua subsistência a partir da terra que estão ocupando.

Dessa forma, deixou-se em aberto uma questão: apesar da comunidade Boa Vista ser

hoje ocupada por agricultores vindo de outras áreas, isso não apaga o seu passado histórico;

além disso, o tempo que estes sujeitos ocuparam este território permitiu-lhe construir um novo

modo de vida compartilhado pelos grupos locais. Dessa forma, observando os problemas

gerados pela falta de uma reforma agrária no Brasil, será que esta forma de titulação das terras

pode ser aplicada também para estes camponeses, sabendo que o campesinato livre é parte do

processo histórico de constituição da nossa sociedade? Que critérios podem ser estabelecidos

para esta parcela social?

Todo o trabalho de organização da resistência em Boa Vista, envolvendo os conflitos

com os extrativistas, a construção da Associação de Pequenos Agricultores Rurais, e o

abandono do poder público local, demonstra a capacidade que os camponeses têm de

mobilizar uma ação elaborada contra a ameaça de expropriação. Isso fica claro, quando seu

Caipira chega na comunidade e toma consciência da situação de exploração e violência em

vivem os moradores; desde então, a ação movida pelo agricultor visou a unidade das famílias

para o fortalecimento dos habitantes diante dos conflitos.

A pedagogia do contato pessoal, os contatos com os advogados, promotores,

ambientalistas e organizações não-governamentais defensores da causa camponesa, foram

algumas das estratégias adotadas pelo líder comunitário para aglomerar os moradores de Boa

Vista em torno de uma proposta de luta contra o avanço dos grileiros na área.

O resultado foi a reunião de 93 pessoas que em 2002 fizeram parte da Associação

recém – inaugurada. As conquistas de benefícios para as famílias associadas, melhorias na

comunidade como luz elétrica e a construção de um poço artesiano, atraía cada vez mais

membros para a entidade. Contudo, quando o assunto era luta pela terra grande parte dos

sócios não participavam. O medo de serem expulsos e até mesmo mortos pelos pistoleiros das

73

olarias, eram algumas das razões para a omissão nos debates sobre a situação fundiária da

comunidade.

Apesar das ameaças a Associação funcionaria por mais três anos. O processo de

regularização das terras encaminhado ao Incra e o contato com advogados na capital São Luís,

proporcionou uma certa esperança de que o sonho da terra própria estaria próximo. Porém,

quando veio a notícia de que o processo havia sido roubado, a frustração foi geral entre os

associados. Contudo, a luta permaneceu ainda que de forma dispersa – sem representantes. A

saída dos líderes da Associação a tornou inativa, mas o grupo liderado por seu Sebastião ainda

aguarda a decisão da justiça sobre a regularização de suas ocupações.

É inegável a capacidade de liderança exercida por seu Caipira. Mesmo sendo semi-

analfabeto, chegou a ir para Brasília à procura de auxílio na Fundação Cultural Palmares e

órgãos de defesa do meio ambiente. Tudo isso que ocorrera, é fruto das experiências vividas

pelos moradores de Boa Vista, os quais passaram mais de 15 anos em tensão com os

extrativistas, mas que encontraram no esforço e no entusiasmo de seu Caipira a esperança de

dias melhores.

Outro detalhe apontado no texto, foi a ação dos pentecostais. Destacou-se como os

laços de solidariedade e a comunhão entre os membros da Casa de Oração foram

fundamentais nas mudanças no modo de vida da comunidade. A desestruturação das relações

pacíficas entre os grupos religiosos, ao mesmo tempo que pôs fim ao culto-afro e causou a

revolta de alguns católicos, resultou no aumento do número de pentecostais que mais tarde

comporiam a diretoria da Associação criada por eles. A conversão de um dos donos das

olarias da região ao pentecostalismo foi outro acontecimento que trouxe um novo rompimento

dentro deste grupo, já enfraquecido depois da cisão entre os membros da Associação.

Ainda assim, a iniciativa dos pentecostais na organização da resistência foi também o

principal fator para as distorções do discurso da identidade quilombola, pois esta carregava o

estigma das práticas da religião afro, rechaçada pelo pentecostalismo. Exemplos como esse,

levaram a pensar acerca das implicações da relação entre religião e luta de classes. Como essa

questão não foi trabalhada no texto, fica então em aberto para outras pesquisas.

74

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ENTREVISTAS

Caetano Silva: Agricultor, aproximadamente 60 anos, ex-funcionário da Pedreira

Anhanguera, recebeu um lote de terra como indenização por ter sido demitido. Neste se

encontra a Casa de Oração.

Geraldo Almeida: Agricultor, 48 anos, remanescente de quilombo. Morador da Boa Vista.

Maria Ribamar: Dona de casa, 26 anos, esposa do ex-dirigente da Casa de Oração de Boa

Vista.

Luís Pretinho: Secretário de Assistência Social de Rosário, desde 2005.

Maria Bomtempo: Agricultora e dona de casa, aproximadamente 40 anos, viúva, moradora

de Boa Vista.

Nilton de Assis Moreira: Pescador, 28 anos, dirigente da Casa de Oração no período de 2002

a 2004.

Pedro Saraiva: Agricultor, aproximadamente 50 anos. Ex-membro da diretoria da

Associação de Boa Vista.

Raimundo Silva da Rocha (Caipira): Agricultor, 54 anos, presidente da Associação de

Pequenos Agricultores Rurais Quilombolas de Boa Vista, no período de 2002 a 2006.

Encontra-se refugiado no Pará.

Sebastião Almeida: Agricultor, 76 anos, morador mais antigo da Boa Vista. Seus

descendentes chegam a somar 15 famílias. Líder do grupo independente que resiste aos

grileiros.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A – MODELO DE QUESTIONÁRIO USADO NA PRIMEIRA VISITA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA PESQUISADOR: MARCELO SILVA NUNES

QUESTIONÁRIO 1. QUANTAS PESSOAS TÊM NA FAMÍLIA: _________ 2. QUANTOS MENORES DE 18 ANOS: ___________ 3. QUANTOS IDOSOS: _________ 4. NOME E IDADE DOS MORADORES: ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________

5. A QUE GRUPO RELIGIOSO PERTENCEM OS FAMILIARES: ( ) CULTO-AFRO ( ) CATÓLICOS ( ) EVANGÉLICOS 6. HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ MORA NA COMUNIDADE: __________ 7. COMO É A SUA RELAÇÃO COM OS OUTROS GRUPOS RELIGIOSOS: BOA _________________ CULTOS AFRO RUIM _________________ CATÓLICOS ÓTIMA _________________ EVANGÉLICOS 8. QUE TIPO DE TRABALHO VOCÊ TEM. ( ) PESCA ( ) ROÇA ( ) EXTRAÇÃO DE MANGUE ( ) OUTROS