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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO - EAUFBA NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO - NPGA ANDRÉ LUÍS VITÓRIO DA SILVA RELAÇÕES DE PODER NA POLÍTICA ESTADUAL PARA QUILOMBOS - A EXPERIÊNCIA DO QUILOMBO RIO DOS MACACOS (2014 a 2018) SALVADOR 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · Nessa jornada aprendi que no quilombo ninguém morre sozinho, ninguém vive sozinho, viver é verbo coletivo . Chego aqui, por causa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO - EAUFBA

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO - NPGA

ANDRÉ LUÍS VITÓRIO DA SILVA

RELAÇÕES DE PODER NA POLÍTICA ESTADUAL PARA QUILOMBOS

- A EXPERIÊNCIA DO QUILOMBO RIO DOS MACACOS (2014 a 2018)

SALVADOR

2018

ANDRÉ LUÍS VITÓRIO DA SILVA

RELAÇÕES DE PODER NA POLÍTICA ESTADUAL PARA QUILOMBOS

- A EXPERIÊNCIA DO QUILOMBO RIO DOS MACACOS (2014 a 2018)

Dissertação apresentada ao Núcleo de Pós-

Graduação em Administração da Universidade

Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial

à obtenção do grau de Mestre em Administração.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Elisabete Pereira

dos Santos

SALVADOR

2018

Escola de Administração - UFBA

S586 Silva, André Luís Vitório da.

Relação de poder na política estadual para quilombos – A experiência

do Quilombo Rio dos Macacos (2014 a 2018). – 2018.

115 f.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Elisabete Pereira dos Santos.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de

Administração, Salvador, 2018.

1. Quilombo Rio dos Macacos (Bahia, Brasil) - Experiência. 2.

Quilombos – Política governamental - Bahia. 3. Negros – Bahia – Condições

sociais. 4. Negros – Brasil – Identidade étnica. I. Universidade Federal da

Bahia. Escola de Administração. II. Título.

CDD – 305.89608142

RELAÇÕES DE PODER NA POLÍTICA ESTADUAL PARA QUILOMBOS

- A EXPERIÊNCIA DO QUILOMBO RIO DOS MACACOS (2014 a 2018)

Dissertação julgada adequada à obtenção do grau de Mestre em Administração e aprovada em

sua forma final pelo Curso de Mestrado em Administração, da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 05 de Junho de 2018.

Banca

Profa. Dra. Maria Elisabete Pereira dos Santos

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP

Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra. Andrea Yumi Sugsihita Kanikadan

Doutora em Ecologia Aplicada pela Universidade de São Paulo

Professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-

Brasileira - UNILAB

Profa. Dra. André Nascimento Santos

Doutor em Administração pela UFBA (estágio doutoral na Science Po Toulouse -

França)

Professor Adjunto da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Chefe de Departamento da EAUFBA

AGRADECIMENTOS

Essa dissertação é, para mim, das maiores confirmações de que não posso Ser sem aqueles e

aquelas que me cercam. As palavras de agradecimento que seguem não são capazes de expressar

a minha felicidade por ter tais pessoas em todos os momentos, mas são um inevitável indicativo

da minha gratidão.

Nessa jornada aprendi que no quilombo ninguém morre sozinho, ninguém vive sozinho, viver é

verbo coletivo. Chego aqui, por causa da energia, confiança dos que me acompanharam, por isso,

agradeço:

A Zenilda Rodrigues, minha mãe, responsável por tudo que sou e exemplo para o que ainda posso

ser;

A minha amada orientadora Bete Santos, agradeço por todo esforço, paciência e dedicação;

A minhas tias, Enidete, Anunciação, Jane e Maria Aparecida; meus tios Fernando Vitório e Paulo

Roberto.

A Jucilene Ferreira, por permitir que isso acontecesse; a Gabriela Ramos, pela inspiração e

companhia;

A Talita Burbulhan, Thaís Vieira Costa, Jeancarlo e Carla, Márcio e Sônia Bello, e a Mirella Vila

Nova, pelo apoio incondicional;

A Sophie Kurz, distante, mas sempre presente;

Agradeço ao professor André Nascimento e a Daiane Batista, por trazerem bons ventos ao navegar;

A Flora Marina, Silvânia Caribé e a Família Grave, por serem família;

Aos filhos e filhas de Bete, meus irmãos e irmãs, Gil Brito, Sara Fadigas (muito obrigado minha

irmã), Melquiades Pimenta, Simone e Fabrício Oliveira;

Aos Irmãos e irmãs que ganhei na Eaufba, levo para a vida, Eduardo Rosário, Mário Reis, Lúcia

Luz, Margareht Souza (Margô), Daiane Santos, Maria de Fátima, Antonieta Barbosa, Cassiano

Nogueira, Val, Rose, Ivo, Silvana, Dona Emília e a Tatiana Santos, a todos e todas, meu muito

obrigado por todos os dias;

Meus Especialmentes de todas as horas Camilla Rusciolelli, Jadson Santana, Laerson Lopes,

Tatiana Doin, Emmanuelle Daltro e Anna Neto; aos queridos e queridas do NPGA: Nid, Maria

Tereza, João, Matheus, Elisabeth e Milena. A Anaélia, muito obrigado.

Agradeço a Escola Da Águas, ao Denegrir EAUFBA;

Axs leais, Mirtes Fernanda, Laís Moreira, Pedro Barioni, Renata Amoedo, Amanda Oliveira,

Dourival, Vitória Maria, Fábio, Morgana e Mimo, obrigado por segurarem essa barra que é

conviver comigo.

Dedico este trabalho a Clóvis Vitório, meu pai, que retornou à pátria espiritual durante esta jornada, sua partida, igual a sua presença, fortaleceu em amor os laços de nossa família.

Será que um dia eu serei a patroa? Sonho que um dia isso possa acontecer Ficar na sala não ir mais para a cozinha Agora digo o que vejo na TV

Um som negro Um deus negro Um adão negro

Um negro no poder

(Adão Negro – Adão Negro)

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Mariscar é Resistir. Comunidade Quilombola e Pesqueira da Conceição de Salinas,

Bahia

Figura 2 – Fogão à lenha no quilombo, alternativas de sobrevivência.

Figura 3 – Estudo de caso integrado múltiplas unidades de análise

Figura 4 – O quilombo de dentro

Figura 5 – Localização do Quilombo Rio dos Macacos

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Caracterização da Política Pública

Quadro 2 – Marco legal da Política Pública Estadual Quilombola

Quadro 3 – Informações sobre as Entrevistas Realizadas

Quadro 4 – Categorias de análise

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AATR

ADCT

ADI

CadÚnico

CDCN

CESE

CESPCT

CIA

CNBB

COBEPA

CONAQ

CPP

CPT

CRQ

FCP

FSM

FUNCEP

GIQ

GO

IBGE

IDHM

INCRA

MDS

MNU

MPP

OIT

ONU

PBQ

PFL

PNAD

Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

Ação Direta de Inconstitucionalidade

Cadastro Único dos Projetos Sociais do Governo Federal

Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra

Coordenação Ecumênica de Serviço

Comissão Estadual de Sustentabilidade de Povos e Comunidades

Tradicionais

Centro Industrial de Aratu

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

Comunidade Beneficente de São Roque do Paraguaçu

Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas

Conselho Pastoral da Pesca

Comissão Pastoral da Terra

Comunidade Remanescente de Quilombo

Fundação Cultural Palmares

Fórum Social Mundial

Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza

Grupo Intersetorial para Quilombos

Goiânia

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

Índice de Desenvolvimento Humano

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome

Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial

Movimento de Pescadoras e Pescadores

Organização Internacional do Trabalho

Organização das Nações Unidas

Programa Brasil Quilombola

Partido da Frente Liberal

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

PNUD

PPA-P

RTID

SEFPIR

SEPPIR

SEPROMI

SESAO

SISEPIR

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

Plano Plurianual Participativo

Relatório Técnico de Identificação e Delimitação

Sistema de Financiamento das Políticas de Promoção da Igualdade

Racial

Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

Secretaria de Promoção da Igualdade Racial

Serviço de Saúde Ocupacional

Sistema Estadual de Promoção da Igualdade Racial

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar as relações de poder entre a comunidade

quilombola Rio dos Macacos e Secretaria de Promoção da Igualdade Racial – Sepromi no

período de 2014 a 2018, no processo de implementação da política estadual quilombola. Trata-

se de identificar as características da relação entre o Estado e a comunidade tradicional

quilombola, no período caracterizado pelo conflito entre a comunidade e o Estado, por meio

das investidas da Marinha do Brasil contra a comunidade. Apoiamo-nos em Poulantzas (1985)

para compreender as relações entre o Estado e os sujeitos coletivos que se relacionam a partir

das políticas públicas e a concepção foucaultiana das relações de poder. Os dados foram obtidos

por meio de entrevista, análise de documentos e observação participante na comunidade e nos

eventos com a participação da Sepromi. Os resultados obtidos por meio da análise de conteúdo

evidenciam que a implementação política estadual quilombola é comprometida pelas

assimetrias de poder entre os atores sociais inscritos do processo de negociação. A absorção da

pauta quilombola pelo Estado é fruto da estratégia de mobilização política das classes

dominadas por parte da fração dominante que conduz a política do Estado, mas também é parte

do entendimento que a representividade é suficiente para o enfrentamento das desigualdades

raciais. Concluímos que as relações de poder entre Estado e quilombo se caracterizam pela

assimetria e tentativa de subordinação da comunidade aos interesses hoje hegemônicos na

máquina do estado. Os conceitos que estruturam esse trabalho são políticas públicas e poder.

Palavras-chave: Política públicas; Relações de poder; Quilombo;

ABSTRACT

The objective of this work is to analyze the power relations between the quilombola community

Rio dos Macacos and the Secretary for the Promotion of Racial Equality – Sepromi in the

implementation process of the quilombola politics in the period from 2014 to 2018. To identify

the characteristics of the relation between the state and the traditional quilombola community

during the indicated period of conflict between both parties, the affront by the Brazilian Marine

against the community is examined. We are based in Poulantzas (1985) to understand the

relations between the State and the collective subjects that are related from the public policies

and the Foucaultian conception of the relations of power. The data was collected from

interviews, document analysis and participation observation in the community and at events

where Sepromi was involved. The results of the content analysis show that the implementation

concerning federal political quilombola issues is biased by the power asymmetries between the

social actors that form part of the process of negotiation. The absorption of

the agenda quilombola by the state results from the political mobilization strategy of the

dominated classes on the part of the dominant fraction that fuels the state’s politics, however

also from the action part of the understanding that representativeness is sufficient to face racial

inequalities The present work concludes that the power relations between state and quilombo

are characterized by asymmetry and the attempt to subordinate the community according to the

hegemonic interests of the state machinery. The underlying concepts that structure this work

are public policies and power.

Keywords: Public policy; Power relations; Quilombo;

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 14

1. A POLÍTICA .................................................................................................................... 19

1.1 Antes da Política, o Estado ........................................................................................... 19

1.2 Estado, raça e classe no Brasil ...................................................................................... 22

1.3 A política pública ......................................................................................................... 25

1.4 Da política pública à Política Pública Quilombola ....................................................... 31

1.5 A Política Estadual Quilombola – Lei nº 11.850 de 2009 ............................................ 38

2. A COMUNIDADE TRADICIONAL QUILOMBOLA ................................................. 45

2.1 Núcleo paralelo de poder .............................................................................................. 45

2.2 Condições de formações sociais e subjetivas ............................................................... 49

3. PODER, RELAÇÕES DE FORÇA ................................................................................. 53

3.1 Poder, Estado e classe ................................................................................................... 56

3.2 Política pública e Poder ................................................................................................ 60

3.3 Assimetrias de Poder .................................................................................................... 61

3.4 Legitimidade ................................................................................................................. 62

3.4.1 Lugar de fala ........................................................................................................ 63

3.5 Posição versus Interesse ............................................................................................... 65

4. CONSIDERAÇÕES MÉTODOLÓGICAS ...................................................................... 67

4.1 Abordagem e método.................................................................................................... 67

4.2 Instrumento de pesquisa ............................................................................................... 71

4.3 Análise do conteúdo ..................................................................................................... 76

4.4 O cenário do campo ...................................................................................................... 78

5. RELAÇÕES DE PODER NO QUILOMBO RIO DOS MACACOS ............................ 79

5.1 Contexto ....................................................................................................................... 79

5.2 Poderes Assimétricos .................................................................................................... 84

5.2.1 Das leituras identitárias ...................................................................................... 85

5.3 Legitimidade ................................................................................................................ 89

5.4 Lugar de Fala ................................................................................................................ 91

5.5 Posição versus Interesse ............................................................................................... 92

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 94

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 98

ANEXOS

14

INTRODUÇÃO

A luta da população negra por representatividade e melhoria nas condições materiais

da existência humana tem sido travada nos mais diferentes campos, nas manifestações contra a

Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, organizadora do Oscar, pela falta de negros e

negras nas principais categorias premiáveis no seu evento anual em 2016, no conflito político

da imigração na Europa, até as avaliações dos quatorze anos da política de cotas raciais nas

universidades brasileiras neste ano.

O racismo, e seu escopo estrutural, permitiu que a lógica da estratificação racial não

fosse abalada mesmo quando o sistema-mundo global apresentava sinais de mudanças que nos

aproximariam de uma construção ética do que entendemos como sociedade, o que nos leva a

supor que as mudanças em curso se situam mais nos discursos do que nas práticas que

pudessem, efetivamente, transpor a lógica do capital.

Mesmo como avanços significativos no debate - negritude e pobreza ainda caminham

juntos no que parece ser uma relação de causalidade. Entretanto, tal relação compõe um projeto

de poder que, antes das relações de classe, se propõe a determinar o lugar do negro na estrutura

social. As comunidades tradicionais remanescentes de quilombo por todo o território nacional

podem evidenciar as condições de precariedade que a população negra está submetida, o que

evidencia a dimensão secular deste projeto de exclusão.

As relações de poder entre os diferentes atores da esfera social são determinantes nos

processos de elaboração e implementação de políticas públicas voltadas para essas

comunidades. Compreender a relevância dessas relações de poder na política do Governo do

Estado da Bahia para comunidades tradicionais remanescentes de quilombo é o que guia este

trabalho.

A realidade de pobreza é contínua nas comunidades remanescentes de quilombo no

país e se expressa com maior evidência no estado da Bahia, estado que chegou a possuir 919

comunidades quilombolas e remanescentes ao longo da história (GOMES, 2015). Cenário que

não foi construído pelo acaso ou, como os teóricos do darwinismo social propuseram, pela

incapacidade biológica do povo preto para se organizar e se constituir como os detentores dos

meios de produção e de capital.

Tal processo tem lastro histórico e foi amparado pelo aparelho do Estado Nação com

o objetivo de viabilizar os processos de acumulação que resultaram nos índices de

miserabilidade da população negra que temos nos dias de hoje. A reversão deste cenário, de

15

forma contraditória ou não, depende da atuação deste mesmo Estado, por meio de políticas

públicas e práticas conjuntas com a sociedade.

Políticas Públicas par comunidades tradicionais remanescentes de quilombo exigem

legislação específica. A política da diferença e suas prerrogativas estão previstas na

Constituição Federal, Constituição do Estado da Bahia e, por meio de diretrizes específicas, em

vários documentos internacionais.

Neste sentido, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),

em seus artigos 6º e 7º, dispõe sobre o direito à consulta prévia livre e informada1, instruindo

que toda iniciativa do poder público que interfiram nas vidas dos povos e comunidades

tradicionais devem ser conhecidas, elaboradas e implementadas com a participação direta das

comunidades envolvidas. Contudo, tal processo é balizado por relações de poder que conduzem

as escolhas diversas nas questões sociais e políticas.

Interessa-nos, nesta pesquisa, analisar as relações de poder entre o poder público

estadual, por meio da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial – Sepromi, e a comunidade

remanescente de quilombo Rio dos Macacos, sendo tal relação situada no contexto da

implementação da política estadual para quilombos.

Estrutura esse trabalho a seguinte questão de pesquisa: O que caracteriza as relações de poder

entre a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial – Sepromi e a comunidade

remanescente de quilombo Rio dos Macacos, no contexto da implementação da política

estadual para quilombos no período de 2014 a 2018? Partimos do pressuposto de que as

políticas afirmativas e o processo de autonomia (empoderamento) atribuído à sociedade civil

organizada no âmbito das comunidades tradicionais possibilitaram que estas pudessem fazer

valer seus interesses coletivos, enquanto comunidades historicamente excluídas dos projetos

nacionais de desenvolvimento. Porém, as relações de poder na elaboração e implementação das

políticas públicas na Bahia, no período de 2014 a 2018, guardam uma grande assimetria, sendo

desfavorável aos sujeitos da comunidade remanescente de quilombo Rio dos Macacos, em prol

1 “Artigo 6º: 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos

interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas,

cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na

mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas

ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam

concernentes; c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos

casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim. 2. As consultas realizadas na aplicação desta

Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se

chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas”. (Convenção nº 169 da

Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada pelo Decreto nº 5.051,

de 19 de abril de 2004).

16

de interesses políticos que se caracterizam pelo silenciamento dos sujeitos coletivos e da não

valorização dos interesses comunitários. A literatura investigada torna evidente que, nos

últimos anos, principalmente nos governos do Partido dos Trabalhadores, os mecanismos de

participação na elaboração e implementação de políticas públicas tiveram um grande avanço

no Brasil, tendo acontecido o mesmo no Governo do Estado da Bahia, uma vez que a sociedade

civil organizada foi convidada a pautar importantes questões pertinentes à participação, como

a consolidação dos diversos tipos de conselhos.

Nesse caso especifico é necessário compreender que os projetos de construção

democrática são distintos e complexos, e se constituem no embate entre diferentes ideologias,

além de disputarem o campo com o projeto neoliberal que se apresentou no país nos governos

de Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso. Apesar das diferenças, tais projetos

têm pontos de confluência que podem ser qualificados como perversos e não podem ser

analisados de maneira simplória (DAGNINO, 2004).

Acrescenta-se como um fator importante a ser considerado nesta nossa análise o

entendimento de que falar de quilombo é inevitavelmente falar de resistência, seja ao sistema

escravocrata, ou contra o consequente racismo consolidado nas estruturas nacionais. Aqui

identificamos o que Schwarcz (2012) chamou de “tipo particular de racismo” que se apresenta

no Brasil, racismo escamoteado nas relações públicas, em um país que frequentemente nega a

sua existência, de acordo com a autora: trata-se de um [...] “tipo particular de racismo, um

racismo silencioso e que se esconde por trás de uma suposta garantia da universalidade e da

igualdade das leis, e que lança para o terreno do privado o jogo da discriminação”, isso em uma

sociedade “[...] marcada historicamente pela desigualdade, pelo paternalismo das relações e

pelo clientelismo” (SCHWARCZ, 2012, p. 25).

A comunidade quilombola do Rio dos Macacos se destaca por fornecer condições de

análises empíricas que permitem a compreensão macro da realidade dessas comunidades.

Localizada no bairro de São Tomé de Paripe, no limite das cidades de Simões Filho e Salvador,

vivem oitenta e cinco famílias2 em casas de barro cobertas com telhas de amianto, sem

saneamento básico, energia elétrica ou rede de esgoto, que lá permanecem desde a desativação

de fazendas produtoras de cana-de-açúcar, há mais de 100 anos. A área tornou-se palco de uma

disputa judicial e territorial a partir da década de setenta, com a doação das terras pela Prefeitura

2 Dados cedidos pelas lideranças da comunidade, que diferem do levantamento da Sepromi, que identificam setenta

e cinco famílias. De acordo com a liderança entrevistada, o questionário aplicado pela Secretaria de Promoção da

Igualdade Racial não considerou as ramificações das famílias, que representam novos núcleos familiares dentro

da comunidade.

17

de Salvador à Marinha do Brasil. O território já foi alvo de uma ação reivindicatória proposta

pela Procuradoria da União, na Bahia, que solicitou a desocupação do local para atender as

necessidades da Marinha.

O cenário no Rio dos Macacos é de disputa de terra, em uma tentativa de afirmação de

seus moradores de manutenção de uma identidade própria daquele lugar, espaço que na cidade

de Salvador se destaca pelo embate, pelo conflito entre o Estado e a população que

tradicionalmente ocupa o lugar.

A investigação proposta por essa pesquisa se fundamenta na necessidade de

compreender elementos que estruturam a lógica das relações comunitárias com as estruturas

políticas do Estado, recorrendo ao marco teórico crítico sobre práticas e leituras colonizadoras

de desenvolvimento, que ainda hoje, no caso do Quilombo Rio dos Macacos, nega a

comunidade acesso aos seus meios de subsistência ao desconhecer sua territorialidade.

Optamos por analisar a relação da comunidade com a Sepromi, órgão do Governo do Estado, e

não com a Marinha do Brasil, por compreender que é a esta Secretaria que cabe a obrigação

legal de garantir as condições de vida para a comunidade quilombola, principalmente em

situações de conflito. Entender as relações de poder nessa conjuntura é compreender a quem ou

para que serve a política pública estadual.

Tomando os sujeitos como partes importantes do processo de elaboração de políticas

públicas, temos como objetivo geral desta pesquisa analisar as relações de poder entre a

Secretaria de Promoção da Igualdade Racial – SEPROMI e a comunidade quilombola Rio dos

Macacos, no contexto da implementação da política estadual para quilombos, no período de

2014 a 2018. Os objetivos específicos são:

Discutir a construção de política pública para comunidades tradicionais remanescentes

de quilombo no Brasil;

Caracterizar o processo de implementação do Decreto Estadual n° 11.850/2009 na

comunidade quilombola do Rio dos Macacos;

Analisar as relações de poder - de força - entre a comunidade do quilombo de Rio dos

Macacos e a Sepromi nos trâmites para a regularização fundiária dos territórios

reconhecidos;

Identificar as assimetrias dos poderes entre a do quilombo de Rio dos Macacos e o poder

público na implementação de ações de promoção de qualidade de vida de acordo com

o Plano Estadual de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades

Tradicionais.

18

Caracterizar os processos de legitimação das demandas da Sepromi e da comunidade

quilombola.

O caminho percorrido por essa pesquisa buscou estabelecer o diálogo entre as teorias

da política pública, comunidade tradicional quilombola e poder. Pesquisa dividida em cinco

partes, além desta introdução, que juntas pretendem alcançar os objetivos supracitados. Na

primeira parte do texto, travamos o debate sobre política pública, buscamos situar a teoria da

política pública no contexto da compreensão de Estado que nos orienta, debate esse necessário

para localizar a concepção ontológica que guia nossa análise. Aqui trazemos a discussão racial

da construção política no país que irá culminar nas políticas raciais de caráter afirmativo,

contexto que compõe as bases da política estadual quilombola, apresentada em seguida.

Na segunda parte empreendemos nossos esforços na reflexão teórica da comunidade

tradicional quilombola, componente que aqui extrapola a leitura territorial, carregando signos

indenitários e materiais de luta e resistência ao sistema de subjugação qual são submetidas as

comunidades tradicionais quilombolas no Brasil. Trazemos a construção do Quilombo como

núcleo paralelo de enfrentamento a este sistema. Seguido das condições de formação sociais e

subjetivas destas comunidades.

A terceira parte deste trabalho é um esforço para a discussão teórica do poder e sua

compreensão como relação de forças entre os diferentes atores sociais no seio da representação

política. Apresentamos os diálogos entre os termos que estruturam a nossa pesquisa, além dos

conceitos que orientam nosso modelo de análise. A quarta parte deste trabalho é composta por

nossas escolhas metodológicas e a apresentação do nosso campo de pesquisa. A quinta parte de

nossa pesquisa é onde nos dedicamos as análises de nossos resultados à luz do nosso referencial

teórico, seguido da nossa sexta e últimas parte onde concluímos e pontuamos as nossas

limitações produzindo sugestões para pesquisas futuras.

19

1. A POLÍTICA

1.1 Antes da Política, o Estado

Os enfrentamentos da negritude foram incorporados às agendas políticas nacionais e

internacionais com mais intensidade no século XX e início do século XXI – o que atestam os

debates étnicos e raciais que ascenderam até o final da última década. Entretanto, tal cenário

não conseguiu desconstruir a realidade de subjugação econômica e política de negros e negras

ao redor do mundo, mesmo com as conquistas pontuais, da África a América Latina passando

pela Europa – ser negro ainda é sinônimo de fazer parte da maioria excluída das dinâmicas

sociais e econômicas hegemônicas.

De acordo com Fanon (1979), as exclusões impostas à população negra provem de

negação secular que fora naturalizada e transformada na sujeição e violência que tem

consequências em diferentes gerações. A ideia de raça, constituída pela Europa quando da

dominação da América, instituiu um conjunto de relações de poder que hierarquizou os lugares

e suas gentes, classificando-os de acordo com um suposto grau de evolução e desenvolvimento

societário. Essa construção marca até os nossos tempos o acesso aos meios de produção e

principalmente o acesso à terra e aos meios de produção.

Para nós, pensar em condições de subalternidade é simultaneamente mover esforços

para propor alternativas de subversão deste sistema que determina os lugares dos sujeitos

individuais e coletivos a partir de suas características fenotípicas. As políticas de governo são

regidas por uma lógica de Estado que, no caso do Estado capitalista, é tutelada pelos interesses

de uma elite econômica que atua sob a chancela de políticas públicas, nosso desafio é

compreender de modo crítico tais relações e que/quem estas servem.

Trabalhar a teoria da política pública exige precauções metodológicas que visam

circunscrever essas teorias dentro de uma lógica governamental que, por sua vez, está alocada

dentro de um escopo do que entendemos como o papel do Estado. Tais precauções se fazem

necessárias quando pretendemos aqui discutir as relações de poder em um contexto de

implementação da política pública estadual quilombola, política essa que está inserida num

contexto mais amplo da relação Estado e sociedade.

No Brasil os jogos de poder e interesses pautam deliberadamente os processos do

Estado. Pensar as políticas públicas no contexto da formação sociopolítica brasileira perpassa

obrigatoriamente por revisitar algumas matrizes teóricas críticas da teoria do Estado,

particularmente a que nos dá elementos suficientes para entender o estado como sendo “um

comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX; ENGELS, 1982, p.

20

23). Tal construção compreende o Estado como um instrumento repressivo controlado pela

classe dominante e colocado a serviço de interesses dominadores.

Por meio do aparato econômico, a burguesia fagocita o papel destinado ao Estado:

[...] a burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da

propriedade e da população. Aglomerou as populações, centralizou os meios de

produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária

dessas transformações foi a centralização política (MARX; ENGELS, 1982, p. 25).

O Estado se configura, então, como um instrumento de uma determinada classe, que

“em todos os períodos típicos é exclusivamente o Estado da classe dominante, de qualquer

modo, essencialmente uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada”

(ENGELS, 1978, p.199). Este Estado não foi, necessariamente, elemento condicionante para o

nascimento do capitalismo, mas é parte fundamental do seu desenvolvimento quanto a garantida

da manutenção da divisão de classes.

Por essa divisão de classes, criada e nutrida a fim de garantir a existência do modo de

produção capitalista – o interesse da burguesia – o Estado cria também os agentes da própria

destruição. O Estado é:

a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela

própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis [...] e faz-se necessário um

poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque

e a mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’ (ENGELS, 1978, p.191).

Esses textos clássicos nos colocam frente ao poder de subordinação do Estado frente

a burguesia no plano político, onde os detentores da propriedade privada são os reis (MARX,

2004). Ao explicar porque a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, Marx

aponta mais uma vez para a sociedade civil e sua essência, a economia política. Não é o Estado

o sujeito constituinte da ideologia da classe dominante, mas a própria classe dominante no

âmbito de sua própria dominação (GURGEL; JUSTEN, 2011).

Porém, mesmo no âmbito do próprio marxismo, a associação entre estado e burguesia,

classe dominante, apresenta algumas variações, oriundas da atuação mais complexa do Estado,

principalmente no pós-guerra. Gramsci (1968), com um conceito de estado um pouco mais

ampliado (a noção de estado ampliado), compreende o estado como um locus contraditório, de

disputa entre classes e frações de classe, e que, como mecanismo de dominação incorpora

demandas advindas de diferenciados segmentos sociais. As políticas públicas são demandas

que surgem no âmbito das disputas de classe e é neste contexto que, segundo o autor, será

missão do Estado intervir nas ordens econômicas, políticas e sociais.

É no conceito de hegemonia que o autor irá repousar a combinação das forças e

consenso que visam o equilíbrio das sociedades de classe. Estão nessas combinações as

21

políticas que Gramsci vai chamar de concessões da classe dominante em relação a necessidades

expressas da classe dominada. Esse Estado em Gramsci, o Estado ampliado, se expressa na

equação “Estado = sociedade política + sociedade civil”.

Segundo Althusser (1985), a ideia de Gramsci é singular, pois, não reduz o Estado ao

aparelho (repressivo) de Estado, “mas compreende, como dizia, um certo número de

instituições da ‘sociedade civil’” (Althusser, 1985, p. 67). Desta maneira completam Gurgel e

Justen:

É, portanto, em Gramsci, em momento histórico que lhe permitiu o alcance de uma

nova realidade do modo de produção e da sociedade capitalista, que se revelam os

novos papéis do Estado, integralmente identificados e para os quais se voltarão as

políticas públicas (GURGEL; JUSTEN, 2011, p. 23).

