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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA DENISE TORRACA SOARES LUDICIDADE DO PALHAÇO CONTRIBUIÇÕES E CONVERGÊNCIAS COM A DANÇA Salvador 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

DENISE TORRACA SOARES

LUDICIDADE DO PALHAÇO

CONTRIBUIÇÕES E CONVERGÊNCIAS COM A DANÇA

Salvador

2014

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DENISE TORRACA SOARES

LUDICIDADE DO PALHAÇO

CONTRIBUIÇÕES E CONVERGÊNCIAS COM A DANÇA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Dança, Escola de Dança,

Universidade Federal da Bahia, como requisito para

obtenção do grau de Mestre em Dança.

Orientação Professora Drª Lenira Peral Rengel

Salvador

2014

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por

qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa

desde que citada à fonte.

Sistema de Bibliotecas da UFBA

Soares, Denise Torraca. Ludicidade do palhaço contribuições e convergências com a dança / por Denise Torraca Soares. - 2014. 92 f.

Orientadora: Profª. Drª. Lenira Peral Rengel. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2014. . 1. Ludicidade. 2. Palhaços. 3. Dança. I. Rengel, Lenira Peral. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. III. Título. CDD - 793.3 CDU - 793.3

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DENISE TORRACA SOARES

LUDICIDADE DO PALHAÇO

CONTRIBUIÇÕES E CONVERGÊNCIAS COM A DANÇA

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre em Dança,

Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em de 2014.

Banca Examinadora

Lenira Peral Rengel – Orientadora

Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo

Universidade Federal da Bahia

Fátima Campos Daltro de Castro

Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo

Universidade Federal da Bahia

Demian Moreira Reis

Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é para mim um ato fundamental perante a vida. Numa caminhada que

na verdade já se estende por seis anos, são muitas as pessoas que compartilharam e

enriqueceram minhas reflexões.

Agradeço à minha orientadora e amiga, Lenira Rengel, pela paciência, dedicação

e sobretudo por sua generosidade. Registro a importância da convivência e das trocas

com Lenira, que muito me ensinou e contribui na busca por uma postura não dualista

com a vida.

Aos meus pais, Wânia e Carlos, que me deram o livre arbítrio na vida pessoal e

profissional. Em especial a meu pai que sempre acreditou no caminho da pesquisa

acadêmica e deu todo suporte necessário para estar aqui hoje, finalizando o mestrado.

Às queridas amigas e professoras, Líria Morays e Bárbara Santos, que

incentivaram a pesquisa e a participação no Programa de Pós-graduação em Dança.

À Márcio Vesolli por iniciar a caminhada comigo!

À João Lima pela generosidade e parceria.

À Jorge Silva, pelo incentivo, carinho e cuidado em momentos cruciais. Com

amor, lhe sou eternamente grata!

Aos meus colegas de mestrado, especialmente à Patrícia Cruz e Jussara Braga

por tornarem o caminho mais leve.

Aos integrantes da Paraboléu Cia Cênica. Gratidão à Ìcaro Ramos, Adriano

Junqueira, Jamile Souza, Omar Leoni, Tássia Peret, Paulo Amorim e Andréia

Fernandes.

Ao Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA, em especial às

funcionárias da secretaria Ana e Raquel, pela disponibilidade sem medir esforços.

Aos professores da banca, Fátima Daltro e Demian Reis.

Ao Grupo de Pesquisa Corponectivos em Dança.

À CAPES pela concessão de bolsa de estudos pelo período de 10 meses.

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SOARES, Denise Torraca. Ludicidade do palhaço contribuições e convergências com a

dança. 92 f. 2014. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Dança.

Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

RESUMO

Elabora-se neste trabalho uma compreensão de ludicidade como estados do corpo e uma

reflexão sobre a utilização de ambos conceitos em práticas de dança. Estados do corpo

são referenciados no entendimento de Antônio Damásio (2011), e impulsionada a

discussão de estado de ludicidade a partir do entendimento de Cipriano Luckesi (2005).

Adota-se o(s) ―estado(s) de palhaço‖ e os processos de formação nessa arte, como

referência e articulação. A escolha se justifica em decorrência das experiências de

formação em palhaço que permitem reconhecer ―estados de ludicidade‖ na pesquisa

artístico-pedagógica. Questiona-se de quais maneiras os estados ludicidade do palhaço

podem contribuir na construção de proposições de ludicidade para criação em dança. A

fim de esclarecer o entendimento de palhaçaria que referencia a pesquisa, apresenta-se

um breve panorama sobre palhaços formados pela tradição do circo e palhaços oriundos

de situações de aprendizado que se configuram como um processo mais recente. Uma

importante referência em metodologia de formação foi o trabalho desenvolvido e

registrado pelo Lume Teatro, junto ao aporte conceitual elaborado por Luis Otávio

Burnier (2009), uma vez que se configuram como um dos principais responsáveis na

disseminação de novas formas de ensino-aprendizagem desta arte no Brasil. A partir do

contexto gerado compreende-se a capacidade de jogar e a atitude profanadora como

componentes da ludicidade do palhaço, sendo então, esses dois componentes definidos

como eixos de pesquisa do palhaço para a dança, bem como se espera que resultem em

material profícuo para o desenvolvimento da dança como área de conhecimento.

Palavras-chave: Ludicidade. Palhaço. Dança.

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SOARES, Denise Torraca. Playfulness of clown contributions and convergences with

dance. 92 pp. 2014. Master Dissertation. Programa de Pós-Graduação em Dança.

Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

ABSTRACT

Is elaborated in this work an understanding of playfulness as body states and a

reflection on the existence of "playfulness states" in dance practices. Body states are

referenced in Antonio Damasio (2011), and boosted discussion of the playfulness states

from the understanding of Cyprian Luckesi (2005). We adopt the "clown state(s)" and

the processes of training in this art as a reference and articulation. The choice is justified

due to the experiences of training in clown for recognizing "playfulness states" in

artistic and pedagogical research. Question is how the playfulness states of clown can

contribute in building propositions of playfulness to create dance. In order to clarify the

understanding clown that references the research, presents a brief overview of clowns

formed by tradition of the circus and clowns come from learning situations that

constitute a more recent process. A important reference in training methodology was

work developed and registered by Lume Theatre together the conceptual contribution

prepared by Luis Otavio Burnier (2009), since it is configured as a major contributor to

the spread new forms of teaching and learning this art in Brazil. From the generated

context, it is understood the ability of playing and profaner attitude as components of

playfulness states of clown, and then these two components are defined as research axes

from clown for dance, and is expected to result in material fruitful for the development

of dance such as an area of knowledge.

Keywords: Playfulness. Clown. Dance.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 07

1. LUDICIDADE E ESTADOS DO CORPO NA DANÇA................................... 16

1.1 Sobre ludicidade: uma proposta para a dança........................................................ 16

1.2 Ludicidade como estados do corpo....................................................................... 20

1.3 Estado(s) de palhaço: a ludicidade como uma condição....................................... 38

2. DO PALHAÇO PARA A DANÇA....................................................................... 43

2.1 Palhaços – possibilidades de aprender................................................................... 43

2.2 Corpodançarino e Corpopalhaço............................................................................ 48

2.2.1 Corpopalhaço....................................................................................................... 49

2.2.2 Corpodançarino................................................................................................... 57

2.3 A capacidade de jogar, dança?............................................................................... 60

3. A PROFANAÇÃO COOPERATIVA.................................................................. 69

3.1 Jogo, Dança, Dispositivos....................................................................................... 69

3.2 Profanação no palhaço e na dança.......................................................................... 77

3.3 Atitude profanadora: gestando caminhos cooperativos.......................................... 80

CONSIDERAÇÕES.................................................................................................... 87

REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 90

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INTRODUÇÃO

O tema ―lúdico‖ se faz presente desde o ano 2000, quando iniciadas as primeiras

aulas de dança para crianças concomitantemente aos estudos no curso de Pedagogia na

Universidade Federal de Santa Catarina. A partir deste contexto, que envolve um

conjunto articulado de propostas teóricas para fundamentação da prática em sala de aula

e as trocas com outros professores, o lúdico foi apresentado como uma possibilidade de

abordagem metodológica para qualquer conteúdo, capaz de flexibilizar as situações de

aprendizagem, tornando-as mais prazerosas e interativas. É um tema bastante difundido

em diferentes áreas do conhecimento. Os autores utilizados para fundamentar as

discussões reincidem com frequência, sendo Johan Huizinga, com o livro Homo Ludens

(2000), uma das principais obras de referência. O tema aparece em maior parte

associado às práticas de educação e assim, é comum a abordagem teórica e o argumento

do ―lúdico‖ como atividade histórica e social reconhecida nas práticas humanas ao

longo de sua existência. Do mesmo modo ocorre no contexto da dança, onde a

apropriação e discussão sobre o lúdico se dá especialmente nos projetos pedagógicos de

escolas, espaços alternativos de ensino da dança ou nos planejamentos individuais de

professores, ou seja, atividades relacionadas à educação.

No âmbito artístico, o desejo de introduzir elementos circenses à criação em

dança, no período de formação técnica na Escola de Dança da Fundação Cultural do

Estado da Bahia - Funceb, conduziu a percepção do lúdico como uma característica

marcante e simbólica do universo circense. Que se mostra associado à fantasia, à

estética do espetáculo e as emoções provocadas pelo virtuosismo acrobático

conjuntamente ao que é chamado de estupidez e ingenuidade dos cômicos. O lúdico

tornou-se o principal motivador para a investigação de movimento em um processo de

criação em dança que, se entende hoje, como ponto de partida da pesquisa que

posteriormente deu origem ao projeto de Mestrado.

Em decorrência de uma inquietação com qualidades muitas vezes atribuídas

como características obrigatórias do lúdico como, por exemplo, ―bonitinho‖,

―engraçado‖ ou ―divertido‖, iniciou-se também uma discussão em torno das produções

em dança que se dizem lúdicas. Muitas vezes, essas produções vêm carregadas de

estereótipos, exibem coloridos e formas acompanhadas de uma linguagem de

movimento bastante óbvia. Em contraposição, no próprio universo infantil as

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brincadeiras podem apresentar diferentes intensidades de malícia e maldade. Deixam de

ser lúdicas por isso? Se não deixam, o que caracteriza a brincadeira infantil como

lúdica? Sendo assim, quais as qualidades de movimento que poderiam ser geradas ao

revisitar as brincadeiras de infância? E quais estruturas coreográficas poderiam emergir

desses modos de organização do corpo? São questões de pesquisa surgidas no tempo de

estudante de dança no Curso Técnico Profissionalizante da Escola de Dança da Funceb,

a partir da observação de uma das características marcantes do universo infantil e

lúdico: a imersão com que vivem suas experiências.

Perceber a intensidade de experiências que as brincadeiras proporcionam aos

seus participantes, numa espécie de imersão, desencadeou a opção no trabalho

coreográfico de torná-las o código central sobre o qual se desenvolveu o processo

criativo. O material trazido para a sala a partir da observação atenta do cotidiano era

reorganizado na lógica da brincadeira infantil. Por exemplo, um senhor que se

encontrava sempre no mesmo lugar da cidade, muito bêbado e ainda por vezes, com a

calça que vestia com grandes manchas umedecidas de urina. A experimentação de

movimento estruturada a partir das sensações provocadas por esta figura conduziu a um

tipo de brincadeira: o desafio de deslocar pelo chão tendo as nádegas como o único

ponto de apoio permitido. Esta foi uma célula de movimento que ao ser desenvolvido

originou uma entre as sequências coreográficas que compuseram Verso para ao Léu. O

nome do trabalho fazia referência à falta de pretensão, à brincadeira ou o verso que se

joga ao vento, ao léu, e que mais tarde originou o trocadilho que dá nome ao grupo

Paraboléu Cia Cênica1 que também se configurou como espaço de investigação desta

pesquisa. Por outro lado, quando a prática de investigação corporal era realizada nas

ruas, o tema principal era a subversão. Como subverter regras implícitas em cada

espaço?

Certa vez, em 2007, na Praça do Campo Grande, na cidade de Salvador - Bahia,

após brincar com as sequências elaboradas previamente nos ensaios, observando-se as

possíveis modificações que o ambiente sugere nas mesmas - em função de uma escada,

do tipo de piso, ou da interlocução das pessoas - tomou-se a decisão de participar das

atividades corriqueiras do lugar. As pessoas praticavam caminhada atlética numa pista

1 Paraboléu Cia Cênica é um grupo de investigação em dança coordenado por Denise Torraca (autora dessa

dissertação), que se configurou também como espaço de pesquisa do palhaço na dança durante os anos de

2012 e mais intensamente, em 2013.

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ao redor da praça delimitada no chão por pedras de mármore. Num primeiro momento

seguiu-se o sentido de fluxo das pessoas, mas isto pareceu um tanto tedioso, confortável

demais. Uma vez que o tema era a subversão, decidiu-se então, caminhar no sentido

contrário e esta decisão implicou em outra forma de relação com o espaço e com as

pessoas, provocando alterações na dinâmica de caminhada de todos, exigindo agilidade

para desviar uns dos outros, bem como causou a alternância (ou interrupção) do ritmo

de cada um. Logo, a subversão do sentido de fluxo se expandiu ao modo de caminhar, e

assim, desenvolvemos uma brincadeira em que, sentados no chão, com as pernas

flexionadas, as pontas dos pés balançavam de um lado ao outro, junto ao balanço do

corpo com deslocamento para frente. Algumas pessoas demonstravam indiferença, mas

grande parte registrava no semblante a reprovação, o descaso e aparentemente até certo

repúdio. Visivelmente a atitude causava incômodos no contexto de uma praça tão

organizada e pode-se dizer, até higienizada, no sentido de uma manutenção da ordem

social e, literalmente, da limpeza do ambiente ser muito diferenciado do restante da

cidade. No entanto, quando em ambientes mais abertos e com maior circulação de

pessoas, era muito comum a aproximação de moradores de rua e bêbados em busca de

alguma forma de diálogo que, por vezes, parecia ainda causar algum tipo de

identificação. As descobertas e inquietações eram levadas novamente para a sala de

ensaio possibilitando outras percepções sobre o material já construído, e o

desenvolvimento de novas sequências de movimento.

Por necessidade da prática como educadora, de aprofundar o conhecimento

sobre a questão e buscar respostas às inquietações, a pesquisa sobre o lúdico revela

temas correlacionados como a história das brincadeiras, heranças africanas, holandesas

e portuguesas nas brincadeiras e jogos brasileiros. Em consequência, uma forte

indagação emerge da associação entre pesquisa bibliográfica e prática cotidiana: o

lúdico só é possível quando há brincadeiras e jogos? Esta é a pergunta que perpassa toda

a pesquisa, assim como os dois anos de experimentação em sala de aula e ensaio,

concomitantes ao estudo de mestrado, por vezes sem encontrar respostas. Certa vez,

uma aluna idosa apontou a ideia de que qualquer atividade pode ser lúdica, a depender

de como olhamos e nos relacionamos com ela. Estaria então, falando de um tipo de

atitude? O lúdico pode ser uma atitude? A aluna apresentou sabiamente, a nosso ver e

na argumentação deste trabalho, uma reflexão que constitui agora um dos argumentos

de pesquisa: a ludicidade como estados do corpo, que ela nomeou como uma atitude.

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A partir destas questões, o entendimento de lúdico difundido no senso comum é

problematizado como uma das consequências do pensamento dualista mente/corpo, que

subsidia a organização das práticas educativas e pelo qual, pode-se afirmar, somos

educados desde a infância. Compreendemos que é este entendimento de corpo e

ludicidade que comumente fundamenta nossas práticas educativas e artísticas, quando

não há um contato com espaços de reflexão crítica sobre o assunto. Todavia nos

restringiremos à discussão de aspectos que fortalecem a possibilidade de um olhar

menos estigmatizado e superficial sobre a ludicidade.

A continuidade da pesquisa bibliográfica mostra que, de modo geral, os

argumentos e referências sobre o lúdico advêm das áreas de educação, psicologia,

psicomotricidade, história e sociologia. Quando encontrados de modo a relacionar-se

com uma prática de dança, os mesmos argumentos são apenas deslocados para outro

contexto e se restringem em grande parte às discussões sobre ensino da dança. Não

encontrando até o momento produções acadêmicas que conceituam ou relacionam a

ludicidade aos processos cognitivos do corpo e a partir deste ponto de vista, à

investigação e composição em dança. Desta forma, discutir ludicidade pelo olhar da

dança, com atenção aos processos do corpo no lugar das situações de jogo ou nas

atividades lúdicas, é a principal mudança de perspectiva proposta nesta pesquisa com o

argumento de que esse deslocamento do olhar pode possibilitar novas abordagens de

trabalho com o tema, específicas para esta área de conhecimento.

Em convergência com os objetivos de pesquisa, encontra-se uma questão

apresentada por Luckesi (2005) que contribui para redimensionar a discussão: ―que

efeitos a atividade lúdica produz na pessoa que a vivencia?‖ (LUCKESI, 2005, p.1). A

partir desta questão o autor diferencia sua abordagem das que são feitas pelos estudos

sociológicos, etnográficos, históricos ou descritivos sobre o tema, que se concentram

nas atividades. Luckesi (2005) propõe um entendimento que distingue a atividade lúdica

como o fenômeno vivenciado por pessoas, enquanto a ludicidade se caracteriza como

um fenômeno que ocorre internamente à pessoa, e assim desenvolvemos a discussão

inicial da pesquisa que propõe ludicidade como estados do corpo. Abordado aqui em

convergência com os estudos de Antônio Damásio (2011), neurocientista que se dedica

às questões da consciência e aborda seus diferentes níveis de complexidade,

contribuindo para a compreensão dos modos de organização do corpo e seus estados,

bem como para a reflexão da ludicidade como um acontecimento do corpo. A questão

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apresentada inicialmente sobre as abordagens do lúdico nas práticas de dança é então

reformulada: se jogos e brincadeiras são comumente utilizados quando o objetivo é

torná-las lúdicas, é possível reconhecer em dança práticas que proporcionam ludicidade

aos seus participantes sem o seu uso?

O capítulo um discute abordagens do lúdico em dança tanto em relação aos

processos de ensino-aprendizagem como em relação a processos criativos, para o qual

se direciona com maior ênfase apresentando alguns exemplos. Contudo, consideramos

que processos criativos em dança também se configuram como processos de ensino-

aprendizagem, uma vez que pressupõe relações de troca de conhecimento. Constitui-se

o entendimento da ludicidade como estados do corpo, e a proposta de sua abordagem

em dança é elaborada a partir das experiências com processos de formação de palhaço.

Organizada a partir de Damásio (2011) encontramos em Silva (2012, p. 35) uma

definição de estados corporais como as mudanças nas condições gerais do corpo a partir

de acionamentos químicos e neurais. Argumentamos então, que todo o corpo é afetado

de forma ampla em diferentes níveis e, portanto, precisamos compreender os níveis de

complexidade da consciência juntamente aos estados do corpo a fim de reafirmar

também o conceito de corponectivo (RENGEL, 2007). Diante das reflexões sobre

ludicidade e estados do corpo, o conhecimento do denominado ―estado de palhaço‖

através de cursos de iniciação e oficinas, permitiu a elaboração do argumento de que

―estado(s) de palhaço‖ são facilitados pela vivência de estados de ludicidade.

A apropriação de descobertas e pesquisas relacionadas ao modo de operar do

corpo e referenciados em pesquisas e estudos recentes se legitima atualmente como uma

prática comum e profícua da dança contemporânea na formulação de suas obras. Assim,

―estados de corpo‖ têm sido investigados no desenvolvimento de composições e

criações coreográficas. Entretanto, o que diferencia a presente pesquisa é a investigação

específica dos estados de corpo que permeiam os estados de ludicidade do palhaço.

Compreendendo que não é possível delimitar um estado corporal único, o esforço se faz

também em discutir e identificar os estados de corpo que pluralizam o estado de

ludicidade do palhaço.

O fato de a palhaçaria ter se perpetuado por muito tempo pela tradição oral - que

ainda se mantém como uma das principais vias de difusão desta arte - justifica o uso não

somente de bibliografias da área, mas também a valorização de relatos e depoimentos de

mestres, parceiros e professores que compõem a experiência de aprendizado em cursos

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e workshops. Teorias e discursos sobre o riso e a comicidade não serão abordadas, pois

o interesse de pesquisa está no que antecede a comicidade, nos princípios que tornaram

como se refere Reis (2013), o corpo ―o território privilegiado de descobertas‖ (REIS,

2013, p. 26).

Uma das chaves da arte da palhaçaria tem sido como extrair o riso das

plateias através da exposição de uma dramaturgia que parte da

realidade das vidas de seus praticantes: os palhaços. Talvez este seja

um dos motivos para que o próprio corpo desses artistas tenha se

tornado o território privilegiado das descobertas de sua comicidade.

(REIS, 2013, p.26).

Deste modo, interessa-nos o trabalho do artista, as formas de treinamento para

acessar um corpo risível, esse corpo disponível ao outro como possível objeto de riso. E

para tal, o capítulo dois apresenta variações de linhas de trabalho da arte do palhaço

juntamente com breves aspectos históricos, que contribuem para contextualizar o

trabalho metodológico de alguns mestres da palhaçaria a que se teve acesso ao longo de

seis anos de estudo, esclarecendo também o palhaço de referência nesta pesquisa. Deste

modo, dedicamos outra parte do capítulo dois ao aprofundamento de questões surgidas

no contexto da aprendizagem. A perspectiva aqui adotada considera a possibilidade de

descobrir-se palhaço através de processos de experimentação corporal, que objetivam a

construção de lógicas e modos de fazer particulares de cada palhaço. Este é mais um

fator que direciona a atenção aos modos de operar do corpo, implicando suas

singularidades, histórias de vida, ou seja, processos cognitivos. Essa linha de

investigação do palhaço foi difundida inicialmente pela escola de Jacques Lecoq, tendo

Luis Otávio Burnier e o Lume Teatro como um dos principais responsáveis pela

disseminação desta vertente na formação do palhaço brasileiro. Burnier (2009) se

dedicou ao estudo e criação de técnicas corpóreas específicas para a arte de ator, que

acabou por influenciar profundamente uma geração de palhaços brasileiros entre as

décadas de 1980 e 1990. No entanto, esta influência se restringe basicamente a pesquisa

do clown no contexto teatral, não exercendo muita influência sobre os palhaços de circo.

A partir da análise deste contexto se configura a delimitação de pesquisa dentre os

palhaços brasileiros, onde se faz a observação de que o uso de jogos e brincadeiras tem

papel importante nos processos de formação e treinamento, com a função de possibilitar

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o conhecimento dos estados de ludicidade e restituir a capacidade de jogar, definida

como um eixo de pesquisa para a dança.

O capítulo três articula o conceito de profanação de Giorgio Agamben (2007),

no qual o jogo é integrado à discussão como uma nova dimensão do ―uso‖ que

especialmente as crianças conferem a humanidade. De tal modo, se reconhece a

profanação no palhaço por sua capacidade de jogar com aquilo que, em geral, tornamos

socialmente indisponível, separado à esfera privada. Compreendemos então, a

profanação como uma possível atitude na palhaçaria que em convergência com Kásper

(2004), constitui a potência política deste artista. Potência, compreendida como

capacidade de agir, de afetar e ser afetado pelo outro (KÁSPER, 2004) e política,

porque a atitude profanadora se configura como um contradispositivo (AGAMBEN,

2007). Ao considerá-la como ignição dos estados de ludicidade do palhaço a atitude

profanadora foi definida como o segundo eixo de pesquisa dos estados de palhaço para a

dança. Associada aos estudos de Tomasello (2010), desenvolvemos o argumento de que

com a atitude profanadora o artista deste ofício coopera na cogeração de modos de

existência, o que faz dela uma atitude também cooperativa.

A pesquisa se propõe a articular conceitos e reflexões sobre estado(s) de palhaço

na dança, porém é necessária a superação de alguns termos que induzem a

entendimentos dualistas ou dicotômicos tanto na bibliografia quanto nas referências de

oralidade dos cursos. Entretanto, não se trata de criar oposições conceituais e nem

mesmo de uma análise aprofundada sobre os discursos, mas de problematizar noções e

entendimentos que os termos geram, bem como de tornar mais claro ao leitor o

enraizamento dualista de nossa educação.

É neste sentido que percebemos também as contribuições dos estudos de

Damásio (2000, 2011). São esses estudos que nos permitem dar novo contexto aos

termos utilizados há muito tempo em diferentes práticas artístico-pedagógica, a fim de

alcançar formas de diálogo e condução das atividades que contribuam para a percepção

por parte dos participantes acerca desta problemática de como o corpo, o próprio corpo,

ou seja, a própria pessoa, de fato é.

Ao definir a capacidade de jogar e a atitude profanadora como componentes da

ludicidade do palhaço para a investigação em dança, estamos gestando um novo

caminho uma vez que se configura como uma proposição e entendimento específicos

desta pesquisa sobre uma das formas de conceber a palhaçaria.

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O palhaço brasileiro, segundo relato dos autores estudados, é ainda pouco

pesquisado no contexto acadêmico do país, especialmente no que diz respeito aos

processos de formação. Uma das maiores referências brasileiras na articulação da

prática artística com a produção teórica e acadêmica é o ―Lume Teatro‖, assim como

sua metodologia de formação em palhaço, constituindo os argumentos que justificam a

escolha de mantê-lo entre as referências principais de uma pesquisa em dança.

