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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO VERA REGINA ROZENDO MONTANO CORPOREIDADE, EDUCAÇÃO INFANTIL E FORMAÇÃO DOCENTE Salvador 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

VERA REGINA ROZENDO MONTANO

CORPOREIDADE, EDUCAÇÃO INFANTIL E FORMAÇÃO DOCENTE

Salvador

2007

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VERA REGINA ROZENDO MONTANO

CORPOREIDADE, EDUCAÇÃO INFANTIL E FORMAÇÃO DOCENTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação ¬ Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Educação. Linha de pesquisa: Educação e Diversidade.

ORIENTADOR PROF. DR. CIPRIANO CARLOS LUCKESI

Salvador 2007

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M765 Montano, Vera Regina Rozendo.

Corporeidade, educação infantil e formação docente / Vera Regina Rozendo Montano. – 2007.

142 f.

Orientador: Cipriano Carlos Luckesi. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de

Educação, 2007.

1. Professores – Formação. 2.Corporeidade. 3. Ludicidade 4. Educação infantil. 5. Psicomotricidade. I. Luckesi, Cipriano Carlos. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título.

CDD 370.71 – 22. ed..

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VERA REGINA ROZENDO MONTANO

CORPOREIDADE, EDUCAÇÃO INFANTIL E FORMAÇÃO DOCENTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação ¬ Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Educação. Linha de pesquisa: Educação e Diversidade.

Aprovada em 10 de setembro 2007.

Cipriano Carlos Luckesi – Orientador ____________________________________________ Doutor em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Brasil. Universidade Federal da Bahia

Dante Augusto Galeffi_________________________________________________________ Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, Brasil Universidade Federal da Bahia Lucia Helena Pena Pereira______________________________________________________ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, Brasil Universidade Federal de São João del-Rei, MG.

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Dedico este estudo à memória de Wilhelm Reich por sua genialidade e coragem.

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AGRADECIMENTOS

Minha primeira reverência se eleva em direção a Deus que, como uma rede dourada de energia, une cada célula e cada partícula desse grande tecido cósmico de que somos todos nós. Aos meus pais, Dalva e Luis, minha gratidão pela vida. Ao meu filho Lucas, que muito tem me ensinado na arte de ser mãe. Reverencio todas as pessoas com quem tive a oportunidade de conviver, aprender, ensinar e trocar, especialmente as crianças que, numa relação profissional, pude cuidar e brincar. À Sociedade de Análise Bioenergética da Bahia, meu profundo agradecimento pelos doze anos de formação e aprendizado de minha corporeidade. À Clínica Escola Movimento-Consciência pelo Corpo, obrigada por me permitirem reaprender a brincar, através da formação em Psicomotricidade Relacional. Minha reverência às terapeutas, Theda Basso e Aidda Pulstinik, que, pela Dinâmica Energética do Psiquismo, me ensinaram a ir ao encontro do Ser. Reverencio o Dr. Cipriano Luckesi, meu orientador, que esteve sempre presente, atento e cuidadoso na construção e corporificação desta Dissertação.

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O seu corpo – essa casa onde você não mora Neste instante, esteja você onde estiver, há uma casa com seu nome. Você é o único proprietário, mas faz tempo que perdeu as chaves. Por isso, fica de fora, só vendo a fachada. Não chega a morar nela. Essa casa, teto que abriga suas mais recônditas e reprimidas lembranças, é o seu corpo. “Se as paredes ouvissem...” Na casa que é o seu corpo, elas ouvem. As paredes que tudo ouviram e nada esqueceram são os músculos. Na rigidez, crispação, fraqueza e dores dos músculos das costas, pescoço, diafragma, coração e também do rosto e do sexo, está escrita toda a sua história, do nascimento até hoje. Sem perceber, desde os primeiros meses de vida, você reagiu a pressões familiares, sociais, morais. “Ande assim. Não se mexa. Tire a mão daí. Fique quieto. Faça alguma coisa. Vá depressa. Onde você vai com tanta pressa...?” Atrapalhado, você dobrou-se como pôde. Para conformar-se, você se deformou. Seu corpo de verdade – harmonioso, dinâmico e feliz por natureza – foi sendo substituído por um corpo estranho que você aceita com dificuldade, que no fundo você rejeita. É a vida, diz você; não há outra saída. Respondo-lhe que você pode fazer algo para mudar e que só você pode fazer isso. Não é tarde demais. Nunca é tarde demais para liberar-se da programação de seu passado, para assumir o próprio corpo, para descobrir possibilidades até então inéditas. Ser é nascer continuamente. Mas quantos deixam-se morrer pouco a pouco, enquanto vão se integrando perfeitamente às estruturas da vida contemporânea, até perderem a vida pois que se perdem de vista? Saúde, bem-estar, segurança, prazeres, deixamos tudo a cargo dos médicos, psiquiatras, arquitetos, políticos, patrões, maridos, mulheres, amantes, filhos. Confiamos a responsabilidade da nossa vida, de nosso corpo, aos outros, por vezes àqueles que não desejam essa responsabilidade e que se sentem esmagados por ela; quase sempre àqueles que pertencem a Instituições cuja finalidade é de nos tranqüilizar e, portanto, de nos reprimir. (E quantos há, independentemente de idade, cujo o corpo ainda pertence aos pais? Crianças submissas, esperando em vão, durante toda a vida, licença para vivê-la. Menores de idade psicologicamente, não ousam nem olhar a vida dos outros, o que não os impede, porém, de tornarem-se impiedosos censores). Quando renunciamos à autonomia, abdicamos de nossa soberania individual. Passamos a pertencer aos poderes, aos seres que nos recuperaram. Se reivindicamos tanto a liberdade é porque nos sentimos escravos; e os mais lúcidos reconhecem ser escravos-cúmplices. Mas como poderia ser de outro jeito, se não chegamos a ser donos nem de nossa primeira casa, a casa que é o corpo? Você pode, no entanto, reencontrar as chaves do seu corpo, tomar posse dele, habitá-lo enfim e nele encontrar a vitalidade, a saúde e autonomia que lhes são próprias. Como? Não, certamente, se você considerar o corpo como uma máquina fatalmente defeituosa e que o atravanca; como uma máquina composta de peças soltas (cabeça, costas, pés, nervos...) que devem ser confiadas cada uma a um especialista, cuja autoridade e veredito são aceitos de olhos

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fechados. Não, certamente se você aceitar como definitivas as etiquetas de “nervoso”, “insone”, “com mal funcionamento do intestino”, “fraco”, etc. E não, certamente, se você procurar fortalecer-se pela ginástica que se contenta com o adestramento do corpo-carne, do corpo considerado sem inteligência, como um animal a domar. Nosso corpo somos nós. Somos o que parecemos ser. Nosso modo de parecer é nosso modo de ser. Mas não queremos admiti-lo. Não temos coragem de nos olhar. Aliás, não sabemos como fazer. Confundimos o visível com o superficial. Só nos interessamos pelo que não podemos ver. Chegamos a desprezar o corpo e aqueles que se interessam por seus corpos. Sem nos determos sobre nossa forma – nosso corpo – apressamo-nos a interpretar nosso conteúdo, estruturas psicológicas, sociológicas, históricas. Passamos a vida fazendo malabarismos com palavras, para que elas nos revelem as razões de nosso comportamento. E que tal se, através de nossas sensações, procurássemos as razões do próprio corpo? Nosso corpo somos nós. É nossa única realidade perceptível. Não se opõe à nossa inteligência, sentimentos, alma. Ele os inclui e dá-lhes abrigo. Por isso tomar consciência do próprio corpo é ter acesso ao ser inteiro... pois corpo espírito, psíquico físico, e até força e fraqueza, representam não a dualidade do ser, mas sua unidade.

Thérèse Bertherat (1998, p. 11-14)

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MONTANO, Vera Regina Rozendo. Corporeidade, educação infantil e formação docente. 2007. 142 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

RESUMO

Esta Dissertação de mestrado se propõe a contribuir para a elucidação de como a qualidade da prática docente na Educação Infantil está na dependência do domínio das experiências psicocorporais por parte do educador, uma vez que é da sua responsabilidade a organização do meio pedagógico propício à aprendizagem e ao desenvolvimento da criança. Compreender, vivenciar e dominar sua corporeidade, por parte do educador contribui para a organização das estruturas psicocorporais em desenvolvimento na criança. Re-significar a vivência corporal, por parte do educador infantil, o capacita para uma prática estruturante de si mesmo e, conseqüentemente, da criança no que se refere ao desenvolvimento de suas estruturas psicocorporais. As teorias sobre a corporeidade e o psiquismo, que embasam este estudo, provêm da Psicossomática, da Psicomotricidade, da Psicomotricidade Relacional, da Bioenergética, da Ludicidade, aplicadas à Educação Infantil. Esta Dissertação propõe que na formação do educador, principalmente do educador infantil, sejam incluídas vivências que o capacitem a melhor conhecer sua corporeidade e a disponibilizá-la na relação pedagógica com as crianças, seus educandos. Palavras-chave: Professores – Formação. Corporeidade. Ludicidade. Psicomotricidade.

Bioenergética. Educação Infantil.

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MONTANO, Vera Regina Rozendo. Corporeity, children's education and teaching education. 2007. 142 f. Máster dissertation – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

ABSTRACT

This master’s thesis aims to contribute to the elucidation of how the quality of the teaching practice in Children’s Education relies on the control of the psychic and body experiences by the educator, once he/she is responsible for the organization of the proper pedagogical ways for the child’s learning and development. Understanding, experiencing and dominating corporeity by the educator contributes for the organization of the developing psychic and body structures in the child. The re-significance of the corporeal experience by the children’s educator enables them to a structuring practice of themselves and, consequently, of the child regarding the development of their psycho-corporeal structures. The theories on corporeity and psyche which base this study come from psycho-somatic, psycho-motion/, relational psycho-motion, bioenergetics, and ludicrousness, applied to children’s education. This master’s thesis proposes that the teacher’s education, and mainly the education of those who work with young children, should include experiences that enable them to better know their corporeity and use it in their pedagogic relation with the children, their pupils. Keywords: Corporeity. Ludicrousness. Psycho-motion analysis. Bioenergetics. Children’s

education.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACR Análise Corporal da Relação

DCM Disfunção Cerebral Mínima FACED Faculdade Educação

FDA Food and Drug Administration

GEPEL Grupo de Estudo e Pesquisa em Ludicidade

LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

PPGE Programa de Pesquisa e Pós-graduação

TDAH Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade UNEB Universidade do Estado da Bahia

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

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2 DEFININDO O TEMA DA INVESTIGAÇÃO 152.1 MINHA VIDA PESSOAL COMO PONTO DE PARTIDA 152.2 MINHA ATIVIDADE PROFISSIONAL E O TEMA DA

INVESTIGAÇÃO 212.3 CORPORIFICANDO A TEORIA NA PRÁTICA 232.4 TEMA E HIPÓTESE DE INVESTIGAÇÃO 30 3 A CORPOREIDADE NA RELAÇÃO EDUCADOR-EDUCANDO:

TRANSFERÊNCIA, CONTRATRANSFERÊNCIA E RESSONÂNCIA 31

3.1 CONCEITOS BÁSICOS 333.2 O QUE OS PESQUISADORES NOS ENSINAM SOBRE A

TRANSFERÊNCIA, A CONTRATRANSFERÊNCIA E A RESSONÂNCIA NA RELAÇÃO TERAPÊUTICA 35

3.3 A TRANSFERÊNCIA, A CONTRATRANSFERÊNCIA E A RESSONÂNCIA NA PRÁTICA EDUCATIVA 44

3.4 A TRANSFERÊNCIA, A CONTRATRANSFERÊNCIA E A RESSONÂNCIA NA PRÁTICA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

46

4 HIPÓTESES DE ENCAMINHAMENTO DA INTEGRAÇÃO CORPO E PSIQUISMO: UNIDADE E DIALÉTICA 50

4.1 ABORDAGENS PSICOSSOMÁTICAS: HIPÓTESES DE COMPREENSÃO DA DESINTEGRAÇÃO E DA INTEGRAÇÃO CORPO-MENTE E SUAS CONSEQÜÊNCIAS PARA A VIDA E A PRÁTICA EDUCATIVA 52

4.1.1 À guisa de esclarecimento 524.1.2 Wilhelm Reich: do caráter neurótico ao caráter genital 534.1.2.1 A trajetória de um desbravador 544.1.2.2 O legado deixado por Reich 554.1.2.3 Caráter genital, corpo e expressividade 604.1.3 Os desdobramentos da abordagem reichiana 624.1.3.1 Paradigma pulsional e paradigma objetal 624.1.3.2 Alexander Lowen: do corpo traído ao corpo gracioso 664.1.3.3 Stanley Keleman: da forma estressada à forma criativa do corpo 694.1.3.4 David Boadella: do corpo formado ao corpo restaurado 714.1.3.5 Concluindo 734.2 ABORDAGENS DO DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR:

HIPÓTESES DE COMPREENSÃO DO DESENVOLVIMENTO DO SER HUMANO, SUAS CONSEQÜÊNCIAS CORPORAIS E AS POSSIBILIDADES DE RESTAURAÇÃO 73

4.2.1 Henri Wallon: a psicogenética walloniana 744.2.2 Jean Le Boulch: a psicocinética 784.2.3 André Lapierre: do jogo espontâneo ao jogo fantasmático em

Psicomotricidade Relacional 80

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4.3 ESQUEMA E IMAGEM CORPORAL 834.4 FECHANDO ESTE CAPÍTULO: CORPOREIDADE: INTEGRAÇÃO

¬ CORPO ¬ PSIQUISMO

89

5 FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL 935.1 O QUE DIZ O REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A

EDUCAÇÃO INFANTIL 975.2 O QUE UM EDUCADOR NECESSITA DE DOMINAR PARA SER

UM EDUCADOR NA EDUCAÇÃO INFANTIL 1075.3 A EDUCAÇÃO NECESSÁRIA PARA O EDUCADOR INFANTIL E

SEU “CURRÍCULO DE FORMAÇÃO” 1115.3.1 Corporeidade e consciência corporal 1125.3.2 Ludicidade e formação do docente para a Educação Infantil 1155.3.3 Psicomotricidade Relacional e Educação Infantil 1275.4 COMO A BIOENERGÉTICA, A LUDICIDADE E A

PSICOMOTRICIDADE RELACIONAL PODEM COMPOR O CURRÍCULO DE FORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL

135

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

137

REFERÊNCIAS 139

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1 INTRODUÇÃO

Inicio esta Introdução destacando a problemática que me levou a esta Dissertação de

mestrado intitulada Corporeidade, Educação Infantil e Formação Docente. Como o educador

que não tem domínio de suas experiências psicocorporais pode trabalhar com as experiências

psicocorporais da criança na Educação Infantil?

A problematização deste estudo é fruto de minha experiência profissional como

educadora, orientadora educacional, psicomotricista e analista bioenergética, associada, de

forma integrada, a minha trajetória de vida, onde a construção da minha corporeidade, de

forma atenta e consciente se deu, e continua se dando, como produto da experiência

construída na prática cotidiana, na qual o trabalho com o próprio corpo, com as sensações,

com as emoções não se dissociou da compreensão cognitiva.

O que venho propor é mostrar a importância da corporeidade na e para a Educação

Infantil, tendo por base os estudos dos autores da psicossomática, da psicomotricidade, da

psicomotricidade relacional, da ludicidade. Dialogo com Wilhelm Reich, Alexander Lowen,

Stanley Keleman, David Boadella, Henri Wallon, Jean Lê Boulch, André Lapierre, Tizuko

Kihsmoto, Cipriano Luckesi, Humberto Maturana, entre autores da Educação e da Educação

Infantil.

O objetivo geral que norteou este estudo foi o de analisar a importância para o

educador de ter o domínio de suas experiências psicocorporais, assim como possuir a

compreensão teórica das mesmas, tendo em vista o exercício adequado da prática

psicocorporal, psicomotora e lúdica na Educação Infantil, seguindo uma metodologia de

estudo bibliográfico. Este objetivo desdobrou-se em três objetivos específicos, a saber:

a) Estudar como as teorias sobre o corpo podem embasar a práxis pedagógica na

Educação Infantil (literatura psicossomática, psicomotricidade e

psicomotricidade relacional);

b) Compreender em que nível os conteúdos psicomotores do educador (organização

do seu esquema e imagem corporais, tônus, organização de espaço-tempo e suas

simbolizações) estão implicados na sua práxis pedagógica na Educação Infantil e

c) Confirmar a necessidade do emprego de práticas psicocorporais e lúdicas na

formação do educador, como forma de melhor incluí-lo e implicá-lo no processo

educativo.

Esta dissertação foi organizada em seis capítulos:

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Após esta Introdução, inicia-se o segundo capítulo intitulado Definindo o Tema da

Investigação, onde relaciono meu envolvimento e comprometimento com o tema da

investigação.

O terceiro, A Corporeidade na Relação Educador-Educando- Transferência,

Contratransferência e Ressonância, aborda os conceitos de transferência e

contratransferência, oriundos da Psicanálise, e seus desdobramentos nas abordagens

psicocorporais, incluindo o conceito de ressonância utilizado pela Psicologia Formativa, e

como esses fenômenos atuam nas relações pedagógicas.

O quarto capítulo, chamado de Hipóteses de Encaminhamento da Integração

Corpo e Psiquismo: Unidade e Dialética, contempla como as teorias psicossomáticas,

psicocorporais e psicomotoras compreendem o desenvolvimento humano a partir da

integração entre a mente e o corpo, o que permite compreender a importância do corpo para a

prática educativa.

O quinto capítulo, denominado de Formação Docente para a Educação Infantil,

viabiliza uma proposta para a formação do docente infantil, a partir dos estudos dos autores

abordados no terceiro capítulo. O educador infantil, mais do que qualquer outro, necessita da

corporeidade em sua prática pedagógica, em função dos educandos com os quais trabalha, que

se encontram em tenra idade e em franco processo de constituição pessoal.

Ao término desta pesquisa, faço algumas urgentes Considerações Finais, onde

pontuo o que considero vital para ser incluído na formação do educador em geral e,

prioritariamente, do educador infantil.

Esta é a trajetória deste texto que, para mim, foi uma oportunidade de sistematizar

conhecimentos, e espero que para o leitor seja uma oportunidade de contato significativo com

a importância da corporeidade para a vida em geral, para a educação em específico e, mais

particularmente, para a Educação Infantil. Uma prática educativa centrada, quase que

exclusivamente na faceta cognitiva do ser humano, limita a formação do educando, sob uma

ótica integral. Importa que corpo e mente formem um todo integrado e vital. Com esta

Dissertação, estou desejosa de poder contribuir para que isso ocorra.

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2 DEFININDO O TEMA DA INVESTIGAÇÃO

2.1 MINHA VIDA PESSOAL COMO PONTO DE PARTIDA

A corporificação do tema desta pesquisa vem me acompanhando desde tenra idade.

É preciso voltar no tempo, remontar às raízes da minha organização e estruturação enquanto

sujeito para poder entender a força que tem me movido nesta direção, ao longo dos anos. Ter

sido selecionada para o mestrado e adentrar no campo da pesquisa coroam este processo.

Expressam, ao mesmo tempo, o ponto de chegada e de transição no meu percurso de vida.

Chegada, por ser, neste momento, a culminância de um longo período de estudos e formação;

transição, na certeza de que a conclusão do Mestrado será um passo para novos estudos e

novos crescimentos.

Então, necessário se faz que remontemos às origens deste contexto para reafirmar,

do passado para o presente, a tessitura do tema escolhido: Corporeidade, Educação Infantil e

Formação Docente.

A vida em si é um processo de desvelamento e desenvolvimento que se inicia com o

crescimento do corpo e suas funções motoras, afetivas, cognitivas, relacionais, permeadas

pela aquisição do conhecimento e da linguagem que, por sua vez, integram elementos da

cultura e da sociedade na qual estamos inseridos. Ao nascer, a criança vem também

mergulhada no imaginário parental que, através dos seus componentes conscientes e

inconscientes, imprime sua marca, criando um padrão carregado de crenças e valores, próprio

àquele sistema familiar. Este processo contínuo, mas nem sempre regular, conduz cada um de

nós a um resumo da experiência que denominamos Ser e Saber.

O ser humano experiencia a realidade do mundo por meio do seu corpo. O ambiente

exterior lhe provoca impressões na medida em que seu corpo interage com ele, afetando seus

sentidos. Através dessas trocas, no decorrer da vida, o indivíduo estrutura padrões de

comportamento que representam uma solução temporária aos conflitos da infância, e que

estão carregados com uma bagagem simbólica e fantasmática que aí se plasmou e se

corporificou. A este processo, a Psicologia e a Psicanálise denominam de estruturação da

identidade, ou seja, do ego do sujeito explicando que a arquitetura identitária e simbólica se

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inicia, se mescla e se imiscui a partir de um corpo físico que a sustente. Então, é deste lugar

que começo a caminhada rumo à corporeidade, à educação infantil e à ludicidade.

Os fatos, aqui expostos, compõem o cabedal de minhas memórias, associados aos

relatos de meus pais e familiares, bem como às percepções decorrentes do trabalho de

autoconhecimento que venho realizando comigo mesma, e que justificam minhas atuais

preocupações com o meu autodesenvolvimento, com o estudo e com a pesquisa. .Meu tema de

pesquisa nasce no seio de minha trajetória de vida.

Nasci em Porto Alegre, filha mais velha entre três meninas, em meio a um rigoroso

inverno. Soube que meu nascimento foi difícil, demorado e traumático, gerando a minha mãe

dois meses de total repouso, e demandando a presença de uma tia materna para que cuidasse

de mim, e que meu pai passou a primeira semana de meu nascimento sem se aproximar do

berço porque desejava um menino, acreditando ser fundamental para a tradição italiana que o

primeiro filho fosse um varão.

Segundo ouvi relatar, fui um bebê que chorava muito e não dormia bem à noite, e

que mantinha um chorinho fino e constante, quase um gemido, o que os médicos atribuíam a

seqüelas de um sofrimento natal.

Tinha um ano e seis meses quando nasceu minha primeira irmã, e três anos quando

nasceu a segunda. Hoje, sei que a chegada de dois bebês num período tão curto deixou-me

muito solitária e enciumada. Meu movimento foi o de desejar assumir junto com minha mãe a

responsabilidade por estes dois bebês. Minha mãe sempre relatou, com orgulho, a minha

postura séria e disponível para tentar atender às necessidades das “crianças pequenas” como

se eu também não me incluísse nessa classificação.

Deste período, tenho conhecimento que, durante o turno vespertino, meu pai me

levava para a casa de minha avó. Passei os três primeiros anos de vida, na casa desta avó, sob

o influxo deste ambiente. Era tratada com carinho, cuidado e tinha meus desejos de neta mais

velha satisfeitos, havendo uma babá disponível para brincar comigo. Não me recordo deste

tempo e deste ambiente com amor. Não me sentia olhada e nem me sentia em casa. Olhando

para trás, hoje, minha sensação é de que faltava um trato mais sensível com as carências, os

medos e as inquietudes de uma menina pequena. Era um ambiente abundante do ponto de

vista material, mas com certa rusticidade psicológica.

As lembranças que mais aquecem e aconchegam minhas memórias referem-se aos

seguintes fatos: todas as noites, quando meu pai chegava em casa, trazia um chocolate para

cada filha; ele jogava dominó comigo e com minha irmã; víamos televisão juntos: nós três,

eu, meu pai e a Dada (pessoa que cuidava da casa e das crianças); minha mãe lecionava à

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noite e meu pai ia buscá-la na escola. Quando ela chegava, por volta das 22 horas, ia até

nossas camas, nos beijava, certificava-se de que estávamos bem cobertas e fazia uma oração;

quando estava no primeiro ano do Curso Primário, sendo alfabetizada, tive catapora e faltei

um mês às aulas. Lembro-me do carinho e da paciência de minha mãe ajudando-me nas

tarefas escolares e ensinando-me o alfabeto cursivo, pois era o momento da passagem do

alfabeto de letra de imprensa para o de letra cursiva; a escola em que cursei o Jardim de

Infância e o Curso Primário ficava em frente à casa de meus avós paternos. Então, todas as

manhãs, meu pai me deixava na casa desta avó para que ela me desse o lanche e me deixasse

na porta da escola, ajudando-me a atravessar a avenida; no verão, íamos veranear no litoral, o

que era um período de intensa alegria.

Fui uma menina tímida, quieta, assustada e muito organizada com meus brinquedos

e objetos pessoais. Minhas brincadeiras prediletas eram calmas, sem muita correria,

envolvendo artes manuais, tais como: recortes, pinturas, desenhos, bonecas de pano ou papel e

dramatizações (representando as artistas das novelas, principalmente a que mais me encantava

na época, Regina Duarte). Tive muita dificuldade em me lançar sozinha no comando da

bicicleta de duas rodas. Tinha receio de cair e me machucar em qualquer brincadeira mais

ativa, mais agressiva ou mais corporal. A percepção que tenho dos meus primeiros anos de

vida é a de uma criança com muito medo, medo de brincar com seu corpo, de se lançar e se

soltar. Havia uma insegurança na minha corporeidade em construção.

Pedia com insistência para ir à escola. Consegui, aos quatro anos, ingressar no

Jardim de Infância, lá permanecendo por dois anos na mesma série, denominada, na época,

de “prontidão”.

Tenho boas lembranças da escola. Era um lugar alegre e interessante. Sempre fui

considerada boa aluna, não apresentando dificuldades durante toda a minha vida estudantil,

exceção feita ao período de Admissão ao Ginásio onde a tensão externa era tão grande que

gerou em mim um intenso medo manifestado através de uma antipatia pelo aprendizado da

Matemática.

Durante o Curso Primário, hoje, séries iniciais do ensino fundamental, fiz amizades

com facilidade e formei uma turma de amigos com a qual brincava dentro e fora da escola.

Tive uma infância calma, plácida, sem perturbações. Já a adolescência foi tumultuada por

intensos eventos internos e externos. Meu pai adoeceu, teve revezes profissionais e

financeiros, mudamos de residência o que me possibilitou mudar e ampliar o grupo de

amigos, formando nova turma (agora já uma turma de adolescentes, que se reunia

cotidianamente) e também mudar do Curso Primário para o Ginásio, hoje, 5ª a 8ª séries do

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ensino fundamental. Do Ginásio, não guardo boas lembranças. Não foi um período escolar

feliz porque me sentia esquisita, sem chão, sem vínculos e, principalmente, estranha em meu

próprio corpo que havia mudado e crescido muito rapidamente.

Só fui me sentir reorganizada em minha identidade quando fiz 15 anos e ingressei no

Curso de Magistério. Meu pai havia definido que nós tínhamos que ter um curso

profissionalizante. Os cursos “clássico” ou “científico” eram as outras opções de ensino

médio na época. Tornei-me adulta, psicologicamente falando. Meu corpo mudou mais uma

vez. Encarnando a mulher que sou, rompi com a turma de adolescentes, fiz novas amizades e

novo grupo social. Estudei francês na Alliance Française até entrar para a faculdade,

concluindo o curso básico preparatório desta língua.

O Curso de Magistério abriu-me portas internas, desvendando-me conhecimentos,

anseios, necessidades de aprofundamento e uma certeza do caminho a trilhar: “Quero ser uma

educadora”. Aos 17 anos, concluído o Magistério, comecei a trabalhar e ingressei no Curso de

Pedagogia, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC – RS).

Minha primeira experiência profissional, como professora, foi em Porto Alegre, no

Instituto Metodista de Educação e Cultura − Colégio Americano, no ano de 1976, em uma

classe de 2ª série do ensino de 1ºgrau1 com características bem específicas: número reduzido

de alunos, alguns portadores de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH),

antigamente denominado Disfunção Cerebral Mínima (DCM), associados a quadros

psicóticos e dificuldades de aprendizagem, o que, hoje, seriam denominados de “portadores

de necessidades especiais”. A mim, caberia ajudá-los a se integrarem ao currículo comum,

pois vinham de uma pré-escola planejada as suas particulares necessidades. Todo apoio

pedagógico e emocional me seria facultado2. Confrontei-me, inexperientemente, com crianças

hiperativas, desatentas, que se batiam nos objetos e se machucavam com freqüência, onde a

linguagem verbal não as alcançava, pois pareciam não escutar o que eu falava embora não

tivessem déficit de visão ou audição. Elas me pediam algo a mais. O quê? Nos primeiros três

meses de contato entre nós, quase nada aconteceu pedagogicamente falando, exceto gerar em

mim a primeira angustiante inquietação profissional. Consegui, então, entender que, se não

me envolvesse corporalmente com elas, recriando uma rotina pedagógica que fosse lúdica e

corporal, não chegaríamos às simbolizações que o currículo da 2ª série exigia.

1 Em 1971, através da Lei 5692, foi feita uma reforma do ensino no país. O Curso Primário, de quatro anos,

juntou-se ao Ginásio, também de quatro anos, formando o ensino de 1° grau, de oito anos de escolaridade. 2 Fui orientada por uma equipe pedagógica composta por uma psicóloga, uma fonoaudióloga, uma

psicomotricista e um médico especializado em dificuldades de aprendizagem.

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O desafio estava posto. E eu nem percebia, na época, que esta experiência definiria

meu caminho. Talvez definisse o que já estava definido. Lembro-me, com muito carinho, dos

rostos daquelas crianças e da esperança e ansiedade de seus pais. Lembro-me das dificuldades

que enfrentei nos primeiros meses e também do momento em que conseguimos – elas e eu –

nos comunicar e deixar fluir o trabalho.

Ao findar este ano letivo, entendi que, para ser uma educadora, precisaria seguir

meus estudos além da graduação, bem como buscar uma formação que trabalhasse meu corpo

e me ensinasse a “lê-lo” para melhor interagir com a corporeidade dos educandos.

Busquei, então, o Curso de Especialização em Psicopedagogia e Psicomotricidade

Clínica e Educacional, que comecei a freqüentar a partir do 3° ano do Curso de Pedagogia.

Esta formação veio, mais tarde, me possibilitar o título de Psicomotricista pela Sociedade

Brasileira de Psicomotricidade.

O período em que trabalhei no Instituto Metodista de Educação e Cultura como

professora e, assim que me graduei, como pedagoga, integrante de uma equipe técnica

composta por uma psicóloga, uma fonoaudióloga, uma psicomotricista e um médico

especializado em distúrbios de aprendizagem, foi um presente que a vida me deu, pois

começava minha carreira profissional cheia de ideais, que foram cuidadosamente apoiados

por esta equipe que tinha um projeto em Educação bem avançado para a época.

Em janeiro de 1978, alargando minha experiência como educadora, participei da

Operação Nacional Pró-20, promovida pela Fundação Projeto Rondon, em Itamarandiba –

MG, realizando trabalhos pedagógicos alternativos, com as crianças carentes daquela

comunidade.

Uma nova etapa se iniciou em minha vida, quando, no ano de 1981, mudei de Porto

Alegre − RS, para Salvador − BA. Comecei, então, minha atividade profissional como

psicopedagoga e psicomotricista clínica, tendo especial interesse pelo trabalho lúdico-corporal

com as crianças, através da Psicomotricidade. Meus anseios em aprofundar conhecimentos e

grupos de pertinência profissional cresceram. Fundei, assim, o Capítulo Baiano da Sociedade

Brasileira de Psicomotricidade, sendo sua primeira presidente. Voltei ao trabalho escolar

como orientadora educacional de uma escola da rede particular de ensino, em Salvador, no

Colégio Antônio Vieira, atuando por cinco anos nesta função.

Ao longo desses anos, venho trabalhando com Psicomotricidade, Psicomotricidade

Relacional e com outras abordagens corporais, como a Bioenergética, tanto na escola

(formação de educadores) como na clínica, com crianças, adolescentes e adultos. Tenho

realizado grupos de estudo e apoio psicopedagógico, associados a Grupos de Consciência

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Corporal (Grupos de Movimento), destinados a professores da Educação Infantil e Ensino

Fundamental da rede pública e privada de ensino, cujo enfoque central tem sido o

desenvolvimento da consciência corporal, afetiva, social, cognitiva na relação consigo

mesmo, com o educando, com o currículo e seus conteúdos e metodologias.

O trabalho que tenho realizado com professores da Educação Infantil e Ensino

Fundamental tem me permitido ajudá-los a perceberem quais os bloqueios que os impedem de

incluir sua corporeidade como instrumento relacional e pedagógico, o que, conseqüentemente,

os impedem de verdadeiramente “brincar” com as crianças, de “escutar” o que o corpo de

cada educando está falando pela agitação, pelas reações negativas, indisposições, desatenções,

etc. Educadores conseguirão “escutar” e compreender a linguagem corporal de seus

educandos se tiverem, como ponto de partida, consciência de sua própria corporeidade e das

histórias de vida que a ela subjazem.

Tenho me defrontado com professores disponíveis, de boa-vontade mas

impossibilitados pelos “analfabetismos corporais”, incluindo, às vezes, arraigadas crenças

religiosas e culturais que compreendem o corpo como separado da vida e, por isso, alijado do

processo educacional, tido como sinônimo de cognição. E, desde quando e onde, a cognição

não é corporal e o corporal não é cognitivo?

Tenho contribuído na formação em Psicomotricidade de profissionais de diferentes

áreas de atuação e, no ano de 2004, fui docente da disciplina Psicomotricidade Relacional no

Curso de Pós-graduação, latu sensu em Psicomotricidade, da Universidade do Estado da

Bahia (UNEB), onde também coordenei a prática de estágio desta disciplina, no ano de 2005.

Ter cursado as disciplinas Ludopedagogia II e III3 como estudante na categoria de

aluno especial, no Programa de Pesquisa e Pós-graduação (PPGE) da Faculdade de Educação

(FACED), e ter participado do Grupo de Estudo e Pesquisa em Ludicidade (GEPEL), do

PPGE/FACED, propiciou-me a integração de conhecimentos e vivências lúdicas nos seus

vários aspectos sociais, culturais e pedagógicos, assim como nas suas diversas áreas de

abrangência: corporal, afetiva e cognitiva. A ludicidade incorporou-se, então, ao meu sistema

de valores e conjunto de práticas profissionais, sedimentando a crença de que a educação com

as crianças terá êxito, se o adulto não negligenciar a corporeidade e a ludicidade.

A busca na qual venho me empenhando rumo à minha corporeidade é a mesma

busca na qual, profissionalmente, me lanço, de corpo e alma, sem dicotomias. É a mesma

3 As disciplinas Ludopedagogia II e III (2003.2 e 2004.1) foram ministradas pelos professores Bernadete Porto e

Cipriano Luckesi no Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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busca presente na realização deste projeto, que, como já sinalizei, vem coroar um ciclo em

minha vida.

Esta investigação contempla o estudo da compreensão, da vivência e do domínio da

corporeidade por parte do professor como recurso para a organização das estruturas

psicocorporais em desenvolvimento na criança. Os educandos se organizarão corporalmente

se os educadores também forem organizados dessa forma. O modo de ser do educador, e a

consciência e o uso que faz disso, ressoa na experiência do educando. Há um ditado popular

que diz que “ninguém dá o que não tem”. Para ajudar o educando a sustentar-se em sua

corporeidade, o educador precisa sustentar-se em sua própria corporeidade.

Minha busca pela compreensão e uso da corporeidade, tanto como recurso de vida

pessoal quanto como recurso na atividade profissional, constituiu o contexto dentro do qual

nasceu o objeto de investigação, que sustenta a presente Dissertação. Esta Dissertação

permitiu-me produzir uma síntese de minha trajetória de vida e, ao mesmo tempo, uma

exposição ao leitor sobre a necessidade da posse e domínio da própria corporeidade para

quem deseja trabalhar, e efetivamente trabalha com crianças na Educação Infantil. Cabe

ressaltar que essa afirmação vale para qualquer educador que trabalhe com as mais variadas e

diversas faixas etárias, não só para a Educação Infantil. Todavia, a abordagem, aqui tecida,

está comprometida com essa área de atuação da prática educativa.

2.2 MINHA ATIVIDADE PROFISSIONAL E O TEMA DA INVESTIGAÇÃO

No tópico anterior, fiz sinalizações sobre minha atuação profissional e seu papel na

constituição do tema desta Dissertação, no entanto, essa questão merece alguns

aprofundamentos, no sentido de explicitar o fato de que esse tema é central em minha

trajetória pessoal, tanto de vida como profissional. Minha experiência soma-se, de forma

integrada, a minha trajetória de vida, o que me autoriza mais ainda a dedicar-me ao tema

pesquisado. A consciência corporal é uma experiência construída com sua própria prática.

Inicio este relato com uma citação de Sandra Corazza (1996, p.124), que nos diz que

a autorização para seguir um caminho ou outro caminho numa pesquisa parte daquilo que nos

“toma”, que nos envolve, que nos implica e nos inquieta. A inquietação dá o norte do caminho

a escolher, pois vem a partir da insatisfação com o já sabido, o já vivido, já observado, já

constatado: “Um critério que autorize alguém a selecionar esta ou aquela metodologia de

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pesquisa. Justo porque não é por tal ou qual método que se opta, e sim por uma prática de

pesquisa que nos “toma”, no sentido de ser para nós significativa”.