Indo além, é na concepção de Estado de Poulantzas (1985) que estão condensadas as

relações de classe, é na definição a seguir apresentada que encontramos os melhores elementos

para a investigação do nosso objeto, segundo o autor:

O Estado apresenta uma ossatura material própria que não pode de maneira alguma

ser reduzida à simples dominação política. [...] Se o Estado não é integralmente

produzido pelas classes dominantes, não o é também por elas monopolizado [...]. Nem

todas as ações do Estado se reduzem à dominação política (POULANTZAS, 1985,

p.17).

O aparelho do Estado não é aqui apenas objeto, ou sujeito, homogêneo, este também

é formado por diversos segmentos das classes. Nos interessa aqui conceber o Estado como

elemento que determina as relações, interesses e acordos que envolvem sujeitos sociais, classes

sociais e frações de classe – sujeitos circunscritos por processos econômicos, sociais e políticos.

O Estado pode, então, ser aqui concebido como uma relação social, uma relação de

poder e de dominação (ao lado de tantas outras instituições como a escola e a família), como

um sujeito coletivo detentor do papel de estruturar e organizar as relações ideológicas, da

ideologia dominante (POULANTZAS, 1895). O Estado que “trabalhando para a hegemonia de

classe, age no campo de equilíbrio instável do compromisso entre as classes dominantes e

dominadas” (POULANTZAS, 1895, p. 36).

De acordo com Poulantzas (1895), as instituições do Estado não podem ser entendidas

como mero instrumento a serviço da classe dominante, nem como um espaço neutro de

resolução dos conflitos, o Estado é o resultado da correlação de forças de determinada formação

social em determinado momento de sua história. O Estado capitalista estará a serviço da classe

dominante capitalista, então, o Estado se põe como um agente capaz de mediar os conflitos em

benefício desta. Mediação que segue como legitimadora das diferenças de classe a partir de um

22

discurso unificador, não somente entre dominadores e dominados, como também entre os

próprios dominados - tal processo se constitui como estratégia de dominação e controle.

Nos cabe pontuar o que colocou Miguel (2014) acerca da “ossatura material” da luta

de classes em Poulantzas:

Longe de ser a arena neutra de resolução dos conflitos de interesses, tal como na

leitura idealista, ou o instrumento a serviço da classe dominante — igualmente neutro,

porque potencialmente utilizável por qualquer um dos grupos —, o Estado é visto

como espelhando as relações de força presentes na sociedade (MIGUEL, 2014, p.

147).

O Estado poderá até proporcionar avanços, mas sempre tendo como limite a

hegemonia estabelecida (MIGUEL, 2014). A partir desta construção, torna-se nossa obrigação

na presente pesquisa ampliar o debate para a dimensão racial da política de Estado, admitindo

principalmente, as especificidades da formação política brasileira. Carneiro (2011), pontua que

mesmo que o pensamento social brasileiro tenha uma longa tradição no estudo da problemática

racial, este o fez de maneira a postergar, quando não atenuar, as práticas discriminatórias nos

processos sociais. Partimos, então, para a identificação de uma leitura de Estado que abranja a

leitura racial como parte determinante do processo, tal como a dimensão de classe.

1.2 Estado, raça e classe no Brasil

Do pessimismo quanto à miscigenação, marcado pelo poligenismo3 da obra de Nina

Rodrigues, passando para a leitura romantizada da democracia racial de Gilberto Freyre, ambos

expoentes a seus tempos, a leitura racial estava fadada ao lugar de coadjuvante no nosso

processo de construção sociopolítica (CARNEIRO, 2011; SCHWARCZ, 2012; FONSECA,

2009).

Na arena da atuação do Estado brasileiro, o escamoteamento das questões raciais irá

promover o que Carlos Hasenbalg chamou de “uma poderosa construção ideológica, cujo

principal efeito tem sido manter as diferenças interraciais fora da arena política, criando severos

limites às demandas do negro por igualdade racial” (HASENBALG, 1988, p. 80).

Um dos fatores materiais deste projeto foi o ato em dezembro de 1890, dois anos após

a abolição oficial da escravização4 do povo preto no Brasil, quando Rui Barbosa, o então

3 Sistema dos que fazem derivar as raças humanas de outros tantos troncos primitivos. Nina Rodrigues em sua

obra evidenciou sua crença ao darwinismo racial e aos modelos de poligenismo, defendendo que as raças humanas

correspondiam a realidades diversas e fixas, sendo estas impossíveis de cruzamentos (SCHWARCZ, 2012). 4 Escolhemos utilizar ao longo do texto o termo Escravização, em vez de Escravidão, como uma escolha política

que remete a um ato consciente exercido por um povo em relação a outro, evitando a relação automática da

condição de cativeiro de um povo livre que foi Escravizado, desta forma, evitamos também a utilização do termo

Escravo.

23

ministro das Finanças, ordena que todos os registros oficias da escravidão fossem queimados.

O objetivo do Estado brasileiro foi de tentar apagar um recente passado vergonhoso e insólito.

Tentou-se negar não somente a escravidão, mas também a existência de um povo preto,

apostando numa miscigenação “positiva”, contanto que o resultado dessa miscigenação fosse o

mais branco possível. Fosse pela seleção natural, fosse pelo estímulo à imigração branca, o

Brasil seria uma nação Branca. Conforme Vianna (1981) em sua obra Populações meridionais

do Brasil, a cor branca iria se impor conferindo ao Brasil uma civilização fadada ao progresso.

Schwarcz (2012) pontuou:

Depois de uma “era de libertações”, da promessa do fim de todas as formas de

cativeiro, o final do século XIX trazia agora o “embaraço da exclusão” e o retorno,

em bases renovadas (porque biológicas), de novos modelos de diferenciação social.

Se a igualdade jurídica prometia o final das cisões, essas novas teorias traziam

divisões ainda maiores e mais fortes, pois pautadas na natureza (SCHWARCZ, 2012,

p. 23).

Os pensadores do Estado brasileiros acreditavam que o desenvolvimento da sociedade

estava diretamente condicionado ao branqueamento deste povo, amparados pelo darwinismo

social os mesmos acreditavam que o negro e indígena iriam desaparecer, junto com suas

demandas, pelo contato com as populações “superiores” (FONSECA, 2009).

Vale dizer que as condições de vida a qual a população negra foi exposta não pode ser

resumida como resultado passivo deste processo de subjugação promovido por Estado e

sociedade. O povo preto no Brasil, antes e após a escravização, criou condições de existência

marcados pela negociação e pelo conflito (SCHWARCZ, 2012).

A inexistência de um projeto político de Estado que levasse em consideração a questão

racial durante a formação sociopolítica brasileira foi determinante para a falta de ações nos

âmbitos das políticas públicas que pudessem promover condições objetivas de emancipação do

povo negro. De acordo com a autora, entender a dimensão racial é fundamental para

compreensão da lógica política brasileira, segundo a autora raça é:

Uma categoria classificatória que deve ser compreendida como uma construção local,

histórica e cultural, que tanto pertence à ordem das representações sociais – assim

como o são fantasias, mitos e ideologias – como exerce influência real no mundo, por

meio da produção e reprodução de identidades coletivas e de hierarquias sociais

politicamente poderosas (SCHWARCZ, 2012, p. 25).

Tomamos aqui raça como categoria analítica de efeitos materiais, compreendida como

marcador social que no Brasil se forjou a partir do pressuposto de que quanto mais branco

melhor, quanto mais claro maior o prestígio. O branco deixa de ser cor e características

fenotípicas para compor um marcador de qualidade social, que determina acesso aos espaços

públicos e atribui virtudes aos sujeitos coletivos de pele clara.

24

Os primeiros estudos sobre mobilidade e raça foram realizados por Hasenbalg (1979;

1988) utilizando, respectivamente, dados para seis estados da região Centro-sul do Brasil, das

PNADs de 1976 e de 1982. Em todos os estudos, o autor mostrou que brancos têm mais

mobilidade ascendente do que pretos e conclui que os resultados indicam que existe

discriminação racial e barreiras raciais na mobilidade social no Brasil.

O debate teórico sobre a interseção entre raça e classe no Brasil também passa pela

construção de Florestan Fernandes (1965) que sugeriu que a discriminação racial no processo

da mobilidade social seria substituída pela discriminação de classe. O autor percebia o

preconceito racial exclusivamente como uma herança do passado colonial. Hasenbalg (1979),

na sua revisão da literatura sobre relações raciais no Brasil, se contrapõe a alternativa de

Fernandes, sugerindo que a discriminação racial seria determinante na estratificação social

brasileira, mesmo na sociedade capitalista industrial, segundo o autor, negros e brancos teriam

oportunidades diferentes pela estrutura consolidada no racismo.

Cor no Brasil, como instrumento de categoria racial, repercute em uma forma de

linguagem que tem abrangência cultural, social econômica. De acordo com Schwarcz (2012)

definir cor está vinculado a marcadores de identidades que podem ser flexíveis coma os

marcadores de classe social. Nessa intima relação entre raça e classe pode ser vista no exemplo

que pontuou Sansone (1993):

Os negros que não querem se definir como “negros” e têm uma condição um pouco

melhor tendem a se autodefinir como “escuros” ou, mais ainda, como “pardos” ou

“morenos”. Algo parecido acontece com os mestiços: aqueles com uma condição

melhor na rua tendem mais a se autodefinir como brancos. Nesse sentido o termo

pardo forma uma categoria-resto que contém os mais escuros “sem jeito” – aqueles

negros com renda, escolaridade, e status baixos demais para se aventurarem no jogo

dos códigos de cor e do status (SANSONE, 1993, p. 88).

Raça Social é o termo adotado por Valle Silva (1994) para definir a ideia do uso social

da cor no Brasil e ilustrar o efeito do processo de branqueamento. Segundo o autor, as diferenças

entre cor percebida e cor auto atribuída estão relacionadas com a situação socioeconômica e

cultural dos indivíduos. Contudo, as interpretações conservadoras da formação nacional sempre

trabalharam para distanciar os conceitos de raça e classe com base na suposta democracia racial,

não diferente das leituras progressistas que atribuíram o processo de subordinação das

desigualdades exclusivamente às lutas de classe, o que prejudicou de maneira substancial a

construção de agendas e políticas públicas à nossa realidade, conforme evidencia Carneiro

(2011):

De outro lado a força do pensamento de esquerda que ao privilegiar a perspectiva

analítica da luta de classes para a compreensão de nossas contradições sociais tornam

secundárias as desigualdades raciais obscurecendo o fato da raça social e

25

culturalmente construída ser determinante na configuração da estrutura de classes em

nosso país. Essa inscrição e subordinação da racialidade no interior da luta de classes,

iniciada inspirando perspectivas militantes que buscam articular raça e classe como

elementos estruturantes das desigualdades sociais no país (CARNEIRO, 2011, p. 17-

18).

A autora continua:

Apesar disso, as duas ideologias, o mito da democracia racial a perspectiva da luta de

classes tem, portanto em comum a minimização ou o não-reconhecimento e/ou a

invisibilização da intersecção de raça para as questões dos direitos humanos, da justiça

social e da consolidação democrática, elementos que dificultam erradicação das

desigualdades raciais nas políticas públicas (CARNEIRO, 2011, p. 18-19).

A matemática básica nos diz que não se pode resolver, ou propor soluções, para um

problema que (em teoria) não existe – assim seguiu-se a nossa formação de Estado

desconsiderando o racismo como condição estruturante. Determinado o modo como

circunscrevemos os debates de raça e classe no Brasil e seu papel na conformação estrutural na

sociedade, passemos para a construção teórica do próximo elemento que admitimos como

formador na construção do nosso objeto.

1.3 A política pública

Para guiar nosso processo de investigação optamos por trazer leituras que constroem

o que compreendemos como o conceito de políticas públicas, conceito este que se constitui

como objeto de análise por diferentes autores e autoras. Como vertente da ciência política, o

estudo das políticas públicas começou a ser desenhado nos Estados Unidos no início dos anos

cinquenta, quando a análise passa a enfatizar não somente o papel do Estado, mas também, as

ações dos governos. Na Europa essa literatura ganha destaque a partir do início dos anos setenta,

já no Brasil, tais estudos são mais recentes (FREY, 2000; SOUZA, 2006).

Estes estudos deram ênfase às análises estruturais e institucionais, refletindo sobre a

caracterização dos processos de negociação das políticas setoriais de caráter específico. De

acordo com Frey (2000), tais programas ou políticas setoriais eram examinados com a

finalidade de compreensão dos seus efeitos, sendo estudos descritivos e com graus de

complexidade analítica e metodológica bastante distintos entre si.

A partir dos anos oitenta do último século identificamos certas similaridades nas

construções conceituais do que vem a ser políticas públicas, como coloca Celina Souza (2006)

em sua revisão da literatura:

Não existe uma única, nem melhor definição sobre o que seja política pública. Mead

(1995) a define como um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à

luz de grandes questões públicas e Lynn (1980), como um conjunto de ações do

governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986) segue o mesmo veio:

política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou

26

através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a

definição de política pública como “o que o governo escolhe ou não fazer”. A

definição mais conhecida continua sendo a de Laswell, ou seja, decisões e análises

sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha o quê,

por quê e que diferença faz (SOUZA, 2006, p.24).

Segundo o pensamento de Althusser (1987), as políticas objetivam criar as condições

de cunho ideológico necessárias para a perpetuação da dominação burguesa, pois, é por meio

das políticas públicas que se faz a difusão do pensamento dominante. Nos programas escolares;

na regulação da mídia; na família; nas lógicas de mercado; na ordem espiritual religiosa; nos

sindicatos; enfim, em instituições que possam reproduzir os valores da ordenação burguesa

(ALTHUSSER, 1987). Poulantzas (1985) acrescenta que o Estado também age de maneira

positiva, ao criar, transformar e realizar. Para o autor, existiria “uma série de funções do Estado

que não se reduzem unicamente ao domínio político” (POULANTZAS, 1985, p.15).

O autor elencou as políticas públicas de pesquisa, de fomento, de inovação

tecnológica, energia, dentre outras, como as principais assumidas pelo Estado via tributações,

áreas onde a burguesia contribuiria de maneira incipiente para o desenvolvimento coletivo.

“Essas funções [...] preenchidas pelo Estado [...] concernem aos domínios que se apresentam

em geral como não rentáveis para o próprio capital, isto é, que a taxa de lucro do capital

investido nesses domínios é inferior ao lucro médio” (POULANTZAS, 1985, p.208).

Entretanto, a atuação deste Estado foi além e começou a operar como gestor do sistema

econômico, a fim de proteger os negócios privados.

Partindo para uma caracterização de políticas públicas que aproxime do objeto da

presente pesquisa seguimos com a concepção de policy arena introduzida por Lowi (1972), que

aborda as reações e expectativas das pessoas que são afetadas pelas políticas públicas: “O

modelo da policy arena refere-se, portanto, aos processos de conflito e de consenso dentro das

diversas áreas de política, as quais podem ser distinguidas de acordo com seu caráter

distributivo, redistributivo, regulatório ou constitutivo” (FREY, 2000).

Ainda de acordo com Frey (2000) é possível caracterizar as políticas públicas de

acordo com a sua natureza, abrangências dos possíveis benefícios e quanto aos impactos que

pode gerar, conforme Quadro 1 a seguir:

Quadro 1 – Caracterização da Política Pública

Âmbito Dimensão Descrição

Quanto à natureza ou

grau da intervenção Estrutural

Interferem em relações estruturais como

renda, emprego, propriedade etc.

27

Conjuntural ou Emergencial Atuam em uma situação temporária,

imediata.

Quanto à abrangência

dos possíveis benefícios

Universais Para todos os cidadãos.

Segmentais

Para um segmento da população,

caracterizado por um fator determinado

(idade, condição física, gênero etc.).

Fragmentadas Destinadas a grupos sociais dentro de cada

segmento.

Quanto aos impactos que

podem causar aos

beneficiários, ou ao seu

papel nas relações sociais

Distributivas

Visam distribuir benefícios individuais;

costumam ser instrumentalizadas pelo

clientelismo.

Redistributivas

Visam redistribuir recursos entre os grupos

sociais: buscando certa equidade, retiram

recursos de um grupo para beneficiar

outros, o que provoca conflitos.

Regulatórias

Visam definir regras e procedimentos que

regulem comportamento dos atores para

atender interesses gerais da sociedade; não

visariam benefícios imediatos para

qualquer grupo.

Fonte: Adaptado de Frey (2000).

Além do observado, de acordo com Teixeira (2002), alguns aspectos precisam ser

considerados no processo de formulação de políticas públicas, principalmente no que se refere

ao chamado da sociedade civil para a participação. Segundo o autor a participação pode ter

várias características, quis sejam:

Identidade: A consideração de proposições que objetivem responder questões que

reconheçam e fortaleçam os processos de formação de identidade coletiva dos atores

sociais.

Plataformas Políticas: as políticas públicas devem expressar o sentido do

desenvolvimento social dos atores sociais envolvidos no que se constitui como o

conflito para a construção da hegemonia; portanto, devem refletir as concepções do

Estado e da sociedade civil acerca dos seus papéis na promoção deste desenvolvimento.

Mediações Institucionais: as políticas públicas refletem o que o autor chamou de

“mediações entre interesses e valores dos diversos atores”, tais mediações transitam

dentro e fora do ambiente governamental e se defrontam nos espaços públicos com o

28

objetivo de que se defrontam em espaços públicos para negociar soluções para os alvos

das políticas públicas.

Dimensão Estratégica: as políticas públicas devem estar diretamente conectadas ao

modelo econômico ao modelo econômico e aos fundos públicos aos quais estão

subordinadas, o que remete ao processe de elaboração das políticas um aspecto

profundamente estratégico. As políticas públicas também evidenciam seu caráter

estratégico quando servem como referências para a elaboração de outras políticas

públicas e programas.

Dois aspectos dessa construção de Teixeira (2002) nos auxiliam na consolidação deste

nosso objeto de pesquisa no que se refere a políticas públicas para comunidades tradicionais

remanescentes de quilombo. O primeiro é o da Identidade, que certamente se mostra como o

balizador para o que trazemos como necessidades de políticas públicas para povos e

comunidades remanescentes de quilombo, que, como veremos posteriormente, se constituem

como Quilombolas. Para além de uma visão histórica tradicional, atualmente, a leitura da

identidade Quilombola está ligada a um processo de sujeição política, de resistência e

enfrentamento em relação às condições sociais impostas a população negra. É o que Hall (2015)

define como construção dialética das identidades, do processo de fortalecimento destas como

reação defensiva dos membros, como efeito do processo de globalização, que provoca o

alargamento do campo das identidades e a proliferação de novas construções identitárias,

aumentando também a polarização entre dominantes e dominados (HALL, 2015). Estado,

comunidade quilombola e sociedade civil atuam de maneira a articular suas existências frente

ao contraditório que emerge deste encontro, conforme evidencia o autor:

[...] parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as

identidades centradas e “fechadas’ de uma cultura nacional. Ela tem um efeito

pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas

posições de identificação, e tronando as identidades mais posicionais, mais políticas,

mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu

efeito geral permanece contraditório. Algumas identidades gravitam ao redor daquilo

que Robbins chama de “tradição”, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir

as unidade e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que

as identidades estão sujeitas ao plano das histórias, da política, da representação e da

diferença e, assim é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou “puras”; e essas,

consequentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins (segundo Homi Bhabha)

chama de “tradução” (HALL, 2015, p, 51).

O aspecto Identidade é também parte fundamental quando analisamos o Estado e a

produção das políticas públicas uma vez que esse ente é determinante no processo de construção

dos instrumentos legais que fundamentam a criação dos órgãos, políticas e programas voltados

29

às políticas públicas segmentais. A fundamentação das identidades dos atores envolvidos é

basilar neste processo.

O segundo aspecto que nos permite ratificar nosso objeto a partir da contribuição de

Teixeira são as Mediações Institucionais. Ao trazer o fator raça como determinante nas relações

de poder no contexto da implementação de políticas públicas compreendemos e identificamos

no processo de pesquisa o quanto as relações institucionais são influenciadas pela condicionante

racial, principalmente quando se trata de políticas destinadas à população negra – do que se

identifica como Racismo Institucional5.

A Sepromi se configura como uma secretaria articuladora (secretaria meio), conforme

veremos posteriormente, sendo esta uma secretaria que, necessariamente, precisa dialogar com

outros órgãos e instâncias da máquina governamental. Desta articulação surgem outros

conflitos que podem ser analisados a partir da ótica do Racismo Institucional.

Outro ponto que concebemos como fundamental à construção de políticas públicas é

a concepção do modelo cívico-territorial proposta por Santos (1987), segundo o qual:

Falar de um modelo cívico-territorial, a organização e a gestão do espaço sendo

instrumentais a uma política efetivamente redistributiva, isto é, tendente à atribuição

de justiça social para a totalidade da população, não importa onde esteja cada

indivíduo. A plena realização do homem, material e imaterial, não depende da

economia, como hoje entendida pela maioria dos economistas que ajudam a nos

governar. Ela deve resultar de um quadro de vida, material e não-material, que inclua

a economia e cultura. Ambos têm que ver com o território e este não tem apenas um

papel passivo, mas constitui um dado ativo, devendo ser considerado como um fator

e não e não exclusivamente como reflexo da sociedade. É no território tal como ele

atualmente é, que a cidadania se dá tal como ela é hoje, isto é, incompleta. Mudanças

no uso e na gestão do território se impõem, se queremos criar um novo tipo de

cidadania, uma cidadania que nos ofereça como respeito à cultura e como busca da

liberdade (SANTOS, 1987, p. 6).

Como totalidade, entendamos a aplicabilidade da justiça social, que deverá chegar a

todos e todas. Considerando que a aplicação desta justiça social estará sujeita às diferenças dos

sujeitos coletivos – como posto em “não importa onde esteja cada indivíduo”, essa justiça

deverá alcançá-lo pela política pública de maneira a negar qualquer movimento universalista.

Santos (2012), compreende que é difícil elaborar a noção de totalidade sem o rompimento com

os princípios da universalidade, conceito que se apresenta como reprodutor das lógicas

hegemônicas:

A noção de totalidade, tomada em si, sempre foi possível de apresentar-se como

abstrata e confusa, a menos que a noção concomitante de sua divisão estivesse

também presente. A perversão da noção de universalidade se acompanha da

5 Expressão cunhada para reivindicar que qualquer ação, sistematicamente prejudicial a um grupo racial, seria

racista “independentemente se tal reivindicação é ou não justificada por uma motivação refletida ou ideológica

para a ação ou inação”. (Miles e Brown, 2004, p. 71). Segundo os autores, o racismo institucional é se apresenta

frequentemente em práticas excludentes ou em discursos formalmente não racializados (Idem, p. 112).

30

possibilidade de perversão da ideia de totalidade, se não adaptarmos nossos aparelhos

analíticos e se ficarmos escravos de uma metodologia dogmática (SANTOS, 2012, p.

212-213).

Com o objetivo de constituir os marcos teóricos do nosso o objeto, nos deparamos com

reflexões teóricas que afirmam que a elaboração de políticas públicas carrega no seu bojo a

tradução das relações de poder, e nos seus processos deverão estar definidos pontos nítidos

como quem deverá executar o que, quando, com quais consequências e para quem (TEIXEIRA,

2002), o autor afirma:

As políticas públicas traduzem, no seu processo de elaboração e implantação e,

sobretudo, em seus resultados, formas de exercício do poder político, envolvendo a

distribuição e redistribuição de poder, o papel do conflito social nos processos de

decisão, a repartição de custos e benefícios sociais. Como o poder é uma relação social

que envolve vários atores com projetos e interesses diferenciados e até contraditórios,

há necessidade de mediações sociais e institucionais, para que se possa obter um

mínimo de consenso e, assim, as políticas públicas possam ser legitimadas e obter

eficácia (TEIXEIRA, 2002, p.2).

Esses interesses diferenciados são garantidos pela atuação do Estado que, de acordo

com Poulantzas (1985), usa de aparelhos para garantir e reproduzir a hegemonia, estabelecendo

um jogo de compromissos entre dominantes e dominados. Atuando em favor dos interesses da

fração de classe dominante, o Estado dispõe de um arcabouço, de mecanismos internos que

reproduzem a relação dominação-subordinação dos embates de classe e raça, mesmo quando,

no âmbito do aparelho do Estado, a classe dominada faz-se representar.

Aqui nos cabe uma reflexão importante sobre a incorporação das demandas populares

pelo Estado e seu reflexo nas políticas públicas, reflexão que servirá de introdução para próxima

seção. Poulantzas (1985) discute como os aparelhos do Estado organizam o bloco no poder

desorganizando e dividindo continuadamente as classes dominadas, inscrevendo-as na ossatura

organizacional do Estado. “O Estado concentra não apenas a relação de forças entre frações do

bloco no poder, mas também a relação de forças entre estas e as classes dominadas”

(POULANTZAS, 1985, p. 162). A inclusão das leituras identitárias, como as demandas raciais,

dentro da estrutura política do Estado precisa ser analisada de modo a compreender como tais

processos também reproduzem e, principalmente, dão forma a estrutura de dominação e

controle.

Nossa próxima seção tem por objetivo introduzir o debate da política pública voltada

para povos e comunidades tradicionais remanescentes de quilombo, de modo a compreender as

particularidades que essa política pública apresenta.

31

1.4 Da política pública à Política Pública Quilombola

A construção étnica brasileira é constituída pela diversidade racial dos povos e

comunidades que, em seus específicos processos de formação, constituem o que a teoria do

Estado Moderno qualifica como Nação. Cada povo que habita ou habitou essa terra possui seu

quinhão de pertencimento, é o que Milton Santos chamou de sociodiversidade. Para o referido

autor a sociodiversidade é, historicamente, mais significativa do que a própria biodiversidade,

em termos da formação do país.

Buscando recuperar os múltiplos significados dessa diversidade social, e tentando não

enveredar pela fábula freyriana da miscigenação que, por muito, balizou teóricos da nossa

construção social, nos preocuparemos aqui em analisar as relações de poder que estruturam a

implementação de políticas públicas dirigidas às comunidades tradicionais remanescentes de

quilombos no Estado da Bahia, entendendo que a distribuição e controle das terras no Brasil,

historicamente, diferiu consideravelmente quando se tratou de negros e índios em relação aos

demais povos constitutivos desta nação.

Precisamos aqui confrontar os ideais hegemônicos que rondam as teorias e aplicações

empíricas das políticas públicas neste estado moderno, os ideais de homogeneidade

predominante entre os atores alvos das políticas. De acordo com Bauman (2005) as noções de

nação e de Estado Moderno se configuram como instrumentos que favorecerem a construção

deste universalismo. A fragilidade da construção da cidadania no Brasil, que de acordo com

Santos (1987) foi balizada na desruralização, migrações brutais desenraizadoras e expansão do

consumo de massa, fez com que este processo se estabelecesse facilmente por nossas fileiras.

A manutenção deste projeto foi apoiada pela compreensão de que o coletivo que compunha a

nação sobrepõe os interesses coletivos territoriais, tratando o país como uma imensa [coisa só].

Entretanto, o pressuposto do conflito é o choque dos interesses distintos que compõem

o exercício da política pública. Isso é evidenciado durante a construção sociopolítica brasileira

que foi, e ainda é, dominada por uma elite política composta pelos grandes capitalistas. Atores

que não abrem mão de privilégios, da submissão dos menos favorecidos, dos distintos

autoritarismos e de tudo que compõe o patrimonialismo hereditário brasileiro (SANTANA

FILHO, 2014).

Portanto, como pontuou Duprat (2007), é no seio da comunidade nacional, onde

existem grupos que portam identidades específicas, que cabe ao direito garantir que estes

grupos possuam o controle de suas instituições, de suas formas de vida e modelos

32

desenvolvimento, fortalecendo suas entidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados

onde moram6.

Assim, seguimos para o entendimento do processo formativo das políticas públicas

afirmativas no Brasil voltadas às comunidades quilombolas, buscando compreender como os

processos de lutas dos movimentos negros organizados foram fundamentais para o

empreendimento das ações públicas, sejam essas fragmentais ou universais, e principalmente,

como essas lutas influenciam ainda hoje as relações entre os diversos sujeitos sociais.

Nos apoiaremos aqui nos períodos que antecedem a abolição da escravidão e nos

movimentos posteriores a este período, por considerá-los mais importantes para o entendimento

do objeto estudado. Mesmo compreendendo que, desde o século XV, as ordenações afonsinas

(1446-1447), manuelinas (1512-1513) e filipinas (1603) instituídas no Brasil já legislavam

sobre os corpos negros nesta terra, tais ordenações vigoraram até 1916 quando se institui um

novo Código Civil (FONSECA, 2009). Vale ressaltar que as leis abolicionistas que surgem no

contexto da resistência negra e popular, trouxeram em seus textos benefícios inegáveis aos

senhores de escravos, como pontuou Fonseca (2009):

As leis abolicionistas no Brasil imperial vieram à tona no bojo de um movimento que

se fazia presente em diversos pontos do território nacional. Naquele momento, o

contexto político e econômico era favorável à discussão sobre o fim da escravidão e

sobre o enfraquecimento do regime escravista. No entanto, tais leis não eram apenas

favoráveis aos negros escravizados: também favoreciam paradoxalmente aos barões

do café e a outros escravistas, que inclusive participaram da elaboração de certas leis

(FONSECA, 2009, p. 57).