A bibliografia apresentada na ―Encircopédia‖ de Mavrudis (2011) não traz

literaturas estrangeiras, pois a autora se propõe a elaborar um Dicionário do Circo no

Brasil, fato que reforça o argumento de que a pesquisa e sistematização de dados da arte

circense no Brasil é um processo recente. Interessante também observar que na

bibliografia apresentada pela autora as produções mais antigas datam do final da década

de 1970 e início de 1980, concentrando quase metade das referências bibliográficas na

virada do século XX e primeira década do século XXI. Reis (2013) também apresenta

revisão bibliográfica a partir da qual se pode observar que a produção brasileira na área

aumentou significativamente a partir do ano 2000, embora tenhamos produções de

grande reconhecimento e importância em períodos anteriores. Deve-se perceber também

que alguns autores do teatro são bastante utilizados como referência de leitura e

pesquisa para o trabalho técnico de palhaço que está sendo referenciado. Esses autores

significam uma ampliação no período histórico de produção bibliográfica, mas ainda

assim, suas produções se concentram nas três últimas décadas do século XX. Período

que coincide com o movimento das novas abordagens citado por Reis (2013, p. 47).

Na prática artística de dança já vem sendo desenvolvida uma pesquisa que leva o

palhaço para a cena em suas construções coreográficas. Mas como trabalhar o palhaço

em dança sem que sua figura esteja necessariamente em cena? Quais as contribuições

que o treinamento e suas bases técnicas podem trazer para processos de criação em

dança? São questões que surgem não somente da pesquisa bibliográfica e da intersecção

com as teorias do corpo, como também de uma necessidade emergente do fazer em

dança. Constitui-se um desafio de elaborar, questionar e sobrepor caminhos, uma vez

que o trabalho articula temas artísticos sobre os quais a pesquisa acadêmica ainda é

recente no Brasil. Cabe ressaltar também, que a ludicidade compreendida como um

acontecimento do corpo, além de uma discussão recente, é pouco abordado no contexto

da dança.

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A pesquisa apresenta, portanto, dois aspectos distintos que podem ser

considerados como um avanço no estado da arte da questão: o primeiro diz respeito à

pesquisa teóricoprática de abordagem da ludicidade do palhaço em dança, e o segundo,

à proposição de um entendimento de ludicidade específico para a área da dança. Embora

o objetivo inicial tenha sido investigar desdobramentos artísticos do palhaço em dança,

o fato de a pesquisa ter sido realizada concomitante à prática de sala de aula com a

Paraboléu Cia Cênica, tornou inevitável perceber e refletir sobre as influências deste

estudo no âmbito pedagógico. Desenvolver e descobrir o potencial de palhaça envolve

uma mudança de perspectiva com que se olha o mundo, um deslocamento do ponto de

vista desde as relações pessoais e profissionais até do funcionamento da sociedade, dos

padrões que replicamos muitas vezes sem reflexão crítica. É a ampliação da dança na

palhaçaria e da palhaçaria na dança em processos cogeradores, praticados e pesquisados

num mesmo corpo.

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1. LUDICIDADE E ESTADOS DE CORPO NA DANÇA

1.1 Sobre ludicidade: uma proposta para a dança

Em processos didáticos ou criativos de dança, comumente o lúdico aparece

relacionado aos jogos e brincadeiras que compõem momentos de descontração ou ainda

de aquecimento e preparação para uma atividade que se segue. Assim, diferentes formas

de jogo são incluídas quando se quer tornar uma atividade lúdica, divertida e prazerosa,

afirmando, de certo modo, os dois como práticas quase que indissociáveis e diretamente

relacionadas ao divertimento.

No dicionário (Dicionário de Português On Line – Michaelis, 2012) encontram-

se significados que convergem, em primeira instância, com suas aplicações nas práticas

corporais: ―Lúdico: 1- que se refere a jogos e brinquedos ou aos jogos públicos dos

antigos; 2- jogo ou divertimento; recreativo‖. No entanto, jogo no dicionário, não se

relaciona a este último de modo direto, mas inclui definições semelhantes: ―Jogo: 1-

Brincadeira, divertimento, folguedo; 2- Divertimento ou exercício de crianças, em que

elas fazem prova da sua habilidade, destreza ou astúcia. 3- Conjunto de regras a

observar, quando se joga; Cada tipo de jogo propõe uma forma de uso do espaço, do

ritmo e de relação entre os participantes‖.

Uma vez que a improvisação é um modo de fazer no qual a dança é criada no

momento em que acontece e por isso exige do dançarino a perspicácia para soluções

imediatas, ela pode ser um exemplo para essa questão proposta. Certas práticas de

improvisação, muitas vezes testam habilidades, ao mesmo tempo em que a astúcia para

resolução de problemas. No entanto, pode-se também criar restrições pela delimitação

do espaço, da forma de relação entre os participantes, pela imposição de regras ou a

criação de acordos, entre outros fatores que podem aparecer de modo diverso em

diferentes práticas de dança. Nessa perspectiva, essas práticas parecem de fato aderir

características de jogo, pois acordos são criados entre duas ou mais pessoas e operam de

modo semelhante às regras.

Importante esclarecer que o jogo agora em questão, é aquele no qual se

determina anteriormente a seu próprio acontecimento formas específicas de organização

do espaço, do tempo ou ritmo, bem como suas regras. Diante deste panorama inicial e

lembrando que as práticas de dança não ocorrem distanciadas de nossos modos de

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compreensão de mundo, a primeira questão que apresento é: a existência do jogo se

configura como uma premissa do lúdico nas práticas de dança?

Em Pinho (2009) o jogo é entendido como lugar de conflito. Assim, para a

autora, qualquer questão proposta como um conflito a ser desenvolvido, pode trazer à

tona uma forma de jogo em dança. No trabalho realizado em sua pesquisa de doutorado,

os jogos foram construídos em procedimentos de experimentação e improvisação em

dança, que lhe permitiram identificar pontos de conflitos pessoais e/ou coletivos entre o

grupo com o qual trabalhava. A partir da identificação dos conflitos, foram criados

esboços para estruturas de jogo que novamente foram experimentados e só então,

sistematizados como roteiro de cena. Interessante perceber através dos relatos deste

estudo que os jogos a que se refere foram construídos na experiência do grupo e não

houve regras pré-determinadas, advindas de jogos convencionais de nossa cultura.

Trata-se de jogos criados especificamente para a dança, naquele espetáculo, e que

implicam estruturas coreográficas abertas à improvisação. Não se trata, portanto, da

total ausência das regras, mas de uma forma específica de construí-las na experiência de

um grupo. No caso da improvisação em dança, quando são criados procedimentos que

devam ser respeitados e mantidos por tempo determinado - o espetáculo -

provavelmente esses procedimentos irão gerar restrições que funcionarão de modo

similar às regras de outro jogo qualquer. Apresenta-se assim, um primeiro aspecto que

aproxima noções de jogo às práticas de dança: a regra como uma forma de restrição.

Em algumas situações, o conflito insinuava-se no olhar, na respiração,

ou na atitude que se transformava, mas não era sustentado nas relações

desenvolvidas por caminhos divergentes do meu desejo, pautadas,

antes, pela busca da desenvoltura do corpo em movimento, do que por

suas motivações internas (PINHO, 2009, p. 74).

Aparece na fala de Pinho (2009) um indicativo da dificuldade dos intérpretes em

sustentar os conflitos surgidos na improvisação em consequência de uma exacerbada

preocupação com a desenvoltura no movimento, deslocando o foco da proposta. Torna-

se visível a preocupação da autora e coreógrafa em desenvolver um tipo de

movimentação e estrutura pautada em motivações internas, pessoais, que para ela se

evidenciavam nos conflitos. Suscita também, a reflexão de que se o conflito é o lugar

em que o jogo acontece, sustentá-lo é o desafio de manter-se no jogo até que se

encontrem soluções para finalizá-lo. Contudo, se criam fluxos entre as restrições

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estabelecidas para a improvisação e a liberdade dos participantes nos modos como se

relacionam com tais restrições. Os fluxos a que nos referimos nesta pesquisa são

cruzamentos de informações – próprias da situação e próprias da pessoa – que permitem

ao sujeito manter-se em estado de conflito, ou seja, conectado ao jogo. Assim,

evidencia-se que o olhar da pesquisadora já não está mais sobre a estrutura, e sim está

direcionado à pessoa que vivencia tal experiência. Se sustentar o jogo é papel de quem o

pratica, há algo que diz respeito à própria pessoa, ao corpo e seus modos de organização

e não mais a composição e as características do jogo.

A questão colocada por Luckesi (2005) e referenciada na introdução - ―que

efeitos a atividade lúdica produz na pessoa que a vivencia?‖ - notavelmente se aproxima

da questão que a prática desenvolvida por Pinho (2009) suscita. Todavia, se analisarmos

cuidadosamente a proposta desta última, embora efetue um deslocamento do sentido

convencional de jogo e desvie o foco da atividade para os intérpretes, ainda se esmera

em estruturas organizativas que também denomina por jogo. Portanto, continuam

existindo restrições que operam como outras regras quaisquer.

Luckesi (2005) propõe o entendimento de ludicidade em distinção à atividade

lúdica e ao jogo, que por sua vez, compreende como um fenômeno vivenciado por

pessoas. Observa que os jogos são certamente tipos de atividade lúdica, mas que nem

toda atividade lúdica será de fato um jogo e por este motivo aparecem de forma distinta

na escrita do autor. A ludicidade, todavia, é o fenômeno que ocorre à pessoa que

vivencia a atividade lúdica. Ela existe a partir de uma experiência lúdica, que ocorre em

um contexto determinado, coletivamente ou não, e que proporciona sensações de prazer.

Deste modo, ludicidade é compreendida como o estado interno do sujeito (LUCKESI,

2005), pois as sensações provocadas pela experiência lúdica somente poderão ser

vividas por cada pessoa. Contudo, é evidente nos argumentos do autor que quando se

refere a estado interno, está se referindo ao corpo e seus processos. Ou seja, ludicidade

é aquilo que ocorre nos/com corpospessoas2 quando envolvidos em uma experiência

lúdica. Há aqui, uma diferença sutil e importante de ser afirmada em relação aos termos

atividade e experiência lúdica. Quando utilizado o termo experiência se ampliam as

perspectivas daquilo que pode proporcionar estado interno de ludicidade, enquanto o

2 Rengel (2012) esclarece que corpo não é algo abstrato, que uma pessoa possui. A pessoa é o próprio corpo e

assim, propõe o uso do termo ―corpopessoa‖, no lugar de ―corpo da pessoa‖, como forma de afirmação deste

entendimento.

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termo atividade se restringe ao que é propriamente reconhecido social e culturalmente

como tal. Desta forma, se reconhece a possibilidade de outras experiências de vida, que

não se caracterizam como uma atividade, se tornarem lúdicas por outra via, a via das

sensações e dos estados que provocam em quem as vivencia.

Pode-se considerar que Pinho (2009) propicia aos intérpretes um estado de

ludicidade, porém ainda a partir de estruturas de jogo. Apontam-se então, dois modos de

desenvolvimento de estados de ludicidade que reconhecemos habitualmente em dança:

o uso de jogos e práticas de improvisação. Desta forma, reconhecemos que não é difícil

deparar-se com práticas de dança que proporcionam estados de ludicidade a seus

participantes, porém ainda não é comum encontrar propostas que utilizam desta

concepção de ludicidade – como estado de corpo - para a composição e criação em

dança.

Diante da inquietação gerada pela prática em dança, fez-se a opção de vincular a

pesquisa aos estudos da arte do palhaço que vem sendo desenvolvidos no percurso de

aprendiz nos últimos seis anos. Esta opção se deve ao fato de reconhecer no palhaço,

estados de ludicidade não dependentes de estruturas pré-determinadas como ocorre no

caso da utilização de jogos. Estados de ludicidade podem estar relacionados a

brincadeiras e jogos, mas não se restringem a isso e nem ao universo infantil. O

percurso de aprendizado para ser palhaço é desta forma, permeado por muitas

brincadeiras e situações de jogo que se configuram como estratégia metodológica para

compreensão do estado de palhaço. Porém, desenvolver as estratégias para sustentá-lo é

o desafio do artista que se propõe a este ofício.

Lima (2012), referência no aprendizado da palhaçaria, argumenta sobre ―a

ligação profunda entre os princípios da palhaçaria e da ludicidade‖ (LIMA, 2012, p. 48).

Segundo seus estudos e pesquisas realizadas no Curso de Especialização Em Ludicidade

e Desenvolvimento Criativo de Pessoas,

O estado de palhaço se assemelha ao estado lúdico, um estado de

inteireza, sem senso de julgamento, com o corpo e mente totalmente

envolvidos e atentos ao aqui e agora, atentos a tudo que acontece ao

seu redor, vivendo com sinceridade e alegria aquilo que se faz

obrigatório para o palhaço (LIMA, 2012, p. 48).

A partir das experiências de formação juntamente ao diálogo com mestres e

com os escritos sobre a palhaçaria, se define a ludicidade do palhaço como tema de

pesquisa que com suporte de teorias do corpo, acredita-se que contribuirá na

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sistematização de argumentos para sua abordagem na dança. Assim, se propõe

desenvolver o entendimento de ludicidade apresentado por Luckesi (1998, 2005)

associando-o a conceitos de corpo específicos dos estudos acadêmicos em dança e à

palhaçaria. Argumenta-se que é um modo de tratamento da questão que pode expandir

as possibilidades de experimentação, fugindo as abordagens que replicam um

entendimento que restringe ludicidade ao divertimento e similares.

1.2 Ludicidade como estados do corpo

O entendimento de ludicidade proposto por Luckesi (1998) distancia-se do uso

comum que atribui ao jogo funções terapêuticas, funções educativas e sociais discutidas

a partir de conceitos elaborados por autores do campo da sociologia, da história e da

cultura sobre atividades lúdicas.

Sem a intenção de apresentar uma configuração conceitual fechada de

ludicidade, Luckesi (1998, 2005) interessou-se em investigar o que a experiência lúdica

proporciona a seus participantes, o que ocorre internamente na pessoa que vivencia uma

experiência lúdica. No entanto, para fundamentar suas reflexões utiliza-se de autores da

psicologia que para compreender a experiência humana, subdividem-na em diferentes

dimensões e consideram que cada dimensão pode ser observada isoladamente, embora

atentem para o fato de que todas as dimensões coexistem e de que a compreensão da

pessoa de modo integral só será possível na observação da interação entre essas

dimensões. Desta forma aponta que a ludicidade, como propõe ser estudada e

vivenciada, abrange especificamente uma das quatro dimensões da experiência do ser

humano que é dimensão individual/interior, correspondente à dimensão do ―Eu‖

(LUCKESI, 2005, p. 5). A partir desta perspectiva determina aspectos que diferenciam a

atividade lúdica da ludicidade e assim, segundo o autor, a primeira caracteriza um

acontecimento externo que pode ser analisado em todas as dimensões do ser humano,

englobando tanto as que se relacionam unicamente a pessoa quanto as que relacionam a

pessoa ao coletivo ou ao contexto sócio cultural. Enquanto a segunda é de natureza da

―percepção interna da pessoa‖ (LUCKESI 2005, p. 6). O que em outras palavras quer

dizer que a experiência vivenciada por uma pessoa somente a ela pertence. As sensações

que uma experiência proporciona são internas, ocorrem no corpopessoa. O grupo não

sente, quem sente são seus integrantes. Um sentimento pode vir a se harmonizar em um

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grupo e desse modo, por ele ser partilhado, mas será sentido unicamente por cada um

dos participantes. E seguramente, de modo distinto em cada um, configurando

experiências pessoais. Entretanto, ―como separar o modo como algo é sentido por

alguém de tudo o que contribui para que esse algo seja sentido do modo como é?‖

(KATZ, 2005, p.119). O modo como algo é sentido está relacionado às propriedades

especiais, chamadas ―qualia‖, desse algo. Segundo Katz (2005), qualia são as

características qualitativas que nos fazem experimentar algo de um jeito e não de outro.

Deste modo, pode-se compreender que um sentimento é de fato um acontecimento do

corpo, compreendendo também que não se pode isolá-lo do ambiente e de suas

propriedades. Por exemplo, dançar no canteiro de uma praça pública. Os sentimentos

que ocorrem ao dançarino estão relacionados às qualidades desse ―algo‖ que é ―corpo

dançando no canteiro da praça‖. Tudo integra o ―algo‖ que induz um sentimento: corpo,

ação de dançar, o canteiro, a praça, o espaço público. Se uma dessas condições fosse

modificada, seriam modificados também os estados produzidos.

Embora os argumentos de Luckesi (2005) estejam aparentemente embasados por

uma perspectiva de experiência fragmentada, ao separar interno e externo, o modo de

organização do pensamento no decorrer da escrita do autor, permite compreender que

quando usa o termo interno, o faz como forma de se referir ao que ocorre no corpo e,

portanto, não necessariamente é sentido da mesma forma por todos, ou como ele mesmo

menciona pode não ser visível ao outro. O fato de não ser visível ao outro, a outra

pessoa que observa, envolve aspectos próprios dos acontecimentos do corpo, de seus

modos de organização enquanto ser vivo. O autor utiliza também de uma vertente da

neurociência que considera a divisão do cérebro em hemisférios direito e esquerdo,

sendo o primeiro o hemisfério da emoção, do afeto e da criatividade e o segundo, o da

racionalidade. Deste ponto de vista, ludicidade pode ser compreendida como

Tudo aquilo que tem a ver com esse universo de coisas que estimulam

a trabalham a partir do envolvimento dos dois hemisférios do nosso

cérebro, sendo acionados simultânea e integradamente, aproveitando-

se da racionalidade, na medida necessária para uma organização

otimizada das coisas sem cercear o potencial criativo ligado ao

hemisfério direito, o hemisfério da emoção, do afeto, da criatividade

(LIMA, 2013, p. 29).

Frente a essas questões, busca-se aprofundar a discussão situando-a no campo da

dança, e para isso são abordados conceitos de corpo que nos conduzem a um olhar sobre

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o mesmo um pouco diferenciado deste apresentado pelas teorias da ludicidade utilizados

por Lima (2013). As regiões e hemisférios do cérebro são conhecidos e considerados,

mas parte-se do pressuposto de que tudo opera de modo integrado em todos os seus

aspectos e que não há a possibilidade de compreender separadamente o racional e o

emocional de uma pessoa, isolando-a do ambiente ou fragmentando a experiência em

partes ou dimensões. Uma experiência é um todo, um conjunto.

Em Rengel (2007) o termo corponectivo ou corponectivar é utilizado como uma

tradução para a expressão embodiment, e desenvolvido conceitualmente a fim de buscar

uma solução para o entendimento dicotômico de corpo. Corponectivo se refere a

―situação de já estar conectado e em ato‖ (RENGEL, 2007, p.37). O que quer dizer que

a ação corpo/mente juntos não é então uma possibilidade, que ocorre em certas ocasiões

e outras não, mas é o próprio modo de estar no mundo e com ele se relacionar. Significa

a compreensão de mente e corpo trazidos juntos e não conectados, pois conectar implica

estarem antes, separados. Contudo, se assim entendermos, pensamento, ação e

movimento não podem ser compreendidos como operações cognitivas isoladas.

Pensamento e percepção não são também algo abstrato, que ocorrem primeiro em

alguma outra instância para depois tornar-se corpo, ou se corporificar, como alguns

autores têm traduzido o termo embodiment. Ambos são ações do corpo que implicam

atividade conjunta, no sentido mente/corpo juntos, abarcando seus aspectos químicos,

físicos e biológicos. Mas, se esse é o modo de operar do corpo, o que poderá ser então o

estado de plenitude? Ou ainda, que estados do corpo são esses que se diferenciam a

ponto de nos levar a afirmar que estamos inteiramente presentes em um momento e não

estamos no outro?

Segundo Luckesi (1998, p.2) ―o que mais caracteriza a ludicidade é a

experiência de plenitude que ela possibilita a quem a vivencia em seus atos‖. Há no

senso comum o entendimento equivocado de que uma característica básica da atividade

lúdica é ser divertida, porém como o próprio autor aponta, o aspecto fundamental da

ludicidade é o ―estado de plenitude‖ em que se vivencia uma atividade, que poderá ser

divertida ou não. Desse ponto de vista, o divertimento não é um pressuposto na

definição do que é ou não lúdico, o que ocasiona também reflexões em torno do que é a

atividade lúdica. Se a característica fundamental da ludicidade é o estado de plenitude e

o foco de compreensão é o estado interno, nem toda atividade socialmente identificada

como lúdica será de fato lúdica, ou seja, não necessariamente propiciará ludicidade a

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quem a pratica. Em uma conferência Luckesi (2013)3 trouxe um exemplo que esclarece

essa relação no cotidiano escolar. Quando é proposta uma brincadeira em dada situação

de aprendizagem e uma das crianças afirma não querer participar, e o professor de

imediato responde coagindo-a que é obrigatória à participação. O fato de participar por

uma imposição já distancia a criança da experiência de ludicidade, uma vez que ela

provavelmente não se envolverá de modo integral. No entanto, é necessário cautela

neste exemplo, pois a participação em uma atividade por livre escolha também não é um

pressuposto gerador de ludicidade no entendimento de Luckesi (2005), mas o caso

contrário pode interferir negativamente, gerando o que denomina por fragmentação da

experiência no lugar de um estado de plenitude. A experiência negativa por vezes está

associada a uma dor, uma memória desagradável ou algo similar, que significa na

prática uma possível limitação pessoal no envolvimento com tal experiência. Limitação

porque a reação comum do ser humano à dor é a de tentar cessá-la, e neste caso, com os

argumentos do autor, uma experiência negativa poderá proporcionar ludicidade se quem

a vivencia conseguir ultrapassar essas limitações – ou resistências – transgredindo sua

relação com os aspectos que a tornaram negativa. E isso pode ocorrer com o aprendiz de

palhaço, uma vez que ele precisa aprender a expor sua verdade, suas características

físicas, sejam elas boas ou ruins, contribuindo para a transformação dos sentimentos –

como a dor – provocados pelas mesmas. Em contrapartida, a sensação de prazer é então,

facilitadora da ludicidade, pois o ser humano tende a se envolver com maior intensidade

nas experiências que lhe proporcionam bem-estar. Importante deixar claro, que não

estão sendo desconsiderados os casos em que há predileção pela dor, mas se reconhece

que neles também há formas de prazer. Novamente, as sensações de plenitude e de

prazer relacionadas à experiência lúdica constituem os argumentos para considerar que

somente poderão ser vividas internamente pela pessoa, embora possam ter repercussão

no grupo quando no caso de uma experiência coletiva (LUCKESI, 2005). O fator que

determina se uma experiência é lúdica ou não, é interno no sentido do que é próprio de

cada pessoa.

3 Conferência exposta durante o VII ENELUD – Encontro Nacional de Educação e Ludicidade na cidade de

Salvador – Bahia, em fevereiro de 2013.

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Uma das vezes em que o grupo – Paraboléu Cia Cênica4 foi à rua vivenciar os

jogos que pratica em sala de aula como treinamento, observou-se uma incrível

ampliação das formas de fazer, especialmente de um dos jogos denominado ―bola

imaginária‖. O jogo é realizado em roda e cada jogador, quando sua vez, deve receber e

repassar a bola (imaginária) para outro jogador. Tendo a sala de ensaio como parâmetro:

estamos entre quatro paredes, num chão homogêneo e sem alterações de níveis, além de

não ter outras pessoas circulando. Treinamos a prontidão, a escuta do grupo, a

disponibilidade. Na praça, nos pareceu que todos esses aspectos foram intensificados

possibilitando o surgimento de novas jogadas com a bola, passando a incluir variações

de brincadeiras de bola que praticamos quando crianças. O surgimento de novas – ou

antigas – estruturas de jogo com a bola foi espontâneo e, ao que parece, foi facilitado

pela repercussão as atitudes individuais tinham no grupo. Também algumas pessoas

desconhecidas que praticavam suas atividades corriqueiras interferiram de modo a

estimular os processos de imaginação na brincadeira. Por exemplo, um senhor que em

intervalos regulares voltava a um banco próximo para fazer exercícios abdominais e

cruzava pelo meio da roda. Na primeira vez, ele se abaixou enquanto passava porque o

jogador ao seu lado estava recebendo a bola, como quem foge para não receber a bolada

na cabeça. Na segunda vez, coincidiu novamente da bola estar próxima onde ele

passava e então, repetiu a mesma ação e nos disse ―olha essa bola!‖. Atitudes como esta

fizeram o jogo ainda mais intenso provocando os participantes para a disponibilidade de

agir, à invenção, correr atrás da bola e envolver cada vez mais as outras pessoas que não

estavam formalmente inseridas na roda e, portanto, no jogo.

Luckesi (2005) considera que as histórias de vida de uma pessoa são de mesma

natureza da ludicidade e assim, justifica que uma mesma experiência produz sentidos e

reações diferentes em cada pessoa. A relação que cada um estabelece com um objeto ou

atividade com o qual entra em contato depende das referências que a pessoa tem ou não

sobre ele. Damásio (2011) afirma que ―a experiência pertence a cada organismo e a

nenhum outro‖ (DAMÁSIO, 2011, p.198). Histórias de vida são experiências, são

pessoais e únicas, implicam formas de relação com o mundo, fatores do ambiente e da

criação de cada pessoa, hábitos cognitivos decorrentes também de escolhas profissionais

e pessoais, integrando os processos de construção do conhecimento no corpo. De tal

4 Ver página 9.

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modo, pelo termo ―vivido‖ entende-se aquilo que ocorre no corpopessoa, e não por

meio do corpo como se este fosse apenas local de acontecimentos, mas o protagonista

destes acontecimentos. Os órgãos, os neurônios operacionalizam, elaboram,

metabolizam cada operação cognitiva (RENGEL, 2007).