Comecei narrando, de forma sintética, as experiências mais significativas que

constituíram a minha infância, juventude e trajetória acadêmica e profissional na perspectiva

de minha corporeidade, com o objetivo de definir contornos desta história pessoal e

profissional em articulação com o problema da pesquisa. O que pretendo trazer com este

estudo é o movimento que venho fazendo rumo ao objeto desta pesquisa a partir das

dificuldades, questões, dúvidas, insatisfações, preocupações e também satisfações com essa

imensa área de conhecimento e vivências que a corporeidade humana traz, principalmente em

relação com a criança e a Educação Infantil.

Meu processo de formação acadêmica e profissional colocou-me diante das questões

que envolvem a corporeidade do educador em relação com a corporeidade da criança na

Educação Infantil.

Em minha atividade profissional como professora de séries iniciais, como

orientadora educacional, como psicopedagoga, como psicomotricista relacional, como analista

bioenergética, vim me defrontando e confrontando com a organização e a desorganização das

estruturas psicocorporais de crianças, jovens, adultos e, em especial, dos educadores infantis.

A questão da corporeidade, que se estrutura e se constrói em relação com o outro4, assumiu

enorme visibilidade pela constante preocupação de como a educação, em geral, e a escola, em

particular, poderiam facilitar este processo ou como poderiam, minimamente, não colocar

barreiras e impedimentos a esse processo.

O que vem impedindo que os educadores infantis disponibilizem sua corporeidade

para a criança que dela necessita como elemento de estruturação psicorporal e por

conseqüência como elemento gerador de aprendizagens?

Atuando como formadora de educadores e como acompanhante e orientadora de

processos educativos, tenho observado que estes adultos já estão com suas corporeidades

bloqueadas e impedidas. Eles não a disponibilizam para a criança, porque ela não está

disponível para eles próprios.

Os impedimentos manifestam-se de muitas maneiras, desde dificuldades de cunho

moral e religioso até bloqueios cronificados no corpo por histórias de vida, onde a dor e o

4 Sem o outro, as estruturas neurofuncionais não se desenvolvem porque o sistema nervoso central é social por

natureza. O bebê humano é o único animal que, para se desenvolver, passa pelo período de exterogestação, equivalente à duração média do período de úterogestação, considerando-se como fim desta segunda etapa, o momento em que o bebê começa a engatinhar eficientemente, pois a gestação, de acordo com os parâmetros com os quais a compreendemos, não está completa quando se dá o parto. (MONTAGU, 1988).

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sofrimento, decorrentes das mais variadas experiências pessoais, imprimiram profundas

marcas.

Se “nosso viver corporal molda a nossa existência”, como afirma Stanley Keleman

(1996b, p.15), quantas existências o educador infantil estaria ajudando a moldar a partir de

sua corporeidade comprometida, bloqueada, inconsciente?

Temos treinado o cérebro para disciplinar o corpo, e temos acreditado que a

cognição é a grande experiência da vida e da aprendizagem. A corporeidade separada do

cérebro e colocada “embaixo do tapete”, dicotomizada da vitalidade, da experiência de vida,

produz a estagnação e a vida é, antes de tudo, integração, movimento e fluxo.

Concordo com Keleman (1996b, p.85), quando afirma que uma atitude é um

conjunto corporal e não um conjunto mental e que:

Aprender é experienciar novos padrões de excitação e corporificá-los. Uma experiência de excitação no peito viaja para baixo e se expressa como sentimento sexual e movimentos pélvicos de busca. Viaja para cima e se expressa como palavras: Eu te amo. Os olhos vêem com a mesma qualidade vibrante, os braços se estendem para o ser amado e tudo é diferente.

Assim sendo, importa deixar aqui registrado que a experiência profissional na área

da educação autoriza-me a ter como tema de investigação e elaboração nesta Dissertação, o

tema da corporeidade na Educação Infantil. Minha experiência profissional soma-se à minha

experiência de vida, autorizando-me a olhar para a importância e necessidade de produzir e

divulgar novas compreensões sobre o tema. Minha vivência profissional grita, em alto e bom

som, que os educadores que atuam na Educação Infantil necessitam do cuidado com a sua

corporeidade e com a corporeidade de seus educandos.

2.3 CORPORIFICANDO A TEORIA NA PRÁTICA

O presente estudo, como, de alguma forma, já foi sinalizado anteriormente, é fruto

do encontro teórico, vivencial e prático da Psicomotricidade com a Psicotricidade Relacional,

com a Bioenergética e com a Ludicidade. Dos primeiros conceitos estudados em

Psicomotricidade às complexas teorias sobre a importância do brincar na estruturação da

identidade, passando pela contribuição dada pela Bioenergética, que explicita que a expressão

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corporal (portanto, a corporeidade) e a expressão mental são funcionalmente5 idênticas,

surgiram as questões sobre a corporeidade do professor enquanto lugar de relação com a

criança na Educação Infantil. Qual é o espaço de ação do professor na Educação Infantil?

Como construir o aprender a ser do professor e suas expressões? Como incluir este espaço no

currículo de formação do professor para a Educação Infantil?

A partir da minha própria vivência em direção à posse e à consciência de minha

corporeidade, compreendo que cuidar do corpo do professor, enquanto lugar de emoções,

desejos, anseios, demandas, é contribuir para que espaços afetivos, cognitivos e culturais

sejam abertos, advindo daí uma contribuição social no que se refere à qualidade de vida do

professor e de seu educando. O foco de atenção é a constituição de um eu saudável, o que se

expressa na melhora da auto-estima e da retomada do sentido de valores pessoais e

profissionais.

Também é a partir da minha própria vivência em direção à posse e à consciência de

minha corporeidade, que elejo, como base primordial para este estudo, a concepção formulada

pela Psicomotricidade (principalmente a Psicomotricidade Relacional), que compreende o

corpo como imaginário e simbólico, tanto quanto funcional. Esta compreensão, para mim, é

fruto, então, de muitos anos de trabalhos corporais na busca do autoconhecimento,

desvendando os símbolos contidos no mistério que é cada ser humano que, na sua

corporificação, se desvela e se desenvolve.

Esta compreensão de corpo em si mesma é fruto de um longo desenrolar histórico,

datando da primeira metade do século XX, após o advento da Psicanálise, porém, trazendo

nos seus alicerces as singularidades de toda a história do Ocidente.

Historicamente, o Ocidente, em sua tradição cultural, separou corpo e mente, corpo e

alma, desvalorizando o corpo e valorizando a alma. Afirmou que a alma (ou o espírito) é

entidade transcendental em oposição à materialidade e à transitoriedade das formas biológicas

e psíquicas.

Este “dualismo estrutural” (MELO, 2004, p.21) já estava presente na Grécia Clássica

onde o corpo foi glorificado, alcançando status de obra de arte. A visão dicotômica corpo-

alma, então, se instalou, começando também a negação e a depreciação do corpo. Para Platão,

no século IV a C., o corpo aprisionava a alma e limitava a sua manifestação.

Com o surgimento do Cristianismo, atrelado ao judaísmo e, depois, à Igreja

Católica, o corpo já foi visto como um ente a ser negado, disciplinado, punido. À medida que

5 Este processo está descrito no capítulo 4.

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o Cristianismo Católico se espalhava pelo Ocidente, o corpo assumiu a categoria de pecador,

juntamente com a mulher e o feminino. A Igreja Católica foi a instituição que mais pregou e

difundiu a salvação da alma pela mortificação do corpo físico.

Na Idade Média, essas crenças alcançaram seu apogeu. O corpo mortal era visto

como algo sujo, pecador, desprezível em oposição à glorificação da alma imortal.

Nos séculos das “luzes”, já na Modernidade, o corpo ainda foi visto em antagonismo

à razão, porém devendo estar a seu serviço. O “Penso, logo existo”, de Descartes, marcou o

homem ocidental, atravessando os séculos, a partir do XVI, perdurando até hoje, submerso a

muitas visões filosóficas, psicológicas e educacionais. A dicotomia cartesiana entre res

extensa (coisa não pensante) e res cogitans (a coisa pensante) selou, de forma cabal, a

dicotomia antiga entre corpo e alma.

A partir da segunda metade do século XIX, as formulações filosóficas

(principalmente a Fenomenologia e o Existencialismo) e científicas trouxeram novas

perspectivas à compreensão do corpo, que passou, vagarosamente, a ser visto na sua

especificidade e não mais como um objeto a serviço da fé e/ou da razão.

O século XX abriu inúmeras possibilidades para a corporeidade, entendendo que é

no corpo que todos os saberes se entrelaçam, que a vida de um indivíduo se expressava na

vida de seu corpo, porém o dualismo corpo-alma ainda continua presente de forma velada,

porque interessa aos sistemas tornar este corpo dócil, modelado, obediente.

Em Vigiar e punir, Michel Foucault6, no capítulo intitulado Corpos dóceis, articulou

as semelhanças entre as instituições de seqüestro como a fábrica, a prisão, a escola, o hospital,

o quartel, constatando quais os mecanismos que atuaram em tais instituições e nos corpos.

Apontou o surgimento da tecnologia do biopoder, a partir da segunda metade do século

XVIII, cuja idéia central era a de que a sociedade ou o Estado devem incumbir-se de

organizar e multiplicar a vida:

[...] trata, sobretudo, de estabelecer mecanismos reguladores que, nesta população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações; em suma; de instalar mecanismos de previdência em torno deste aleatório que é inerente a uma população de seres vivos, de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida: mecanismos como vocês vêem, como sentimentos disciplinares destinados, em suma, a maximizar forças e extraí-las, mas que passa por caminhos inteiramente diferentes.

6 Sugiro, para uma leitura mais detalhada sobre o biopoder a obra de Michel Foucault intitulada Vigiar e punir:

nascimento da prisão.

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Foucault (1999) nos fala das políticas de governamentos como a maneira de dirigir a

conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, dos corpos, das almas, das

famílias, dos doentes, do tempo dos homens. Para o autor, as instituições médicas,

pedagógicas, penais, industriais encarregam-se de extrair o tempo dos homens, o tempo de

seu dia, de sua vida para que se transforme no tempo do seu trabalho e assim possa ser

utilizado da melhor forma pelo governamento da produção. Outra função de seqüestro é a de

controlar seus corpos, imprimindo neles ritmos, habilidades, conhecimentos, comportamentos

e qualificando-os como força “útil” e “dócil” de trabalho.

Sabemos que nossa sociedade prioriza a aprendizagem pelo processo cognitivo em

detrimento do aprendizado vivencial, que inclui corpo, emoções e até o espírito7 pois, o

Iluminismo, que dá o tom à Modernidade, assume que o conhecimento científico (cognitivo)

pode tudo. Então, a educação assumiu a aprendizagem conceitual como seu foco de atenção.

Sabemos, também, que, quando a educação propõe vivências corporais e lúdicas, o

faz com objetivo subliminar de atender à demanda cognitiva, desprezando o caráter

constitutivo e restaurador inerente a estas vivências, bem como o caráter espontâneo adquirido

na cultura não elaborada.

Entender como se dá o complexo processo de desenvolvimento do ser humano é

indispensável para a construção do conhecimento e das habilidades profissionais do educador.

Para poder trabalhar com a complexa experiência da prática educativa, o professor precisa ter

intimidade com a sua corporeidade, saber “lê-la” em si mesmo, decodificá-la, o que serve de

base para, numa segunda instância, de maior amplitude, “lê-la e decodificá-la” na interação

com a criança.

A ludicidade é vista e pensada como um recurso promotor da interação vivencial da

corporeidade do educador com a corporeidade do educando, constituindo a ponte, a via de

acesso aos códigos verbais e não-verbais que compõem as interações humanas.

Já são muitos os estudos que nos ajudam a compreender o significado da

corporeidade e da ludicidade no processo de desenvolvimento e, conseqüentemente, como

recurso no processo educativo de crianças. Autores e pesquisadores que trabalharam

diretamente com o tema do desenvolvimento infantil como Henri Wallon, Jean Lê Boulch,

André Lapierre, entre outros, assim como autores e pesquisadores que trataram do significado

da corporeidade na vida humana como Wilhelm Reich, Alexander Lowen, Stanley Keleman,

David Boadella, entre outros, no seu conjunto, sublinham a importância da consciência da

7 Entendidas, aqui, como elementos integrativos de uma das instâncias psíquicas do Self, segundo a psicologia

proposta por Karl G. Yung.

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corporeidade como recurso de vida saudável, assim como recurso no trabalho com outro ser

humano.

Ao vivenciar e observar o jogo espontâneo e simbólico, segundo a Psicomotricidade

Relacional, tenho constatado pessoalmente que as experiências psicocorpoais, enquanto

vivenciadas, se manifestavam essencialmente lúdicas na medida em que promoviam

experiências integrativas. Entendo por experiências integrativas aquelas que propiciam a

organização e/ou a reorganização da experiência dos níveis físico, emocional e mental no

tempo presente, ou seja, na intensidade da experiência que se está vivendo, permitindo que o

jogo aconteça criativamente, liberto, na medida do possível, dos julgamentos, sansões e

punições socioeducativas.

No contexto pedagógico, acredito que a atividade lúdica pode atender à demanda de

organização e estruturação da criança, considerando que o ato lúdico contém em si os

elementos necessários à integração da cultura espontânea com a cultura elaborada, através da

intermediação do educador cuja função maior é promover a união entre o já vivido e o que

carece de compreensão e entendimento, uma vez que a Educação Infantil deve se preocupar e

se ocupar com procedimentos e processos que levem os sujeitos a bem se estruturar,

fortalecendo-os em seus esquemas e imagens corporais, base sedimentar para posteriores

construções de condutas mais complexas e elaboradas.

Esquema e Imagem Corporal são fenômenos e conceitos entrecruzados, na medida

em que suas dinâmicas estão interligadas, sendo base para a vida pessoal e relacional de cada

ser humano.

O esquema corporal é estruturado através da maturação do sistema nervoso e a

imagem corporal pertence ao registro do imaginário, é inconsciente e sua base é afetiva. Tanto

o esquema quanto a imagem corporal estão assentados sobre pressupostos histórico-

biográficos e socioculturais bem definidos. Qualquer processo interno vivenciado pela criança

que constrói seu esquema e imagem corporal sofre a ação de dois grandes vetores: de um

lado, seu potencial biológico e psicológico entendido aqui como herança genética, e, de outro,

as relações com as figuras parentais como representantes da cultura e da sociedade na qual

estão inseridas e demarcadas por um tempo e um espaço.

Para construir seu esquema e imagem corporal, a criança necessita do outro, e do

outro que com ela interaja corporal, afetiva e cognitivamente, através do jogo, desde as suas

formas mais arcaicas até o jogo protagonizado, com caráter lúdico. É através das relações

parentais e corporais que os primeiros jogos, brinquedos e brincares se apresentam à criança.

Logo após, o grupo social assume este papel de interação.

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O primeiro jogo na vida de cada ser humano é o diálogo tônico-emocional8 entre a

mãe e seu bebê, que se expressa pelo contato que inclui a pele e as emoções através do tônus,

que é seu meio de transporte.

Henri Wallon acredita que a criança é, desde o início, um ser social, dando grande

acento a esta característica. De sua teoria, saliento o desenvolvimento da relação especular por

considerá-la lúdica e integrativa no que concerne ao jogo corporal, imagético e simbólico.

Descreve a evolução da criança diante do espelho, desde o momento em que encara a sua

imagem como se fosse uma pessoa estranha até o momento em que pode se divertir e brincar

com a imagem especular, podendo, um pouco mais tarde, se reconhecer e se nomear diante do

espelho. (GALVÃO, 1995).

Ao compreender a Psicogenética de Henri Wallon, podemos afirmar que educar

significa promover condições que respeitem as leis que regulam o processo de

desenvolvimento, mantendo a todo o momento a integração dos conjuntos (motor, afetivo,

cognitivo) e levando em consideração as possibilidades orgânicas e neurológicas do momento

e as condições do aluno. A essência do educar é, pois, garantir essa integração.

Jean Le Boulch, como um dos estudiosos do período denominado de corpo

consciente9, condiciona todos os aprendizados pré-escolares e escolares a uma base

psicomotora, pois levam a criança a tomar consciência de seu corpo, da lateralidade, a situar-

se no espaço, a dominar o tempo, a adquirir habilmente a coordenação de seus gestos e

movimentos. Introduz o conceito de Função de Ajustamento compreendendo a importância da

acomodação10 logo que a criança dá resposta motora às solicitações do meio, estando

relacionada à plasticidade cerebral e às possibilidades do indivíduo de adaptar-se a situações

motoras diversas, criando novos esquemas de coordenação e fixando-as na estrutura nervosa.

As contribuições de Le Boulch, sustentadas no fato de que suas técnicas aceleram os

processos neurofuncionais porque incidem sobre a aprendizagem, confirmam a idéia de que a

educação psicomotora na Educação Infantil se constitui em um processo eficiente e perene de

conhecimento interdisciplinar.

André Lapierre, ao criar a Psicomotricidade Relacional, tem como meta de estudo e

trabalho a observação e decodificação dos comportamentos corporais que põem em evidência

8 Expressão usada pelos teóricos da Psicomotricidade para explicitar a importância das primeiras relações

corporais entre mãe e bebê, com sua qualidade lúdica e emotiva, sendo prelúdio do diálogo verbal posterior. 9 É o período histórico no qual observamos um aprofundamento relativo aos estudos e às técnicas voltadas para o

corpo, objetivando economia do movimento. 10 O termo acomodação é usado no sentido piagetiano, significando “a transformação sofrida pelas estruturas

próprias do indivíduo em função das variáveis do meio”. (LE BOULCH,1984. p. 28).

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as estratégias habitualmente empregadas pelo sujeito em toda sua vida relacional. O meio no

qual fermentam as estratégias relacionais é o jogo espontâneo e simbólico.

Por jogo simbólico, esse autor compreende os jogos representativos, de faz-de-conta

e dramatização em que se busca o prazer, o domínio da angústia e a solução de conflitos, pois

possibilitam o equilíbrio entre o mundo interno e a realidade externa. Pelo jogo livre,

aparentemente desestruturado, improvisado, brotam as cenas primárias “grávidas” do

simbólico do sujeito a pedir uma elaboração lúdica e corporal onde se cria uma interação entre

o corpo da criança e o corpo do adulto e os objetos usados como mediadores da relação e da

comunicação.

No jogo espontâneo, onde o simbólico da criança vai ganhando expressão, aparecem

também, os fantasmas que emergem do mundo imaginário, como elementos que irrompem

sem disfarces, pois fantasmas são representações das pulsões que, de alguma forma, buscam

satisfação dos desejos reprimidos no inconsciente. Os fantasmas estão presentes nas

brincadeiras infantis, devaneios, contos de fada e, em todos os momentos, onde se busca um

refúgio compensatório da realidade através da fantasia.

O jogo simbólico e o jogo fantasmático podem se fazer presentes tanto dentro do

espaço terapêutico quanto do espaço educacional, manifestando-se bastante associados onde

podemos observar que este tipo de relação entre o adulto e a criança, através do jogo

espontâneo e simbólico, carrega-se rapidamente de conteúdos afetivos e emocionais onde o

adulto corre o risco de projetar inconscientemente seus desejos e fantasmas.

A partir desse olhar de André Lapierre, outros autores, que estudaram as

experiências psicocorporais, nos oferecem contribuições fundamentais para dar base a uma

pesquisa que objetiva estudar o significado do domínio da própria corporeidade por parte do

educador como recurso importante na Educação Infantil.

E o que tem dificultado para o educador infantil se valer de sua própria corporeidade

como recurso pedagógico? Este educador sabe brincar? Ele está impedido de brincar? O que

paralisa a sua corporeidade? E o que tem impedido o educador de brincar?

Após longos períodos históricos e com o esgotamento das explicações metafísicas

sobre o ser humano, vimos nos aproximando, com bases na filosofia e nas ciências, de uma

compreensão onde corpo-mente formam um todo, o que implica em que educadores tenham

consciência de sua corporeidade, como da corporeidade de seus educandos, e usem esse

recurso em sua prática educativa cotidiana. Por si, teorias e práticas constituem um todo. Só

didaticamente podemos separá-las.

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2.4 TEMA E HIPÓTESE DA INVESTIGAÇÃO

Em síntese, tomando por base minha trajetória de vida pessoal e profissional, assim

como estudos realizados no decorrer de minha formação, sinto a necessidade de sistematizar,

de uma forma orgânica, a compreensão da corporeidade como recurso de vida saudável para

os seres humanos em geral, acrescendo-se , para os educadores da Educação Infantil, como

recurso pedagógico essencial e indispensável na sua relação com as crianças, seus educandos.

A hipótese que assumo e que orientará a exposição dos estudos que realizei é de que

o educador infantil, para utilizar o recurso da corporeidade em sua prática pedagógica,

necessita da consciência de sua corporeidade pessoal, tendo em vista subsidiar seus educandos

a, também, se constituírem a si mesmos tendo como base sua corporeidade, instância onde se

dão, se organizam (ou se desorganizam) todas as experiências que formam a personalidade de

cada um. Dito de outro modo: a compreensão, a vivência e o domínio da própria corporeidade

por parte do educador contribuem para a organização das estruturas psicocorporais em

desenvolvimento na criança, assim como a ressignificação da vivência corporal por parte do

educador o capacita para uma prática estruturante de si mesmo e, conseqüentemente, da

criança, no que se refere ao desenvolvimento de suas estruturas corporais.

No capítulo que se segue a este, aprofundaremos a compreensão do que ocorre na

relação educador-educando e como isso se agrava quando não se tem consciência e domínio

da corporeidade pessoal. Trataremos, então, das dinâmicas de transferência,

contratransferência e ressonância na prática educativa, ou seja, trataremos dos fenômenos

projetivos, que têm bases corporais e que interferem de modo negativo na prática educativa,

ao mesmo tempo em que, também, apontaremos bases satisfatórias de uma relação

pedagógica, assentadas na ressonância corporal.

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3 A CORPOREIDADE NA RELAÇÃO EDUCADOR-EDUCANDO:

TRANSFERÊNCIA, CONTRATRANSFERÊNCIA E RESSONÂNCIA

Abordar a questão da transferência é tomar em consideração a questão da relação

entre os seres humanos em geral e, em específico, as relações entre profissionais e os que

recebem o efeito dessa ação, como ocorre na psicoterapia, na prática educativa, entre outras,

que estão comprometidas com relações onde uma das partes detém alguma autoridade. O

fenômeno da transferência está no centro de atividades que, para a sua efetiva realização,

exigem vínculos entre os participantes. A forma de se vincular entre o profissional e o

atendido pela sua ação tem papel determinante nos resultados. Afinal, os fenômenos

transferenciais compõem o “calcanhar de Aquiles” de qualquer relação. Na Educação Infantil,

onde a corporeidade é condição indispensável para seu sucesso, não há como fugir da

abordagem dessa questão.

Cada ser humano se dá, vive, se expressa e se relaciona com e a partir do seu corpo.

Tudo se dá no corpo − sensações, sentimentos, pensamentos − sempre em funcionamento

simultâneo e integrado.

As relações pedagógicas entre educador e educando se dão, presencialmente, através

da expressão corporal de cada um deles, que contêm em si a história pessoal congelada, como

diz Wilhelm Reich, de quem faremos um estudo no próximo capítulo. Transferência,

contratransferência e ressonância como fenômenos que permeiam as relações entre seres

humanos têm sua base na configuração psicocorporal de cada um.

Transferência, contratransferência e ressonância são possibilidades de relação entre

seres humanos em geral e entre educadores e educandos, no caso específico da relação

pedagógica. As relações transferentes e contratransferentes dificultam, quando não chegam ao

extremo de inviabilizar, processos pedagógicos satisfatórios; as ressonantes, ao contrário,

possibilitam um fluxo natural ao ensino e à aprendizagem. Relações ressonantes expressam-se

como “uma dança energética”, no dizer de David Boadella. Os educadores que têm

consciência disso, em sua própria experiência psicocorporal, poderão afetar muito a si

mesmos e a seus educandos, nas suas diversas facetas intelectivas, emocionais e espirituais.

Entender o fenômeno das relações humanas e suas interações passa por compreender

como os fenômenos transferenciais se dão no processo de comunicação. Toda comunicação se

dá pelo menos em dois níveis: o explícito, onde o sujeito verbaliza o que quer comunicar, e o

implícito, onde o não-dito também se faz presente pela gestualidade, tom da voz e suas

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modulações, expressões faciais, etc. Dito de outro modo, um é consciente, operado pela

vontade, e outro inconsciente, aparentemente excluído das relações comunicativas. No nível

consciente, tem-se o domínio do que se faz; no nível inconsciente, o que atua é a ação ou a

reação automática.

Podemos, então, imaginar e concluir o tamanho da importância desse fenômeno nas

relações educador-educando, principalmente quando o educando é uma criança que ingressa

na Educação Infantil; um adulto e uma criança.

A relação entre educador-educando é um processo complexo e em constante

mudança, envolvendo o estabelecimento ou o rompimento de vínculos que se manifestam no

espaço relacional através do padrão corporal de cada um dos envolvidos neste processo.

Como poderá, então, o educador negligenciar seu padrão corporal, ou seja, sua corporeidade

na relação com seu educando? Essa matriz que lhe identifica enquanto sujeito não poderá ser

subtraída da relação com seu educando e nem da relação ensino-aprendizagem. Vale lembrar

que falar do padrão corporal, na visão integrada do ser humano, equivale a falar, ao mesmo

tempo, do corporal, do emocional e do cognitivo, bem como de toda e qualquer instância que

nos defina como seres humanos.

Sabemos também que qualquer relação educacional, seja escolar ou não-escolar, é

uma relação de mediação. Um sujeito será o mediador em relação a outro sujeito na

transmissão e na assimilação de um conhecimento, de um saber, de uma prática, de uma

informação. Então, este sujeito que é sujeito da mediação de algo em relação a outro, o faz a

partir de si, do seu modo de ver e ler a realidade, portanto, de seu modo de ser, que se

expressa por sua corporeidade.

A observação cotidiana de nossas relações nos permite perceber como nos

“enganchamos” ou fluímos atuando junto de outras pessoas. Por quase nada, nos

“enganchamos” no outro, ficamos frustrados, decepcionados, com raiva, distantes, etc. Muitas

vezes, nem mesmo conseguimos dar conta do que houve. Então, os vínculos se turvam.

Nas relações pedagógicas, essa fenomenologia é facilmente observada. Para tanto,

basta um pouco de atenção. Em minha experiência profissional, sempre pude observar a

presença desses fenômenos interferentes nas relações pedagógicas, acrescentando-se que

quanto menor é a consciência corporal do educador, maior é a conseqüência para os

resultados do processo educativo.

Como estamos tratando da complexa rede relacional onde sujeitos históricos

interagem intensa e extensivamente, e onde uma das partes – o educando – está em formação,

necessário se faz que revisitemos o conhecimento produzido pelas ciências humanas acerca

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das relações entre seres humanos, onde ocorrem os fenômenos da transferência,

contratransferência e ressonância na formação dos vínculos entre si.

3.1 CONCEITOS BÁSICOS

Os conceitos de transferência e contratransferência se originaram na psicanálise,

com Freud, em 1912. Para a abordagem que se segue neste capítulo, convém que explicitemos

estes conceitos, pois, atualmente, eles se aplicam às outras áreas de relações humanas que não

exclusivamente à clínica psicanalítica.

Transferência11 é o deslocamento inconsciente de sentimentos e desejos associados

a figuras parentais e projetados para a realidade atual em figuras simbólicas de autoridade

como, por exemplo, o analista, o terapeuta, o professor, o coordenador, o chefe, os colegas,

etc. Constitui uma recriação de várias experiências que ocorreram ao longo do

desenvolvimento emocional do paciente (no caso da educação formal, do estudante) bem

como uma reflexão de atitudes complexas para com figuras de importância em sua vida. A

transferência se expressa sob a forma de projeções sobre aquele que exerce algum tipo de

autoridade sobre o sujeito que transfere seu estado emocional inconsciente de uma

experiência inconsciente do passado para o presente. Pode ser positiva quando envolve

sentimentos amorosos, cuidadosos, de obediência e docilidade. É negativa quando os afetos

projetados são de desconfiança, teimosia, hostilidade ou têm caráter sexual sedutor. A forma

mais comum de transferência é a do desejo de afeto, respeito e gratificação da necessidade de

dependência.

Na contratransferência12, a autoridade (que pode ser o terapeuta, mas também o

educador) poderá ter dois tipos de resposta emocional: uma que demonstre reações de como

ele realmente é; e outra onde as respostas são comumente específicas e inadequadas na

medida em que o paciente, o estudante, o subordinado se pareçam com figuras importantes do

seu passado. Na contratransferência se faz presente a resposta “projetada” da autoridade para

aquele que se encontra dependente, subalterno. Essa projeção traz deslocamentos de 11 Transferência “ [...] designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre

determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. Trata-se, aqui, de uma repetição de protótipos infantis vivida com uma sensação de atualidade acentuada.”(LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p. 668).

12 Contratransferência “[...] é o conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e mais particularmente, à transferência deste.” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p. 146).

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fragmentos da história pregressa desse profissional para a relação atual, o que dificulta ou até

impede que ele cuide de seu cliente com relativa adequação.

A transferência sempre se apresenta quando um paciente ou um estudante não vê o

terapeuta ou o educador como ele realmente é, e a mesma coisa é verdadeira, inversamente,

na contratransferência. Os dois processos podem colocar em risco o processo terapêutico ou o

processo educativo, pois a percepção se mostra nublada e confusa porque está sob o efeito

neurótico inconsciente das experiências pregressas, predominantemente infantis.

É importante incluir que existe uma terceira possibilidade: a distinção, ainda que

mesclada e sutil, entre transferência e aliança terapêutica ou educativa. Na aliança terapêutica

ou educativa, o núcleo saudável e adulto da personalidade do paciente ou do estudante faz

uma aliança com o ser do terapeuta ou do educador.

Muitos autores chamam a atenção para esta distinção, marcando um contorno para a

transferência e restringindo sua área de atuação àquelas respostas que são provenientes e

deslocadas das relações infantis, e que são irreais na atmosfera adulta terapêutica ou

educativa. Reações realísticas e apropriadas dos pacientes ou estudantes para com o terapeuta

ou educador podem, com certeza, não ser transferenciais.

Quando David Boadella (1992, p.11) traz o conceito de ressonância, ele o coloca

como uma via de saída aos complexos fenômenos que a transferência e a contratransferência

ocasionam nas relações: “A ressonância somática das mãos, da voz e da presença do terapeuta

é o campo organizacional no qual ocorre o processo formativo de reintegração do corpo, da

mente e do espírito”. Podemos inferir que a ressonância é mais abrangente e estrutural do que

a aliança terapêutica.

O termo transferência não é exclusivo da psicanálise. Fora das práticas psicológicas,

refere-se a deslocamento ou translado de qualquer tipo de material. Em educação, pode ser

aplicado à aprendizagem quando explicita o deslocamento de um conhecimento ou habilidade

de conhecer a partir de capacidades já desenvolvidas para um novo objeto de conhecimento.

Ver é uma das funções mais importantes para o educador que conduz o processo de

educativo: ver e compreender o estudante e a partir daí ajudá-lo a se ver e se compreender.

Ver é a função mais importante na terapia: para o terapeuta ver e compreender o

paciente e para o paciente ver e compreender a si próprio. Em psicanálise, este aspecto da

terapia é chamado de insight, pois, quando o paciente pode verdadeiramente ver o como e o

porquê de seu comportamento, ele poderá mudar este comportamento, resolvendo conflitos e

promovendo um melhor bem-estar. Este não é um processo simples porque nossos olhos estão

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dirigidos para o exterior e nós vemos os outros muito mais do que a nós mesmos. Possuímos

fortes resistências em ver de forma clara e transparente aquilo que é essencial em nós.

Ser visto é ser aceito no presente de uma interação; não ser visto no presente de uma

relação equivale a ser negado. E isto tem a ver com nossas emoções e nosso emocionar e o

emocional está comprometido com o corpo. Nesse sentido, Maturana e Gerda Verden-Zöller

(2004, p.136) dão a seguinte explicação:

O modo como interagimos com o outro é um assunto emocional, pois nossas emoções especificam, a cada instante, o domínio de ações em que estamos nesse instante. Noutros termos, são nossas emoções que especificam nossas ações, não o que fazemos em termos de movimento ou tipos de operações corporais.

3.2 O QUE OS PESQUISADORES NOS ENSINAM SOBRE A TRANSFERÊNCIA, A

CONTATRANSFERÊNCIA E A RESSONÂNCIA NA RELAÇÃO TERAPÊUTICA

Como base para este estudo, usaremos as compreensões de Sigmund Freud, Wilhelm

Reich, Alexander Lowen, Stanley Keleman e David Boadella, sendo que somente o primeiro

deles não fez da corporeidade sua prioridade de estudos e atuação profissional.

A transferência na clínica psicanalítica é vista e tratada como uma repetição, através

de deslocamentos temporais, de modelos infantis internalizados que são vividos pelo paciente

com uma sensação de atualidade acentuada. Em A dinâmica da transferência, texto de 1912,

Freud sublinha que a transferência está ligada a protótipos, a imagos, principalmente a imago

do pai, da mãe, do irmão, onde o médico é inserido numa das “séries” psíquicas que o

paciente já formou. Neste texto, o autor acentua sua preocupação com a força de resistência

com que a transferência surge: parte da libido que é consciente e se dirige à realidade está

diminuída em relação à parte que está retida no inconsciente em consonância com as imagos

infantis. O tratamento analítico vai, então, ao seu encontro para torná-la acessível à

consciência, tentando retirá-la de seu esconderijo. Neste ponto, trava-se um combate: as

forças que fizeram a libido regredir erguem-se como resistências à análise. A resistência no

tratamento analítico aparece, desde o início, como a arma mais poderosa da transferência.

Freud (1996, p.265) explica o processo transferencial:

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No processo de procurar a libido que fugira do consciente do paciente, penetramos no reino do inconsciente. As reações que provocamos revelam, ao mesmo tempo, algumas das características que viemos a conhecer a partir do estudo dos sonhos. Os impulsos inconscientes não desejam ser recordados da maneira pela qual o tratamento quer que o sejam, mas esforçam-se por reproduzir-se de acordo com a atemporalidade do inconsciente e sua capacidade de alucinação. Tal como acontece nos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seus impulsos inconscientes como contemporâneos e reais; procura colocar suas paixões em ação sem levar em conta a situação real. O médico tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos emocionais ao nexo do tratamento e da história de sua vida, a submetê-los à consideração intelectual e a compreendê-los à luz de seu valor psíquico. Esta luta entre o médico e o paciente, entre o intelecto e a vida animal, entre a compreensão e a procura de ação, é travada, quase exclusivamente, nos fenômenos da transferência. É nesse campo que a vitória tem de ser conquistada – vitória cuja expressão é a cura permanente da neurose. Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente.

Ele compreendeu, no início do desenvolvimento da psicanálise, que as resistências

tinham de ser reconhecidas, analisadas e elaboradas para que a visão do paciente se tornasse

clara o suficiente e ele pudesse ver a si mesmo. Resistência, do ponto de vista elétrico, é a

oposição que um condutor oferece para transportar a corrente elétrica. Logo, resistência

(oposição, obstáculo) e transferência são dois lados da mesma moeda, do mesmo fenômeno.

Em uma terapia psicanalítica, o terapeuta age como um espelho, no qual o paciente

pode ver o seu comportamento. A verdade é revelada pela interpretação do psicanalista às

associações livres do paciente, seus atos falhos e seus sonhos, interpretações que poderão ser

aceitas ou rejeitadas pelo paciente, que erguerá fortes defesas contra a dor que tais

interpretações evocam. Estas defesas constituem a sua resistência, pois a maioria dos

pacientes possui uma desconfiança latente do analista proveniente de suas experiências

infantis com seus pais quando foram conduzidos a aceitar uma declaração como verdadeira,

quando os seus sentimentos e sensações diziam o contrário. Essa profunda desconfiança em

relação ao psicanalista, seja consciente ou inconsciente, é uma expressão da transferência

negativa que normalmente vem associada ou encoberta por sentimentos positivos plenos de

esperança e apoio projetados na pessoa do analista – transferência positiva. Ambas as formas

de transferência existem alternada e concomitantemente no paciente durante o processo da

análise, criando o dilema de uma percepção dividida. Para corrigir esta visão imperfeita é

necessário analisar a imperfeição, o que significa analisar a situação da transferência. A

transferência se expressa como uma “compreensão” inadequada da relação, o que conduz

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também a uma “ação e/ou reação” inadequada, ocorrendo em função das configurações da

personalidade do cliente congeladas no corpo (o que Freud não incluiu ao descrever o

fenômeno da transferência e da contratransferência, fenômeno este que seria elucidado por

Reich, no que diz respeito à inclusão do corpo).