Oficialmente negros e negras brasileiras conquistaram em 1888 a libertação do

cativeiro, entretanto, a maioria dos ex-escravizados continuou ocupando as mesmas senzalas

das unidades produtivas nas quais tinham sua força de trabalho roubada pelos seus antigos

escravizadores, trabalhando ainda em condições análogas à escravidão, sendo diferenciado

apenas pela existência de alguma remuneração (BARCELLOS et al., 2004). Efetivamente a Lei

Áurea não representou a libertação da população negra escravizada. Fonseca (2009) pontua que

a maioria dos negros e negras já se encontravam em liberdade, de acordo com o autor, a Lei

atingiu apenas 5,6% dos escravizados, menos de 1 milhão de negros, numa população estimada

em 25 milhões de habitantes.

Quase quatro décadas antes da assinatura da Lei Áurea a elite brasileira, dona dos

meios de produção, já previa que o sistema escravista seria insustentável, levando a

6 De acordo com a Convenção 169 da OIT.

33

promulgação da Lei 601, Lei de Terras7, no ano de 1850. A lei instituía que a propriedade

privada seria a única maneira de acesso à terra, o artigo primeiro afirmava: “Ficam proibidas

as aquisições de terras devolutas por título que não seja o da compra” (BRASIL, 1850).

Negros e negras, ainda escravizados, estavam legalmente impossibilitados de

possuírem terras. No mesmo ano, a Lei Eusébio de Queirós, foi aprovada com o objetivo de

acabar com o tráfico de negros e negras escravizados da África para o Brasil. Mesmo com a lei,

tal atividade perdurou de maneira ilegal até o final do século XIX (FONSECA, 2009). No ano

de 1871 a Lei do Ventre Livre declarava livres os filhos e filhas de mulheres negras escravizadas

que nascessem após a promulgação do texto da lei. Na prática, muitas crianças continuaram ao

lado de suas mães ainda escravizadas, na mesma condição de escravizados. Piratininga Junior

(1991) afirma que a Lei do Ventre Livre teve como efeito social o início do fenômeno de

crianças de rua, crianças sem pais ou responsáveis, no Brasil.

De acordo com Santana Filho (2018), esses fatos políticos tiveram impactos

significativos sobre a propriedade da terra e na vida da população negra em todos os séculos

posteriores. Esses processos, principalmente a Lei de Terras, fizeram da terra a principal base

dos conflitos que envolvem a geopolítica do Estado brasileiro. Segundo o autor, a Lei de Terras

foi o maior golpe contra toda a construção promovida pelos negros e negras que viviam em

territórios quilombolas - a população negra quilombola que não tinha dinheiro para a compra

da terra, também, não poderia provar sua posse por tempo de uso (SANTANA FILHO, 2018).

As leis abolicionistas promulgadas pelo império tinham como um dos objetivos

diminuir os impactos políticos, sociais e econômicos da escravidão (sistema que já não

coadunava com o liberalismo do sistema-mundo instaurado), eram grandes os conflitos em

praticamente todos os espaços públicos, quilombos, irmandades, fazendas, cidades, o que

levava a constatação de que “a sociedade brasileira estava aprisionada pela própria violência

que criou e alimentou durante séculos” (FONSECA, 2009, p.65).

A população negra brasileira teve seus direitos renegados no contexto da elaboração

de implementação de políticas públicas no Brasil Império e em boa parte do Brasil República.

As necessidades dessa população, na condição de povo ex-escravizado, desprovido de

condições materiais para aquisição de terra, foram objetivamente ignoradas. O que se viu foi o

estímulo à utilização de mão de obra europeia, a partir da cessão de terras para imigrantes.

7 A Lei de terras - lei n° 601 de 1850, foi a primeira iniciativa que tratou da organização da propriedade privada

no Brasil. A lei estabelecia a compra como única forma de acesso à terra. Embora não tenha sido revogada de

maneira formal, considera-se que a mesma foi substituída pela edição da Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964

- o Estatuto da Terra.

34

O passo seguinte ao dia da Abolição deveria ser o da Reforma Agrária, entretanto,

republicanos e liberais eram amplamente contrários a qualquer processo de democratização da

terra que envolvessem ao população negra ex-escravizada, tal necessidade era constante nas

experiências quilombolas que cultivam a terra como no quilombo dos Palmares:

Produziam óleo de coco e dendê, vinho de frutas e uma espécie de manteiga feita a

partir das amêndoas de um tipo de palmeira. Como plantavam tudo, sua alimentação

podia ser mais farta e variada que a dos próprios senhores de engenho, cujo cardápio

era limitado pelo fato de suas terras serem dedicadas quase totalmente ao cultivo de

cana de açúcar. O trabalho agrícola tinha a função primordial de alimentar os

moradores e só era vendido o que sobrasse (FONSECA, 2003, p. 48).

Durante a República Velha (1889-1930) o que se viu na construção de políticas

públicas para comunidades quilombolas, precisamente na falta delas, foi a manutenção do

caráter escravista e racista dos períodos anteriores. Durante este período sociedade e governo

promoveram uma série de medidas com o objetivo de apagar o passado recente e silenciar a

população negra no período pós-abolição. Skidmore (1976) traz em sua obra os estudos de João

Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional em 1911, nos quais Lacerda profetizava que, em

função dos processos de miscigenação, imigração e das altas taxa de mortalidade, negros e

mestiços iriam desaparecer do solo brasileiro.

Desde a Abolição, os pretos tinham ficado expostos a toda espécie de agentes de

destruição e sem recursos suficientes para se manter. Agora, espalhados pelos distritos

de população mais rala [...] tendem as desaparecer do nosso território (LACERDA,

1911 apud SKIDMORE, 1976, p. 83).

Lacerda assume em seu discurso que, tanto durante o Império quanto na República, a

política pública no Brasil tinha como objetivo a extinção da população negra. Por meio do

descaso em todas as esferas, principalmente na higiene e saúde. A política adotada pelo Estado

teve como resultado a diminuição drástica da população negra no país nos séculos XIX e XX

(FONSECA, 2009).

Durante o século XIX territórios quilombolas e demandas da população negra foram

reivindicadas pelos seus movimentos e pela atuação de grupos sociais que lutaram pelo

reconhecimento do racismo por parte do Estado, pela criminalização dos atos racistas e pelo

desenvolvimento de uma política nacional de reparação, questões que são centrais para o

entendimento de todas as negações sociais que tornaram a população negra uma minoria

política (SANTANA FILHO, 2018; PAIXÃO, 2003).

Foi a partir das denúncias desses movimentos, como o do Movimento Negro Unificado

contra a Discriminação Racial (MNU), fundado em 1970, que a situação dos negros brasileiros

frente à inação do Estado, tomou visibilidade, como pontua Santana Filho (2018):

35

Os discursos de harmonia para os organismos internacionais não foram suficientes

para que os movimentos se desarticulassem, o que contribuiu para que a agenda

chegasse forte no plano internacional, tornando-se denúncia na Organização das

Nações Unidas (ONU), o que colocou o Estado signatário da Carta de Direitos

Humanos em situação de contradição política e levou-o a reconhecer

internacionalmente que o Brasil não era uma nação de “democracia racial”. Esse era,

sim, um Estado que não tinha rompido com o seu passado racista de relações

verticalizadas e patrimonialistas entre brancos, negros e povos indígenas (SANTANA

FILHO, 2018, p. 120).

Essas construções, pautadas principalmente por intelectuais negros e negras, aliadas à

crescente mobilização das populações negras urbanas e rurais, culminaram na emergência da

necessidade de políticas compensatórias. Tal processo também já era pautado nas agendas

internacionais, nas quais organismos políticos pleiteavam a igualdade racial em suas demandas.

Após ser denunciada na ONU, a República Federativa do Brasil torna-se signatária,

em 1967, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação

Racial, na esfera nacional o Congresso Nacional aprovou o Decreto Legislativo nº 23 de 21 de

junho de 1967, que aprovava a Convenção Internacional da Assembleia Geral das Nações

Unidas, de 21 de dezembro de 1965.

A Assembleia Nacional Constituinte, em 1988, significou uma virada expressiva na

postura do Estado brasileiro frente a política quilombola, precisamente um século após a

abolição do sequestro e escravização do povo negro em terras brasileiras. Santana Filho (2004)

pontua que a simbologia das comemorações do centenário da abolição facilitou a inclusão de

artigos destinados às políticas afirmativas na Constituição. Como, por exemplo, o artigo 68 do

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que reconhece aos “remanescentes

de quilombo a propriedade definitiva das terras que estejam ocupando”, e atribui ao Estado a

obrigação de “emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) registrado no Brasil no ano de 2017 é

também um dos fatores que podem evidenciar as diferenças na realidade social dos negros.

Segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), órgão da

ONU, por meio do documento Desenvolvimento Humano para Além das Médias (2017), só em

2010 o IDHM dos negros alcançou a pontuação (0,679) que já havia sido atingida pelos não

negros no ano 2000, quando se registrava 0,675. O desenvolvimento humano dos não negros

registrou em 2010, de acordo com o PNUD, o índice de 0,777, número 14,42% maior que o da

população negra. No ano 2000 a diferença era de 27,1% (PNUD, 2017).

Tal registro evidencia um acúmulo histórico de segregação e descuido para com a

população negra que fora posta a margem dos processos de desenvolvimento do país, evidencia

36

também a necessidade de políticas públicas específicas para a esta população – políticas

públicas e ações afirmativas - e consequentemente para comunidades tradicionais.

É em 20 de novembro de 2003, a partir do decreto da presidência da república,

regulamentando o Artigo 68, que o Estado dá um passo muito importante campo das políticas

públicas para comunidades remanescentes de quilombo. A partir do artigo 2º, o Decreto nº

4.887 de 2003 institui:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste

Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória

histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de

ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

§ 1º Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades

dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade;

§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as

utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural;

§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios

de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos,

sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a

instrução procedimental (BRASIL, 2003).

Tal passo foi viabilizado, a partir da 3ª Conferência Mundial das Nações Unidas contra

o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, realizada

no ano de 2001 em Durban, África do Sul. Após a Conferência de Durban a discussão do

racismo é incorporada no contexto de políticas públicas nas agendas internacionais e nacionais

(SANTANA FILHO, 2014). A criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da

Igualdade Racial – SEPPIR, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, é

um dos compromissos dessa incorporação. Entendendo o Estado como responsável pela criação

de condições favoráveis a eliminação do racismo e das consequentes diferenças raciais.

Políticas públicas para comunidades tradicionais devem pensar, propor, executar e

avaliar de maneira objetiva a inclusão de povos e comunidades que estão à margem não só dos

processos de desenvolvimento, mas principalmente de povos e comunidades que estão

excluídos do projeto capitalista. Considerando que não é recente a denúncia para tal aspecto,

como pontuou Luiza Bairros:

Um dos maiores desafios que se colocam para a inclusão social no Brasil, hoje, tem a

ver com a capacidade de as políticas públicas levarem em conta a diversidade da

sociedade brasileira. Indicadores sociais calculados por instituições governamentais e

acadêmicos de pesquisas demostram de forma inquestionável o que o momento negro

vem denunciando desde o final dos anos 70: mulheres e homens negros morrem mais

e mais cedo; têm diferenciais de escolaridade em relação aos brancos – que

permanecem inalterados, apesar da ampliação da escolarização em todos os grupos

sociais (BAIRROS, 2006, p. 139).

Tanto a criação da SEPPIR quanto a promulgação da Lei 4.887/2003, são esforços de

um Estado que, a partir de seu posicionamento ideológico, assume a responsabilidades de

37

promover a inclusão social desta população, incorporando suas lutas na agenda política, além

de representantes de diversos movimentos negros no controle dessas pastas. Destaca-se, assim,

a presença de Matilde Ribeiro na equipe de transição do primeiro governo do Partido dos

Trabalhadores, de Paulo Paim na vice-presidência do Senado Federal e a nomeação de Benedita

da Silva para a pasta de Assistência Social. No texto A questão dos direitos humanos e o

combate às desigualdades: discriminação e violência, Carneiro (2011) discute os avanços da

política de governo do presidente Lula, de acordo com a autora:

Inegavelmente, em nenhum outro governo teve-se a presença desse número de

pessoas negras, ocupando postos de primeiro escalão em franca sinalização para a

sociedade de uma política de reconhecimento e inclusão dos negros em instâncias de

poder. Se as ações de governo historicamente sempre são consideradas

demasiadamente tímidas frente às expectativas dos movimentos sociais há, nesse

caso, decisões importantes sobre o tema que avançam em relação ao que já foi

realizado anteriormente (CARNEIRO, 2011, p. 20).

Os avanços são nítidos, a inclusão das pautas negras e quilombolas na agenda política

suscitou o debate em diversos campos. Contudo, ainda de acordo com autora, os avanços

também foram marcados pela reação conservadora, tanto no aparelho do Estado quanto na

sociedade, na mídia conservadora, que reproduziram o velho racismo à brasileira a partir da

negação da cessão de qualquer privilégio em prol da busca pela igualdade racial. Carneiro

encerra seu texto evidenciando o temor de que “essa avalanche conservadora seja suficiente

para amedrontar os setores governamentais alinhados com a promoção da igualdade racial” e,

consequentemente, levasse o governo a promover retrocessos nas políticas raciais no segundo

mandato do governo Lula (CARNEIRO, 2011, p. 20).

Dito isto, precisamos retomar o debate proposto na seção anterior sobre a incorporação

da luta do povo preto quilombola para sobrevivência nos contextos modernos de relações

sociais. É importante demarcar novamente a construção de Poulantzas (1985) que trata da

presença das classes dominadas no âmbito do aparelho do Estado. Presença que sempre estará

assegurada enquanto classe dominada. A incorporação de qualquer política pública de inclusão

social para a população negra quilombola não representará, portanto, uma inversão da lógica

que garantiu o lugar de subalternidade dessa população.

Ao mesmo tempo, convém que não ignoremos a importância dos mecanismos de

domesticação do conflito político, que estão permanentemente em ação no campo das políticas

públicas, daí o temor de Carneiro. Miguel (2014) considera que, neste bojo da inserção das

lutas populares no aparelho do Estado, as instituições geram, pelo próprio funcionamento, uma

diferenciação objetiva entre os interlocutores aceitos e a base que devem representar. De acordo

com o autor, “Elas [as instituições] promovem um estímulo constante à cooptação das

38

lideranças, dadas as recompensas simbólicas e materiais para aqueles que aceitam “jogar o

jogo” da política normalizada” (MIGUEL, 2014, p. 160).

Postas as limitações da política implementada no Brasil, identifiquemos a política

quilombola do Estado da Bahia, um dos objetivos específicos desta pesquisa. Além da

relevância nacional, dado o elevado número de comunidades remanescentes de quilombo, a

experiência baiana se destaca justamente pela participação de lideranças das lutas populares no

aparelho do Estado.

1.5 A Política Estadual Quilombola – Lei nº 11.850 de 2009

A política quilombola na Bahia tem seu início a partir da atuação do estado ao fim do

século passado. O processo de implementação de uma política de regularização das terras

ocupadas por comunidades quilombola na Bahia se inicia no contexto do conflito na Região do

Médio São Francisco, conflito causado pela expropriação das terras em benefício de

latifundiários e grileiros que avançaram sobre o território quilombola (SANTANA FILHO,

2018; AMORIM; GERMANI, 2005). A organização que possibilitou a resistências dessas

comunidades se deu com a interferência da Comissão Pastoral da Terra (CPT)8 no âmbito da

identificação das comunidades quilombolas na região (AMORIM; GERMANI, 2005). De

acordo com Santana Filho (2018) a ação da CPT foi fundamental para a luta da população negra

quilombola:

Levou o governo estadual, por meio do antigo Interba9, a abrir o processo de

regularização das terras ocupadas, mas não as reconhecendo como territórios

quilombolas e, sim, Projetos de Assentamento da Reforma Agrária (PA) e, assim,

nesse formato, se criou o Projeto Especial Quilombola – PEQ (SANTANA FILHO,

2018).

Tal ação do Estado representou a garantia que algumas comunidades não fossem

expulsas da terra, permitindo que se iniciasse o processo de luta pelo território. A Coordenação

Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (CONAQ)10, criada na Bahia a partir

dos esforços da CPT e do MNU, fortaleceu a luta quilombola na Bahia, transformando a Bahia

na unidade federativa com maior número de comunidades com Certidão de

8 CPT é um órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), vinculado à Comissão Episcopal para

o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz e nascido em 22 de junho de 1975, durante o Encontro de pastoral da

Amazônia, convocado pela CNBB e realizado em Goiânia (GO). 9 Instituto de Terras da Bahia, atualmente, SEAGRI – Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Pesca e

Aquicultura. 10 A Conaq foi criada no dia 12 de maio de 1996, em Bom Jesus da Lapa/Bahia, após a realização da reunião de

avaliação do I Encontro Nacional de Quilombos.

39

Autorreconhecimento, emitida pela Fundação Cultural Palmares, segundo o Cadastro Geral das

Comunidades Remanescentes de Quilombo da Fundação Cultural Palmares.

Mesmo com tais esforços, e a elevada quantidade de certificações, o Estado da Bahia

não apresentava qualquer política pública de desenvolvimento para as referidas comunidades.

Foi no ano de 2007 que o Governo estadual começou a investir em ações para povos e

comunidades tradicionais, motivado pela evidência dos indicadores sociais que apontavam

estes povos como mais vulneráveis e pelas pressões de diversas entidades dos movimentos

sociais, do que propriamente pela iniciativa voluntária da gestão pública.

Segundo dados da PNAD (2004) do IBGE, à época, a população negra no estado

sofria, por exemplo, três vezes mais que a população branca em termos do índice de insegurança

alimentar grave. Em torno de 10 milhões de pessoas negras conviviam com a fome ou com a

possibilidade da falta de alimentos. Dados da Chamada Nutricional Quilombola (BRASIL,

2007), realizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no que se

refere situação nutricional de crianças, registram o fato de que crianças quilombolas (11,6%)

apresentavam mais vulnerabilidade que crianças do semiárido (6,6%). O estudo ainda revelou

que 45,9% dos domicílios pesquisados não tinham saneamento básico; 43,8% consumiam agua

de poços sem tratamento e 51,8% dos quilombolas entrevistados diziam ter menos de 4 anos de

estudo (PNAD, 2004).

Neste contexto, o governo do estado criou, em 2007, o Programa de Desenvolvimento

Social de Povos e Comunidades Tradicionais, que tem como objetivo “desenvolver ferramentas

de inclusão e desenvolvimento social dos segmentos tradicionais encontrados na Bahia”

(BAHIA, 2016, p.29). O Programa Brasil Quilombola (PBQ), lançado em 2004, surge no

âmbito do Governo Federal com o objetivo de estabelecer marcos da política nacional para

comunidades tradicionais remanescentes de quilombo. O PBQ foi fruto de esforços e de

diversos embates travados pelos movimentos negros organizados que consideram o racismo

como uma questão estrutural que, na sua operacionalização, impossibilita a criação de

condições iguais de existência social para a população negra, postergando condições de miséria

e pobreza que persistem desde o período colonial. Como desdobramento foi instituída a Agenda

Social Quilombola (Decreto 6.261/2007), que institui ações voltadas às comunidades em

diversas áreas, estando as mesmas alocadas nos seguintes eixos11:

a. Acesso à Terra – que se refere a elaboração e implementação de políticas públicas, na

execução e acompanhamento dos trâmites para a regularização fundiária dos territórios

11 BRASIL. Decreto nº 6.261, de 20 de Novembro de 2007.

40

reconhecidos no quilombo, que constituem título coletivo de posse das terras

tradicionalmente ocupadas, processo que envolve a certificação das comunidades até a

titulação das terras;

b. Infraestrutura e Qualidade de Vida – destinação de recursos e aplicação de obras em

áreas de infraestrutura nas comunidades reconhecidas, obras de habitação, saneamento,

eletrificação, comunicação e vias de acesso, além da construção de equipamentos

sociais de educação, saúde e assistência social;

c. Inclusão Produtiva e Desenvolvimento Local – iniciativas de fomento ao

desenvolvimento produtivo local e autonomia econômica, tendo como base as

identidades culturais e os recursos naturais dos territórios das comunidades

quilombolas, objetivando-se a sustentabilidade econômica e ambiental dessas

comunidades e;

d. Direitos e Cidadania – implementação de iniciativas que visam a garantia de direitos,

por meio do estímulo da participação ativa dos quilombolas nos espaços de controle e

participação social como fóruns e conselhos por diferentes órgãos públicos e

organizações da sociedade civil.

Na Bahia a política estadual quilombola surge a partir do Decreto Estadual n° 11.850

de 23 de novembro de 2009, representando um primeiro passo institucional no sentido da

implementação do PBQ na Bahia, por meio da Política Estadual para Comunidades

Remanescentes de Quilombo. O referido decreto:

Institui a Política Estadual para Comunidades Remanescentes de Quilombos e dispõe

sobre a identificação, delimitação e titulação das terras devolutas do Estado da Bahia

por essas comunidades, de que tratam o art. 51 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias12 da Constituição do Estado da Bahia de 1989 (BAHIA,

2009).

De acordo com Santana Filho (2018), o Decreto fortalece a verticalidade presente no

Decreto 4.887/2003, que determinando que o Governo do Estado da Bahia desenvolva as ações

de políticas públicas setoriais de “desenvolvimento dos territórios quilombolas, de regulação

fundiária, programas de educação, de saúde, de habitação, de assistência social e inclusão sócio

produtiva” (SANTANA FILHO, 2018, p. 209). O Decreto Estadual 11.850/2009 estabelece três

12 O Art. 51 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado da Bahia determina

que: “O Estado executará, no prazo de um ano após a promulgação desta Constituição, a identificação,

discriminação e titulação das suas terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos

quilombos.”(BAHIA, 1989)

41

pontos que são de fundamental importância para o nosso entendimento da política estadual

quilombola:

I. Considerando que o Estado da Bahia possui o maior contingente de

comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares – FCP, para as

quais se faz necessária a instituição de políticas públicas que se constituam

em um processo de reparação pela dívida histórica do Estado para com essas

comunidades negras na diáspora;

II. Considerando que cabe ao Estado garantir a melhoria das condições de vida

dessas comunidades, através do diálogo baseado no respeito aos seus

processos organizativos e às suas práticas comunitárias, ou seja, às suas

identidades e diversidades;

III. Considerando que as ações a serem viabilizadas devam se pautar pela

interação entre os conhecimentos técnico-científicos e os conhecimentos

tradicionais e comunitários, de modo a garantir o empoderamento e a

sustentabilidade das comunidades de forma coletiva e solidária (BAHIA,

2009).

O primeiro inciso diz respeito à necessidade de implementação de políticas públicas

de cunho reparativo – o reconhecimento de que, pós o período escravagista, negros e negras

quilombolas foram excluídas dos processos de desenvolvimento no país, o que se exige uma

política de reparação. O segundo inciso remete ao reconhecimento por parte do Estado de que

existe um povo quilombola que, organizado ou não, é dotado de particularidades e cabe ao

Estado a garantia que esse povo seja ouvido e tenha suas práticas respeitadas.

O último inciso que trazemos como importante para a análise proposta nesta pesquisa

se refere a posição assumida pelo Estado, de instância de mediação do conflito de classe, que

aqui expandimos para o constructo de raça, um aparelho do Estado que é possuidor de

instrumentos capazes de promover o desenvolvimento sustentável de tais comunidades. O

objetivo do Decreto 11.850/2009 é, portanto, a implementação de políticas públicas, conforme

indica o inciso I do Art. 3º:

Promover, com fundamento no Decreto Federal nº 4.887, de 20 de novembro

de 2003, o acesso às políticas públicas sociais e de infraestrutura, tendo em

vista a sustentabilidade social, econômica, cultural e ambiental das

comunidades (BAHIA, 2009).

A Lei nº 13.182/2014, no seu Artigo 2º, releva que o Governo do Estado tem como

conceito de políticas públicas, “ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no

cumprimento de suas atribuições institucionais”.

Santana Filho (2018), em sua obra A Geopolítica do Estado e o Território Quilombola

no Século XXI, fez uma análise extremamente cuidadosa do Decreto 11.850/2009, elencando,

inclusive, as desconformidades presentes no texto do decreto. Entendemos que ultrapassaria os

esforços deste trabalho aprofundarmos a discussão do referido texto, considerando sobretudo

que os nossos objetivos nos conduzem a análise do processo de implementação do Decreto

42

Estadual n° 11.850/2009, pela Sepromi na comunidade remanescente de quilombo do Rio dos

Macacos.

A Sepromi foi criada em 2006, por meio da Lei nº 10.549/2006, como a primeira

secretaria do Brasil voltada a “planejar e executar políticas de promoção de igualdade racial e

proteção dos direitos de indivíduos e grupos étnicos atingidos pela discriminação e demais

formas de intolerância” Lei 12.212 (BAHIA, 2012). Ainda no regimento do órgão o Artigo 16º

confere à Coordenação de Políticas para as Comunidades Tradicionais a “finalidade de formular

políticas de promoção da defesa dos direitos e interesses das comunidades tradicionais,

inclusive quilombolas, no Estado da Bahia, reduzindo as desigualdades e eliminando todas as

formas de discriminação identificadas” (Lei 12.212, BAHIA, 2012).

Com o objetivo de coordenar as ações para comunidades remanescentes de quilombo

de maneira mais eficaz a Sepromi cria o Grupo Intersetorial para Quilombos (GIQ-Sepromi),

através do Decreto nº 11.850, de 23 de novembro de 2009. O grupo é composto por 11

secretarias estaduais13 e objetiva desenvolver e executar os Planos de Desenvolvimento Social,

Econômico e Ambiental Sustentáveis para Comunidades Remanescentes de Quilombos, que

norteiam a implementação da Política Estadual para quilombos.

Os objetivos específicos14 do GIQ-Sepromi são: a) Promover, com base no Decreto

Federal n° 4.887 de 20 de novembro de 2003, o acesso às políticas públicas sociais e de

infraestrutura, objetivando a sustentabilidade social, econômica, cultural e ambiental das

comunidades; b) apoiar os processos de fortalecimento institucional, valorizando as formas de

organização, conhecimentos e práticas nas comunidades; c) Realizar trâmite o trâmite

administrativo para identificação, delimitação e titulação das terras devolutas estaduais

ocupadas por Comunidades Remanescentes de Quilombos que estejam sendo por eles

requeridas (BAHIA, 2009).

Mesmo com esses esforços, somente em 2009 é que o Governo do Estado efetivamente

se coloca como atuante no processo de mediação de interesses das comunidades quilombolas,

a partir de uma apolítica de base nacional, por meio da descentralização do Governo Federal

que passou a executar políticas específicas de saúde, educação e assistência social. As políticas

públicas passaram a ser implementadas, utilizando como critério a Certidão de

13 Compõem o GIQ – Sepromi as seguintes secretarias: Secretaria de Promoção da Igualdade, Secretaria da

Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária, Secretaria do Meio Ambiente, Secretaria da Saúde, Secretaria de

Desenvolvimento Urbano, Secretaria de Desenvolvimento e Integração Regional; Secretaria da Educação,

Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação, Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte, Secretaria de

Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza e Secretaria de Cultura. 14 BAHIA. Decreto nº 11.850 de 23 de Novembro de 2009.

43

Autorreconhecimento, tendo sido utilizado como referência o pacto federativo que envolve as

secretarias do governo do estado, prefeituras e instituições da sociedade civil (SANTANA

FILHO, 2018).

A Convenção n° 169 da OIT garante, no artigo 6°, o direito a consulta prévia, livre e

informada, às comunidades, sempre que as iniciativas do poder público possam ser capazes de

impactar os povos e comunidades. Todas as medidas devem ser submetidas à consulta,

particularmente por meio de suas instituições representativas. O referido artigo ressalta a

necessidade de garantir o estabelecimento de meios pelos quais os povos e comunidades

tradicionais possam participar livremente na adoção de decisões e instituições ou organismos

da administração responsáveis pelas políticas e programas. Contudo, a realidade proporciona

situações diversas de participação e controle que exigem o entendimento de aspectos dos

poderes responsáveis pela implementação dessas políticas e do respectivo marco legal.

O marco legal que orienta a política estadual quilombola é composto pelos elementos

a seguir relacionados:

Quadro 2 – Marco legal da Política Pública Estadual Quilombola

Legislação Descrição da medida legal

Constituição da

República

Federativa do Brasil

Artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias que reconhece a propriedade

definitiva aos remanescentes das Comunidades Quilombolas que estejam ocupando suas

terras, devendo o Estado emitir os seus títulos respectivos.

Lei Estadual nº

12.910/2003

Reconhece a propriedade definitiva das terras públicas estaduais, rurais e devolutas,

ocupadas pelas Comunidades Remanescentes de Quilombos.

Decreto Federal nº

5.051/2004

Promulga a Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais; Constituição do

Estado da Bahia, Artigo 51, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Decreto Federal nº

6.040/2007

Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades

Tradicionais.

Decreto Estadual nº

11.850/2009

Institui a Política Estadual para Comunidades Remanescentes de Quilombos e dispõe sobre

a identificação, delimitação e titulação das terras devolutas do Estado da Bahia por essas

comunidades.

Decreto Estadual nº

13.247/2011

Dispões sobre a Comissão Estadual para a Sustentabilidade dos Povos e Comunidades

Tradicionais – CESPCT.

Lei Estadual nº

13.182/2014

Institui o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado da

Bahia.

Decreto Estadual nº

15.634/2014

Institui a Política Estadual para o Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades

Tradicionais.

Decreto Estadual nº

15.670/2014

Aprova os Regulamentos do Sistema Estadual de Promoção da Igualdade Racial - SISEPIR

e do Sistema de Financiamento das Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEFPIR.