Damásio (2000) apresenta a compreensão de estado interno como um resultante

de processos químicos e biológicos que ocorrem no organismo, com o propósito de se

manter estável em relação às variações do meio externo (DAMÁSIO, 2000, p. 54). Este

é considerado um mecanismo básico dos seres vivos, necessário à sobrevivência, e

existente em diferentes níveis de complexidade. Dois aspectos são importantes de serem

observados em relação a essa proposição: primeiro, a mais simples descrição do que

considera o estado de um organismo, já é apresentada em relação ao meio externo,

emergindo uma questão de fundamental relevância para iniciar a reflexão: alterações no

estado interno do organismo são relacionadas às alterações do meio externo, ou seja,

interno e externo são implicados de relações; segundo, os diferentes níveis de

complexidade em que o mecanismo de regulação interna ocorre nos seres vivos

relacionam-se com outra questão recorrente nos enunciados de Luckesi (2005): ―estado

de consciência‖. Embora pontuados de modo distinto, os dois aspectos são tão

inseparáveis quanto o estado interno de um organismo do meio externo com o qual se

relaciona. Sendo assim, serão elucidados de modo a compreender cada um

conjuntamente com suas implicações, denegando uma suposta ordem dos fatores. Esta é

uma perspectiva diferenciadora neste estudo: a busca por uma compreensão não

hierarquizada dos processos do corpo que pode contribuir na transformação da crença

de que alguns órgãos comandam e outros apenas obedecem numa relação de

passividade. O Capítulo dois apresenta mais exercícios que problematizam a questão.

Quando reconhecemos que o estado interno é resultante de alterações nos

processos do corpo - químicos e biológicos - estamos reconhecendo um modo de operar,

no qual diferentes funções são conjuntamente acionadas para cumprir um mesmo

objetivo. Damásio (2000) afirma que o mecanismo básico de regulação dos estados do

corpo em relação ao meio externo visa preservar as composições químicas como modo

de lhe assegurar a vida. No entanto, os modos de operar deste mecanismo variam de

acordo com os níveis de complexidade de cada ser vivo estando presente desde os seres

unicelulares. Esta compreensão é importante para que possamos avançar na

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diferenciação de estados, bem como esclarecer de que forma podemos ter, ou não,

conhecimento dos mesmos.

Quanto mais complexo o ser vivo, mais complexo será o mecanismo de

regulação dos processos que garantem a vida, envolvendo diferentes estruturas e

operações cognitivas. No caso do ser humano, esta estabilidade do meio interno não

somente corresponde à regulação da vida como está associada a mecanismos neurais

relacionados à existência do cérebro. Entretanto, o importante é perceber que há de fato

aspectos que pertencem ao meio interno e outros que pertencem ao meio externo ao

corpo, porém compreende-se que os dois existem na relação de um com o outro e não

isoladamente. Deste modo, ―meio externo‖ é outra expressão problematizada na busca

de coerência conceitual para a pesquisa. No modo como vem se construindo o

pensamento sobre os mecanismos de sobrevivência de um corpo, seus níveis de

complexidade e as relações que se formam, o meio externo é entendido como o

ambiente com o qual um ser vivo se relaciona e não apenas um lugar no qual se insere.

Logo, chamamos a atenção para o fato de que emoções e sentimentos são

acontecimentos químicos do corpo e não abstrações, produzidas num lugar ―além-

corpo‖. A partir da pesquisa realizada por Silva (2012), com referência em Damásio

(2011), temos a seguinte reflexão proposta pela pesquisadora:

podemos definir como estados corporais as mudanças globais no

estado do organismo (nas vísceras, nos músculos esqueléticos, no

cérebro) a partir de comandos químicos (corrente sanguínea) e

neurais, disparados pela emoção, que, por sua vez, podem ou não ser

submetidos à consciência (SILVA, 2012, p. 33).

A ludicidade segundo as definições de Luckesi (1998, 2005) apresentadas até

então, caracteriza-se como um ―estado de plenitude‖ e ―estado de consciência‖. Se

considerarmos que o estado interno caracteriza-se por variações de estados do corpo,

torna-se incoerente a tarefa de definir um estado corporal isoladamente, com

características estáveis e permanentes. Como se o ―estado de plenitude‖, por exemplo,

pudesse ser definido precisamente em suas propriedades e assim, caracterizar um

―estado de consciência‖ correspondente e estável. Se o estado do corpo está sendo

compreendido como um resultante das relações entre ele e o ambiente, não se pode

equivaler o objetivo biológico da estabilidade do mesmo em relação ao ambiente, à

permanência de um único estado de corpo. Para manter-se estável em relação ao

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ambiente, o corpo necessariamente produz alterações que, por mais sutis que sejam,

ocasionam alternâncias de estados. Por isso o termo é adotado sempre no plural, do

mesmo modo que utilizado por Silva (2012), na tentativa de abranger a complexidade

da qual são resultantes, bem como ampliar a discussão aos níveis de consciência. Como

enfatiza Silva (2012), os estados do corpo podem ou não ser submetidos à consciência e

isso será compreendido na medida em que for se delineando a discussão sobre seus

níveis.

Ao se ter conhecimento dessas relações incessantes de troca entre corpo e

ambiente é possível argumentar que há uma compreensão não fragmentada da pessoa no

mundo e assim, criar novas relações com a definição de ludicidade como ―estado de

plenitude‖ em que se vive uma experiência. Neste sentido, estar pleno denota

certamente o envolvimento integral da pessoa em uma experiência, ou nas palavras do

autor é quando ―Não há divisão. Estamos inteiros, plenos [...]‖ (LUCKESI, 2005, p. 2).

O entendimento de estar pleno é então, o de viver integralmente uma experiência, o que

comumente ouvimos na linguagem popular pela afirmação ―de corpo inteiro‖. Assim, a

mudança de perspectiva está na compreensão de que a forma de existência do ser

humano já é o corpo integrado, é esse corpo inteiro que não pode ser separado. Dizer

que em um dado momento uma pessoa está integralmente ou plenamente presente,

significa acreditar que é possível de alguma forma, estar com o corpo dividido em outro

momento. Argumentamos que esta noção de corpo dividido se baseia no dualismo

corpo/mente e norteia nossas ações cotidianas, artísticas, pedagógicas, sem que

percebamos. Na compreensão de corpo deste estudo, mesmo quando a experiência é

vivida de modo aparentemente fragmentado, a integração estará certamente ocorrendo

porque ela é o modo de operar do corpo. Por exemplo, quando uma pessoa parece se

distanciar parcialmente do momento presente, seja qual for a experiência que está

vivendo, a tendência é interpretarmos como uma fragmentação da experiência em

consequência da compreensão de que a mente é algo que atua sobre o corpo e não junto

à ele, podendo assim, se separar por alguns instantes.

Há um exercício utilizado no treinamento de palhaço conhecido como Walk to

Wall - ou Caminhar para a Parede – que pode nos ajudar a esclarecer. As pessoas devem

caminhar em direção à parede de olhos fechados em diferentes etapas, até não utilizar

mais as mãos erguidas à frente do corpo para alcançar a parede. É muito comum as

pessoas que participam sentirem medo e demonstrar isto nas ações corporais como, por

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exemplo, reduzir a velocidade com que caminha, expressar reações na face, ou parar de

respirar profundamente como o exercício solicita. O medo em si não é exatamente o que

alguns chamariam de fragmentação da experiência, mas a pausa para refletir sobre ele e

decidir sobre a continuidade da caminhada. De acordo com nossa proposta, nenhuma

das possibilidades é de fato uma fragmentação – nem o medo, nem a reflexão – pois as

emoções, ou sentimentos, interferem biologicamente sobre a razão e vice-versa. Na

ocasião do aprendizado do exercício, o professor condutor mostrava-nos as reações das

pessoas e fazia indicações com as mãos que induziam ao entendimento de que a pessoa

estava separando mente e corpo, pensando demasiadamente e deixando assim, a mente

dominar a ação.

Entretanto, o exemplo não denota essa fragmentação da experiência e do corpo,

mas ao contrário, implica que a pessoa redirecionou rapidamente sua atenção e com ela

processos da consciência, dando foco a outra sensação naquele instante, outro

pensamento, que redireciona em certo grau a experiência que está ocorrendo no

momento presente. ―Tanto o cérebro como o corpo propriamente dito são afetados de

forma ampla e profunda pelo apanhado de comandos que são disparados pela emoção,

alterando assim os estados do corpo, consciente ou inconscientemente‖ (SILVA, 2012,

p. 33). Somos então, induzidos nos processos corporais, às variações de estados que por

vezes aparentam nos distanciar da situação que está sendo vivenciada. Mas se os

comandos são o próprio corpo em atividade, argumentamos que não poderiam de fato

significar uma separação. No contexto da dança, o exercício tem contribuído para

facilitar a compreensão sobre fluxos de consciência e percebê-lo em curso, reconhecer

no movimento as inferências de um processo no outro, contribuindo para a construção

do conhecimento de quando a inferência da reflexão provoca pausas prolongadas na

sequência em desenvolvimento.

Damásio (2011) explica que ―a consciência tem flutuações. Não funciona abaixo

de certo limiar, e funciona do modo mais eficiente ao longo de uma escala nivelada‖

(DAMÁSIO, 2011, p. 210). Esta escala é por ele denominada de ―escala de intensidade

da consciência‖ e se evidencia com mais clareza na análise que faz entre os momentos

em que sentimos sonolência e momentos em que estamos muito despertos. O que

denomina de intensidade se caracteriza como um dos critérios de classificação da

consciência. Porém, para compreendermos essa classificação é necessário estudar

também os tipos, ou níveis, de consciência dos quais está se falando.

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Luckesi (2005) se aproxima desta compreensão de mente/corpo juntos quando

esclarece que ―consciência não é algo abstrato e intocável, mas é aquilo que somos, é o

próprio Ser‖ (LUCKESI, 2005, p.5). Porém, ao se referenciar em teóricos da Psicologia,

Luckesi (2005) compreende o desenvolvimento da consciência juntamente às fases do

desenvolvimento humano, onde cada fase caracteriza assim, um estágio da consciência.

E consciência neste contexto é considerada a capacidade do corpo de perceber tudo que

lhe acontece, e acredita-se que, de acordo com as fases do desenvolvimento humano,

alcança níveis mais complexos em um mesmo organismo ao longo de sua existência.

Contudo, a partir de uma perspectiva que leva em consideração uma

argumentação evolucionista, os diferentes níveis de complexidade dos processos da

consciência podem ser observados a partir das estruturas funcionais de cada ser vivo,

como a existência de atividade mental e de um sistema nervoso, por exemplo. Percebe-

se na bibliografia de referência, que as atividades e operações relacionadas à existência

da mente são tratadas de modo a integrar um único sistema, o corpo. Assim, a

complexidade dos processos está diretamente relacionada à estrutura e será variável

fundamentalmente de uma espécie para a outra, e não num mesmo corpo que se tornará

mais complexo ao longo de sua vida. Em condições normais, são outros fatores que se

modificam no decorrer do tempo e não a estrutura do organismo em seu nível de

complexidade. O entendimento citado no parágrafo anterior de que consciência é aquilo

que somos, evoca ainda uma parte dos estudos da neurociência sobre a qual Damásio

(2011) se dedica: o ―Self‖. Do ponto de vista de suas definições, o self é mais um

processo da consciência e não se trata da percepção de si mesmo e sim do

―conhecimento de si‖. O ato de conhecer está implicado nos processos da consciência

em corpos complexos como o ser humano, enquanto a percepção existe desde corpos

extremamente simples em sua estrutura e não envolve necessariamente a consciência;

são processos distintos. Para o neurocientista, a consciência do modo como a

entendemos ―é um estado mental no qual existe o conhecimento da própria existência e

da existência do mundo circundante‖ (DAMÁSIO, 2011, p.197). Desta forma, o self

corresponde ao processo da consciência que permite ao ser humano além do

conhecimento de si a partir do mapeamento de seu próprio corpo, o conhecimento que

situa sua existência e é produzido nas relações com o mundo, permitindo-lhe conhecer

um contexto. É, portanto, a noção que um ser vivo tem de si mesmo enquanto realiza

uma tarefa, que por sua vez, irá gerar um conhecimento que pertence a um conhecedor -

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o corpopessoa. Dessa forma, lhe são atribuídos dois sentidos: o self como um eu

material estruturado pelo conhecimento de seu corpo, e o self conhecedor como o

proprietário do conhecimento que é gerado pela experiência. Sabemos que todo

conhecimento pertence a alguém, e o self, pelo estudo aprofundado do corpo, é esse

processo que faz com que o corpopessoa se reconheça proprietário do conhecimento.

Dada a presença do estado de vigília e da mente, ambos necessários

para que estejamos conscientes podemos dizer que a característica

distintiva da nossa consciência é, liricamente falando, a própria noção

de si. [...] ‗a própria noção sentida de si‘ (DAMÁSIO, 2011, p.202).

Podemos dizer então, que é uma característica da consciência humana a

elaboração do conhecimento de si associado ao mundo circundante de forma mais

ampla do que outros seres vivos dotados de processos da consciência em nível mais

elementar. Corpos mais simples conseguem reconhecer, por exemplo, a aproximação de

um alimento e realizar um procedimento para capturá-lo, ou em um nível um pouco

mais desenvolvido, reconhecer uma situação de ameaça e reagir a ela. Mas sua

capacidade de resposta à ameaça será de certo modo limitada a um conjunto de

comportamentos. Quando o autor fala da ―própria noção sentida de si‖, ele inclui mais

um elemento – os sentidos – que se refere às operações cognitivas que estão envolvidos

no ato de experimentar processos que envolvem órgãos e funções específicas, operando

em conjunto. Portanto, não se trata exatamente de dimensões subjetivas da experiência e

sim de compreender minimamente a rede de mecanismos que resultam no conhecimento

- ou não - de estados do corpo, para então podermos delinear uma nova reflexão em

torno do estado de plenitude que configura a ludicidade.

Um dos fatores que permite identificar fluxos de informação entre corpo e meio,

é o (re)conhecimento nos estudos científicos de alternâncias nos padrões de ondas

elétricas do cérebro, que por sua vez, são indicadores de alterações do corpo. Um

exemplo claro é a alternância dos padrões de ondas elétricas produzidas entre o sono e a

vigília. Esses padrões de ondas são indicativos do nível de atividade mental, e deste

modo, o período da vigília é aquele em que há maior produção de ondas elétricas

indicando elevada atividade mental, em oposição ao período de sono. Se analisarmos

com um pouco mais de cuidado, o exemplo pode fortalecer também a compreensão de

que um processo mental é mesmo um processo do corpo e não uma abstração. Quando

estamos dormindo, os sentidos encontram-se reduzidos, não do ponto de vista de seu

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potencial, mas da quantidade de informações a que tem acesso. Os olhos estão fechados,

o corpo permanece na posição horizontal por longo período, a luz possivelmente

permanece apagada e em geral, não há grandes variações olfativas e táteis. Assim,

menos ondas elétricas são produzidas e diminui o nível de atividade mental.

Reconhecemos esse estado do corpo como repouso. No entanto, as operações

elementares de regulação do corpo, o que denominamos no senso comum por funções

básicas, se mantém em atividade. Isso ocorre porque esses processos, como apresentado

outrora, correspondem ao nível mais elementar de consciência, e deste modo, no corpo

humano, não requer atenção especial para que ocorram. Correspondem aos processos

que operam de modo não consciente, ou seja, ações sobre as quais não temos

conhecimento a cada vez que realizadas, como o batimento cardíaco, os movimentos

peristálticos do intestino etc. Além das funções básicas do corpo, configuram já num

nível diferenciado de complexidade, o repertório de ações humanas por vezes

consideradas automatizadas: as ações cotidianas. Sobre elas, temos conhecimento de

quando estamos realizando cada uma, mas nem sempre precisamos direcionar o foco de

atenção para conseguir realizá-las. Não precisamos, por exemplo, reaprender a escovar

os dentes toda vez que o fazemos e por isso são também ações que conseguimos realizar

simultaneamente a outras. Pensamos no ato de dirigir um carro. Quando estamos

iniciando, temos dificuldade em abrir as janelas, pegar uma bolsa no banco de trás ou

tomar algo enquanto o carro está em movimento. À medida que nos tornamos mais

seguros na coordenação que envolve esta tarefa, vamos conseguindo realizar diferentes

ações ao mesmo tempo em que dirigir. Ou seja, um conjunto de alterações se estabiliza

até que a atenção seja novamente solicitada criando novas redes de informação. São as

alternâncias de padrões de atividade mental e, portanto, de estados do corpo, em que o

sono e a vigília representam os seus picos, havendo inúmeras gradações entre os dois.

Se este é o modo de operar do corpo, vejamos então, de que modo podemos identificar

essa ocorrência em dança. Consideraremos que as ações cotidianas equivalem aos

movimentos com os quais o dançarino já está habituado como, por exemplo, um

bailarino clássico que passa os braços pela segunda posição quando quer realizar uma

pirueta saindo de quarta posição dos pés. O corpo conhece essas ações – o caminho do

braços e a pirueta de quarta posição – em associação e assim, quando um bailarino

desejar realizar um giro de outra forma ele precisará direcionar a atenção a fim de

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alcançar um novo padrão, que implica novas combinações de estados conscientes e não

conscientes.

Se pensarmos a amplitude de alterações dos estados do corpo que envolve

também o treinamento de um artista, podemos dizer que quando ele se percebe

conhecedor de um determinado estado corporal, está na verdade deixando de ter

conhecimento de alguns outros estados que ocorrem em alternância. Assim, pode-se

dizer que esse conhecimento dos estados do corpo pode constituir uma forma de seleção

dos elementos com os quais vai trabalhar, bem como de qualidades de movimento a

serem investigadas.

Para realizar qualquer ação, da mais simples a mais complexa, o cérebro forma

imagens de variados tipos. Ocorre é que existem imagens formadoras dos conteúdos já

conhecidos pelo corpo que são rapidamente acionadas quando reconhecida a

necessidade. Orientados pela função do self, os conteúdos – imagens – que o ato

experimental gera integram assim diferentes processos cerebrais na realização de uma

única ação. Envolvem os dois hemisférios do cérebro e ativa distintas regiões. As

imagens em questão não são como fotografias, ou como um quadro que depois de feito

não se altera mais, são fluxos de informação que sofrem modificações a todo instante

inferindo nos estados do corpo. Os sentidos, por exemplo, produzem imagens sensoriais

sobre tudo que se entra em contato como um som, uma superfície, uma cena assistida, e

assim integram junto às imagens referentes ao nosso estado corporal, os conteúdos da

consciência.

Obter e acumular conhecimentos como processos cerebrais são instruções que

surgem evolutivamente antes da consciência, que só veio a aparecer no seu sentido mais

amplo, depois que esses conhecimentos foram categorizados de diferentes formas e

manipulados pela imaginação e pelo raciocínio. A função do self, ao situar a existência,

imprime um contexto a esses conteúdos da consciência, imprimindo também um

propósito à ação. Segundo Damásio (2011) o comportamento, do qual vários outros

animais são dotados, ―é controlado por estímulos imediatos, sem inserção no contexto

mais amplo‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 205). Deste modo, o conteúdo sem contexto

configura uma ação pontual, um comportamento desconectado de um propósito.

Comportamentos podem ser observados em corpos mais simples, desprovidos de

processos do self, pois estão vinculados à sobrevivência como, por exemplo, o

comportamento de captura do alimento realizado por um ser unicelular. No ser humano

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a reação não intencional a algo, como retirar a mão quando colocada sobre uma

superfície quente evitando queimaduras, se caracteriza como um comportamento,

reflexo do organismo, onde níveis mais complexos da consciência não são acionados

para que a ação aconteça. O que não significa que o conhecimento do próprio corpo no

contexto está ausente, mas que em determinadas situações apenas mecanismos básicos

de regulação são suficientes para cumprir a tarefa e protegê-lo.

Quando o trabalho de olhos fechados é utilizado para aprendizagem do palhaço,

tem o objetivo de possibilitar ao artista o conhecimento de seus impulsos. No exercício

―Caminhar para a Parede‖, que ocorre de olhos fechados, respirando fundo, a

caminhada deve acontecer sempre na exalação, seguindo a direção para qual a

respiração conduz o corpopessoa. O guia para o movimento deve ser a respiração. Neste

exercício, o grupo sempre é dividido em dois, um de praticantes e outro de

observadores. Para quem observa as reações dos praticantes quando acreditam que vão

se bater com outro jogador ou com a parede, são em maior parte rápidas, ativadas por

reflexo, como erguer as mãos ou fazer uma expressão de susto, caracterizando um

comportamento pontual. Juntamente se dá o processo reflexivo sobre a situação do tipo

―será que continuo na mesma direção‖, ―será que devo parar de caminhar‖, buscando

soluções para a continuidade do exercício e isso é visível aos observadores.

Argumentamos que, além da capacidade de reflexão ser o diferencial da consciência

humana, somos condicionados pela convivência em sociedade a refletir sobre o que lhe

ocorre para então tomar qualquer decisão e o exercício propõe alcançar uma espécie de

desativação dessa estratégia de controle sobre a ação. Talvez possamos dizer que a

indicação de ―confiar no impulso‖, dada para este exercício, implica confiar nesta

capacidade do corpo de reconhecer, por exemplo, quando está em perigo e proteger-se.

Segundo Damásio (2000, p. 40) a consciência do modo como a entendemos, só

existe porque a função do self está presente, caso contrário, seríamos dotados de

processos mentais, mas não de consciência. Por conseguinte, os tipos de consciência

apontados pelo autor, são determinados pelas diferenciações de complexidade dos

processos do self, coexistentes em nosso corpo. A consciência em seu nível de

organização mais simples denomina-se consciência central e promove ao corpo sentido

do self do aqui e agora. Tem as características de estabilidade ao longo da vida, não é

exclusivamente humana e não depende da memória convencional ou operacional, do

raciocínio ou da linguagem. É o grau elementar da consciência existente em inúmeras

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espécies, onde o self material é orientador do comportamento adaptativo, ou seja, está

diretamente relacionado à regulação da vida. A consciência em seu tipo mais complexo

denomina-se consciência ampliada ou autobiográfica e promove ao corpo o sentido

complexo do self. É o sentido que permite ser ―capaz de saber que seu organismo existe

e guiar a vida em função desse conhecimento‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 228). No entanto,

a consciência autobiográfica não é apenas um ápice da complexidade, mas existe em

vários níveis de organização e considera-se que evoluiu e continua evoluindo ao longo

da existência de cada espécie, atingindo seus níveis mais elevados nos humanos. A

consciência autobiográfica nos permite reconhecer

Uma identidade e uma pessoa, você ou eu — e situa essa pessoa em

um ponto do tempo histórico individual, ricamente ciente do passado

vivido e do futuro antevisto, e profundamente conhecedora do mundo

além desse ponto (DAMÁSIO, 2000, p. 40).

Portanto, quando falamos na consciência como uma característica humana,

estamos falando na consciência autobiográfica em seu grau evolutivo mais elevado. O

ser humano, diferentemente de outras espécies, conhece sua existência, e este

conhecimento das condições em que se encontra no mundo guia suas ações, orienta seu

desenvolvimento social e cultural. Os dois níveis de consciência são fenômenos

biológicos correlacionados, porém a consciência central é alicerce para a ampliada. Se

ocorrer lesões nas áreas correspondentes à consciência central, por exemplo, a ampliada

será de alguma forma prejudicada, ela não se sustenta separadamente, mas o contrário

não ocorre (DAMÁSIO, 2000, p. 42). Importante salientar que os seres evolutivamente

mais complexos em estruturas e processos não operam sempre no ápice de suas funções.

Tudo opera junto e há flutuações entre operações mais elementares e operações mais

complexas. Desta forma, para compreender a flutuação a que se refere como flutuações

nos níveis de consciência – central e autobiográfica – existem dois critérios de

classificação: intensidade e abrangência.

A intensidade, que ocorre em níveis muito diferentes tem como representantes

de seus extremos o sono e a vigília. Como apresentado outrora, o período da vigília se

caracteriza de intensa atividade mental (com a compreensão de que ―mental‖ é corpo) e

o período de sonolência poderá ser o seu oposto quando não considerados aspectos

particulares ou disfunções do sono, não abordados neste estudo. A relação entre

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intensidade e a flutuação dos níveis de consciência não é proporcionalmente crescente,

podendo em um período de alta intensidade, voltar-se a consciência central.

O outro critério para classificar a consciência é a abrangência, que quando

mínima estará em atuação com maior ênfase a consciência central e quando máxima, ou

de grande abrangência, haverá a articulação do sentimento do aqui agora (self central)

com outros conteúdos vinculados a experiências passadas e/ou a expectativas de futuro

(self autobiográfico). Quando a abrangência for máxima, ou próxima disso, a pessoa

poderá ter então, a sensação de não estar inteiramente presente, devido à associação

com muitas outras informações às quais o presente a remeteu por algum motivo. Mas

isto só é possível porque há o conhecimento do próprio corpo, que embora não seja o

protagonista no processo que rememora acontecimentos passados, todos os conteúdos se

mantêm ligados a essa referência, ao centro. A consciência de grande abrangência

implica a atuação da autobiográfica ―pois ela se manifesta mais acentuadamente quando

uma parte substancial da nossa vida está acontecendo, e tanto o passado vivenciado

como o futuro esperado dominam a ação‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 211). Em práticas de

dança podemos observar esse acontecimento da seguinte forma: quando um dançarino

aprende uma sequência coreográfica nova, no primeiro momento se detém a conhecer

cada movimento, fixar a sequência e perceber como o corpo responde a esses

movimentos, estando a consciência central com maior ênfase a frente do processo. No

segundo momento, em que já conhece o conteúdo da sequência e compreende os modos

de organização do corpo para realizá-la, a consciência autobiográfica estará a frente da

ação, uma vez que serão acionados todos os conteúdos de experiências anteriores,

incidindo mais intensamente sobre processos relacionados à memória e à linguagem.

De tal modo, além da pessoalidade também configurada pelo self central, a

consciência autobiográfica nos dá uma identidade, pois está ligada a singularidade do

ser, mais especificamente aos aspectos constituídos na experiência. Por isso quando um

exercício é aplicado com um grupo cada corpopessoa responde de uma forma, produz

sentimentos diferentes. O ―Caminhar para a Parede‖ traz exemplos que evidenciam essa

questão no depoimento de dançarinos: 1) ―Caminhando para o muro, tenho a sensação

de querer chegar a um lugar onde há uma pureza no ambiente, a minha mente fica mais

leve, é como se eu me encontrasse com a minha infância‖; 2) ―A entrega chegou a 60%.