Freud (LEITÃO, 2003, p.145) não chegou a elaborar uma teoria da

contratransferência, porém, em texto de 1910, referiu-se, pela primeira vez, a esta palavra,

descrevendo-a como a resposta emocional do analista aos estímulos que provêm do paciente,

e como uma resistência inconsciente do analista ao processo em curso. Afirmou a necessidade

do analista trabalhar em si essas resistências com o objetivo de superar seus “pontos cegos”

através da análise didática e refletindo que

[...] nenhum psicanalista avança para além do quanto lhe permitem os seus próprios complexos e resistências internas; e nós, consequentemente, requeremos que ele inicie a sua atividade por uma auto-análise, aprofundando-a continuadamente, enquanto esteja a realizar as suas observações nos seus pacientes.

Ao fazer uma revisão do conceito de contratransferência na literatura, Leopoldo

Leitão, psicólogo português, ao citar Paula Heimann, psicanalista, afirma que após quarenta

anos do enunciado freudiano sobre a contatranferência, surgem outras sistematizações desse

conceito, advogando o uso da contratransferência como instrumento técnico de compreensão

do inconsciente do paciente: uma encara a contratransferência como fenômeno “total”, uma

reação emocional total do psicanalista para o paciente, e a outra sistematização compreende a

contratransferência como componente do campo analítico, onde transferência e

contratransferência são elementos que constituem uma unidade, um processo de trabalho

conjunto.

Wilhelm Reich, psiquiatra alemão, discípulo de Freud e sistematizador da

psicossomática, tendo por base os conceitos da Psicanálise, compreendia a transferência como

o estabelecimento de relações com o analista, traduzidas por manifestações de ódio, de amor

ou de angústia, que por sua vez, traduziam repetições inconscientes de atitudes regressivas

infantis para com pessoas importantes na vida do sujeito. Estendeu esta compreensão à leitura

da energia aprisionada ou circulante no corpo do paciente.

Em Análise do caráter, Wilhelm Reich (1972) classifica a transferência em três

tipos: transferência positiva reativa, transferência a partir de uma atitude de dedicação e a

transferência de desejos narcisistas.

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A transferência positiva reativa acontece quando o paciente usa o amor para encobrir

o ódio que lhe está subjacente, sendo o seu fundo uma transferência negativa latente. A

transferência a partir de uma atitude de dedicação para com o analista é indicativa de culpa ou

de masoquismo moralista e novamente, encontra-se ódio reprimido e compensado na raiz

desta atitude. Na transferência de desejos narcisistas, o paciente busca ser amado

incondicionalmente pelo analista, pois impera a esperança narcisista (exigências orais)13 de

que o analista ame, console e admire o paciente. Estes três tipos de transferência são

considerados por Reich como transferência positiva capciosa, pois invadem e confundem os

rudimentos do genuíno amor, não havendo, portanto, transferência positiva genuína no início

da análise, uma vez que esta só se apresentará depois que as atitudes depreciativas, críticas e

negativas para com o analista forem minuciosamente trabalhadas, desde o começo, no

processo da análise.

A contratransferência para esse autor é compreendida como “a tarefa do analista de

usar seu próprio inconsciente como uma espécie de aparelho receptor para “sintonizar” o

inconsciente do analisando” (REICH, 1972, p.175), uma vez que tanto o material analítico

trazido pelo paciente quanto a resistência aparecem justapostos e confusos, configurando um

sistemático trabalho de análise da resistência.

A transferência e a contratransferência na análise caracterológica seguem o padrão

de um protótipo, de um modelo, de um primeiro exemplo: a estrutura de caráter, que é a

forma como a pessoa organizou-se corporal e psicologicamente, passa a se interessar não

somente pelos personagens originais e atuais envolvidos na relação, mas, principalmente, pela

maneira como a relação aconteceu e como continua a se dar e qual a sua função atual e

pretérita. O caráter atualiza de maneira distorcida, como uma estratégia, a necessidade básica

da criança que não foi devidamente atendida pelo adulto no passado. Então, compete ao

terapeuta reconhecer a estratégica e a função psicossomática subjacente a ela, porque o

paciente irá, portanto, de forma infantil, demandar do terapeuta, através do caráter, o

atendimento daquela função mal atendida no passado.

Alexander Lowen é um médico norte-americano, que foi cliente e discípulo de

Wilhelm Reich, e dedicou-se profissionalmente à psicoterapia somática, desdobrando e

recriando muitos dos entendimentos formulados por seu mestre, dando à sua abordagem a

denominação de Bioenergética. Foi cliente de Reich nos anos 40 do século XX, e a partir de

13 Exigências orais referem-se a necessidades não atendidas ou mal atendidas durante a fase oral da libido,

período em que o narcisismo primário está se estruturando.

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1956/57 para cá veio dando forma à sua abordagem psicoterapêutica corporal. Para nós, nesta

etapa do estudo, interessa-nos sua compreensão sobre o fenômeno da transferência.

A análise bioenergética parte do axioma de que o “corpo não mente”, sendo ponto

de partida para ver e compreender a problemática de um paciente. Olhar nos olhos, observar a

expressão da face, o tom da voz, a maneira como se locomove, se apresenta e utiliza seu

corpo como forma de relação com o terapeuta. A expressão corporal é soberana sobre o

discurso. Enquanto escuta a história do cliente, o terapeuta olha para a expressão facial, olhos,

maneirismos, posturas do cliente buscando uma consonância entre o discurso verbal e o

discurso corporal. Na maioria das vezes, eles se contradizem, pois, segundo Lowen (1977,

p.174), uma infância feliz não mata o corpo. A falta de vigor é um sinal de que a pessoa

bloqueou muito do sentimento em função da dor que lhe causou.

Um olhar apurado sobre o discurso corporal do outro requer um terapeuta bem

treinado na sua própria leitura corporal a partir de todo um processo de autoconhecimento que

exige a vivência bioenergética: sua história revisitada em seu próprio corpo, bloqueios sendo

traduzidos e significados, fluxos energéticos sendo exprimidos e experimentados.

No nível em que o terapeuta ignora os seus próprios problemas corporais, ignorará

os de seus clientes, pois, na terapia bioenergética, a contratransferência se dará de duas

maneiras: pela incapacidade de ver o corpo do cliente como ele realmente é e pela projeção

inconsciente dos valores do terapeuta no cliente e na terapia, gerando uma impossibilidade em

ver e compreender as realidades da vida corporal do cliente. Este não poderá responder ou

receber amor e compreensão do terapeuta porque o terapeuta está fechado por graves tensões

musculares para se abrir. Aqui, nos defrontamos com a contradição entre o discurso verbal e o

discurso corporal na contratransferência; logo, os assuntos da transferência na análise

bioenergética tornam-se obstáculos de difícil transposição se os assuntos de

contratransferência não forem constantemente trabalhados, uma vez que nenhum terapeuta

pode ser considerado “pronto” em sua corporeidade.

Uma visão mais recente da análise bioenergética (CARLINO, 1996) (década de

1990 para cá) propõe que se acrescente às questões contratransferenciais, uma visão relativa

das realidades corporais entre terapeuta e cliente: a realidade passa a ser vista como um

conceito relativo que só terá significado no contexto terapêutico se houver concordância

mútua entre o que acontece em seus campos sensoriais. Uma vez que não podemos fazer

facilmente uma distinção entre os conteúdos inconscientes que se movem no campo sensorial

do terapeuta, acionados ou não pela demanda do cliente, a orientação é que se valha da

contratransferência para compreender o que se passa na corporeidade do cliente e, a partir daí,

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propor uma intervenção bioenergética e/ou traduzir o movimento da energia que afetou os

dois campos em interação. A análise bioenergética pôde gradativamente assimilar o

paradigma objetal à sua teoria básica, apoiada no paradigma pulsional, o que significa incluir,

como fator estruturante e determinante da corporeidade, a necessidade de estar em relação

como qualidade do humano, voltando-se para o estudo do desenvolvimento.

Leonard Carlino, trainer internacional em Análise Bioenergética, então, diferencia

uso do self do terapeuta – associando-o à proposta descrita acima – de contratransferência –

no sentido restrito do termo – às situações onde o inconsciente é obviamente o fator

predominante na interação e sublinhando que jamais o uso do self deverá ser confundido com

a ausência de limites e de fronteiras na relação terapêutica. Para que o terapeuta possa

colocar-se como parte ativa do campo de ressonância sensorial, necessário se faz que não

descuide de um constante trabalho psicocorporal consigo mesmo, num exercício consciente e

reflexivo de si mesmo.

Um outro olhar sobre a questão transferencial é apresentado por Stanley Keleman

(1992a), pesquisador norte-americano, cuja formação básica é em Biologia, mas dedicado à

psicoterapia. O resultado de seus estudos foi a criação da Psicologia Formativa, cuja base é

somática-emocional. Para esse autor, a estrutura anatômica é o arquétipo básico do

pensamento e da experiência. Anatomia é relacionamento interno e, portanto, alicerce das

relações humanas. As conexões internas que mantêm a estrutura da pessoa atravessam a

fronteira da pele e se manifestam no mundo exterior. Relacionamo-nos com os outros por

intermédio das formas que construímos. Obviamente que esta construção não se faz sem a

intervenção e interferência do outro e do meio em que vivemos.

De acordo com a história pessoal inscrita no corpo é que se molda a maneira como a

pessoa se vincula no presente. Logo, o vínculo é somático, ou seja, pelo desenvolvimento

aprendemos, através da interação de posturas somático-emocionais, como devemos nos

relacionar no presente.

Portanto, os vínculos atuais referem-se ao modo como um indivíduo experienciou e

foi correspondido somaticamente em suas relações de amor na infância, modo que

constantemente busca novas reorganizações. Cabe ao terapeuta investigar como o cliente

passou pelos estágios do amor, estando atento ao tipo de vínculo que ele precisa e entender a

natureza do seu próprio vínculo para compreender como facilita ou dificulta o processo de

vinculação do cliente. Cuidar, importar-se, compartilhar e cooperar (KELEMAN, 1996a,

p.30) são os quatro níveis do vínculo que, no processo terapêutico, pedem um funcionamento

móvel, onde se transite entre eles evitando tornar o vínculo cristalizado, imóvel, sem a

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pulsação necessária e vital. Ao terapeuta cabe também a tarefa de ficar atento à sua forma de

se vincular para que não dificulte o trânsito do paciente nos quatro níveis do vínculo dentro da

relação terapêutica.

Uma outra abordagem psicocorporal das relações entre cliente e terapeuta foi

formulada por David Boadella. Além dos conceitos de transferência e contratransferência,

introduziu o conceito do fenômeno da ressonância, através do qual terapeuta e cliente

encontram um vínculo satisfatório para o processo de restauração do cliente.

David Boadella é originário de Londres, Inglaterra, hoje vive na Suíça, com

formação básica em Educação Física, estudioso de Wilhelm Reich desde os anos 50 do século

XX. Em 1975, batizou sua abordagem psicoterapêutica somática de Biossíntese.

No que se refere aos conceitos de transferência e contratransferência, David

Boadella (1983, p.59) ampliou-os, compreendendo-os como padrão de interferência, o que

significa que algo distorcido está acontecendo entre o cliente e o terapeuta; entre aquele que

ajuda e o que é ajudado, existindo um padrão ou campo distorcendo o contato. Se o contato é

distorcido pelo cliente, temos a chamada transferência; se é distorcido pelo terapeuta, temos a

contratransferência, atuando alternadamente ou em conjunto.

Vale lembrar que, para o autor, herdando entendimentos de estudiosos anteriores,

um padrão de interferência reflete a distorção histórica de remotos padrões de cada uma das

partes envolvidas no processo e que quando terapeuta e cliente conseguem transpor este

padrão de interferência são conduzidos a um padrão de ressonância, o que significa falar de

vínculo satisfatório entre estas duas pessoas.

Ressonância é tudo aquilo que faz ecoar, vibrar um som que se reproduz ao longe no

tempo e no espaço. Para a física, o fenômeno da ressonância é aquele em que sobre um

sistema capaz de oscilar, atua uma série de impulsos periódicos cuja freqüência seja igual ou

quase igual à freqüência natural do sistema. Na troca, este último começará também a oscilar

com amplitude relativamente grande. Diz-se que o sistema ressoa com o impulso aplicado.

(HALLIDAY; RESNICK, 1973, p.547).

Sabato e Maiztegui (1973, p.250) afirmam que um corpo vibra por ressonância,

quando a ele chegam vibrações de freqüência igual à vibração própria do corpo.

Ressonância, para a Biossíntese, é alguma coisa que o terapeuta sente no próprio

corpo, cuja intensidade e significado ecoará no espaço relacional entre o terapeuta e o cliente,

constituindo-se em uma comunicação não-verbal. Para tanto, o terapeuta necessita de estar

preparado, consciente de seu modo de sentir e, ao mesmo tempo, estar aberto para sentir e

perceber o que vem do cliente.

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Rubens Kignel (2005, p.12), em sua Dissertação de mestrado O corpo no limite da

comunicação, foca seu estudo na relação psicoterapêutica e assim sintetiza seu trabalho:

[...] A relação psicoterapêutica dentro de um fenômeno que nomeamos de “ressonância não-verbal” ... tratando-se de algo que, mesmo não sendo da ordem verbal, produz comunicação entre os homens, criando devires num corpo real, que sente, percebe e se transforma em sua fisicalidade.

Kignel (2005, p.63; 65) explicita como se dá, no processo psicoterapêutico, a

ressonância não-verbal da seguinte maneira:

Cada ser tem a sua vibração, que o caracteriza e cria um código, que se transforma então num meio. Esse código é definido por uma repetição vibratória. Ao mesmo tempo cada código está em contínua possibilidade de passar de um para outro ou de misturar-se. Assim se forma a dança, o ritmo entre dois meios. Desse ritmo, dessa dança nasce o território, no momento em que os meios e ritmos perdem seu direcionamento e passam a dimensionar o espaço. De cada um dos dois nasce qualidades de expressão que definirão o território... Novos territórios vão se estabelecendo, e a intersubjetividade se estabelece pela harmonia. [...] Assim, tornar visíveis as forças captadas em alguém nos limites e além dos limites da representação é legitimar e abrir a possibilidade de comunicação... pois essas forças invisíveis no corpo são sempre potências no futuro.

Cabe relembrar que o nível sensorial constitui a nossa base perceptual e que, sem a

sensação, não percebemos que a forma mais primitiva de comunicação não-verbal entre dois

corpos acontece entre as percepções nos níveis sensorial, motor e emocional, cuja gênese

dessa comunicação tem seu ponto de partida no diálogo tônico-emocional entre a mãe e o

bebê.

Cabe, também, ressaltar que, quando o processo de ressonância encontra espaço

relacional para “ecoar” entre as partes envolvidas, estamos lidando com várias possibilidades,

muitas das quais, talvez, não consigamos decodificar. Porém, o ponto mais impactante desse

processo de comunicação não-verbal se refere às forças invisíveis no corpo como potências

futuras (como afirmou Kignel), como um devir humanizador na corporeidade dos sujeitos

comunicantes.

Para a Biossíntese, transferência é vínculo (RAMOS, 1998, p.41): como cliente e

terapeuta estabelecem uma relação baseada nos níveis de proximidade e distanciamento, onde

emoções são distorcidas pela necessidade do cliente de que o terapeuta esteja disponível para

ele da maneira como ele gostaria, que geralmente se manifesta através de uma demanda

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bastante regressiva e infantil. Contratransferência também é vínculo. Ambos são vínculos

somáticos, pois se manifestam na organização somático-emocional, formando uma díade em

busca de nova organização e/ou manutenção do já estabelecido, compreendidas, aqui, como

pertinentes a um sistema de interação entre dois pólos: o estável, o terapeuta, e o instável, o

cliente; um pólo organizado e o outro desorganizado.

Paul Pearsall (1999, p.336), em Memória das células: estabelecendo contato com a

sabedoria e o poder da energia do coração, fala da reação de ressonância desde o nível

celular:

O corpo tem várias reações automáticas tais como reação de medo, reação sexual e reação de relaxamento. A reação de ressonância é a capacidade do coração de sincronizar-se com os ritmos naturais da vida e ajudar a acalmar o cérebro e o corpo, entrando em sincronismo com outros corações e com a energia sutil do mundo natural.

No trabalho somático da Biossíntese, a transferência e a contratransferência referem-

se às posturas e atitudes emocionais e musculares de ambos, espelhando atitudes, sentimentos

e experiências. Portanto, a transferência é um processo somato-emocional que procura formar

uma conexão com o terapeuta, como explica Boadella:

Transferência é um esforço feito pelo cliente para abrir seu coração e arriscar-se a amar novamente. A transferência traz com ela a esperança de ser íntima. Significa aventurar-se, colocar no outro o que não pode ser aceito por si mesmo e, finalmente, tomar de volta e retornar para si próprio o que foi projetado.(RAMOS, 1998, p.46).

Importa observar que a transferência seria normal e esperada na relação de um

cliente com o seu psicoterapeuta, na medida em que ele vem para o profissional em busca de

ajuda, por isso apresenta-se como situação de dependência. O que não é o “natural” é o

psicoterapeuta contratransferir como reação à transferência do cliente. Como ele está posto

como um profissional, para isso deve preparar-se e assim portar-se, tendo em vista acolher o

cliente onde e como está. Caso ele contratransfira, não terá como ajudar o seu cliente em suas

necessidades. Por isso, pela sua presença e pela sua condição profissional deverá ser capaz de

produzir uma “dança energética” na relação terapêutica, onde o cliente não é excluído nem

invadido, mas cuidado para que faça seu processo.

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3.3 A TRANSFERÊNCIA, A CONTRATRANSFERÊNCIA E A RESSONÂNCIA NA

PRÁTICA EDUCATIVA

Neste tópico, vamos transpor do campo psicanalítico e psicoterapêutico as

compreensões sobre os fenômenos da transferência, da contratransferência e da ressonância

para o campo da prática educativa. Como no campo psicoterapêutico, no campo pedagógico,

a transferência do educando para o educador pode ser um bom recurso para vincular-se ao

educador, porém a contratransferência do educador será um recurso que, por si, dificultará o

processo de vinculação do educando, assim como o atendimento de suas necessidades.

Educador e educando estão inseridos em um campo grupal e geográfico bem

delimitado pelo espaço, pelo tempo, pelo currículo que, por sua vez, trazem em seu subsolo os

valores e a política do processo educacional vigente. Este campo grupal é também um campo

psicológico onde afetos e emoções permeiam todas as relações, gerando o processo de

transferência e contratransferência, pois, movimentos, atitudes e demandas escapam ao

controle consciente dos sujeitos. É uma situação onde o real e o simbólico se mesclam no

processo das relações, ressaltando-se que toda realidade possui símbolos e todo símbolo

possui realidade.

Podemos ainda compreender que, nestas relações educador-educando-grupo, cada

componente traz seu padrão corporal para dentro do grupo e nessa situação, manejar o

processo transferencial também não é uma tarefa fácil. Obviamente, a maior parcela de

responsabilidade caberá à parte adulta da relação que é o educador, pois, professores que não

ressoam com seus grupos não conseguem se comunicar de forma construtiva. Se ele estiver

bem enraizado em sua corporeidade, conseguirá ver que este processo é um convite a que

novos ajustamentos se operem de forma criativa e que, na realidade, o que os envolvidos

desejam é evitar uma repetição de dores oriundas de suas histórias pregressas marcadas em

suas corporeidades. Como poderá o educador restaurar as perturbações ocorridas nas

fronteiras de contato entre os sujeitos e que está afetando a fronteira do campo grupal? Ou

seja, como poderá o educador manejar, adequada e favoravelmente, os complexos atos

transferenciais que se dão na prática educativa, não se perdendo dentro dela?

Lucia Helena Pena Pereira (2005, p.153), em sua Tese de doutorado, sugere que a

ludicidade é uma nova possibilidade e recurso de formação para que o educador e o educando

possam ultrapassar as dificuldades de contato, abrindo horizontes na comunicação:

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A ludicidade assim como a arte, sempre presentes na Bioexpressão, são recursos valiosos para facilitar, o autoconhecimento e a experiência pessoal. Cada um de nós é único, cada cultura é única e a ludicidade é a dinâmica da singularidade, da auto-organização. Considero que ludicidade e a arte “dão voz, olhos e ouvidos”a quem as vivencia, daí sua importância na formação do educador. Se ele é escutado e visto, vivencia a importância de escutar seu educando, de vê-lo de fato, de considerá-lo como um ser humano em formação, vivencia o significado de brincar, de construir, de criar a sua prática pedagógica; vivencia a aprendizagem do cuidar, do afeto, da sensibilidade, da espiritualidade.

Como afirma Paulo Freire (1996, p.21-22): “Não há docência sem discência [...]

Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém”. A práxis pedagógica, que hoje nos chama à

reflexão, não depende exclusivamente do saber e da autoridade do educador e nem da

completa autonomia e autogerenciamento do educando na construção do seu aprendizado.

É preciso garantir e reafirmar o lugar do educador como responsável e construtor da

práxis pedagógica a partir de uma posição crítica, social, histórica e humana. Cabe-lhe

focalizar e orientar as possibilidades para a produção ou a construção do conhecimento,

sabendo, de antemão, que há um parceiro ativo a ser considerado nesta construção, que é o

educando. Educar, desta perspectiva, exige inteireza, verdade, humildade, flexibilidade,

envolvimento. Dito de outro modo, ser educador requer o constante assenhorar-se de si

próprio, de sua corporeidade. Estamos diante de uma relação de intimidade entre educador,

educando e grupo, o que implica o corpo como recurso de expressão e relação.

Uma relação de intimidade vai além da disponibilidade para conhecer os saberes

curriculares e a experiência social dos educandos. É entender o conjunto das demandas

humanas, não restringindo-as à esfera cognitiva da relação; lembrando-se, a partir de sua

própria corporeidade, que a grande busca do humano é a integração de si mesmo.

Rubens Kignel (2005 p.14) expressa bem a qualidade da relação de ressonância,

quando diz:

Relações que funcionam a partir de experiências ressonantes marcam territórios, educam, ensinam, treinam e criam um contato musical de canto e dança que dinamiza a comunicação, deixando uma melodia, um som, uma imagem que marca o sentido, o encontro muito mais que palavras perdidas e sem conexão com o organismo, simples atributos.

Essa compreensão nos faz entender que os fenômenos transferenciais estão presentes

nas relações integrantes da prática educativa, o que implica em que o educador, o adulto da

relação pedagógica, de um lado, esteja atento às expressões transferenciais dos educandos, e,

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de outro, cuidadoso consigo mesmo para que não reaja ao educando com o mesmo tipo de

recurso. Para que uma prática pedagógica transcorra de modo satisfatório, do ponto de vista

das relações e dos vínculos, importa que o educador tenha posse de seus afetos e possa

administrá-los de forma favorável a sua atuação profissional. Isso, como vimos expressando

neste estudo, necessita de dar-se em sua corporeidade, na consciência do que ocorre consigo

em seu corpo.

Como nossa formação regular de educadores esteve centrada no aspecto cognitivo e

conceitual, temos tido pouca habilidade para operar com os fenômenos transferenciais, que

são afetivos e emocionais. Daí, ver em nosso cotidiano escolar, assim como nos depoimentos

de estudantes, de pais, mães e, por vezes, da imprensa, relatos desastrosos da relação

educador-educando.

3.4 A TRANSFERÊNCIA, A CONTRATRANSFERÊNCIA E A RESSONÂNCIA NA

PRÁTICA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Sabemos que um dos principais núcleos da profissão de educador infantil é o núcleo

afetivo e relacional, ligado ao envolvimento emocional que esta atividade demanda, porque a

criança aprende a construir a complexidade do próprio mundo afetivo, social e cognitivo a

partir da integração e da continuidade das primeiras experiências cotidianas e concretas de

relação interpessoal, e porque a dimensão relacional é, de acordo com as recentes pesquisas

do desenvolvimento da criança, a base deste desenvolvimento, o que implica em que não pode

ser ignorada ou negada por quem profissionalmente tem como tarefa “fazer crescer” crianças

pequenas.

No dizer de Georges Gusdorf (1995, p.75), o educador infantil é o herdeiro das

figuras parentais, substituindo-as na função principal de testemunhar as descobertas de um

mundo que se descortina para essa criança. Afirma que sobre esse educador repousam

esperanças, algumas dessas esperanças já traídas, e que desfruta de uma autoridade espiritual

que nenhum outro educador que lhe sucederá no cumprimento da função educativa junto da

criança maior e do adolescente irá possuir. “Por isso, ao longo de toda a vida, o homem

conservará fielmente a lembrança de seus primeiros professores”.

Uma pesquisa recente (ONGARI; MOLINA, 2003) realizada com educadoras de

creche na Itália, traz colaborações importantes para este estudo. No tocante às expectativas

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diante da profissão de educadoras de creches, as autoras observaram que o trabalho de educar

crianças pequenas permite que o adulto expresse as partes mais íntimas da própria

personalidade o que constitui, ao mesmo tempo, o lado gratificante mas, também, o lado

opressor do trabalho, pois este lado coloca, inevitavelmente, em jogo as dimensões

emocionais profundas do indivíduo, além de colocar o físico à prova. Exige que o educador se

apresente à criança como uma pessoa “estruturante”, capaz de ajudá-la a enfrentar as emoções

muito intensas e primitivas que caracterizam as primeiras fases da vida afetiva, e que esta

exigência mobiliza muitas energias físicas e mentais.

O sistema de Educação Infantil no Brasil se assemelha ao sistema italiano, no que

diz respeito à concepção legal de educação para crianças de 0 a 6 anos, dividido em creches

(0-3anos) e pré-escolas (4-6 anos). A diferença está na forma de atuar da educadora infantil

italiana: esta educadora não dá aula e nem alfabetiza; é uma professora de crianças e não uma

professora de uma disciplina. Uma mudança que, lá, vem se dando desde os anos de 1970,

onde o aspecto assistencial, com ênfase nos cuidados físicos − educadora sanitária − abre

espaço para os aspectos afetivos e educacionais.

Esta pesquisa inclui, também, um aspecto extremamente importante e geralmente

negligenciado: o relacionamento entre a própria maternidade (atual ou imaginada) e a função

de educadora infantil como um dos fatores implícitos de mobilização emocional profunda,

gerador de ansiedade e tensão psicológico-emocional.

Outro aspecto observado pelas autoras é o que se refere ao cansaço físico, pois a

relação educadora-criança é uma relação baseada na relação corporal:

O cansaço físico é percebido como importante: este é um resultado muito óbvio, se considerarmos que o trabalho com crianças pequenas implica um modo de relação centrado na corporeidade, que pode se tornar pesado do ponto de vista físico: além de raramente ficar parada, a educadora também carrega as crianças no colo, levanta-as... e ainda permanece sentada ao lado das crianças, freqüentemente, no chão. (ONGARI; MOLINA, 2003, p.79)

Neste sentido, a Psicomotricidade Relacional, no espaço educacional infantil, busca

ampliar a capacidade relacional através do jogo entre os educadores e as crianças,

favorecendo a organização das experiências corporais. Nessa dinâmica de expressão livre e

ação espontânea da criança, a relação corporal favorece que a transferência se dê de forma

muito intensa e muito rápida porque estamos lidando com uma sensibilidade muito arcaica,

primária e não-verbal ligada tonicamente às imagos maternas e paternas. Espera-se, dentro do

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jogo espontâneo e fantasmático, que a criança encontre no psicomotricista relacional ou

educador um parceiro simbólico para onde possa dirigir suas fantasias, suas emoções, suas

projeções, seus conflitos e seus desejos, configurando uma relação transferencial positiva e/ou

negativa, de amor e ódio, ao mesmo tempo que garante um ponto de segurança para a

expressão dos conflitos e dos afetos, dando-lhes a contenção necessária.

Por se constituir numa relação corporal, com o uso mínimo da linguagem verbal, a

contratransferência também se dá nesta direção, uma vez que o psicomotricista coloca seu

corpo “à disposição” da criança, como uma intervenção que responde e/ou provoca o que

pode vir carregado de sentimentos, emoções e projeções do psicomotricista ou educador sobre

a corporeidade da criança, onde pode tentar acelerar o ritmo da evolução da criança ou mantê-

la em estado de dependência do adulto. Mauro Vecchiato (1989, p.12-13), psicomotricista

relacional, ao relatar o estudo de caso de um menino de 12 anos, portador de Síndrome de

Down, analisa a contratransferência dentro do jogo relacional da seguinte maneira:

Pode manter a criança na dependência emocional através do seu comportamento de contradependência (tem necessidade de que a criança tenha necessidade dele)... prolongar o período agressivo porque se identifica inconscientemente com a criança e vive a agressão dirigida contra seu próprio pai ou sua própria mãe. Pode, também, inversamente, refutar a agressividade porque não pode assumi-la em relação a si próprio, etc. prolonga exageradamente a etapa fusional, porque nela encontra inconscientemente seu próprio prazer e sua própria gratificação.

A relação educador infantil-educando, como qualquer outra, exige a corporeidade

como recurso de relação. Corpos inconscientes expressam atos inconscientes, o que necessita

de ser superado para um ato educativo satisfatório.

Será que nossos educadores infantis têm prestado atenção à presença da

fenomenologia transferencial em suas atividades educativas? Será que eles foram ou têm sido

preparados para isso?

A observação do dia-a-dia autoriza-me a dizer que, no geral, nossos educadores

infantis não têm consciência dessa trama das relações, e nem foram preparados para

administrá-las. E assim, ocorrem recusas inconscientes de atendimento a demandas das

crianças; ou ocorrem exclusões indevidas, ou ocorrem aprisionamentos em estados de

dependência de algum processo afetivo.

A aprendizagem da consciência corporal é recurso fundamental para o educador

infantil, na medida em que a criança, mais do que em qualquer outra etapa de vida, é centrada

na sua experiência corporal. Ela sente no corpo o que se dá em sua vida e, através dele,

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expressa o que sente, o que necessita, o que é agradável, o que é confortável, o que é

desconfortável.

Transferência e contratransferência dão-se num corpo cuja consciência e posse de si

são precárias. Ressonância dá-se num corpo que tem consciência e domínio de si. Educadores

infantis necessitam de ser ressonantes em sua relação educativa. Para isso, necessitam de

conhecer-se em sua corporeidade.

Nosso próximo capítulo abordará as possibilidades dos olhares dos diversos autores

para a constituição de um sujeito consciente de si mesmo, através do seu corpo.

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4 HIPÓTESES DE ENCAMINHAMENTO DA INTEGRAÇÃO CORPO E

PSIQUISMO: UNIDADE E DIALÉTICA

É necessário reconhecer que é impossível um indivíduo não se comunicar.

David Boadella

Que hipóteses de encaminhamento temos para a questão formulada nessa

investigação, que nasce de uma fenomenologia observável, onde o corpo é o mediador

fundamental? Teórica e praticamente, várias hipóteses de compreensão e de práticas

restauradoras foram estabelecidas do âmbito da psicoterapia corporal. No que se segue, vamos

acompanhar essas soluções, na busca de fazer pontes entre a psicoterapia de base corporal e a

prática educativa de tal forma que possamos configurar soluções para a relação pedagógica.

Nos dois capítulos anteriores, dedicamo-nos a dois propósitos; de um lado,

configurar o objeto deste trabalho, (capítulo 2), e de outro, mostrar como a mediação corporal

se faz presente na prática educativa, através dos fenômenos transferenciais (capítulo 3): a

transferência, que pode ajudar nos processos de vinculação, a contratransferência, que

geralmente é negativa para esse processo, e a ressonância, que é um recurso necessário ao

educador para que se abra e sustente o vínculo com o educando. Neste capítulo, vamos

abordar compreensões e caminhos para a posse da corporeidade como recurso tanto para a

vida como para a atividade profissional.

Todas as relações humanas se dão pela interação direta ou indireta de nossas

corporeidades. A epígrafe acima de David Boadella é lapidar. Basta que um ser humano esteja

presente, aonde quer que seja, para que esteja se comunicando. As singularidades do próprio

corpo, do modo de vestir-se, pentear-se, usar adereços, seus sapatos, sua postura, seu gestual,

tudo é expressão. Metaforicamente, poderíamos dizer que “tudo fala”, que o “corpo fala”,

usando uma expressão do psicólogo Pierre Weil.

Na prática educativa, em especial na da Educação Infantil, não se pode esquecer ou

negligenciar a corporeidade em formação na criança através da interação com a corporeidade

já “formada” do educador. A corporeidade é, naturalmente, comunicativa, pois o ser humano

é, por natureza, um ser de comunicação e em comunicação.

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Por milênios, a humanidade vem refletindo, questionando, ponderando a respeito da

relação entre corpo e mente, soma e psique. O termo psique (do latim, anima, alma) abrange

nossa vida afetiva bem como a cognitiva, imaginativa e relacional. Os antigos gregos

incluíram o corpo no seu conceito de therapeia (cuidado). Nesse contexto, Hipócrates

formulou sua máxima: mens sana in corpore sano.

As raízes da questão mente e corpo estão profundamente plantadas em nossa

história, principalmente naquela que percorre o caminho das diversas formas de pensar sobre

si mesmo e sobre o mundo que nos cerca, passando por períodos turbulentos como a Idade

Média, onde muito se fez para mortificar o corpo, separando-o da alma.

No nascer da Psicanálise, Sigmund Freud (1996), em 1923, lançou novas luzes sobre

o psiquismo, abrindo espaço para que essa compreensão pudesse ser reencontrada: “O ego é

no seu sentido primeiro um ego corporal e sua conexão com o aparelho muscular influenciará

este aparelho ora criando, ora reduzindo a tensão”.

Foi Wilhelm Reich quem desenvolveu, a partir de Freud, os aspectos somático-

energéticos latentes da teoria da libido, tornando-se o fundador da psicoterapia corporal

moderna. Sua obra tem como suporte teórico-filosófico, além das idéias oriundas da

psicanálise, as idéias sociopolíticas de Karl Marx. É Merleau–Ponty (apud LE CAMUS, 1986,

p.33) quem melhor expressa a máxima fenomenológica de uma concepção que caracteriza

toda a abordagem somática: “Não é preciso dizer que nosso corpo está no espaço, nem está no

tempo. Ele habita o espaço e o tempo [...] Eu não estou diante de meu corpo, estou em meu

corpo, ou melhor, eu sou meu corpo”.

Reich postula, então, a identidade psicossomática como uma identidade funcional

entre o psíquico e o somático, que têm como fonte a mesma energia, possibilitando a

correspondência e mútua influência entre atitudes corporais e atitudes psíquicas e emocionais.

Nesta perspectiva, o soma influencia a psique assim como a psique condiciona o soma.

Essa compreensão de Reich aprofundou-se e ampliou-se nos seus desdobramentos

reichianos e as neoreichianos14, tais como a bionergética, a biossíntese e a psicologia

formativa, que serão alvo deste estudo, neste capítulo, pois são abordagens psicossomáticas

que promovem uma compreensão integral do ser humano.

Seguindo a linha de valorização da experiência vivida, como recurso vivencial do

autoconhecimento, Alexander Lowen sistematizou a bioenergética. Concentrou seu interesse

de estudo na relação funcional do caráter com a atitude corporal através do trabalho com a

14 Não incluímos, aqui, por razões do foco desta pesquisa, a vegetoterapia-caractero-analítica de Frederico

Navarro e nem a psicologia biodinâmica de Gerda Boysen.

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couraça muscular. Para Lowen, cada pessoa é o seu próprio corpo, estando nele impressa toda

a história psicológica do sujeito onde se revela a sua psicodinâmica.

A Biossíntese, segundo seu criador, David Boadella (1992) significa integração da

vida, tendo como meta possibilitar que a vida pulse e se expresse, de forma criativa, em seus

vários níveis e dimensões.

A Psicologia Formativa, de Stanley Keleman, enfoca a possibilidade que temos de

organizar um corpo herdado na tarefa de torná-lo pessoal, adaptando-o à própria existência.

Seu foco de estudo centra-se na constituição da forma, assumindo que forma é função na

dinâmica da vida.

Não menos importantes para a configuração de soluções psicocorporais para a

relação pedagógica na Educação Infantil são as abordagens do desenvolvimento psicomotor,

que também contribuem para uma compreensão integral do ser humano. Nesse sentido, ser-

vir-nos-emos das contribuições de Henri Wallon, Jean Le Boulch e André Lapierre.