Decreto Estadual nº

15.671/2014

Regulamenta o acesso à terra de comunidades remanescentes de quilombos e de povos de

terreiros de religiões afro-brasileiras que historicamente tem preservado as tradições

africanas e afro-brasileiras no Estado, por meio de regularização fundiária, fortalecimento

institucional e desenvolvimento sustentável, nos termos da Lei nº 13.182/2014.

Referência: Elaboração própria.

44

Além do entendimento do Estado e da política pública é preciso conhecer o sujeito

social “comunidade quilombola”, sujeito plural e complexo, que traz na sua constituição

aspectos relevantes da história material e imaterial do Brasil.

A Bahia é o estado da Federação que possui a maior população autodeclarada negra,

de acordo com o Censo Demográfico (2010), ou seja, são 14.016.934 milhões de habitantes,

onde 76,3 % se autodeclaram negras. Esse expressivo contingente populacional, que influencia

diretamente as diversas dimensões da sociedade baiana, é fruto e tem relação direta com o

período escravagista, uma vez que a Bahia foi estado que mais recebeu negros e negras

escravizados vindo de diferentes regiões da África, durante os cerca de 400 anos de tráfico

negreiro para o Brasil.

O estado detém ainda o maior número de comunidades tradicionais remanescentes de

quilombos, que são definidas pela Constituição Federal (BRASIL, 1988), como os grupos com

trajetória histórica própria, originados de diferentes situações durante ou após o período de

escravização do povo negro no Brasil. Seguindo a lógica global, na Bahia, a população negra é

a mais afetada por problemas sociais associados a miséria e a pobreza, conforme o Relatório de

Informações Sociais do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS,

2015), atualizado em setembro de 2015. De acordo com o relatório, mulheres e homens negros

são maioria entre os 3.003.328 milhões de beneficiários no Cadastro Único dos Projetos Sociais

do Governo Federal (CadÚnico), ou seja, 21% da população estadual se encontra em situação

de pobreza e extrema pobreza segundo a renda per capita das famílias (MDS, 2015).

45

2. A COMUNIDADE TRADICIONAL QUILOMBOLA

2.1 Núcleo paralelo de poder

Os quilombos se constituíram desde a ocupação de território por negros e negras que

se rebelaram contra o regime escravocrata, ocupando essas terras no processo de resistência ao

sistema; libertos e libertas que obtiveram as terras por doações ou compra com o fim do sistema

escravista ou por ocupação de áreas de “fundo de pastos”, terras obtidas pela troca da prestação

de serviços.

Tais comunidades existem desde as primeiras décadas do período de sequestro e

escravização do povo negro africano no Brasil e representam organizações sociais que vão além

de abrigo para negros e negras fugidos do regime. Essas comunidades se estabeleceram como

organizações sociais complexas, exerceram atividades comercias entre outros quilombos, em

alguns casos, com cidades e fazendas (GOMES, 2015).

Sobre a origem etimológica da palavra Quilombo, Calheiros e Stadtler (2010) afirmam

que:

Apesar de ser uma palavra da língua umbundu, teve seu conteúdo sociopolítico e

militar originado entre os povos africanos de línguas bantu, como os Lunda, os

Ovimbundu, os Mbundu, os Kongo e os Imbangala, durante uma história de

migrações, alianças e guerras, envolvendo os Lunda, seus aliados Jaga e os guerreiros

nômades Imbangala, que conquistaram a região Mbundu (atualmente Angola e Zaire)

no século XVII (CALHEIROS; STADTLER, 2010, p.135).

Munanga (2001) afirma que a palavra quilombo originalmente carrega o sentido de

uma associação de homens, aberta a qualquer linhagem, associação na qual esses homens são

submetidos a rituais de iniciação, para se tornarem guerreiros em um “regimento”, sendo

formado apenas por indivíduos extremamente treinados. Negras e negros escravizados na

África trouxeram o vocábulo “quilombo” para as Américas, onde a palavra assumiu novos

sentidos em diferentes épocas e nas diversas regiões (CALHEIROS; STADTLER, 2010).

No Brasil, o termo foi incialmente utilizado para identificar tanto o espaço físico, como

o movimento de enfretamento ao sistema escravocrata, movimento este que era composto por

negros e negras que formavam seus núcleos paralelos de poder, produção e organização social

(CALHEIROS; STADTLER, 2010).

Os quilombos se constituíram como formas de resistência social ao sistema de segregação

que fora mantido no período pós abolição. Além do aquilombamento negros e negras se

utilizaram de diferentes formas de combate a este sistema, como insurreições urbanas, o

suicídio, fugas individuais, assassínio dos senhores e feitores; e guerrilhas. Moura (1987)

confere aos quilombos o lugar de “forma contínua dos escravos protestarem contra o

46

escravismo” (MOURA, 1987, p. 10). Nesta construção o autor reforça o aspecto da luta de

classes que efetivamente compôs o aquilombamento:

Daí podemos ver que a estratificação dessa sociedade, na qual as duas classes

fundamentais – senhores e escravos – se chocavam, era criada pela contradição básica

que determinava os níveis de conflito. Em outras palavras, a classe dos escravos

(oprimida) e a dos senhores de escravos (opressora / dominante) produziam a

contradição fundamental. Essa realidade gerava a sua dinâmica nos seus níveis mais

expressivos. Dessa forma, os escravos negros, para resistirem à situação de oprimidos

em que se encontravam, criaram várias formas de resistência, a fim de se

salvaguardares social e mesmo biologicamente, do regime que os oprimia (MOURA,

1987, p.9-10).

O aquilombamento aqui é identificado como o processo de criação de elementos para

a destruição de um sistema de opressões, como pontuou Carneiro (2001) – onde existia

escravidão existia o negro aquilombado. A revolucionária dos direitos dos negros norte-

americanos, Assata Shakur, já preconizara em sua obra de vida que “ninguém no mundo,

ninguém na história, conseguiu a sua liberdade apelando para o senso moral dos que os

oprimiam” (SHAKUR; DAVIS, 2001, P. 6). O aparelho opressor que torturava e marcava os

corpos negros como amimais exigia uma articulação que representava uma dinâmica de defesa

constante. Essa articulação entre os quilombos e outros grupos sociais oprimidos garantiu a

sobrevivência de centenas de quilombos. Machado Filho (1986) afirma:

Ao garimpeiro se aliou o quilombola, um e outro fora da lei, ainda que por motivos

diversos, não tardou se encontrassem solidários buscando a subsistência na mineração

furtiva. Com estes, outro tipo interessante apareceu nas lavras, surgindo no meio dos

contrabandistas de várias espécies, que aí havia em grande número. Foi o

campagueiro, comerciante de capanga, pequeno comerciante que comprava do

garimpeiro o produto das suas faisqueiras e o protegia mandando-lhe avisos

cautelosos quando as tropas de dragões saíam em batidas aos quilombos e aos

garimpos (MACHADO FILHO, 1986, p. 82).

Além destes tipos de alianças, os quilombos se mantinham sendo verdadeiras unidades

produtivas que desenvolviam diversas atividades, como metalurgia e tecelagem, além de

possuírem relações de escambo com as comunidades do entorno Moura (1987) acrescenta que

os quilombolas de comunidades da periferia de Salvador, por exemplo, chagavam a trabalhar

na capital da Província, gozando de uma suposta posição de libertos, retornando com os ganhos

do dia para complementar ao da comunidade.

Os quilombos que se estabeleceram pelo Brasil se constituíam como unidades,

articuladas ou não, de poder e enfrentamento ao sistema posto. O quilombo era uma realidade

que contribuiu para a ruína das relações entre senhores e escravizados e ajudou a formar a

mudança social que resultou no trabalho assalariado no Brasil. Moura (1987) continua:

Dessa forma, não podemos deixar de ver o quilombo como um elemento dinâmico de

desgaste das relações escravistas. Não foi manifestação esporádica de pequenos

grupos de escravos marginais desprovidos de consciência social, mas um movimento

que atuou no centro do sistema nacional, e permanentemente (MOURA, 1987, p.31).

47

Para desempenhar tal papel nas transformações sociais do país os quilombos

necessitaram de uma organização de poder que os estruturassem a partir de desígnios de papéis

específicos além de funções coletivas previamente acordadas. Em Palmares, por exemplo,

existia um governo centralizado estruturado como uma monarquia eletiva15 (CARNEIRO,

2001).

De maneira objetiva, Santos (2001) resumiu o modo de atuação da colonização do

poder, que se manifesta igualmente nos planos social, político, jurídico, cultural, no plano das

práticas cotidianas de convivência e sobrevivência, de opressão e resistência, de proximidade e

distância, no plano dos discursos e narrativas, do senso comum e dos outros saberes, das

emoções e afetos, dos sentimentos e ideologias.

O processo de constituição do grupo étnico em uma comunidade política é o que

possibilita que os sujeitos se mobilizem em ações comunitárias de reivindicação de direitos, o

processo permite a criação de um “nós” coletivo, que estimula a elaboração da ação política

coletiva, na desconsideração das diferenças que marcam a distância entre estes vários grupos

unidos num único sujeito político (NOVAES, 1993).

A constituição étnica quilombola permite que o grupo compartilhe a identidade na

qualidade de identidade étnico-política, logo, a identidade social é um processo identitário

complexo, que abrange diversos níveis da relação “nós com o outro”. Neste sentido Capinan e

Cardel (2011) defendem:

A identidade étnica é, portanto, uma variante da identidade social que, na conjuntura

histórica contemporânea, vem adquirindo uma função central na mobilização política

das comunidades negras que remanescem como quilombos na luta pela cidadania. Por

fim, cabe ressaltar que a perspectiva de análise que propomos se desloca de um nível

macro para o micro, de um projeto nacional para centrar-se no local. Foi a partir deste

lugar que procuramos compreender as ligações do “nós com o outro”, entendido no

sentido habitual, porém acrescido de outros agentes e/ou agências mediadoras

atuantes no campo da pesquisa (CAPINAN; CARDEL, 2011, p. 33).

O governo do Estado da Bahia utiliza a Instrução Normativa nº 20 do Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para conceituar as Comunidade

Remanescente de Quilombos:

Os grupos étnicos raciais predominantemente constituídos pela população negra rural

ou urbana, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria,

dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra

relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, nos termos do Decreto

nº4.887, de 20 de novembro de 2003. (BAHIA, 2003)

15 Regime monárquico onde o chefe de Estado ou monarca é eleito por votação e tem cargo vitalício.

48

As comunidades saltam, então, do lugar de Remanescentes de Quilombo, para

comunidades Quilombolas, tal formatação está inserida no processo de autonomia política

(empoderamento) e representatividade aos quais as comunidades quilombolas estão submetidas

nas resistências aos processos de exclusão social e expulsão da terra. A leitura de Santana Filho

(2015) vai pelo mesmo caminho:

Os Territórios Quilombolas são a constituição da população negra na terra e no

território, que se reconhece pela sua própria trajetória social e política, dotados de

relações comunitárias específicas e diferenciadas pela ancestralidade que os tornaram

resistentes à exclusão social e histórica, moderna e contemporânea (SANTANA

FILHO, 2015, p. 465).

Conceber o quilombo, tanto no passado como no presente, na figura de um núcleo

paralelo de poder, é conceber a estas comunidades a condições de agentes vivos no campo

social, que ultrapassam os marcos históricos no mesmo processo de enfretamento. De acordo

Calheiros e Stadtler (2010) o termo “remanescente” para designar a comunidade quilombola

serviu no momento da Assembleia Constituinte, para que o constituinte pudesse identificar

populações que não as que representavam os quilombos históricos, e principalmente não

associasse a linhas de descendência apenas. Para os autores os grupos passaram a dispor de um

reconhecimento oficial de identidade e cultura, o que representa também o aumento de conflitos

que confrontam direto a militância quilombola e as questões fundiárias.

Ainda no processo de ressignificação do termo, Arruti (2006) afirma que em 1995, no

contexto do IV Encontro das Comunidades Negras Rurais, Alfredo Wagner Berno de Almeida

apresentou o tema Quilombos e Terras de Preto no Maranhão, sugerindo a ressemantização dos

“remanescentes de quilombos”, aproximando-os dos negros que dividiam as terras de preto:

terras de uso comum doadas, entregues ou compradas, formal ou informalmente, por famílias

negras rurais , segundo o autor o objetivo dessa ressignificação era evidenciar que após os

séculos de perseguição do povo preto quilombola, novos nomes começaram a ser atribuídos a

tais comunidades (ARRUTI,2006). Era mais importante compreender se havia, por exemplo, o

uso da terra e as formas de mobilização coletiva contra as opressões. A categoria dos

“remanescentes de quilombos”, segundo Almeida, deveria ser ressignificada para se pensar em

uma atuação político-social realmente compensatória em relação às comunidades negras rurais,

em lugar da repetição da opressão estatal secular.

Pensar politicamente o território é entendê-lo como o espaço necessário a reprodução

social, cultural e econômica das comunidades quilombolas. É o lugar onde se operacionaliza a

resistência, conforme Clóvis Moura (1987), é por meio da Quilombagem que os sujeitos fazem

valer sua condição política étnica-racial e no Quilombo, em sua materialidade. De acordo com

49

o autor, o quilombo assume nesse século seu caráter geopolítico no acesso ao Estado e ao seu

meio de produção, a terra.

Nota-se a partir desta concepção de Moura, que os conflitos das comunidades

quilombolas, e as comunidades tradicionais em geral, se referem não só ao processo de

manutenção das suas formas de vida, dizem respeito, ao enfrentamento do capital e sua

famigerada necessidade de aglutinação dos meios de produção. Terra para as comunidades tem

o sentido ampliado para resistência e enfrentamento. Comunidades quilombolas, pesqueiras,

rurais e até urbanas tiram grande parte de seus sustentos da terra, ou do mar, e ao lutar pela

manutenção do seu espaço lutam por suas vidas.

Dentre tantos exemplos, destaca-se o da comunidade de pesqueira e quilombola de

Conceição de Salinas, no município de Salinas da Margarida, Bahia. Comunidade que resiste,

por meio da vida-luta de marisqueiras e pescadores (Figura 1), ao violento processo de

expropriação do território em benefício da especulação imobiliária e do hidronegócio. Resistir

aos avanços do capital a partir das fortes ligações comunitárias é o sinônimo atualizado do ser

quilombola, como fora antes resistir e enfrentar o sistema escravizador.

Figura 1 – Mariscar é resistir

.

Fonte: Imagem do autor.

2.2 Condições de formações sociais e subjetivas

De acordo com Franz Fanon (1979), não é possível entender o colonialismo apenas a

partir dos aparatos militares e administrativos que engendram a dominação das populações e

territórios. O colonialismo deve ser entendido também a partir dos discursos de inferiorização

dos colonizados, imposto pelo colonizador, incorporado e reproduzido nas próprias

50

manifestações e referências culturais do colonizado. Segundo Fanon, “não é possível submeter

à servidão aos homens sem inferiorizá-los parte por parte”. O autor evidencia o vínculo entre

colonialismo e racismo, pois “o racismo não é mais que a explicação emocional, afetiva,

algumas vezes intelectual, desta inferiorização” (FANON, 1979, p. 48).

A partir da colonização de povos originários e territórios americanos, trabalho, raça e

gênero se articulam como os eixos principais de classificação social do novo sistema-mundo

que surgiria. É com a invenção eurocêntrica da América, portanto, que surge o conceito de raça;

maneira de legitimar as relações de dominação impostas pela conquista e estabelecer o controle

europeu sobre todas as formas de subjetividade, cultura, e produção do conhecimento

(QUIJANO, 2005).

Porto-Gonçalves (2002) conclui que a discriminação das pessoas com a noção

pseudocientífica de raça é parte de um sistema de poder mundial que nos habita até hoje. Assim,

embora a raça não exista como conceito científico, o racismo existe como fenômeno social real.

Os negros e os povos originários trazem cotidianamente essa denúncia, para além da leitura

conceitual do racismo, sendo vivida nas relações às quais são impostos.

Ao padrão de controle, hierarquização e classificação da população mundial que afeta

todas as dimensões da existência social, e que tem no conceito de raça seu eixo estruturante,

Quijano (2005) denominou “colonialidade do poder”. Para o autor, a colonialidade não se limita

ao colonialismo, forma de dominação político-econômica e jurídico-administrativa das

metrópoles europeias sobre as colônias, expressa também um conjunto de relações de poder

mais profundo que, mesmo com o fim do colonialismo, se mantém arraigado nos esquemas

culturais e de pensamento dominantes, legitimando e naturalizando as posições assimétricas em

que formas de trabalho, populações, subjetividades, conhecimentos e territórios, estas estão

localizadas no mundo contemporâneo (QUIJANO, 2005; ESCOBAR, 2003; CASTRO-

GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).

De acordo com Clóvis Moura (1980), a sociedade brasileira foi moldada pelo trabalho

escravo, tal relação de servidão foi a responsável também pela estruturação e desenvolvimento

das instituições públicas e privadas, grupos e classes no período pós escravidão. As relações de

produção) no Brasil foram modeladas a partir do sistema de escravização. Um sistema colonial

que produziu uma sociedade descrita por suas particularidades de exclusão e controle.

Enrique Dussel (2004) afirma que o ego cogito moderno foi precedido pelo ego

conquiro (eu conquisto), protagonizado pelo colonizador europeu dos séculos XV e XVI

(DUSSEL, 2004; ESCOBAR, 2003). A América é compreendida, assim, como parte

constitutiva da modernidade, uma exterioridade que lhe é interior. Neste sentido, não há como

51

compreender a modernidade como um fenômeno essencialmente europeu, mas sim como um

processo inserido na própria constituição do sistema-mundo moderno-colonial e na assimétrica

relação que a Europa institui com outras regiões do planeta (PORTO-GONÇALVES, 2002).

O processo de Descolonização consiste em romper com essa lógica supracitada,

devolvendo aos povos originários o que lhes confere identidade descontruindo a episteme que

o mantem arraigado às antigas relações de poder. Quilombolas, indígenas e camponeses se

colocam, hoje, no debate político na escala nacional reconfigurando esse debate com questões

próprias, mas não como questões exclusivas, específicas. Colocam-se explicitamente a questão

do poder nacional. Buscando escapar das armadilhas políticas atuais que mais segregam dando

lugar, por exemplo, a xenofobia. Esses povos buscam, ao contrário, falam de descolonização,

de trans-modernidade (DUSSEL, 2007).

Escobar (1995) argumenta que a grande promessa política dos povos considerados

minorias políticas e culturais é o seu potencial em resistir e subverter o capitalismo e a

modernidade. Desta maneira o autor convida à investigação do “poder que há no poder” das

comunidades e povos tradicionais.

O reconhecimento da identidade quilombola e a consequente necessidade do Estado

de promover condições de existência para essas comunidades fez com que a estrutura de poder

fosse, em algum ponto, atravessada, o que levou a diversos setores a se contraporem, inclusive

com o uso da violência, à autoatribuição dos povos tradicionais. Ruralistas, imprensa e

parlamentares partiram para o contra-ataque. A ADI nº 3.239, por exemplo, foi ajuizada em

2004 pelo Partido da Frente Liberal (PFL), hoje Democratas. A ação requeria a

inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, alegando, dentre outras coisas, a incoerência da

autodefinição quilombola.

A assunção de uma identidade, antes mesmo de garantir direitos e atenção

governamental específica, permite ao indivíduo se colocar de maneira coletiva, de maneira

específica, perante a sociedade (SANTANA FILHO, 2004). Assim, quilombolas têm

enfrentado as diversas instâncias conservadoras do campo social, como também têm feito maior

pressão por espaço nas políticas públicas. Afirmar a identidade para comunidades étnicas tem

um efeito direto para seus membros, possibilita que seus membros, individualmente ou

coletivamente, possam ser reconhecidos e dialoguem, ou conflitam, com outros grupos e setores

da sociedade (LEROY, 1997).

Castells (1999, p. 24) acrescenta que “a construção social da identidade sempre ocorre

em um contexto marcado por relações de poder”. De acordo com o autor as identidades podem

apresentar três formas e origens de construção:

52

Identidade Legitimadora: é introduzida pelos atores dominantes da sociedade

no intuito de expandir seu controle e racionalizar sua dominação em relação

aos demais atores sociais.

Identidade de Resistencia: criada por atores que se encontram em

condições/posições de subalternidades frente a lógica da dominação. Esses

atores criam seu campo de resistência, vivendo a partir de seus valores.

Identidade de Projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo

de material cultural ao seu alcance, constroem uma identidade capaz de

posicionar seu lugar na sociedade.

O autor afirma que as identidades que começam como resistência podem acabar como

projetos, o que nos contempla no debate das comunidades quilombolas, que nascem no contexto

de resistência, e se atualizam com novos modos de enfrentamento, se adaptando ao

reconhecimento oficial, por exemplo e, de maneira estratégica, participam da ordem proposta.

Sem necessariamente deixar suas características de resistência.

A importância das populações tradicionais se revela nas funções sociais que estas

geram em benefício de comunidades e de sua representação coletiva, desde a transferência de

saberes, memória, preservação e bens materiais e simbólicos, a relação com o território,

interação sustentável com os meios de produção naturais e proteção à pessoa. Tais funções

objetivam, sobretudo, a sobrevivência de comunidades, significando a sobrevivência dos seus

integrantes e de suas relações. Neste sentido a Convenção n° 169 da OIT, indica que cabe ao

Poder Público a responsabilidade de zelar pela integridade dos povos e comunidades

tradicionais.

A atribuição de tal responsabilidade à administração pública consiste em buscar

instrumentos que garantam condições de igualdade, efetivação dos direitos sociais, culturais e

econômicos de povos tradicionais, respeitando seus modos de vida e suas instituições,

eliminando as diferenças socioeconômicas entres estas comunidades tradicionais e a sociedade

moderna. Entretanto, como já observamos, tal processo está inserido no conflito de interesses

de diferentes atores, nos cabe revisitar a teoria de poder para nos orientar na investigação do

objeto proposto.

53

3. PODER, RELAÇÕES DE FORÇA

Falar e pesquisar sobre relações de poder é sempre difícil, ainda que circunscrito a uma

dada comunidade ou organização. Sua dimensão subjetiva e o fato de perpassar e imiscuir-se

em praticamente todas as relações sociais torna essa empreitada ainda mais trabalhosa. Outro

desafio para o estudo do poder é a polissemia que o termo pode apresentar.

De acordo com Reed (2014), a diversidade teórica em torno do termo se explicita no

debate que dominou o último século, desde que Max Weber definiu o poder como "a

possibilidade de um homem ou de um grupo de homens realizarem suas próprias vontades numa

ação social, mesmo contra a resistência de outros que participam da ação" (Weber, 2009, p.

926).

Inspirado na definição weberiana, Dahl (1957) constrói a ideia de que "A tem poder

sobre B na medida em que ele consegue que B faça algo que B não faria em outra circunstância"

(Dahl, 1957, pp. 202-203). Ainda na construção do termo, Parsons (1963) propôs uma analogia

entre poder e dinheiro, onde o poder, como o dinheiro, poderia ser adquirido, ampliado e servir

como elemento ordenador da sociedade, ou seja, o poder serviria como um elemento

estruturante do funcionamento do sistema, ainda que alguns possuíssem mais e outros menos.

Trazemos aqui a noção de poder que está intimamente associada ao conflito, a luta e a

contradição. As relações de poder conformam, produzem conflitos, a exemplo dos instituídos

em grupos político-econômicos e sociais como os quilombos. Pensamos aqui, o poder como

relação de força que orienta e constrói segundo os interesses dos sujeitos.

Frequentemente, a noção de poder vem associada a um recorte territorial especifico,

como uma tentativa de qualificá-lo, de conferir sentido. Assim, na literatura como também nas

lutas políticas, muitas vezes, se associam as noções de Poder e de Local, sendo essa associação

concebida como um recurso ao enfretamento do conflito, ao embate entre as hegemonias – é

como se a dimensão local (em geral remetida ao conceito de território como conjunto de

relações sociais) fosse capaz de conceder ao indivíduo a possibilidade de liberdade.

De acordo com Fischer (1992), o poder constitui-se no emaranhado conjunto de

relações de forças entre os diferentes grupos sociais. Para entender o local e as relações de poder

nele existentes, não basta identificá-lo ao poder político, segundo a autora é preciso conceituá-

lo e entende-lo em suas dimensões econômica, social, cultural e simbólica. O poder “alude-se

ao conjunto de redes sociais que se articulam e se superpõem, com relações de cooperação e

conflito, em torno de interesses, recursos e valores, em um espaço cujo contorno é definido pela

configuração desse conjunto” (FISCHER, 1992, p. 106).

54

Os poderes difusos, tidos como mais organizados, como é o caso das forças locais,

possuidoras de capacidade de regulação do cotidiano social, das relações que envolvem

estratégias mais ou menos conscientes de apropriação e utilização desse poder, não é o poder

político ou econômico formalmente reconhecido, mas sim o poder de ‘classificar’, de ‘ver’ e

de ‘fazer ver’ o mundo, de reconhecê-lo com outros atributos, a exemplo dos simbólicos, como

afirma Bourdieu (1989).

Realizamos, então, uma leitura sobre o conceito de poder que se refere as distintas

capacidades de transformar a realidade, como forças mobilizadoras que partem do indivíduo e

ressoam no coletivo, retornando igualmente como forças que definem esses mesmos sujeitos

coletivos. O sujeito quilombola, enquanto sujeito coletivo é força formadora da comunidade,

ao mesmo tempo em que se nutre da identidade quilombola para ser e representar tal identidade.

Em seu estudo, Foucault (2003) toma o poder como força de natureza interdisciplinar

e que, para sua análise, é necessário usar a articulação de vários saberes como método, ou seja,

não é possível estudar o poder na perspectiva de uma única disciplina, coma economia, a

psicologia ou a teoria política. Então, trazendo o sujeito para o centro da análise das relações

de poder, somos convidados a entender os sujeitos mais próximos de sua completude,

desnaturalizando os referenciais sóciocêntricos, trataremos do poder, como o faz o autor a partir

das suas múltiplas dimensões, quais sejam, a capacidade de interditar, de dizer não, mas

também de criar, de ser afirmativo e propositivo. Como afirma Souza (2014) referindo-se ao

conceito de poder de Michel Foucault:

O poder é, para Foucault, uma força criadora, ou seja, capaz de criar relações entre

grupos sociais, dando consistência a um material até então amorfo, e estruturando, a

partir dele, uma capacidade discursiva. O poder, portanto, permite que estes grupos

criem imagens a respeito de si próprios e se vejam refletidos nestas imagens (SOUZA,

2014. p. 104).

Ao identificar o poder como força criadora Foucault (2003) confere também ao poder

a capacidade de criação de identidades, ainda segundo o autor, quando um determinado grupo

social se associa a um conjunto de representações, é a partir dessas imagens que o próprio grupo

constrói sua identidade, e estas imagens estão diretamente ligadas a relações de foça constituída

no seu interior e na relação com o outro, com a alteridade. A construção de políticas indenitárias

surge para o autor como uma fabricação, uma elaboração a partir de técnicas e mecanismos

específicos. Foucault (2003) compreende o poder por uma perspectiva relacional, ou seja, é

definido pela relação entre os indivíduos. Foucault (2003) pontua:

O poder não é uma substância. Tampouco é um misterioso atributo do qual se

precisaria escavar as origens. O poder não é senão um tipo particular de relação entre

indivíduos. E essas relações são específicas: dito de outro modo, elas nada têm a ver

55

com a troca, a produção e a comunicação, mesmo se elas lhe são associadas

(FOUCAULT, 2003.p. 384).

O poder se dá na relação e a partir dela deve ser analisado, o que significa que não

podemos nos limitar a esfera institucional nem ao caráter coercitivo do poder. Nesta análise e

seguindo a perspectiva foucaultiana o poder não poderá ser visto apenas por um viés, as relações

de poder não operam de forma externa em referência a outras relações, tanto na dimensão

econômica ou do conhecimento. As relações de poder são imanentes às tantas outras, fazem

parte delas, definindo-as. O poder não age apenas nos termos da repressão, esta é apenas uma

das formas de expressão da relação, o poder não se limita a proibir e silenciar, podendo oferecer

o contrário, induzir o sujeito à fala. Dentro dessa perspectiva Souza (2014) compreende o poder

do sujeito individual ou coletivo como fruto, associado ao caráter identitário do coletivo e como

um possível convite à ação. Mais do que tão somente uma agência de proibição, o poder é e

deve ser visto como uma multiplicidade de focos existentes nas relações sociais, relações que

tanto interditam como induzem a fala e a ação.

A análise de Foucault (2003) sobre o poder é relevante, pois, os objetivos do seu estudo

ajudam a compreender uma das dimensões de análise desta pesquisa, a dimensão do sujeito, da

classe e da raça. Objetivamos, desta maneira, estudar o poder dentro e fora das agências

tradicionais, correlacionando-o com diferentes estratégias que possuem o sujeito coletivo como

objeto.

Para além da dinâmica global esta percepção permite identificar analisar os elementos

que compõem o conjunto de ações que são permeadas por relações de força, nas quais o poder

está imiscuído. Para Foucault, o poder está contido nas relações entre os sujeitos, e estes são os

seus agentes. Essa análise nos situa no contexto da microfísica do poder, o que exige que se

desvende a rede de relações ativas entre os sujeitos e as nuances destas relações.