Foi uma luta: confiança X insegurança‖. Registrados por escrito são depoimentos de

dois dançarinos da Paraboléu Cia Cênica, referentes ao mesmo exercício, que nos

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mostram tanto os fluxos da consciência como aspectos da identidade de cada

corpopessoa. O primeiro descreve uma reflexão um tanto elaborada que evidencia traços

da atuação da consciência autobiográfica e de sua identidade na infância. Enquanto o

segundo expôs um conflito consigo mesmo no aspecto da confiança, parecendo estar

mais atento aos estados do corpo que o induziam tanto a seguir em frente quanto a parar

de caminhar. A metáfora da ―luta‖ entre confiança e insegurança foi uma reflexão

elaborada após a realização do exercício para a escrita, e aí sim, com a consciência

autobiográfica mais atuante do que a central. O que ajuda a sustentar a hipótese de que

não há experiência fragmentada, e sim uma articulação de experiências no presente.

Em corpos complexos como o humano o próprio mecanismo básico de regulação

da vida, engendra uma coordenação tão grande de operações que da mesma forma

ampliam-se as variações que o organismo produz. Em consequência, durante uma

experiência há alterações de níveis de consciência que se dão no fluxo contínuo entre o

self central e o self autobiográfico, ou ainda entre as correntes principal e secundária do

autobiográfico. Ou seja, também a crença de que se pode relatar um único estado de

consciência correspondente para cada situação vivida não é de todo verdadeira.

Contudo, há aspectos que são específicos da consciência autobiográfica, que nos

auxiliam a esclarecer ainda mais suas flutuações, como a presença de uma corrente

principal e uma corrente secundária. Damásio (2011) afirma que a consciência é um

fluxo de informações no qual ora uma informação está à frente e, imediatamente,

quando outra informação se torna o foco, passa a estar na frente. O que define qual delas

estará à frente na orientação da ação é a atenção direcionada intencionalmente, ou pela

emergência de um padrão coerente na corrente secundária, que assim, ganhará o foco de

atenção e passará à corrente principal. Deste modo, quando temos a impressão de que

nos dispersamos da atividade que está sendo realizada é porque neste momento alguma

sensação ou lembrança referente à outra circunstância foi acionada pela experiência

presente. Se o pensamento é também corpo, é também uma operação cognitiva tanto

quanto mover os braços, o pensamento que se acredita nos distanciar do presente só

pode ter sido gerado pelo mesmo. Pela ação do corpo no tempo presente.

Perceber este acontecimento é perceber o fluxo da consciência, sua flutuação de

uma a outra informação, podendo nos tornar capazes de decidir, escolher conteúdos aos

quais será dada maior vazão. E assim, selecionar a informação a qual será dedicado o

foco de atenção é selecionar um conjunto de qualidades, imagens, sensações que

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poderão ser desenvolvidas no processo criativo em curso. Só percebemos e tomamos

conhecimento do pensamento, aparentemente desconexo, que ocorre em meio a uma

ação, porque existem os processos da consciência. E então uma pessoa não deixa de

estar consciente da ação criativa para refletir sobre outra coisa, mas o foco da

consciência é deslocado para outro ponto dentro do próprio processo criativo.

O ―estado de plenitude‖ é o estado ao qual Luckesi (2005) se refere quando diz

que ―as próprias atividades lúdicas, por si mesmas, nos conduzem para esse estado de

consciência‖ (Luckesi, 2005, p.2). Se os critérios de classificação – intensidade e

abrangência – são considerados indicativos da flutuação da consciência ao longo de uma

experiência, buscaremos alcançar melhor compreensão sobre o estado de plenitude que

caracteriza ludicidade, a partir desses referenciais propostos por Damásio (2011).

Seguindo a linha de pensamento, argumentamos que o estado de consciência da

ludicidade ocorre quando há a combinação de estados de alta intensidade da

consciência, exemplificado pela vigília, e abrangência mínima, que proporcionará à

pessoa a noção do próprio corpo com ênfase no aqui agora, ou seja, com self central a

frente da ação no fluxo de consciência. Participar de um jogo, por exemplo, pressupõe

combinação semelhante e assim, no senso comum utilizam-se expressões como ―estar

entregue‖ ou ―de corpo presente‖ para denotar este estado de corpo que denominaremos

aqui como ―estados de ludicidade‖. Importante ressaltar que abrangência mínima e

máxima não são oposições estáveis, mas são extremos entre os quais existem gradações

não lineares.

Este modo de compreender a experiência, afirma concepções do corpo humano

como um corpo integrado, a corponectividade como de existir no mundo, tornando-se

mais coerente afirmá-la de grande ou baixa abrangência, no lugar de plena ou

fragmentada.

Ao delimitar o palhaço contemporâneo como referência para a pesquisa, os estados de

ludicidade são considerados cogeradores do que se denomina como estado de palhaço.

Argumenta-se que a possibilidade do treinamento para alcançar este estado, como

metodologia de formação, promove o conhecimento dos fluxos da consciência assim

como o conhecimento da alternância dos estados do corpo, aumentando a capacidade de

seleção do artista sobre as qualidades que irá desenvolver na construção do

corpopalhaço.

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1.3 Estado(s) de palhaço: a ludicidade como uma condição

O palhaço é pessoal e único e, portanto,

amplo demais para ser fixado em um tipo ou

em uma maneira única de se comportar.

(PUCCETTI, 2006, p. 22)

Além da produção acadêmica brasileira sobre a arte de palhaço ainda não ser tão

ampla, não é tarefa simples encontrar estudos desenvolvidos especificamente sobre o

denominado ―estado de palhaço‖. Encontram-se nas teses ou dissertações trechos de

capítulos dedicados ao tema, ou discussões que perpassam o assunto sem que este seja

de fato o centro da questão. Entretanto, o que vem a ser estado de palhaço torna-se

importante neste contexto, na medida em que se elegeram os estados de ludicidade do

palhaço como um tema de pesquisa para a dança.

Considera-se que no corpo humano a corrente sanguínea, as células, correntes

elétricas e as sensações produzidas pelos sensores proprioceptores, entre outras, são

também aspectos físicos do corpo. Pode-se compreender da mesma forma, que as

condições emocionais e afetivas componentes de estados do corpo são físicas, pois são

reconhecidamente parte de operações biológicas e cognitivas. Portanto, a compreensão

de estado se dá a partir do tratamento de algumas questões como processos do corpo,

em contraposição aos argumentos que consistem em afirmar aspectos emocionais e

psicológicos como fatores de outra ordem, para além do corpo, reforçando dicotomias

conceituais.

Segundo o neurocientista Antônio Damásio (2000) os estados do corpo em seu

nível de organização mais simples, correspondem ao

(...) conjunto de mecanismos cerebrais que de modo contínuo e

inconsciente mantém o estado corporal dentro dos limites estreitos e

na relativa estabilidade requeridos para a sobrevivência. Esses

mecanismos representam continuamente, de modo inconsciente, o

estado do corpo vivo, em suas numerosas dimensões (DAMÁSIO,

2000, p. 53).

O estado do corpo vivo é mapeado no cérebro como mecanismo básico de

regulação da vida do organismo e desta maneira, são mecanismos ditos inconscientes

porque não é necessário direcionar atenção para realizá-los. São ações do corpo que

acontecem pelo instinto de manter-se vivo, como por exemplo, o mecanismo do medo

que faz com que um ser vivo se afaste de qualquer situação ameaçadora em busca de

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garantir sua sobrevivência. Como já vimos, esse conhecimento do próprio corpo

corresponde aos processos da consciência em sua forma mais simples, a consciência

central.

Definimos que a experiência de ludicidade ocorre quando há estados de alta

intensidade da consciência, que requer muita atenção para os detalhes da situação

vivida, e abrangência mínima, que proporcionará com ênfase à pessoa, a própria noção

sentida de si.

No artigo ―No caminho do palhaço‖, Puccetti (2006), discute os princípios que

do seu ponto de vista orientam o treinamento e a atuação no ofício de fazer rir. Desta

maneira, ao descrever aspectos do que compreende como parte do estado de palhaço faz

alusão a dois estados de corpo que considera componentes sem os quais o estado de

palhaço propriamente, não acontece. São os estados de revelação e os estados de

presença que funcionam, para o ator, como uma espécie de pressuposto para a ação do

clown e abrangem assim, capacidades que devem ser desenvolvidas no treinamento.

Entretanto, argumenta-se que esses estados que conferem capacidades que podem ser

treinadas e desenvolvidas correspondem a processos do corpo mais elaborados, níveis

mais complexos de estruturas.

Uma das condições ao estado de revelação do palhaço é a experiência de sentir-

se exposto, de ser visto pelo outro e se revelar em sua humanidade, ou seja, com suas

fraquezas e inseguranças (PUCCETTI, 2006, p. 23). É a experiência de se permitir

revelar tudo aquilo que é próprio - íntimo - da pessoa, mas que no cotidiano é

mascarado de forma a corresponder aos padrões socialmente aceitos. Não poderá,

entretanto, ser desvinculado do estado de presença que traz como palavras-chave os

verbos ―ser‖ e ―estar‖, pois revelar-se implica assumir com integridade o próprio ser.

Novamente com referência em Damásio (2011), reforçamos o entendimento de que os

estados do corpo não ocorrem em ideais de estabilidade que permitem definir com

precisão os componentes de um estado em distinção a outro, mas pelo contrário,

reafirma a coexistência de estados.

Enquanto o estado de revelação evidencia-se nos processos de formação pelos

exercícios de exposição diante do olhar do outro, o treino do estado de presença busca a

investigação de movimentos não automatizados libertando-se das respostas prontas que

caracterizam o repertório de movimento habitual de cada pessoa. Para Puccetti (2006),

presença é levar ao extremo as consequências de viver cada ação no tempo em que ela

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acontece, buscando ―liberar seus impulsos físicos e manter-se em um estado de

prontidão e concentração que o conecta interna e externamente, dilatando sua presença

física‖ (PUCCETTI, 2006, p. 23). Implica sentir, viver e fazer; elementos referentes ao

universo subjetivo que segundo Burnier (2009), compõem aspectos da dimensão interior

em distinção a outra dimensão que denomina de física do trabalho do ator.

Kásper (2004) argumenta sobre a lógica do palhaço e contribui para esclarecer o

que está de fato em questão com o uso das expressões dimensão interna e dimensão

física:

O palhaço trabalha com a exterioridade. Seus processos de

subjetivação podem ser acompanhados de fora. No palhaço tudo se

passa em seu corpo e de modo visível ao público. Tudo é

exteriorizado, ele precisa mostrar sua lógica, conquistando o público,

trazendo-o para jogar com ele (KÁSPER, 2004, p. 33).

Inebriado do estado de presença, o palhaço tem de mostrar ao público com suas

ações o que está pensando, qual a lógica de ação no mundo que define o que virá a

acontecer. Lógica, por conseguinte, não é um sinônimo de raciocínio, mas de produção

de sentidos que justificam suas atitudes. Essa produção de sentidos que se dá por

aspectos subjetivos – o modo de cada corpopessoa formular suas questões – e por isso

considerada interna, como própria da pessoa assim como a ludicidade. Entende-se que

os aspectos subjetivos são parte dos processos de construção do conhecimento no corpo

e diferem de pessoa a pessoa, de acordo com o lugar em que vive, as informações a que

tem acesso, as atividades que exerce ou não, e assim por diante. Exteriorizar e tornar

física a lógica de ação do palhaço significa então, evidenciar no corpo de modo visível

ao público a forma como articula o momento presente com o conhecimento adquirido

na experiência de vida. Entretanto, para alcançar esta habilidade é necessário o

desenvolvimento da capacidade de obter conhecimento sobre o próprio corpo,

envolvendo necessariamente seus estados. Para Puccetti (1998, p. 5) ―a técnica vem

depois para dar forma e corporeidade a esta presença cênica, construída pela busca da

plenitude‖.

O estado interno é codependente dos fatores externos, a mente constitui o corpo

e seus mecanismos cognitivos, e a consciência não diz respeito à percepção de si

mesmo, como geralmente se refere. Para Damásio (2011, p. 197) a consciência

corresponde ao conhecimento do próprio corpo (consciêcnia central) e o conhecimento

do contexto com o qual o corpo se relaciona (consciência autobiográfica). O processo da

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consciência que permite a articulação dos conteúdos da consciência central e

autobiográfica é o self. Na prática, é o que compreendemos como o contexto, que por

sua vez, nos fazem reconhecer ou determinar um propósito às nossas ações.

Na prática da palhaçaria de Puccetti (1998), a base conceitual de que o palhaço

não interpreta, mas ao contrário, ele vive a cena a cada vez como se fosse a primeira,

tem como parâmetro o conceito teatral de representação que perpassa toda a experiência

teórico-prática do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais - LUME5. Segundo

Burnier (2009), representar implica uma coisa no lugar de outra no sentido de encontrar

um equivalente que possa representá-la. De modo contrário, quando o ator interpreta,

faz uma tradução da linguagem literária para a cênica, na qual atua como sendo outra

pessoa. Na perspectiva da representação, entretanto, ele não se coloca como outra

pessoa, ele apenas a representa em um possível equivalente. O desenvolvimento prático

deste conceito é um começo para o trabalho do estado de presença, pois pressupõe que o

ator vive a cena desenvolvida a partir de suas qualidades pessoais, em busca da não

automatização, e desta maneira, a técnica se distancia das noções de reprodução e

repetição mecanizadas (BURNIER, 2009, p. 24). No caso da dança, a utilização das

qualidades pessoais do dançarino na construção da cena, é mais comum no contexto da

dança contemporânea, mas nem sempre o uso de técnicas de dança se distancia da

reprodução e repetição esvaziadas.

As experiências vividas inspiram na reflexão de que parte do treinamento do

palhaço se concentra na dinamização de estados de ludicidade, utilizando-se de jogos e

brincadeiras, da ativação do imaginário e da criança interior como uma das formas de

compreensão do prazer de ser. São atividades que exigem concentração e prontidão no

momento presente, evocam sensações de prazer, além de provocar certo grau de

exaustão, facilitando a percepção do estado de presença e a disponibilidade corporal.

O estado de clown seria o despir-se de seus próprios estereótipos na

maneira como o ator age e reage às coisas que acontecem a ele,

buscando uma vulnerabilidade que revela a pessoa do ator livre de

suas armaduras. É a redescoberta do prazer de fazer as coisas, do

prazer de brincar, do prazer de se permitir, do prazer de simplesmente

ser (PUCCETTI, 1998, p.5).

5 É um coletivo de sete atores, com sede no Distrito de Campinas (SP), referência internacional no

redimensionamento do trabalho técnico e ético do ofício do ator. Fundado em 1985 por Luis Otávio Burnier

ao lado dos atores Ricardo Puccetti e Carlos Simioni, é também referência nacional e internacional na

metodologia de formação de palhaços.

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O estado de presença que segundo Puccetti (1998, p. 5) é construído na busca

pela plenitude, parece corresponder ao ―estado de ludicidade‖ definido por Luckesi

(2005), pois além da plenitude busca a redescoberta do prazer de ser e fazer.

Rememorando a capacidade da criança de ser e se transformar em qualquer coisa. De tal

modo, estados de ludicidade são considerados como uma condição para o estado de

palhaço.

Do ponto de vista da evolução dos processos cognitivos, o ―sentimento de que

meu corpo existe e está presente‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 230) é o mais profundo,

podendo ser classificado como um sentimento primordial que ocorre independente dos

objetos de interação. É o sentimento fundamental ao processo do self, constituindo a

base para que outros sentimentos relacionados à interação com os objetos aconteçam. É

preciso ter o sentimento da própria existência para então ter o sentimento de algo

relacionado a ela, que vem a ser o ―sentimento do que acontece‖ (DAMÁSIO, 2011, p.

230). Evolutivamente, são processos que aparecem distintamente, mas que são

complementares em suas funções e operam juntos. Domenici (2008) esclarece a questão

quando expõe que ―a percepção de um objeto gera mudanças no estado corporal, que

são percebidas pelo cérebro junto com o objeto e essa informação se associa àquela

imagem, como um qualificador‖ (DOMENICI, 2008, p. 3).

Se como visto até aqui, os estados corporais são instáveis, o desafio na ação do

palhaço é a sustentação de estados de ludicidade e esta é uma proposição de

contribuição para a dança e o dançarino: sustentar estados de ludicidade. O treinamento

deve proporcionar ao artista o desenvolvimento refinado da percepção dos estados de

corpo, a fim de alcançar a consciência das suas modificações na complexidade da

função do self. Este mecanismo de trabalho viabiliza a investigação das qualidades e

possibilidades de movimento a partir dos estados corporais para a futura codificação de

um repertório de ação, que será fundamental na tarefa de conquistar o público. O tempo

de sustentação é o tempo que o artista consegue manter-se disponível, no estado de

palhaço, agindo na sua lógica. Sucintamente, o estado de palhaço no entendimento do

Lume ―é um estado de afetividade, de vulnerabilidade, é levar ao extremo a conexão

consigo mesmo, é o saber se ouvir‖ (PUCCETTI, 2006, p. 24).

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2. DO PALHAÇO PARA A DANÇA

2.1 Palhaços – possibilidades de aprender

Há que se considerar, para discutir a arte do palhaço, a variedade de estilos que

existem e implicam linhagens distintas, tradições de família e outros modos de fazer que

investem em metodologias de formação considerados mais atuantes nas últimas três

décadas. Estes estilos são representativos da polissemia do significado do palhaço em

sua construção histórica desde o século XVI. Entretanto, objetivamente interessam aqui

os processos históricos que resultaram nas diferentes abordagens de palhaço que podem

ser reconhecidas ainda hoje, bem como refletem no olhar da sociedade sobre a

palhaçaria. Especialmente, os aspectos que contribuem para a compreensão dos

elementos que integram o ensino/aprendizado da arte do palhaço, sobre os quais esta

pesquisa se dedica com maior atenção. E ensino/aprendizado tanto para o aspecto

artístico cênico, quanto o aspecto artístico-pedagógico.

Consensualmente em Bolognesi (2003), Reis (2013) e Mavrudis (2011) há uma

explicação inicial para o termo clown a partir da qual se desenvolve a discussão e o

confrontamento com dados históricos. No Dicionário Crítico Ilustrado do Circo no

Brasil (MAVRUDIS, 2011), encontra-se:

O termo palhaço também é conhecido como ‗clown‘, termo inglês que

deriva de ‗cloyne‘, ‗cline‘, ‗clowne‘, cuja etimologia reporta a

‗colonus‘ e ‗clod‘, que tem sentido de homem rústico ou homem do

campo ou desajeitado, grosseiro. Na pantomima inglesa, o clown era o

cômico principal, e tinha função de um serviçal. (Mavrudis, 2011, p.

304).

No referido Dicionário (2011) parece então, haver a consideração das duas

nomenclaturas como sinônimos, utilizados em diferentes contextos culturais e

geográficos, indicando ao mesmo tempo o clown como personagem da pantomima

inglesa. Aponta aspectos da etimologia da palavra que são bastante recorrentes em

literaturas que se dedicam a pesquisar esta arte. Da mesma forma ocorre com a palavra

palhaço que deriva de pagliaccio que ―origina-se do radial paglia (palha), do idioma

italiano, e tem a mesma expressão da matéria usada para o revestimento de colchões.‖

(MAVRUDIS, 2011, p. 304) Em sua origem mais primitiva a roupa do palhaço era feita

de tecidos grossos e revestida nas partes mais salientes como forma de proteger o corpo

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das quedas e pancadas, tornando-se parecido com o enchimento dos colchões.

Conforme indica Reis (2013, p. 97) ―tanto o termo clown como pagliaccio parecem ter

surgido no século XVI e ter relação com o olhar urbano sobre o camponês.‖ Deste

modo, o autor argumenta sobre a carga negativa associada ao sentido primordial dos

termos palhaço e clown (REIS, 2013, p. 16), advinda de um olhar do homem urbano

sobre o homem do campo. E esta é a conotação identificada pela etimologia dos termos

que se reforça quando associados a personagens cômicos que surgidos na época. A

carga negativa a que se refere ainda se impregna de muitas formas no comportamento

social em relação a esta arte, observada, por exemplo, no uso do nariz vermelho fora do

contexto artístico, como em manifestações de ordem política ou social. Entretanto, Reis

(2013, p.16) considera que este fato implica a riqueza simbólica agregada a palavra

palhaço através da variedade de cargas emocionais que constituem sua diversidade de

apropriações.

O clown do século XVI inseria-se no contexto do teatro inglês, inicialmente

como personagem secundária e suas ―características principais eram a gratuidade de

suas intervenções e a liberdade de improvisação‖. (REIS, 2013, p. 98) A pantomima era

característica no teatro inglês no qual a figura do clown ganhou visibilidade e tornou-se

personagem principal. No mesmo período, a pantomima inglesa teve seu encontro com

a Commedia Dell‘arte italiana, onde o clown contracenava com personagens cômicos

que exerciam o papel principal. No entanto, segundo Reis (2013) o clown conquistou

maior importância ao longo dos séculos XVII e XVIII, em função desta união da

pantomima inglesa com a Commedia Dell‘arte que o tornou mais atraente para as

plateias, assegurando seu lugar nos espetáculos. ―Desse encontro resultou uma sugestiva

fusão que teve como ponto terminal a concepção do clown moderno e circense‖

(BOLOGNESI, 2003, p. 63), cuja consolidação se deu na virada do século XIX, com o

trabalho do ator inglês Joseph Grimaldi (1778-1837), mais conhecido como Joey ou Joe.

Considerado criador do clown circense, seu nome tornou-se sinônimo de palhaço na

Inglaterra. Uniu a máscara branca de Pierrô com características da personagem italiana

Arlequim. Os livros relatam que sua personagem original não era simpática, mas sim

cruel e desumana.

Para Bolognesi (2003, p. 61), a expansão da arte clownesca se iniciou durante os

séculos XVIII e XIX, com a aproximação de outras artes de palco. Ao final do século

XVIII um dançarino de corda passou a integrar os espetáculos do Anfiteatro de Astley –

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onde nasceu o espetáculo circense – e pouco mais tarde a pantomima foi incluída no

circo equestre na França que manteve como foco das apresentações os números de

cavalo.

Concomitantemente a esse espírito feérico, o circo recebeu os artistas

saltimbancos que se afastavam das feiras esvaziadas. Nesse encontro

de segmentos díspares o circo viu-se diante das personagens cômicas

que ocupavam os tablados nas ruas e praças. (BOLOGNESI, 2003, p.

61,62)

Mudanças políticas e econômicas nos países europeus provocaram o

esvaziamento das feiras, que se constituíam como palco dos artistas saltimbancos e

então, o circo tornou-se uma nova possibilidade de atuação profissional. No entanto, do

encontro entre diferentes práticas artísticas – saltadores, acrobatas, malabaristas, etc.

entre os saltimbancos, a pantomima inglesa e números equestres – em um espaço já

reconhecido como circo, surge um tipo de cômico em que suas ações se restringiam a

paródia de números, especialmente os de montaria. No entanto, surge neste contexto

uma variedade de números circenses também parodiados por clowns que começam

assim, a se especializar como clowns saltadores, músicos, acrobatas, malabaristas, etc.

―Podemos dizer que prevaleceu na Europa do século XIX duas linhas de

palhaçaria principais, uma voltada para a cena e outra especializada em números que

parodiavam as atrações de habilidades circenses.‖ (REIS, 2013, p. 99). Esclarece assim,

que no século XIX a figura do clown ainda se fazia presente no ambiente do teatro, e já

caracterizava parte do espetáculo de circo com a paródia dos números de habilidades,

que perdurou até o século XX. Esta forma de organização do espetáculo circense é

considerada o princípio do espetáculo que conhecemos hoje, no qual existem dois

contrapontos principais: a tensão ocasionada pela sublimidade dos números de risco e

virtuosismo, e o relaxamento cômico, com o riso provocado pelo enfático corpo

grotesco dos clowns, ou palhaços.

Já no século XX, a arte do palhaço (REIS, 2013) desenvolve-se suscitando novas

abordagens quando praticantes do teatro começam a utilizar de modos diferentes os

mecanismos próprios do palhaço em suas criações artísticas e práticas pedagógicas

teatrais. Entre eles, Jaques Lecoq cuja metodologia tornou-se conhecida por enfatizar a

descoberta do palhaço pessoal de cada um. Sua escola se constituiu em um a forte

referência, formando gerações de alunos e influenciando as práticas artísticas a partir da

década de 1960 ―e disseminou consideravelmente sua abordagem técnica do palhaço

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como caminho de pesquisa independente e desvinculado da palhaçaria clássica.‖ (REIS,

2013, p. 29) Lecoq desenvolveu uma linha de formação em que o processo de

descoberta do palhaço pessoal se dá na exposição do ser humano em suas fragilidades e

na improvisação surgida de situações de constrangimento. Junto a estes princípios,

também valorizou o uso do nariz vermelho, o que possivelmente tenha enfatizado aos

olhos dos seguidores e espectadores, a associação ao palhaço Augusto, pois nas duplas

formadas até o final do século XIX a ele era atribuído o comportamento atrapalhado,

desajeitado que conduz a situações embaraçosas.

Quando o clown entrava em cena parodiando os números circenses, esta ação já

se constituía em um modo de se expor ao ridículo. O Riso era provocado pelas

tentativas atrapalhadas do clown de obter sucesso. Assim, ao longo da história legitima-

se o palhaço como ―o artista cujo trabalho consiste em provocar o riso, expondo a si

mesmo ao ridículo‖ (MAVRUDIS, 2011, p.303). No entanto, com a metodologia de

Lecoq, o ridículo se constrói no próprio corpo ao expor e trabalhar com as

características do atuante. Nesta abordagem, o aprendizado não ocorre somente a partir

da execução de números clássicos do repertório clownesco, mas primeiramente no

trabalho que deve proporcionar ao artista o conhecimento de si mesmo conduzindo-o a

compreender aquilo que nele é risível.