4.1 ABORDAGENS PSICOSSOMÁTICAS: HIPÓTESES DE COMPREENSÃO DA

DESINTEGRAÇÃO E DA INTEGRAÇÃO CORPO-MENTE E SUAS

CONSEQÜÊNCIAS PARA A VIDA E A PRÁTICA EDUCATIVA

4.1.1 À guisa de esclarecimento

O termo psicossomática surgiu em 1928, grafado com hífen (psico-somática) o que,

por si, caracterizava as incertezas sobre a relação mente-corpo. Segundo Julio de Mello Filho

e colaboradores (1992) – médico contemporâneo –, a psicossomática evoluiu em três fases:

inicial ou psicanalítica, com predomínio dos estudos sobre a gênese inconsciente das

enfermidades e os benefícios secundários do adoecer; intermediária ou behaviorista,

caracterizada pelo estímulo à pesquisa em homens e animais e atual ou multidisciplinar, onde

vem emergindo a importância do social e de uma visão sistêmica e de interconexão entre os

vários profissionais de saúde.

A Psicossomática é, portanto, uma visão nova da patologia e da terapêutica, trazendo

para o pensamento e para a prática médico-científica a máxima “tratar doentes e não

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doenças”, humanizando esta prática. A Psicossomática representou e representa uma

transformação do pensamento e da ação clínica a partir da inclusão da dimensão simbólica do

homem na geração da doença e da saúde.

Wilhelm Reich ao estudar a unidade psicossomática como uma unidade funcional

entre o somático e o psíquico planta raízes, possibilitando que as ciências médicas e

psicológicas aprofundassem esses estudos e encontrassem a unidade, onde, antes só havia

dualidade.

4.1.2 Wilhelm Reich: do caráter neurótico ao caráter genital

O amor, o trabalho e o conhecimento são as fontes de nossa vida. Deveriam também governá-la.

Wilhelm Reich

Wilhelm Reich está entre os precursores da psicoterapia corporal. Partindo dos

estudos psicanalíticos sobre a teoria da libido e ampliando-os, constituiu um olhar

psicossomático sobre o ser humano, abrangendo tanto as distorções expressas no corpo, assim

como as possibilidades de restauração de um fluxo energético saudável em cada ser humano.

Ao padrão distorcido e limitante de personalidade, ele deu o nome de “caráter

neurótico” e, ao padrão saudável e criativo da personalidade, ele deu o nome de “caráter

genital”. Sua teoria e suas propostas terapêuticas apontam para e possibilitam um trânsito do

caráter neurótico para o caráter genital, ainda que devamos tomar a descritiva desses padrões

de conduta como configurações ideais, na medida em que, na prática, o espectro de nuances e

de matizes de cada um desses padrões de conduta seja bastante amplo.

4.1.2.1 A trajetória de um desbravador

Wilhelm Reich nasceu na Áustria, em 1897. Diplomou-se em Medicina em 1922,

tornando-se membro da Sociedade Psicanalítica de Viena. Foi o primeiro assistente do Dr.

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Sigmund Freud. Em 1928, aderiu ao Partido Comunista, indo morar em Berlim no ano de

1930.

O envolvimento político de Reich tornou-se inaceitável para os psicanalistas e, por

sua vez, os comunistas não podiam tolerar sua insistência em programas radicais de educação

sexual, devido seus programas de educação conterem idéias muito avançadas, modernas e

controvertidas para a sua época, tais como: livre distribuição de anticoncepcionais; educação

intensiva para o controle da natalidade; abolição das proibições em relação ao aborto;

liberdade de divórcio; prevenção e eliminação de doenças venéreas; treinamento de médicos e

professores em questões de higiene sexual e tratamento em vez de punição para as agressões

sexuais.

Em 1933, foi expulso do partido comunista alemão e, em 1934, da Associação

Internacional de Psicanálise. Em 1933, imigrou para a Dinamarca. Em função dos programas

de educação sexual para camponeses e de pesquisas em laboratório com a bioenergia – que

mais tarde, chamaria de energia orgônica – também foi expulso da Dinamarca e da Suécia.

Radicou-se em Oslo, na Noruega, onde continuou seus estudos, pesquisas e atendimentos na

clínica psicanalítica, por mais cinco anos. Foi alvo de campanha difamatória de um jornal que

atacava sua ênfase na base sexual da neurose e seus experimentos em bioenergia. Em 1939,

mudou-se para Nova York, atendendo a oferta que lhe fora feita para o cargo de professor

associado de Psicologia Médica na New Scool for Social Research.

Fundou, então, o Instituto Orgon para manter sua pesquisa em energia orgônica ou

energia vital. Por volta de 1950, ocupou-se com experimentos envolvendo acumuladores de

energia orgônica: caixas que, segundo ele, armazenavam e concentravam energia orgônica.

Em 1954, argumentando que suas alegações sobre o tratamento bem-sucedido de várias

doenças, com acumuladores de energia orgônica, eram falsas, o Food and Drug

Administration (FDA)15 obteve uma ordem judicial proibindo a distribuição de acumuladores

de orgônio e quaisquer usos posteriores. Proibiram a venda de seus livros e revistas. Reich

transgrediu a proibição e continuou sua pesquisa, sendo, então, condenado a dois anos de

prisão. Morreu em 1957, na prisão federal, de doença cardíaca.

Esta sucinta biografia de Reich apresenta-nos a coragem, a persistência e a

convicção próprias de um cientista e de um homem obstinado em deixar seu legado para a

humanidade.

15 Órgão regulador nos EUA.

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4.1.2.2 O legado deixado por Reich

Ao aprofundar os estudos psicanalíticos com Freud e colaboradores, Reich descobriu

que corpo e mente são funcionalmente idênticos. Partindo do conceito de libido de Freud,

chegou ao conceito de bíons, que são partículas de energia que existem no organismo vivo e

em todo o cosmo, denominando de orgônio a este fluxo energético.

Reich já compreendia que os desequilíbrios das funções do corpo sob qualquer

forma poderiam igualmente ser os resultados de uma perturbação geral do funcionamento

vegetativo. Só não sabia, ainda, como este mecanismo operava.

Havia três compreensões básicas que vigoravam na sua época sobre a relação entre a

esfera somática e a psíquica. A primeira, denominada materialismo mecanicista, afirmava que

toda enfermidade ou manifestação psíquica tem uma causa física; a segunda chamada de

idealismo metafísico, entendia que toda a enfermidade ou manifestação psíquica pode ter

somente uma causa física (correspondendo ao pensamento religioso, onde o espírito cria a

matéria e não o contrário); e a terceira acreditava que o psíquico e o somático são dois

processos paralelos que exercem efeito recíproco um sobre o outro – paralelismo psicofísico.

Não havia nenhum conceito funcional–unitário da relação mente-corpo. E esta foi a

busca de Reich porque, mesmo sem saber explicar tal fenômeno, ele o percebia como

pertinente ao movimento da energia no ser humano.

Inquietavam-no as questões que se referiam à relação entre origem psíquica e

origem somática das neuroses, entre idéias e excitação somática, o conceito freudiano da

libido como energia psíquica, assim como a idéia de que um núcleo neurótico atual resultante

da frustração sexual pudesse ser atuante na psiconeurose.

A partir de uma classificação das neuroses, proposta por Freud em 1915, separando

as psiconeuroses (neuroses com causa psíquica, cujos sintomas são expressão simbólica de

conflitos infantis) e as neuroses atuais (causadas por uma disfunção somática atual, originada

a partir da insatisfação sexual, sem intermediação psíquica), Reich começou, então, a

defrontar-se com os conceitos freudianos e a questioná-los.16

Sua busca de compreensão sobre os aspectos somáticos da libido levou-o a perceber

que seu funcionamento estava associado ao sistema nervoso autônomo, portanto inconsciente,

fora do comando da vontade. Quando o sistema neurovegetativo estava carregado com

16 Os psicanalistas da época rejeitaram tais idéias de Freud, alegando que toda neurose é de origem psíquica e

não somática.

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excitação sexual não descarregada gerava angústia, portanto neurose. Para Reich (1986,

p.120), sexualidade e angústia são manifestações de duas direções antitéticas das sensações

vegetativas de excitação: “Se o caminho para a percepção e descarga da excitação física está

bloqueado, então a excitação se converte em angústia [...] angústia estásica era uma excitação

sexual não descarregada”.

Se uma excitação energiza uma idéia e se esta é incompatível com a consciência

(por razões morais), ela será inibida e se frustrará, enquanto a energia se acumula (estase)17

sem realizar-se. Essa energia terá que se associar a outra idéia para “descarregar-se”. Poderá,

então, conectar-se com idéias associadas a conflitos infantis, gerando sintomas neuróticos.

Assim, a neurose estásica é um transtorno somático devido à frustração e conseqüente desvio

da energia sexual. O desvio da energia é sempre resultante de uma inibição psíquica.

Reich (1972, p.10) enfatiza: “As psiconeuroses e seu conteúdo sexual infantil

aparecem sobre a base de uma inibição sexual atual; pois as psiconeuroses têm um núcleo

neurótico atual e as neuroses atuais têm uma superestrutura psiconeurótica”.

Desenvolvendo sua teoria, chega ao conceito de caráter18 e atitude vegetativa.

Percebe que a energia sexual não liberada não se descarrega totalmente. Acumula-se em

certos grupos musculares, resultando em um “caráter neurótico”, ou seja, criam-se tensões

específicas que vão se refletir na maneira de agir do indivíduo, sem a formação dos sintomas

neuróticos propriamente ditos. Reich percebe que, quando desaparece o sintoma, aumenta a

genitalidade do indivíduo. Mas há ocasiões em que isto não acontece porque a energia foi

situar-se nos traços de caráter – que acabam sendo socialmente aceitos como “natureza” da

pessoa. A estrutura de caráter é um fator essencialmente determinado de modo dinâmico

manifesto no comportamento característico de uma pessoa: o andar, a expressão facial,

maneira de falar e outros modos de comportamento, enquanto que a couraça muscular é o

bloqueio manifesto no corpo. (REICH, 1972).

A formação do caráter é uma função egóica de proteção, ligada às pulsões de auto

conservação. Do ponto de vista biológico, representa uma função autoplástica (modificação

de si mesmo) do organismo. E, apesar do encouraçamento rígido que pode resultar do caráter,

este ainda opera pelo principio do prazer, buscando a maior gratificação possível dentro da

estrutura resultante.

Contrapõe, então, o caráter neurótico ao “caráter genital” e passa a interessar-se pela

forma em que o conteúdo surge (atitude do indivíduo).

17 Estase é um conceito utilizado por Reich que significa estagnação ou parada de qualquer fluido circulante. 18 Caráter (do grego charakter) colocar um molde, estereotipar.

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Logo, para Reich, o objetivo da análise não é mais apenas transformar o

inconsciente em consciente, mas, sim, restabelecer o equilíbrio biofísico pela descarga da

potência orgástica. Isto é, transformar o inconsciente em consciente, liberando as energias

vegetativas. Não se trata apenas de descobrir mecanismos afetivos inconscientes, mas, sim, de

descobrir mecanismos físico-vegetativos (base física da enfermidade mental), modificando-os

e liberando os conteúdos afetivos inconscientes que assim se expressavam. Sua técnica centra-

se nos afetos e sentimentos vegetativos e o corpo do cliente é olhado de frente e analisado.

Ao publicar o livro Análise do caráter, em 1933, Reich lançou as bases de uma

caracterologia analítica, onde, em primeiro lugar, ficou claramente estabelecida a função

econômica do caráter, tendo como principais pontos a exposição da técnica da análise do

caráter, ilustrada com alguns casos clínicos; a compreensão de que, economicamente, o

caráter na vida diária e a resistência do caráter na análise servem à mesma função, ou seja, a

de evitar o desprazer, mantendo o equilíbrio psíquico (mesmo que este seja neurótico), a

compreensão de que a formação do caráter procede das mesmas experiências infantis que

produzem a resistência na análise ou formação de sintomas (as situações que fazem aparecer

na análise a resistência são duplicatas exatas das situações infantis que puseram em

movimento a formação do caráter: função defensiva e transferencial dos relacionamentos

infantis com o mundo exterior).

Surge, então, a análise do caráter a partir da teoria da Economia Sexual, que

investiga a energia biopsíquica, tendo na Vegetoterapia a contraparte clínica deste conceito.

A proposta de Reich (1986, p.129) sobre a análise do caráter inclui a noção do

desenvolvimento da couraça caracterológica. O conceito de “estratificação da couraça” abriu

muitas possibilidades, pois as forças e as contradições psíquicas não representavam mais um

caos, mas uma organização sistemática, histórica e estruturalmente compreensível. Havia uma

correlação entre a estrutura e o desenvolvimento da neurose: “O mundo total da experiência

passada incorpora-se ao presente sob a forma de atitudes de caráter. O caráter de uma pessoa é

a soma total funcional de todas as experiências passadas”.

A gênese do caráter tem por base o conflito entre as demandas pulsionais e o meio

exterior. São as funções de defesa do ego que estabelecem o recalcamento das pulsões

libidinais. Mediante o perigo da emergência de tais pulsões, o recalcamento torna-se crônico e

automático.

Durante a vida do indivíduo, repetem-se os conflitos entre o desejo libidinal e as

pressões do meio exterior. O ego, enquanto mediador desse conflito, estrutura cada vez mais o

caráter ou o modo de defesa adotado – couraça. No entanto, a energia libidinal não realizada

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se concentra (estase) e adquire força através da couraça. Uma parte desta energia do id será

usada pelo ego para reprimi-la. Em um círculo vicioso, a inibição aumenta a estase, que força

o ego a aumentar as forças repressivas, tornando cada vez mais crônica a couraça

caracterológica.

Com o aumento da energia estásica, a libido cria brechas através da couraça,

buscando realização. Um novo trabalho de defesa egóica leva a um disfarce dos desejos

sexuais através da criação dos sintomas neuróticos ou de novos traços de caráter. Desta forma,

a personalidade total é composta de diversos estratos de caráter. Estes vão se formando na

medida em que o estrato anterior falha em sua função defensiva, gerando angústia.

Devido à realização apenas parcial da libido, a energia represada aumenta, levando à

cronicidade e rigidez da couraça, à diminuição do prazer sexual e da capacidade de descarga.

A falta de satisfação sexual gera angústia; de outro lado, a frustração dos desejos leva a uma

reação agressiva, que também acaba sendo inibidora, novamente gerando angústia. Assim,

apesar de o indivíduo satisfazer às exigências exteriores com o seu caráter socialmente aceito,

internamente vive intensa angústia e insatisfação.

O importante é perceber o sentido genético da couraça, cujo caráter atual condensa

em si toda a história dos conflitos enfrentados pelo indivíduo e suas resoluções, compondo o

que Reich chamou de atitude de caráter (todos os modos de reação do indivíduo, desde o seu

posicionamento quanto a valores morais até sua forma de falar, sua postura, sua expressão

corporal, etc.).

A couraça muscular possui uma estrutura segmentada, isto é, determinados

segmentos ou grupos musculares são tipicamente afetados. O fluxo do orgone se dá em

sentido longitudinal em qualquer organismo vivo seguindo uma lei biológica bem conhecida:

a céfalo-caudal, onde o desenvolvimento procede da cabeça (extremidade superior) para a

cauda (extremidade inferior). Já a estase da energia imobiliza certos grupos musculares no ser

humano, exatamente no sentido oposto, ou seja, transversalmente ao eixo longitudinal do

corpo.

Segundo Reich (1986, p.120), os segmentos afetados pela estase energética são em

número de sete e são chamados de “anéis musculares”. Os anéis musculares são: anel ocular

(músculos ao redor da cabeça); anel oral (músculos da boca, queixo, garganta); anel cervical

(musculatura do pescoço, nuca, laringe); anel torácico (músculos peitorais, intercostais,

ombros); anel diafragmático (músculos diafragmáticos e órgãos relativos às funções

gastrintestinais); anel abdominal (músculos abdominais e laterais das costelas) e anel pélvico

(músculos da pélvis, região glútea e ânus). Cada grupo muscular é responsável,

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dinamicamente, pela expressão de determinado conjunto de emoções. A repressão de tal ou

qual emoção corresponde, funcionalmente, à estase orgonótica e imobilização mais específica

de alguns anéis musculares. Cada um desses estratos da estrutura do caráter é uma parte da

história da vida do indivíduo conservada e, de outra forma, ativa no presente, cumprindo

secreta função de defesa e proteção.19

A dissolução das couraças segue o fluxo longitudinal partindo do anel ocular para o

pélvico. Assim, a dissolução de um anel anterior permite o fluxo de energia para o anel

seguinte.

A libido é entendida enquanto energia bioelétrica que atua no campo psíquico.

Enquanto este campo é responsável pelo conteúdo simbólico das idéias, fantasias e afetos, o

campo biológico é quem provê sua energia. Então, do ponto de vista biológico, a energia

estásica desvia-se para grupos musculares, aumentando a tensão e levando a uma rigidez

também crônica, perturbando o equilíbrio vegetativo e a motilidade. Como diz o

psicoterapeuta reichiano Frederico Navarro (1987, p.27-28):

Eis porque a escola reichiana fala de bloqueios. Esses bloqueios são sempre de natureza muscular e, se foram produzidos no início da vida pós-natal, fixaram-se. Isto porque a memória emocional está ancorada no aparelho neuromuscular, ao passo que a memória intelectual está ligada à própria célula nervosa.

Outra afirmativa muito elucidativa é feita por Roger Dadoun, ao prefaciar o livro de

Frederico Navarro (1987, p.15) e embasar a sua somatopsicodinâmica em Wilhelm Reich:

“[...] a energia poderíamos dizer, é um operador de insights”.

A energia aprisionada no sistema vegetativo (bloqueios) corresponde ao afeto

reprimido. A unidade entre o psíquico e o somático implica em que toda a rigidez muscular

contém, ao mesmo tempo, o afeto e sua história de repressão, onde o significado é dado pela

cognição. O caráter neurótico retrata a cronificação de soluções que, em algum momento da

vida, foram úteis enquanto que o caráter genital possibilita que um movimento mais fluido se

instale, flexibilizando essas cronificações. Conseqüentemente, atingir o caráter genital não

significa a dissolução de toda a couraça, pois isso seria utópico, mas, sim, dissolver a

cronicidade e a rigidez da mesma.

19 Reich descreveu como seus pacientes reagiam com profunda aversão a qualquer perturbação no equilíbrio

neurótico de suas couraças; que sentiam em si mesmos camadas como cinturões rodeando seus organismos; que sentiam profundamente em seus corpos os paradoxo do aprisionamento da couraça que protegia de experiências desagradáveis, mas reduzia sua capacidade para o prazer. (REICH, 1986, p.120).

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A teoria de Reich sobre a análise do caráter, através da “vegetoterapia”, uma terapia

que trabalha a partir da compreensão das raízes fisiológicas das neuroses no corpo, instala as

bases para uma psicologia somática.

4.1.2.3 Caráter genital, corpo e expressividade

Reich contrapôs o caráter genital ao caráter neurótico, afirmando que a principal

diferença entre eles situa-se na possibilidade e na qualidade de flexibilização e movimento (e

não na dissolução total) da energia estásica cronificada na estrutura do caráter que, por sua

vez, leva a atitudes rígidas diante das diferentes demandas internas e externas, com um modo

de reação estereotipado e não adaptado. No caráter genital, a couraça passa a ser móvel,

adaptativa e expressiva pois, nessa circunstância, está governada por uma firme alternância

entre satisfação e tensão da libido regulada.

Para Reich (1972), a energia orgone cósmica funciona no organismo vivo como

energia biológica específica, governando todo o organismo e exprimindo-se tanto nas

emoções quanto nos movimentos puramente biofísicos dos órgãos. O autor assim explica esse

movimento: “O organismo vivo se expressa em movimentos por isso falamos de movimentos

expressivos. O movimento expressivo é uma característica inerente ao protoplasma. Distingue

o organismo vivo de todos os sistemas não-vivos”. (REICH, 1972, p.427)

Logo, em qualquer movimento ou excitação plasmática, o que se move é a energia

orgone que está contida nos fluidos do corpo, pois a mobilização das correntes e emoções

plasmáticas no organismo é idêntica à mobilização da energia orgone. Para o autor, a emoção,

fundamentalmente, é um movimento plasmático:

No sentido literal, emoção significa mover para fora ou expulsão. Devemos usar a palavra “emoção” ao falar de sensações e movimentos... Estímulos agradáveis provocam uma emoção do protoplasma do centro para a periferia. Estímulos desagradáveis provocam uma “emoção”, ou mais corretamente, “remoção” do protoplasma da periferia para o centro do organismo...e correspondem a dois afetos do aparelho psíquico: prazer e angústia. (REICH, 1972, p.427; 435).

Por isso, Reich compreendeu que o movimento expressivo – característica

qualitativamente inerente ao caráter genital – é um processo fisiológico da emoção plasmática

e está ligado inseparavelmente à expressão emocional, e concluiu que “o organismo vivo

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funciona autonomamente, para além da esfera da linguagem, da inteligência e da volição”,

pois o organismo vivo tem seus meios próprios de expressar-se através de movimentos que

nem sempre podem ser compreendidos pela linguagem. As palavras não dão conta de traduzir

o movimento expressivo que ocorre quando somos sensibilizados por uma música, por uma

obra-de-arte, por belezas naturais, pelo toque do outro.

A mobilidade reduzida, a capacidade restrita de sentir prazer, descargas energéticas

insuficientes por medo da excitação (carga) gerando angústia são expressões do caráter

neurótico. A fluidez, a mobilidade e a respiração expandidas, a relação não repressiva sobre as

pulsões sexuais (realizadas diretamente e/ou sublimadas) expressa o caráter genital que pode

ser percebido através de um comportamento espontâneo, autêntico, presente no aqui-e agora,

facultando uma relação mais criativa e saudável com a vida.

O alcance da proposta de Reich sobre o caráter genital afeta radicalmente a

Educação, principalmente a Educação Infantil, pois repousa sobre ela uma enorme

responsabilidade: como educar sem reprimir a potencialidade de cada ser humano, sem

impedir que sua criatividade, espontaneidade e vitalidade possam ser expressas e tenham um

lugar assegurado na cultura? Como ajudar a constituir uma estrutura egóica mais flexível?

Como não criar couraças que venham, mais tarde, a se constituírem em impedimentos

substanciais ao ato de viver? A que sistemas interessa manter os sujeitos “encouraçados”?

Diante disso, o educador em geral e o educador da Educação Infantil necessita de,

em algum nível possível, fazer um trânsito de suas marcas neuróticas para as genitais.

Aprisionado pelos traços do caráter neurótico, dificilmente o educador dará conta de uma

relação ressonante com os educandos, ajudando-os a se constituírem livres e criativos.

Isso que é básico para a Educação Infantil também o será para qualquer outro nível

de prática educativa. Quanto menos o educador estiver atrelado ao “caráter neurótico”, tão

mais satisfatória poderá ser sua forma de vincular-se aos estudantes e auxiliá-los em sua

aprendizagem e desenvolvimento.

4.1.3 Os desdobramentos da abordagem reichiana

Alexander Lowen, Stanley Keleman e David Boadella são os representantes, que a

partir de Reich, deram prosseguimento aos estudos da psicologia somática, formulando novas

sínteses compreensivas do ser humano como “ser integral”, onde corpo e psique formam um

todo. Cada um desses autores trouxe sua contribuição especial para a compreensão dessa

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fenomenologia, assim como produziu um modo de agir terapeuticamente assentado em suas

compreensões teóricas. Cada um desses autores tem uma hipótese parecida, mas com nuances

específicas: Alexander Lowen: do corpo traído ao corpo gracioso; Stanley Keleman: da

forma estressada à forma criativa; e David Boadella: do corpo formado ao corpo restaurado.

4.1.3.1 Paradigma pulsional e paradigma objetal

Vale ressaltar que os autores, desdobradores de Reich, passam a considerar em seus

estudos não só o paradigma pulsional, mas também o objetal. Aqui, antes de abordar esses

autores, faremos uma digressão para mostrar essa mudança de direção nas hipóteses

psicossomáticas de restauração do equilíbrio energético no ser humano.

A diferença entre eles e Reich consiste na maneira de conceber a natureza do objeto

e a função do objeto, como nos esclarece Odila Weigand (2006), psicoterapeuta corporal e

analista bioenergética, pois o paradigma pulsional propõe que o movimento da vida se dirija

para um estado de equilíbrio psíquico através da descarga da excitação e o paradigma objetal

afirma que é a necessidade de estar em relação que mantém a vida e nos distingue enquanto

humanos.

Todos estes teóricos se voltaram para o estudo do desenvolvimento, deslocando a questão da sexualidade do centro da organização psíquica, em favor de uma perspectiva de amadurecimento, da qual a sexualidade faz parte. Propagou-se o conceito de Desenvolvimento Interrompido, ou seja, diante de uma situação traumática ou da falta de certa experiência na fase adequada, ficaria um “buraco” na personalidade. Esse buraco constituiria a ferida narcísica do indivíduo. (WEIGAND, 2006, p. 28-29).

O paradigma pulsional desenvolveu-se a partir do conceito de pulsão, que é um

conceito-chave para a Psicanálise, pois traduz a junção entre o psíquico e o somático. A

pulsão, segundo o Vocabulário de psicanálise (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p.394), é:

Processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir sua meta.

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A tensão e descarga são somáticas e a procura do objeto capaz de reduzir a tensão é

psíquica, embora a primazia seja dada, nesta concepção paradigmática, aos bloqueios da

sexualidade gerados nas fases oral, anal e fálica do desenvolvimento da libido, determinando

a importância e a centralidade da sexualidade no âmago da organização psíquica.

A teoria reichiana, herdeira da teoria freudiana, cujos pilares principais são os

conceitos de libido, inconsciente, instintos de autopreservação e preservação da espécie,

sexualidade e trauma infantil, estruturou-se a partir da noção de pulsão, englobando psique e

soma e aprofundando os estudos sobre energia orgônica, teoria da economia sexual e análise

do caráter.

A Bioenergética, concebida por Alexander Lowen, é herdeira da teoria reichiana,

embasando-se nos mesmos princípios, porém trabalhando de forma mais ativa e interventiva

com o paciente, porque lhe propõe exercícios respiratórios e corporais e realiza pressões e

toques sobre determinados grupos musculares. Ela se mantém fiel ao paradigma pulsional –

centralidade da sexualidade e conseqüentes descargas da excitação – porém, ao estudar e

classificar minuciosamente os tipos de caráter abre-se, naturalmente, à interferência do outro e

das relações indispensáveis à organização das estruturas de caráter.

David Boadella (1997, p.29), no artigo intitulado Psicoterapia somática: suas raízes

e tradições, ajuda-nos a detalhar a interferência da teoria reichiana e, dentro dela, da teoria

freudiana, na concepção teórica e prática da Bioenergética:

Lowen estabeleceu relações claras, nos seus ensinamentos, entre o “id” dos analistas e o sistema nervoso autônomo (vegetativo); entre o “ego” freudiano (a “superfície” da superfície) e os sistemas motor e sensório-perceptivos do corpo. Também relacionou o conceito reichiano de couraça muscular ao superego freudiano: a garra da cultura no corpo do cliente... A Bioenergética focaliza detidamente a situação edipiana e os seus problemas.

As raízes do paradigma objetal também se encontram, em sua gênese, intrincadas no

paradigma pulsional. A primeira notícia que se tem sobre essas raízes vem de Sándor

Ferenczi, um dos mais conhecidos discípulos de Freud. Ilse Orth – psicoterapeuta – no II

Congresso Europeu de Psicoterapia Corporal, na Áustria, em 1989, descreveu a influência de

Ferenczi da seguinte maneira. (BODELLA, 1997, p.26):

Ferenczi foi o pioneiro do trabalho corporal, até antes que seu colega próximo, Wilhelm Reich, penetrasse nesse campo. A conceituação de Ferenczi era, no entanto, bastante diferente das intenções de Reich, que estavam focadas na “transposição da couraça do caráter” para tirar os bloqueios do corpo humano e permitir o livre fluxo de energia. Ferenczi

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estava utilizando a interação corporal enquanto reprodução de um clima de socialização precoce, no sentido de alcançar uma “experiência emocional corretiva”, como definiu seu discípulo Franz Alexander. Ele tocou seus pacientes porque estava tocado por suas dores, sua miséria, pelas suas histórias de vida plena de maus-tratos ou ausência de amor e conforto... Com essa abordagem, ele inaugurou o conceito de parenting... Esses conceitos não estavam voltados para as manipulações do fluxo de energia, a exemplo das abordagens reichianas, mas estavam focados na “atmosfera” e nos “microclimas emocionais” característicos das interações pais-crianças... René Spitz, Margaret Mahler e Donald Winnicott levaram adiante.

O paradigma objetal coloca a sexualidade ao lado, pois deixa de considerar a pulsão

como elemento central da estruturação do sujeito, discordando da teoria freudiana e

postulando que a libido é uma energia que busca objetos, relações e, não simplesmente a

descarga da tensão e o prazer.

A Teoria Objetal (LAPLANCHE; PONTALIS,1983, p.407) compreende: objeto

como toda pessoa, coisa, ente animado, inanimado, abstrato ou partes dos mesmos para onde

se dirigem motivações, impulsos, tendências, desejos, convertendo-se em objetos de pulsões;

relação objetal como relação mantida com objetos externos ou internos ao indivíduo e

também com suas representações mentais dos mesmos; objeto interno como representação do

objeto externo, sínteses das experiências mantidas com um determinado objeto externo ou

classe de objetos: conjunto de ansiedades, sentimentos, idéias e recordações com que são

representados, e objeto externo como pessoas, coisas, entes animados, inanimados, abstratos

ou fantasmáticos sendo sua ação sempre mediatizada pelo processamento interno de cada

indivíduo.

Melanie Klein, em 1930, tornou-se a precursora dessa transição, fundando a Escola

Britânica de Psicanálise que abarcou e ainda abarca expoentes como o psicólogo John Bowlby

e Donald Winnicott. Bowlby organizou um grande trabalho sobre vínculo, separação e perda

chamado de Teoria do Apego, apoiando-se nos padrões não-verbais de comunicação na vida

animal e estendendo-os à compreensão psicodinâmica dos padrões de vínculo mãe e filho.

Sofreu forte influência do psicólogo René Spitz – aluno de Sándor Ferenczi e paciente de

Freud – que estruturou uma teoria do desenvolvimento da criança pautado nos estágios do

desenvolvimento embriológico.

Donald Winnicott, psicanalista, seguidor da escola kleiniana, prosseguiu com os

estudos sobre desenvolvimento infantil e a influência do ambiente e das relações,

principalmente a materna, sobre a personalidade da criança, dando ênfase ao caráter lúdico

pertinente à condição humana.

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A partir de 1940, nos Estados Unidos, uma pesquisa voltada para a problemática do

desenvolvimento pré-genital da criança levou à organização da Teoria das Relações Objetais

(ou Psicologia do Ego ou Psicologia do Self). Encabeçavam esse movimento expoentes como

Hartmann, Kernberg e Margaret Mahler, esta na Inglaterra, em 1970.

O trabalho de Mahler – aluna de Ferenczi e analista de Donald Winnicott – merece

destaque pois desloca o foco das deduções psicológicas sobre o vínculo infantil para a

observação das interações mãe-filho. Em seu livro O nascimento psicológico da criança,

descreve a formação do ego nos três primeiros anos da criança, passando pelos seis estágios

de separação e individuação e onde tudo se dá por meio de uma comunicação praticamente

não-verbal, através da sensibilidade do toque, do gesto e da sinalização expressiva.

André Lapierre, na França, também em 1970, embora tenha embasado a

Psicomotricidade Relacional na teoria freudiana – paradigma pulsional – seguiu,

cuidadosamente, os estágios do desenvolvimento do movimento na criança a partir de sua

maturação sensório-motora. Ao configurar esses estágios dentro do jogo relacional, valeu-se

da teoria de Melanie Klein e René Spitz – paradigma objetal – sobre depressão anaclítica, na

qual a criança reage à sensação ( verdadeira ou falsa ) de “perda da mãe”, deprimindo-se e

causando distúrbios profundos em seu tônus.

Stanley Keleman pode ser considerado um psicoterapeuta que compreende o

funcionamento do corpo de uma maneira multidisciplinar. Influenciado pela teoria reichiana,

pela Bioenergética, pela Psicologia Individual de Alfred Adler – ênfase na força do ego e na

autodeterminação –, pelo trabalho de mitologia de Joseph Campbell e pela filosofia da Karl

Von Durckein, sua teoria se dirige ao princípio formativo em vez do princípio catártico do

paradigma pulsional reichiano. É quem traz a intersecção entre o paradigma pulsional e o

paradigma objetal através de uma nova formulação do princípio de realidade. Para Keleman

(1996b, p.11), “realidade passa a ser uma “produção”, um processo de evolução, de eventos

dentro do processo de evolução, biológica e social, ocorrendo perpetuamente dentro e fora de

nós”. Realidade, nesta perspectiva, refere-se a estar em relação com o outro, pois sem o outro

o sujeito não se estrutura e nem constrói nenhuma realidade, interna ou externa.

Regina Favre ao apresentar ao leitor brasileiro a 1ª edição – 1996 – do livro O corpo

diz sua mente de Stankey Keleman, nos fala do percurso percorrido por este autor até chegar à

Psicologia Formativa, citando um posfácio de Peter Marin em Human Ground (primeira

publicação brasileira de Keleman em 1974) e apresentado através deste percurso como

Keleman relacionou holograficamente o paradigma pulsional e o paradigma objetal numa

perspectiva de inclusão e transcendência:

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[...] as raízes freudianas recolocam a sexualidade no centro , revendo toda a vida interna e social do ser humano, renovando e revelando a nossa origem animal. Reich dá um passo adiante e revê as implicações do pensamento freudiano, alocando e localizando a libido, movendo o centro do homem – da cabeça para dentro do corpo, fazendo da riqueza animal a medida para a saúde. Enquanto Freud cede ao princípio da realidade e à necessidade de uma repressão inteligente, Reich teimosamente sustenta contra Freud a visão de um homem genital, exigindo uma absoluta transformação de sociedade para receber intacta a energia animal dos homens e das mulheres. Lowen, aluno de Reich e professor de Keleman, dá mais um passo. Ou talvez dois: um para frente e outro para o lado, como diz Marin. Modula o absolutismo reichiano para uma abordagem mais restrita do prazer. Retoma o senso comum. Os princípios da realidade e ajustamento se reafirmam. Lowen aceita a tensão entre as necessidades animais e involuntárias e as necessidades sociais semi-voluntárias. Há uma razoabilidade pragmática em relação a tudo isso, uma reação necessária aos excessos de Reich. Mais uma vez a visão terapêutica se dirige à vida diária das pessoas e aos detalhes da existência. Tal visão exige uma redução de tamanhos e objetivos. O que é colocado de lado, diz ele, é a visão cósmica que conduziu Freud e Reich à esperança de recriar inteiramente a maneira como vemos o mundo e nos movemos nele.

Nesta perspectiva de inclusão e transcendência em relação aos dois paradigmas foi

que os autores seguintes organizaram suas compreensões teórico-práticas, podendo valorizar a

importância e a força dos dois paradigmas na organização e constituição do sujeito.

4.1.3.2 Alexander Lowen: do corpo traído ao corpo gracioso

Alexander Lowen teve seu primeiro contato com Reich em 1940, no curso sobre

Análise do Caráter, em Nova York, na New School for Social Research, ficando, desde o

início, instigado e inquieto com a teoria da Economia Sexual, da Análise do Caráter e da

Vegetoterapia, apresentados por Reich. Terminado o curso em 1941, Lowen permaneceu em

contato com Reich, freqüentando assiduamente o Laboratório de Reich e participando de

seminários clínicos sobre vegetoterapia caractero-analítica, sob a direção do Dr. Theodore

Wolfe e em seminários dirigidos por Reich, em sua residência, onde eram discutidas as bases

teóricas das suas propostas, enfatizando os conceitos biológicos e energéticos que explicavam

seu trabalho com o corpo.

No período de 1942 a 1945, fez análise com Reich e, em 1947, foi para a Suíça –

Universidade de Genebra – cursar Medicina, retornando a Nova York em 1951. Nesse ano,

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Lowen associou-se, por certo período de tempo, ao Dr. John Pierrakos, psiquiatra seguidor de

Reich, que havia feito terapia no modelo reichiano. Dessa associação, surgiu um programa de

seminários clínicos sobre o trabalho com o corpo e posterior nascimento do Instituto de

Análise Bioenergética.

A Bioenergética foi concebida a partir do trabalho que Lowen fez com seu próprio

corpo, testando em si os exercícios, pois acreditava que só podemos propor e fazer aos outros

aquilo que podemos fazer por nós mesmos.

As experiências com a respiração abdominal profunda e consciente, o contato com

as pernas e os pés, o caráter expressivo e liberativo das emoções via exercícios e o toque para

relaxar as tensões musculares foram dando forma à Bioenergética, que foi complementada

com a análise do modo habitual de uma pessoa ser e comportar-se, através do estudo sobre os

tipos de caráter, onde Lowen relacionou as dinâmicas físicas e psicológicas dos padrões de

comportamento.