Para Foucault, o estudo do poder não pode restringir-se à análise da dinâmica de

classes ou de regras institucionais, devendo, antes, enfocar os mecanismos de poder

em sua capilaridade, ou seja, em seu surgimento antes de serem estruturados a partir

de relações de dominação. E ele no exorta a repensar o poder não apenas como uma

questão teórica, mas como uma dimensão de nossa experiência. Tais mecanismos,

portanto, devem ser pensados a partir da experiência concreta, cotidiana e capilar. E

ainda interessa a Foucault a maneira como o poder capilar opera de forma similar em

sociedades que possuem instituições diferenciadas (SOUZA, 2014, p.111).

A leitura foucaultiana toma a análise do poder como um problema metodológico,

composto de elementos de precauções metodológicas para construir sua genealogia sobre

poder. Neste lugar o poder é um feixe aberto, coordenado ou não de relações. Um poder que

detêm por meio dessas relações a capacidade de determinar a realidade na esfera individual ou

56

coletiva de grupos de sujeitos, por meio de interesses de outros sujeitos igualmente individuais

ou coletivos, para o alcance dos objetivos destes. As relações de poder a partir desta construção

irão ser base para conflitos dos mais diferentes tipos. O problema analítico-metodológico

proposto por Foucault se ampara em princípios que irão possibilitar compreender de maneira

analítica as relações de poder.

São estes os princípios: a) de localidade – que situam a operacionalidade do poder a

partir de relações, localizar os caminhos por onde transita o poder e as suas redes, tendo os

indivíduos como os seus intermediários; b) o princípio da exterioridade, este informa que o

poder não deve ser estudado a partir da sua intenção ou decisão, mas deve ser estudado a partir

do contato que estabelece com o seu objeto e; c) o princípio da circularidade, que defende que

os indivíduos exercem o poder ao mesmo tempo em que são influenciados por este.

A análise do poder apresentada nos trabalhos de Foucault permite-nos trabalhar com

o exercício efetivo do poder, sua rede de influência e controle sobre as instituições e sujeitos.

A escolha dessa perspectiva analítica do poder nos permite pensar as relações que conformam

o poder, relações estas que são dispersas e contingentes, e compõe de maneira objetiva o

exercício do poder (SANTANA FILHO, 2011).

O poder pode, assim, ser pensado a partir de uma atuação dispersa, elementar, um

poder que está no cotidiano, entre nós, dentro dos sujeitos, e somos nós os seus agentes. Para

Foucault (1977), é necessário investigar uma microfísica do poder a partir de uma microanálise

de suas práticas. Há, entretanto, críticas a este modelo analítico, por autores como Poulantzas

(1985), que acentua que Foucault ignora o Estado e a luta de classes quando trabalha somente

na escala de complexidade das microrelações:

O mais notável é que este discurso, que tende a tornar o poder invisível, pulverizando-

o na capilaridade de microrredes moleculares, obtém o sucesso que se sabe no

presente momento, quando a expansão e o peso do Estado atingem níveis sem

precedentes (POULANTZAS, 1985 p. 93).

Admitindo o poder como relação de forças, somos levados a concordar com a leitura

de Poulantzas (1985) que entende o Estado capitalista com a capacidade de abarcar o tempo e

o espaço social, monopolizando as suas organizações e os transformando em rede de dominação

e poder. Nos cabe, então, estabelecer uma relação do sentido de poder que contemple nosso

objeto de pesquisa.

3.1 Poder, Estado e classe

A associação entre os conceitos surge a partir da crise instaurada pelo aumento das

contradições entre capital e trabalho na virada desse século. Tocqueville (1969) em Democracia

57

na América sugere que a descentralização do poder do Estado seria um elemento fundamental

na garantia dos direitos individuais como também de controle social:

Uma forma de reduzir a influência de uma autoridade consiste em distribuir o

exercício de seus poderes entre várias mãos e em multiplicar os funcionários, a cada

um dos quais se dá o grau de poder necessário para desempenhar seu dever. Pode

haver nações nas quais tal distribuição de poderes sociais levasse à anarquia; mas em

si própria ela não é anárquica. A autoridade assim dividida é, na realidade, tornada

menos irresistível e menos perigosa, mas não é destruída (TOCQUEVILLE, 1969,

p.109).

A leitura do autor se confirma quando nos vemos inseridos em uma sociedade

estratificada, com distintos grupos de interesses, micro poderes, relações individuais e de

grupos estrategicamente formados. Segundo Felizes (1999) o Estado é um dos entes que media

o poder, uma vez que é no cruzamento de suas várias concepções e das lutas simbólicas

desencadeadas que se projeta igualmente a possibilidade de atuação deste em nível local. “O

poder político não orbita unicamente em torno do Estado, estes coexistem com outras

organizações, com estruturas relevantes do ponto de vista da capacidade de determinar as

trajetórias das sociedades” (FELIZES, 1999, p. 125).

São os chamados ‘contra-poderes’ ou mesmo a ‘instrumentalização’ do Estado por

meio de agentes distintos. No universo do poder é possível a observação de um complexo

relacionamento entre o poder político e uma rede de poderes difusos que, como indica o referido

autor “posicionam-se diferentemente perante o poder político e, de acordo com os atributos que

lhes são próprios, podem disputar com ele a capacidade de decisão” (FELIZES, 1999, p. 125).

Lebrun (1981) apresenta-nos a leitura de Durkheim sobre as esferas de atuação do

poder do estado, deste o aparelho regulador que se espraia pelo conjunto da sociedade:

A incumbência de zelar pela educação da juventude, de proteger a saúde geral, de

presidir ao funcionamento da assistência pública, de administrar as vias de transporte

e comunicação, pouco a pouco ingressa na esfera de ação do órgão central. Em

consequência, este se desenvolve e, ao mesmo tempo, estende progressivamente a

toda a superfície do território uma rede cada vez mais cerrada e complexa de

ramificações, que substituem ou assimilam os órgãos locais preexistentes. Serviços

de estatística mantêm-no informado de tudo o que acontece nas profundezas do

organismo (DURKHEIM, 1897 apud LEBRUN 1981, p. 33).

De acordo com Lebrun (1981), estas linhas de Durkheim anunciam um dos principais

temas que Michel Foucault desenvolve em Vigiar e Punir e em A Vontade de Saber (2002): o

poder moderno não é mais, essencialmente, uma instância repressiva e transcendente (o rei

acima dos seus súditos, o Estado superior ao indivíduo), mas uma instância de controle, que

envolve o indivíduo mais do que o domina abertamente. Podem diminuir as proibições, abolir-

se a pena de morte, abrandar-se os regimes punitivos, porém o sistema disciplinar, ao qual

somos submetidos cresce continuamente.

58

Fraser (2001) analisa que as relações de poder que supõem luta por reconhecimento

tornaram-se o grande paradigma do cenário político moderno. Segundo a autora os interesses

de classe foram suprimidos em prol das reivindicações coletivas de identidade, mesmo com o

avassalador cenário de desigualdade material e a contínua exploração da classe trabalhadora.

Oliveira (1996), ao analisar os impactos das relações étnicas considera que a fricção entre o

local e o global promove o acirramento das lutas sociais pelo reconhecimento das questões das

minorias políticas. O autor se utiliza dos conceitos de microesfera, para situar as construções

normativas de cada grupo, a mesoesfera, onde o Estado deve atuar no sentido de garantir os

direitos de todos, e a macroesfera, posto ocupado pela atuação dos órgãos internacionais que

defendem direitos humanos universais.

Ainda de acordo com Oliveira (1996), os Estados nacionais latino-americanos, são

pouco sensíveis ao multiculturalismo como política de Estado, uma vez adotada uma concepção

nacionalista e integradora que busca dissolver a diversidade étnica no espaço social e político.

O Estado, segundo o autor, mostra preferência em defender os interesses dos grupos dominantes

em detrimento das minorias étnicas. E conforme Marx, em passagem já citada, a ideologia

burguesa é a ideologia dominante porque a burguesia domina os meios de produção material e

os meios de produção e difusão das ideias.

Entretanto as relações de disputa transcendem a luta de classes, o poder transita entre

as instituições, que também estão em disputa (POULANTZAS, 1985). Mesmo sabendo que

essas instituições confirmam as relações de dominação de classes, de acordo com o autor, o

Estado é entendido a partir de seu caráter tanto material, no sentido de que são instituições

concretas, que possuem agentes próprios e quem moldam outras estruturas, por meios tanto

ideológicos quanto repressivos.

Destarte, a operacionalização do poder do Estado é compreendida a partir do caráter

produtivo do Estado, como proposto pelo poder produtivo de Foucault (2002). O Estado produz

os comportamentos, institui categorias de agentes, dissemina práticas e molda o mundo social

sobre o qual atua, de acordo como o autor:

Temos que deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ‘ele

exclui’, ele ‘reprime’ ele ‘recalca’, ele ‘censura’, ele ‘abstrai’, ele ‘mascara’, ele

‘esconde’. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de

objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se

originam nessa produção (FOUCAULT, 2002, p. 161).

Portanto, para Foucault, as relações de poder não são negativas justamente porque elas

geram saberes novos, elas produzem, criam e provocam. Entretanto, na estrutura do Estado,

essas relações o configuram como um espaço a ser disputado, sem ignorar o caráter de

59

favorecimento à classe dominante. Esta análise permite ressignificar as conquistas das políticas

de bem-estar social em benefício dos grupos historicamente dominados, sem tê-las como

concessões da classe dominante.

Este processo é latente na comunidade quilombola do Rio dos Macacos, um grupo que

luta por seus direitos e encontram apoio nos movimentos sociais e associações, precisando

recorrer as instâncias da macroesfera que assumem o desafio de interceder por povos e

comunidades tradicionais, a exemplo, ONU e da OIT. Tanto Fraser (2001) quanto Oliveira

(1976), concordam que questão quilombola está pautada nas relações de poder que são

negociados no âmbito dos interesses entre Estado, capital e, em algum plano, as comunidades.

Segundo Oliveira (1976), as minorias políticas passaram a dispor do suporte local dos

movimentos sociais e da mediação de atores políticos não governamentais, mas do apoio de

órgãos internacionais, das convenções e da vigilância destas instâncias de poder, o que lhes

proporcionou potencializar o caráter político de suas identidades.

Lorenzo (2012) observa que grande parte das políticas focalizadas ou ações

afirmativas contemporâneas se desenvolvem dentro do espaço político da intersetorialidade,

porém, os relacionamentos intersetoriais apresentam obstáculos significativos. O principal

desafio está na tentativa da conciliação de agendas particularistas com as universalistas. As

transformações nas formas de poder do Estado têm levado a difusão de outras teorias sobre as

relações entre poder e espaço, especialmente as originárias de novos conceitos e categorias de

análise, no bojo da intersetorialidade, abrangendo regionalismo, identidade e adjetivações do

território.

Dito isto, passemos para a construção empírica do nosso objeto de pesquisa, a

identificação das relações de poder no bojo das relações entre Estado e comunidade tradicional

quilombola. Dadas as peculiaridades desse conceito, particularmente a sua subjetividade

construímos um modelo de análise que busca capturar as relações de poder no contexto do

conflito.

O processo de implementação de uma política apresenta características que envolvem

disputas de interesses dos diferentes atores envolvidos no processo, por isso, a primeira

dimensão de análise que identificamos se refere a percepção dessas diferenças no contexto da

correlação de forças desses poderes que notoriamente assimétricos entre Estado e comunidade

quilombola. Outro fator oriundo da relação possível entre a implementação da política pública

quilombola e as relações de poder entre os atores foi o levantamento teórico do conceito de

legitimidade, dimensão de análise importante para a nossa pesquisa por ser responsável pela

60

validação de no âmbito coletivo do poder relacionado a cada ator social inserido no processo

das relações.

Ainda, identificamos que as relações de poder em meio a um cenário de conflito se

operacionalizam em meio aos (e por meio dos) processos de mediação, caracterizados como as

articulações possíveis para o entendimento e negociação das demandas. O que nos leva à última

dimensão de nossa construção teórica sobre posição e interesse, definido como a escolha

estratégica dos sujeitos sociais, da adoção de determinada posição pública que não evidencia

inteiramente seus interesses, considerando que a correlação de forças, por si, gera

incompatibilidades entre esses interesses.

3.2 Política Pública e Poder

Arendt (2010) compreendeu que a relação entre poder e política surge do “espaço das

aparências que começa a existir sempre que os homens se reúnem na modalidade do discurso e

da ação”. Segundo a autora, este espaço é “anterior e precedente em relação a toda e qualquer

constituição formal da esfera pública e as formas distintas de governo” (ARENDT, 2010, p.

199). A autora compreende o poder político como um conjunto de relações estabelecidas entre

os atores políticos, que se caracteriza pela da capacidade humana de agir e de unir-se a outros

e atuar em concordância com eles para ação, o poder como uma atividade relacional.

Conforme pontuamos nas seções anteriores as relações de poder podem estar

imiscuídas abertamente ou não nos processos políticos. A partir da tipologia do ciclo da política

pública identificado por Souza (2006) compreendemos a política pública como um ciclo

deliberativo regido por processos decisórios que carregam diversos elementos de relações de

força. De acordo com o referido autor o ciclo da política pública é constituído dos seguintes

estágios: definição de agenda, identificação de alternativas, avaliação das opções, seleção das

opções, implementação e avaliação. Nosso recorte está no processo de implementação da

política estadual quilombola, entretanto, achamos importante ressaltar que diante do cenário de

abandono das comunidades quilombolas pelo país, já exposto, os problemas comunitários são

constantes. Assim, o que faz um tema se tornar uma política é a percepção deste como um

problema pelos que os vivenciam, pelos participantes.

Um dos maiores desafios das comunidades quilombolas é terem suas agendas pautadas

pela gestão pública de maneira a sanar problemas correntes. Na tipologia de Souza (2006)

existem dois tipos de participantes que pautam as agendas públicas, os visíveis, ou seja,

políticos, mídia, partidos, lobistas, etc. e os invisíveis, tais como acadêmicos e burocracia.

61

Segundo esta perspectiva, os participantes visíveis definem a agenda e os invisíveis, as

alternativas.

Efetivamente o lugar dos atingidos ou alcançados pelas políticas parece estar em

suspenso, mesmo quando cooptados pelo ente público os poderes das comunidades carregam

características assimétricas dos demais participantes (SOUZA, 2016; VARGAS, 2007);

vivenciam processos de legitimidade igualmente dispares (LAKOFF, 1987, 1990; LAKOFF;

JOHNSON, 1999); e navegam entre o limite de suas posições públicas e interesses reais

(FILOMENA,2006; NASCIMENTO et. al, 2007).

3.3 Assimetrias de Poder

Os conflitos que permeiam as comunidades tradicionais acompanham a História do

Brasil. Existem nestes processos uma grande influência no que diz respeito as relações raciais,

potencializada quando estão em jogo as questões fundiárias. Do assassinato dos Guarani-

Kaiowá nas terras do Mato Grosso do Sul, às petições na internet em favor de titulação

quilombola para comunidades no Pará, povos tradicionais enfrentam as tensões da existência

moderna frente ao capital.

A fim de operacionalizar nossa investida e identificar como se dão as relações de poder

no processo de implementação da Lei nº 11.850 (BAHIA, 2009), que define a política estadual

quilombola para as comunidades tradicionais remanescentes de quilombo na Bahia, optamos

em investigar as assimetrias de poder, pois nos conflitos, os sujeitos sociais apresentam

identidade própria, sejam organizações, comunidades, empresas, órgãos estatais, com

capacidades distintas de interferir no meio qual estão inseridos (SOUZA, et al. 2016).

De acordo com Vargas (2007), os elementos que demarcam as assimetrias de poder

devem ser considerados: a) os atores apresentam diferentes níveis de conhecimento e

informação. Empresários e representantes do Governo possuem possibilidade de maior acesso

às informações e conhecimentos do que as comunidades quilombolas, por exemplo; b) entre os

atores existem diferenças no que se refere à apropriação dos recursos e de poderes e; c)

diferenças consubstanciais quanto aos aspectos culturais, tendo em vista que cada grupo social

tem uma forma de relação e apropriação dos recursos naturais.

Analisar as assimetrias de poder na implementação de uma política pública para uma

comunidade tradicional nos permite identificar se os processos e fluxos de informações são

percebidos de maneiras diferentes por atores igualmente diferentes e o quanto essas diferenças

determinam o resultado dessas políticas. Conforme Souza et. al (2016), analise dos atores

sociais envolvidos em processos de relações de poder só é possível quando se é feito um

62

mapeamento das intenções e posições de cada ator, para se entender como se dão os embates, é

fundamental perceber como se configuram as assimetrias de poderes entre os atores.

De acordo com Vargas (2007), as disposições assimétricas dos recursos, na maior parte

das vezes, são comuns em espaços sociais onde são estabelecidas relações complexas e

desiguais entre distintos atores sociais. Portanto, os atores com maior acesso ao poder são os

que detêm o controle sobre o acesso e o uso dos recursos naturais.

Assim, como já exposto estes conflitos estão sendo configurados a partir de uma

perspectiva da relação de poder entre classes. Por meio de interesses que estejam ligados a

acessos de bens e serviços. Nesse contexto o conflito é ao mesmo tempo causa e consequência

das assimetrias de poderes entre os atores sociais. Ao se identificarem em posições antagônicas

terminam por criar tal relação de embate entre dominantes e dominados.

3.4 Legitimidade

De acordo com Souza (2003) o processo de implementação de uma política pública é

aquele pelo qual os governos traduzem seus propósitos em programas e ações, que produzirão

os resultados que desejam no mundo real. Atribuímos a partir desta construção que o processo

da política é conferido pela presunção de legitimação das ações dos entes públicos para a

execução dos projetos que lhes competem.

As relações de poder com base na legitimação dos agentes e seus interesses rege o

processo de destinação de recursos e esforços para a solução de problemas enquanto política

pública. São as construções sociais em torno de um tema ou assunto que pautam a entrada de

uma discussão na agenda e como ela será resolvida (SOUZA, 2006).

A concepção política do termo sugere que a noção de legitimidade oriunda de uma

avaliação racional de uma instituição feita pelas pessoas que estão sujeitas e que são servidas

por esta (WEBER, 2009). Situar a legitimação dessas instituições no âmbito das relações de

poder exige um esforço de compreender como os atores sociais são percebidos no contexto

destas relações.

O debate neste âmbito perpassa pela compreensão e análise das ações como resultados

dos processos de categorizações de atores e grupos sociais, tendo como referência

(pré)conceitos e representações sociais construídas de maneira coletiva sobre esses grupos. A

Sepromi e a comunidade quilombola são representadas e percebidas de modos diferentes, suas

atuações serão (i)legítimadas por meio da capacidade que estes tiverem de articulação na

construção social.

63

Habermas (1999) argumenta que a força que garante a constituição do (i)legítimo está

no discurso e na esfera pública, ou seja, na representatividade que estes sujeitos coletivos

disfrutam. De acordo, com Falcone (2011) é fundamental que consideremos também que o

(des)legitimar se configura num intenso processo de negociação entre atores sociais, e é

estabilizado pelas práticas pública e a (des)legitimação de um sujeito coletivo é um processo,

daí seu caráter dinâmico e instável, estando sempre atrelado a contextos sociais e históricos.

Suchman (1995) reconhece explicitamente o papel do público social na dinâmica de

legitimidade e, segundo o autor, a auto legitimidade é:

Uma percepção ou pressuposto generalizados que as ações de uma entidade são

desejáveis, apropriadas e adequadas dentro de alguns sistemas socialmente

construídos de normas, valores, crenças e definições (SUCHMAN, 1995, p. 574).

A tipologia de Suchman (1995) traz em sua análise a condição de que o lugar de fala

do sujeito é condicionante para o processo da legitimidade. A proposta do autor é a mais citada

na literatura. Suas características são descritas a seguir:

a) Legitimidade pragmática é baseada em interesses próprios do público mais próximo

da instituição. Envolve trocas diretas entre a organização e seu público, mas pode

também abranger interdependências políticas, econômicas e sociais mais amplas.

b) A legitimidade moral reflete uma avaliação normativa da instituição e suas

atividades. Diferentemente da pragmática, repousa em julgamentos sobre se a

atividade é “a coisa certa a fazer” e não em julgamentos sobre se uma determinada

atividade beneficia quem está fazendo a avaliação.

c) A legitimidade cognitiva é baseada em cognição e não em interesse ou avaliação.

Resulta da difusão de crenças, normas e valores particulares ou então do

conhecimento.

O autor tomo como importante a representatividade dos representantes das instituições

observada, as capacidades distintas que estas têm de estabelecer agendas e onde estes grupos

estão posicionados, o que chamamos de lugar de fala e aprofundamos na próxima seção.

3.4.1 Lugar de fala

A identificação do sujeito de fala e o seu lugar de fala, está intimamente ligada à sua

legitimidade. O sujeito que é autorizado a falar e ocupar espaços de poder carrega nesta

autorização o posicionamento prévio do seu lugar de fala (RIBEIRO, 2017). Mesmo que

compreendamos a polissemia do conceito de lugar de fala, utilizaremos esse termo como

64

categoria analítica por perceber que leituras como a de Mombaça (2017 apud RIBEIRO, 2017,

p. 85), podem no guiar na análise das relações de poder. Segundo a referida autora:

Muito se fala como esse conceito [lugar de fala] tem sido apropriado de modo a

conceder ou não autoridade para falar como base nas posições e marcas políticas que

um determinado corpo ocupa num mundo organizado por formas desiguais de

distribuição das violências e dos acessos. O que as críticas que vão por essa via

aparentemente não reconhecem é que há uma política (e uma polícia) da autorização

discursiva que antecede a quebra promovida pelos ativismos do lugar de fala. Quero

dizer: não são os ativismos do lugar de fala que instituem o regime de autorização,

pelo contrário. Os regimes de autorização discursiva estão instituídos contra esses

ativismos, de modo que o gesto político de convidar um homem cis eurobranco a

calar-se para pensar melhor antes da fala introduz, na realidade, uma ruptura no

regime de autorizações vigente. Se o conceito de lugar de fala se converte numa

ferramenta de interrupção de vozes hegemônicas, é porque ele está sendo operado em

favor da possibilidade de emergência de vozes historicamente interrompidas. Assim,

quando os ativismos do lugar de fala desautorizam, eles estão, em última instância,

desautorizando a matriz de autoridade que construiu o mundo como evento

epistemicida e estão também desautorizando a ficção segundo a qual partimos todas

de uma posição comum de acesso à fala e à escuta” (RIBEIRO, 2017, p. 85).

As experiências de grupos localizados socialmente de maneira hierarquizada e não

humanizada faz com que suas produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratados de maneira

igualmente subalternizadas, além de serem mantidos em lugares de silenciamento na estrutura

social (COLLINS, 2000; RIBEIRO, 2017).

Entretanto, tal processo de hierarquização não significa que estes grupos aceitam essas

posições de silenciamento, de acordo com Ribeiro (2017): “os grupos criam ferramentas para

enfrentar esses silêncios institucionais” articulando “várias formas de organização políticas,

culturais e intelectuais” (RIBEIRO, 2017, p. 63).

A identificação do sujeito coletivo precede o passo de leitura do seu lugar de fala, lugar

que historicamente se confunde e se traduz como um lugar de poder. A implementação de uma

política pública, tal qual sua elaboração e posteriormente seu processo de avaliação, evidenciam

esse momento onde os lugares de fala são determinantes não só para o entendimento dos

discursos como também para os resultados efetivo das políticas. Consideramos aqui que as

condições sociais impostas aos grupos são determinantes para a visibilidade e a legitimação de

suas demandas.

É importante demarcarmos que não estamos falando exclusivamente da oralidade da

fala e sim a partir de uma noção foucaultiana do discurso que é estruturante em um sistema de

poder e controle. Sabemos que um dos principais instrumentos de exclusão de sujeitos e grupos

é a necessidade que estes se adequem ao padrão do discursivo dominante. Um ato político que

segrega e determina o que deve ser pautado. De acordo com Bourdieu (1989) o discurso político

dos dominados é desacreditado simbolicamente por não se adequar aos critérios tácitos de

vocabulário, conteúdo, observância das normas linguísticas.

65

Lugar de fala aqui se refere do posicionamento dos sujeitos coletivos a partir do que

trazem consigo, que envolve principalmente as experiências. Frequentemente cabe aos

integrantes de grupos dominados permanecerem com sua linguagem própria, como ato de

resistência, enfrentando a baixa efetividade de seus discursos pela não legitimação desta fala

ou reproduzir os modos de falas dominantes, o que implica o afastamento de suas bases sociais

e históricas.

3.5 Posição versus Interesse

Santos et. al. (2007) afirmam que em situações de conflito, como a identificada na

implementação da política estadual quilombola no Rio dos Macacos, os diferentes sujeitos

sociais envolvidos carregam nos seus discursos e práticas posições públicas que expressam o

que o representam no caráter institucional, logo, representam suas instituições, são as

manifestações públicas do conflito.

As posições públicas acerca da implementação da política pública frequentemente são

atribuídas aos executores das políticas e atingidos, por meio de manifestações orais ou escritas

de maneira pública oficiais (planos, diretrizes, instruções) ou informais.

Entretanto, tal posição pública evidenciada pode destoar dos interesses desses sujeitos.

Os interesses, individuais ou coletivos, representam a dimensão real do conflito por

expressarem as demandas no campo privado. Frequentemente compartilhada nos ciclos de

confiança, ou frente a ameaças expressas dos interesses buscados. (FILOMENA,2006). Estado

e comunidade frequentemente divergem neste nível, pois, como já exposto, a mediação dos

governantes tende a favorecer a fração de classe dominante.

A literatura que investiga o processo da ação política pública identifica duas diferentes

dimensões analíticas no âmbito das relações entre os interesses dos sujeitos sociais. A primeira

está relacionada ao grau de exclusão/inclusão dos interesses organizados no processo decisório

(CASTRO, 1991). De acordo com a autora, situações de exclusão evidenciam a predominâncias

da representação das agendas da fração da classe dominante na ação pública. As decisões

tomadas subordinam-se ao “interesse institucional”, neste caso, instituição e classe dominante

se confundem.

Segundo Lange e Regini (1987), essas situações de baixa adequação da maioria no

cenário da política pública (participação restrita) favorece o jogo cooperativo entre os atores

que efetivamente participam, assim, permitindo a perpetuação dos interesses desses sujeitos

66

que dominam, permite a continuidade do conluio distributivo com o predomínio de

intermediações particularistas (CASTRO, 1991).

A segunda dimensão de análise se refere ao nível de integração/segmentação do

processo político. Um sistema de produção de políticas altamente compreensivo e integrado

apresenta elevada agregação de interesses quanto às demandas sobre a arena decisória e um

forte “ interdependência” em relação ao conjunto das políticas decididas e implementadas de

maneira “global e intersetorial” (LANGE, REGINI, 1987). Enquanto a fragmentação política

compromete a representação dos interesses.

Nos esforçamos até este momento para propor teorias que fundamentem nossa

pesquisa, no sentido de responder o que caracteriza as relações de poder na política estadual

quilombola. Para tal identificamos que cabe à administração pública conceber instrumentos que

garantam condições de igualdade e a efetivação dos direitos sociais, culturais e econômicos de

povos tradicionais quilombolas, conforme os marcos legais estabelecidos. Entretanto, este

processo se encontra no centro de confluência de conflitos de interesses dos diferentes atores.

Constatado tal falto, partamos para a identificação do método escolhido para que alcancemos

os objetivos deste trabalho.

67

4. CONSIDERAÇÕES MÉTODOLÓGICAS

Identificamos que existe uma vasta literatura no que se refere a análise de conflitos em

comunidades tradicionais, porém, pouco se identificou de investigações que se propõem a

compreender as relações de poder no contexto da implementação das políticas públicas,

principalmente compreensões que tratem no campo da Administração Pública e Governança.

As leituras identificadas estão predominantemente no campo da Sociologia ou Ciência Política

e abordam sobretudo o conflito com a Marinha pelo território, a violência que advém do

racismo institucional e ambiental16.

4.1 Abordagem e método

O processo de pesquisa que tem como foco o sujeito em comunidade exige que o

pesquisador busque se desnaturalizar dos referencias de bases etnocêntricas e entenda o outro

como mais robustez. Capinan e Cardel (2011) defendem que esse processo de objetivação é

maior que um referencial teórico-metodológico do trabalho de campo, é um processo de

objetivação de um pressuposto epistemológico em pesquisas acerca da identidade social e das

relações entre o local e o global nos estudos dos processos identitários.

Tratamos como inapropriado abordar relações de poder entre sujeitos de uma maneira

que não seja qualitativa, assim, assumimos que o nosso compromisso com essa pesquisa passa

por buscar uma compreensão interpretativa da experiência humana (DENZIN; LINCOLN,

2008). Trazemos, então, uma abordagem qualitativa que buscará compreender as dimensões e

situações do ambiente, que não podem ser traduzidos em números (SILVA; MENEZES, 2005).

Acreditamos que não será pela via positivista a resposta do “como” compreender os signos e as

características existenciais dos sujeitos humanos imersos na construção subjetiva dos

fenômenos sociais (RICHARDSON, 2007; TRIVIÑOS, 2012).

A abordagem qualitativa nos oferece um conjunto de pressupostos metodológicos que

priorizam a natureza do fenômeno, possibilitando que o pesquisador compreenda os fenômenos

sociais a partir do próprio fenômeno, produzindo a análise a partir das práticas dos pesquisados

(GIBBS, 2009). Em se tratando de relações de poder, que trazem níveis diferentes de interesses,

é a abordagem qualitativa que irá nos possibilitar a exploração de comportamentos e

significados ocultos e informais.