O clown não representa, ele é – o que faz lembrar os bobos e bufões

da Idade Média. Não se trata de um personagem, ou seja, uma

entidade externa a nós, mas da ampliação e dilatação dos aspectos

ingênuos, puros e humanos (como nos clods), portanto ―estúpidos‖, do

nosso próprio ser (BURNIER, 2009, p. 209).

Desde a década de 1970, em muitos países vê-se o crescente interesse na arte do

palhaço. Esse interesse que historicamente proporciona novamente sua dissociação ao

espaço do circo abrangendo então a cena e a rua. Começa assim, a se propagar em

infinitas direções e tendências. Ao mesmo tempo, o circo atravessa um período de

impopularidade devido à modernização de meios de comunicação como a televisão.

Diante desses dois fatores, a impopularidade do circo e o aumento do interesse pela

figura do clown, cria-se espaço para a renovação contemporânea do palhaço no Brasil

em contraposição ao palhaço de circo que circulava todo país há muitas décadas. Diz-se

em contraposição, pois com este movimento surgem no Brasil novas abordagens que

articulam o palhaço as técnicas teatrais, influenciadas em grande parte pela metodologia

de Lecoq e seu dissidente mais conhecido, Philippe Gaulier. A essa geração de artistas

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brasileiros que contribuiu para renovação da arte de fazer rir, Reis (2013, p. 47)

denomina como palhaços conquistadores. Alguns exemplos citados pelo autor são os

fundadores de grupos como o LUME Teatro, Teatro de Anônimo6 e Doutores da

Alegria7.

A adoção do termo clown no Brasil também ganha novo sentido com este

movimento, uma vez que clown era o nome usado por Lecoq. Já existiam de certa

maneira, fronteiras delimitadas entre teatro e circo no sentido da busca por uma

distinção das especificidades de cada arte, e a utilização do termo clown como marco de

sua apropriação no contexto teatral e como símbolo da renovação fundamentada na

pesquisa reforça sua separação do circo, delegando, não intencionalmente, ao termo

palhaço a impressão pejorativa do termo nas últimas décadas. Ou seja, um termo

estrangeiro substitui o termo local que designa a figura do cômico, no intuito de dar

visibilidade às diferenças de abordagem artística.

Distinguem-se ainda hoje duas linhas de aprendizado da técnica de palhaço,

porém, pode-se dizer que as duas se distinguem especialmente pelo contexto em que o

aprendizado ocorre. Uma, caracteriza os saberes ditos tradicionais transmitidos entre

famílias circenses ou também na experiência de convívio profissional no cotidiano

circense; e outra, que se caracteriza nas situações de aprendizado com artistas e mestres.

Importante, no entanto, ressaltar que dentre cada uma das linhas de aprendizado, há

também um gama enorme de variações nas concepções, modos de fazer e ensinar.

―Uma das principais alavancas cômicas do palhaço é o modo de se apropriar do

princípio do ridículo. Sobre a ligação vital entre o riso e o ridículo, a maioria dos

teóricos está de acordo. Daí a importância em nos determos também na experiência do

ridículo para compreender o universo do risível‖ (REIS, 2013, p.27). Este é um

princípio de ação que atravessa as mais variadas concepções de palhaço e formas de

6 O grupo teatral com sede no Rio de Janeiro, estrutura sua prática em processos de montagem,

apresentação e formação de atores sociais, desenvolvidos a partir de modelos de gestão e administração

coletiva. É o idealizador do Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro realizado desde 1996.

7 Doutores da Alegria é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que, desde 1991, atua junto

a crianças hospitalizadas, seus pais e profissionais de saúde. A essência do trabalho é a utilização da paródia

do palhaço que brinca de ser médico no hospital, tendo como referência a alegria e o lado saudável das

crianças e colaborando para a transformação do ambiente em que se inserem.

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aprendizado. O fato de se colocar como objeto de riso do outro é tão marcante que

muitas vezes ofusca, para os leigos, as técnicas e diferenças de cada palhaço.

Este aspecto é muito importante na investigação do corpo palhaço e então, a

experiência do ridículo é bastante enfatizada nos processos de formação de diferentes

modos, como por exemplo, a partir da inversão da lógica competitiva de alguns jogos

dando destaque ao perdedor no lugar do ganhador. Evidência da importância do ridículo

como princípio corporal, está nas obras de Reis (2013) que dedica parte de um capítulo

ao ―ridículo‖ e de Bolognesi (2003) que dilui a questão entre os capítulos que abordam

um pouco menos os processos históricos e aprofundam mais a discussão do corpo no

contexto circense.

Quando se fala da arte do palhaço no Brasil hoje, estamos falando de

saberes artísticos transmitidos predominantemente, de um lado, pelos

palhaços da tradição dos circos, e de outro, de técnicas voltadas para

arte do palhaço desenvolvidas no contexto teatral, cujo aprendizado e

desenvolvimento se dão em sala, com artistas que misturam as duas

perspectivas. (REIS, p. 46).

Ao perceber e considerar as transformações no fazer artístico do palhaço nas

últimas décadas, enquanto entendimento e modo de operar, que o aproxima do campo

das investigações corporais, quais podem ser os pontos em comum entre os universos do

palhaço e da dança enquanto pensamento contemporâneo?

Assim como Ricardo Puccetti (2006), acreditamos que o ofício do palhaço pode

ser aprendido por meio de processos de experimentação corporal que estimulam a

revelação de aspectos moralmente repremidos de si próprio, como via de descoberta do

estado de palhaço.

2.2 Corpodançarino e Corpopalhaço

É claro que provocar o riso é parte da natureza do palhaço, mas

quando se trata da sua formação não é do riso que cuida. Pelo menos

não se trata o riso como elemento estruturante da construção do ―ser‖

palhaço. O riso é uma consequência da maneira peculiar de como o

palhaço se relaciona com todos e tudo a sua volta. (LIMA, 2012, p.

35).

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2.2.1 Corpopalhaço

Na trajetória profissional podemos pontuar alguns acontecimentos que

contribuem no esclarecimento tanto dos desdobramentos artísticos quanto das escolhas

que configuram esta pesquisa. Os aspectos nela desenvolvidos são resultantes da

concomitante pesquisa teórico-prática nas áreas da dança e do palhaço desde o ano de

2007. Na arte do palhaço, vem sendo percorrido o caminho de aprendiz no qual as

primeiras experiências de composição e apresentação no formato de número, ocorreram

durante o período de mestrado, ou seja, a partir do ano de 2012. Deste modo, serão

discutidos os aspectos mais relevantes dos processos de Iniciação, Workshops e

Oficinas de palhaço a fim de esclarecer e justificar a opção de aprofundarmos as

discussões sobre processos de Iniciação. Serão assim, apresentadas possíveis

compreensões de um corpodançarino ao vivenciar propostas de investigação e criação

de um corpopalhaço, como forma de esclarecer o percurso artístico que tem gerado

condições para o desenvolvimento do projeto de pesquisa.

Beneficiada com uma bolsa da Fundação Cultural do Estado da Bahia houve a

oportunidade de participar, em 2007, da oficina denominada ―Clownaria Clássica‖ com

o mestre italiano Leris Colombaioni. Em português, uma possível tradução para o nome

da oficina é a expressão ―palhaçaria clássica‖, utilizada nesta pesquisa na compreensão

exposta por Reis (2013, p. 24) que a define como ―oriunda principalmente das tradições

circenses, como do palhaço Picolino e do Piolin no Brasil, ou, como os Colombaioni da

Itália.‖ A família Comlombaioni é de forte tradição artística e reconhecida como uma

das mais importantes na palhaçaria italiana. Descendentes da Commedia Dell‘arte, a

família migrou para uma nova forma de espetáculo, como a maioria dos artistas de rua

da época, com a criação do Circo Moderno, conta Leris Colombaioni em entrevista à

Circonteúdo (Gonçalves, 2009). Sobre sua primeira experiência no picadeiro, aos quatro

anos de idade, Leris afirma que seu pai lhe deu apenas algumas instruções pouco antes

de entrar em cena. Compreende-se neste estudo que se refere a um modo de

aprendizado comum às famílias circenses, no qual as crianças eram colocadas em cena

com breves instruções e deveriam realizá-las da maneira que lhes fosse mais

espontâneo. O ofício do palhaço era inicialmente aprendido no exercício de estar em

cena e posteriormente, viria o treinamento técnico, dos truques que valorizam e

enriquecem o número de cada palhaço. Esta perspectiva de aprendizado foi também

observada durante a temporada do ―Marcos Frota Circo Show‖, em Florianópolis, no

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ano de 2003, quando da atuação como bailarina. Durante três meses se deu o convívio e

a observação dos modos de relação das crianças com os adultos e com a prática artística.

Havia um grupo de aproximadamente oito crianças responsável pelo que se denomina

de transições de cena do espetáculo. Vestiam-se com macacão de cetim, diferentes tipos

de chapéu e o nariz pintado com uma bolinha vermelha. As entradas eram espontâneas

em seus roteiros, com poucas marcações e sempre com ideias experimentais

combinadas entre as próprias crianças minutos antes da cena. Nos bastidores,

comentavam e se divertiam com os ocorridos no picadeiro, fossem eles inesperados ou

não, e fixavam as ações que pareciam ter funcionado diante do público. Naquele

contexto, sabia-se que estavam sendo observadas suas habilidades a fim de direcioná-las

também para outras técnicas de circo com o passar dos anos, bem como definir aqueles

que dariam continuidade na função do palhaço.

No curso com duração de quatro dias, Leris ensinou e treinou truques técnicos

da palhaçaria, e os denominava como acrobacia e, particularmente, este fato causava

curiosidade. Foi sem dúvida, uma experiência singular sobre a qual as reflexões mais

consistentes foram produzidas nos anos seguintes, ao entrar em contato com outras

maneiras de ensinar e treinar, além de compreender a relevância de tê-lo conhecido.

Fez-se então, o entendimento de que aquela oficina coordenada por Leris Colombaioni

direcionava-se a um público mais experiente, com uma prática de atuação na palhaçaria

a qual seria enriquecida com o legado técnico da família Colombaioni. Perspectiva que

parece considerar um processo semelhante às crianças do Circo Marcos Frota, que

adquiriam primeiro a experiência do picadeiro, de estar em cena construindo suas

estratégias de provocar o riso para depois, aprender especificidades técnicas desse fazer.

No entanto, se a questão da técnica for abordada do ponto de vista que vem sendo

discutido na dança contemporânea, pode-se considerar que a experiência do picadeiro

também se constitui como um treinamento técnico. Uma vez que a experiência do

picadeiro consiste em proporcionar ao aprendiz a percepção e seleção de estratégias que

funcionam melhor junto ao público, ela caracteriza a parte do aprendizado em que o

artista vai construindo sua técnica pessoal. O que funciona para uma pessoa, pode não

funcionar para a outra, e esta compreensão será mais facilmente alcançada na prática

juntamente com o público. Ao mesmo tempo, evidencia-se com a prática de Leris

Colombaioni uma forma de compreender a palhaçaria que não perpassa necessariamente

pela descoberta e investigação de estados.

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Dois anos depois, a oficina com o grupo La mínima8 possibilitou fazer uma

distinção mais apurada do que o mestre Leris Colombaioni denominava por acrobacia.

Provavelmente devido ao histórico dos integrantes do grupo como trapezistas de circo, a

oficina de palhaço oferecida foi extremamente acrobática. O aquecimento era um forte

condicionamento físico composto de exercícios abdominais, repetições de séries de

apoios e corridas, seguido do treinamento de saltos e manobras em duplas que muito

lembraram experiências anteriores com cursos de acrobacia solo, como o da Escola

Pernambucana de Circo. Fez-se então, a compreensão de que a expressão acrobacia

recorrente nos comandos de Leris, implicava a necessidade de conhecimentos básicos

desta prática para conquistar agilidade nos truques assim como mostrava sua concepção

dos truques da palhaçaria como ações acrobáticas, em distinção da acrobacia solo. Em

nenhuma das duas experiências foram abordados jogos ou brincadeiras, bem como não

houve a prática de exercícios que simulasse a situação do picadeiro.

Experiências posteriores de formação trouxeram novas referências associando

estados do corpo, a prática de jogos e brincadeiras, e a pesquisa corporal através da

investigação de formas e qualidades de movimento, com exercícios de repetição,

dilatação e permanência.

O processo que hoje se chama iniciação do clown nada mais é do que

a condensação no tempo de uma série de experiências pelas quais o

ator clownesco passa e que o ajudam a encontrar ou confirmar seu

clown. A iniciação é uma vivência ―condensada‖, que provoca o

desencadeamento de um processo mais longo de criação do clown.

Devo esclarecer que nem sempre esse processo iniciático resulta na

criação do clown. (Burnier, 2001, p. 210).

Deste modo, observamos que a inserção de um conjunto de exercícios que

integram a prática denominada como picadeiro, é um ponto em comum entre os três

processos de Iniciação vivenciados para essa pesquisa, e que assumem a nosso ver

aspectos filosóficos da metodologia da escola de Jacques Lecoq. Embora algumas

outras propostas metodológicas encontradas se denominem como oficinas, a forma de

organização dos exercícios e os princípios desenvolvidos em seus conteúdos,

configuram para nós práticas semelhantes à Iniciação de palhaço. Observamos assim,

um modo de olhar e compreender corpo que parece encontrar pontos de convergência

com a dança contemporânea.

8 Grupo de teatro e circo, sediado em São Paulo, formado por Domingos Montagner e Fernando Sampaio.

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Um exemplo é o ator, diretor e palhaço João Lima9 (2012), que nos fala em suas

oficinas que podemos entender os caminhos de formação do palhaço basicamente sobre

duas vias. Uma, em que o enfoque primeiro está no aprender a Ser palhaço, entender-se

corpopalhaço, para depois aprender a Fazer, ou seja, aprender a usar a técnica e se

relacionar com objetos e pessoas; a outra via seria o contrário: primeiro aprender o

Fazer, para depois aprender a Ser palhaço. Este modo de referenciar o aprendizado,

apesar de dicotômico, colabora para a compreensão dos principais pontos que

constituem o caminho do aprendiz: o trabalho pessoal de descoberta e apropriação das

características e mecanismos próprios de cada corpopessoa; e o treino dos princípios

técnicos que contribuirão no desenvolvimento de maneiras de se relacionar com o

mundo. Entretanto, do ponto de vista cognitivo sabe-se que Ser e Fazer não podem ser

separados, pois ambos são processos do corpo implicados em vínculo biológico na

construção de conhecimento. ―Aprender a Ser‖ implica ação tanto quanto ―Aprender a

Fazer‖ implica uma identidade. O fato é que são focos distintos em cada momento do

aprendizado influenciados por um modo de organização metodológica do ensino. Por

exemplo, no caso das crianças do Circo Marcos Frota, o treinamento do ―aprender a

Ser‖ estava totalmente integrado ao fazer, pois se dava na experimentação de cena no

próprio picadeiro do circo em relação direta com o público.

Para Puccetti (2006) ―o público ajuda o palhaço a aprender consigo mesmo, e

sem este aprendizado ninguém se torna um palhaço‖ (PUCCETTI, 2006, p.20). Por este

motivo, o picadeiro é introduzido nos processos de iniciação, a fim de gerar o espaço

para o exercício das relações, bem como experimentar o não-fazer ou o fazer como

impulso real ao se relacionar com o outro, e não ação como consequência de uma

decisão a priori, ou de um planejamento (PUCCETTI, 2006, p. 21). Como dizem João

Lima (2012) e Alexandre Casali10

(2011) se deixar ser visto pelo outro, o público, e vê-

lo também evoca uma qualidade de olhar diferenciada e fundamental para o palhaço.

9 João Lima é ator licenciado pela Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Diretor da Via

Palco Companhia de Teatro em Salvador com inúmeros espetáculos de palhaço e circo, que atua também

como palhaço. Nos últimos anos tem atuado como Professor convidado do curso de Pós-Graduação em

Ludicidade e Desenvolvimento Criativo de Pessoas, da Transludus, Salvador, na qual desenvolveu na

qualidade de estudante a monografia ―A ludicidade na arte de ser palhaço‖. Considerado mestre, coordena

cursos de Iniciação em Palhaço entre os quais, os de 2008, 2011e 2013, compõem o currículo da

pesquisadora.

10 Alexandre Casali é palhaço atuante e coordenador de cursos de ―Iniciação e Pesquisa na Arte do

Palhaço‖, pelo qual a pesquisadora, Denise Torraca, foi batizada com o nome de Bolshóia em 2011, na

cidade de Salvador.

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Pode-se dizer então, que o corpopalhaço desenvolve a consciência – no sentido

de ter conhecimento – dos modos operantes do próprio corpo, como via de descoberta

das características pessoais a serem exploradas e que contribuirão na criação de uma

técnica pessoal. No corpodançarino o desenvolvimento de uma técnica pessoal se dá

comumente por necessidades geradas pelo coletivo ou por características da obra. Por

exemplo, um dançarino que tem um modo de se movimentar mais lento e demonstra

dificuldades com o que lhe solicita um ritmo acelerado. Ele terá de desenvolver seus

próprios métodos para alcançar a solicitação de acelerar o ritmo, enquanto no

corpopalhaço esta seria considerada uma característica específica daquele corpo, como

uma marca que permite reconhecê-lo em qualquer lugar, e que a partir dela são

investigadas qualidades complementares. Desta forma, afasta-se de concepções

abstratas do ―Ser‖ e enfatiza-se como cada corpopessoa é nos seus modos de

organização constituídos por sua história e cultura.

Antônio Damásio (2011, p. 27,28) traz reflexões importantes em relação à

história da mente no campo científico e dos estudos da consciência, onde considera a

perspectiva da mente separada do organismo ao qual pertence, uma distorção. Pelo fato

de ser um fenômeno diferente ―daquele encontrado nos tecidos e nas funções do

organismo‖ (DAMÁSIO, 2011, p.28), gera-se a impressão de que ela não possui uma

natureza física. ―Ver a mente como um fenômeno não físico, separado da biologia que a

cria e a sustenta, é a razão pela qual certos autores apartam a mente das leis da física,

uma discriminação à qual outros fenômenos cerebrais geralmente não estão sujeitos‖

(DAMÁSIO, 2011, p. 28). Deste modo, a afirmação esclarece o ponto de vista do autor

sobre aspectos relativos à questão da mente: 1. A mente é parte dos processos

biológicos; 2. É um, entre tantos outros, fenômenos cerebrais. Em complementaridade à

essa linha de pensamento, Rengel (2007) argumenta que a mente opera por princípios

químicos, físicos e biológicos em vínculo e utiliza a expressão ―menteScorpoS‖ como

forma de indicar atividade conjunta. Entre as produções da professora e pesquisadora

Rengel (2007, p. 37), o conceito de corponectivo11

como tradução de embodiment faz

referência à situação em que mente e corpo são trazidos juntos como modo de operar do

organismo, entendendo que esta é a forma de ser/estar no mundo, e não apenas uma

11

Capítulo 1, p. 20.

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possibilidade. Desta forma diferencia-se dos termos e expressões que promovem o

entendimento de operações distintas – primeiro mente e depois corpo.

O termo embodiment, utilizado também no teatro com o sentido atribuído por

Stanislavisk (Burnier, 2009) como corporificar, no sentido de tornar-se corpo, se

aproxima muito da concepção de fisicalizar algo que está sendo sentido pelo ator ou

performer no ato da criação ou da cena. Esta concepção, no entanto, pode induzir ao

entendimento de que aquilo que ocorre ao artista no âmbito privado, como por exemplo,

uma sensação, não é física, ou ainda, não é corpo, mas tornar-se-á.

A experiência mais recente em um curso de Introdução ao Clown, com Michael

Kennard12

em junho de 2013 no Canadá, junto aos estudos, proporcionou novas

reflexões em torno da concepção do termo ―fisicalizar‖, apresentado na ementa entre

seus conceitos-chave do workshop. Comumente os primeiros exercícios de Picadeiro

tem um objetivo muito específico, e aparentemente simples, que é apresentar-se para o

público e treinar o olhar. Cada pessoa a sua frente deve ser olhada nos olhos pelo tempo

que for necessário. É um exercício que provoca reações das mais variadas sendo

bastante recorrente a expressão do choro. Do ponto de vista de quem assiste o exercício,

muitas reações podem ser observadas em movimentos sutis do corpo, como por

exemplo, os braços balançando levemente para frente e para trás, as mãos e punhos

cerrados, os dedinhos dos pés encolhidos como num sapato apertado, etc. São inúmeras

as formas de reação corporal à situação imposta: estar só, frente a certo número de

pessoas com toda a atenção direcionada a você, exclusivamente a você. E é neste ponto,

nesta espontaneidade de reações, que se inicia a pesquisa da fisicalidade do palhaço, e

por isso dito próprio de cada pessoa. Entretanto, como discutido, o termo fisicalizar

pode induzir a um entendimento dualista de corpo, como se todas as operações que se

sucedem corporalmente até que o braço comece a balançar, por exemplo, não fossem

físicas. E, importante ressaltar, que tal fato também acontece no treinamento de dança.

Num processo contínuo de prática artística, ensino e reflexão teórica João Lima

conta que vem repensando o nome do seu workshop para ―A arte de Ser palhaço‖. Em

2013 suas reflexões sobre processos de Iniciação e princípios da atuação do palhaço,

foram reunidas em sua monografia de conclusão na Especialização em Ludicidade e

12 Bacharel em Artes pelo Departamento de Drama da Universidade de Guelph, em 1986. Atuou como

clown do Theatre Resource Centre, Toronto, a partir de 1988. Foi Professor Assistente no Departamento de

Drama da Universidade de Alberta, de 2007 a 2012, tornando-se Professor Adjunto da mesma em 2012.

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Desenvolvimento Criativo de Pessoas. Deste modo, além de parceiro nos diálogos e

aprendizados, mestre em cursos de iniciação, pôde-se também utilizar de uma produção

escrita do artista, na qual discute três princípios para o treinamento: o estado afetivo, a

dilatação psicofísica e a lógica genuína.

O estado afetivo é descrito então, como ―aquele em que o sujeito se encontra

presente, no aqui e agora, sensível, atento e conectado psicológica, fisiológica e

sensorialmente com toda a gama de sensações que está acontecendo interna e

externamente ao sujeito‖ (LIMA, 2013, p. 19).

Neste sentido, observa-se em comum na metodologia de diferentes cursos, a

indicação durante os exercícios de imprimir a qualquer ação, a intenção mais próxima o

possível de quando realizada em sua primeira vez. Ou seja, permitir-se experimentar

sempre. Estar disponível a surpreender-se até mesmo com ações de muito antes

conhecidas e praticadas. E as situações desconhecidas comumente geram um estado de

tensão relacionado ao inesperado, ao fato de não saber ao certo o que virá a ocorrer. O

que ao mesmo tempo nos mantém atentos, a espera do desconhecido. Então para o

diretor e artista, tensão e atenção se aproximam como componentes do que denomina

estado sensível.

Outro fator importante para ativação deste princípio é o olhar já referenciado (p.

50). Segundo mestres, o olhar nos mantém no presente, e esta é uma qualidade

fundamental para colocar-se disponível diante do público. Ao longo dos finais de

semana de formação com Casali em 2011, um comando era incessantemente repetido:

―não existe mais chão, não existem mais paredes, não existe teto, só existem os

olhares‖. Era uma forma de nos dizer que não utilizássemos de subterfúgios para desviar

dos olhos do outro e assim, nos tornamos caçadores de olhares. Michael Kennard, no

curso feito em 2013, chamou de espaço mágico o espaço que se cria, que se legitima

como vínculo entre artista e público pela conexão do olhar. Como forma de nos testar,

de averiguar se estamos disponíveis e atentos ao presente, arremessa chaves, garrafas e

cadernos no chão em direção ao aprendiz que está praticando o picadeiro. Seu objetivo

com esta atitude é também observar o modo como cada corpopessoa reage e, às vezes,

nem sequer é percebido, tamanha é a tensão daquele que está só no centro do círculo

com todos os olhares a ele direcionado. Se no dia-a-dia, alguém deixar cair uma garrafa

no chão, repentinamente, todos nós reagimos. Com diferentes reações, mas reagimos

todos.

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Quanto ao entendimento de dilatação, argumentamos que se assemelha ao que

autores como, por exemplo, Bolognesi (2003) e Mavrudis (2011) descrevem como a

exposição exagerada das imperfeições e sentimentos do artista. Mais especificamente, a

dilatação denominada por Lima (2013) como psicofísica, refere-se à ampliação não

somente do movimento em termos de amplitude, mas de expressões faciais, gestos,

cacoetes, e por isso denomina psicofísica. Porque considera que alguns aspectos são de

ordem psicológica.

Para apresentar seus números, orienta-se por repertório tradicional

sobre o qual improvisa, como é o caso dos palhaços de circo, ou cria

seu próprio texto ou roteiro, ou simplesmente improvisa a partir de

motivos encontrados em meio a plateia, dando asas a imaginação. No

seu espetáculo, o que conta não é o que faz, mas sim ―como‖ faz. Uma

de suas principais características é a expressão corporal, geralmente

exagerada. (MAVRUDIS, 2011, p. 303).

Do ponto de vista do corpodançarino, observa-se que quando a dilatação é

associada a exercícios de permanência, resultam em posturas, em outros modos de

organização do corpo que estão, de acordo com nossos estudos, relacionados aos

estados. Uma vez que alteramos nosso modo de caminhar, por exemplo, com a

permanência dessa alteração poderemos ter maior conhecimento de outras alterações

desencadeadas. Uma mudança na respiração, uma dor que surge em um lugar qualquer

das pernas ou da coluna vertebral, uma transformação no posicionamento dos braços, e

assim por diante. Estas modificações visíveis a qualquer observador são alterações dos

estados do corpo e considera-se no treinamento do palhaço, a possibilidade de torná-las

conscientes, no sentido de ―ter conhecimento de‖. Portanto, metodologicamente o

princípio da dilatação auxilia o aprendiz na compreensão e na descoberta do estado de

palhaço.