Por isso, todo empenho da Bioenergética é caminhar na direção do corpo atento,

presente e gracioso, pois, para esse autor, ao tratarmos nosso corpo como máquina ou

instrumento, por não estarmos identificado com ele e por vivê-lo como dicotomizado (mente

ou corpo, psiquismo ou corpo), nós o estamos traindo, como tão bem descreveu em seu livro

O corpo traído, 1993.

A Bioenergética é uma abordagem psicocorporal que unifica a visão do soma

(esquema corporal e couraça muscular) com a visão psíquica (imagem corporal e imagem de

si) trabalhando no corpo o fluxo da energia das sensações, emoções e sentimentos. O

emocional é modelado pelo físico e pelo mental. As emoções integram e circulam nestes dois

sistemas. Agindo-se em um dos sistemas, atua-se sobre o todo. Ter consciência de seu corpo é

um dos postulados da Bioenergética, pois sua teoria fundamental é a da identidade funcional e

a antítese de mente e corpo dos processos psicológicos e físicos (pressuposto reichiano da

teoria da economia sexual, onde funcional refere-se ao fato de que corpo e mente agem como

unidade no funcionamento corporal e nos processos energéticos e antítese porque mente e

corpo influenciam-se mutuamente).

Lowen (1982, p.38), assim, definiu o objetivo da Bioenergética:

O objetivo da Bioenergética é ajudar o indivíduo a retomar sua natureza primária que se constitui na sua condição de ser livre, seu estado de ser gracioso e sua qualidade de ser belo. A liberdade, a graça e a beleza são atributos naturais a qualquer organismo animal. A liberdade é a ausência de qualquer restrição no fluxo de sentimentos e sensações, a graça é a expressão desse fluir em movimentos enquanto a beleza é a manifestação da

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harmonia interna que tal fluir provoca. Esses fatores denotam um corpo saudável e, portanto, uma mente saudável [...] a natureza primária de um ser humano é ser aberta à vida e ao amor. Estar encouraçado, resguardado, descrente e fechado vem a ser a segunda natureza de nossa cultura.

A partir dos pressupostos reichianos, Lowen foi em busca das relações entre padrões

de desenvolvimento do eu e possíveis tipos de caráter e concluiu que: a) crescimento,

maturação e estabelecimento das bases bioenergéticas do princípio de realidade seguem uma

lei biológica bem conhecida: a céfalo-caudal, onde o desenvolvimento procede da cabeça

(extremidade superior) para a cauda (extremidade inferior); b) qualquer interferência séria no

processo de crescimento produzirá um problema caracterológico patológico que poderá

persistir durante toda a vida.

Seus procedimentos terapêuticos, atendendo aos pressupostos acima citados,

incluem o toque, as posturas, os movimentos e a respiração que se apóiam na análise do

caráter, na leitura corporal do fluxo da energia e na compreensão da história do sujeito,

reestabelecendo, assim, a percepção do circuito unificado entre o corpo e o psiquismo.

Ter uma percepção clara de seu corpo é um dos dogmas da Bioenergética, pois essa

é a única maneira de descobrir quem você é, isto é, o que é a sua mente, segundo afirma

Lowen ao longo de sua construção teórica e prática.

O conceito de grounding pertinente à Bioenergética é um dos seus pilares,

significando a dinâmica de estar com os pés bem plantados no chão, em contato com a terra,

portanto, em contato com a realidade, ancorado no próprio corpo e na sexualidade, estando

assentado no campo do próprio sentir. Representa o contato do indivíduo com as realidades

básicas da sua existência. O grounding – modo como nos sustentamos no próprio corpo –

revela algo sobre a maneira como nos situamos no mundo, o que sentimos o que somos.

Odila Weigand (2006, p.45) amplia e esclarece o conceito de grounding encontrado

em Lowen. Revisitando a terapia bioenergética, em sua Dissertação de Mestrado, ela diz que

grounding é processo energético em que um fluxo de excitação percorre o corpo todo, da

cabeça aos pés, em um movimento que pulsa de forma pendular entre as duas extremidades

do corpo, aumentando as ondas respiratórias e a excitação geral do indivíduo. A autora o

compreende como um código de comunicação e classifica a pulsação em três direções, a

saber: pulsação vertical onde o movimento pendular vai da cabeça aos pés e de volta até a

cabeça; pulsação horizontal que se dá através das relações e comunicação com os outros, e

pulsação entre a periferia do organismo e o centro e vice-versa, que conduz as percepções

internas, pensamentos e sentimentos que se traduzem em ação; a pulsação periferia-centro

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conduz os estímulos recebidos de fora para o centro, para o cérebro, onde serão decodificados

e organizados consciente e inconscientemente, podendo originar uma ação ou não. Afirma

que o verdadeiro grounding acontece quando as três direções estão ativadas de forma

integrada.

Outro pilar da Bioenergética é o trabalho com a respiração. O indivíduo saudável

pulsa no movimento respiratório básico da inspiração (contenção) e expiração (liberação) em

consonância com o movimento em direção à vida. O organismo que não respira livremente

não está completamente vivo e nem completamente morto, pois parte de sua pulsação está

comprometida por contrações cujo objetivo é evitar dor e desprazer, reduzindo as sensações e

os sentimentos, criando um circuito viciado de mais tensão, portanto de mais desprazer e dor.

A proposta de Lowen é que, através da terapia bioenergética, cada pessoa tome

posse de sua corporeidade, tornando o corpo e a vida graciosos e alegres. A terapia

bioenergética se propõe a oferecer ao sujeito recursos de restauração do seu fluxo energético,

tomando consciência e posse de si mesmo, o que possibilita viver de forma satisfatória

consigo mesmo e na relação com o outro.

4.1.3.3 Stanley Keleman: da forma estressada à forma criativa do corpo

Sabe, eu acredito nas formas. Acredito que tudo que é bom tem uma forma. As formas revelam quem somos e onde estamos em nosso universo. Mostre-me as formas e os formatos que um homem dá à sua vida e lhe direi se ele é dono ou vítima dessa vida.

Gail Godwin

Stanley Keleman foi aluno de Alexander Lowen, tornando-se membro, em 1957, do

Instituto de Análise Bioenergética e trainer deste Instituto até 1970. Desde o início de sua

prática clínica, Keleman observou a relação entre conflito emocional e distorção da postura

corporal. Viveu na Alemanha por três anos, no Centro de Estudos Religiosos de Karlfried

Von Durckein, onde as experiências emocionais lá vivenciadas confirmaram-lhe os conceitos

sobre o corpo como centro do self e plantaram as sementes para a concepção da Psicologia

Formativa e seu método somático-emocional, onde assumiu uma perspectiva filosófica

orientada para o fenomenológico e o existencial.

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Ao retornar, em 1967, aos Estados Unidos foi para a Califórnia como interno no

Esalen Institute, interagindo com muitos líderes do movimento humanístico como Carl

Rogers, Fritz Perls, Alan Watts, entre outros, onde pôde dar forma e corpo à anatomia

emocional. Com Joseph Campbell – o mitologista – estudou as relações entre mito e corpo.

Desde 1972, Keleman dirige o Center for Energetic Studies em Berkeley, onde

mantém um trabalho clínico e formação para profissionais.

Para Stanley Keleman, que, desde 1954, estuda a relação entre conflito emocional e

distorção de postura corporal, anatomia emocional é o conceito central da sua Psicologia

Formativa. As estruturas da psique humana, que se expressam na anatomia emocional, são

construídas; não vêm prontas. Assim como a anatomia é o estudo do corpo e seus diversos

componentes, a anatomia emocional é o estudo, a compreensão e a vivência da estrutura e

funcionamento da experiência somático-emocional do ser humano, que é formada ao longo da

vida. Sem anatomia, não há emoções, pois os sentimentos têm uma arquitetura somática.

Sua compreensão está focada no diálogo entre diferentes registros da experiência: o

pulsátil, o gravitacional, o aéreo, o emocional, o mental, que geram as infinitas modulações e

tonalidades do sentimento de estar vivo.

Keleman (1992a, p.30) chama este processo de geometria da consciência somática:

a vida produz formas. Essas formas são partes de um processo de organização que dá corpo às

emoções, pensamentos e experiências, formando-lhes uma estrutura. Essa estrutura, por sua

vez, ordena os eventos da existência que é por onde se pode conhecer a história genética,

social e pessoal. Descreve uma arquitetura tissular, geneticamente programada, finita e em

permanente construção e desconstrução, pulsando segundo afetos, como tubos dentro de

tubos, com suas câmaras e válvulas, sempre em busca de mais vida, inflando, esvaziando,

adensando ou enrijecendo de acordo com seu grau de tolerância aos ritmos da excitação

gerada pelas experiências de amor ou decepção, medo ou agressão, agonia ou prazer. Para o

autor, padrões de motilidade são diferentes de padrões de movimento. O movimento descreve

como as criaturas deslocam-se de um lugar para outro, é somático; enquanto motilidade, é

expansão e contração, alongamento e encolhimento, um fluxo interno que evidencia a

vitalidade do padrão pulsátil.

Keleman (1992a, p.30) enfatiza que a forma tem sempre uma função social e

pessoal:

Pedir a uma pessoa que se mova de um certo modo, que altere sua respiração, que evoque seu padrão de excitação é, de fato, penetrar no

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subsolo de sua existência. Os sonhos, os padrões de excitação, os impulsos, as lembranças e os gestos não buscam meramente articular emocional ou verbalmente uma dor profundamente enraizada, mas, na verdade, configurar uma forma, uma organização.

Uma forma rígida aprisiona o sujeito. Todavia, ela não é definitiva na vida da cada

um de nós. Processos somático-emocionais de autoconhecimento são restauradores do fluxo

energético no corpo, o que possibilita ao sujeito a posse de si mesmo, que, por sua vez,

possibilita-lhe administrar de forma adulta e amadurecida sua vida, suas relações; afinal seu

estar no mundo.

A forma é construída pelo ser humano em suas relações com o meio externo a ele.

Ela é-lhe necessária, podendo, quando rígida, restringir-lhe a vida; porém, quando fluida e

flexível, garantir-lhe um modo satisfatório de estar no mundo e de viver.

4.1.3.4 David Boadella: do corpo formado ao corpo restaurado

David Boadella (1992, p.10), a partir de seu treinamento em vegetoterapia, nos anos

50 e 60 do século XX, apresenta publicamente, em 1974, a Biossíntese, que significa

integração da vida, que é permitir o maior fluxo energético possível no organismo,

possibilitando-lhe uma expressividade espontânea e criativa, em suas várias áreas e

dimensões.

O conceito central da Biossíntese é que existem três correntes energéticas fundamentais ou fluxos vitais, fluindo no corpo e ligados às camadas germinativas celulares (ectoderma, endoderma e mesoderma) do óvulo fecundado, a partir do qual se formam os diversos sistemas orgânicos. Essas correntes se expressam num fluxo de movimento por todos os caminhos musculares; num fluxo de percepções, pensamentos e imagens que percorre o sistema neurossensorial; e num fluxo de vida emocional que está localizado no centro do corpo e flui através dos órgãos do tronco. Um estresse antes do nascimento, durante a infância ou no decorrer da vida quebra a integração dessas três correntes.

A integração do sentimento, do pensamento e da ação constitui o fundamento

externo da Biossíntese. Expressar a essência de cada pessoa é o seu fundamento interno, pois,

para Boadella, grounding interior é sinônimo de firmeza interior onde a essência pode se

manifestar e se derramar através do estabelecimento de uma boa relação entre os movimentos

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voluntários e semivoluntários e na criação de um tônus muscular apropriado à expressividade

do ser.

A Biossíntese se utiliza dos termos centring (centrar-se em si mesmo), grounding

(assentar-se na realidade através do corpo e do movimento) e facing (comunicar-se consigo

mesmo e com o outro) para expressar as tarefas fundamentais da vida humana, o que, por sua

vez, deve orientar a prática terapêutica. Cada ser humano necessita de estar centrado em si;

por isso, necessita de sustentar-se na vida; e, por último, poder viver, conviver e confrontar-se

com o outro e com o meio.

A teoria de trabalho terapêutico de reintegração desenvolvido por Boadella está

formada nos conhecimentos derivados da embriologia. Dois temas emergem como

preponderantes: o processo formativo na natureza e o campo organizativo. O primeiro diz

respeito a uma lei natural básica em um sistema aberto: altos níveis de organização e

complexidade se dão a partir de níveis mais baixos. O segundo explicita que qualquer

processo formativo requer condições apropriadas para se desenvolver. Caso contrário, a auto-

organização não acontece. A criança precisa do campo organizacional gerado pelos pais para

poder se desenvolver.

Através do processo formativo, cada ser humano constitui sua forma, que tanto pode

ser fluida ou rígida. As formas rígidas dificultam o livre fluxo da energia assim como a

integração entre sentimento, pensamento e movimento (ação), o que limita as possibilidades

de um viver saudável.

A “receptividade viva de outro ser humano” é o espaço propício para a restauração

da forma integrada e flexível do ser humano em sua expressão somático-emocional.

4.1.3.5 Concluindo

As abordagens somático-emocionais, anteriormente trabalhadas, mostram-nos

formas de compreender o ser humano como um todo, assim como deixam claro os limites que

cada um de nós se impõe a si mesmo, seja pela “neurotização do caráter” como expressão de

nós mesmos (Reich), seja pela “traição ao nosso corpo”(Lowen), seja pela constituição da

forma, de um modo insatisfatório à vida humana (Keleman e Boadella). Contudo, ao mesmo

tempo, cada uma dessas abordagens assume que é possível restaurar o fluxo energético no

corpo através de um cuidado consigo mesmo, no sentido de tomar posse da própria

corporeidade.

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Para o ponto de vista assumido e desenvolvido neste texto, as posições dos autores

acima referidos, são de fundamental importância na medida em que, ainda que tenhamos

configurado as dificuldades dos educadores em estabelecer vínculos com seus educandos

mediados pela corporeidade, eles podem restaurar esse contato com o corpo, com sua

conseqüente consciência, o que abre as portas para a possibilidade de uma proposta para a

formação de educadores, seja como formação inicial ou como formação continuada.

Educadores conscientes de sua corporeidade terão uma “ferramenta” essencial para o vínculo

e a prática pedagógica.

4.2 ABORDAGENS DO DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR: HIPÓTESES DE

COMPREENSÃO DO DESENVOLVIMENTO DO SER HUMANO, SUAS

CONSEQÜÊNCIAS CORPORAIS E AS POSSIBILIDADES DE RESTAURAÇÃO

Os estudos realizados pelos autores da Psicomotricidade muito têm contribuído para

a compreensão do desenvolvimento infantil e para o trabalho educativo da criança. Esta

compreensão se soma à anterior (compreensão psicossomática) como recurso para a ação do

educador.

Segundo a Sociedade Brasileira de Psicomotricidade (2007), a Psicomotricidade “É

a ciência que tem como objeto de estudo o homem por meio do seu corpo em movimento e

em relação ao seu mundo interno e externo”, bem como suas possibilidades de perceber,

atuar, agir com o outro, com os objetos e consigo mesmo. Está relacionada ao processo de

maturação, onde o corpo é a origem das aquisições orgânicas, afetivas e cognitivas.

Encontramos em Henri Wallon, Jean Le Boulch e André Lapierre os substratos

teórico-práticos que deram origem à atual compreensão de psicomotricidade e da qual se vale

este estudo na tentativa de explicitar o desenvolvimento infantil sob um enfoque integrativo

entre corpo e psiquismo.

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4.2.1 Henri Wallon: a psicogenética walloniana

A palavra carrega a idéia como o gesto carrega a intenção. Henri Wallon

Henri Wallon formou-se em Medicina, em Paris, no ano de 1908, atuando como

médico e psiquiatra em instituições psiquiátricas como o Hospital de Bicêtre e o Hospital da

Salpetrière, onde dedicou-se, até 1931, ao atendimento de crianças com deficiências

neurológicas e distúrbios de comportamento. Dedicou-se, também, durante a I Guerra

Mundial, ao atendimento de feridos de guerra, em especial os portadores de lesão cerebral, o

que lhe possibilitou rever concepções neurológicas sobre o atendimento de crianças

portadoras de deficiências.

Em 1925, fundou o Laboratório de Psicologia da Criança destinado à pesquisa e ao

atendimento clínico de crianças “anormais” e publicou sua Tese de doutorado chamada A

criança turbulenta. Em 1948, criou a revista Enfance com o objetivo de ser instrumento de

informação e discussão para os pesquisadores em psicologia e educação.

Participou do debate educacional de sua época, reunindo-se ao Movimento da Escola

Nova e mantendo uma visão crítica quanto ao espontaneísmo subjacente às propostas

pedagógicas deste movimento, embora se mantivesse fiel à concepção de uma criança como

ser total, ativa e inserida no seu meio social.

Podemos considerá-lo como um humanista que contribuiu, consideravelmente, para

fincar as bases da psicologia do desenvolvimento e, em particular, do desenvolvimento

psicomotor, aplicando-a à educação, na medida em que considerava que deveria haver entre

elas uma relação de reciprocidade.

Seus estudos sobre o desenvolvimento infantil levaram-no à uma compreensão

global do ser humano. Viu continuidade – unidade – entre o orgânico e o psíquico, onde

ambos se exprimem simultaneamente em todos os níveis de funcionamento do ser humano,

em interação com seu meio.

A esse respeito, Henri Wallon traz uma perspectiva global do desenvolvimento

humano – a psicogenética walloniana – que identifica a existência de campos que agrupam a

diversidade das funções psíquicas como a afetividade, o ato motor, a inteligência, chamando-

os de campos funcionais. Eles aparecem pouco diferenciados no início do desenvolvimento e,

só aos poucos, vão adquirindo independência um do outro, constituindo-se como domínios

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distintos de atividade. A pessoa é o todo que integra esses vários campos e ela própria é um

campo funcional.

Wallon compreende que ocorrem sucessivas diferenciações entre os campos e no

interior de cada um. A idéia de diferenciação é basilar na psicogenética walloniana,

explicitando o processo de formação da personalidade onde o recém-nascido não se percebe

como indivíduo diferenciado, adquirindo progressivamente a distinção entre o eu e o outro,

rumo à individuação, processo que se dá em um ritmo descontínuo e assistemático, marcado

por rupturas, retrocessos e reviravoltas. Com freqüência, instala-se uma crise nos momentos

de passagem, afetando visivelmente a conduta da criança.

A postura teórica adotada por ele se baseia no materialismo dialético como

fundamento filosófico e como método de análise, onde vê a contradição como constitutiva do

sujeito e do objeto e os conflitos como propulsores do desenvolvimento. Conflitos de origem

exógena quando resultantes dos desencontros entre as ações da criança e o ambiente exterior,

provenientes do adulto e da cultura. De natureza endógena, quando gerados pelos efeitos da

maturação nervosa. E, até que nova ordem se instale nos campos funcionais,20 as funções

recentes ficam entregues a exercícios de si mesmos, o que, por sua vez, conturbam as formas

de conduta que já tinham atingido certa estabilidade na relação consigo mesmo e com o meio.

Esse processo de desenvolvimento é compreendido por Wallon a partir de três

princípios: predominância funcional, alternância funcional e integração funcional.

A predominância funcional se refere aos momentos predominantemente afetivos

(subjetivos e de acúmulo de energia) que são sucedidos por momentos cuja predominância é

cognitiva (objetivos e de dispêndio de energia). Na sucessão dos estágios há uma alternância

entre as formas de atividade que assumem a preponderância em cada fase. Cada nova fase

inverte a orientação da atividade e do interesse da criança: do eu para o mundo, das pessoas

para as coisas, o que quer dizer que, funcionalmente, se alternam. A integração funcional é

um princípio extraído do processo de maturação do sistema nervoso, no qual as funções mais

evoluídas, de amadurecimento mais recente, não suprimem as mais arcaicas, mas exercem

sobre elas o controle.

20 Integram os campos funcionais cinco estágios do desenvolvimento: impulsivo-emocional – primeiro ano de

vida cuja ênfase é dada pela emoção; sensório-motor e projetivo – que vai até o terceiro ano, onde o interesse da criança se volta para a exploração sensório-motora do mundo físico; do personalismo – dos três aos seis anos, cuja tarefa central é o processo de formação da personalidade reorientada para as relações afetivas e sociais; categorial – que, graças à consolidação da função simbólica, traz avanços no plano da inteligência e cognição; adolescência – que busca redefinir contornos da personalidade, desestruturados devido às modificações corporais sob ação dos hormônios. (WALLON, 1995, p. 56).

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É bastante esclarecedora a observação de Isabel Galvão (1995, p.45) sobre

integração, predominância e alternância funcionais:

O ritmo descontínuo que Wallon assinala ao processo de desenvolvimento infantil assemelha-se ao movimento de um pêndulo que, oscilando entre pólos opostos, imprime características próprias a cada etapa do desenvolvimento. Aliás, se pensamos na vida adulta, vemos que esse movimento pendular continua presente. Faz-se visível no permanente pulsar a que está sujeito cada um de nós: ora mais voltados para a realidade exterior, ora mais voltados parta si próprio; alternando fases de acúmulo de energia a fases mais propícias ao dispêndio.

Os princípios acima descritos encontram no conceito de identidade funcional de

Reich a mesma base de compreensão para seu funcionamento. Reich (1986, p.230-231)

explicou o aparelho psíquico como unidade dinâmica de fatores bio-psiquico-sociais, onde

corpo (soma) e processos psicológicos (psique) funcionam energeticamente integrados,

criando uma funcionalidade e uma identidade.

O conceito de identidade funcional que tive de introduzir significa apenas que as atitudes musculares e as atitudes de caráter têm a mesma função no psiquismo: podem substituir-se e podem influenciar-se mutuamente. Basicamente, não podem separar-se. São equivalentes na sua função.

Então, estamos nos referindo, tanto em Wallon quanto em Reich, ao movimento

pendular da energia que se alterna entre carga e descarga, tensão e relaxamento, contração

(sistema simpático) e expansão (sistema parassimpático).21

Há na psicogenética walloniana um destaque ao componente corporal das emoções,

onde as elas se vinculam à maneira como o tônus se forma, se conserva ou se consome. O

tônus é tanto a quantidade de energia no músculo como também o estado vibratório das fibras

musculares, dando-nos tanto a quantidade quanto a qualidade da energia circulante,

constituindo-se, então, no elemento pré-verbal da comunicação.

Wallon reconhece que na segunda fase do estágio impulsivo-emocional (3 a 12

meses) já é possível identificar padrões emocionais diferenciados para medo, alegria, raiva,

etc, iniciando-se, assim, o processo de discriminação de formas de se comunicar pelo corpo.

21 Os sistemas simpático e parassimpático fazem parte do Sistema Nervoso Autônomo (integrante do Sistema

Nervoso Central) funcionando de forma contínua, alternada e complementar entre a contração e a expansão, estando ligados por fibras a todos os órgãos em todos os processos vitais.

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A função tônica ou postural, que regula a variação no grau de tensão (tônus) dos

músculos, compreende as reações neurovegetativas e expressivas da emoção, gerando um

substrato corporal comum e sendo responsável pela regulação das alterações do tônus da

musculatura dos órgãos internos (lisa) e da musculatura esquelética (estriada). Entre

movimento e emoção, a relação é de reciprocidade, pois as variações tônico-posturais atuam

também como produtoras de estados emocionais e os estados emocionais se expressam pelas

alterações tônico-posturais.

A dimensão afetiva do movimento, Wallon denominou de motricidade expressiva,

pois entende que o ato motor, além de ter um papel na motricidade de realização, também o

tem na afetividade e na cognição. Faz-se necessário que compreendamos que a atividade

muscular pode existir sem que se dê deslocamento no corpo (de segmentos ou do todo) no

espaço. Antes de agir diretamente sobre o meio físico, o movimento atua sobre o meio

humano, mobilizando-nos por seu teor expressivo.

A dimensão cognitiva do movimento se instala a partir do momento em que as

primeiras praxias se organizam. Praxias são movimentos coordenados a partir da estruturação

das noções sobre o próprio corpo que vão se automotizando, obedecendo à subordinação

neuro-funcional.

O desenvolvimento infantil, para Wallon, dá-se, então, simultaneamente, no corpo e

na psique, como elementos indissociáveis. Assim sendo, a prática educativa não pode

descuidar-se desse aspecto e, para tanto, o educador necessita de ter presente essas duas

facetas do ser humano, sendo que a corporeidade é a sede onde a vida se expressa.

4.2.2 Jean Le Boulch: a psicocinética

Jean Le Boulch, médico francês de orientação psicanalítica, que, nos anos de 1970,

destacou-se como um dos representantes do período denominado de período do corpo

consciente, dentro da Psicomotricidade, momento histórico no qual acompanhamos um

relativo aprofundamento dos estudos e das técnicas voltadas ao controle das praxias

objetivando a economia do movimento, condicionou todos os aprendizados pré-escolares e

escolares à uma base psicomotora pois estes levam a criança a tomar consciência de seu

corpo, da lateralidade, a situar-se no espaço, a dominar as noções temporais, a adquirir

habilmente a coordenação de seus gestos e movimentos.

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Contemporâneo de André Lapierre, esteve com ele no momento em que foi criada a

Sociedade Francesa de Educação e Reeducação Psicomotora, em 1966. Nesta época,

partilhavam dos mesmos conceitos como base teórica da prática reeducativa em

Psicomotricidade.

Sua grande contribuição, no entanto, diz respeito à importância dada à imagem do

corpo como construção psicomotora que se efetiva ao longo do desenvolvimento infantil, bem

como à plasticidade cerebral, gerando possibilidades de adaptação a situações motoras novas.

Jean Le Boulch (1982, p.24) denomina de psicocinética a teoria geral do movimento

que diz respeito ao enunciado de princípios metodológicos próprios, servindo de base a uma

concepção global da educação, pois a metodologia dessa abordagem identifica-se de certa

forma com a educação psicocinética.

Para este autor, o ser humano só pode ser compreendido através do vínculo que o

une ao seu meio inter-humano. No nascimento, existem potencialidades que, para se

desenvolverem, não requerem só a maturação dos processos orgânicos, mas principalmente o

intercâmbio com as outras pessoas. Mas se a qualidade da relação humana incide diretamente

no desenvolvimento funcional, a recíproca é verdadeira: a experiência do outro e a

possibilidade de estabelecer intercâmbios estão ligados ao desenvolvimento funcional.

O relacional e o funcional não são dois aspectos simplesmente complementares, mas

existem em uma estreita relação de interdependência que os une de maneira dialética e

indissociável. Maturação e exercício estão correlacionados e unidos de forma dialética. Existe

uma ação recíproca entre o dentro e o fora. Através da maturação, as estruturas dos potenciais

se tornam funcionais e o exercício que disso decorre desencadeia uma nova maturação e a

revelação de novas estruturas. A este processo, Le Boulch denomina de função de

ajustamento, referindo-se a um grau de plasticidade superior do sistema nervoso que permite

novas adaptações motoras frente a novas situações, criando novos esquemas de coordenação e

fixando-os na estrutura nervosa.

Não podemos deixar de referenciar Piaget (1973, p.18) quando explicita os

processos de acomodação e assimilação. A assimilação é a integração do exterior às estruturas

próprias do sujeito. A acomodação é a transformação das estruturas próprias em função das

variáveis do meio exterior.

É possível através de uma ação educativa, a partir dos movimentos espontâneos da

criança e das suas atitudes corporais, favorecer a gênese da imagem do corpo, núcleo central

da personalidade.

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As contribuições de Le Boulch, ao afirmar que suas técnicas aceleram os processos

neurofuncionais porque incidem sobre a aprendizagem, confirmam a idéia de que a educação

psicomotora, na Educação Infantil, constitui um processo eficiente e perene de conhecimento

interdisciplinar.

Para entendermos a extensão da proposta educativa de Le Boulch, convém

elucidarmos o conceito de imagem do corpo ou imagem corporal, pois associado a ele e

incluso nele está o conceito de esquema corporal, que abordaremos mais à frente.

Compreender como se estrutura o esquema e a imagem corporal é de capital

importância para quem trabalha com pessoas, especialmente crianças em processo educativo e

escolar. É onde se conjugam e se organizam todas as sensações, percepções e constructos

cognitivos do sentido de si mesmo, envolvendo a estruturação das idéias de espaço e o tempo

e toda a gênese da formação simbólica.

Le Boulch confirma, mais uma vez, que a Educação Infantil necessita de ter seu

fulcro central na corporeidade. A gênese da imagem do corpo é o núcleo da personalidade.

Tendo por base essa compreensão, não há como o educador não ter permanentemente

presente essa dimensão em seus atos educativos, usando seu corpo como recurso para auxiliar

o educando a constituir-se como sujeito, ciente de si com base na sua própria corporeidade.

4.2.3 André Lapierre: do jogo espontâneo ao jogo fantasmático em Psicomotricidade

Relacional

André Lapierre é o terceiro autor da psicomotricidade que elegi para suporte deste

estudo. Ele contribuiu para a compreensão integrativa do desenvolvimento humano e infantil.

Foi ele, junto com Bernard Aucouturier, quem criou a Psicomotricidade Relacional.

Foi professor de Educação Física, cinesioterapeuta e reeducador em

Psicomotricidade. Durante sua prática corporal corretiva com adultos e crianças, Lapierre

recolocou a questão que tem norteado sua trajetória: o corpo e a atividade motora sob todos os

aspectos, compreendendo que o ser humano não se reduz a uma biomecânica a ser consertada;

que o sofrimento do corpo traduz, freqüentemente, um outro sofrimento e que toda a sua

formação organicista, mecanicista e racionalista estava sendo confrontada.

Em 1966, André Lapierre e Bernard Aucouturier criaram a Sociedade Francesa de

Educação e Reeducação Psicomotora. O trabalho começou, então, sob a égide de uma

concepção psicomotora das “deficiências”, aquela que refaz as etapas faltantes do

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desenvolvimento psicomotor, indo, pouco a pouco, diferenciando-se rumo a uma abordagem

mais aberta e menos normativa, visando integrar a Psicomotricidade à Educação. Esta

mudança de rumo se deu num momento social – primavera de 1968, na Europa – onde o

espírito de contestação reinava e a crise na escola tradicional estourava.

As concepções de Lapierre (2002), confrontadas com a prática psicomotora adotada,

mostraram sua eficácia, mas também seus limites, pois “algumas crianças recusavam

absolutamente a deixar-se reeducar”. Novamente, surgiu a compreensão de que os problemas

escolares que tinham motivado a solicitação de uma reeducação psicomotora eram, em

realidade, sintomas, pois seus problemas eram relacionais com características agressivas ou

inibidas, instáveis, passivas ou hiperativas, tendo dores de cabeça, terrores noturnos [...] “Em

suma, elas (as crianças) estavam mal dentro da pele”. (LAPIERRE, 2002, p.29).

Lapierre concluiu, então, que a vivência das partes ignoradas, negadas ou

culpabilizadas da personalidade através da expressão tônica-emocional, valendo-se de um

caráter espontâneo e lúdico o levaria da educação à terapia psicomotora. Assim, em 1977,

surgiu a Psicomotricidade Relacional e, junto com ela, questões relativas à formação do

psicomotricista relacional, que exigia uma formação que o levasse ao domínio da sua vivência

corporal e à decodificação das mensagens tônicas e gestuais espontaneamente emitidas.

Então, em Barcelona, em 1988, André Lapierre e sua filha Anne Lapierre, numa reunião

internacional com os animadores formados de diversos países, organizaram a formação e a

atuação desses profissionais em dois níveis ou partes: de um lado, a Psicomotricidade

Relacional, reestruturada como formação profissional e, de outro, a Análise Corporal da

Relação, que se desenvolve em uma ótica psicanalítica freudiana, sem objetivos de formação

profissional.

Quanto ao suporte teórico da Psicomotricidade Relacional, a prática acumulada

durante anos por Lapierre, atendendo crianças na escola e na clínica e formando profissionais

em diversos países da Europa e da América, levou-o do modelo psicanalítico – aprender a

analisar o discurso corporal, passando por Wilhelm Reich, Melanie Klein, René Spitz, Donald

Winnicott, Françoise Dolto, Lacan, chegando até os trabalhos do psiquiatra espanhol Juan de

Ajuriaguerra e à psicogenética walloniana sobre o tônus e a comunicação tônica.

A Psicomotricidade Relacional centra-se no primado da relação com o outro, com

seus conteúdos projetivos simbólicos e fantasmáticos, remontando-os às relações originais

com as figuras parentais, permitindo que, através do jogo espontâneo e simbólico, emerjam as

estratégias habitualmente empregadas pelo sujeito em toda a sua vida relacional. Todo esse

processo se inicia a partir do aparecimento da função simbólica, que vai, ao longo do tempo,

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armazenando toda uma carga emocional e fantasmática que a sustenta, cuja complexificação

posterior se fará mascarar e distorcer, demandando expressão e decodificação, o que

pressupõe o olhar, o corpo e a palavra do outro como recurso de tradução (principalmente o

corpo, para a Psicomotricidade Relacional).

Para Lapierre, a implicação do corpo do terapeuta e do educador22 é um dos

princípios fundamentais da educação psicomotora relacional e da terapia psicomotora: este

corpo deve ser revelador do que a criança não pode dizer nem escrever, nem desenhar;

fantasmas que ela exprime inconscientemente em seu modo de agir. A esses fantasmas, ele

traz a complementaridade que vai revelar o sentido deles, tornando-se espelho dos fantasmas

do outro, um espelho que não reflete a imagem e a virtualidade do real do outro, e sim a

irrealidade e a virtualidade de sua imagem.

O corpo do educador e do terapeuta é sempre o substituto simbólico do corpo da

mãe e do pai ou de ambos, tornando-se revelador para a criança, daquilo que ela não

vivenciou, do que perdeu no plano tônico-afetivo, das lacunas no seu processo identificatório

na construção do ego.

O jogo espontâneo e simbólico entre a criança e o educador ou terapeuta permitirá

uma mobilização da situação relacional até então bloqueada nas fixações de comportamento,

uma espécie de desbloqueio da expressão simbólica dos fantasmas. Lapierre (1997, p.30), no

entanto, adverte sabiamente:

[...] Mas se o adulto quer misturar seu corpo e sua pessoa a estes jogos, é melhor que ele saiba do que está brincando. Ele não brinca com balões, mas com fantasmas, com seu inconsciente e das crianças e ele deve ser capaz de perceber o conteúdo simbólico das relações nas quais se engaja e ser capaz de controlá-los sem misturar aí suas próprias projeções inconscientes.

E aqui nos defrontamos com a transferência e a contratransferência aplicadas a uma

relação corporal carregada de projeções23, pois, em suma, trata-se de interpretar as reações

motoras e tônicas do outro, de dar-lhes um sentido e também de interpretar suas próprias

reações tônicas e motoras e igualmente dar-lhes sentido. Nesse jogo de sentidos é que se

constrói a relação tônica entre o educador ou terapeuta e a criança, criando um intercâmbio

dialético, que pode se estabelecer entre dois corpos, feito de nuances muito sutis, mais

sentidos que explicados. A relação tônica não sendo da ordem do cognitivo não pode ser 22 O educador que desejar se valer deste instrumento de trabalho em sala de aula deverá se submeter à formação

específica na abordagem da Psicomotricidade Relacional. 23 Projeção é o processo inconsciente de colocar no outro algo que é seu, segundo a teoria psicanalítica.

(LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p. 478).

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expressa em conceituações intelectuais, pois sua natureza está ligada à organização

subcortical do sistema nervoso central onde as modulações tônicas é que dão a tonalidade de

seu conteúdo afetivo e emocional.

Lapierre é explícito no que se refere à necessidade do profissional de educação ter

uma formação específica, com foco na corporeidade, tendo em vista trabalhar com crianças.

Seu corpo será o “palco” das projeções de imagens inconscientes pregressas das crianças com

as quais trabalha. Como poderá administrar isso? Somente conhecendo-se a si mesmo e tendo

posse de sua corporeidade.

Desse modo, transitando de Wallon para Lapierre, tendo no meio Le Boulch, parece

que caminhamos na direção, cada vez mais profunda e exigente, de assumir o corpo, como

centro da integração psicocorporal. Esses autores, cada um a seu modo, porém Lapierre, de

forma mais contundente, explicitam que tanto o corpo da criança quanto o corpo do adulto são

recursos fundamentais na relação educativa: para a criança em seu processo de formação e

para o adulto, nessa relação, como recurso de receber, conviver, confrontar a criança em seus

processos psicocorporais.

4.3 ESQUEMA E IMAGEM CORPORAL

Aqui, vamos configurar de modo mais específico os fenômenos psicocorporais que

consideramos centrais tanto para o educando quanto para o educador: esquema corporal e

imagem corporal. Dar-se conta, de modo vivencial e conceitual, que esses fenômenos

permitem a cada um de nós a posse de nós mesmos e a possibilidade de uma administração

satisfatória da vida.