16 Caracterizado pelas injustiças sociais e ambientais que recaem sobre etnias e populações vulneráveis.

68

Escolhemos como método de pesquisa o estudo de caso, pois, de acordo com Triviños

(2012) é melhor aplicado em situações “cujo objeto é uma unidade que se analisa

aprofundadamente” (p. 133). O estudo de caso é caracterizado por: 1) natureza da unidade

analisada e; 2) a complexidade da sua existência. A implementação da política estadual

quilombola no Rio dos Macacos é dotada de uma complexidade abrangente, por apresentar

elementos de correlação de forças bastante próprios, que ampliados referenciam as lutas de

outras comunidades quilombolas na Bahia.

Assim, nossa investigação se deu a partir de um estudo de caso único e integrado. De

acordo com Yin (2005), um projeto é integrado por possuir mais de uma unidade de análise.

São estas, a comunidade quilombola do Rio dos Macacos e a Sepromi.

O processo de escolha da comunidade se deu justamente num cenário onde as outras

comunidades quilombolas, também em situação de conflito, buscavam no quilombo do Rio dos

Macacos, as diretrizes para seus enfretamentos. A exemplo das comunidades do Quingoma,

Conceição de Salinas e Bananeiras. Foi a partir do trabalho de formação de jovens quilombolas

desenvolvido na Escola das Águas17, um projeto de formação política do Movimento de

Pescadoras e Pescadores (MPP) que acessamos essas comunidades e identificamos que havia

similaridades nos processos políticos da atuação do Estado no que se refere ao relacionamento

com as comunidades. Neste cenário, frequentemente éramos incitados a conhecer “o caso do

Rio dos Macacos” para entender como se “caracterizam as relações de interesses” no Estado da

Bahia, como pontuou uma das líderes comunitárias de Conceição de Salinas.

Quando iniciamos nosso projeto de pesquisa percebemos que falar em relações de

poder no contexto de comunidades tradicionais na Bahia, é falar da situação de conflito

existente no Rio dos Macacos devido a estrutura organizativa que a comunidade construiu a

partir das frequentes denúncias dos abusos aos quais estavam e estão submetidos. A

comunidade se tornou exemplo no enfrentamento nos contextos dos embates sociais,

ambientais e políticos que atravessam diversas outras comunidades pelo território nacional.

17 Criada em 11 de julho 2011, a Escola das Águas inicia-se como um projeto piloto de formação, com inscrição

de quarenta pescadores e pescadoras de quatro regiões da Bahia, sendo essas, sul, extremo sul, baixo sul e

recôncavo. Surge da necessidade de atender aos anseios das comunidades tradicionais pesqueira pela elevação da

escolaridade, a continuação da formação educacional, formação política e a qualificação técnica dos pescadores e

pescadoras artesanais do estado da Bahia, um processo educativo voltado para a realidade vivenciada nos

territórios pesqueiros. O projeto foi criado com apoio das comunidades, parceria das organizações Associação de

Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR), A Geografia dos Assentamentos em Áreas Rurais (GEOGRAFAR-

UFBA), Serviço de Saúde Ocupacional (SESAO), Conselho Pastoral da Pesca (CPP), Comunidade Beneficente

de São Roque do Paraguaçu (COBEPA), Centro de Desenvolvimento da Comunidade Negra (CDCN), Casa do

Sol, Botica da Terra e financiamentos das organizações Coordenação Ecumênica de Serviço (CESE).

69

As condições de pobreza que se observam no Quilombo Rio dos Macacos é outro fator

condicionante para o desenvolvimento deste trabalho nesta comunidade, condição que contrasta

com realidade da Vila Militar que circunda a o quilombo. A comunidade que sobrevive a partir

da agricultura familiar e o pouco que lhe resta da atividade pesqueira18, a maior parte das

moradias não oferecem condições mínimas de conforto ou segurança, em um cenário de falta

de energia elétrica e água encanada.

A maioria das casas utilizam fogões à lenha e carregam água do rio para alimentação

e higiene.

Figura 2 – Fogão à lenha no quilombo, alternativa de sobrevivência.

Fonte: Imagem do autor.

A escolha da Sepromi como a outra unidade de análise do estudo de caso se justifica,

por esta ser a secretaria que detém as atribuições de implementação das políticas públicas para

povos e comunidades tradicionais de maneira direta ou em conjunto com as demais secretarias

e acompanhar as políticas transversais para a promoção da igualdade racial dos diversos órgãos

do Governo do Estado por ser o aparelho do Governo do Estado da Bahia. É, portanto, a

secretaria de governo que mais se relaciona com as comunidades tradicionais quilombolas.

Desta forma, analisaremos o caso das relações de poder entre a comunidade dos Rio

do Macacos e a Sepromi, no contexto da implementação da política estadual quilombola

adotado pelo Governo do Estado da Bahia, conforme a Figura 3:

18 De acordo com relatos da comunidade o declínio da atividade se dá pelos processos de construção da

barragem e proibições impostas pela Marinha.

70

Figura 3 – Estudo de caso integrado múltiplas unidades de análise

Fonte: Adaptado de Yin (2005)

Observamos no decorrer da fase exploratória da pesquisa que o processo de

implementação da política estadual quilombola na comunidade, é fortemente influenciada por

entidades do movimento social. No entanto, optamos por não incluir tais movimentos como

unidades de análise por: 1) serem muitos, a capacidade de coalização de movimentos sociais

entornos da causa do Rio dos Macacos é um dos diferenciais na luta quilombola no Brasil, como

pontuou o Professor Júlio Rocha, tal organização é emblemática e só fora vista no Rio dos

Macacos, e nos quilombos de Marambaia e Alcântara no Rio de Janeiro; 2) serem movimentos

diversos e dotarem de posicionamentos diferentes, o que não favorece a utilização de suas

diretrizes em uma unidade de análise dada suas complexidades; 2) alguns movimentos são

organizados e dotados de representação formal, enquanto outros não representam interesses

coletivos ou voltados à comunidades quilombolas, porém contribuíram dando visibilidade ao

conflito no quilombo.

A não observação destes atores como unidade de análise não comprometeu os nossos

resultados, considerando que três representantes dos movimentos sociais que se colocaram

durante o processo como interlocutores da comunidade foram entrevistados e compõem nosso

processo de pesquisa.

De acordo com Yin (2005), o estudo de caso “é uma investigação empírica que

investiga um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de vida real” e

“especialmente quando os limites e o contexto não são claramente evidentes” (YIN, 2005, p.

39). Ainda conforme o autor, essa escolha é justificada quando estamos diante de um caso

representativo – crítico. Esta pesquisa é um estudo de caso interpretativo que, segundo Godoy

(1995), se caracteriza pela busca de padrões nos dados que possibilitem o desenvolvimento de

categorias conceituais acerca do fenômeno, indo além da exclusiva descrição deste.

71

No que se refere ao período analisado, tomamos como importante o recorte os anos de

2014 a 2018, que nos situa entre o PPA-P (2012-2015) e o Plano Estadual de Desenvolvimento

Social Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (2016-2019), o que permite acessar

uma série de instrumentos das políticas públicas e as relações de poder inscritas nas

implementações destes.

4.2 Instrumento de pesquisa

Definidos abordagem e método, partimos para identificação dos instrumentos de

pesquisa que utilizamos no processo de nossa pesquisa. De acordo com Minayo (2007) é o

trabalho de campo que possibilita a aproximação do pesquisador com a realidade a qual se

propôs a pesquisar e, por meio dessa aproximação, estabelecer interações com os atores quem

formam a realidade. Contudo, a coleta de dados em um estudo de caso obedece a um protocolo

formal, que é a maneira prática de garantia da confiabilidade de uma pesquisa.

Tuzzo (2016) pontua que a complexidade do mundo moderno exige uma

complexidade de métodos que sejam capazes de elaborar a leitura os olhares de um mesmo

objeto, que pode possuir vários lados e muitas formas de ser lido. A complexidade dos eventos,

considerando as especificidades dos agentes sociais envolvidos e do conflito pelo território,

pela vida e pela reprodução deste modo de vida no quilombo, é o que nos orienta na escolha

dos instrumentos de coleta, conforme acrescenta Morin (1996):

A complexidade não produz nem gera a inteligibilidade, ela pode incitar a

estratégia/inteligência do sujeito pesquisador a considerar a complexidade da questão

estudada. A complexidade não está no objeto, mas no olhar do pesquisador, na forma

que ele estuda seu objeto e na maneira como ele aborda os fenômenos (MORIN, 1996,

p. 334).

Assim, escolhemos como estratégia de pesquisa a utilização da triangulação de três

instrumentos de coleta: documentação, observação participante e entrevistas. A integração entre

estes instrumentos envolve a geração de uma relação tangível entre métodos, dados e / ou

perspectivas, retendo a integridade de cada um, por meio de um conjunto de ações definido pelo

pesquisador, que oferece uma visão abrangente da pesquisa (PAWSON, 1995).

O estudo de documentos foi escolhido por ser um instrumento metodológico que nos

ofereceu um posicionamento contextual, favorecendo o entendimento do “quê”, “quem”,

“quando”, “onde”, “porquê” e “como” mais relevantes do contexto da relação entre quilombo

e Secretaria de Estado (RALPH; BIRKS; CHAPMAN, 2014). Além de ser um instrumento

exato, contendo nomes e referências, o que é fundamental para o estudo do marco legal (YIN,

2010).

72

A documentação consistiu no processo de levantamento das diversas notícias sobre o

conflito por meio do buscador Google onde, após o recorte temporal e de conteúdo,

identificamos vinte e sete notícias de diferentes sítios sobre a política estadual quilombola, os

temas, as notícias em destaque versavam sobre – a transversalidade da política da Sepromi; o

conflito entre a comunidade quilombola do Rio dos Macacos e os moradores da vila militar;

atuação de movimentos sociais na comunidade; implementação do Programa Brasil

Quilombola na Bahia e; demarcação do território.

O levantamento do marco legal que constitui a política estadual quilombola,

principalmente o Decreto Estadual nº 11.850/2009 que institui a Política Estadual para

Comunidades Remanescentes de Quilombos, dispondo sobre a identificação, delimitação e

titulação das terras devolutas do Estado da Bahia por essas comunidades e a Lei 13.182

(BAHIA, 2014) que institui o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância

Religiosa. Na referida medida legal, destacamos o Fundo Estadual de Combate à Pobreza, que

no parágrafo primeiro no Art. 88 destina 10% do orçamento anual para as políticas antirracistas,

financiando os programas e projetos intersetorial e transversais de desenvolvimento da

população negra.

Um destaque nestes documentos é o Decreto Estadual nº 15.670 (BAHIA, 2014) que

aprova os Regulamentos do Sistema Estadual de Promoção da Igualdade Racial (SISEPIR) e

do Sistema de Financiamento das Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEFPIR).

Decreto que inicia o debate sobre o financiamento da política estadual quilombola a partir da

destinação do mínimo de 10,0% do orçamento anual do Fundo Estadual de Combate e

Erradicação da Pobreza (Funcep) para a efetivação das políticas de igualdade racial.

Outro documento que se destacou durante a pesquisa documental foi o Decreto Estadual

nº 15.671 (BAHIA, 2014), que regulamentou o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate a

Intolerância Religiosa (BAHIA, 2014) aos povos e comunidades tradicionais em território

estadual. Decreto que estabelece os procedimentos de consulta prévia em obras de

infraestruturas, que gerem impacto nos territórios quilombolas e atribui a Sepromi a efetivação.

Todo marco legal da política estadual quilombola foi estudado neste trabalho, a fim de

identificarmos as principais obrigações dos atores envolvidos nos processos e caminhos legais

para a implementação das políticas.

O procedimento de coleta de dados foi seguido pela observação participante, por ser

uma abordagem que dá ênfase às práticas, não somente aos relatos (GASKELL, 2002). O

instrumento também possibilitou a obtenção de informações no momento em que os fatos

ocorriam, de acordo com Richardson (2007) o uso da observação é importante por possibilitar

73

que presenciemos simultaneamente a espontaneidade dos eventos investigados. De acordo com

Adler e Adler (1987) a observação participante e ativa, nos possibilita ter papéis funcionais e

centrais o que facilita na aceitação do pesquisador na obtenção da confiança por parte dos

grupos. O envolvimento do autor com a Fotografia foi outro elemento fundamental para a

escolha do instrumento, pois as fotografias dos espaços observados ajudam a transmitir

características importantes do caso observado (DABBS, 1982).

A observação se deu no período entre janeiro de 2017 e março de 2018, período no qual

foram escritos 22 diários de campo, as observações foram feitas na comunidade quilombola do

Rio dos Macacos, reuniões da comissão pedagógica da Escola das Águas, em duas Audiências

Públicas no Ministério Público Federal, e em reuniões de lideranças comunitárias nas

comunidades quilombolas do Quingoma e em Conceição de Salinas.

Figura 4 – O quilombo de dentro

Fonte: Imagem do autor.

Devido à situação de conflito, onde as informações flutuam ao mesmo tempo em que

pesam e que tanto são utilizadas em favor como contra determinada causa o acesso para a

comunidade com o estrito intuito de pesquisa-la é praticamente impossível. Considerando

também que a comunidade teve experiências negativas ao que se refere a pesquisadores que,

por má fé ou inexperiência, terminaram por expor a comunidade do Rio dos Macacos com

informações que foram confidenciadas, acirrando as relações entre comunidade, Governo do

74

Estado e Marinha do Brasil. Nosso livre acesso à comunidade do Rio dos Macacos e aos outros

espaços dedicados à discussão do problema enfrentado por esta se deu por meio da atuação do

pesquisados enquanto educador da Escola das Águas, conforme supracitado, o que nos

permitiu, além do acesso, desenvolver uma relação de confiança com a comunidade e suas

lideranças. Acessando não somente os espaços políticos dentro e fora da comunidade, como

suas casas e roças.

A observação da Sepromi se deu nos eventos públicos cujos temas apresentados

dialogavam com o objeto da pesquisa. Participamos de seis19 eventos no período de observação,

quando pudemos observar as posições públicas do órgão. Outros elementos foram identificados

a partir do terceiro e último instrumento de coleta, as entrevistas.

Coletamos dados por meio de entrevistas em profundidade, instrumento que nos

possibilitou acessar dados que favorecessem o entendimento das relações entre os atores sociais

envolvidos nos processos políticos da comunidade. De acordo com Gaskell (2002) é

instrumento que nos permite entender com detalhes os valores, motivações, crenças e atitudes

comportamentais das pessoas em seus respectivos contextos. Richardson (2007) argumenta que

a entrevista em profundidade possibilita ouvir dos entrevistados o que estes consideram como

aspectos importantes do caso observado.

Para nossa investigação as entrevistas foram fundamentais para que pudéssemos

identificar e analisar criticamente as diferenças entre as posições públicas que os atores

tomavam e os interesses que efetivamente defendiam. Nas entrevistas tivemos falas que, mesmo

sabendo que eram gravadas, foram proferidas e certamente não seriam colocadas em um

contexto de diálogo entre as partes, ou se as fossem, seriam colocadas de maneira a suavizar a

ideia contida. Por este motivo optamos por não nomear os entrevistados, colocando apenas a

qual grupo pertencem, sendo estes: COMUNIDADE, SEPROMI ou MOVIMENTOS

SOCIAIS.

Dividimos as entrevistas em três partes: na primeira, objetivamos colher informações

gerais sobre o objeto de pesquisa, criar relação com os termos utilizados pelos atores sociais

envolvidos e conhecer os entrevistados, levantando a importância destes; a segunda parte

buscou compreender a interpretação dos entrevistados sobre as relações de poder entre

comunidade e Estado, a terceiro parte foi composta por perguntas elaboradas a partir da revisão

19 Os eventos foram: Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, roda de diálogo no dia 21/01/2018 no

Terreiro Tumba Junsara; Plenária Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Terreiros,

no dia 15/03/2018, no Fórum Social Mundial (FSM); duas atividades da Comissão Estadual de Sustentabilidade

de Povos e Comunidades Tradicionais (CESPCT) e; as duas Audiências Públicas no Ministério Público Federal.

75

de literatura e abordou principalmente os conceitos de assimetrias de poder, legitimação e lugar

de fala. O roteiro de entrevista teve como meta responder aos objetivos da pesquisa

(RICHARDSON, 2007).

A escolha dos entrevistados se deu pela capacidade que cada um possuía para atender

a este pressuposto, considerando a função de destaque que cada um desempenha no seu grupo.

Gravamos e transcrevemos 12 entrevistas, sendo estas, 4 com representantes da comunidade, 4

com representantes da Sepromi e 3 de movimentos sociais e 1 da sociedade civil, sendo este

último um ex-funcionário do Governo do Estado, que contribuiu para elaboração de alguns dos

documentos oficiais que compõem o marco legal da política estadual quilombola e foram

utilizados no desenvolvimento deste trabalho.

Além dessas, fizemos 10 entrevistas exploratórias onde aventamos os objetivos

propostos e ouvimos sugestões de atores e pares para a construção de nossas diretrizes. Essas

entrevistas foram realizadas sem uso de gravador e questionário, foram realizadas durante

momentos de observação, sempre que os sujeitos observados permitiam liberdade para

aprofundamento sobre o tema ou sobre a atividade desempenhada. Utilizamos esses momentos

para construir nosso roteiro final de entrevistas, refinar o nosso referencial teórico, definir os

sujeitos que seriam entrevistados na fase seguinte da pesquisa, ou seja, para efetivamente definir

as diretrizes do trabalho. Feito isto, tivemos o seguinte cenário de entrevistas:

Quadro 3 – Informações sobre entrevistas realizadas

Entrevistada (o) Grupo Identidade Tempo de entrevista

Comunidade 1

C1

Comunidade

quilombola do Rio dos

Macacos

Liderança

comunitária

quilombola

2 horas e 03 minutos

Comunidade 2

C2

Comunidade

quilombola do Rio dos

Macacos

Liderança

comunitária

quilombola

1 hora e 47 minutos

Comunidade 3

C3

Comunidade

quilombola do Rio dos

Macacos

Liderança

comunitária

quilombola

2 horas e 35 minutos

Comunidade 4

C4

Comunidade

quilombola do Rio dos

Macacos

Quilombola 1 hora 37 minutos

Secretaria 1

S1 Sepromi Gestão 1 hora e 15 minutos

Secretaria 2

S2 Sepromi Coordenação 1 hora e 25 minutos

Secretaria 3

S3 Sepromi Corpo Técnico 58 minutos

Secretaria 4

S4 Sepromi Corpo Técnico 1 hora e 12 minutos

76

Movimento 1

M1 Movimento Social Direitos Humanos 52 minutos

Movimento 2

M2 Movimento Social Jurídico 2 horas 07 minutos

Movimento 3

M3 Movimento Social Territorial 1 hora e 34 minutos

S. Civil

SoC1 Sociedade Civil Pesquisa 2 horas 45 minutos

Fonte: Elaboração própria.

4.3 Análise do conteúdo

Bardin (2004) define análise de conteúdo como o conjunto de técnicas de análise das

comunicações que visa, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do

conteúdo das mensagens, alcançar indicadores que permitam a inferência de conhecimentos

referentes às condições de produção e/ou recepção das mensagens.

Escolhemos como técnica de produção deste conhecimento a análise de conteúdo,

pois, entendemos que o caminho para o entendimento do nosso objeto perpassa pela

compreensão da vinculação entre a mensagem e o contexto no qual ela foi emitida. De acordo

com Franco (2003), a mensagem necessariamente apresenta um significado e um sentido.

Conforme Colbari (2014) a análise se inicia pela descrição analítica das características

do texto, seguido da interpretação. De acordo com o autor é o atributo da inferência que autoriza

que passemos da descrição para a interpretação, extraindo do texto os significados atribuídos à

mensagem, sejam estes culturais, individuais ou sociais.

De acordo com Franco (2003) cabe ao analista tirar o necessário das informações

tratadas pela mensagem que é manipulada por este, e suas conclusões, baseadas em suas

experiências, tendem a levar a produção de novos conhecimentos que estão além de próprio

conteúdo. Tal aplicação é fundamental para pesquisas qualitativas como esta por possibilitar

que a análise de um arsenal diverso de fontes de dados, como imagens, textos, áudios, vídeos e

performances.

Após a coleta inicial dos dados, seguimos para uma análise prévia, organizando as

informações coletadas. Separamos todas as informações coletadas conforme o tema a qual dizia

respeito (poder, política pública, quilombismo, comunidade, dentre outras). Processo associado

ao trabalho de observação no campo. Posteriormente, fizemos uma leitura flutuante do material

coletado, de acordo com Franco (2003) esse é um momento necessário para identificar o

conteúdo dos textos permitindo que o analista se deixe contaminar por emoções, impressões,

representações, conhecimentos e expectativas.

77

Após a escolha do material a ser utilizado, submetemos aos procedimentos analíticos

os materiais que identificavam a influência das relações de poder nos processos relacionais

entre a comunidade e o poder público. Observando quais destes tinham alguma conexão com a

literatura visitada. Seguiu-se esse passo o movimento de compreender as mensagens que esses

materiais traziam, processo que envolveu anotações, palpites, empreendimento de conexões

entre as diferentes possibilidades do texto de acordo como o processo dedutivo (FRANCO,

2003).

As categorias de análise foram elaboradas a partir do processo de diálogo que

estabelecemos entre o referencial teórico, nossos pares e o que diziam os dados coletados no

período exploratório. Estes estão apresentados no Quadro 4. As categorias foram elaboradas

em função da busca por uma resposta ao problema de pesquisa (FRANCO, 2003).

Quadro 4 – Categorias de análise

Conceito Definição Dimensões Categorias Autores Procedimentos

Metodológicos

PODER

Relação de

forças que

estruturam a sociedade.

Modo como

os atores sociais

interagem em

função de seus

interesses.

Assimetrias:

Os sujeitos sociais apresentam identidade própria com

capacidades distintas de interferir

no meio qual estão inseridos.

Níveis de

conhecimento e

informação.

Disposição de

recursos materiais.

Apropriação cultural diversa

(valores, crenças,

etc.)

Souza (2016);

Vargas

(2007)

Entrevistas,

Observação e

Documentos.

Legitimidade:

Percepção generalizada de que as

ações de uma entidade são desejáveis, apropriadas e

adequadas dentro de alguns

sistemas socialmente construídos de normas, valores, crenças e

definições.

Representatividade das

Lideranças.

Capacidade de

estabelecer agendas.

Representativida

de da agenda temática.

Lugar de Fala

Suchman (1995)Collins

(2000);

Ribeiro (2017)

Nascimento

et. Al. (2007)

Entrevistas e Documentos.

Posição / Interesse:

Em situações de conflito os atores sociais apresentam distinções

entre a posição pública que

adotam (papel) e os interesses que advogam.

Manifestações

públicas do

conflito

Desejos e os

motivos dos envolvidos no

conflito.

Filomena

(2006),

Nascimento et. Al. (2007)

Entrevistas e

Observação.

Fonte: Elaboração própria.

Abordagens que pretendem analisar a implementação de políticas públicas advogam

que a definição do problema que originou a implementação desta política influencia

diretamente a escolha das variáveis de análise, o foco da análise e as proposições decorrentes.

Uma política quilombola só poderá ser analisada com variáveis que compreendam que sejam

78

pertinentes às demandas originárias destes povos e comunidades tradicionais quilombolas.

Nesse sentido, selecionamos como categorias: assimetria de poder, legitimidade, lugar de fala,

além do debate ente posição e interesse.

4.4 O cenário do campo

O projeto posto para a comunidade quilombola do Rio dos Macacos vem se pautando

em práticas que expulsam seus residentes de seu território, alterando significativamente suas

vidas e sua cultura, projeto que se caracterizam pela suspensão de direitos previstos na

Constituição Federal e leva consequentemente ao conflito. Para consolidar nossa análise se faz

necessário construir um breve relato do conflito entre a comunidade quilombola do Rio dos

Macacos e o Estado brasileiro (Marinha do Brasil, Ministério da Defesa e Secretaria Geral da

Presidência da República) para posteriormente circunscrevê-lo na relação entre a comunidade

e o Governo do Estado da Bahia por meio da Sepromi.

Ressaltamos que embora a relação entre Marinha e a comunidade quilombola seja um

dos fatores que tornem a comunidade do Rio dos Macacos um lugar de resistência e

enfrentamento capaz de fornecer elementos construtivos para outros cenários de opressão e

enfrentamento que as comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, fundo e fecho de

pasto, etc.) estão sendo submetidas no país. Nosso objeto é a relação entre a comunidade e a

Sepromi, sendo esta, circunscrita dentro do conflito comunidade versus forças armadas.

79

5. RELAÇÕES DE PODER NO QUILOMBO RIO DOS MACACOS

Apresentaremos a seguir a contextualização do conflito no território do quilombo Rio

dos Macacos, com objetivo de situar os sujeitos no processo relacional entre comunidade e

Estado, nas suas diferentes formas de apresentação. Compreendemos assim que a compreensão

da conjuntura é parte fundamental da análise dos fatos.

5.1 Contexto

A comunidade Quilombo dos Macacos situa-se na Baía de Aratu, possui em seu

entorno “ecossistemas como floresta secundária, manguezal e restinga e é local de abrigo de

inúmeras famílias que utilizam do seu ecossistema diversificado para sua subsistência” (JESUS,

2014, p.13). Essa região vivenciou, nas últimas décadas, um processo de intensificação dos

investimentos industriais, principalmente no final da década de sessenta, com implantação do

Centro Industria de Aratu (CIA) em 1967. A área do quilombo sofreu diversas transformações

estruturais desde então, do ecossistema à população da área (JESUS, 2014). De acordo com

Jesus (2014):

Quando os projetos de desenvolvimento chegaram à Baía de Aratu, aquela região já

era o reduto de muitas comunidades tradicionais, entre elas, os descendentes de índios,

que viviam principalmente na região de Paripe, e de negros fugidos, que à época da

escravidão aproveitavam os altos morros e os locais de mata fechada para se

esconderem e constituir suas famílias. Nos dias de hoje, os remanescentes de

quilombo vivem os impactos gerados a partir da produção das grandes indústrias,

sendo os menos beneficiados com as instalações desses empreendimentos (p.13).

A área é ocupada por famílias descendente de escravos há mais de 160 anos conforme

acrescenta a entrevistada M1: “A fazenda pertencia à família Martins, por décadas dona de

grande parte do território do recôncavo baiano. Eles [família Martins] abdicaram da propriedade

de São Tomé de Paripe com a decadência do açúcar”. Segundo a entrevistada, com o abandono

das terras, os quilombolas continuaram no local fazendo uso da terra.

A localização (Figura 6) do quilombo é uma área tombada pela União Federal, hoje

administrada pela Marinha do Brasil, que constrói equipamentos e desenvolve atividades desde

a década de sessenta, como a construção da Vila Militar a partir da década de setenta. O

principal acesso para a comunidade se dá pela guarita da Vila Militar. Ao Norte do território

vivem 150 famílias assentadas pelo sindicato dos trabalhadores rurais de Simões Filho; ao Sul,

é cortado pela BA-528; ao Leste, pela Via Periférica, que cortou parte do Território da

Comunidade, ao Noroeste a Baía de Aratu (GEOGRAFAR, 2012).

80

Figura 5 – Localização geográfica do Quilombo Rio dos Macacos

Fonte: Imagem Google Maps editada por Cordeiro (2014).

Como exposto, desde 2009, a Marinha do Brasil requer a desocupação dos

quilombolas da área, por meio de ação reivindicatória proposta pela Procuradoria da União, na

Bahia, que solicitou a desocupação do local para atender as necessidades da Marinha.

Em setembro de 2011 a Fundação Cultural Palmares certificou o quilombo Rio dos

Macacos como uma Comunidade Remanescente de Quilombo (CRQ), após grande mobilização

da comunidade e de movimentos sociais que acompanharam o crescente processo de

perseguição aos quilombolas frente as recentes investidas de expulsão imposta pela Marinha.

Ainda em 2011, no mês novembro, o INCRA inicia a elaboração do Relatório Técnico de

Identificação e Delimitação (RTID).

O RTID delimitava o território quilombola em 301 hectares. Número este que reduzia

em 2/3 os 900 hectares originários20 da comunidade quilombola. Em dezembro de 2012, a

Secretaria Geral da Presidência da República apresenta a proposta do Governo Federal para a

Comunidade do Rio dos Macacos oferecendo, oficialmente, 20 hectares para titulação21.

A proposta imoral do Governo Federal foi recusada pela comunidade quilombola. No

mesmo ano, os olhares da sociedade civil, dos movimentos sociais e organizações em defesa

dos direitos humanos voltaram os olhares para a comunidade em decorrência das crescentes

denúncias de violência e supressão de direitos que os quilombolas estavam sendo submetidos,

20 Relatado por todos os quilombolas ouvidos nesta pesquisa que toda área hoje ocupada pela marinha se constituiu

como o Quilombo dos Macacos. 21 Ofício n. 299/2012/AE/SG/PR.

81

tendo sido, então, produzido um relatório de denúncia das violações provocadas pela Marinha.

O texto de 17 páginas foi encaminhado às Organizações das Nações Unidas (ONU) trazendo a

história do quilombo, informações sobre os processos judiciais e relatos dos quilombolas.