O terceiro princípio de Lima (2013), a lógica genuína diz respeito à forma de

construção das ações em cena, o ―como faz‖ dito por Mavrudis (2011, p. 303). Para que

as ações tenham sentido para o público também, é importante o modo como elas são

realizadas. O artista precisa ser verdadeiro, honesto consigo mesmo e com o público

sobre aquilo que está sentindo no momento e deixar isso aparecer nas ações, no corpo

em cena. Aquilo que não deu certo ou não foi programado, o nervoso ou a ansiedade, ou

qualquer outra ocorrência não precisam ser disfarçados a fim de cumprir os pré-

estabelecidos. De modo diferente, o dançarino muitas vezes não deve permitir que os

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sentimentos surgidos no momento interfiram no conjunto da obra, ou em sua

performance especificamente. Por exemplo, se a partir de uma marcação para o

dançarino entrar em cena com um andar descontraído e a expressão facial de

tranquilidade e bem estar, e pouco antes de entrar recebe uma notícia de perda familiar.

A tarefa de manter a expressão facial de tranquilidade se tornará mais difícil e o

dançarino tentará mesmo assim, cumprir a determinação prévia da cena, enquanto o

palhaço deve estar preparado para se aproveitar do inesperado ou de qualquer erro em

cena. Mas precisa desenvolver a habilidade de mostrar ao público, preferencialmente

sem o uso da fala, porque está agindo de tal maneira. Por exemplo, se não deu certo

esconder-se com uma cortina porque ela é muito pequena, tentará se esconder com a

outra cortina mesmo que ela seja idêntica à primeira. Este desajuste do modo de se

relacionar com o mundo causa o riso, e assim, a graça está no corpopessoa, no modo

como formula suas ideias e as situações que se envolve por consequência. O riso é uma

consequência do seu modo de ser/estar no mundo.

2.2.2 Corpodançarino

No contexto da contemporaneidade, além da variedade nos modos de ser

palhaço implicados por fatores como linha de formação e conhecimento técnico, há

também uma diversidade nas finalidades com que o estudo e o treinamento da técnica

são aplicados. Esta ampliação se deve em parte às novas abordagens surgidas entre as

décadas de 70 e 80, com o movimento de renovação das artes circenses (REIS, 2013, p.

47). Esta pesquisa, por exemplo, tem por objetivo discutir a integração do treinamento

do palhaço com a investigação de movimento em dança. Logo, torna-se necessário

refletir também sobre aspectos e modificações do pensamento em dança que vem se

construindo nas últimas décadas, e que configuram o contexto atual da dança

contemporânea, bem como da pesquisa em dança. Integram o referencial para o

entendimento sobre a arte do palhaço proposto por um corpo dançarino e, mais

especificamente, com o objetivo de avançar na discussão do denominado estado de

palhaço.

A dança contemporânea busca novas qualidades e formas de organização do

movimento no corpo dançarino, e torna cada vez mais latente o questionamento do que

é movimento de dança. De modo a contribuir com a discussão, Domenici (2008) afirma

que

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No pensamento contemporâneo essa noção deve incluir também

micro-movimentos articulares ou a simples modificação dos estados

tônicos do corpo: modificações sutis provocadas pela modulação da

tensão muscular que modificam a qualidade do movimento.

(DOMENICI, 2008, p. 1).

A professora e pesquisadora fortalece o argumento de que o trabalho de corpo

que enfoca a percepção de seus estados e suas modificações está entre as características

que constituem a dança contemporânea hoje. Neste contexto, a valorização do corpo em

cena se dá de modo distinto quando da aplicação de técnicas codificadas historicamente

como o ballet clássico e as técnicas de dança moderna. Em consequência, o treinamento

para o dançarino contemporâneo é muitas vezes determinado e codificado pelo próprio

processo de criação em acordo com as necessidades emergentes das questões de

pesquisa. Também, o entendimento de dança exposto implica que a forma de

pensamento que rege o processo é contemporânea e sendo assim, não carrega consigo

nenhum protocolo rígido de regras e/ou combinações que determinam previamente ao

processo, as qualidades resultantes na obra artística. Desta forma, o processo de criação

ganha novas atribuições que o tornam tão importante quanto seu resultado, aproximando

a dança do movimento que se configura nas artes a partir da segunda metade do século

XX. Entretanto, o que sempre provocou inquietações pessoais é o fato de que em ambas

as artes que são o foco deste estudo, o palhaço e a dança, o espaço de experimentação

de conceitos e possibilidades é o próprio corpo. Segundo Reis (2013)

Uma das chaves da arte da palhaçaria tem sido como extrair o riso das

plateias através da exposição de uma dramaturgia que parte da

realidade das vidas de seus praticantes: os palhaços. Talvez este seja

um dos motivos para que o próprio corpo desses artistas tenha se

tornado o território privilegiado das descobertas de sua comicidade.

(REIS, 2013, p.26)

É um modo, mesmo que não intencionalmente, de reafirmar a não separação em

aspectos da pessoa e aspectos do corpo. A pessoa é o corpo. O corpo é personalidade,

emocional, racional, tudo junto. É corponectivo.

Corpo dançarino aprendiz de palhaço. Inevitavelmente o terreno de inquietações

e resignificação do corpo na prática de dança contemporânea suscitou uma série de

perguntas sem respostas diante dos exercícios de treinamento. A intensidade das

experimentações corporais nos processos de iniciação à arte do palhaço provocam

verdadeiros encontros com qualidades de movimento adormecidas em um corpo ainda

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modulado por uma série de códigos advindos de modos de fazer dança. Principalmente

ao código do balé clássico correspondente ao treinamento mais intensivo ao longo de

muitos anos.

Uma dificuldade encontrada é a de se dispor e se movimentar sem vislumbrar

uma continuidade sequencial de movimentos, muito empregada na dança, ou pré-

organizar instantaneamente uma intenção de movimento, ou ainda, libertar-se do

repertório advindo dos modos de organização do corpodançarino apreendidos em uma

vida inteira de dança. Mas ao mesmo tempo, a inquietude de perceber que a

investigação corporal no treinamento do palhaço muito se aproxima da pesquisa e

criação em dança contemporânea. Até compreender que, nos dois casos, o corpo é de

fato o lugar de pesquisa e experimentação, porém regidos por lógicas e finalidades

completamente distintas. O palhaço busca em sua investigação alcançar um corpo

cômico e o que o público espera quando vai assisti-lo, é o riso. E na dança

contemporânea, o dançarino busca alcançar uma forma de investigação do movimento a

partir da proposta, do estilo ou das intenções do diretor da obra, enquanto o público da

dança contemporânea já não sabe mais exatamente o que esperar quando vai assisti-la,

tão ampla é a variedade de suas concepções e modos de fazer.

A descoberta pessoal da lógica de cada palhaço se dá pelo trabalho corporal e

será ela a orientadora de outras descobertas, junto ao desafio de sustentação dos estados

de ludicidade, a exemplo das reações corporais que são tão importantes para evidenciar

esta lógica pessoal para o público. Talvez mais uma distinção da prática da dança para o

palhaço esteja nas relações de cada um com a criação e a performance em cena. Deste

modo, argumentamos que no corpopalhaço a performance engloba a criação como uma

continuidade de seu processo e pesquisa em ato, pois ele deve estar apto a se relacionar

com as reações do público e assim, sua improvisação em cena nem sempre pode ser

prevista no roteiro. Enquanto na dança contemporânea, embora também seja um

processo em continuidade, a criação habitualmente é compreendida como anterior a

performance. Sem desconsiderar a existência de trabalhos de dança que se propõem ao

ato da criação em cena, mas apenas reconhecendo que em maior parte das obras haverá

um roteiro pré-organizado com as especificações dos momentos em que poderão ocorrer

improvisações, associado a elementos de cena como iluminação, objetos, etc.

Nas experiências de dança o estado de presença, ou estados de ludicidade,

podem ou não acontecer, mas raramente é uma condição para o seu acontecimento.

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Mesmo quando estados de presença estão no cerne da proposta, das questões colocadas

para a cena ou para o processo de criação, a dança sempre acontecerá em cena, com ou

sem estados específicos. Sem a intenção de diminuir, no entanto, sua importância para a

dança ou desconsiderar que as qualidades da mesma serão modificadas. Mas este não é

o caso do palhaço. Ele acontece na reinvenção de estados de ludicidade que

transbordam em um corpo cômico, sem limites, até provocar o riso da plateia. Caso

contrário, o palhaço cairá na teatralização estereotipada correndo o risco de tornar a

cena artificial.

Contudo, com a observação de que os jogos e as brincadeiras aplicados ao

treinamento do palhaço contemporâneo operam como modo de experimentação e

descoberta desses estados, definimos a capacidade de jogo (RYNGAERT, 2010) como

o primeiro eixo de pesquisa do palhaço para a dança.

2.3 A capacidade de jogar, dança?

E aí o aprendiz de palhaço percebe que ele não tem

outra escolha a não ser continuar caminhando.

(PUCCETTI, 2006, p. 25)

Como esclarecido ao longo deste capítulo, compreendemos a importância dos

jogos na formação do palhaço contemporâneo. Todavia, uma das características desta

pesquisa é a convergência de autores que deslocam o foco de suas reflexões da atividade

para a pessoa que a vivencia, ou mais especificamente para os processos do corpo em

determinadas situações.

Pesquisadora em dança, Pinho (2009) se interessou nas especificidades da

improvisação e motivada por certo desconforto com a observação de que as questões de

envolvimento coletivo demandam em geral, soluções coreográficas convencionais que

muitas vezes acabam por imprimir na improvisação características de outros modos de

criação em dança. A interação coletiva e a busca de soluções mais apropriadas para a

improvisação são seus focos de pesquisa. A estruturação de jogos-cena é o que propõe

como solução coreográfica para improvisação, pois argumenta que ao mesmo tempo em

que orienta o desempenho dos interpretes, os mantêm integrados a ―uma ação conjunta

dentro de um campo aberto de escolhas‖ (PINHO, 2009, p. 11). Embora ludicidade não

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seja um conceito utilizado e nem mesmo um tema de interesse da pesquisadora, as

situações elaboradas são, à luz desta pesquisa, reconhecidas como propulsoras de

estados de ludicidade para os intérpretes, a partir das qualidades de presença e prontidão

que possibilitam. É um exemplo de utilização de estruturas de jogo como organização

coreográfica para a cena improvisada de dança.

Dois autores ocupam lugar nuclear na compreensão conceitual dos estados de

ludicidade: Luckesi (2005) e Damásio (2011). O primeiro valoriza o modo como as

experiências são vividas por cada um e, sobretudo, as sensações que provocam no

corpo. Desta forma, permite delinear um campo amplo de possibilidades de

experimentação da ludicidade e redefini-la tendo em vista os processos corporais que

resultam do envolvimento da pessoa com as atividades que lhes são propostas. A partir

da associação das questões de Luckesi (2005) com os estudos de Damásio, que

facilitaram o entendimento sobre estados corporais e os processos da consciência,

chegamos à indicação do que denominamos de estados de ludicidade, como um dos

eixos de pesquisa do palhaço para a dança. A partir desta rede conceitual, do

reconhecimento sobre o papel da integração de jogos e brincadeiras no treinamento do

palhaço contemporâneo e mais ainda, do desejo de transgredir o jogo como

possibilidade de organização de cena, chegou-se à definição do segundo eixo de

pesquisa: a capacidade de jogar.

Da área teatral, Ryngaert (2009) se preocupa especialmente com a relação das

pessoas com o jogo e com o mundo, provocando também para uma mudança de

perspectiva nas discussões sobre o jogo. A leitura deste autor permite esclarecer modos

de fazer teatro em que as preocupações convergem com os dizeres de Pinho (2009).

Assim, são como um fio condutor nos processos de criação e estruturação da cena: o

não enrijecimento em estruturas pré-organizadas e o não esvaziamento em decorrência

da falta de propósitos claros. Ryngaert (2009) também apresenta preocupações muito

próximas às da arte de palhaço do ponto de vista pela qual ela é compreendida nesta

pesquisa em dança, esclarecendo aspectos que podem estar presentes também em

proposições para o trabalho do artista em geral, e não somente para o palhaço.

O Lume Teatro é também um exemplo, no qual os princípios éticos e técnicos

são desenvolvidos tendo em vista o trabalho de corpo em sua mais ampla compreensão,

a partir dos fundamentos da não interpretação. As especificidades do palhaço

caracterizam apenas uma entre as vertentes de pesquisa do grupo.

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Deste modo, para desenvolver a capacidade de jogar como eixo de pesquisa do

palhaço para a dança, serão abordadas primeiramente as distinções entre técnica de

treinamento e técnica de representação discutidas por Burnier (2009). Entretanto, sem

nos dedicar à nomenclatura e suas origens, nos interessa especificamente o

entendimento de treinamento e a relação que descreve como inevitável entre estas duas.

O autor afirma que estão entrelaçadas, pois o treinamento deve preparar o artista na

técnica dentro das opções artísticas e estéticas da obra em construção. ―Ou seja, as

técnicas estão vinculadas às suas expressões artísticas‖ (BURNIER, 2009, p. 171) e no

caso do teatro, tanto a técnica de representação como a de treinamento, está vinculada a

sua forma de expressão. Como o exemplo citado pelo autor, para uma representação

teatral de um texto expressionista não faria muito sentido utilizar de técnicas realistas. E

na expressão artística da dança, de que modo podemos pensar essa relação? Certamente

será muito diferente se a referência for dança contemporânea. Existem muitos grupos

que em cena trazem a dança contemporânea, mas em seu treinamento utilizam de

técnicas como o ballet clássico, dança moderna de Graham, entre outros. Mas se for o

caso de uma encenação de um ballet de repertório, o treinamento deverá ser o próprio

ballet. A relação entre o que se treina e o que se dança em cena pode ser explicada de

diversas maneiras. Uma vez que não foi definida anteriormente a estética de dança a ser

apresentada, mas sim o que se quer no treinamento para criação dessa dança, o desafio

aqui está na reflexão de quais elementos da formação do palhaço podem se constituir

como componentes para um treinamento em dança, tendo em vista a (co)geração de

estados de ludicidade. Para isso no dedicaremos agora, a compreensão do que vem a ser

a capacidade de jogar, bem como aos elementos que a integram.

Com o foco na compreensão das relações que as pessoas criam com o jogo,

Ryngaert (2009) o define como uma zona intermediária que funciona como campo de

experimentação criativa. Para alcançar esta reflexão propõe como parâmetro de

compreensão, os modos de experiência da criança com o jogo e deste ponto de vista,

podemos perceber que há também uma mudança de perspectiva sobre o espaço-tempo.

Assim como autores mais tradicionais sobre o assunto, Ryngaert (2009)

considera que um jogo tem entre suas características marcantes, o espaço-tempo

definidos, onde e quando começa e termina. E se refletirmos sobre a atitude da criança,

o espaço-tempo em que ocorre continua sendo definido, mas quem o define é a própria

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criança. Muitas vezes, um jogo acaba quando ela se desinteressa por ele ou quando

surge outra brincadeira, que pode ser uma transformação da primeira. Aí o jogo não terá

finalizado, mas haverá se transformado em outro. Da mesma maneira ocorre com o

jogador que, ao conquistar o aumento da sua capacidade de jogo, vive cada vez mais

intensamente a imersão nesta zona intermediária de experimentação. Denomina de

intermediária porque considera que o jogo não é nem aquilo que ocorre no corpo do

jogador, e nem é a situação ou a própria atividade, mas é um espaço potencial, o que

está no ―entre‖, nas relações e tensões que se constroem. Assim, transita entre o real e o

imaginário, constitui-se como uma possibilidade de experimentação do real com a

diminuição de seus riscos, como acontece com a criança que permite que uma

brincadeira se transforme em outra, pela fluência criativa. Para Puccetti (2006, p. 25) o

tempo de sustentação do jogo é o tempo que o artista consegue se manter disponível, no

estado de palhaço, de jogar na lógica do palhaço.

Ricardo Puccetti (1999) em um de seus artigos faz menção a uma concepção de

palhaço cuja metodologia de criação abrange a uso de máscaras e que muito se

assemelha a esse espaço potencial de experimentação. Afirma então que ―o clown, para

Sue Morrison13

, não é um estilo, é o espaço de onde você atua, espaço onde tudo é

possível, onde nada é fixo. O clown existe na relação entre as máscaras e a platéia, ele

está "entre".‖ (PUCCETTI, 1999, p. 92). É como o entendimento do espaço mágico14

proposto por Michael Kennard, que conduz ao entendimento deste espaço do entre,

como uma espécie de vínculo que se cria entre artista e público, como uma zona de

sobreposição de fluxos, uma zona de encontro.

Uma vez considerado o jogo como a zona intermediária, o que está no entre, está

afirmando também o espaço do coletivo, o ambiente que se cria e configura o espaço-

tempo chamado jogo. Por esse motivo o engajamento e concentração de cada jogador

atuam como aspectos favoráveis à criação deste campo de experimentação.

Vejamos novamente um exemplo citado no capítulo um sobre o jogo da bola

imaginária. Praticá-lo em grupo, fora do contexto da sala, exigiu um engajamento e

concentração muito maior e observou-se que isto possibilitou de fato o aumento da

13

Sue Morrison é internacionalmente reconhecida como professora orientadora de trabalhos de clown e

bufão, performer experiente, diretora The Theatre Resource Centre, na cidade de Montreal – CA, coordena o

curso conhecido com O Clown através da Máscara, em continuidade a metodologia de Richard Pochinko.

14 Capítulo 2, p. 55.

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capacidade de jogo que, como uma via não apenas de mão dupla, mas de muitas mãos,

potencializou o próprio jogo. De tal modo que diferentes formas de brincar com a bola

foram surgindo espontaneamente no decorrer da atividade. O campo de experimentação

criativa estava instalado e uma vez que bola (imaginária) foi lançada para o alto no

centro da roda, sem ser direcionada a nenhum outro jogador, todos compreenderam de

imediato que a bola seria então, de domínio daquele que a alcançasse primeiro. Mas

como saber quem alcançou primeiro uma bola imaginária? É uma negociação

decorrente do fluxo criativo em curso. É o jogo sendo reinventado mais uma vez. Muito

embora esta não seja uma experiência de dança especificamente, é imprescindível que

ela ocorra, com a ―bola imaginária‖ ou qualquer outro jogo em grupo, para gerar o

conhecimento no corpopessoa tanto dos estados como da capacidade a ser desenvolvida

para a dança, enquanto modo de agir.

Ryngaert (2009) ao defender que não devemos nos enrijecer em regras de

funcionamento nem do processo, nem do produto, argumenta que a capacidade de jogo

implica especialmente outras formas de relação entre processo e produto.

Consideremos, portanto, a abertura para um público como uma

possibilidade, não como um objetivo final que deve ser atingido a

qualquer preço, sobretudo em detrimento dos indivíduos. O

acabamento de um trabalho (sempre provisório) é uma eventualidade,

não uma exigência que impõe a ditadura de resultados visíveis. (RYNGAERT, 2009, p. 32).

Desta maneira, nos interessa as relações que constrói entre improvisação como

técnica de treinamento, desenvolvimento da capacidade de jogo e as possibilidades de

interação com o público que podem ou não gerar modificações na cena. Porém, em

divergência

O clown se alimenta dos estímulos que vêm de seus espectadores,

interagindo com eles, numa dinâmica de ação e reação. Essa interação

com os espectadores e também com outros clowns significa uma

possibilidade de alteração da sequência das ações do clown.

(BURNIER, 2001, p. 219).

A afirmação esclarece a abertura e disponibilidade ao outro, aos estímulos que

vem da plateia como uma condição na atuação do clown, mas assume a alteração de seu

roteiro ou sequência de ações como uma possibilidade decorrente dessa abertura.

Mesmo quando o palhaço apresenta uma cena cuja partitura é toda codificada

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sequencialmente, ele deve manter-se neste estado de abertura, no estado de presença

capaz de reagir a qualquer estímulo do ambiente. A partir da interação dessas duas

perspectivas, o treino que resulta no aumento da capacidade de jogo é considerado como

uma forma de conquistar habilidades de interação, ou desenvolver uma atitude de

disponibilidade com o público.

A imersão no espaço potencial de criação é referida também por Ryngaert

(2009) como um ―estado de jogo‖ ao qual o artista permite abandonar-se na medida em

que alcança hábitos de concentração. Assim, discute mecanismos pessoais que

influenciam tanto no aumento da capacidade de jogo quanto podem frear a possibilidade

de se empenhar nele. Esses mecanismos serão apresentados a partir de um recorte em

função das convergências com aspectos encontrados nas Iniciações em palhaço, bem

como para direcionar o debate para a dança.

A discussão que se apresenta no primeiro capítulo através da pesquisa de Pinho

(2009) evidencia a dificuldade dos dançarinos de sustentar o jogo proposto em função

de uma preocupação exagerada com a forma e a estética do movimento. Preocupação

esta, muito comum no bailarino de formação técnica convencional. Para Ryngaert

(2009) seria uma forma de negação do jogo em consequência da própria dificuldade de

jogar, que pode ser escondida em seu ―saber-fazer‖. Na dança, além do exemplo de

Pinho (2009), podemos relatar que, em geral, dançarinos que têm essa dificuldade de

jogar, quando convidados ao espaço potencial de experimentação, utilizam-se de ―cartas

nas mangas‖, de ações e movimento que já dominam, mantendo-se numa zona de bem-

estar que ilusoriamente os protege de qualquer constrangimento, ou do sentimento de

ridículo.

A capacidade de jogo de um indivíduo se define por sua prontidão de

levar em conta o movimento em curso, de assumir totalmente sua

presença real a cada instante da representação, sem memória aparente

daquilo que se passou e sem antecipação visível do que irá ocorrer no

instante seguinte. (Ryngaert, 2009, p. 54-55).

Essa compreensão parece muito próxima à descrição de Puccetti (2006) sobre o

estado de presença do palhaço, bem como se aproxima de Damásio (2011), em relação

ao fluxo de consciência. Neste sentido, quando nos mantemos atentos ao aqui agora, o

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self central está mais atuante na ação, sem exigir habilidades de memória e raciocínio

elaborado sobre o mundo o cerca.

Uma qualidade comumente atribuída ao palhaço é a ingenuidade, que aparece

em Ryngaert (2009) como um dos mecanismos que contribui para o aumento da

capacidade de jogo e, portanto, é mais um argumento para considera-la um eixo de

pesquisa. O autor entende como ―ingenuidade a capacidade do jogador de não antecipar

o comportamento do outro mediante suas próprias reações. Ainda aqui, trata-se de estar

presente no instante, portanto, de fingir ignorar o que vai se passar, a ponto de toda vez

dar a impressão de uma descoberta‖ (RYNGAERT, 2009, p. 57). Embora pareça

contraditório quando utiliza o termo ―fingir‖, referencia aspectos que vimos discutindo

como ―dar a impressão de uma nova descoberta a cada vez que realizada uma mesma

ação‖ e assim, argumentamos que trata exatamente da atitude de se dispor a esperar que

as reações aconteçam, mesmo quando seus resultados já são conhecidos. Coloca a

ingenuidade como uma qualidade necessária quando se vive o jogo como campo de

experimentação, para gerar a possibilidade de se surpreender e surpreender ao outro.

Utilizando o termo pureza aparentemente como um sinônimo de ingenuidade,

um dos dançarinos da Paraboléu Cia Cênica relata sobre sua experiência com jogos,

relacionando-a com mudanças de estado: ―Estando neste estágio de pureza, meu corpo

começa a perceber as vibrações do ambiente e começa a reagir às pequenas coisas que

vem ao meu encontro‖. A relação que cria entre ―pureza‖ e a capacidade de reação é

muito clara.

Quando Ryngaert (2009) apresenta suas reflexões sobre a ingenuidade como

propulsora da capacidade de jogo, associada a não antecipação, deixa transparecer

similaridades com outro elemento que integra a investigação para o corpopalhaço: o

impulso. Quando afirma que ―o engajamento no jogo exige uma mobilização rápida de

todos os sentidos, sem antecipação‖ (RYNGAERT, 2009, p. 57) se aproxima das

exigências de reagir com prontidão sem permitir o espaço-tempo da reflexão para

depois colocar-se em movimento no espaço.

Ferracini (2003, p. 103) utiliza-se das compreensões de Grotowski para definir

o impulso como aquilo que precede imediatamente a ação. Mas, a partir do

entendimento de corponectivo, estamos então, afirmando que o impulso e a ação são

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concomitantes, exceto quando há uma pausa reflexiva para a tomada de decisão.

Todavia o mais importante é que se refere ao impulso para demonstrar e explorar o

―enraizamento‖ do movimento no corpopessoa. Puccetti (2006, p. 23) quando aborda o

uso da exaustão em sua metodologia, explica que o faz em busca de ―diminuir o lapso

de tempo entre o impulso físico e a concretização da ação no espaço‖ (PUCCETTI,

2006, p. 23). Assim, podemos compreender pela indicação de ―seguir o impulso do

movimento‖ durante os exercícios, como uma indicação de permitir-se exercitar a

―capacidade de ―não-pensar‖ como uma condição para a ação, e somente ‗agir com o

corpo‘‖ (PUCCETTI, 2006, p. 23). Citação que embora dualista em sua estrutura

linguística, nos auxilia a tornar mais claro a intencionalidade das orientações dada aos

aprendizes, sabendo-se, no entanto, que agir e pensar constituem conjuntamente ações

cognitivas. Deste modo, a antecipação assim como o ―saber-fazer‖ é considerada como

um fator de intimidação da capacidade de jogo.

Por fim, para exemplificar outras qualidades que favorecem o jogo,

denominadas por Ryngaert (2009) como engajamento e mobilização, e relacioná-las

como co-geradoras de estados de ludicicidade do palhaço trazemos uma observação de

outro dançarino da Paraboléu Cia Cênica: ―É preciso acreditar no jogo para poder

acessar qualquer outro estágio que não seja cotidiano. Deixar-se inebriar pela

‗atmosfera‘‖. Quando se refere a acreditar no jogo, está tratando de estratégias para

alcançar o engajamento necessário para sustentar o jogo e manter-se em estados de

presença.