Paul Schilder, em 1935, cunhou as expressões esquema corporal e imagem corporal,

unindo conceitos e estudos advindos de sua prática médica com as idéias recém-nascidas da

psicanálise. Em seu livro A imagem do corpo, publicado em 1980, o autor faz um estudo

minucioso da base fisiológica da imagem corporal, de sua estrutura libidinal e da sua

sociologia, dando ênfase aos aspectos neurológicos.

Juan de Ajuriaguerra, psiquiatra espanhol, dedica-se também a este estudo,

juntamente com os psicanalistas da escola francesa, dentre os quais se destaca Françoise

Dolto, e os psicanalistas da escola londrina, onde sua precursora é Melanie Klein.

O conceito de esquema corporal deriva do conceito de esquema postural de Head

(apud SCHILDER, 1980, p.11) que designa a imagem tridimensional do nosso corpo. Tem

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um papel de sistema de referências, uma espécie de padrão postural permanente, mas

constantemente modificado, com o qual são confrontadas todas as novas percepções e sem o

qual seria impossível utilizar o corpo para qualquer coisa.

Este conceito originou-se da Neurologia, diretamente ligado à noção de

somatognosia24 (descrita a partir de certas patologias cerebrais).

Para a definição de esquema corporal, afirma Ajuriaguerra (1980, p.21):

O conceito de esquema corporal não é só uma noção neurofisiológica, mas uma complexa realidade vivida neuropsicologicamente. Integra fatores percepto-motores, dinamismos instintivos-afetivos e níveis cognitivos com longa gênese neuropsicológica que está sempre aberta a mutações e enriquecimentos.

Deste modo, o esquema corporal é de fato um dado funcional complexo; não é

apenas um simples esquema localizado em uma região qualquer. Ele corresponde à integração

das sensações, percepções e lembranças, mas não se situa somente no plano perceptivo. Ele

supõe a estruturação do espaço e do tempo, faz intervir a linguagem assim como as gnosias,25

que permitem o reconhecimento das diferentes partes do corpo e suas relações, e as praxias,26

que permitem a utilização prática desses dados.

O esquema corporal não é um conhecimento estático, mas sim uma experiência

subjetiva constantemente renovada. A consciência de nosso corpo é, evidentemente, uma

função global, não localizável por definição. Cada nova postura ou movimento é registrado

neste esquema plástico, em função do que a atividade cortical cria uma relação com cada

novo grupo de sensações evocadas pela postura alterada. Temos impressões táteis, térmicas,

de dor, de prazer, viscerais, musculares. Temos registros visuais de partes do corpo.

Vivenciamos a experiência imediata de uma unidade corporal ou o seu oposto.

Esta unidade é percebida, porém é mais do que uma percepção. Não estamos

tratando de uma mera sensação ou imaginação. Existem figurações e representações mentais

envolvidas, mas não é somente mera representação.

Numa perspectiva de conjunto, Paul Schilder (apud BARRES, 1974) estendeu o

conceito de esquema corporal para integrar, na sua totalidade, os fenômenos neurofisiológicos

e psíquicos: modo pelo qual o nosso corpo é visto por nós. Surge então, em 1935, o conceito

de imagem do corpo, considerado como “fundamento da referência” do homem a si mesmo e 24 Somatognosias – Conhecimento das partes do corpo. 25 Gnosias – Percepção coordenada e integrada sobre o próprio corpo. 26 Praxias – Movimentos coordenados a partir da estruturação das noções sobre o próprio corpo que vão se

automotizando, obedecendo à subordinação funcional.

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ao mundo. Seu objetivo era integrar os dados da Neurofisiologia (esquema corporal) e os da

Psicanálise (estrutura libidinal do corpo) em um conjunto único que levasse em conta tanto a

estrutura neurológica, quanto a psíquica e seus distúrbios.

Rubens Kignel (2005, p.52), ao citar Sherrington e Janet, estabelece conexões entre

os três sistemas funcionais da senso-percepção que são os pilares que apóiam a construção (e

reconstrução) do esquema e imagem corporal:

Charles Sherrington (1906), com sua ênfase em propriocepção, interocepção e exterocepção, apresenta uma compreensão tripartite de três sistemas funcionais que lidam com o mundo interno, o mundo externo e a conexão entre os dois. Esse “entre-mundos”, a somatopsiquê usando informação proprioceptiva e feedback cinestésico, foi fundamental para a compreensão do esquema e da imagem corporais. A propriocepção, informação da sensação muscular, mediada pelos fusos musculares do sistema nervoso gama é parte essencial de nossa imagem corporal, de nosso enraizamento no mundo, e define quanto estamos em contato, coordenamos e organizamos os movimentos. Janet considerava movimento e consciência inseparáveis: “Não há nada na consciência, mas ação e seus derivados.

Na constituição desta imagem do corpo, distinguimos três níveis: um nível

fisiológico que integra as sensações, as percepções visuais, cinestésicas e vestibulares; um

nível relacional que faz com que a imagem do corpo seja função tanto da história do

indivíduo como de suas relações com outros; um nível de integração das pulsões que estrutura

a imagem do corpo a partir das zonas erógenas. Neste sentido, Paul Schilder (1980, p.15)

afirma:

A topografia do modelo postural do corpo será a base de atitudes emocionais para o corpo. Nosso conhecimento dependerá das correntes eróticas que fluem através de nossos corpos e também as influenciará. As zonas eróticas desempenharão um papel particular no modelo postural do corpo.

Segundo o psicanalista Helládio Capisano, a imagem corporal, do ponto de vista

psicanalítico, é construída a partir da integração entre ego e id, em interjogo contínuo das

tendências egóicas com as tendências libidinais, pois há relação nítida entre imagem corporal

e zonas erógenas, uma vez que o fluxo do desenvolvimento libidinal começa na boca – fase

oral – e se dirige para o ânus – fase anal, encaminhando-se aos genitais – fase fálica. A

imagem corporal nunca é estática e se sujeita às alterações fisiológicas habituais e às

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mudanças do fluxo libidinal porque não é uma entidade rígida, estabelecida mas incompleta e

passível de transformação.

O modelo postural do nosso corpo se relaciona com o modelo postural dos corpos

dos outros. Existem conexões entre os modelos posturais de seres humanos semelhantes.

Vivenciamos as imagens corporais dos outros. “[...] A atividade pessoal do indivíduo não

basta para explicar a construção da imagem do corpo. É necessária a intervenção dos outros

através de atos, palavras, atitudes” como afirma Schilder (apud BARRES, 1974).

Isto é evidente na criança que integra na sua própria imagem, as partes do corpo da

mãe como também as atitudes dos outros em relação ao seu corpo.

É impossível falarmos de corpo sem nos reportar a um corpo, seja o da mãe, da

família, da professora, da escola e do grupo social. Portanto, podemos afirmar que a imagem

do corpo é mais do que a soma das imagens do corpo da comunidade e da cultura na qual

estamos inseridos.

A imagem corporal não representa só uma função unitária, mas se constrói junto

com as etapas do desenvolvimento para alcançar, a cada nível de organização da

personalidade, uma unidade provisória e que se deve reconstruir em cada nova etapa.

É a escola Kleiniana27 que, pela primeira vez, tem descrito a existência de

“fantasmas primitivos”, primeiro esboço de um “corpo imaginário”, existindo já desde o

nascimento, sendo expressão mental primitiva dos instintos e as formas como são vividos os

mecanismos de defesa do eu. Fantasmas são produções imaginárias, inconscientes, capazes de

motivar comportamentos sem que o indivíduo tenha consciência. O fantasma se estrutura

desde a experiência vivida. Esta experiência do tipo emocional (prazer ou desprazer) é

anterior ao aparecimento da consciência. Seu registro marcou o inconsciente.

Concordamos com Le Boulch quando diz que a aparição dos primeiros fantasmas se

faz em torno de oito meses, ou seja, depois da entrada no período objetal28, contemporâneo à

emergência da função simbólica, porque a atividade práxica preparada pelo intercâmbio

corporal com a mãe é à base da descoberta de sua própria personalidade. A consciência difusa

do próprio corpo, experimentado na ação, é muito mais primitiva que a imagem visual do

corpo, sendo-lhe a precursora. 27 Melanie Klein formulou consideráveis contribuições para a teoria e a técnica psicanalíticas, estabelecendo os

fundamentos da análise de crianças e delineando o complexo de Édipo e o superego até as raízes primitivas de seu desenvolvimento. Na década de 1920, em Londres, ao analisar crianças, introduziu uma nova ferramenta que foi a técnica de brincar (play technique). Compreendia que a libido é uma energia que busca objetos e não somente o prazer, como postulava Freud. É quem faz a transição entre a psicanálise e os teóricos da Escola Britânica (Bowlley, Fairbain, Winnicott) considerada uma escola que inclui a Teoria das Relações Objetais.

28 Período objetal – período onde a criança introjeta no ego os objetos vividos como parciais, bom, mau (perseguidor), ideal e total.

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Durante as primeiras semanas de vida do recém-nascido, especificamente durante o

estágio pré-objetal (até os sete meses), o comportamento se organiza sob a influência de

estímulos sensoriais. Pesquisas contemporâneas têm salientado a importância dos estímulos

externos provocados pelo ambiente humano na organização do equilíbrio tônico-emocional da

criança. Durante a vida intra-uterina, o feto já vivia no universo das sensações cutâneas,

sonoras e proprioceptivas. Ao nascer, a passagem à via aérea parece criar uma verdadeira

necessidade de exercício das estruturas sensoriais. Em particular, os contatos cutâneos são tão

importantes quanto as necessidades nutritivas no equilíbrio afetivo da criança.

Montagu (1988, p.23) reitera o exposto acima quando afirma que: “O sistema

nervoso é uma parte escondida da pele ou ao contrário, a pele pode ser considerada como a

porção exposta do sistema nervoso... a pele permite que o organismo aprenda o que é seu

ambiente”.

Rubens Kignel (2005, p.50), ao citar José Gil, fala-nos da fronteira ou ponte de

contato representada pela pele, a linha exterior que se estende por toda a superfície do corpo,

local onde o exterior se destaca, e Joseph Chilton Pearce (2002, p.123-124) refere-se a esfera

sutil da mãe envolvendo a esfera sutil do bebê:

[...] Dentro dessa esfera, o bebê está cheio de vida e inteiramente funcional; fora dela, os sinais de seu coração ficam “abandonados” e o bebê ansioso e estressado... Quando a esfera sutil dela (da mãe) se sobrepõe à do bebê, ocorre uma comunicação muito importante. Essa comunicação sutil pode estar abaixo do nível de percepção da mãe, mas é o único nível de percepção inteiramente ativo no bebê. Esse “nível do coração”, muito mais que o sentimental ou o físico, é vital. O reino sutil é o verdadeiro ambiente e o verdadeiro mundo do bebê.

Embora esta fase da vida não se torne consciente, ela é muito importante, já que as

experiências corporais vividas ficam registradas, graças a uma verdadeira memória corporal,

forma mais primitiva do inconsciente.

A criança e a mãe vivem uma verdadeira simbiose afetiva durante o estágio pré-

objetal. A mãe é, através da sua presença ou ausência, um intermediário indispensável para

todas as experiências emocionais da criança.

A relação entre mãe e bebê é uma relação de desejo em que o mundo interno de

cada um está se conectando e se organizando, onde os músculos, a face, a pele, a voz

traduzem o sentido dos afetos e pensamentos, contribuições provenientes dos estudos de

Françoise Dolto (1992, p.57) e Daniel Stern (1992, p.60). O conhecimento que a criança tem

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de sua mãe é um conhecimento vivido, adquirido através do diálogo tônico29. Logo mais, no

oitavo mês, no estágio objetal, este conhecimento sincrético dará lugar a uma verdadeira

identificação da figura materna. A percepção deste personagem privilegiado vai permitir o

investimento sobre este objeto libidinal, que se reveste de um valor estruturante.

A imagem materna é o primeiro suporte da função simbólica30, como fruto da

representação mental. Não se deve confundir o simples reconhecimento, que se situa ao nível

da vivência e que pode induzir um comportamento adaptado, com a verdadeira percepção, que

implica a síntese dos dados discriminados ao nível dos diferentes campos perceptivos.

A noção de objeto, no sentido piagetiano, é adquirida quando o objeto se torna

independente e permanente. A permanência do objeto é adquirida quando a criança tem

consciência de sua existência, mesmo quando ele não está situado no seu campo perceptivo

atual. A experiência emocional do corpo e do espaço atinge um patamar satisfatório quando a

aquisição de numerosas praxias se dá, permitindo à criança sentir seu corpo como um objeto

total nos mecanismos das relações.

Este estágio de um corpo vivido constitui a primeira “maquete” da imagem do

corpo, indicando que os alicerces do corpo simbólico já estão montados sobre os rudimentos

da função simbólica. Antes de começar a viver na linguagem verbal, a criança constrói seu

espaço de ações em um âmbito relacional corporal. A função simbólica não é uma função

psicomotora, mas tem suas raízes na atividade sensório-motora, o que a coloca estreitamente

ligada ao desenvolvimento psicomotor.

Ao fundamentar sua prática educativa e terapêutica na tradução e decodificação dos

comportamentos corporais, que se baseiam no aparecimento e desenvolvimento da função

simbólica, André Lapierre31 tangenciou sua proposta com a de Jean Le Boulch, porque ambos

militaram contra uma visão mecanicista, reeducativa e sintomática do desenvolvimento

psicomotor e de seus transtornos. Distanciaram-se desde o momento em que Lapierre se

dirigiu à escola e à clínica, estruturando uma metodologia chamada de Psicomotricidade

29 Diálogo tônico: expressão usada pelos teóricos da Psicomotricidade para explicitar a importância das

primeiras relações corporais entre mãe-bebê e sua qualidade lúdica emotiva, sendo prelúdio do diálogo verbal posterior.

30 Um símbolo, no sentido estrito do termo, representa alguma coisa em função de uma analogia. Quando falamos de função simbólica ou função semiótica, estamos nos referindo à relação consciente entre significantes e significados, até então indiferenciados. O jogo da função simbólica não se pode conceber sem recorrer à imagem mental, que é contemporânea à aparição da permanência do objeto.

31 Em 1967, na França, Jean Le Boulch e André Lapierre, entre outros, transformaram a antiga Societé Française de Réeducation Physique em Societé Française D’Education et Réeducation Psychomotrice, ampliando sua visão do desenvolvimento psicomotor, seus distúrbios e principalmente, postulando a inclusão de novas técnicas de trabalho e sublinhando a necessidade de uma educação psicomotora.

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Relacional e criando, a posteriori, a Análise Corporal da Relação (ACR)32, cujos fundamentos

derivam da Psicanálise.

As conclusões a que chegou Gerda Verden-Zöller, em seu estudo contemporâneo

sobre a normalidade na relação materno–infantil, merecem destaque, pois ajudam no

aprofundamento deste estudo. Ao apresentar suas reflexões sobre o desenvolvimento do

conhecimento do próprio corpo e do corpo do outro em relação com o desenvolvimento da

autoconsciência e da consciência social nas crianças a partir das relações com suas mães, esta

autora parte de um estudo da normalidade na relação materno-infantil e afirma: “As

consciências individual e social da criança surgem mediante suas interações corporais com as

mães, numa dinâmica de total aceitação mútua na intimidade do brincar”. (MATURANA;

VERDEN-ZÖLLER, 2004, p.124).

Gerda Verden-Zöeller reitera que o desenvolvimento humano só ocorre no âmbito

de relações em interações humanas, pois nem somente a constituição genética e nem somente

a comunidade humana podem garantir esse desenvolvimento. O humano surge no

entrelaçamento de ambas as dimensões: a genética e a cultural. Ou seja: o desenvolvimento do

sistema nervoso é fisiológico e social por natureza. Fala que a ontogênese da corporeidade

humana por ter uma constituição plástica, não fixa, tem uma estrutura que muda seguindo um

trajeto casual na seqüência de suas interações e cujas conseqüências não se dão de forma

indiferente para esta corporeidade.

Dito de outro modo, a maneira como uma criança vive a sua corporeidade, nos

primeiros anos de vida, determina a sua capacidade de auto-aceitação e aceitação do outro,

pois todas as dimensões da percepção, do dar-se conta de si mesmo, ou perceber o outro

surgem na interação humana como operações relacionais. Chama a este processamento de

biologia do amor (MATURANA; VEREN-ZÖLLER, 2004, p.11):

[...] a criança cria seu espaço psíquico como seu espaço relacional ao viver na intimidade e em contato corporal com sua mãe. [...] Nesse processo, a criança aprende o emocionar e a dinâmica relacional fundamentais que constituirão o espaço relacional que ela gerará em sua vida. Isto é: o que fará, ouvirá, cheirará, tocará, verá, pensará, temerá, desejará ou rechaçará, como aspectos óbvios de sua vida individual e social, na qualidade de membro de uma família e de uma cultura].

32 Técnica de análise verbal em grupo utilizada após as vivências no jogo espontâneo, simbólico e fantasmático

com o objetivo de elaborar e integrar o vivido corporal, num nível de maior profundidade maturidade. Esta técnica é também utilizada nos processos de formação do terapeuta em psicomotricidade relacional.

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A autora reafirma, categoricamente, que se uma mãe não vê sistematicamente seu

filho no fluxo de suas interações, enquanto estas acontecem; seu filho se torna invisível para

ela. Como conseqüência, esta criança passa a viver seu corpo como algo sem valor, não válido

na relação e no aprender de sua corporeidade; portanto, do seu esquema e de sua imagem

corporal, então, não se torna constitutiva de sua identidade onde as possibilidades de crescer

em autoconsciência e desenvolver respeito por si mesmo deixam enormes lacunas.

4.4 FECHANDO ESTE CAPÍTULO: CORPOREIDADE: INTEGRAÇÃO ¬CORPO ¬

PSIQUISMO

O ser humano busca continuamente organizar e reorganizar seus vínculos33 e,

conseqüentemente, sua maneira de estar no mundo. Vincular-se pressupõe valer-se de um

padrão de funcionamento, uma matriz organizada ao longo do desenvolvimento, que se

manifesta através do jeito de pensar, sentir, se expressar, se movimentar, etc. É através desse

padrão que o indivíduo tem tanto uma referência externa para os outros quanto um sentido de

identidade. Esse padrão é também muscular e principalmente somático.

A história pessoal de cada um, inscrita no corpo, molda a maneira como a pessoa se

vincula no presente, ensinando-nos através de posturas somático-emocionais. São vários os

estágios do desenvolvimento que formam o vínculo. O modo como fomos tocados,

acariciados, cuidados determina como nos relacionamos com os outros e conosco. A partir

desta experiência, nos diferentes estágios, é determinado um padrão corporal de relação e

vínculo, base para todas as relações afetivas, cognitivas, sociais em todos os aspectos da vida.

Assim, uma vez estruturado este padrão, ele será chamado a se manifestar no mundo

das relações, em qualquer fase da vida, seguindo seu roteiro (inconsciente, em grande parte)

em relação a que tipo de vínculos a pessoa necessita estabelecer e de que maneira isto deve se

dar. Tendo em vista que este modo deu certo (em algum lugar do seu corpo e da sua história),

este roteiro se repetirá inúmeras vezes, mesmo que não funcione como antigamente e que não

lhe traga mais prazer ou sacie suas necessidades. A tendência é que continue a se repetir,

cronificando-se como uma resposta automática e aparentemente satisfatória. O educador,

33 Vínculo, s. m. Laço; atilho; tudo o que ata ou aperta; ligação moral; ônus; nexo; subordinação; relação.

(FERREIRA, c1986).

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especialmente o de crianças, necessita de ter esse conhecimento presente em sua ação

pedagógica.

Em contrapartida, faz parte da natureza humana o impulso básico de mudança,

movimento, crescimento, reformulação. Seu funcionamento vivo e dinâmico de pensamentos,

sentimentos, gestos, desejos, exigências, associado às crises do desenvolvimento, colocam-no

em processo de deslocamento de sua própria energia vital.

Essas transições podem ser previsíveis (passagem da infância para a adolescência,

para a adultez...) ou imprevisíveis (apaixonar-se, morrer, adoecer...), porém, geralmente,

chegam de assalto à corporeidade em construção ou já pronta. E, um dos grandes

aprendizados do ser humano é participar desses processos de maturação,sendo sujeito deste

aprender e não vítima do movimento ondulatório de vida, onde contração e expansão formam

a sua dualidade e a sua unidade.

É, sob o efeito de forças regressivas e progressivas que tanto o educador quanto o

educando chegam à sala de aula para mais um encontro que demandará algum tipo de vínculo

a partir de seus padrões corporais.

Cipriano Luckesi (2000a, p.11), em um artigo sobre Educação, ludicidade e

prevenção de neuroses futuras, sugere que o educador possa se valer dos conhecimentos da

Biossíntese e da Ludicidade para melhor relacionar-se com seu educando:

A Biossíntese pode oferecer e oferece, para uma educação lúdica, recursos teóricos e práticos que delimitam cuidados antecipados frente às possibilidades de “prevenção de neuroses futuras”, como dizia Reich; assim como propicia, também, recursos para a restauração de neuroses, cujas raízes estão no passado. Com isso não estamos querendo dizer que um educador deva tornar-se um psicoterapeuta. De forma alguma! Estamos sinalizando, isso sim, que um trabalho educativo, realizado com cuidados específicos e adequação, pode restaurar experiências traumáticas do passado (forças regressivas), ao mesmo tempo, abrindo portas para a exuberância da vida no presente e no futuro (forças progressivas). Ou, no inverso, como é o caminho apropriado da educação, organizando o futuro (forças progressivas), restaura o passado (forças regressivas).

No mesmo artigo, Luckesi (2000a, p.10) traz dois esclarecimentos importantes sobre

a sua proposta, acima enunciada: um sobre o conceito de neurose de Reich:

Para Reich, a neurose é a cronificação de uma solução como a única verdadeira para todos os problemas da vida. Uma solução pode ser muito boa, mas para um problema específico e não para todo e qualquer problema emergente. Quando uma solução nasceu como um mecanismo de defesa do sujeito numa situação qualquer e não como uma fluidez da vida, ela se cronifica e, por isso mesmo, torna-se neurótica.

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E o outro esclarecimento, que vem em nota de rodapé, em seu artigo, é sobre forças

regressivas e progressivas: “Freud traz os conceitos de forças regressivas como aquelas que

nos prendem no passado e forças progressivas como aquelas que nos colocam em relação com

o futuro, tendo, como base o passado” (LUCKESI, 2000a, p.11).

O educador, em geral, e o infantil, em particular, necessitam ter intimidade com o

seu próprio corpo. Não há como fugir disso! Como entender o que ocorre com a estruturação

e organização do corpo da criança, o que equivale a dizer com a organização de suas

aprendizagens, se este adulto, que está na direção do processo educativo, não souber

reconhecer em si próprio as múltiplas expressões do que está ocorrendo em seu corpo? Afinal,

estamos em um processo interativo e construtivo entre um adulto e muitas crianças, onde tudo

passa pelo corpo e tudo é comunicação a pedir tradução e encaminhamento. O sucesso da

ação pedagógica passa pela decodificação dos estados manifestados pelos corpos das crianças

em comunicação com o corpo do educador.

Os pesquisadores da psicossomática (Wilhelm Reich, Alexander Lowen, Stanley

Keleman, David Boadella) nos mostraram, com suas hipóteses e teorias, que o corpo tem uma

centralidade na vida de todo ser humano e de cada um de nós em particular. Nosso corpo é

nosso recurso para viver e expressar nossa vida. Ele é moldável. Mesmo que tenha sido

esquecido, traído, engessado e endurecido, pode ser restaurado, garantindo que os fluxos

vitais e energéticos bloqueados passem a se movimentar de maneira diferente. Bloqueios não

significam morte do fluxo energético, mas, sim, sua lentificação, que pode ser acelerada,

desde que desejado.

Por outro lado, os autores, direta ou indiretamente, vinculados à psicomotricidade

(Henri Wallon, Jean Le Boulch, André Lapierre), nos mostraram que a formação da criança,

em sua identidade e personalidade, se sustenta em sua corporeidade e que esta corporeidade,

como consciência e posse de si mesmo, se faz na relação com o adulto, mãe, pai, parentes,

educador.

Assim sendo, esses pesquisadores e autores nos dão suporte para sustentar o

problema de investigação e a hipótese de solução que apontei no primeiro capítulo deste

estudo, ou seja, a necessidade da corporeidade como recurso para a prática educativa.

Com esses autores, aprendemos que educadores (para não falar de todos os seres

humanos) e educandos necessitam da corporeidade como consciência e posse de si mesmos

para ser e se expressar na vida. Na relação pedagógica, para o educador, como recurso de

educar, e para o educando, como recurso de formar-se como indivíduo e sujeito.

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5 FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL

Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem “tratar” sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar, não é possível.

Paulo Freire

Nos capítulos anteriores, 2 a 4, definimos a questão que nos ocupa nessa

investigação e a aprofundamos, abordando a relação educador-educando, assim como 3

configuramos as hipóteses psicocorporais e psicocomotoras que dão suporte à solução da

questão que levantamos. Fechamos o capítulo 4 com uma síntese que sistematiza nossa

compreensão sobre o tema da corporeidade na vida humana e de seu papel nas relações entre

os seres humanos.

Neste capítulo, vamos nos dedicar à questão da formação do educador infantil, para

que possa utilizar-se dos recursos da corporeidade na sua prática educativa com crianças.

Vivemos um momento de transição paradigmática no contexto mundial onde se

pretende assegurar melhores condições sociais, culturais e educacionais aos cidadãos. Como

toda transição, essa também traz à tona, de forma potencializada, valores, preconceitos,

fanatismos, violências de toda ordem, semeando um caos de proporções inimagináveis.

Cabe principalmente à educação repensar e, cada vez mais, cuidar deste momento de

transição. Leonardo Boff (1998, p.33) diz que: “Cuidar é mais que um ato; é uma atitude.

Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma

atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o

outro”.

Viver educação exige a revisão de posturas e concepções, o reordenamento do

trabalho pedagógico e o investimento vultuoso em estruturas includentes. Incluir é convite à

aceitação das diferenças, pedindo mudanças de atitude face ao outro, dentro de uma nova

conceituação de escola.

O fato é que a promoção de um modelo educacional flexível e sensível às necessidades

individuais de todas as crianças não é tarefa fácil, uma vez que estamos inseridos num sistema de

ensino classificatório, conceitual, seletivo, quantitativo, que valoriza a homogeneidade e cuja

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atuação das escolas, muito freqüentemente, limita-se às dimensões cognitivas e funcionais do

corpo da criança, restringindo suas práticas a propostas pedagógicas e atividades voltadas,

predominantemente, para o desenvolvimento de condutas motoras e acúmulo de conceitos.

Precisa-se de educadores que acolham as crianças, que procurem entendê-las, aceitá-

las com todas as suas diferenças, que reconheçam a integridade, a plenitude e as vicissitudes

do seu desenvolvimento, tendo em vista ajudá-las a tornarem-se sujeitos e cidadãos.

Professores que não discriminem, rejeitem, rotulem e que, por assim agirem, não as excluam

da escola e do processo sociocultural.

Deise Campos de Souza (2004, p.112), psicóloga e psicomotricista, nos lembra do

mito que carregamos, originado na herança colonial, de que a profissão do professor nascia

imbuída do sentimento missionário. Ser professor era, antes de tudo, “salvar almas”, era uma

missão árdua, mas nobre. O magistério identificava-se como sacerdócio, não apenas no

sentido da manutenção da fé católica e transmissão dos cânones religiosos, mas também na

forma do exercício da profissão, o sacrifício pessoal em prol de um ideal maior.

De um patamar quase santificado, a profissão de educador despencou para um lugar

comum, desqualificado social, cultural e financeiramente sendo destituído do lugar de

detentor único dos saberes constituídos.

Pensar em formação do educador e, a partir daí, fazer propostas que visem, em

primeiro lugar, a inclusão do educador no processo educativo em relação a si mesmo, é uma

possibilidade de se começar a mudança na qualidade da prática educativa, visando criar

contextos educacionais mais verdadeiros, onde se respeite os ritmos, os tempos, a

historicidade de cada sujeito e se supere barreiras físicas, psicológicas, cognitivas, culturais,

raciais.

Para que o educador infantil possa usar sua corporeidade como recurso pedagógico,

de forma clara e consciente, como uma aliada em sua prática educativa, necessitará de um

processo de formação específica, inicial e continuada. A educação é um elemento comum ao

educador e ao educando, ambos se educam na prática educativa, na medida em que o

educador − líder e acolhedor − e o educando − liderado e acolhido, passam pelo processo de

autodesenvolvimento e autoconstrução.

Treinar ou formar? Longe de ser um trocadilho verbal, há diferenças básicas entre

esses dois processos. Treinar significa adestrar, exercitar-se, acostumar-se, constituindo-se em

um exercício ou ato de adestrar, considerando como menos significativa a subjetividade e a

identidade do outro, onde o educador se torna mero executor da proposta pedagógica e

educacional. Formar implica em apreender, discutir, dialogar e principalmente vivenciar tendo

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por base a subjetividade de cada sujeito envolvido no processo. Os desejos, as necessidades, a

expressão das emoções e a história de vida de cada educador são os alicerces fundantes de

onde deve partir uma formação cujo objetivo é gerar diálogo, reflexão e ação educacional;

pois que o educador, mesmo já sendo adulto, é um ser em desenvolvimento, com ritmos

individuais na construção de sua identidade profissional e do conhecimento. Formação inicial

e continuada implica na possibilidade da reflexão a respeito da própria trajetória profissional,

entendendo como cada educador se tornou e continua se tornando educador e como esta

construção vem influenciando em seu dia-a-dia da sala de aula.

Concordamos com Cipriano Luckesi quando diz que a formação é a ação de construir

a nossa forma de ser, de viver, de relacionar-se, de agir. As formas falam por si próprias,

estando disponíveis à leitura do outro; e, dessa forma, novas formas se formam pela interação

dialógica.

Este processo de formação do educador implica na construção e reconstrução da sua

formação identitária, incluindo as suas próprias diferenças, nuances, historicidades. Mais que

isso, o espaço e o tempo dedicados à escuta, expressão, aprendizagem e acolhimento do si-

mesmo do professor consigo e com o outro (colega), faz com que recupere através da história,

da filosofia e das artes, a alteridade dos corpos e o sentido da vida.

Diante do aspecto exposto acima, torna-se necessário perguntar como é possível que,

na formação docente do educador da Educação Infantil, não sejam trabalhados o seu corpo e

sua percepção subjetiva? Como o educador vivencia o que ensina? Como seu corpo percebe,

decodifica e integra o conteúdo curricular? Como torná-lo vivo, dinâmico, lúdico e

integrativo?

A esse respeito, Luckesi (2000a, p.12) ao citar o Relatório34 da Comissão

Internacional sobre a Educação para o século XXI, tece as seguintes considerações referentes

ao aprender a ser:

Aprender a ser! Esta é a necessidade emergente que aponta perspectivas para a educação do século que se inicia. Neste entendimento, os desempenhos cognitivos estão presentes, porém não são exclusivos, como tem sido em nossa prática educativa. O relatório aponta o aprender a ser como o mais fundamental de todos os pilares para a educação do século XXI, como um processo de “ conhecimento de si mesmo” [que possibilita a abertura para o outro], como uma viagem interior, cujas etapas correspondem às da maturação contínua da personalidade”. É uma educação que está atenta ao ser humano como um todo, onde o conhecer, o fazer, o

34 Intitulado Educação: um tesouro a descobrir o Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre

Educação para o Século XXI foi coordenado pelo político francês Jacques Delors.

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viver juntos sustentam-se no ser. Essa compreensão e proposição redirecionam completamente a educação, que vimos praticando em nossas famílias e em nossas instituições educativas.

Como construir um espaço para o aprender a ser do educador infantil e sua expressão?

Como incluir este espaço no currículo de formação desse educador infantil?

Maurice Tardif (2000, p.56) fala-nos da importância de valorizarmos, na formação e

prática docentes, a necessidade de considerar a subjetividade do educador, pois sua prática é

perpassada pela sua experiência de vida, afetividade, corporeidade, crenças, valores e a

necessidade de que se compreenda a prática docente como produtora de saberes e não como

somente aplicadora de saberes produzidos por outros.

Ao fazer uma proposta em ludopedagogia para a formação docente, Cipriano Luckesi

(2000b, p.125) assim a formulou:

[...] a ludopedagogia implica numa conjugação de conhecimentos provenientes de várias áreas científicas e culturais, que podem ser organizadas em três grandes núcleos de estudos: atividades lúdicas e o desenvolvimento do ser humano; atividades lúdicas e sua compreensão e integração sócio-cultural; atividades lúdicas e práticas educativas.

Esta proposta foi realizada no Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação

da Universidade Federal da Bahia, através de três disciplinas intituladas: Ludopedagogia I –

atividades lúdicas e desenvolvimento psicológico de ser humano; Ludopedagogia II –

atividades lúdicas e integração sociocultural do ser humano; Ludopedagogia III – atividades

lúdicas e prática educativa. Traz, em seu bojo, uma visão integral do ser humano assim como

sublinha a necessidade humana de viver e compreender seus processos, não bastando apenas

agir ou apenas compreender, sendo necessário que a prática faça parte da formação pessoal e

profissional para que dê suporte à formação de outros.

Lapierre e Auconturier discorrem sobre sua compreensão do que seja uma Educação

Vivenciada onde afirmam que são as intenções que determinam um trabalho pedagógico

autêntico, constituindo-se como o marco diferencial dos processos educativos.

Compreende-se que cuidar do corpo do educador, enquanto lugar de emoções,

desejos, anseios, demandas, é contribuir para que espaços sejam abertos − espaços afetivos,

cognitivos e culturais −, advindo daí uma contribuição social no que se refere à qualidade de

vida do educador e do seu educando. Caminha-se na direção da melhora da auto-estima e da

retomada do sentido de valores pessoais e profissionais.

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Há muito tempo, a educação vem propondo uma abordagem do desenvolvimento

que considere a globalidade do ser humano. Porém a dificuldade manifestada, ao longo do

tempo, tem sido a das práticas educativas encerrarem-se nos necessários e previsíveis

investimentos cognitivos, passando à margem de outras facetas fundamentais e significativas

da vida humana.

Como estamos abordando a formação do educador, julgo necessário, de início, para

este estudo, que busquemos na lei educacional brasileira, como a Educação Infantil está sendo

compreendida e legislada. Qual o seu status e o seu lugar dentro do contexto educacional

geral? E como esta visão tem se desenvolvido dentro dos parâmetros atuais? Há uma

preocupação com a formação específica com esse educador? Essa incursão nos permitirá

configurar quem deve ser o educador dessa área de prática educativa.

Começaremos com o documento que é específico para a Educação Infantil:

Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1993). O acesso a esse

documento coloca-nos em contato com uma posição oficial no país sobre o tema que nos

compete neste estudo. É importante observar que esse documento sinaliza a centralidade da

corporeidade como elemento básico na Educação Infantil, que é o tema desta investigação.

5.1 O QUE DIZ O REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO

INFANTIL

Por que e como as crianças de zero a seis anos foram excluídas da educação no

Brasil? E, o que aconteceu com os adultos brasileiros que só se deram conta do direito à

educação das crianças pequenas com a Constituição de 1988?

Ana Lúcia Goulart de Faria (1999) ajuda-nos a responder estas perguntas, trazendo-

nos um pouco da história da Educação Infantil no Brasil através de sua Tese de Doutorado,

onde estuda o direito a uma infância que não seja explorada e nem segmentada desde a

criação dos parques infantis pelo poeta Mário de Andrade, durante a sua gestão no

Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, no período de 1935 a 1938,

dando origem à primeira rede pública de Educação Pré-escolar.

Desde os anos 70, o movimento feminista e o movimento sindical vêm

reivindicando a construção de creches, porém, com enfoque da mulher trabalhadora e não da

criança pequena, pois esta era vista como uma extensão da mãe trabalhadora, o que conduziu

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esta demanda a ter um caráter assistencialista-filantrópico. As poucas iniciativas públicas para

atender as crianças pequenas estiveram vinculadas às Secretarias da Promoção Social ou da

Assistência Social:

Foram, em geral, as feministas intelectualizadas de classe média, e que eram contra a ditadura, que passaram a pesquisar sobre a infância e a assessorar os governos progressistas que, atendendo às reivindicações populares, prometeram creches nas suas campanhas eleitorais. (FARIA, 1999, p.74)

Ao pesquisar sobre os parques infantis, a autora registra que eles promoveram

mudanças culturais e educacionais de grande inovação para a época, pois garantiram a

assistência aos filhos do operariado através de uma educação de alta qualidade, específica

para a criança pequena, porém sem escolarizá-la, mas tratando-a como alguém que cria uma

cultura infantil. As grandes inovações, a que se refere a autora, dizem respeito a um trabalho

educacional e cultural onde o caráter lúdico e artístico, o espaço garantido para o inesperado,

para o conhecimento espontâneo, davam lugar à construção de uma cultura infantil, cujo lema

era “educar, assistir e recrear”.