No documento a comunidade expos a necessidade de que órgãos públicos

internacionais e nacionais intercedessem pela garantia de uma série de direitos básicos que lhes

estavam sendo negados em função do conflito. Devido a configuração imposta pela Marinha,

de alto controle no território, a comunidade evidenciou uma série de dificuldades referente a

acesso água potável, saneamento básico, energia elétrica, saúde, o direito à moradia, a posse da

terra, inclusive tiverem cerceado o direito de ir vir. Foram evidenciadas também proibições de

práticas religiosas de matriz africana, a destruição de áreas sagradas como a Fonte de Luzia,

relatado pela entrevistada C2, além de perseguições diversas a moradores. A Marinha do Brasil

diante de exposição dos fatos negou todas as acusações contra a sua instituição. Sobre a relação

entre a comunidade e a Marinha, acrescentaram Cordeiro et al. (2016):

A instalação da Marinha no território fora marcada pela imposição de novos fluxos e

estranhas dinâmicas, dentre essas, destacam-se a expulsão de moradores através do

impedimento da construção ou reformas de suas casas, a negação da manutenção das

culturas de subsistência através dos roçados e do acesso à infraestrutura básica como

água e energia elétrica, além do ataque direto a religiosidade quilombola, culminando

no fechamento e na destruição de terreiros de candomblé (p. 3).

Mesmo com a elaboração do RTID, o INCRA não prosseguiu com a regularização

fundiária do território, a então crescente mobilização em torno do conflito deu a comunidade

condições de iniciar o longo processo de negociações, que se arrasta até os dias de hoje, com a

Marinha do Brasil, a Secretaria Geral da Presidência da República, a extinta Secretaria de

Políticas para Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), e suas assessorias representadas pelos

movimentos sociais (CPP, CDCN, AATR, etc.), com a mediação Ministério Público Federal e

Estadual.

Em maio de 2014, uma nova proposta que destinava 86 hectares é recusada pela

comunidade, de acordo com a Associação de Moradores do Quilombo Rio dos Macacos a área

destinada na proposta era inviável para a sustentabilidade da comunidade considerando as

perdas no território original e o posterior RTID do INCRA. A comunidade propôs uma

contraproposta que previa o uso compartilhado da barragem, o acesso a sítios sagrados e a

consolidação de área de produção agrícola e agroflorestal. Ficou-se evidente que o principal

motivo de divergência entre as propostas do governo e as respostas da comunidade é negação

por parte da primeira do acesso aos recursos hídricos pelos quilombolas, tanto ao Rio quanto à

barragem.

82

O governo Federal apresentou o que seria a última proposta à comunidade,

aumentando para uma área de 104 hectares. Área que representava a fragmentação do território

em duas glebas: a primeira, na área norte-noroeste do território, com 98,2755 ha; a segunda

com 5,8057 ha e está localizada a sudoeste - proposta que ignora as escolhas quilombolas

contrárias a divisão do território (POLLI et al. 2014).

Em 2015 é publicado no Diário Oficial da União a Portaria 623, que declara como

terras da comunidade, uma área de 301 hectares, com base do RTID, dos quais somente 104

hectares foram destinados para titulação de posse. Titulação e posse essas não realizadas até

então devido aos processos burocráticos e da instabilidade democrática instaurada a partir do

impeachment da presidenta Dilma.

Hoje, a justificativa oficial para a não demarcação e titulação é que se espera um

acordo entre as partes quanto a construção de um muro, já iniciada pela Marinha, que objetiva

separar a comunidade do rio e da barragem, alegando a garantia da segurança dos recursos

hídricos da região. De acordo com o comando da Marinha do Brasil a proteção do rio dos

Macacos é um procedimento para a defesa da Baía de Todos os Santos. A comunidade

quilombola se recusa a aceitar qualquer tipo de acordo que os impossibilite de ter acesso a fonte

de água, considerando que as casas não possuem rede de água para consumo. Privar o acesso a

água se traduz em privar condições de vida para a comunidade.

O processo do quilombo Rio dos Macacos evidencia que a titulação e regularização

fundiária de terras quilombolas envolvem inúmeras situações conflitantes, que relacionam uma

série de interesses que se contrapõem, envolvendo atores distintos e diversos, a exemplo de

fazendeiros, latifundiários e, inclusive, setores do Estado, como as forças militares do país

(CORDEIRO et al. 2014).

Conforme discutimos nas seções anteriores, o território quilombola extrapola os

sentidos do espaço geográfico configurando como um lugar de enfrentamento ao sistema de

opressões e subjugação que são históricos e se atualizam na modernidade. Enfrentar estes atores

que atuam em função do capital representa a preservação da vida quilombola.

Durante todo este processo a Sepromi se apresentou como mediadora do conflito

político. Institucionalmente a Secretaria esteve presente em seguidas rodadas de diálogo, e

fisicamente em 15 visitas técnicas ao quilombo Rio dos Macacos. O papel de mediação e a

viabilização de alternativas cabe ao Ministério Público da Bahia, entretanto, a Sepromi tem se

colocado nessa condição - quando busca atuar num fazer político de mediação passiva a

Sepromi atua de maneira pouco efetiva, considerando as suas obrigações legais.

Compreendemos mediação como uma forma através da qual as partes em conflito, auxiliadas

83

por um mediador, constroem ferramenta e possibilidades para que criem as condições de

solução do conflito (SANTOS et al. 2007).

Em 2014 a Sepromi destinou um montante de R$ 8 milhões do Fundo Estadual de

Combate e Erradicação da Pobreza, determinado pelo Estatuto da Igualdade Racial e de

Combate à Intolerância Religiosa, em benefício da comunidade. O recurso seria destinado a

assegurar serviços de habitação (R$ 3,6 milhões), que envolve construção e reformas das casas,

um sistema de abastecimento de água e inclusão produtiva (R$ 4,4 milhões).

Para este montante estavam previstas ações que compõem o Plano Estadual de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais 2016-2019,

desenvolvido pela Sepromi, que volta suas ações para 4 eixos principais, 1) Acesso aos

Territórios Tradicionais e aos Recursos Naturais; 2) Fomento e Produção Sustentável; 3)

Inclusão Social e 4) Infraestrutura. Para o quilombo Rio dos Macacos o montante estaria

previsto para os eixos de Fomento e Produção Sustentável e Infraestrutura. A Sepromi teve

como orientação a promoção da inclusão por meio das diferentes esferas que garantissem os

direitos básicos dos quilombolas, envolvendo, a elaboração e implementação de projetos de

garantia de acesso a saúde, formação, educação de qualidade, dentre outras iniciativas. Para o

Eixo de Infraestrutura estavam previstas, além das reformas e construções das casas, a

implementação de instrumentos de inclusão produtiva com a casa de beneficiamento e casa de

farinha.

Contudo, já na fase orçamentária do projeto a Sepromi alegou as primeiras

dificuldades no acesso à território quilombola considerando que a entrada oficial se dá pela

portaria da Vila Militar, mediante a autorização prévia do comando da Marinha – alegando que

não haveria como adentrar na comunidade por negativas da marinha, o recurso não foi

operacionalizado, virando moeda de negociação para exigir que a comunidade cedesse na

negociação.

Entre 2014 e 2017 o recurso do FUNCEP foi a bandeira da Sepromi para a execução

da política quilombola na comunidade. O recurso que esteve assegurado para melhoria da

qualidade de vida da comunidade nos eixos de Fomento e Produção Sustentável, Inclusão

Social e Infraestrutura, porém, não foi executado pelos impasses de relações de poder entre

Estado, comunidade e movimentos sociais.

Objetivamente, o Estado, a Sepromi alegou que foi impossibilitado pelo próprio

Estado (Marinha do Brasil) de executar a sua função. Vale ressaltar que essa não distinção entre

os poderes do Estado é determinante na leitura da comunidade acerca do conflito. Para o

quilombo, Sepromi e Marinha do Brasil representam figuras burocratas que tratam dos seus

84

interesses institucionais, enquanto a Marinha assume e defende o distanciamento da agenda

comunitária a Secretaria tenta defender o que lhe cabe no jogo dos poderes políticos.

5.2 Poderes Assimétricos

As relações de poder entre Governo do Estado e o quilombo Rio dos Macacos podem

ser descritas e analisadas a partir de uma ampla gama de vieses, conforme a fonte de

informações e envolvimento dos atores. A Sepromi, a Secretaria e seus agentes possuem uma

narrativa que não contempla a narrativa da comunidade, nem a dos movimentos sociais que

acompanharam o processo de escalada do conflito. As particularidades dessas diferenças estão

nas condições cognitivas, materiais e subjetivas que confere a cada sujeito coletivo a maneira

de interpretação dos fatos que lhe circundam, às identidades próprias que determinam a forma

de compreensão dos fatos (FOUCALT, 2003; SOUZA, 2016; VARGAS, 2007).

A comunidade apresenta a leitura de poder como força que controla suas vidas, o

entrevistado C3 nos apresenta poder como a capacidade:

Que eles [a Sepromi] tem de negociar as vidas dos quilombolas. Se eles sentam em

uma mesa de negociação e dizem o que podem ou não fazer com as nossas vidas, eles

têm poder, ou acham que têm. Se constroem ou não as casas que prometeram, se

colocam ou não a nossa água, esse é o poder que eles têm, de decidir como vivemos.

Se os outros [a Marinha] acham que podem decidir se a gente pode entrar, sair ou

receber visitas eles têm o poder. (ENTREVISTADO C3).

Ainda sobre a percepção do poder como uma capacidade controladora, a entrevistada

C1 pontua:

Poder é o jogo de brincar com nossas vidas, é quando a Secretaria não faz o que tem

que fazer e ninguém de lá [Governo] se coloca para assumir por que estamos até hoje

com as casas caindo na nossa cabeça, com nossos filhos apresentando vários

problemas de saúde, até psicológicos, poder é o que faz com que eles não atuem como

deveriam. Quem tem poder faz o que quer. (ENTREVISTADA C1)

A comunidade percebe o poder como ação, ou inação, do Governo do Estado que

reflete diretamente nas suas vidas, o poder da coisa prática que está intimamente ligada aos

interesses dos sujeitos que dominam a arena política, uma construção que remonta ao proposto

por Arendt (2010), que evidencia capacidade política de promover a ação baseada na

concordância dos executores políticos.

Enquanto para a Sepromi o poder está configurado como as relações de forças que

operam na implantação da política, sendo estas forças internas e externas. Iniciamos esta seção

analisando como as construções de identidade influenciam as relações de força entre

comunidade quilombola e Sepromi, buscando compreender como a interpretação desta

identidade influencia no relacionamento entre os sujeitos.

85

5.2.1 Das leituras identitárias

Existe uma grande diferença entre as atuações institucionais nas concepções das

políticas públicas e a efetiva prática dessas instituições, a primeira frequentemente remete a um

certo “idealismo estratégico”, que norteia os gestores públicos e está conectada aos

instrumentos legais que lastreiam os procedimentos institucionais, entretanto, a segunda nos

situa no âmbito das contradições do mundo real, onde os atores sociais se engalfinham pela

defesa e garantia de seus interesses. Assim percebemos as construções de identidade dos atores

Sepromi e da comunidade quilombola acerca da implementação do Decreto Estadual nº 11.850

(BAHIA, 2009), que define a política estadual quilombola.

A Política Estadual Quilombola (BAHIA, 2009) define que cabe ao Estado, por meio

da Sepromi e outras secretarias, a garantia da melhoria das condições de vida das comunidades

quilombolas, através do diálogo baseado no respeito às suas identidades e diversidades. Tais

orientações estão fortemente presentes no conteúdo das mensagens e documentos

institucionais, conforme pontua S1:

É uma Secretaria de igualdade racial e que por toda a sua natureza tem como missão

articular, coordenar as políticas que promovam a igualdade racial. Isso é obviamente

assegurar direitos, ampliar direitos, garantir implementação, articular o campo de

maneira fluida e quanto mais fluida maior será a minha possibilidade de articular uma

aplicação, uma entrega de uma política pública (ENTREVISTADA S1).

Contudo, logo após, completa a entrevistada:

Na medida que eu tenho um alinhamento com o gestor, se o gestor compreende a

política de igualdade racial, nós podemos ir um pouco mais rápido. Se [o gestor] não

compreende eu vou ter que me debruçar um pouco mais, explicar. Compreendido essa

parte, eu vou convencê-lo qual o tipo de ação que nós faremos. Enquanto isso o relógio

está correndo. São 4 anos de um programa de governo, onde a pasta que represento

demanda uma política de estado (ENTREVISTADA S1).

A teoria do marco legal se choca com a prática das relações de forças entre os

diferentes atores que compõem o governo, atores que atuam em defesa de interesses individuais

e coletivos distintos. Essas relações de poder dentro do aparelho do Estado conformam a

aplicação da política e, quando analisamos sob a ótica das políticas afirmativas, trazemos a

dimensão estratégica desses confrontos identitários, como parte da aglutinação política da

classe dominante nos interesses em relação a essas políticas. Neste sentido Poulantzas (1985)

argumenta:

Se tal ou qual aparelho detém o papel dominante no seio do Estado (partidos políticos,

parlamento, executivo, administração, exército), não é apenas porque ele concentre o

poder da fração hegemônica, mas porque ele consegue da mesma maneira, e ao

mesmo tempo, cristalizar a função político-ideológica do Estado diante das classes

dominadas (POULANTZAS, 1985, p. 163).

86

Receber a causa afirmativa, tal qual as forças pujantes dos diversos segmentos dos

movimentos negros, igualmente as forças populares dos movimentos rurais, segmentos que

foram subalternizadas durante todo o processo de formação política deste país, se evidencia

como estratégia de manutenção de disparidades e privilégios na atuação estatal que tende a

fortalecer a coalização política entre Estado e capital.

A temática da Sepromi é identitária, se refere à política para o povo preto e suas

demandas, tal política surge após séculos de manifestações e enfretamentos, não como atributo

de boa vontade do Estado. Tal enfrentamento se reflete na ação política, quando percebemos a

necessidade convencimento dos tomadores de decisão acerca da importância da política. A ação

estatal explicita interesses que, ao primeiro olhar, podem parecer difusos, mas a execução da

política se traduz e explicita um projeto de poder, nos quais políticas segmentais, para um

segmento da população caracterizado por um fator determinado, como a política quilombola,

não parece conter força eleitoral determinante ou suficiente para que sejam priorizadas.

Aqui temos uma divergência séria entre a presunção do instrumento legal e a sua

operacionalização. O Decreto Estadual nº 11.850 (BAHIA, 2009) é categórico ao afirmar que

“se faz necessária a instituição de políticas públicas que se constituam em um processo de

reparação pela dívida histórica do Estado para com essas comunidades negras na diáspora”,

ainda no decreto, sobre o objetivo geral da Política Estadual para Comunidades Remanescentes

de Quilombos lê-se que esta “tem por objetivo geral reconhecer, promover e proteger os direitos

das comunidades” (BAHIA, 2009).

Ao tempo que a política de Estado determina a obrigatoriedade deste instrumento legal

a política de governo, se é que é possível essa distinção, advoga por interesse outros.

Compreendemos tais escolhas, não como confusas ou acidentais, mas sim como fruto de um

projeto de poder que reconta a história, novamente sob a tutela do capital. É a ossatura material,

concreta que garante os mecanismos de reprodução dominação-subordinação a partir da

incorporação das lutas populares como meio de controle. (POULANTZAS, 1985).

O ano de 2014, primeiro ano do recorte da atuação da Sepromi, representou o terceiro

mandato consecutivo do Partido dos Trabalhadores no Governo do Estado e o quarto

consecutivo do partido na Presidência da república. Muitas lideranças dos movimentos negros

e quilombolas passaram a ocupar posições dentro do poder executivo na Bahia e na União,

como na própria Sepromi. No entanto, tal alinhamento partidário se mostrou incapaz de oferecer

condições para que a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial pudesse atuar de forma

objetiva para a solução do conflito aqui referido. No período, nenhuma das obras previstas nos

87

Eixos de Inclusão Social e Infraestrutura do Plano de Desenvolvimento Sustentável das

Comunidades e Povos Tradicionais foi executada.

Poulantzas (1985) registra como se processa sempre o retorno inevitável à pauta da

burguesia, mesmo que ocorram mudanças significativas em favor das classes dominadas, e

ressalta o fato de que o Estado tende sempre a reestabelecer a ordem, à relação de subjugação.

Isso se torna claro na percepção e fala do Entrevistado C3, representante do quilombo:

A Sepromi hoje é mais Governo que Comunidade nas questões das políticas públicas

para o território. Na mesa de reunião a pessoa X fala uma coisa para gente, e depois

divulga no jornal outra coisa. Como aconteceu em uma ocupação que fizemos na sede

da Secretaria, quando ela nos disse que tinha o dinheiro para fazer as casas e só estava

aguardando a demarcação sair no Diário Oficial. Quando a demarcação saiu ela disse

no Jornal A Tarde que precisava aguardar a titulação do território para executar a

política. A gente fica sabendo das coisas pelo jornal (ENTREVISTADA C3).

De acordo com Poulantzas (1985) as lutas populares estão inseridas na materialidade

institucional do Estado de maneira ativa, sendo utilizadas tanto nos enfrentamentos entre as

próprias frações do bloco dominante, como entre segmentos que estão no exercício do governo

(destacando sobretudo questões e interesse de caráter eleitoral) e no Ministério da Defesa. Na

verdade, existe um ímpeto colonial de dominação da comunidade, de controle político das

próprias lutas das classes dominadas, o que pode ser evidenciado a partir da aplicando o modelo

de Lynch22 relativo a dominação e controle a partir do fortalecimento da divisão entre os

subalternizados. Neste sentido apontou a entrevistada C1:

Eles jogam a gente contra a parede e fazem com que negociemos as vidas da

comunidade na base da ameaça. Eu sofro na pele isso até hoje, eles fazem o “trabalho

sujo” e dizem por aí que não resolveu determinado assunto por causa de fulano, jogam

a culpa em nós que fomos para as reuniões defender a comunidade, despejam a culpa

do Governo toda sobre nós. Jogando as pessoas da comunidade contra nós

(ENTREVISTADA C1).

Introduzindo a tipologia de identidade proposta por Castells (1999), percebemos que

a Sepromi por meio da identidade legitimadora que o Estado lhe confere, é induzida pelo

aparelho estatal, a conduzir sua legitimidade como aparato simbólico, o que para a lógica

dominante se representa como ferramenta de controle e racionalização da dominação. No

quilombo Rio dos Macacos a justaposição de dois tipos de identidades, sendo estas: a identidade

de resistência, marcada pela posição de enfrentamento à posição de subalternidade e omissão

das escolhas políticas do Estado. É quando a comunidade se coloca para a sociedade como

afirmação do Ser quilombola, em associação com entidades de diversos movimentos sociais,

22 Willie Lynch foi um proprietário de negros escravizados no Caribe (Caraíbas) conhecido por manter os seus

escravos disciplinados e submissos. A estratégia de Lynch estava baseada em utilizar as diferenças culturais dos

escravizados contra eles próprios. A falta de confiança entre os escravizados, ressaltada por essas diferenças,

faziam com que eles confiassem mais no senhor escravizador.

88

por meio de enfrentamento nas mídias. O segundo tipo é o de identidade de projeto – quando

os atores sociais, utilizando-se dos saberes tradicionais quilombolas e das formas de

enfrentamento, reafirmam o seu lugar na sociedade, enquanto povo consciente de direitos. A

primeira se refere ao entendimento da identidade, a segundo a seu uso.

Entendemos que além da estrutura de subordinação que a máquina, onde a Sepromi

está inserida, existe o fato preponderante do entendimento que a questão racial se resolve pela

representatividade, o Governo do Estado admite como resolução do problema a criação e

manutenção da Sepromi, enquanto comunidades tradicionais e movimento sociais percebem tal

fato como um dos meios possíveis para a resolução das desigualdades.

No entanto, comunidade e Sepromi indicam perceber as limitações da atuação da

Secretaria na implementação da política. Enquanto a estratégia do órgão estatal é ganhar o

possível, no que se evidenciou como uma estratégia de barganha, a comunidade, aplicando a

identificação de resistência, atua no que Carneiro (1947) chamou de estratégias de

aquilombamento, criando os elementos possíveis para a subversão do sistema de opressões.

Independente do fato das limitações políticas terem sido agravadas com o processo

impeachment da Presidenta Dilma, a comunidade se porta em defesa dos seus interesses

coletivos, conforme afirma a Entrevistada C2:

Antes haviam várias falhas, mas hoje está muito pior. A gente não quer acabar com a

Sepromi, a gente quer botar as pessoas contra a parede, como fazem conosco, para

que eles façam o trabalho deles. Eles não estão ali para fazer um trabalho para enganar

as comunidades, deveriam estar para nos defender (ENTREVISTADA C2).

Ainda em relação a percepção das limitações da atuação da Sepromi está posta a

questão da representação, do que tratou Poulantzas (1985), quando se refere ao deslocamento

da mobilização política das classes dominadas para o interior do aparelho de Estado, com o

objetivo de cristalizar a função político-ideológica do Estado diante das classes dominadas. Tal

construção é explicitada no receio da entrevistada S1, represente do governo, a quando pondera

sobre o risco de não conseguir pautar a agenda quilombola dentro do aparelho do Estado, o que

evidencia uma séria crise de legitimidade frente ao próprio poder público. Sobre tal

ordenamento o entrevistado S2 conclui:

Nós somos uma secretaria meio, uma secretaria sistêmica, e para mim, dadas a

característica do nosso estado com a maioria da população negra, isso se configura

como racismo institucional – termos uma secretaria que não é finalística, que articula.

Isso já é uma armadilha do ponto de vista do racismo institucional, por que nos coloca

muitas barreiras para chegarmos ao nosso público de maneira direta, na maioria dos

casos chegamos através de outros parceiros (ENTREVISTADO S2).

Quando uma Secretaria de Estado se coloca como vítima de racismo institucional do

próprio Estado podemos tirar duas conclusões: 1) O Governo do Estado da Bahia é uma

89

entidade racista; 2) A Sepromi, mesmo tendo legitimidade, dada sua vinculação ao governo,

não goza de legitimidade ou força institucional para o desempenhar de suas atividades. A

segunda conclusão é consequências da primeira, mas ambas são igualmente tristes.

A constatação que a máquina governamental é um sistema racista não afeta apenas as

relações entre essa máquina a as comunidades quilombolas, surte efeito em toda e qualquer

relação que o estado desempenhe na sociedade. Em um sistema racista, tudo que ecoar, ecoará

racista. Logo, o sistema de saúde pública, polícias, escolas públicas e judiciário são

reprodutores de uma lógica estruturante, e assim o são com a tutela do Estado que os envolve.

A legitimidade da atuação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial aqui pode

ser compreendida por dois pontos de observação, primeiro a legitimidade da Sepromi dentro

do aparelho do estado, segundo, e mais importante para a nossa pesquisa, a legitimidade dessa

atuação para as comunidades quilombolas.

5.3 Legitimidade

Legitimação é um instrumento de poder quando autoriza ou não as mais diversas

manifestações dos sujeitos, processo que se dá, como pontuou Falcone (2011), na relação entre

os sujeitos coletivos. Notoriamente a legitimação é balizada pelo processo anterior de

identificação desse sujeito, para consequente atribuição dos pressupostos que lhes são cabíveis.

Neste sentido, a atuação da Sepromi e a representação do quilombo Rio dos Macacos serão

legitimadas ou não a partir do processo relacional entre essas partes na conjuntura a qual se dá

essa relação.

A política estadual quilombola define que cabe ao Estado a aplicação dos instrumentos

como os Planos de Desenvolvimento Social, Econômico e Ambiental Sustentáveis para

Comunidades Remanescentes de Quilombos; a Sepromi é um dos órgãos definidos pelo Estado

como responsáveis pela elaboração de programas, ações e projetos destinados a

transversalização da política pública. Logo, o instrumento legal da política pública confere a

Sepromi a possibilidade da ação, do fazer, entretanto, no contexto do conflito a comunidade e

os movimentos sociais questionam a efetividade do órgão no que tange o exercício de suas

funções.

Observamos que não há credibilidade discursiva nem representativa do órgão para os

movimentos sociais e comunidades quilombolas, o que está diretamente ligado ao que

Habermas (1999) atribuiu aos contextos sociais e históricos que são fatores condicionantes para

a construção da legitimidade política. O Estado, ao longo da formação política nacional,

90

defendeu interesses que estiveram distantes dos quilombos. Fato que justiça, por exemplo, a

fala da Entrevistada C2, ao questionar uma reunião da Sepromi:

Teve uma reunião que a Sepromi que reuniu a Marinha e o Ministério Público Federal

e não se chamou a Comunidade. Eles não poderiam se reunir entre eles para tratar de

assuntos que definem a vida da comunidade. Estão negociando as nossas vidas. Não

somos gados ou coisa do tipo (ENTREVISTADA C2).

A percepção sobre a legitimidade da Sepromi para com a comunidade quilombola do

Rio dos Macacos é praticamente nula, a ponto da comunidade não admitir que um órgão do

Governo Estadual se reúna com outros órgãos do Governo Federal para tratar de temas que

abordam a situação da comunidade. Tal sentimento, observado em diversos momentos, é de

completo descrédito da Secretaria, no que se refere aos interesses defendidos por esta.

Quando abordada sobre a alegada falta de legitimidade por parte da comunidade a

Sepromi atribui essa percepção à urgência que os povos e comunidades tradicionais têm de ter

acesso às políticas, fazendo com que estes cobrem exacerbadamente. Analisando de acordo

com a tipologia de Suchman (1995), o modelo da legitimidade imposto pela Secretaria é

garantido pelos atributos morais, por refletir a avaliação normativa da instituição e suas

atividades. A existência de um marco legal e a concepção de que os gestores são e estão

autorizados a decidir pelos sujeitos da comunidade são suas garantias de legitimação.

Este modelo de legitimação confere com o que foi exposto anteriormente, ou seja, a

resolução de um problema só receberá o status de política pública, a partir do momento em que

os gestores tenham a percepção da necessidade, já que a eles é conferido o poder de escolha. A

legitimidade da atuação na esfera pública está ligada diretamente a autonomia das instituições

para a criação de possibilidades de atuação. No processo de execução de recurso destinado ao

Rio dos Macacos a Sepromi adota o discurso da incapacidade institucional para o atendimento

da comunidade, conforme relato:

A secretaria não pode instaurar um processo de licitação e depois não poder entrar na

comunidade. Não podemos abrir um processo sem a autorização de acesso. Entende?

Então, tem limites institucionais. Precisamos cuidar do rito institucional se não vamos

presos. Hoje há uma criminalização do trabalho do gestor. Então nós não podemos, até

por que a gente não conseguiria passar, o estado da Bahia não conseguiria passar, e

dentro do pacto federativo, não é assim que se procede (ENTREVISTADO S3).

Os limites institucionais identificados pelo órgão explicitam os motivos alegados da

não atuação efetiva da Sepromi durante o período analisado. Desse modo, se explicita a

natureza da crise de legitimidade da atuação da Secretaria, crise que alcança a agenda

quilombola no estado. Ao tempo em que a as comunidades se fortalecem a partir do

enfrentamento coletivo, novamente reproduzindo os valores da quilombagem, embate que

91

exigia o aperfeiçoamento das práticas de enfrentamento, quão mais os quilombos eram

perseguidos.

Fortalecimento, nessa leitura, compreende o reforço da identidade quilombola,

associada à busca por legitimação das demandas da comunidade. Comunidades e movimentos

sociais compreenderam esse processo como a construção e posicionamento do lugar de fala

desses sujeitos, que foram silenciados por séculos. Além de um recurso discursivo, a percepção

do lugar de fala remete ao entendimento da necessidade de valorização dos saberes e das

experiências diversas. A relação de poder analisada nessa pesquisa demonstrou que a

compreensão desse fenômeno permite a compreensão de como se processa o seu exercício.

5.4 Lugar de fala

Lugar de fala é lugar de poder, é o lugar de onde os sujeitos coletivos formulam e

reverberam suas demandas. Ciclos formativos com os movimentos sociais são exemplos de

como as bases da reafirmação desse lugar de fala foi construída a partir das redes. Na ponta,

isso se traduziu nas afirmações de Sepromi segundo as quais o não avanço das políticas públicas

na comunidade se deve às interferências dos movimentos sociais nas decisões da comunidade

no processo de negociação com o Estado. Em reposta a essa formulação a Entrevistada M2

afirma:

Algumas organizações e algumas vozes acham que se a gente falar vai criar um tipo

de posição nas comunidades quilombolas. Isso é a coisa mais desrespeitosa, porque a

liderança quilombola tem toda autonomia para tomar suas decisões. São pessoas

muito firmes na luta. São pessoas que nos ensinam a luta todos os dias. E a gente não

vai botar nada na cabeça das pessoas, para impedir o processo de negociação. Quando

elas se negam a aceitar as propostas é pelo sentido aviltante das propostas, é pela

feiura das propostas, é pela brutalidade política que comparece nas propostas. É por

isso, que as comunidades se negam (ENTREVISTADA M2).

A história se repete no que se refere às conquistas de lutas encapadas pelos

movimentos sociais, tal qual as leis abolicionistas e as políticas afirmativas, a marginalização

dessas influências se evidência como instrumento do estado para a manutenção dos

tensionamentos. Sobre isso completa a entrevistada:

Então é por isso que a gente fez questão de falar e enfrentar a violência política,

especialmente num ambiente dominado. Hoje, nós estamos vivendo o horror da

intervenção. A intervenção se alastra do Rio de Janeiro para o país e a gente fica

incomodada, sim. Não é porque a gente participa/dialoga que a gente vai influenciar.

As lideranças, as populações se negam a aceitar porque é impossível aceitar, ficar de

joelho para os capitalistas. É impossível ficar de joelhos para a Casa Grande. É

impossível você aceitar uma proposta que vai lhe levar à morte coletiva

(ENTREVISTADA M2).