Revendo o entendimento de técnica de treinamento apresentado logo no início

deste subtítulo, e buscando deslocá-lo para a dança, seria necessário elencar os

componentes da dança que se deseja treinar para então elaborar um treinamento

adequado. Neste caso, com o objetivo de encontrar elementos do palhaço, a partir de

seus processos de formação e treinamento, que possam contribuir para a abordagem dos

estados de ludicidade do palhaço em dança, a capacidade de jogar se configura como o

segundo eixo de pesquisa. Diferentemente de Ryngaert (2009) denominamos aqui como

capacidade de jogar, no infinitivo, porque conduz ao entendimento da capacidade de

uma ação, que é jogar.

Consideramos, ao observar o campo conceitual elaborado neste capítulo, que o

aumento da capacidade de jogar pode resultar no aumento da capacidade de imaginação

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e criação também nas práticas de dança. A exemplo das práticas da Paraboléu Cia

Cênica pôde-se perceber que alguns dançarinos, quando engajados no espaço-tempo do

campo de experimentação, demonstram sentir-se livres para a criação sem preocupar-se

com a qualidade dos resultados no juízo de bom ou mau, ou mesmo para uma

continuidade improvisada das sequências codificadas para treinamento. Estas atitudes

de criação começam a aparecer espontaneamente, no sentido de não ser solicitados, mas

são evidentemente resultantes do treinamento que vem sendo desenvolvido.

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3. A PROFANAÇÃO COOPERATIVA

Profanação é o contradispositivo que restitui ao

uso comum àquilo que o sacrifício tinha separado e

dividido. (Agamben, 2009, p. 45).

No primeiro capítulo foram apresentadas algumas abordagens e consequentes

compreensões de jogos em dança. Foram citados exemplos do uso de jogos na

elaboração de estruturas coreográficas, como possíveis características de práticas de

improvisação ou para gerar um roteiro de cena. Sobre o assunto não nos faltam

pesquisas, referências e experimentos relacionados à criação da cena na dança e no

teatro. Nossa discussão tem como eixo de pesquisa a ludicidade do palhaço e assim,

propõe a capacidade de jogar e não especificamente os jogos como elementos

compositivos. Na pesquisa em dança, na qual se optou por compreender o palhaço em

seus modos de formação contemporâneos, a capacidade de jogar foi definida como um

eixo observado especialmente a partir das práticas de treinamento. Entretanto, o que

diferencia a capacidade de jogar do palhaço da capacidade de jogar de um ator ou de um

dançarino improvisador? Argumenta-se que é a atitude profanadora que opera como

motivadora de suas ações no jogo.

Para desenvolver esta reflexão, bem como na busca por compreender possíveis

implicações destas condições de atuação quando deslocadas para o fazer da dança, serão

apresentados na perspectiva de Giorgio Agamben (2007, 2009) os conceitos de jogo,

dispositivo e profanação. Em complementaridade ao entendimento de jogo elaborado

até então, constituem o referencial a partir do qual o seu sentido é recriado,

caracterizando as especificidades desta pesquisa.

3.1 Jogo, Dança, Dispositivos

Um fato é sabido sobre os jogos tradicionais, ou teatrais, que têm sido utilizados

como exemplos de pesquisa: sem a presença das pessoas o jogo não acontece. Mas,

além da presença, é necessário que essa tenha as qualidades de um estado de prontidão,

de alerta, que traz vivacidade e dinamismo à experiência, à ação de jogar, ou nas

palavras de Ryngaert (2009) engajamento e concentração. Assim, jogos e brincadeiras

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são realizados nos treinamentos de palhaço como um caminho metodológico de

compreensão desta potencialidade de presença, bem como de outros elementos

considerados componentes dos estados de palhaço. Segundo Puccetti (2006) o estado de

palhaço ―pressupõe o jogo entre o palhaço e o público, ou seja, a capacidade do palhaço

interagir, utilizando seu repertório de ações, gags e de ideias, com cada indivíduo da

plateia‖ (PUCCETTI, 2006, p. 21). A afirmação esclarece que não se trata somente de

construir a cena no ato da sua realização a partir de uma relação de jogo. A cena pode

ser organizada previamente por um roteiro, ou simplesmente definindo uma ação que

configura um objetivo em cena, porém, as reações do público não podem ser

organizadas pelo artista previamente. Desta forma, este ―entre‖ o público e o palhaço é

o que constitui o jogo, definido anteriormente como a zona intermediária de

experimentação e criação (Ryngaert, 2009). Sendo assim, é um jogo ausente de

marcações e regras combinadas a priori entre os jogadores, é iniciado e sustentado pelos

estados de presença do artista, um jogo criado na cena onde ele deve estar apto a

responder a qualquer tipo de reação do público. Por exemplo, quando apresentado um

número clássico de palhaço denominado ―ping-pong de piolho‖ e utilizada uma piada de

ir até o público e escolher uma pessoa para catar um piolho. Como se o piolho do jogo,

na cena, tivesse fugido para outra cabeça fora do espaço da cena. A ação de buscar um

piolho entre o público foi incluída no roteiro de cena do artista, mas a reação do público

e da pessoa que foi escolhida naquele instante é um elemento surpresa e o palhaço deve

estar apto a reagir de modo proporcional ao que o público propõe (Puccetti, 1999, p.

92). Para o palhaço, desenvolver esta capacidade de jogar é importante para conquistar

o espaço do diálogo com o público e assim, gerar a zona intermediária de criação – o

jogo. É uma forma também, de afirmar o momento presente da cena, naquele espaço-

tempo finitos, com aquelas pessoas que colaboraram para acontecer dessa forma e não

de outra. São características e qualidades que definem o jogo a cada circunstância em

que ele ocorre, nos conduzindo novamente a questão dos ―qualia‖15

, relacionada aos

estados do corpo. Segundo Damásio (2011, p. 312) qualia diz respeito tanto aos

sentimentos que fazem parte de qualquer experiência subjetiva, quanto ao modo como

esses sentimentos são produzidos no corpo. Sendo assim, é a qualia que torna única

cada experiência.

15

Capítulo 1, p. 19.

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71

A presença do público é sem dúvida, necessária para o palhaço, mas o jogo pode

não acontecer com o público. Entretanto, há a necessidade de criar a zona intermediária

de experimentação, e por mais que o público não experimente diretamente, ele terá a

sensação de experimentar junto. O palhaço vai jogar, vai encontrar uma forma de jogar

com objetos de cena, objetos do ambiente, de modo que o público vai se sentir

convidado ou participante de alguma forma.

Em Agamben (2007) o jogo é integrado à discussão como uma nova dimensão

do ―uso‖, e argumenta que as crianças e os filósofos é quem conferem esta nova

dimensão à humanidade. Entretanto, nos atentaremos especialmente à criança cujas

formas de ação podem ser consideradas uma referência importante para o palhaço. A

característica da ingenuidade muitas vezes presente nas atitudes da criança lhe confere

um lugar de disponibilidade nos modos de ver o mundo e com ele se relacionar. Ainda

em processo de conhecimento do mundo, ela age espontaneamente, ainda pouco

influenciada por julgamentos e preconceitos, no desconhecimento das leis e das

formalidades da vida adulta. Deste ponto de vista, a compreensão de ingenuidade

converge com o sentido apresentado por Ryngaert (2009), que se faz associada à

capacidade de não antecipar-se diante do comportamento do outro, como quem prevê

suas ações e reage premeditadamente. Este comportamento pode ser considerado

comum no adulto e, muitas vezes, ocorre por automatismos de resposta, pelo desejo de

minimizar o tempo de realização de uma tarefa, pelo receio das consequências do

comportamento do outro, por ansiedade, etc. A criança que está ainda mapeando e

organizando conteúdos dos primeiros contatos com o mundo, se coloca de modo mais

disponível no sentido de permitir-se experimentar e agir para então conferir as

consequências, ou sem preocupar-se com elas. Por isso

As crianças que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas

mãos, transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da

economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos

acostumados a considerar coisas sérias. (AGAMBEN, 2007, p. 67).

A ingenuidade da criança é o que mantém vivo o que Lima (em curso ministrado

2011) denomina como ―olhar lúdico‖. Nós, adultos, perdemos a ingenuidade e o ―olhar

lúdico‖ sobre o mundo na medida em que nos limitamos a uma perspectiva de realidade

que enrijece os modos de fazer e diminui as possibilidades de ação, onde coisas sérias

não são passíveis de brincadeira. É muito comum um adulto tentar limitar a imaginação

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da criança dizendo-lhe que ―não se brinca com coisa séria‖. Mas, com este estado de

disponibilidade nas formas de se relacionar, a criança profana transformando qualquer

coisa em brinquedo, conferindo-lhe um novo uso, e junto, um novo significado.

Podemos até avançar nesta direção problematizando se não seriam as crianças ainda

pouco capturadas pela gama de dispositivos a que Agamben (2005) se refere, pautado

na obra de Michel Foucault. O processo de adaptação social – ou adequação – se dá

mais intensamente ao longo da infância e adolescência na convivência em instituições,

na família, no aprendizado das leis, nos espaços coletivos, etc. Ou seja, como nos afirma

Agamben (2005) nas relações entre seres viventes e dispositivos.

Deste modo, a partir do momento que conhecemos um objeto e seu uso comum,

e lhe agregamos uma nova forma de uso estaremos gerando jogo no sentido proposto

por Agamben (2005). E na medida em que conseguimos compartilhar novos usos

conectando-se ao outro, alcançamos a zona intermediária de criação, que caracteriza o

jogo para Ryngaert (2009). Se considerarmos então, que agregar novos usos e

significados é, de modo geral, o que faz o palhaço, perceberemos que ele é de fato um

jogador.

Agamben (2007) se intriga sobre o uso e o papel do termo dispositivo na obra de

Foucault. Em busca de compreender com maior profundidade o termo em questão,

Agamben (2007) traça o que denomina por genealogia teológica, que configura uma

espécie de teoria sobre suas origens e as implicações práticas das mesmas que

sobrevivem até o mundo moderno. Interessa-nos, sobretudo, as reflexões que o

permitiram avançar filosoficamente ao conceito de profanação, central nas

considerações desta pesquisa em dança.

O nome genealogia teológica advém de um aspecto fundamental para a posterior

compreensão do modo como ações de profanação são proferidas e como se tornam um

problema, ou uma ausência, na contemporaneidade. É a herança teológica do problema

cristão da Trindade, que Agamben (2007) localiza ao encontrar o termo latino

―dispositio‖ utilizado como tradução do grego Oikonomia, que quer dizer administração

da casa. O autor afirma que o termo introduz o entendimento disseminado até hoje de

Deus dividido em ser - quando das coisas divinas - e ação - quando das coisas terrenas.

O que introduz também a separação, a cisão entre ser e ação como questão filosófica

advinda de uma concepção de Deus que irá legitimar por muito tempo inúmeras

práticas, religiosas ou não, da sociedade ocidental. É uma forma de separação que

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regulariza especialmente o que é de um domínio outro, que não do homem e, portanto,

sagrado, daquilo que pode ser alcançado por ele e, portanto, de livre uso, profano. Por

exemplo, as noções de Aprender a Ser e Aprender a Fazer16

como instâncias separadas,

que permeiam de algum modo processos de formação do palhaço com os quais se teve

contato. O Ser parece estar separado como algo especial, equivocadamente como um

aspecto mais filosófico do que prático e o Fazer parece estar para a ação, e por isso

podemos relacionar como algo mais próximo, de domínio do homem comum. E essa

ideia pode ser reforçada ainda por outra questão: nem todos que se propõem ao processo

iniciático da palhaçaria alcançam realmente a descoberta do seu palhaço pessoal, ou

seja, é como se este Ser continuasse distante e separado, como uma esfera especial e até

então indisponível. No entanto, é para além de uma perspectiva dualista, uma visão

romântica sobre ser palhaço que o separa da vida em curso, embora a intenção das

experimentações na formação seja exatamente o contrário.

Para nós, o fato de maior importância no estudo das origens do termo

dispositivo, é que o termo Oikonomia já designava ―um conjunto de práxis, de saberes,

de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar, governar, controlar e orientar,

em um sentido em que se supõe útil, os comportamentos, os gestos e os pensamentos

dos homens‖ (AGAMBEN, 2005, p. 12). Deste modo, dispositivo, como tradução dele,

também aparece carregado desta compreensão de governabilidade, que cumpre o papel

de orientar comportamentos em nome de um bem maior. Também sinaliza que o

conjunto de saberes e práxis de governabilidade e controle já existiam associados às

noções de separação entre o ser e a ação.

O fato é que com toda a evidência os dispositivos não são um acidente

no qual os homens caíram por acaso, mas eles têm a sua raiz no

mesmo processo de "hominização" que tornou "humanos" os animais

que classificamos sob a rubrica homo sapiens. (Agamben, 2005, p. 13

– 14).

A ideia de governabilidade e orientação do pensamento dos homens também é

interessante para os objetivos de pesquisa. Porém faz-se necessário situar que o termo

pensamento é usado em sentido ampliado, como gestos, atitudes, comportamentos.

Entende-se que são todos eles processos do corpo e o uso dos termos separadamente

16

Capítulo 2, p. 51, 52.

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pode nos induzir a compreensão equivocada de que comportamentos e gestos são

produzidos no corpo e o pensamento produzido por uma mente que age sobre ele.

Agamben (2005, p. 9) esclarece que ao propor o uso do termo dispositivo não

está focado em elementos específicos que compõem as estruturas de poder, mas na rede

que se estabelece entre estes elementos. Impulsionado pela necessidade de avançar no

entendimento sobre a questão, e transgredir em parte o contexto do termo Giorgio

Agamben (2005) identifica nas referências encontradas a possibilidade de ampliar ainda

mais a classe dos dispositivos e desenvolver a seguinte proposição: a divisão de tudo em

dois grandes grupos, os seres viventes e os dispositivos. Deste modo, considera o sujeito

como um terceiro grupo entre esses dois, resultante das relações entre os seres viventes

e os dispositivos. O que implica que não utiliza a expressão ―sujeito‖ como um

sinônimo de pessoa ou indivíduo, mas sim que sujeitos são produzidos na relação direta,

ou em suas palavras, no ―corpo-a-corpo‖ com os dispositivos. Neste sentido, processos

de subjetivação são aqueles que tornam sujeitos os seres viventes, uma espécie de

individuação produzida pelas formas de relação que cada vivente estabelece com os

dispositivos. Assim, o autor convida para um olhar diferenciado que envolve a

ampliação do entendimento de dispositivo, aproximando-o da realidade do mundo

contemporâneo e das relações de consumo.

Seguindo essa linha de pensamento vejamos exemplos de dispositivos a fim de

delinear os aspectos que nos interessam enfatizar para discutir atitudes profanadoras

como motivação na capacidade de jogar. As tecnologias, como telefones celulares e

tablets com capacidade de processamento para diversos aplicativos que nos incitam a

um ideal de liberdade e autonomia, assim como o acesso a portais de internet com uma

imensa variedade de conteúdos são exemplos de dispositivos do nosso cotidiano atual.

São dispositivos pelos quais somos capturados quase sem escolha, apresentados a nós

como possibilidades de interação com o outro e com outras culturas. Mas, de que ponto

de vista essas são verdadeiramente possibilidades de interação? Podemos ainda refletir

sobre as mídias como dispositivos, os sistemas de transporte de uma cidade entre outros.

Desta forma, nós, seres viventes somos incessantemente capturados por dispositivos que

tratam de nos governar e nos guiar para o bem (Agamben, 2005, p. 13). O bem parece

ser então um discurso que justifica ações de governabilidade que orientam

comportamentos na tentativa de garantir algum tipo de ordem.

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Kásper (2004, p. 39) quando se refere à existência de valores superiores à vida,

está se reportando a essa rede que estabelece relações de bem e mal, que nos captura e

nos mantém submissos a uma ordem vigente, aos saberes ditos superiores, ao poder

instituído ao qual devemos seguir servindo. A esses mecanismos denomina como

paixões tristes, que implicam a separação de nós mesmos daquilo que podemos, de

nossa potência. De modo semelhante ao entendimento de dispositivos em Agamben

(2005), as paixões tristes são o mecanismo pelo qual o poder captura nossa potência. A

partir desta colocação, das paixões tristes como uma forma de repercussão dos

dispositivos em nossas vidas, tornou-se mais simples buscar exemplos na dança. Os

formatos de audição para grupos profissionais vigentes ainda hoje, ditam modelos de

corpo, de dança, de modos de vestir e se preparar para tal. Possível afirmar que são

paixões tristes na vida de muitos dançarinos, que diante das exigências se veem

afastados de sua potência, daquilo que ele pode (e quer) em sua singularidade enquanto

dançarino.

Silva (2012) afirma que ―os dispositivos, aparentemente inofensivos, agem na

forma de controle e poder com tom de invisibilidade e mudam nosso comportamento e,

consequentemente, os estados do corpo, ou seja, nós mesmos sem que nos demos conta‖

(SILVA, 2012, p. 37). Surpreendemo-nos então, ao verificar que ao contrário, ―o

palhaço não se deixa capturar pelos afectos tristes. Talvez seja isso que, em primeiro

lugar, o faça um libertário, fora da ordem, livre. Ele é ativo, alegre‖ (Kásper, 2004, p.

35). Não se trata de afirmar que dispositivos não atuem sobre o palhaço, mas eles agem

na valorização de sentimentos positivos, contribuindo para transgredir os valores que

enaltecem o bem aplicando punições sobre o mal. No jogo da cena, ele rompe com

padrões gerados pela atuação de dispositivos.

Uma vez compreendido que os dispositivos atuam no corpo, tentaremos

direcionar o foco para tais processos, mais do que às formas de articulação dos

dispositivos especificamente. A perspectiva exposta por Silva (2012) questiona de que

modo ―operam nos estados de corpo, e como o corpo reordena, reorganiza e transforma

isso em dança‖ (SILVA, 2012, p. 37), bem como questiona se é possível profanar ou

apenas compreender as modificações que imprimem no corpo. Ainda em concordância

com a perspectiva pela qual o termo dispositivo vem sendo apresentado, acredita-se que

a proliferação ou crescimento dos dispositivos é acompanhado pela igual proliferação

de processos de subjetivação, onde um mesmo vivente pode ser lugar de múltiplos

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processos. Com alguns exemplos Silva (2012, p. 38) ajuda a esclarecer o que no corpo

denuncia o processo de subjetivação pelo qual o vivente foi capturado, como

chocólatras, usuários de ipod, de facebook, telespectadores de novelas, do jornal da

manhã, etc.

os dispositivos são assimilados pelo corpo, fundam outros modos de

organização neuromuscular, estabelecem hábitos e padrões de

comportamento e, consequentemente, modificam a paisagem corporal,

ou seja, os estados do corpo, e interferem, portanto, na dança em todos

os seus aspectos. (SILVA, 2012, p. 37).

Deste modo, nos parece que tudo que o corpo faz pode ser uma resposta à

atuação de dispositivos e, se assim considerarmos, os elementos de cena também podem

ser ditos como tal, visto que promovem mudanças no corpo. Por exemplo, a iluminação

de um espetáculo de dança comumente não permite ao dançarino ver o público, pelo

posicionamento de seus refletores, pela intensidade da luz, etc. O que para alguns pode

ser uma solução para características como a inibição, o medo do ridículo diante de uma

pessoa com quem tem maior proximidade. Entretanto, se for um espetáculo com células

de improvisação, que prevê a utilização de espaços entre o público, a luz deverá se

estender sobre ele também intervindo em todos os corpos, dançarinos, ou não.

Os argumentos de Kásper (2004) relativos à prática do clown, de que as formas

determinadas dizem respeito às relações de saber, e as regras coercitivas, às relações de

poder, contribuem para o entendimento de que ambas são determinantes dos modos de

existência em nossa sociedade. No diálogo com Agamben (2009) podemos então nos

perguntar: e aqueles que não se adéquam ou se opõem a formas e a regras da sociedade?

Kásper (2004) nos fala da capacidade que todos temos de fugir ao controle ou submeter-

se a ele, e nos apresenta uma terceira possibilidade, as regras facultativas que

―produzem a existência como obra de arte, regras ao mesmo tempo éticas ou estéticas

que constituem modos de existência ou estilos de vida‖ (Kásper, 2004, p. 26). Para

Kásper, ética, estética e política estão ligadas a criação de modos de existência e assim,

argumenta sobre a potência política que há na ação do palhaço. O palhaço utiliza a

nosso ver, como componente da capacidade de jogar, atitudes questionadoras das

formas de reprodução de saberes e poderes instituídos, que orientam a um modo de

existência como padrão. Questiona os poderes instituídos e as relações de poder no

exercício de desconstrução de uma lógica empregada socialmente como modo correto

de agir, juntamente com a valorização da ingenuidade, do grotesco, de estados de

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miséria, do ridículo. O que interessa, é o entendimento do quanto os dispositivos podem

direcionar escolhas e/ou modos de vida que aparentam ser prioritariamente definidas

por cada um de nós.

Para Ryngaert (2009, p. 61) uma pessoa incapaz de jogar é aquela que conhece

de antemão todas as respostas e soluções, sua forma de relação com o mundo se dá a

partir de formas premeditadas e convencionalmente estabelecidas. Se considerarmos

que na sociedade contemporânea os dispositivos têm reforçado a reprodução de um

padrão de existência, quando nos deixamos capturar por eles, nos tornamos incapazes de

jogar. Da mesma forma, tornamo-nos pouco abertos à experimentação porque assim,

eliminam-se os riscos. No entanto, ―o espírito de jogo, por sua vez, consiste em

considerar toda nova experiência como positiva, quaisquer que sejam os riscos a que ela

nos expõe‖ (RYNGAERT, 2009, p. 61). Diante das questões que estão sendo expostas

sobre o jogo do palhaço de referência da pesquisa, a afirmação parece mesmo estar se

referindo especificamente a ele, a sua forma de relacionar com o mundo. Assume-se o

campo de experimentação como multiplicador das formas de relações com o mundo,

pois nos possibilita perceber que há sempre outras perspectivas, diferentes da nossa,

sobre uma mesma situação.

Na perspectiva metodológica do Lume Teatro a experimentação e o treino

técnico visam construir uma relação transformadora com o outro e com o mundo,

atuando na afirmação sobre o que foge – o padrão, a regra – como positivo. O treino

para redescobrir o “olhar lúdico” sobre o mundo, sem fechá-lo nele mesmo, um olhar

aberto à imaginação, a outras possibilidades de relação com ele.

3.2 Profanação no palhaço e na dança

Uma solução estratégica no corpo-a-corpo com os dispositivos para liberar o que

foi capturado e separado, é a profanação (Agamben, 2005). O conceito de profanação se

configura na continuidade dos estudos relacionados à origem do termo dispositivo e,

portanto, são compreensões indissociáveis.

A partir da consideração de que profano ―em sentido próprio denomina-se àquilo

que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens‖

(Agamben, 2007, p. 65) podemos avançar na concepção do que vem a ser a profanação

ou do que implica o ato de profanar. Primeiramente, perceber a relação que se propõe

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entre ―usar‖ e profanar chamando a atenção de que não está em questão a noção

utilitarista de uso que aplicamos a todas as coisas, mas uma forma especial de uso à qual

o que era sagrado pôde ser submetido. Um segundo aspecto é a observação de que o

profano decorre de uma separação social e historicamente instituída e que se legitima

em nossas concepções e práticas cotidianas: a separação entre duas esferas, o divino e o

profano; os deuses e o humano. Assim, em oposição ao profano ―sagradas ou religiosas

eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses‖ (Agamben, 2007, p. 65) e,

portanto, na perspectiva da separação estavam indisponíveis ao homem. A profanação é

a restituição daquilo que lhe foi separado ao uso comum do homem, ou seja, se o

mecanismo de separação e captura nas sociedades modernas é um dispositivo, o ato de

profanar implica politicamente a desativação do mesmo.

Como vimos, a subjetivação decorrente das relações entre viventes e dispositivos

infere no corpo e age na orientação de comportamentos. Na medida em que novas

orientações são geradas os viventes desvinculam-se das anteriores e neste sentido,

podemos refletir sobre as necessidades criadas pela sociedade capitalista,

incessantemente lançadas no mercado e induzidas como objeto de desejo. Ao absorver

as necessidades de mercado, é como se fossemos nos distanciando da noção do que é de

fato necessário à criação e à manutenção de nossas vidas, o que então parece ser

denominado por Agamben (2005) como separação de si mesmo. Este fenômeno é

agravado pelo fato de que os dispositivos capitalistas atuam mais incisivamente pela

homogeneização e desta maneira, desativá-los torna-se uma tarefa um tanto difícil. É

como uma espécie de vínculo que se forma e, ao mesmo tempo, legitima a captura, que

é o próprio mecanismo de separação das esferas. Por exemplo, o uso dos chamados

―dispositivos móveis‖ para o acesso de dados disponibilizados nas redes. Quando não

estamos em posse de um, nos produz a sensação de estar desatualizados, de uma

comunicação não eficiente ou até de falta de mobilidade. Por outro lado, o fato de a

maioria das pessoas possuir um desses, diante daquele que não possui, evidencia a

presença de resíduos do sagrado especialmente quando o uso é um desejo. Entretanto,

na esfera capitalista o uso é substituído pelo consumo, que destrói a coisa, traçando

assim, a impossibilidade de usá-lo e, portanto, profaná-lo.

Um espetáculo de dança. Em seu formato mais comum, independente do tipo de

espaço em que se realiza, o modo de se colocar do dançarino gera delimitações entre

cena e público. Ambos convivem no mesmo espaço-tempo, porém, há uma sacralização

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da cena que, operando como uma esfera separada do público, não pode ser

interrompida, modificada ou acessada em ato por um cidadão comum. Com exceção do

performer, e de espetáculos interativos, o dançarino ocupa na cena, um lugar intocável,

que ao final será devolvido para o convívio no profano. Totalmente oposto, o palhaço

tem como um dos efeitos dos estados de presença a restituição da própria cena, do

espaço mágico do sagrado, ao uso livre dos homens.