E mesmo com todo este movimento social, cultural e político, uma divisão se

manteve (e se mantém até hoje): as pré-escolas públicas assumiram um caráter cada vez mais

voltado para o currículo que conduz à alfabetização e ao modelo escolar, e as creches

continuaram voltadas para a criança pequenina e a sua mãe.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei 9.394/9635,

estabeleceu, pela primeira vez, na história de nosso país, que a educação infantil é dever do

Estado e direito da criança, sendo considerada a primeira etapa da educação básica e tendo

como finalidade o desenvolvimento integral da criança de zero a seis anos de idade. Tanto as

creches para as crianças de zero a três anos, como as pré-escolas, para as de quatro a seis

anos, são consideradas como instituições de educação infantil. A distinção entre ambas é feita

apenas pelo critério de faixa etária.

O atendimento institucional à criança pequena no Brasil tem se apresentado com a

finalidade social de atender exclusivamente às crianças de baixa renda, justificando-se como

estratégia para combater a pobreza e resolver problemas ligados à sobrevivência. Sua

35 A Constituição de 1988, antes ainda da nova LDB, compreendeu a Educação Infantil das crianças de 0 a 6

anos em creches e pré-escolas como a primeira etapa da educação básica. Todavia, foi com a LDB, de 1996, que esta compreensão tomou corpo e assumiu aspectos práticos.

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concepção educacional era marcada por características assistencialistas, caracterizando-se

como um favor oferecido para poucos, selecionados por critérios excludentes.

Para mudar essa concepção de educação assistencialista, necessário se fez que as

autoridades, os educadores e a sociedade em geral atentassem para várias questões que iam

muito além dos aspectos legais, significando assumir as especificidades da educação infantil e

rever concepções sobre a infância, as relações entre classes sociais, as responsabilidades da

sociedade e o papel do Estado diante da primeira infância.

O Ministério da Educação e do Desporto, atendendo às determinações da LDBEN,

organizou a série de documentos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Nesse

contexto, um desdobramento se fez imprescindível: o Referencial Curricular Nacional para a

Educação Infantil36 (BRASIL, 1998), referente às creches, entidades equivalentes e pré-

escolas.

O Referencial foi concebido para servir como guia de reflexão, de cunho

educacional, sobre objetivos, conteúdos e orientações didáticas para os educadores que

atuaram e atuam diretamente com crianças de zero a seis anos, respeitando seus estilos

pedagógicos e a diversidade cultural brasileira. O Referencial é um documento composto de

três volumes, sendo o primeiro intitulado Introdução, o segundo Formação Pessoal e Social e

o terceiro Conhecimento de Mundo. O material está organizado didaticamente considerando o

já citado critério por faixa etária (crianças de zero a três anos que freqüentam as creches, e

crianças de quatro a seis anos que freqüentam as pré-escolas), além de abordar considerações

gerais que englobam toda a primeira infância como o brincar, a construção dos vínculos, a

linguagem, etc.

Foi estruturado em uma organização por idades, concretizando-se em dois âmbitos

de experiências – Formação Pessoal e Social (Volume 2) e Conhecimento do Mundo (Volume

3) – que são constituídos pelos seguintes eixos de trabalho: Identidade e Autonomia,

Movimento, Artes Visuais, Música, Linguagem Oral e Escrita, Natureza e Sociedade e

Matemática. Cada documento está organizado em torno de um segmento comum, onde estão

explicitadas as idéias e práticas relacionadas ao eixo e à criança e aos componentes

curriculares: objetivos, conteúdos e orientações didáticas.

O primeiro volume do Referencial, denominado Introdução, tem por objetivo

apresentar este documento ao público-alvo a que se destina: os educadores de creches e de

pré-escolas, que trabalham com as crianças de zero a seis anos.

36 Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria

de Educação Fundamental – MEC/SEF. Brasília, 1998, 3 volumes.

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O objetivo deste documento é contribuir para o planejamento, desenvolvimento e

avaliação de práticas educativas que considerem a pluralidade e diversidade do povo

brasileiro e, particularmente, de sua infância. Foi construído com a intenção de ser um guia de

orientação e discussão entre profissionais, deixando claro que o conhecimento se processa de

maneira integrada, global e relacional.

Os princípios que embasam este documento estão descritos na página 13 do 1º

volume. São eles:

O respeito à dignidade e aos direitos das crianças, consideradas nas suas diferenças individuais, sociais, econômicas, culturais, éticas, religiosas etc; O direito das crianças a brincar, como forma particular de expressão, pensamento, interação e comunicação infantil; O acesso das crianças aos bens socioculturais disponíveis, ampliando o desenvolvimento das capacidades relativas à expressão, à comunicação, à interação social, ao pensamento, à ética e à estética; A socialização das crianças por meio de sua participação e inserção nas mais diversificadas práticas sociais, sem discriminação de espécie alguma; Atendimento aos cuidados essenciais associados à sobrevivência e ao desenvolvimento de sua identidade.

A apresentação do primeiro volume do Referencial, os autores selecionam conceitos

que consideram essenciais para que o leitor possa se situar, diminuindo os equívocos de

linguagem e conceituais. Dos conceitos explicitados, apresentamos aqui os mais significativos

para este estudo.

A concepção de criança que é tida como uma noção historicamente construída que

se altera ao longo do tempo, não se apresentando de forma homogênea nem mesmo em uma

mesma sociedade e época. A criança é assumida como um sujeito social e histórico, fazendo

parte de uma organização familiar, que está inserida em uma sociedade, com determinada

cultura, em determinado momento histórico. É profundamente marcada pelo meio social em

que se desenvolve, mas também o marca.

Nossa infância está mergulhada em uma dualidade cruel, onde encontramos um

número extenso de crianças enfrentando um cotidiano adverso, que as conduz, desde muito

cedo, a precárias condições de vida e ao trabalho infantil, ao abuso e exploração por parte do

adulto. Outras crianças são protegidas de todas as maneiras, recebendo de suas famílias, e da

sociedade em geral, todos os cuidados necessários ao seu desenvolvimento.

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A natureza singular, que caracteriza a forma como sentem e pensam o mundo, faz

com que as crianças revelem seu esforço para compreendê-lo por meio das brincadeiras onde

podem explicitar as condições de vida a que estão submetidas, seus anseios e seus desejos.

Então, o brincar, para a criança, é da ordem do vital. Toda brincadeira é uma

imitação transformada, no plano das emoções e das idéias, de uma realidade anteriormente

vivenciada. A brincadeira é uma ação que ocorre no plano da imaginação, implicando que

aquele que brinca tenha o domínio da linguagem simbólica. Para brincar, é preciso apropriar-

se de elementos da realidade imediata, de tal forma a atribuir-lhes novos significados. Essa

peculiaridade da brincadeira ocorre por meio da articulação entre a imaginação e a imitação

da realidade. É preciso que as crianças tenham certa independência para escolher os papéis, os

temas e os enredos onde irão desenvolver a sua imaginação, a tentativa de resolver conflitos,

unificar a percepção fragmentada da realidade e explorar seus anseios.

Cabe ao educador, organizar a estrutura desse brincar, oferecendo às crianças

objetos, fantasias, brinquedos, jogos, espaço e tempo adequados.

A concepção de educação trazida no Referencial entende que: “Educar significa

propiciar situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e

que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis de apropriação e

conhecimento das potencialidades corporais, afetivas, emocionais, estéticas e éticas”.

(BRASIL, 1998, p. 23).

Esta concepção inclui o ato de cuidar, que é ajudar o outro a se desenvolver como

ser humano. Cuidar significa valorizar e ajudar a desenvolver capacidades. Para cuidar, é

preciso estar comprometido com o outro, com sua singularidade, pois, disso depende a

construção do vínculo entre quem cuida e quem é cuidado.

O segundo volume do Referencial, denominado Formação Pessoal e Social,

preocupa-se em colocar a instituição de educação infantil como um dos principais espaços de

inserção das crianças nas relações éticas e morais que permeiam a sociedade, na qual estão

inseridas, através de um trabalho que as ajude a desenvolver as suas identidades e autonomias.

Conhecer suas características e potencialidades, reconhecer seus limites e possibilidades,

sentirem-se aceitas, ouvidas, cuidadas, amadas, assumirem pequenas responsabilidades,

efetuarem escolhas são processos que conduzem ao desenvolvimento da identidade e da

autonomia.

Os objetivos estabelecidos para a faixa etária de quatro a seis anos devem garantir

oportunidades para que as crianças sejam capazes de:

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- Ter uma imagem positiva de si, ampliando sua autoconfiança, identificando cada vez mais suas limitações e possibilidades e agindo de acordo com elas; - Identificar e enfrentar situações de conflito, utilizando seus recursos pessoais, respeitando as outras crianças e adultos e exigindo reciprocidade; - Valorizar ações de cooperação e solidariedade, desenvolvendo atitudes de ajuda e colaboração e compartilhando suas vivências; - Brincar; - Adotar hábitos de autocuidado, valorizando as atitudes relacionadas com a higiene, alimentação, conforto, segurança, proteção do corpo e cuidados com a aparência;

_ Identificar e compreender a sua pertinência aos diversos grupos dos quais participam, respeitando suas regras básicas de convívio social e a diversidade que os compõe (BRASIL, 1998, p. 33).

Os conteúdos sugeridos, a partir dos objetivos traçados, são: nome, imagem,

independência e autonomia, respeito à diversidade, identidade e gênero, interação, jogos e

brincadeiras, cuidados pessoais.

O terceiro volume do Referencial, denominado Conhecimento de mundo, tem um

caráter de organização da aprendizagem dos conteúdos de cunho teórico que demandam

maior grau de simbolização como a Matemática, a Música, as Artes Visuais, a Linguagem

Oral e Escrita, as relações entre a Natureza e Sociedade.

Para este estudo, porém, interessa a organização dada a todas as funções

psicomotoras que estão incluídas no capítulo Movimento, compreendidas no conceito de

Cultura Corporal. A expressão cultura corporal vem sendo utilizada para denominar o amplo

e riquíssimo campo da cultura que abrange a produção de práticas expressivas e

comunicativas externalizadas pelo movimento.

A ênfase dada ao movimento está bem marcada no texto do volume 3 do Referencial

pois, tem como objetivo maior garantir que as instituições de educação infantil propiciem

ambiente físico e social que permita uma multiplicidade de manifestações do ato motor,

favorecendo um amplo desenvolvimento de aspectos específicos da motricidade das crianças,

desde as atividades cotidianas até aquelas voltadas para a ampliação da cultura corporal de

cada criança.

Há uma preocupação em ultrapassar as práticas pedagógicas que, em nome da ordem

e da harmonia, procuram suprimir o movimento, impondo às crianças rígidas restrições

posturais. Isto se traduz, por exemplo, na exigência em permanecer parado e quieto por longos

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momentos, seja em fila ou sentado, pois qualquer deslocamento, gesto ou mudança de posição

pode ser visto como indisciplina ou desordem. Estas exigências de contenção motora podem

estar baseadas na crença de que o movimento impede a concentração, e as manifestações

motoras atrapalham a aprendizagem.

Outras práticas, também ainda presentes em nossas escolas, se valem de recursos

didáticos que propõem seqüências de exercícios de deslocamentos em que a criança deve

mexer seu corpo mas desde que em estrita conformidade às orientações dadas pelo professor.

Para além desses modos tradicionais de agir pedagogicamente, este capítulo salienta

a necessidade vital do movimento para a criança, pois sabe-se que ela se expressa e se

comunica através do ato motor, ou seja, da sua psicomotricidade. Externaliza sentimentos,

emoções e estados íntimos pela expressividade e mobilidade do corpo.

No início do desenvolvimento, entende o documento que predomina a dimensão

subjetiva da motricidade que exige, de per si, a interação com o meio social que lhe dará

sentido e significado. Aos poucos, a dimensão objetiva do movimento (competências

instrumentais para agir sobre o espaço e o meio físico) vai se desenvolvendo. Os jogos,

brincadeiras, danças e práticas esportivas estruturam tanto a dimensão subjetiva da

motricidade quanto a objetiva. Compreender e vivenciar o caráter lúdico e expressivo das

manifestações da motricidade infantil poderá ajudar o professor a organizar melhor a sua

prática e a sua comunicação com as crianças.

Na faixa etária de quatro a seis anos, constata-se uma ampliação do repertório de

gestos instrumentais cada vez mais precisos. Recortar, colar, encaixar pequenas peças, colorir,

desenhar são atos que demandam a coordenação de vários segmentos motores. Porém, a

natureza lúdica e simbólica da motricidade permanece em intensa evolução e construção.

O controle voluntário da motricidade está em franca ascensão neste período,

possibilitando que a criança planeje e antecipe ações e possa ter um maior controle sobre a

própria ação, diminuindo sua impulsividade.

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil apresenta-se, então,

como um documento que sintetiza, de maneira clara e objetiva, os princípios e propósitos que

devem nortear a Educação Infantil no Brasil. O maior valor deste documento está na sua

existência como um desdobramento dos PCN, o que lhe garante autoridade.

Como guia de reflexão de cunho educacional, seu maior objetivo tem sido elevar o

atendimento institucional à criança pequena, de assistencialista e a pequenos grupos, para o

status oficial de educação infantil. Necessário se fez, então, que concepções sobre a infância e

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suas demandas fossem discutidas e sistematizadas, revendo as especificidades da primeira

infância e sua abordagem pedagógica.

O corpo é visto, neste documento, como pilar básico da aprendizagem. Há um

destaque às atividades que trabalham com a construção da identidade através da imagem

positiva e autoconfiante de si, valorizando ações de cooperação e cuidados consigo mesmo e

inclusão das diferentes características que compõem os grupos.

A motricidade é tratada de forma dinâmica, natural, funcional, ou seja, está incluída

nas atividades propostas para o professor. Há um destaque de respeito ao intenso movimento

corporal nesta faixa etária como necessário a qualquer processo que a criança vivencie, pois

toda atividade infantil é global e indivisível (o corpo é o veículo para a simbolização das

vivências).

Em seu livro Com a pré-escola nas mãos, Sônia Kramer (2003, p.21), ao colocar os

princípios de sua proposta pedagógica, entra em consonância com o acima exposto.

Do ponto de vista da psicomotricidade, entendemos que as crianças precisam expandir seus movimentos, explorando seu corpo e o espaço físico, de forma a terem um crescimento sadio. Aqui é necessário ressaltar que não valorizamos a execução mecânica do exercício motor pelo simples exercício: é através da realização das atividades cotidianas, e em função de objetivos determinados (como, por exemplo, construir um boneco, realizar um jogo, desenhar uma história, fazer bolos de areia e água etc), que a motricidade é desenvolvida.

O brincar é colocado como um dos objetivos estabelecidos para a faixa etária de

quatro a seis anos. É compreendido como imitação transformada da realidade vivida, uma

ação que visa à apropriação simbólica do real.

Os estudos de Tizuko Kishimoto (2003, p.7) também apóiam as elucidações sobre o

brincar contidos no Referencial.

Do ponto de vista histórico, análise do jogo é feita a partir da imagem da criança presente no cotidiano de uma determinada época. O lugar que a criança ocupa num contexto social específico, a educação a que está submetida e o conjunto de relações sociais que mantém com personagens do seu mundo, tudo isto permite compreender melhor o cotidiano infantil e é nesse cotidiano que se forma a imagem da criança e do seu brincar.

O jogo protagonizado e/ou o jogo de papéis traduzem a necessidade da criança de

compreender e internalizar, através da vivência, as relações homem-homem, na tentativa de

integrar as funções sociais desempenhadas pelos adultos.

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Ao criar uma situação imaginária, a criança se descola da realidade e tenta ser o que

ela pensa que uma determinada ação/função social deveria ser na vida real. É uma espécie de

“reflexão” da ação adulta. O que na vida real passa desapercebido pela criança, torna-se uma

regra de comportamento no brinquedo. As regras têm sua origem na própria situação

imaginária.

O foco de interesse do jogo protagonizado são as relações humanas e suas funções

sociais, onde o jogo desempenha a função de ajudar à criança a compreender e internalizar a

trama de relações vigentes, funcionando como mecanismo de incorporação dos valores

embutidos nessas relações.

Todavia, apesar dos aspectos positivos do documento, apontados acima, vale

sinalizar que ainda deixa lacunas. As lacunas deixadas no texto do Referencial integram três

aspectos extremamente significativos. O primeiro aspecto refere-se ao fato de que ele

compreende a psicomotricidade de uma forma muito restrita, embora inserida no dia-a-dia da

criança. Em segundo lugar, não propõe formas de cuidar da prática pedagógica no cotidiano

das salas de aula. Não há registro nesse sentido. E o terceiro ponto negativo diz respeito à

educação dos educadores, à sua formação e à continuidade dessa formação.

Outros estudos nos ajudam a olhar para essas lacunas. No capítulo 4 deste estudo,

especificamos uma compreensão da psicomotricidade em Wallon, Le Boulch e André

Lapierre. Os três referenciais teóricos mostram uma compreensão ampla, profunda e

integrativa do desenvolvimento psicomotor e da necessidade de preparação para trabalhar

com eles.

Jean Le Boulch, através da psicocinética, traz uma proposta pedagógica bem

definida. André Lapierre destaca-se por um trabalho prático, rico e extremamente integrativo.

Foi em 1977 que André Lapierre começou seu trabalho em Psicomotricidade

Relacional, incluindo as dimensões afetiva, emocional e relacional e afastando-se do corpo

mecânico e treinável da Reeducação Psicomotora. Propôs que esta forma de jogar,

aparentemente anárquica e dispersiva, fosse incluída nas creches e pré-escolas francesas. Em

O adulto diante da criança (LAPIERRE; LAPIERRE, 1998, p. 13), ele relata esta experiência

e a sua sistematização e os motivos que o levaram até a creche e à pré-escola: a inadaptação

escolar e o fracasso escolar em crianças em idade de 6 a 12 anos onde todo o trabalho era feito

baseado no sintoma: “Por exemplo, se a criança tem dificuldade em aprender a ler, é preciso

dar-lhe os meios para superar essa dificuldade específica... daí um trabalho técnico de

percepção do espaço e do tempo, etc. Exercícios psicomotores muito racionais”.

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A Psicomotricidade Relacional propõe que, através do jogo espontâneo e do jogo

simbólico, o educador ajude a criança a decodificar os comportamentos corporais que

evidenciam as estratégias habitualmente usadas pelo sujeito em sua vida relacional. Seu foco

de interesse é o primado da relação com o outro, com seus conteúdos projetivos, simbólicos e

fantasmáticos, remontando-se às relações originais com as figuras parentais.

É na tonicidade da linguagem corporal que os conteúdos se manifestam e

correspondem à realidade interna do sujeito que brinca. Os conteúdos simbólicos, que se

manifestam no jogo espontâneo, vão ganhando expressão e dando espaço também aos

fantasmas que emergem do mundo imaginário. Os fantasmas estão presentes nas brincadeiras

infantis, devaneios, contos de fada e, em todos os momentos, onde se busca um refúgio

compensatório da realidade através da fantasia.

A Psicomotricidade Relacional contém e é contida pela ludicidade e ambas se

mesclam quando propõem cuidar do desenvolvimento humano através do corpo, que integra

diferentes funções, habilidades, estados emocionais e padrões relacionais e tônicos. Ambos

estão cuidando da constituição e reorganização das estruturas corporais, emocionais e

cognitivas que formam a criança na Educação Infantil.

Como incluir a Psicomotricidade e a Psicomotricidade Relacional dentro deste

conjunto de orientações se não se considerar prioritária a formação continuada teórico-prática

dos educadores?

Quanto ao profissional que “cuida” da Educação Infantil no Brasil, a LDB dispõe,

em seu artigo 62, que a formação de docentes para atuar na educação infantil deve ser feita

em nível superior e, nesse contexto, incluiu um período temporal de transição que se

denominou de “década da educação”, período considerado necessário para que o investimento

na formação de docentes se concretizasse, aproveitando as experiências acumuladas daqueles

que já vinham trabalhando com crianças há mais tempo, mas também visando à

profissionalização do docente da educação infantil.

O caráter profissionalizante desta proposta explicitou qual deveria ser o seu perfil:

um profissional com competência polivalente. Ser polivalente significa que ao educador cabe

trabalhar com conteúdos de natureza diversa que abrangem, desde cuidados básicos essenciais

até conhecimentos específicos, provenientes das diversas áreas do conhecimento. Este caráter

polivalente demanda uma formação bastante ampla do profissional e uma disponibilidade

constante para o diálogo com seus pares, famílias e comunidade, bem como reflexão

constante sobre sua prática.

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O educador que não se envolver corporalmente com a criança na Educação Infantil

(creche e pré-escola) deixará uma enorme parcela em branco na relação pedagógica com esta

criança, como vimos nas abordagens dos autores que tratam da psicomotricidade. Ele

precisará recuperar sua história, seus desejos infantis e reaprender a brincar com seu corpo na

relação com o corpo do outro – a criança. Trata-se de interpretar as reações motoras e tônicas

do outro e dar-lhes um sentido e também de interpretar suas próprias reações tônicas e

motoras e dar-lhes um sentido. É neste jogo de sentidos que se estabelece a relação tônica e a

simbólica, contribuindo para a estruturação da personalidade da criança.

Em relação ao segundo aspecto, onde o Referencial se manifesta frágil, há uma

carência do cuidado da prática pedagógica cotidiana. Há necessidade de um documento que

dê norte às reflexões, que não determine como as ações devam se concretizar, mas que induza

a pensar e refletir. Um documento que indique práticas é extremamente valioso, mas

incompleto, correndo o risco de ser mais um manual, mais um documento de profissionais

altamente especializados que “pensam” pelo professor como deve ser a sua prática.

No segundo volume do Referencial, encontra-se uma concepção de cuidar dizendo

que cuidar significa valorizar e ajudar a desenvolver capacidades. Como poderá o educador

infantil cuidar da criança, o que significa dizer cuidar da corporeidade, se não estiver

cuidando constantemente de sua própria corporeidade?

5.2 O QUE UM EDUCADOR NECESSITA DE DOMINAR PARA SER UM EDUCADOR

NA EDUCAÇÃO INFANTIL

A atividade do educador é ensinar. Ensinar é uma atividade prática. O educador em

formação se prepara para efetivar as atividades práticas do ensinar. De que formação precisa o

educador infantil para que se sinta habilitado a operar com a incorporação das crianças no

processo civilizatório, com seus avanços e suas complexas dificuldades? Que ajude as

crianças a re-significar a “sociedade do conhecimento” na qual estamos mergulhados?

Cabe, em primeiro lugar, explicitarmos o que significa conhecimento. Segundo Selma

Garrido Pimenta (1999), para construir um conhecimento, o educador em formação passa por

três estágios. O primeiro é a informação. O segundo é o de trabalhar com as informações

classificando-as, analisando-as e contextualizando-as; e o terceiro estágio se relaciona com a

inteligência, a consciência ou a sabedoria. Inteligência é a habilidade de produzir formas úteis

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e pertinentes ao conhecimento acessado, e consciência e sabedoria referem-se à possibilidade

de reflexão, que é a capacidade de humanização desse conhecimento.

Em segundo lugar, cabe incluirmos reflexões pertinentes a que tipo de informação

estamos nos referindo e desejando para os educadores contemporâneos. Esta autora traz um

posicionamento crítico, porém inclusivo, sobre de qual formação estamos falando:

O estudo da prática social da educação requer competências que possibilitem novos modos de compreensão do real e de sua complexidade. A Pedagogia e as demais ciências da educação estão encarregadas de produzir esses novos modos. Não se pode mais educar, formar, ensinar apenas com o saber (das áreas de conhecimento) e o saber fazer (técnico/tecnológico). Faz-se necessária a contextualização de todos os atos, seus múltiplos determinantes, a compreensão de que a singularidade das situações necessita de perspectivas filosóficas, histórias, sociológicas, psicológicas, etc. Perspectivas que constituem o que se pode chamar cultura profissional da ação, ou seja, que permitem aclarar e dar sentido à ação. (PIMENTA, 1999, p.10).

As pesquisas contemporâneas sobre a formação docente compreendem que a

transformação da prática docente só se efetivará na medida em que o educador puder ampliar

sua consciência sobre sua própria prática. Esta compreensão conduz a um novo paradigma

sobre este formar – inicial e contínuo – e suas implicações. Caminha-se na direção de uma

formação que inclua as discussões e os estudos da teoria e da prática, a reflexão sobre sua

práxis, desenvolvimento pessoal e profissional e o papel social do educador, concebendo este

educador como um educador reflexivo.

António Nóvoa (1992, p.25) propõe a formação numa perspectiva que chama de

crítico-reflexiva, que “forneça aos professores os meios de um pensamento autônomo e que

facilite as dinâmicas de formação autoparticipada”, onde três processos são considerados, a

saber: produzir a vida do professor (desenvolvimento pessoal), produzir a profissão docente

(desenvolvimento profissional) e produzir a escola (desenvolvimento organizacional).

Edgar Morin (2001) compreende que todo conhecimento se constitui em uma

tradução, em uma reconstrução feita a partir de representações, e que a organização dos

conhecimentos se dá a começar de princípios e regras, com operações de ligação (conjunção,

inclusão, implicação) e de separação (diferenciação, oposição, seleção, exclusão),

constituindo-se num processo circular que vai da separação à ligação, da ligação à separação;

da análise à síntese e da síntese à análise.

Morin (2001) confirma aquilo que vivenciamos na práxis pedagógica: “nosso modo

de conhecimento desune os objetos entre si, precisamos conceber o que os une” porque nossa

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educação tem privilegiado a separação e análise em detrimento da ligação e da síntese.

Explicita que contextualizar conduz à emergência de um pensar “ecologizante”, que trata de

ligar todo acontecimento, informação ou conhecimento em relação a seu contexto ambiental,

cultural, social, político, natural, psicológico, numa relação de inseparabilidade.

Propõe que atentemos às fronteiras entre as várias áreas do conhecimento, religando-

as a partir de sete princípios organizadores: princípio sistêmico organizacional – aquele que

liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo; o princípio hologrâmico – o que

compreende o paradoxo parte-todo-parte; o princípio circuito retroativo – que permite o

conhecimento dos processos auto-reguladores, rompendo com o princípio da causalidade

linear; o princípio do circuito recursivo – autoprodução e auto-organização; o princípio da

autonomia/dependência (auto-organização) – que inclui as forças antagônicas e

complementares nas organizações dos seres e dos sistemas; o princípio dialógico – que

concebe a dialógica ordem/desordem/organização e o princípio de reintrodução do

conhecimento em todo conhecimento – aquele que entende que da percepção à teoria

científica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução feita por uma mente/cérebro, em

uma cultura e época determinadas.

A educação é um processo contínuo que dura toda a vida, ocorre todo o tempo e de

maneira recíproca, pois se configura em um processo de convivência. E, para conviver, é

preciso sentir, pensar e agir de forma que constitua o outro como um legítimo outro, pois

“sem aceitação e respeito por si mesmo não poderei aceitar e respeitar o outro, e sem aceitar o

outro como legítimo outro na convivência, não há fenômeno social”, como afirma Humberto

Maturana (1998, p.31), biólogo contemporâneo, ao classificar este processo como pertinente à

biologia do amor.

Educar, então, se constitui no processo de convivência onde, ao conviver, a

transformação ocorre nesse espaço de convivência entre educador e educando. Mas como

conviver, como sinônimo de educar, na direção do auto-respeito e da auto-aceitação?

Respeitar-se e aceitar-se passa pelo aprendizado da coerência entre o sentir, o pensar

e o fazer, onde os afazeres são reflexos do viver. Se o pensar que as crianças aprendem não se

constitui num fazer cotidiano no espaço relacional onde vive, então essa educação não serve

porque está alienando realidade interna de realidade externa, sujeito de objeto, mente de

corpo, ser humano de natureza, sentir e pensar de agir.

Vivemos numa cultura que desacredita o valor das emoções, quando prega que é a

razão que caracteriza o humano. Para Maturana, as emoções são disposições corporais

dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Quando

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mudamos de emoção, mudamos de domínio de ação, pois, “biologicamente, as emoções são

disposições corporais que determinam ou especificam domínios de ação” (MATURANA,

1998, p. 15), onde o humano se constitui no entrelaçamento do emocionar como pensar, cujo

entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver diário, não é visto e

nem percebido por nós. Todo sistema racional tem um fundamento emocional, segundo os

estudos da biologia do conhecimento de Maturana.

O mais interessante do que afirma Maturana (1998, p.27) é poder compreender que o

fundamento emocional do racional, ao contrário do que propõe a visão cartesiana quando

considera científico o que vem exclusivamente da razão, pois se estrutura na certeza e na

infalibilidade do conhecimento científico e não na mobilidade que caracteriza o sentir

humano, não é uma limitação, mas condição de possibilidade. O linguajar37, que é típico do

humano, se entrelaça com o emocionar, tecendo o fenômeno social: “A linguagem como

fenômeno, como um operar do observador, não ocorre na cabeça nem consiste num conjunto

de regras, mas ocorre no espaço de relações e pertence ao âmbito das coordenações de ação,

como um modo de fluir nelas”.

A linguagem, ou melhor dizendo, o linguajar é dependente de uma história de

interações recorrentes, envolventes e amplas, em que haja aceitação mútua em um espaço

aberto às coordenações de ações. Sem aceitação do outro na convivência, o linguajar não se

estabelece; portanto não há fenômeno social e nem relacional. Por isso, Maturana afirma que

é o amor o fundamento do social como sistema de convivência, entendendo amor como a

emoção que constitui o domínio de condutas em que operacionaliza a aceitação do outro

como legítimo outro na convivência social.

Os autores acima mencionados – Selma Garrido Pimenta, António Nóvoa, Edgar

Morin e Humberto Maturana – através de diferentes enfoques, propõem reflexões

significativas a respeito da formação do educador. São unânimes em afirmar que a educação,

seja do educador, seja do educando, é processo contínuo que pede um compromisso cotidiano

de envolvimento, autoconhecimento, diálogo. O educador não se constitui educador ao

receber um diploma. Ele se “forma e se reforma” ao longo do processo de conviver, refletir e

interagir em sua práxis pedagógica. É o movimento de transformar os acontecimentos em

experiências plenas de significação, dentro de um projeto pedagógico, que lhe permite ver e

viver a riqueza e o mistério do educar-se e de contribuir para o educar do outro. 37 Maturana utiliza o termo linguajar e não linguagem, reconceitualizando esta noção, enfatizando seu caráter de

atividade de comportamento e evitando assim a associação como uma “faculdade” própria da espécie, como tradicionalmente se faz (nota desta edição, 1998, 3ª reimpressão).

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5.3 A EDUCAÇÃO NECESSÁRIA PARA O EDUCADOR INFANTIL E SEU

“CURRÍCULO DE FORMAÇÃO”

Como se aprende realmente a ser um educador infantil? O que é importante para a

sua competência profissional? Como configurar um currículo de formação, para que o

educador infantil se valha com consciência pessoal e profissional da sua corporeidade na

relação com a criança na Educação Infantil?

Associando a compreensão de minha prática profissional aos autores estudados neste

processo investigativo sobre quem é a criança e de que interações ela necessita na Educação

Infantil, chego a uma compreensão de que educador esta criança está demandando.

Sabemos que a criança aprende mediante as interações com o outro, que são

interações psicocorporais, onde a construção do conhecimento segue um movimento que vai

do grupal (interação com o outro) para o individual (síntese pessoal do vivido coletivamente),

a partir do uso de diferentes linguagens (plástica, musical, gráfica, oral, midiática),

contextualizadas em sua corporeidade em formação. A possibilidade de “errar” e transformar

o “ainda não sabido” em acerto e o prazer lúdico são os fermentos desse aprender.

Considerando o exposto neste capítulo e nos capítulos precedentes, proponho que a

formação docente do educador para trabalhar na Educação Infantil contemple, em seu

currículo regular, os seguintes aspectos: a) ter o domínio de sua própria corporeidade,

valendo-se de estudos e vivências possibilitadas pela Bioenergética e b) saber o que fazer com

a criança que tem na brincadeira seu centro de atividade e aprendizagem, portanto, “aprender

ou reaprender a brincar” através dos estudos e vivências propostas pela Psicomotricidade

Relacional, pois possibilitam um confronto com o brincar de fluxo livre e o jogo espontâneo e

simbólico.

Com isso, não estarei, no que se segue, apontando aspectos e abordagens que são

necessárias ao educador infantil, juntamente com o que já contém o currículo regular dessa

formação. De fato, mais do que incluir disciplinas na grade curricular, o importante será a

forma de abordar essas disciplinas, que deveriam ser ensinadas e aprendidas com os enfoques

da Bioenergética, da Ludicidade e da Psicomotricidade Relacional. O que importa ao

educador infantil não é, em si, ter noções conceituais sobre essas áreas de conhecimento, mas,

sim, aprender vivencialmente em seu corpo aquilo que compreende essas áreas de

conhecimento.

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No que se segue, colocamos, sucintamente, as contribuições, a meu ver, necessárias

para a formação de um educador que se propõe a atuar com crianças, seja na creche ou na pré-

escola.

5.3.1 Corporeidade e consciência corporal

Um aspecto fundamental para o educador infantil é tomar posse de sua corporeidade,

a fim de que, com ela, possa ajudar o educando a tomar posse da sua própria corporeidade.

Esse é um ponto básico do currículo de formação do educador infantil.

Toda consciência é consciência de algo, de alguma coisa; é relação sujeito-objeto; é

manifestação que se dá em todos os momentos de nossa vida de maneira holárquica.

E o que é consciência corporal? Para Stanley Keleman (1996b, p.19-20), “o corpo

desperto é nossa consciência” e explica que:

Foi quando o homem se levantou que a sua relação com a terra se tornou insegura. E este estado de insegurança e instabilidade fundou a consciência humana. A consciência é parte de um processo energético que tem uma pausa, uma suspensão da ação pela fração de um segundo, durante a qual formamos o nosso próximo movimento.A consciência humana é a elevação de energia que ocorre durante essa breve pausa.

Como vimos no Capítulo 4, a Bioenergética é um sistema teórico-prático de

compreender o corpo e seus processos energéticos, como a produção de energia através da

respiração e do metabolismo e a descarga de energia no movimento. A quantidade e qualidade

de energia, que uma pessoa tem e como a usa, determinam o modo como responde às

situações da vida. Portanto, mais energia disponível em sua corporeidade, mais capacidade de

traduzi-la em movimento e expressão criativa. As teorias bioenergéticas estão fundamentadas

na existência do orgônio ou energia vital presentes em todos os processos corpo-mentais em

interação com o ambiente. A energia vital ou bioenergia flui por todo o organismo através do

sangue e de outros fluidos (linfa, fluidos intracelulares). Como afirma Lowen (1982, p.59): “É

o fluxo constante de impulsos e sentimentos dos centros vitais do corpo para a periferia. Na

verdade, o que movimenta no corpo é uma carga energética [...] uma pulsação vinda de

dentro”.

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Os recursos oferecidos pela Bioenergética podem auxiliar o educador a ter mais

consciência e posse de sua corporeidade ao propor um “mergulho” em si mesmo, onde

coloque sua atenção e intenção em sua realidade muscular, sensorial e emocional.

O trabalho com a Bioenergética se dá através de exercícios específicos e

procedimentos manipulatórios, como massagem, pressão (pressure) controlada e toques

suáveis para relaxar a musculatura contraída.

Alexander Lowen e Leslie Lowen (1985) desenvolveram esses exercícios ao longo

de mais de 20 anos de trabalhos terapêuticos feitos em sessões individuais, em aulas ou em

casa. Enfatizam que estes exercícios não substituem o processo terapêutico individual, pois

não têm como objetivo resolver problemas emocionais profundos, mas aumentar,

significativamente, a vitalidade somato-emocional. Dizem eles:

Estes exercícios podem ajudá-lo a ganhar mais autoconhecimento com tudo que este termo implica. Eles farão isto através do (1) aumento do estado vibratório do seu corpo, (2) grounding das pernas e do corpo, (3) aprofundamento da respiração, (4) agudização da autoconsciência e (5) ampliação da auto-expressão. (LOWEN; LOWEN, 1985, p.13-14).

Todos os exercícios da Bioenergética se apóiam no trabalho com grounding

(aterramento), respiração, carga e descarga da energia e vibração e motilidade corporais.

O trabalho com grounding é aquele que ajuda o indivíduo a perceber sua base

corporal, suas raízes, ou seja, as realidades básicas de sua existência, trabalhando as sensações

de contato entre os pés e o chão, a pressão dos pés contra o chão, os joelhos discretamente

flexionados, pois permitem que a força seja transmitida através do corpo e com o assoalho

pélvico relaxados para facilitar a respiração. Estar na posição vertical muda o fluxo das

sensações, a orientação espaço-temporal, a relação com a horizontalidade e a verticalidade.