92

Os lugares de fala, aqui como os lugares de poder, entre quilombo, movimentos sociais

e Estado são lugares distintos que presam por lógicas distintas de comportamento e

comprometimento com o conflito. O ativo que a comunidade do Rio dos Macacos busca nesta

relação é diferente do capital que determinada a atuação da liderança social, que é diferente do

ativo requerido pelo Estado. Tal aspecto influencia de maneira heterogenia as relações de poder

entre esses sujeitos sociais. Como, por exemplo, o comportamento em um debate público,

colocado por M3:

Há dificuldade quando as pessoas estão discutindo com a gente, formando um

movimento, na luta, que acredita na coletividade. É que a gente não tem efetivamente

um patrão para dizer “cale a boca”, “vá devagar, senão vou falar com fulano que

domina sua cabeça para você parar”. Nós somos pessoas com autonomia política. Nós

somos pessoas que creditam na luta e no direito da população de se levantar frente à

brutalidade do capital. Nós sabemos, também, que o direito é menos a lei e mais o

jogo político perverso daqueles que tem poder (ENTREVISTADO M3).

Autonomia política como reafirmação do lugar de fala é reposicionar os atores na

relação de força que se encontram no campo da implementação das políticas quilombola na

Bahia. A busca pela diminuição das diferenças que tornam assimétricas as relações entre

comunidades quilombolas e Estado. A luta das comunidades quilombolas não se dá apenas pela

terra, se dá em grande escala pela reprodução e manutenção da vida. Negociar com o estado

nesse contexto é negociar as próprias vidas. Esse aspecto da relação é determinante na

percepção do quilombo Rio dos Macacos e esses sujeitos sociais têm consciência que toda e

qualquer decisão tomada frente ao conflito terá impacto definitivo em suas vidas. O caráter

transitório da política de governo da Sepromi tende a minimizar esse efeito nas decisões do

corpo técnico da Secretaria.

5.3 Posição versus Interesse

Por fim, outro elemento destacado na relação de forças é a diferença latente entra a

posição pública tomada pelos atores sociais e seus interesses. A percepção dessa diferença pode

parecer subjetiva ao extremo, entretanto, ao se tornarem figuras públicas, os atores terminam

por frequentemente evidenciar suas escolhas dentro e fora da arena política, o que dá a

possibilidade de se analisar suas orientações.

A comunidade quilombola do Rio dos Macacos é hoje representada por três lideranças

mantêm o diálogo com a Sepromi, dessas, duas se destacam pela capacidade de representar os

interesses coletivos. O apoio técnico oferecido por entidades dos movimentos sociais,

principalmente aquelas destinadas a prestar assessoria jurídica, vêm garantindo que esses

interesses coletivos se mantenham frente aos interesses particulares, considerando que todas as

93

lideranças alegam terem sido assediadas pelo Estado no objetivo de fornecer concessões em

troca de benefícios próprios. Não identificamos na atuação política do quilombo distinção entre

a posição adotada publicamente e os interesses que advogam.

Essa característica marcante das situações de conflito tende a ser percebida a partir da

projeção pessoal de indivíduos ou ganhos materiais ou simbólicos de grupos que não estavam

necessariamente pactuados pela visibilidade gerada. Tal fato é observado na atuação de

lideranças dos movimentos sociais que assessoraram a comunidade nos últimos quatro anos.

Vale ressaltar que mesmo essa projeção tem possibilitado a obtenção de ganhos simbólicos para

as lideranças, o que seria problemático é se os interesses dos atores fossem priorizados em

detrimento dos interesses da comunidade quilombola. O que não observamos durante o período

analisado.

No que se refere à Sepromi, as posições públicas representam um ponto de atuação

institucional, que objetiva se distanciar dos interesses dos atores públicos que compõem a

máquina. O perfil militante do corpo técnico da Secretaria garante existir uma grande diferença

entre os interesses desses atores, evidenciados nas conversas informais, e a posição pública que

assumem, posta nos informes e nos diálogos formais. Entretanto, estes atores públicos atuam

na reprodução do projeto de governo, da máquina, ressaltando nas suas escolhas a ideia de

transitoriedade de sua atuação. Novamente, a Sepromi no fazer da política expressa

transitoriedade.

Compreendemos, como dos resultados dessa análise que o corpo técnico da Sepromi,

em sua maioria formado por sujeitos oriundos dos movimentos sociais, se percebe enquanto

parte da máquina de um Estado que atua com um projeto de coalização política, projeto este

que a contragosto de seus agentes, engessa o fazer político e dá condições para a manutenção

do quadro. Neste caso, o interesse institucional (Governo) prevalece ante os interesses da

Sepromi.

94

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa jornada de pesquisa se caracterizou por uma imersão na realidade da

comunidade quilombola do Rio dos Macacos, o que suscitou a possibilidade de realização de

um estudo de caso profundo sobre a relação de poder entre a comunidade e seu entorno. A

hipótese que originou essa pesquisa conferia ao conflito entre comunidade e marinha do Brasil

o caráter empoderador, empoderamento aqui sempre estará associado ao conceito de

autonomia, neste caso, autonomia política. Assim entendíamos que a luta era um elemento

estruturante das relações comunitárias e reforçava os atributos de comunidade quilombola.

Percebemos a tempo que, por mais que a identidade quilombola fosse buscada e

reconhecida após as primeiras investidas do Estado contra a comunidade, os modos de relação

quilombola já eram reproduzidos pelos moradores da comunidade por sua formação histórica.

Então, nas suas relações a luta pela vida e reprodução dos modos vida se deu como

consequência do ser quilombola, não como causa.

A comunidade está inserida numa realidade com condições de vida extremamente

precárias, não há saneamento básico, energia elétrica, além de escassez dos serviços básicos

como saúde e educação. Tal fato é gritante quando identificamos que a comunidade está

localizada a metros da Vila Militar, que dispões de todos estes tipos de serviços.

A percepção que é obrigação constitucional do Estado a defesa e garantia de

sobrevivência dos territórios quilombola redesenhou nossa busca para o entendimento dos

elementos que configuram a relação entre esse estado e a comunidade. Neste processo

identificamos que as relações de poder entre os diferentes atores da esfera social determinam

os processos de implementação de políticas públicas. Analisar a natureza dessas relações de

poder tornou-se nosso objetivo.

Nos embasamos na compreensão de que o processo de formação social do Brasil forjou

essas situações de miserabilidade enfrentadas pelas comunidades quilombolas. Esse lastro

histórico não se dissolve sem a presença do poder público, cabendo, como pontuou Almeida

Júnior (2012), a construção de políticas públicas e práticas conjuntas com a sociedade para uma

possível reversão deste quadro. O compromisso legal que o Estado assume, desde a

Constituição Federal de 1988, e posteriormente com a promulgação da Lei 4.887 (BRASIL,

2003), indica o reconhecimento da obrigação de amparo para os territórios de quilombo.

Ao destinar uma Secretaria exclusiva para a Promoção da Igualdade Racial, o Estado

da Bahia pareceu se colocar como corresponsável pela reversão deste cenário de desigualdades,

contudo, nos últimos anos a Sepromi parece ter esbarrado num modelo de engessamento

95

técnico, atuando com pouca eficácia nas questões vitais das comunidades. Essa situação

evidencia que a absorção da causa quilombola pelo Estado não representa, necessariamente, a

promoção efetiva de desenvolvimento para povos e comunidades quilombolas.

No entanto, é evidente que o Estado percebe a criação da Sepromi e a sua atuação

como a resolução do problema das questões negras, quando em verdade, essa se apresenta como

um dos diversos instrumentos capazes de contribuir com a luta pela igualdade racial. Perceber

a Secretaria como fim tem sido prejudicial para a Sepromi e principalmente para seu público

alvo, aqui nos referimos às comunidades quilombolas. Colocamos tal percepção estatal no

âmbito das estratégias de dominação e controle das pautas populares.

Uma das vias que buscamos para compreender os processos de inserção da pauta

quilombola no Estado foi a prerrogativa crítica de compreensão do papel deste estado. O

pensamento crítico aqui é analisado como ferramenta de emancipação e luta frente ao processo

de opressão capitalista colonial. O genocídio e a escravidão, a servidão e a violência, a opressão

e o saqueio são partes constitutivas da modernidade, são seu lado oculto, sua colonialidade.

Segundo Porto-Gonçalves (2002), o sistema-mundo moderno é sobretudo colonial, considerar

esse aspecto é observar o sistema mundo com um espaço-mundo integrado. O processo imposto

ao quilombo Rio dos Macacos se repete ao longo dos anos, estando pautado no modelo de

desenvolvimento que, deliberadamente, ignora os sujeitos viventes que estão à margem da

lógica do capital, como território quilombola.

A garantia que os processos democráticos ocorram na modernidade sugere que os

povos quilombolas possam se constituir com base na suas espistêmes e práticas, fugindo aqui

do essencialismo puramente estratégico ou utópico. Mais do que viabilizar o acesso as

ferramentas de decisão e controle social – como reforma agrária ou conquistas econômicas – o

processo passa por tomar esse movimento de descolonização como o resultado de um impulso

democrático transformador e de uma luta conduzida por atores políticos e sujeitos coletivos.

Concluímos que para o quilombo, viver é um ato político, logo, o processo

democrático perpassa necessariamente pela criação de condições de sobrevivência para os

povos e comunidades tradicionais. Os sujeitos do quilombo Rio dos Macacos evidenciaram em

diversas oportunidades o temor por suas vidas no trato com o Estado, aspecto que se traduz

como a operacionalização do biopoder foucaltiano. Se relacionar com Estado para essas pessoas

é negociar suas vidas, enquanto para o governo tal relação está no bojo das relações políticas.

Os quilombos se estabeleceram pelo território nacional como núcleos paralelos de

poder, unidades de luta e enfretamento que contribuiu para a ruína do escravismo. Hoje, a

quilombagem ainda se evidencia como organizadora da atuação quilombola. Assim o é no

96

quilombo Rio dos Macacos e na estrutura organizativa entre outros quilombos em Salvador e

no Recôncavo.

Destarte, as relações de poder entre Sepromi e Rio dos Macacos se constituem por

bases diferenciadas e se desdobram em interesses difusos. Enquanto o quilombo atua pela

garantia da sobrevivência expressa na titulação e posse da terra e no acesso a água, o Estado,

que rege a Sepromi, se perde de maneira intencional nos interesses políticos que regem a lógica

da barganha política patrimonialista. Apesar de evidenciarmos alguns esforços pessoais na

implementação da política estes não garantem a efetividade e a criação de condições estruturais

para alterar a lógica.

Compreendemos as relações de poder entre Estado e quilombo no período analisado

como um processo de descrédito, tanto representativa quanto discursiva. Regida pela

constituição identitária desses sujeitos, identificamos uma atitude de enfrentamento e

resistência pelos quilombolas, enquanto a Sepromi atua no campo das possibilidades políticas,

subordinada aos interesses da máquina política, esboçando baixa legitimação dentro do próprio

aparelho. Tal descrédito promove a crise de legitimidade que fez com que entre 2014 e 2018 a

política estadual permanecesse no papel, mesmo tendo sido debatida em sucessivas mesas de

diálogos e eventos públicos. A falta de credibilidade e legitimidade de alguma das partes é um

fator condicionante para a expansão do conflito na relação entre quilombo e Sepromi, além do

conflito já existente pela terra e água.

Por fim, identificamos que um dos principais desafios e limitações para a construção desse

trabalho a materialização da análise do conceito de poder no contexto das relações entre os

atores sociais descritos. O que aqui qualificamos como poder ou relação de poder é percebido,

vivido e se manifesta de maneira distinta pelos sujeitos sociais aqui analisados – no convívio

com o quilombo e com o estado, frequentemente, novos elementos se apresentavam, desafiando

a construção do modelo de análise em curso, à exemplo do que é qualificado como racismo

institucional, que não é apresentado incialmente pela Sepromi como fator impeditivo à sua

atuação, mas aparece em todos os discursos dos vários sujeitos sociais na nossa fase final de

coleta.

Devido à escassez de tempo não tivemos condições materiais para estabelecer um debate

teórico profundo sobre o Racismo Institucional, considerando a incidência deste conceito /

praticas nas observações finais. Sugerimos que esta seja uma dimensão de análise a ser

explorada por pesquisas que busquem investigar temas relacionados a questão racial em um

ambiente organizacional. Como identificamos, o racismo estrutural conforma todas as relações

que se dão dentro do sistema, se manifesta, portanto, no âmbito das organizações. Esse

97

fenômeno precisa ser convertido em objeto de estudo, fato precisa ser considerado nas análises

das complexas relações entre raça, classe e poder.

98

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ANEXO I

DECRETO Nº 11.850 DE 23 DE NOVEMBRO DE 2009

Institui A Política Estadual Para Comunidades Remanescentes

De Quilombos E Dispõe Sobre A Identificação, Delimitação E

Titulação Das Terras Devolutas Do Estado Da Bahia Por Essas

Comunidades, De Que Tratam O Art. 51 Do Ato Das

Disposições Constitucionais Transitórias Da Constituição Do

Estado Da Bahia De 1989.

O GOVERNADOR DO ESTADO DA BAHIA, no uso da atribuição

que lhe confere o art. 105, V, da Constituição do Estado da Bahia, e de acordo com o

art. 51 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado

da Bahia e art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição

da República Federativa do Brasil,

considerando que o Estado da Bahia possui o maior contingente de comunidades

certificadas pela Fundação Cultural Palmares ? FCP, para as quais se faz necessária a

instituição de políticas públicas que se constituam em um processo de reparação pela

dívida histórica do Estado para com essas comunidades negras na diáspora;

considerando que o aludido art. 51 do Ato das Disposições Transitórias da

Constituição do Estado da Bahia é norma constitucional que atribui direito e garantia

fundamental, portanto dotado de natureza auto-aplicável;

considerando que cabe ao Estado garantir a melhoria das condições de vida dessas

comunidades, através do diálogo baseado no respeito aos seus processos organizativos

e às suas práticas comunitárias, ou seja, às suas identidades e diversidades;

considerando que as ações a serem viabilizadas devam se pautar pela interação entre

os conhecimentos técnico-científicos e os conhecimentos tradicionais e comunitários,

de modo a garantir o empoderamento e a sustentabilidade das comunidades de forma

coletiva e solidária,

107

D E C R E T A

Art. 1º - Fica instituída, nos termos deste Decreto, a Política Estadual

para Comunidades Remanescentes de Quilombos no Estado da Bahia, desenvolvida

a partir de um conjunto de ações e atividades intersetoriais sistemáticas, articuladas

entre os órgãos da Administração Direta e Indireta.

Art. 2º - A Política Estadual para Comunidades Remanescentes de

Quilombos tem por objetivo geral reconhecer, promover e proteger os direitos das

comunidades, respeitando suas identidades, formas de organização e instituições.

Art. 3º - São objetivos específicos da Política Estadual para

Comunidades Remanescentes de Quilombos:

I -promover, com fundamento no Decreto Federal nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, o acesso às políticas públicas sociais e de infra-estrutura, tendo em vista a sustentabilidade social, econômica, cultural e ambiental das comunidades;

II -apoiar os processos de fortalecimento institucional, valorizando as formas de organização, conhecimentos e práticas historicamente construídas nas comunidades;

III realizar a discriminação administrativa para identificação, delimitação e titulação das terras devolutas estaduais ocupadas por Comunidades Remanescentes de Quilombos, que estejam sendo por eles requeridas.

Art. 4º - Consideram-se Comunidades Remanescentes de Quilombos,

para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto

atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,

com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão

histórica sofrida, nos termos do Decreto Federal nº 4.887, de 20 de novembro de 2003.

Parágrafo único - Serão objeto da Política Estadual para Comunidades

Remanescentes de Quilombos, aquelas reconhecidas pela Fundação Cultural

Palmares do Ministério da Cultura, nos termos do Decreto Federal nº 4.887, de 20 de

novembro de 2003.

108

Art. 5º - A Política Estadual para Comunidades Remanescentes de

Quilombos será implementada com base nos seguintes instrumentos:

I - os Planos de Desenvolvimento Social, Econômico e Ambiental Sustentáveis, consideradas as especificidades das Comunidades Remanescentes de Quilombos;

II -o procedimento de discriminatória administrativa rural;

III - o Plano Plurianual - PPA.

CAPÍTULO I

DA IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DAS TERRAS ESTADUAIS

DEVOLUTAS OCUPADAS POR COMUNIDADES REMANESCENTES DE

QUILOMBOS

Art. 6º - São terras devolutas ocupadas por Comunidades

Remanescentes de Quilombos as terras estaduais não destacadas do patrimônio

público, desde que utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social,

econômica e cultural, sobre as quais incidirá procedimento com vistas à transferência

da propriedade definitiva, a título gratuito.

Art. 7º - A transferência da propriedade definitiva será feita às

Comunidades Remanescentes de Quilombos que as ocupam, após o procedimento de

discriminatória administrativa rural para identificação, delimitação e titulação das

terras devolutas do Estado da Bahia, na forma que a Lei dispuser.

§ 1º - O procedimento de discriminatória administrativa rural,

conforme a Lei Federal nº 6.383/76 e a Lei Estadual nº 3.038, de 10 de outubro de

1972, caberá à Secretaria da Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária - SEAGRI,

através da Coordenação de Desenvolvimento Agrário - CDA.

§ 2º - O procedimento de discriminatória administrativa rural será

iniciado de ofício pela CDA ou por requerimento de associação interessada dirigido

à Secretaria de Promoção da Igualdade - Sepromi.

§ 3º - Para o cumprimento da atribuição a que se refere o caput deste

artigo, a SEAGRI poderá estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos

similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do

Distrito Federal, organizações não- governamentais e entidades privadas, observada

a legislação pertinente.

§ 4º - Será garantido às Comunidades Remanescentes de Quilombos o

acompanhamento do procedimento de discriminatória administrativa rural.

109

§ 5º - As Comunidades Remanescentes de Quilombos serão

representadas por suas associações legalmente constituídas.

Art. 8º - A transferência da propriedade será reconhecida e registrada

no Cartório de Imóveis competente, em favor da associação representativa da

comunidade respectiva a que se refere o art. 4º, caput, deste Decreto, com obrigatória

inserção das cláusulas de indivisibilidade, intransferibilidade e inalienabilidade, na

forma que a Lei dispuser.

CAPÍTULO II

DOS PLANOS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL, ECONÔMICO E

AMBIENTAL SUSTENTÁVEIS DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE

QUILOMBOS

Art. 9º - Os Planos de Desenvolvimento Social, Econômico e

Ambiental Sustentáveis para Comunidades Remanescentes de Quilombos têm por

objetivo nortear a implementação da Política Estadual de que trata este Decreto,

devendo contemplar programas, projetos e ações, com definição de metas, recursos e

responsabilidades dos órgãos públicos envolvidos na sua execução.

Art. 10 - A dimensão da cultura imaterial, conforme definida pela

política cultural do Estado, deverá ser um dos pilares da construção dos Planos que

levarão em conta os seguintes eixos, transversalizados pelas dimensões racial, de

gênero e geração:

I - qualidade de vida: educação, meio ambiente e educação ambiental, saúde, saneamento básico, segurança alimentar, esporte e lazer, energia elétrica, infra-estrutura de estradas e meios de transporte e habitação;

II - geração de renda com sustentabilidade ambiental: utilização da terra, infra- estrutura produtiva, trabalho e geração de renda, assistência técnica, qualificação profissional e gerencial;

III - equidade de gênero, racial e geracional: ações voltadas para as mulheres, juventude e idosos e enfrentamento à violência contra as mulheres;

IV - fortalecimento e empoderamento das comunidades: história, memória e cultura, documentação e assistência social, acesso às tecnologias adaptadas, com enfoque em produção, informação e comunicação;

110

V - participação e controle social: acompanhamento e monitoramento dos Planos.

Art. 11 - Os Planos poderão ser referidos a uma comunidade

remanescente de quilombos ou a um conjunto de comunidades no mesmo território,

entendido este enquanto espaço necessário para a garantia de áreas de moradia, da

reprodução econômica, social e cultural, bem como dos recursos ambientais

necessários à preservação dos costumes, tradições, cultura e lazer.

Parágrafo único - Os Programas e ações específicos de cada

comunidade remanescente de quilombo serão definidos em reuniões públicas, estando

garantida a sua participação em todas as etapas de implementação.

Art. 12 - Os Planos de que trata a Política Estadual para Comunidades

Remanescentes de Quilombos serão desenvolvidos e executados por um Grupo

Intersetorial composto por:

I -01 (um) representante da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial;

II -01 (um) representante da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Pesca e Aquicultura;

III -01 (um) representante da Secretaria do Meio Ambiente;

IV -01 (um) representante da Secretaria da

Saúde; V -02 (dois) representantes da

Secretaria de Desenvolvimento Urbano;

VI -01 (um) representante da Secretaria de Desenvolvimento Rural;

Redação de acordo com o Decreto nº 16.334, de 30 de setembro de 2015. Redação original: "I - 01 (um) representante da Secretaria de Promoção da Igualdade;"

Redação de acordo com o Decreto nº 16.334, de 30 de setembro de 2015. Redação original: "II - 03 (três) representantes da Secretaria da Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária;"

Redação de acordo com o Decreto nº 16.334, de 30 de setembro de 2015. Redação original: "V - 03 (três) representantes da Secretaria de Desenvolvimento Urbano;"

111

VII -01 (um) representante da Secretaria da Educação;

VIII -01 (um) representante da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação;

IX -01 (um) representante da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte;

X -01 (um) representante da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social;

XI -02 (dois) representantes da Secretaria de Cultura;

XII -01 (um) representante da Secretaria de Relações Institucionais;

XIII -01 (um) representante da Secretaria de Infraestrutura;

XIV -01 (um) representante da Secretaria de Planejamento;

XV -01 (um) representante da Secretaria de Políticas para as Mulheres;

XVI -01 (um) representante da Secretaria de Infraestrutura Hídrica e Saneamento;

XVII -01 (um ) representante da Secretaria de Desenvolvimento Econômico;

XVIII -01 (um) representante da Superintendência Baiana de Assistência Técnica e Extensão Rural - BAHIATER;

Redação de acordo com o Decreto nº 16.334, de 30 de setembro de 2015. Redação original: "V I - 01 (um) representante da Secretaria de Desenvolvimento e Integração Regional;"

Redação de acordo com o Decreto nº 16.334, de 30 de setembro de 2015. Redação original: "X - 01 (um) representante da Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza; e"

Redação de acordo com o Decreto nº 16.334, de 30 de setembro de 2015. Redação original: "XI - 01 (um) representante da Secretaria de Cultura."

112

XIX -01 (um) representante da Coordenação de Desenvolvimento Agrário - CDA;

XX -01 (um) representante da Companhia de Desenvolvimento a Ação Regional - CAR.

Parágrafo único - Os membros do Grupo Intersetorial de que trata o

caput deste artigo serão indicados, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, a partir da

publicação deste Decreto, pelos respectivos Secretários e nomeados pelo Governador

do Estado.

Art. 13 - Caberá à Sepromi:

I - a coordenação do Grupo Intersetorial responsável pela elaboração dos Planos de Desenvolvimento Social, Econômico e Ambiental Sustentáveis; e

II - o monitoramento da execução de programas federais para Comunidades Remanescentes de Quilombos, no âmbito do Governo do Estado.

CAPÍTULO III

DISPOSIÇÕES

FINAIS

Art. 14 - O Grupo Intersetorial previsto no art. 12 deste Decreto

apresentará, à Secretaria de Promoção da Igualdade, as ações contempladas no Plano

Plurianual - PPA para os Territórios de Identidade onde se localizem Comunidades

Remanescentes de Quilombos, com indicativo dos recursos comprometidos ou que

possam vir a ser assegurados por fontes externas.

Parágrafo único - A apresentação das ações de que trata o caput deste

artigo será feita num prazo de até 90 (noventa) dias, contados a partir da nomeação

dos representantes que compõem o Grupo Intersetorial previsto no art. 12 deste

Decreto.

Art. 15 - A Secretaria da Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária -

SEAGRI, através da Coordenação de Desenvolvimento Agrário ? CDA, apresentará

ao Chefe do Poder Executivo instrumentos legais que se fizerem necessários ao

aperfeiçoamento da legislação estadual no que se refere às Comunidades

Remanescentes de Quilombos.

Incisos XII a XX acrescidos ao art. 12 pelo Decreto nº 16.334, de 30 de setembro de

2015.

113

Art. 16 - Este Decreto entrará em vigor na data de

sua publicação. Art. 17 - Revogam-se as disposições

em contrário.

PALÁCIO DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA, em 23 de novembro de 2009.

JAQUES WAGNER

Governador

Eva Maria Cella Dal

Chiavon Secretária

da Casa Civil Luíza

Helena de Bairros

Secretária de Promoção da

Igualdade Roberto de Oliveira Muniz

Secretário da Agricultura, Irrigação e

Reforma Agrária Edmon Lopes Lucas

Secretário de Desenvolvimento e Integração Regional Jorge José Santos

Pereira Solla

Secretário da

Saúde Osvaldo

Barreto Filho

Secretário da

Educação Nilton

Vasconcelos

Júnior

Secretário do Trabalho, Emprego, Renda e

Esporte Juliano Sousa Matos

Secretário do Meio

Ambiente Afonso

Bandeira Florence

Secretário de

Desenvolvimento Urbano

Valmir Carlos da Assunção

Secretário de Desenvolvimento Social e

Combate à Pobreza Eduardo Lacerda Ramos

Secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação

114

ANEXO II

ROTEIRO DE ENTREVISTAS

A) COMUNIDADE

Entrevistas realizadas com as 3 lideranças ativas da Comunidade remanescente de

quilombo do Rio dos Macacos.

a1. Dimensão Identidade

1. Solicitar que o entrevistado se apresente (Nome, Profissão, Representação na

Comunidade)

2. Quais atributos transferem à comunidade do Rio dos Macacos o sentido de ser

Quilombola?

3. Em que o ser ‘Quilombola’ influencia na relação com as demais estruturas da

sociedade, principalmente com os representantes do Governo do Estado?

4. Quão determinante é ser Quilombola nas relações com o entorno da comunidade?

5. Deslocamento Idenitário “Hall” – Como os sujeitos na comunidade tradicional do

Rio dos Macacos se percebem enquanto o seu lugar no mundo social e cultural?

6. Comunidade Imaginária – Como as relações comunitárias no Rio dos Macacos

influenciam os sujeitos?

a2. Dimensão Política

7. O que a comunidade conhece sobre a Lei 13.182 / 14 – o Estatuto da Igualdade

Racial e de Combate à Intolerância Religiosa e do Decreto Estadual n°

11.850/2009?

8. A comunidade participou de alguma etapa do processo de elaboração do Decreto

Estadual n° 11.850/2009??

9. A comunidade do Rios do Macacos participa ou participou de algum encontro

com os representantes do Governo do Estado para decidir sobre a utilização de

recursos destinados à comunidade? Se não, por quê? Se sim, a comunidade teve o

direito de fala?

115

10. Houveram 3 audiências públicas entre os anos de 2014 e 2018, como a

comunidade avalia a atuação da SEPROMI no que se refere a proposição de

alternativas para resolução de problemas e o cumprimento dessas proposições?

a3. Dimensão Poder

11. Foucaut – Criação da Imagem de Si – Qual a imagem que o entrevistado tem da

comunidade frente aos conflitos?

12. Arnstei - Cessão de poder – No período de 2014 a 2018 houverem mudanças na

relação da comunidade com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial no que

se refere a implementação da política estadual? Qual foi o lugar da comunidade

na implementação da política?

13. Foucaut – Biopoder- Como a regulação do Estado influencia nas vidas da

comunidade? (Acesso a Agua/Terra/Coerção)

B) ESTADO – SEPROMI

b1. Dimensão Identidade

14. Solicitar que o entrevistado se apresente (Nome, Cargo, Atividades na Secretaria)

15. Pedir que o Entrevistado descrever as atividades da SEPROMI para Comunidades

remanescentes de quilombos.

16. O que é ser Quilombola para a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial?

17. Como a secretaria percebe o modo distinto das relações em comunidade

tradicional frente as possíveis diferenças das comunidades modernas?

b2. Dimensão Política

18. Existem entraves Políticos para a execução a Lei 13.182 / 14 – o Estatuto da

Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa e do Decreto Estadual n°

11.850/2009 no Estado da Bahia?

19. Quais são e como são aplicados os instrumentos de avaliação da política estadual

para comunidades tradicionais remanescentes de quilombos?

20. Diante da experiência profissional do entrevistado - Qual a avaliação sobre e

implementação da política estadual quilombola na comunidade do Rio dos

Macacos? E o que pode ser melhorado?

b3. Dimensão Poder

21. Para a Secretaria como a regulação do Estado interfere nas vidas da comunidade?

(Acesso a Agua/Terra/Coerção)

22. No período de 2014 a 2017 houverem mudanças na relação da comunidade com

a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial no que se refere a implementação

da política estadual? Qual foi o lugar da secretaria na implementação da política?

23. Houveram 3 audiências públicas entre os anos de 2014 e 2018, como a

comunidade avalia a atuação da SEPROMI no que se refere a proposição de

alternativas para resolução de problemas e o cumprimento dessas proposições?

24. Como a Secretaria analisa os micropoderes que estão relacionados a

implementação da política estadual para a comunidade tradicional do Rio dos

Macacos?