Quando Agamben (2007) propõe o jogo como (re)uso menciona especialmente a

possibilidade de restituir aquilo que já havia sido de livre uso, mas em algum momento

foi subtraído à esfera da sagrado. Quando expande esta reflexão ao sistema capitalista

mantém como parâmetro a ―usabilidade‖ da coisa. As relações que disponibilizam ou

subtraem as coisas do mundo dos homens, não dizem respeito somente a aspectos

religiosos ou sagrados no sentido etimológico do termo. Mas implica primeiramente

uma separação. Desta forma, se o jogo tinha a restituição do uso como uma finalidade, e

o uso na sociedade capitalista está em vias da inexistência ―fazer com que o jogo volte à

sua vocação puramente profana é uma tarefa política‖ (Agamben, 2007, p. 68).

Manter vivo o movimento de ser afetado e reagir é uma filosofia política. O

clown não pode parar esse movimento, não pode deixar de se afetar pelo que vem do

mundo, pelo que acontece ao seu redor e isso também deve sempre ser demonstrado ao

público, diferentemente do dançarino. O que não significa que as outras pessoas não

sejam afetadas pelos acontecimentos ao seu redor, mas evidencia que o clown traz uma

maneira específica de elaborar e demonstrar o que lhe afeta. Faz parte do aprendizado

de clown aprender a lhe dar com que nos afeta de maneira a exteriorizar a reação e não

mais escondê-la ou disfarça-la em prol de uma ética socialmente instituída, que nos traz

medo de ofender o outro, nos faz guardar ressentimentos de situações mal resolvidas,

etc. Ou ainda, em prol de um roteiro ou da estética de cena. Neste sentido, o que mais se

aproxima no contexto da dança é o dançarino improvisador.

Portanto, a potência política está na sua capacidade de jogar, restituindo ao uso

comum tudo aquilo que é socialmente compreendido como indisponível, reforçado em

nossos hábitos, etiquetas, normas de convivência, ou seja, por dispositivos. Potência na

compreensão elaborada por Kásper (2004, p. 29) é a capacidade de agir, de afetar e ser

afetado pelo outro.

Deixemos um pouco de lado a figura do clown, apreendendo apenas

com seu modo de existir, pensando na potência crítica desta política

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específica do exercício da alteridade, exercida por ele – consistindo,

como vimos, na capacidade de agir sem guardar ressentimentos, sem

culpas, sem se deixar contagiar pelas paixões tristes, sem se vitimizar,

mantendo-se ligado à sua potência. (Kásper, 2004, p. 38).

Deste modo, a potência política do palhaço está sendo relacionada ao exercício de alteridade

que implica sua prática, visto em sua disponibilidade de brincar com aquilo que, em geral,

optamos por manter escondido em função do medo do julgamento do outro, medo de ser feio,

incorreto, antiquado. Este é o ponto de partida para considerar a alegria, ou as paixões alegres,

como base da potência de agir, afetar e ser afetado, desvinculando-a completamente do fazer

graça, do ser divertido ou engraçado. Segundo Kásper (2004), a alegria é ação e está ligada à

liberdade que o palhaço vive, experimenta, conectando-se novamente com sua potência,

entendida como poder de agir. São as paixões alegres um caminho para a atividade, a ação. E

por isso relaciona a alegria, ou o estado de alegria, à potência política nesta arte. Ao criar novos

modos de existência, sua lógica de agir pela alegria, questiona valores estabelecidos atuando

num plano político sutil; denuncia, por exemplo, o potencial autoritário que há em todos nós

quando evidencia em suas ações, o jogo de disputas pelo exercício do poder cotidianamente

vivido nas relações com o outro (Kásper, 2004, p. 38).

3.3 A atitude profanadora: gestando caminhos colaborativos

Com a discussão desenvolvida até o momento, esclarecemos que os dispositivos

atuam e operam como mecanismos de captura e separação, para então encaminhar a

discussão com um entendimento de profanação enquanto atitude. Mais especificamente,

junto aos nossos objetivos de pesquisa, refletir sobre a profanação do palhaço como

atitude que pode ser geradora de ações e práticas em dança.

Para situar a reflexão num contexto mais amplo, cabe ponderar que a arte

contemporânea traz aspectos de profanação como característica em comum em suas

obras, ou seja, podemos reconhecer o ato de profanar como parte de sua tarefa no

mundo, assumindo então, que profanar não é uma exclusividade da palhaçaria e nem da

dança enquanto arte. Desta maneira, formas de arte são (re)criadas, (re)inventadas e

disponibilizadas ao público de modo a intervir no cotidiano com provocações aos seres

viventes produzidas pela inversão de sentido de ações e objetos comuns. Formas de

provocação que por vezes, evidenciam e problematizam a disseminação dos processos

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de assujeitamento, bem como questionam a passividade pela qual esses processos são

corponectados17

.

O palhaço restitui no espaço do círculo mágico um modo de relação pautado no

outro, no olhar, que vai à direção contrária do que somos conduzidos pelos dispositivos

de competição, de hierarquias hegemônicas, de modelos de corpo, de separação de

classes, de regulação dos padrões de obras artísticas, de padronização da vida e de

nossos comportamentos. É o caminhar juntos, convidar o público a ir junto com ele e

quem sabe se reconhecer na possibilidade de errar, de ser ridículo e poder assumir isso.

Segundo Lima (2013), o palhaço

é aquele que tem consciência da sua condição de imperfeito e a aceita.

Aquele que, diferente dos demais, na ânsia de ser o melhor, o mais

bonito, o bem sucedido, o perfeito, tal qual Deus, acaba por se tornar

invejoso, arrogante, injusto, preconceituoso e até cruel com os outros,

com o próximo e consigo mesmo. (LIMA, 2013, p. 13).

Lima (2013) afirma que se trata de um posicionamento perante a sociedade.

Mostrar suas fraquezas, seus defeitos, assumindo-se diferente do modelo ideal pelo qual

somos persuadidos com ação dos dispositivos, de fato é uma decisão e concordamos

que é um posicionamento diante da sociedade. Encontramos também em Burnier (2009)

a descrição do palhaço como aquele que ―é a encarnação do trágico na vida cotidiana; é

o homem assumindo sua humanidade e sua fraqueza e, por isso, tornando-se cômico‖

(BURNIER, 2009, p. 206). O que implica reconhecer o que a sociedade despreza

porque entende como defeitos e fraquezas, simplesmente como qualidades de um corpo

que almeja uma condição liberta de julgamentos, livre da necessidade de classificá-las

como boas ou ruins. Para o autor, aí está o caráter ―profundamente humano‖

(BURNIER, 2009, p. 209) do palhaço que conquista a disponibilidade recíproca do

público, bem como pode gerar processos de identificação, coparticipação, reflexão

crítica.

[...] acontecerá o encontro verdadeiro entre dois sujeitos e essa relação

se intensificará ainda mais quando o sujeito público percebe que o

sujeito palhaço, que brinca com suas imperfeições e fraquezas nada

mais é do que seu próprio reflexo, aceitando sua condição de humano

e passando a permitir-se rir de si mesmo. (LIMA, 2013, p. 20).

17

Derivação do conceito de corponectivo, capítulo 1, p. 20.

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O fato de ―brincar‖ com esse aspecto humano, se expondo ao ridículo, denuncia

também o outro naquilo em que ele próprio é risível sem, no entanto, depreciar a vida

ou desqualificar qualquer pessoa perante a sociedade. É deste modo, uma ação muito

sutil, onde nem sempre o público se perceberá provocado desta maneira. Mas esta é,

sem dúvida, uma das contribuições do palhaço. Segundo Kásper (2004), nós

aprendemos a depreciar a vida e em função disso, vivemos paralisados no presente. A

autora defende que sentimentos como medo e esperança são a mesma coisa porque

ambos nos paralisam no presente em função de um possível futuro. Entretanto, o

primeiro nos mantém a espera de algo ruim que pode vir a acontecer, e o segundo nos

mantém a espera de algo bom.

Nas discussões de Agamben (2007), referenciado no estudo de Walter Benjamin,

o capitalismo é compreendido em analogia com a religião. Considera-se que o

capitalismo ―se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo‖ (AGAMBEN,

2007, p. 70) e assim, é definido como religião da modernidade. Tem-se então, a

valorização do culto, mas neste caso não um culto ―voltado para a redenção ou para a

expiação de uma culpa, mas para a própria culpa‖ (AGAMBEN, 2007, p. 70). O

sentimento de culpa também é paralisante e é reforçado na sociedade capitalista, onde o

uso é substituído pelo consumo, tudo que é produzido e vivido é separado numa esfera

que não mais define uma divisão substancial, tornando o uso duravelmente impossível.

Podemos refletir sobre a culpa como um sentimento que contribui na manutenção do

sistema capitalista, por exemplo, pela crença de somos unicamente responsáveis pelo

sucesso que obtemos na vida, ou não, a partir de nossas escolhas no mundo. Muitas

vezes perpetuamos - inclusive como educadores – este discurso que funda o

individualismo nas práticas sociais, destrói pelo princípio mesmo do consumo o bem

comum, e instaura a propriedade como via única de direito ao uso. Porém, o consumo

na perspectiva de Agamben (2007) implica a não usabilidade, uma vez que este ―destrói

necessariamente a coisa, não é senão a impossibilidade ou a negação do uso, que

pressupõe que a substância da coisa permaneça intacta‖ (AGAMBEN, 2007, p. 72).

Assim, à sociedade do consumo foi retirado o direito ao uso, e com ele a possibilidade

de profanar. No entanto, a profanação se tornou um desafio urgente.

Os dispositivos que interferem no corpo de modo a estimular estados de

imobilidade, podemos dizer que é o que Kásper (2004) denomina por paixões tristes,

afirmando que advêm dos poderes estabelecidos em nossa sociedade, e nos fazem ter

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sentimentos como culpa e medo, nos distanciando de nossa potência. A autora

argumenta ainda que a culpa, assim como o medo nos imobilizam, nos entristecem.

Culpa por tudo aquilo que desejo, mas diante de uma incapacidade pessoal não pode ser

consumido, o medo de errar perante uma sociedade que estipula padrões de

comportamento para uma vida dita bem sucedida e a esperança de se ter no futuro o que

não se tem hoje.

Em dança, percebe-se ainda haver essa preocupação em produzir o melhor, o

bem sucedido e o perfeito de um modo que muitas vezes desqualifica o corpopessoa que

não se enquadra, mesmo quando se assume estruturas e propostas flexíveis para sua

criação. Esse parâmetro pode ser o do próprio criador, coreógrafo ou diretor, que em

função de uma idealização sobre a obra, possivelmente irá desconsiderar um conjunto

enorme de outras qualidades. Portanto, acreditamos que mesmo em coletivos de dança,

trabalhos contemporâneos, entre outros exemplos, haverá um parâmetro do que é

melhor ou bem sucedido para aquela montagem específica. Faz parte do modo como

aprendemos estar no mundo, classificar, selecionar e por vezes, qualificar.

Ao trazer o palhaço como parâmetro de ação no mundo, estados de alegria

podem ser considerados como dispositivo de resistência nas relações de poder, pois

operam na valorização dos sentimentos positivos e são propulsores de criatividade, de

novos modos de ser. Deste modo, a alegria enquanto estados do corpo e potência

política ―não está necessariamente ligada ao riso, mas a algo que nos coloca em

movimento‖ (KÁSPER, 2004, p. 30), que nos impulsiona ao agir. Pensemos na criança

mais uma vez, como muitas vezes ela surpreende ao adulto de tal forma com colocações

fruto de sua ingenuidade, que proporciona uma mudança de atitude ou de perspectiva da

situação. Lima (2013) afirma que a criança, pelo fato de ser ainda menos influenciada

pela sociedade e seus vícios, é mais verdadeira nas suas atitudes para com o mundo.

Assim sendo, ―uma criança, nos primeiros anos de vida, quando pratica uma ação não

pensa nas consequências ou utilidade dessa ação. O que vai ganhar ou vai perder, se o

modo de executá-la é feio ou bonito, certo ou errado. Ela simplesmente o faz. A ação é

valida por si só‖ (LIMA, 2013, p. 29). E assim propõe novas formas de uso.

Tomasello (2010) traz como questão central de sua pesquisa a predisposição da

criança em cooperar. Segundo o autor, os comportamentos que demonstram sua

natureza colaborativa, aparecem relativamente cedo, antes que os pais tenham lhes

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ensinado este tipo de conduta e é comum em crianças de diferentes culturas em uma

determinada faixa etária (TOMASELLO, 2010, p. 28). A partir das observações de

pesquisa afirma que

Casi no hay indicios de que en cualquier de las tres acciones que

mencionamos – ayudar, informar y compartir – el altruismo que

muestran los niños sea producto del intercambio cultural, de la

intervención de los padres ni de ninguna otra forma de socialización.

(TOMASELLO, p. 50).

Diante de todo o contexto discutido, o significado de altruísmo também nos

parece ter relevância. Um dos significados que encontramos no dicionário Houaiss

(2010) para altruísmo, além da compreensão do cuidado e preocupação com o outro, é

de um amor desinteressado ao próximo, o que se aproxima com algumas qualidades

descritas tanto em relação à criança quanto ao palhaço. O fato de amar

desinteressadamente, ou agir de maneira desinteressada sobre as consequências, ou

sobre os juízos de valor como afirma Lima (2013), está muito ligado a esses dois

universos.

Segundo Tomasello (2010, p.51), as influências da sociedade sobre a criança

dividem-se em dois conjuntos: a interação com os outros – se refere como experiência

direta – e o que aprende sobre interagir a partir das reações e correspondentes

resultados, e contribui para trazer novamente a reflexão sobre os níveis da consciência18

.

Se pensarmos nos níveis de complexidade do corpo, a experiência direta é mapeada no

nível da consciência central como um conjunto de ações e reações, possíveis de gerar

comportamentos. Mas no nível da consciência autobiográfica, ou ampliada, a

capacidade de reflexão sobre a experiência direta permite gerar novos conteúdos a partir

de combinações que levam em conta também o contexto, ou seja, as relações entre

experiência, reações e resultados já conhecidos e pessoas envolvidas. É o conhecimento

– como conteúdo da consciência – gerado na experiência, que somado aos juízos de

valor adquiridos ao longo do tempo, muitas vezes nos faz agir antecipadamente à reação

do outro.

A partir da compreensão da alegria como estados do corpo, afetar-se de alegria

implica agir na positividade, brindar a vida em suas condições reais, e perceber toda

característica simplesmente como uma qualidade, afastada do juízo de ser boa ou ruim.

18

Capítulo 1, p. 35,36.

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Estamos falando então, da colaboração pela disponibilidade que há nos estados de

ludicidade, e não por algum tipo de obrigação em colaborar. Não é qualquer

colaboração, podendo assim, argumentar que são também estados colaborativos de

corpo.

O palhaço vem para rememorar coletivamente outros modos de vida, outras

possibilidades de existência no mundo que foge aos padrões e, porque não, nascem da

desativação de dispositivos, de formas de profanação. Vamos ao princípio mais básico

de todos para um palhaço: (re)aprender a olhar nos olhos. Uma tarefa que parece tão

simples e se tornou um desafio, porque quando olhamos o outro nos olhos estamos

também abrindo ―a porta‖ para que o outro nos veja. E esse, não é qualquer olhar, é

aquele inebriado de altruísmo, de amor desinteressado pelo outro. É uma forma de

recorrer à natureza colaborativa do ser humano e reafirmá-la enquanto caminho

possível.

A partir do entendimento de dispositivo apresentado por Silva (2012, p. 37), foi

esclarecido que do ponto de vista dos processos do corpo, quando este responde a ação

de dispositivos, tem sua paisagem corporal modificada, pois uma vez ―assimilados pelo

corpo, fundam outros modos de organização neuromuscular, estabelecem hábitos e

padrões de comportamento‖ (SILVA, 2012, p. 37). Um contradispositivo age do mesmo

modo, promovendo mudanças na paisagem do corpo, modificando o fluxo de

alternâncias de estados. A profanação constitui-se como o contradispositivo do palhaço

que ao gerar um campo de experimentação criativa, institui possibilidades de criação de

novos modos de coexistência.

Reconhecemos que a ação da profanação pode não se realizar por completo, no

sentido de alcançar a desativação de dispositivos, mas a atitude profanadora ocorre e

instaura, ao menos naquele espaço-tempo, outros modos operantes. Porém, o artista – o

palhaço – se vê transformado pela experiência que agrega a profanação enquanto atitude

perante a sociedade e forma de relação no corpo-a-corpo com os dispositivos. Quando

Lima (2013) afirma que ―quando uma pessoa vê seus defeitos como qualidades essa

pessoa não se preocupa com o julgamento do outro e nem julga a si própria. É uma

pessoa livre para fazer o que quiser e como quiser‖ (LIMA, 2013, p. 50), está

enfatizando uma mudança do olhar que se tem sobre uma mesma situação. É uma

mudança de perspectiva, sobre uma característica pessoal que passa de qualidade

negativa e merecedora de rejeição, nos âmbitos do julgamento, para tornar-se uma

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qualidade positiva. No entendimento de Kásper (2004, p. 28) o que substitui o juízo

como um sistema de crueldade, é o combate que, ao contrário de depreciar a vida como

ele o faz, cria modos de coexistência.

Lima (2013) compreende o palhaço como um ser ―generoso, sincero, sem medo

de julgamento e o que é melhor, sem a predisposição de se julgar e julgar o outro que

está à sua frente‖ (LIMA, 2013, p. 13). De tal modo traz consigo a generosidade, uma

característica tão distanciada de nós mesmos por uma sociedade que valoriza a

propriedade material e intelectual - dispositivos. É a captura e a separação daquilo que

segundo Tomasello (2010) parece ser natural no corpopessoa quando ainda pequenos.

Depois de adultos, utilizamos da capacidade de reflexão para medir e ponderar o que e

como devemos compartilhar. Restituir a generosidade como forma de relação social, ou

de sociabilidade e troca de conhecimento, é uma ação política e um contradispositivo

operante. Para Kásper (2004) ―as dimensões ética, política e filosófica estão imbricadas

neste aspecto da afirmação da vida, da ação, no lugar da reação‖ (KÁSPER, 2004,

p.44).

O termo gestar tem entre suas acepções ―formar e sustentar (um filho) no próprio

organismo‖ (Dicionário Houaiss, 2010). E a nosso ver, o palhaço tem como desafio na

caminhada sustentar ética e filosoficamente atitudes que consideramos cooperativas na

gestação de um mundo diferente. Culturalmente, a gestação acompanha também a

noção de médio e longo prazo, que exige cuidado e maturação, e no caso desta pesquisa,

o cuidado e maturação dos componentes da ludicidade do palhaço definidos para a

investigação em dança - capacidade de jogar e atitude profanadora. Consideramos

também que estes componentes no palhaço atuam como micropolíticas numa sociedade

competitiva e individualista.

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CONSIDERAÇÕES

Com o entrelaçamento teórico gerado a partir do contexto da dança e da

formação treinamento do palhaço, compreendemos que a utilização de jogos e

brincadeiras se faz necessária para que possamos reaprender a jogar e compreender as

capacidades cognitivas geradas por esta habilidade. Bem como a fim de alcançar a

capacidade de gestar paixões alegres em nosso dia-a-dia, de reaprendermos nos deixar

contagiar pelo fluxo criativo e aumentar nossa capacidade de contagiar ao outro

também. Enrijecemos-nos em padrões comportamentais gerados pela disseminação de

um modelo de sociedade, de sucesso profissional, de família, de pessoas perfeitas, ou

seja, disseminados por dispositivos. Ao mesmo tempo criamos nossas próprias

exigências como parte deste contexto, e nelas podemos encontrar e desenvolver

estratégias para gestar novos modos de existência. Concluímos que a vivência com

jogos e brincadeiras é necessária para estimular certos processos e estados do corpo aos

quais dificilmente dedicamos devida atenção. Então o jogo se caracteriza como

estratégia metodológica para facilitar a descoberta de estados de ludicidade na formação

do palhaço contemporâneo. O desafio de refletir sobre a utilização de jogos específicos

de treinamento do palhaço para apreensão de estados de ludicidade, foi alcançado nas

correlações conceituais que vem sendo experimentadas com a Paraboléu Cia Cênica. O

grupo se encontra uma ou duas vezes na semana para um treinamento técnico de dança,

bases acrobáticas e exercícios utilizados na formação de palhaço.

Com o trabalho da Paraboléu Cia Cênica consideramos que prática de jogos

promoveu o aumento da capacidade de jogar que parece ter potencializado a capacidade

de criação dos dançarinos, demonstrada ao longo dos encontros na continuidade das

sequências de movimento com a proposição inesperada de algo novo. Elabora-se a

reflexão de que a atitude de profanação é possível e é praticada em dança,

especialmente na contemporânea, no sentido de profanar as convenções advindas

historicamente de padrões técnicos, coreográficos, musicais, etc. Ou seja, no modo de

organização da obra como um todo, mas não especificamente como uma atitude

exercida pelos dançarinos durante todo o processo de criação, assim como na cena. Com

referência no palhaço que assumimos aqui como contemporâneo, a profanação se

configura como uma atitude pode-se dizer quase vital. Entretanto, argumentamos que

pelo fato de a profanação ter se tornado um desafio no mundo moderno, sentimos a

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necessidade de extrapolar a sala de ensaio e construir ações de rua para vivenciar

atitudes de profanação para além das relações nos jogos. O que também converge com a

metodologia de treinamento do palhaço difundida pelo Lume Teatro, onde propõe a

prática de investigação corporal em sala combinada com o que denomina por saídas de

rua. Observando a trajetória em dança desde os relatos da introdução, experimentar na

rua as relações criadas no ensaio, vem se constituindo como um hábito de investigação e

parte componente do processo de criação. As saídas de rua possibilitaram a reflexão de

que subversão muito se aproxima da profanação, ao mesmo tempo em que a etimologia

da palavra subversão nos impulsiona a mais um questionamento, a partir da qual as duas

passam a ser opostas. Etimologicamente, a subversão incita atitudes de aniquilamento,

de destruição de algo, enquanto a profanação não opera contra, no sentido de eliminar

sua existência, mas opera no encontro dos diferentes que evidencia a multiplicidade dos

caminhos, coopera para que outras coisas venham acontecer e novos modos de

existência possam ser gestados. Este processo teve implicações artísticas, tendo como

um dos resultados, a sistematização de uma intervenção urbana de dança. A

intervenção, denominada ―Permita-me‖ é estruturada em duas grandes ações que trazem

como fundamento o estímulo da capacidade de jogar (Ação 1) e a atitude profanadora

(Ação 2). Na palavras de Agamben (2009), ―os viventes‖ de praças públicas são

induzidos a exercitar as duas habilidades nas formas de relação que o grupo propõe.

A prática de sala de aula – ensino do ballet – possibilitou a compreensão de que

estados de ludicidade podem ser proporcionados por uma metodologia de trabalho que

promova ao aluno a sensação de bem estar com o contexto, bem como com os próprios

erros. O medo de errar pode paralisar as pessoas e fazer com que recuem diante da

possibilidade de tentar, de se arriscar para então conhecer as consequências e aprender

com elas. Não nos permitimos a uma série de atitudes em função do medo do ridículo,

da opinião dos outros – ou do professor – com o olhar quase sempre direcionado ao que

pode ser negativo naquela experiência. Aprendemos a não investir na positividade.

Somos condicionados em nossa educação a acreditar que as consequências de um erro

serão provavelmente negativas. E esta forma de conhecer o mundo tem consequências

desastrosas nas práticas de ensino-aprendizagem. A repressão a diferentes formas de

existência não está mais nas palavras ou atitudes do professor, coordenador ou diretor,

ela está nos modos de organização da educação que priorizam em geral, uma única

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visão de mundo. E conviver com o erro é também um aprendizado na busca artística

com o palhaço.

Outro resultado de pesquisa foi a sistematização de uma oficina para

arte/educadores que traz como questão central reconhecer e discutir implicações do

dualismo corpo/mente nas escolhas metodológicas dos professores. Denominada

―Corpo, Ludicidade e Arte/educação‖ a oficina integrou a programação do XXIII

CONFAEB (Congresso Nacional da Federação de Arte/educadores do Brasil) em Porto

de Galinhas, em novembro de 2013. Composta de exercícios de treinamento do palhaço,

devidamente contextualizados, a oficina provocou os participantes para a percepção dos

fluxos de consciência e partir deste eixo, algumas questões foram expostas no decorrer

da oficina como, por exemplo, porque temos a tendência em privilegiar alguns sentidos

e não outros nas atividades com educando de ensino regular. De forma muito sagaz,

uma das participantes, quando questionados sobre a separação mente/corpo, afirmou ser

essa uma questão muito enraizada em nossas práticas e por isso tão difícil de ser

transformada, ou mais adequadamente, transmutada.

A compreensão do que é ser palhaço implica mudanças éticas e filosóficas para a

vida em todos os âmbitos. Ao final do período de dois anos, as configurações estéticas

são ainda um processo com experimentações que indicam possíveis caminhos para a

montagem de um espetáculo. Enquanto às contribuições pedagógicas se configuram na

descoberta de uma metodologia de trabalho que se aplica a qualquer idade e técnica,

pois se trata de um modo de organização e acolhimento para o outro, ao utilizar

conteúdos e combinações técnicas. O envolvimento pessoal e artístico com o palhaço

trouxe contribuições pedagógicas especialmente no que tange às formas de tratar o

corpo em busca de estimular uma construção coletiva, que enfatiza atitudes cooperativas

e generosas, com a intenção de promover o aumento da capacidade de afetar o outro e

se deixar ser afetado enquanto modo de se relacionar nas práticas de dança e, por que

não, na vida.

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