O trabalho com a respiração tem como objetivo ajudar o indivíduo a perceber e

liberar as tensões que o impedem de respirar naturalmente e saber por que o padrão

respiratório se desorganizou. A boa respiração é uma ação de todo o corpo, onde todos os

músculos estão envolvidos, em algum grau, como em uma onda inspiratória e expiratória. Os

padrões desorganizados da respiração se desenvolveram ao longo do crescimento do

indivíduo como conseqüência de conflitos emocionais, que se tornaram tensões musculares

crônicas, limitando sua capacidade respiratória.

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Para Keleman (1996b), respirar é a ponte entre dois mundos, transpondo o limite

entre controle e ausência de controle, entre o que foi ensinado e o que não o foi, como um

diálogo entre o dentro e o fora.

A respiração abdominal ajuda a pessoa a enraizar, ir ao encontro de sua origem, de

suas raízes. A respiração do bebê é abdominal e expandida e vai se tornando restrita à medida

que “se educa e se desenvolve”. Keleman (1996b) vê uma relação evidente entre padrões de

respiração e individualidade.

Os exercícios que envolvem carga (contração) e descarga (expansão) da energia

trabalham no sentido de ajudar o indivíduo a perceber o quanto faculta em si mesmo o

preenchimento e/ou esvaziamento energéticos, traduzindo o estado tônico envolvido nesta

operação e seus estados afetivos, ou seja, que estados emocionais a hipertonia, a hipotonia ou

a eutonia carregam na musculatura diante de determinada situação ou estímulo interno e/ou

externo.

A motilidade é um pré-requisito de um corpo vivo. Só a morte pode cessá-lo. E, um

corpo vivo é um corpo em constante vibração, quer desperto ou dormindo. O estado vibratório

do corpo, percebido na expansão ou na contração energéticas, é sentido como sensações que

fluem pelo corpo todo ou que se contraem em algum ponto. Os exercícios relativos à

percepção da vibração dizem em que condições este corpo vibra ou pulsa. Vibrações abruptas

indicam que a carga não está fluindo livremente, encontrando obstáculos ao longo de sua

circulação, como músculos espásticos ou cronicamente tensos. A tonicidade de nossos tecidos

expressa o estado de nossa vitalidade, seu nível de vibração ou seu amortecimento.

Lúcia Helena Pena Pereira (2005), em sua Tese de Doutorado, faz um profundo e

minucioso estudo sobre a educação lúdica para a formação de educadores propondo vivências

em Bioexpressão, denominação dada pela a autora às atividades que se integram ao momento

presente, ensejando entrega e integração do grupo, como um novo caminho para a prática

pedagógica da formação do educador, não como a solução aos problemas existentes, mas

como uma atividade viável . Compreende a Bioexpressão como:

[...] uma área de conhecimento que investiga e pratica um modo de ser a partir da posição de que o corpo e psique formam uma unidade, o que implica que o corpo expressa os afetos da psique e a psique expressa a fluidez ou a rigidez do corpo. Corpo e psique são faces do ser humano na sua totalidade.

A proposta da autora é a busca da “saída da homogeneização, a interação corpo,

emoção, mente e espírito que dêem condições a cada educador de viver sua singularidade e

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conviver com mais segurança e equilíbrio, tornando-se capaz de lidar com dificuldades

inerentes à vida de todos nós”. Sua proposta para a formação de educadores através da

Bioexpressão está embasada no princípio reichiano de unidade e antítese do funcionamento

psicossomático, que é traduzido em vivências que são subsidiadas pelo grounding, pelo

centramento e pela expressão própria, que são pilares de formação integral do ser humano,

pois lhe permitem centrar-se em si mesmo, comunicar-se e sustentar-se em sua integralidade,

bem como em recursos como a visualização criativa; o ritmo, sons e música; dança.

A Bioenergética deve constituir-se numa aliada na formação do educador, no sentido

de proporcionar recursos para que este se aproprie de sua corporeidade, de modo consciente.

Nesse sentido, a formação do educador, como a formação de qualquer ser humano nas

instituições educativas, necessita de transitar do ensino-aprendizagem, exclusivamente

conceitual, para um ensino-aprendizagem teórico-vivencial (ou vivencial-teórico), onde os

estudantes experimentam e aprendem em seu corpo-mente teoria e prática. Para que o

educador tome consciência de sua corporeidade, o caminho viável é experienciá-la

conscientemente e, para isso, necessita de praticá-la. O ensino-aprendizagem, exclusivamente

conceitual, pode ser útil para as operações mentais, o que pode ajudar no entendimento e na

elaboração das compreensões sobre a corporeidade, mas é restrito para processar a

consciência corporal.

5.3.2 Ludicidade e formação do docente para a Educação Infantil

Concerto para corpo e alma Compreendi, então, Que a vida não é uma sonata que, Para realizar a sua beleza, tem de ser tocada até o fim. Dei-me conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de mini-sonatas. Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, É uma experiência que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e amor justifica a vida inteira.

Rubem Alves

Como uma das características fundamentais da criança é a sua ludicidade, não há

como trabalhar educativamente com elas sem contar com esse recurso.

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A busca da atividade lúdica é ancestral, pois na escala animal, com predomínio

progressivo da aprendizagem sobre os comportamentos de natureza instintiva, observa-se o

desenvolvimento das condutas lúdicas, onde os pequenos primatas jogam mais que os filhotes

de outros animais.

John Huizinga (1993) tentou realizar um balanço da função social do jogo em sua

obra Homo ludens. Segundo este autor, que rechaça as teorias fragmentárias que dão ao jogo

nada além de uma intenção simplista como, por exemplo, a liberação de um excesso de

vitalidade ou imitação, o jogo é expressão da cultura, característico de toda a estrutura social:

O jogo é ação livre, sentida como fictícia e situada fora da vida comum, capaz, não obstante, de absorver totalmente o jogador, ação despojada de qualquer interesse material e de qualquer utilidade, que se realiza num tempo e num espaço estritamente definidos, desenvolve-se com ordem, segundo regras estabelecidas e suscita, na vida, relações de grupo que , saborosamente, se rodeiam de mistério, ou que acentuam, mediante o disfarce o quão estranhos são ao mundo habitual. (HUIZINGA, 1993, p.53).

As comunidades arcaicas jogavam como se fossem crianças, porém, na continuidade

da evolução cultural, o jogo adquiriu, pouco a pouco, uma expressão verbal e poética, que é o

drama para ampliar-se até as dimensões do sagrado. Deste modo, desenvolveu-se num espaço

e tempo fechados e as relações entre o jogo e a festa religiosa estão claramente interligadas ao

longo da história das religiões.

Após estudar a atividade humana lúdica, Huizinga mostrou que o jogo foi o

fermento essencial no desenvolvimento das diversas formas da cultura antiga, afirmando que

não nasce no jogo, mas se desenvolve no jogo e como jogo.

Nos mitos e nos jogos, Lebovici (1985), psicanalista, citando R. Callois, encontram

quatro categorias ou facetas de jogos, cuja classificação que pode, também, ser aplicada à

criança: a) disputa ou agon − fase guerreira da civilização grega que sucedeu aos códigos

heróicos; disputa ritualizada; b) o acaso ou alea − busca do aleatório e das possibilidades; c)

simulação ou mimicring - jogo de papéis e d) impetuosidade ou ilinx − duelo épico, verbal,

torneio de cortesia ou zombaria. Em todos essas modalidades de jogos pode-se alternar ou

associar dois componentes: a liberdade ou padeia, que corresponde à expressão do jogo

espontâneo infantil e as regras ou ludus.

As crianças brincam desde tempos imemoriais, mas somente a partir da Psicanálise

este fato assume status de fenômeno a ser estudado, pois os adultos acreditavam que o

brincar infantil era desprovido de significado e nexo. Vale, aqui, neste estudo, ter presente a

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contribuição daqueles pesquisadores que nos ajudaram e nos ajudam a compreender a função

maior do jogo e da ludicidade para o desenvolvimento infantil e para a prática educativa e em

particular para a prática da Educação Infantil.

Foi, a partir da observação de uma criança de 18 meses, que brincava com um

carretel de linha, que Sigmund Freud descobriu os significados psicológicos deste fenômeno

lúdico. Esta criança jogava um carretel, que desaparecia do seu campo de visão, o que era

expresso por seu semblante triste. Ao puxar o fio de linha, o carretel reaparecia e o semblante

da criança ficava alegre. O desaparecer e o reaparecer de carretel foram repetidos inúmeras

vezes pela criança. Freud compreendeu que o menino, ao jogar o carretel, tentava dominar

suas angústias frente ao aparecimento e desaparecimento da mãe, e que ele não brincava

apenas como um exercício motor, mas que jogava o carretel, repetindo situações dolorosas.

As descobertas de Freud sobre o inconsciente, a sexualidade infantil, o complexo de

Édipo alteraram drasticamente a visão da infância que se tinha na época. As descobertas da

Psicanálise criaram um novo paradigma sobre a criança e a infância, introduzindo-a em seus

estudos através do trabalho precursor de Melanie Klein. Discípula de Freud e muito

interessada em observar crianças pequenas, foi a primeira psicanalista a desenvolver um

método psicanalítico próprio para crianças pequenas – a play tecnique ou técnica lúdica –

onde pôde observar que as crianças, ao brincar, manifestavam medos, desejos, fantasias,

emoções, afetos intenções, descobrindo o sentido psicanalítico do ato lúdico. Correspondeu o

brincar da criança à associação livre do adulto em processo de análise. Klein foi tão criativa e

inovadora que, em 1935, começou a surgir a escola psicanalítica kleiniana, em Londres, ou a

escola londrina de psicanálise.

Como seguidor da escola kleiniana, Donald Winnicott deu prosseguimento aos

estudos sobre a influência das relações parentais, principalmente a materna, sobre o

desenvolvimento infantil. Trouxe contribuições fundamentais para a ampliação da

compreensão do lúdico no desenvolvimento da criança, tais como os conceitos de fenômenos

transicionais e objetos transicionais, espaço potencial entre o bebê e a mãe e, principalmente,

uma abordagem ampla do significado da ludicidade. Segundo ele, fenômenos transicionais

são vivências com objetos, ao mesmo tempo internas e externas, que possibilitam à criança

substituir temporariamente a figura materna da qual precisa se individualizar. Referem-se à

necessidade da individuação, processo pelo qual o bebê ultrapassa o viver simbiótico com sua

mãe enquanto que objetos transicionais são os objetos manipulados pela criança que auxiliam

nessa passagem. À medida que o bebê cresce, substitui os objetos transicionais por fenômenos

mais abstratos como canções de ninar, ritmos corporais, sons emitidos por ele mesmo. Estas

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vivências abrem as portas para o simbólico e ajudam a criança a diferenciar fato e fantasia,

realidade interna e realidade externa.

Winnicott (1975, p.70-71) resumiu as qualidades especiais na relação do bebê com o

objeto eleito:

1) O bebê assume direitos sobre o objeto; 2) o objeto é afetuosamente acariciado bem como excitadamente amado e mutilado; 3) ele nunca deve mudar, a menos que seja mudado pelo bebê; 4) deve sobreviver ao amar instintual, ao odiar também e à agressividade pura, se esta for uma característica; 5) contudo, deve parecer ao bebê que lhe dá calor, ou se move ou que possui textura ou que faz algo que pareça mostrar que tem vitalidade ou realidade próprias; 6) ele é oriundo do exterior, segundo nosso ponto de vista, mas não o é , segundo o ponto de vista do bebê. Tão pouco provém de dentro; não é uma alucinação e 7) seu destino é permitir que seja gradativamente descatexizado de maneira que com o curso dos anos se torne relegado ao limbo.

O autor esclarece ainda que, vagarosamente, o objeto vai perdendo significado para

o bebê porque os fenômenos transicionais passam a ser difusos, espalhando-se por todo o

território intermediário entre a realidade psíquica interna e o mundo externo.

Ele trabalhou em cima do binômio simbolismo x realidade, pois explica que o objeto

eleito pelo bebê é simbólico de algum objeto parcial (seio, por exemplo), mas que é real, e sua

realidade é tão importante quanto seu simbolismo. Denominou tudo isso de fenômenos

transicionais e objetos transicionais:

Pode surgir alguma coisa que para o bebê se torne vitalmente importante para o seu uso no momento de ir dormir, constituindo uma defesa contra a ansiedade, especialmente a ansiedade do tipo depressiva. Talvez um objeto macio ou outro tipo de objeto tenha sido encontrado e usado pelo bebê, tornando-se então aquilo que estou chamando de objeto transicional.

Esse objeto continua sendo importante, os pais e os educadores podem perceber sua

significação para o bebê. Sabem que esse objeto deverá acompanhá-lo e permitem que fique

sujo ou mal-cheiroso, pois, se for lavado, causará ruptura de continuidade na experiência do

bebê, o que pode destruir o significado e o valor do objeto para ele. Os padrões estabelecidos,

neste período, podem persistir na infância propriamente, onde o objeto eleito continua a ser

absolutamente necessário na hora de dormir, em momentos de solidão ou quando o humor

depressivo ameace se manifestar.

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Conclui-se, então, que este objeto representa a transição do bebê de um estado em

que está fusionado com a mãe, para um estado em que está em relação com ela como algo

externo e separado.

Winnicott (1975) compreendia que o lúdico não era território exclusivo da

Psicanálise (conteúdos latentes e inconscientes), mas que a natureza humana é lúdica e

saudável, sendo um ato que é uma experiência de vida, uma experiência livre e criativa do ser

humano, seja adulto ou criança.

Paralelo ao borbulhar das idéias da Psicanálise, na primeira metade do século XX,

nasciam na Suíça os estudos sobre desenvolvimento humano, do biólogo Jean Piaget, estudos

estes que mais tarde iriam configurar a Epistemologia Genética.

Piaget, ao trabalhar os estágios do desenvolvimento infantil em direção à construção

do símbolo e do real, descreveu, minuciosamente, as etapas do brincar na criança. Esclarece

que três grandes estruturas caracterizam os jogos infantis: o exercício, o símbolo e a regra. O

jogo de exercício é o primeiro a aparecer, caracterizando a fase pré-verbal, onde atividade

lúdica supera amplamente os esquemas reflexos, prolongando as ações, daí resultando a noção

mais vasta de “exercício funcional”. A segunda categoria de jogos infantis é chamada de

“jogo simbólico”. O símbolo implica a representação de um objeto ausente, visto ser a

comparação entre um elemento dado e um elemento imaginado, onde a realização de desejos,

a resolução de conflitos, etc., somam-se ao simples prazer de se sujeitar a realidade ao

exercício sensório-motor. Por exemplo, a criança que desloca uma caixa imaginando ser um

automóvel representa, simbolicamente, este objeto satisfazendo-se com o faz-de-conta, onde o

vínculo entre o significado e o significante permanece inteiramente subjetivo. A invenção

supre aquilo que no adulto será o pensamento interior em suas formas residuais egocêntricas

(divagações), assim como o monólogo dos sujeitos dessa idade equivale ao que, mais tarde,

será a linguagem interior.

Aos jogos simbólicos sobrepõe-se, no curso do desenvolvimento, uma terceira

categoria, que é a dos jogos com regras. A regra supõe, necessariamente a existência de

relações sociais ou interindividuais, uma vez que a regra é uma regularidade imposta pelo

grupo e, de tal maneira que a sua violação representa uma falta.

Ao revisitarmos os conceitos de brincar, lúdico, ludicidade, relação lúdica e

ludopedagogia, tão exaustivamente discutidos na atualidade, uma questão se impõe diante da

formação dos educadores infantis e de um fato já aparentemente constatado, provado e

aprovado. O fato: Toda criança tem o direito de brincar está claramente, apoiado por leis e

estatutos que regem a política educacional brasileira. O que parece estar em discussão é se, de

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fato, as crianças têm o direito de fazer isso em contexto escolar. Desta pergunta que se impõe,

derivam outras questões: Os educadores estão, de fato, preparados para brincar? Se não estão,

de que formações precisarão para se tornarem aptos? Brincar envolve intensos movimentos,

deslocamentos, interações e não podemos expressar esse brincar sem que haja corpos que

brinquem, portanto, corporeidades em interações. Como os educadores infantis se relacionam

com suas corporeidades?

O que a ludicidade oferece à formação do educador infantil, além de um extenso

entendimento cognitivo e conceitual sobre a importância do brincar, é promover que este

educador vivencie o brincar na possível inteireza de sua corporeidade.

O conceito de ludicidade e de relação lúdica de que se vale este estudo é aquele que

promove a vivência da inteireza e da autonomia, conceito proposto por Cipriano Luckesi

(2000a, p.21), cuja definição baseia-se na experiência vivenciada pelo sujeito:

O que a ludicidade traz de novo é o fato de que o ser humano, quando age ludicamente, vivencia uma experiência plena. Com isso, queremos dizer que, na vivência de uma atividade lúdica, cada um de nós estamos plenos, inteiros nesse momento [...].

Para que possamos transpor este conceito para a sala de aula da Educação Infantil,

precisaremos trabalhá-lo com os educadores infantis para que descubram e/ou redescubram

em suas corporeidades uma vivência lúdica com inteireza, o que significa priorizar a

excelência do brincar como crença fundamental, considerando-o como um processo em si

mesmo que abrange uma variedade de comportamentos, motivações, oportunidades, práticas,

habilidades e entendimentos.

Tina Bruce (2006) – educadora inglesa – propõe em um artigo intitulado O brincar,

o universo e tudo! uma visão singular do brincar de fluxo livre e sua importância na educação

infantil. Chama a atenção para o fato de que as crianças das sociedades industrializadas talvez

não sejam tão “privilegiadas”, como pode parecer, por estarem submetidas a uma educação

altamente formalizada, onde há tanta coisa que as crianças precisam saber e saber de uma

forma extremante pré-estruturada, forma essa baseada na crença de que a escolarização formal

é sinal de uma sociedade avançada. Reflete sobre o fato de que as crianças entre 2 e 7 anos

estão sendo submetidas a uma escolarização compulsória em vez de realizarem trabalhos

compulsórios, pois a escola tenta transformar as crianças, desde tenra idade, em força de

trabalho, treinando, desde cedo, as habilidades de que a sociedade precisa, classificando o

currículo que privilegia o brincar de fluxo livre e a aprendizagem no contexto como uma

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visão romântica da educação. Argumenta, porém, que só o brincar de fluxo livre promove,

para a criança pequena, a vivência integrativa de que necessita, criando uma sintonia entre seu

temperamento, (necessidades, desejos, sentimentos) e o dos demais seres, sejam adultos ou

crianças, com quem interage. Neste sentido, faz um alerta:

As sociedades que negligenciam suas infra-estruturas são sociedades que provavelmente desmoronarão. O brincar de fluxo livre é parte da infra-estrutura de qualquer civilização. Atalhos que atravessam a infância e corroem o brincar de fluxo livre não levam a um bom futuro. As sociedades que tomam atalhos e não possuem uma boa visão do futuro têm vida curta. As crianças, em todas as partes do mundo, precisam de oportunidades para o brincar de fluxo livre (BRUCE, 2006, p.227)

É pelo brincar de fluxo livre que a criança da Educação Infantil constrói sua

corporeidade em interação com a corporeidade do educador e a corporeidade das demais

crianças, ainda que muitos educadores e psicólogos infantis permanecem divididos e

indecisos a respeito da real importância pedagógica do brincar espontâneo ou de fluxo livre na

sala de aula.

A inclusão do brincar na escola é relativamente recente, datando do final do século

XIX e início do século XX, e tendo como representantes mais célebres os educadores Henri

Pestalozzi (Suíça), Friedrich Froebel (Alemanha), Maria Montessori (Itália). Logo em

seguida, a Psicanálise, a Biologia Evolutiva e a Epistemologia Genética, ao sugerirem a

importância do papel do brincar na expressão das emoções e na elaboração de conflitos

pessoais bem como no desenvolvimento da inteligência e como necessidade pertinente a todas

as espécies mamíferas, apóiam o princípio de que as crianças aprendem e se desenvolvem por

meio do brincar.

O brincar espontâneo passou a ser visto, também, como um comportamento

essencial do desenvolvimento social, intelectual, criativo e pessoal, constituindo-se no etos do

brincar, essa forma particularmente forte de compreender o brincar livre. Éthos, em grego,

significa a toca do animal ou a casa humana; conjunto de princípios que regem,

transculturalmente, o comportamento humano para que seja realmente humano no sentido de

ser consciente livre e responsável; o éthos constrói, pessoal e socialmente, o habitat humano,

segundo nos explica Leonardo Boff (1998, p.195), ao discorrer sobre o cuidado como a ética

do humano.

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O que distingue o brincar de fluxo livre das outras possíveis formas de brincar? Tina

Bruce (2006), em seu artigo O brincar, o universo e tudo!, organizou aspectos comuns ao

brincar infantil e explorou a contribuição do brincar de fluxo livre ao processo de aprendizagem.

Uma vez que existe uma grande confusão sobre o que é o brincar, “o brincar de

fluxo livre” foi adotado como termo por expressar uma visão do brincar por 12 características

extraídas da literatura:

Característica 1: É um processo ativo sem um produto. Característica 2 : È intrinsecamente motivado. Característica 3: Não exerce nenhuma pressão externa no sentido de conformar-se a regras, pressões, objetivos, tarefas ou direção definida. Característica 4 : Tem a ver com mundos possíveis, alternativos, que envolvem “ suposições” e “como se” (Atkin, 1985-8), que levam a pessoa aos seus níveis mais elevados de funcionamento. Isso envolve ser imaginativo, criativo, original e inovador. Característica 5: Tem a ver com mergulhar em idéias, sentimentos e relacionamentos. Envolve refletir sobre o que sabemos e tomar consciência disso – ou seja, metacognição. Característica 6: Utiliza ativamente experiências prévias de primeira mão, incluindo esforço, manipulação, exploração, descoberta e prática. Característica 7: É sustentado e, quando em total fluxo, ajuda-nos a funcionar antecipando o que somos capazes de fazer na vida real. Característica 8: Durante o brincar de fluxo livre, nós usamos a experiência, maestria e a competência técnica que desenvolvemos anteriormente e podemos controlar. Característica 9: Pode ser iniciado por uma criança ou um adulto, mas, se for iniciado pelo adulto, este deve prestar especial atenção aos itens 3, 5 e 11. Característica 10: Pode ser solitário. Característica 11: Pode ser em parcerias ou grupos, adultos e / ou crianças que sejam sensíveis uns aos outros. Característica 12: É um mecanismo integrador, que une tudo o que aprendemos, sabemos, sentimos e entendemos.

O contexto verdadeiramente lúdico permite a quem brinca a liberdade de

experimentar, seja com medo ou sem medo, a possibilidade de errar sem que haja

conseqüências demasiadamente dispendiosas ou embaraçosas.

A educação tem proposto que se compreenda, se pense e se veja a “ criança inteira”,

tentando uma abordagem curricular integrada.

Pensar em ludicidade na Educação Infantil é ter a coragem de dar à criança e não ao

currículo prescrito, a centralidade no processo educacional, o que significa enfatizar a crença

no valor do brincar como instrumento poderoso de constituição e organização da corporeidade

da criança, ou seja, da constituição e organização de seu esquema e imagem corporal. A

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criança brinca e este brincar se transforma em um estado interno de alegria, bem-estar,

plenitude que o brincante sente e este estado, por sua vez, desperta a criatividade e a

autonomia. É bom esclarecer que compreendemos o currículo como uma ponte entre o

teórico (orientação filosófica, política, metodológica) e a prática da sala de aula,

configurando-se como instrumento de apoio à ação escolar. Seu lugar e valor estão garantidos

como organizador e norteador que delimitam territórios, mas jamais como senhor absoluto do

processo educacional.

Incorporar a ludicidade na prática pedagógica da Educação Infantil, com tudo que

este termo comporta, exige que o adulto, no caso específico o educador infantil, se disponha a

trabalhar em si mesmo o desconforto que sente quando se vê convidado a adentrar a arena do

brincar infantil, pois a percepção do brincar está estreitamente associada às crenças e valores

sociais. A necessidade de todas as crianças terem oportunidade de brincar foi oficialmente

reconhecida, mas seu valor como instrumento do desenvolvimento corporal, emocional e

pedagógico não tem sido necessariamente aceito por todos os grupos culturais. É uma

dicotomia entre o valor, a crença e a concretização desse valor no cotidiano familiar,

pedagógico e escolar, uma vez que fazer da ludicidade uma prática exige muitas

disponibilidades concretas e disposições internas do educador infantil.

Curtis (2006, p.42), ao citar Schwartzmann e Fietelson, indica quatro fatores de

importância para o desenvolvimento do brincar imaginativo na primeira infância. Ele

argumenta que as crianças precisam ter:

1. Materiais adequados para brincar de forma imaginativa; 2. Um período longo de tempo; 3. Espaço; 4. Uma “atitude” favorável, isto é, incentivo e modelagem, manifestada

pelos adultos do ambiente.

A conciliação dos fatores acima citados com o currículo oficial e a disponibilidade

interna e externa do educador é um desafio que vai muito além do só brincar com as crianças.

O brincar na Educação Infantil se apresenta de duas formas, que não se excluem

entre si, a saber: o brincar psicomotor de atitudes exclusivamente física (correr, subir em

objetos ou árvores, escorregar, balançar-se e outras formas de brincar que envolvem o prazer

sensório-motor e o exercício da coordenação motora ampla) e o brincar psicomotor de

atividade simbólica. Brincar simbólico abrange o brincar de faz- de- conta, a fantasia e o jogo

sociodramático da criança de 2 a 6 anos.

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A presença do jogo ativo e espontâneo na vida de criança é sinal de saúde emocional

e sua ausência um sintoma de doença física e/ ou psíquica, pois podemos considerá-lo o meio

mais poderoso de organização da personalidade da criança e como um modo estruturante em

relação às organizações mais tardias.

E por que o jogo de exercícios e o jogo simbólico são tão importantes para o

desenvolvimento da criança?

O jogo de exercícios permite que, pela ação, o corpo interaja com a realidade do

mundo material e psíquico e, à medida que atua, possibilita que a maturação neurológica e a

organização dos movimentos e gestos aconteçam, permitindo que o tônus e a postura se

firmem. Deste domínio, movimentos mais rápidos, precisos e fortes se definem e se

organizam em praxias.

O grande instrumento utilizado pela criança (e porque não dizer, pelo bebê nos seus

primórdios constitucionais) para chegar a sua individualização é o jogo, e, como o jogo é

simbólico, pois traz em si “a gestação do que está se gestando” na constituição deste ser em

formação, é preciso que compreendamos o simbolismo do jogo e seu processo de

comunicação com o outro e com o corpo do outro, e utilizemos essa compreensão na prática

educativa cotidiana da criança.

O universo simbólico é um campo de domínio propriamente do ser humano. Em

tudo, e para tudo, usamos esse recurso. Ele está presente em nossos atos, em nossas relações,

em nosso viver no cotidiano.

A história do homem está inteiramente ligada a sua capacidade de agir sobre o meio e

de atribuir-lhe significado. Ação e significação se constroem juntas.

Para Piaget, o processo de adaptação (assimilação-acomodação) se dá através da

interação homem-meio. Sua ação sobre o meio confere-lhe significado fazendo com que assimile

um mundo significativo e não um mundo neutro.

Como diz Vera Barros de Oliveira (1992, p.13), psicóloga, ao citar Ernest Cassirer,

p.13), a capacidade de simbolizar foi uma árdua conquista do homem, que aprendeu lentamente a

fazer distinção entre o símbolo, que representa algo e que tem valor funcional, ou seja, “funciona

como se fosse a coisa”, e o sinal, que contendo parte ou substância concreta do ser, faz parte do

mundo físico. O símbolo é, portanto, uma função interativa por excelência, existindo sempre em

função de quem atribui significado e do que é representado. O homem tornou-se, então, capaz de

representar o ausente, o não percebido atualmente e a fazê-lo de diversas maneiras. Aprendeu a

esculpir ou entalhar em madeira ou metal, como as esfinges paleolíticas de animais, ou através

de imagens acústicas, representando as coisas por sons coletivamente significativos, as palavras,

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a linguagem verbal, quer através de representações plásticas, acústicas, dramáticas ou de

qualquer outra modalidade. A origem do simbolismo está intimamente ligada à magia, quer se

trate de “magia verbal”, onde as palavras têm poderes mágicos sobre o nomeado, o significado,

ou de “magia manipulante”, na qual a figura de barro pode ser o inimigo que morre, quando a

figura é atingida ou outro personagem qualquer, que interesse.

Simbolizar exigiu um longo aprendizado do ato criador do homem ao construir sua

história nesse planeta em direção ao meio e, principalmente, em direção às profundezas

desconhecidas de si mesmo.

Criação, imitação e representação se unem e se complementam na formação do

símbolo, trazendo a associação – dissociação progressivas de três entidades: o objeto

representativo, sua representação e o sujeito que representa. Poderíamos dizer que sujeito,

representação simbólica e objeto se constroem mutuamente à medida que se separam e se

relacionam entre si. Nos primórdios da representação, homem, símbolo e objeto se confundem,

formando um todo não discriminado. A representação simbólica ao começar a emergir se

apresenta por um longo tempo ainda presa ao sinal, ao objeto que ela representa e, ao mesmo

tempo, é uma projeção de quem a cria. Não há limites claros entre o criador, a representação e o

objeto. Somente aos poucos é que os três elementos foram se distinguindo entre si. Essa

objetivação crescente acompanha e é acompanhada por uma individualização progressiva do

criador, e, ao mesmo tempo por uma simbolização cada vez maior.

Dentro desse processo de formação do símbolo, alicerçado na construção do real

através da ação do sujeito sobre o objeto, o rito e o mito ocupa papéis essenciais, tanto para o

homem como para a humanidade. Quando o símbolo perde esse caráter funcional de interação

homem-meio, ele se torna um sinal, um sintoma de alienação, um alerta de que o processo de

adaptação está se desequilibrando, se desvirtuando pela desvinculação significativa da relação

sujeito–objeto.

A significação ontogenética se inscreve sobre a filogenética, o significado individual

sobre o da espécie. O percurso feito historicamente pelo homem na busca de constituir-se no

simbólico é repetido por cada bebê que nasce nesse planeta na busca de constituir-se sujeito,

indivíduo que se diferenciou de suas matrizes originais (mãe-pai-família de origem). Muitos

obterão sucesso; alguns permanecerão no emaranhado fusional, impossibilitados de acessar o

simbólico, portanto, a linguagem e, numa certa medida, as noções de tempo e espaço.

Como afirma Esteban Lévin (1995, p.53), ao citar Roland Barthes: “Não é o homem

que constitui o simbólico, é o simbólico que constitui o homem. Quando o homem entra no

mundo, entra no simbólico que já está ali. E não pode ser homem se não entrar no simbólico”.

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Os estudos contemporâneos sobre a ludicidade têm mostrado que a antiga crença de que

a criança que brinca está fora da realidade, em um mundo à parte, algo “sem seriedade”, está

mudando. Sabemos que, ao brincar, a criança se vale de um tipo de organização e funcionamento

próprios, provenientes de seus repertórios socioculturais, acessando o universo simbólico do qual

faz parte e traduzindo-o em ações sobre objetos e pessoas, re-significando-o, onde operações

conceituais se fazem e se refazem neste ir e vir do símbolo ao ato, e vice-versa, em um

compartilhar de significados. É a história da constituição do simbólico no ser humano, como foi

citado acima, que se repete em cada ato lúdico da criança quando brinca e recria “seu mundo” ao

agir sobre os objetos e lhe conferir significação.

No estudo feito sobre o brincar de “faz-de-conta”, no Laboratório de Integração Social

Humana da Universidade Federal de Pernambuco, com crianças de 2 a 3 anos de idade, Maria

Tereza Coelho e Maria Izabel Pedrosa (2000, p.55) enfocaram a importância deste brincar para o

desenvolvimento psicológico infantil, e como o compartilhar de significados ocorre na

brincadeira de “ faz- de- conta”:

Compartilhar algo é tê-lo em comum com o outro. Esse algo pode ser: “um momento de proximidade, o interesse ou a competência em uma atividade, [... ] um objeto, um conhecimento, um código (como a linguagem ou como um ritual). O compartilhamento é criado, construído na interação social, portanto não se refere ao comportamento de um indivíduo, mas se refere a uma relação entre indivíduos a qual, por sua vez, possibilita que eles possuam em comum algo que foi construído socialmente.

As autoras acima mencionadas descreveram uma caracterização muito explicativa para

este estudo sobre o brincar de “faz -de- conta”; de onde podemos concluir, juntamente com as

referidas autoras, que neste brincar as crianças criam regras que têm um nexo explicativo ao

enredo do faz-de-conta, partilham significados, constroem a função psicológica de representar e

fazem ajustes de idéias e de comportamentos em prol do brincar junto.

Para que o educador infantil atue brincando, é necessário que também saiba brincar.

Daí sua formação dever ser vivencial.

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5.3.3 Psicomotricidade Relacional e Educação Infantil

Por último, a abordagem da Psicomotricidade Relacional, que oferece recursos de

compreensão do desenvolvimento da criança, dos bloqueios do seu desenvolvimento, assim

como recursos de restauração do seu fluxo vital.

A proposta da Psicomotricidade Relacional, tanto para a educação infantil quanto

para o trabalho clínico, se faz através do jogo simbólico e fantasmático, dando ênfase à

relação tônica entre o adulto e as crianças, pois seu objetivo é pôr em evidência as estratégias

relacionais que o sujeito emprega, para, então, poder ajudá-lo a traduzir esses

comportamentos corporais.

Pelo jogo livre, de “fluxo livre”, no dizer de Tina Bruce, aparentemente

desestruturado, improvisado, brotam as cenas primárias “grávidas” do simbólico do sujeito, a

pedir uma elaboração lúdica e corporal, onde se cria uma interação entre o corpo da criança e

o corpo do adulto, através dos objetos usados como mediadores da comunicação.

Todos os recursos oferecidos pela Psicomotricidade Relacional envolvem o corpo

em movimento. Através da ação corporal sobre o meio, os objetos e os seres humanos, a

interação que daí advém promove que o educador tome posse e consciência de sua

corporeidade.

Os processos iniciais e fundamentais da simbolização, segundo André Lapierre e

Bernard Aucouturier (1978, p.118), podem ser classificados em três categorias essenciais: a

substituição simbólica do corpo do outro, a mediação por prolongamento ou projeção do

corpo da criança ou do adulto e os mediadores socioculturais. Os autores compreendem que a

substituição simbólica do corpo do outro se faz através do objeto substituto, o que é chamado

por Winnicott (1975, p.70) de objeto transicional. Como esse objeto tem características que

lembram o corpo humano, a criança o busca para um contato de prazer funcional em seus

períodos regressivos, recriando o acordo tônico original, ou seja, aquele vivenciado nos

primeiros meses de vida no diálogo tônico-emocional com sua mãe.

O objeto dentro do jogo da Psicomotricidade Relacional é compreendido não

somente como substituto de um corpo a ser amado, espaço de uma relação de segurança, mas

pode, também, substituir simbolicamente, um corpo a ser destruído, o que pode ser

inconscientemente um movimento de desvio da agressividade para e sobre os objetos.

As possibilidades simbólicas dos materiais utilizados no jogo espontâneo são

múltiplas, embora haja analogias que se fazem presentes de forma universal. Os materiais

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usados com maior freqüência nas sessões de Psicomotricidade Relacional são as bolas, as

cordas, os arcos (bambolês), tecidos coloridos, tubos de plástico ou papelão (espaguetis), as

caixas.

As bolas, por serem leves, coloridas, de plástico, permitem entrar em contato

corporal a distância, contê-las no próprio corpo, evocar a maternidade porque podem

representar parcialmente o corpo da mãe, abrir espaço para a agressividade, socando-as,

chutando-as e provocar a cumplicidade grupal por união e coesão entre os participantes e/ou

confrontar o poder do psicomotricista relacional. As cordas por serem maleáveis e de

diferentes diâmetros servem à construção de vínculos à distância, positivos e negativos, de

dominar, amarrar, surrar, possuir, prender, imobilizar, comunicar, conduzir, ser conduzido,

unir. Os arcos (bambolês) representam um espaço fechado simbólico de contenção onde os

conceitos de dentro e fora podem ser vivenciados, servindo para segurar, prender, proteger,

conter, dar limites a si e ao outro. Os tecidos coloridos servem para proteção, regressão

aparecimento e desaparecimento, prazer sensorial, etc. Os tubos de plástico ou papelão

(espaguetis) servem à expressão da agressividade, do poder, do limite, da lei, da função

paterna, fazendo referência ao poder do masculino. As caixas de papelão, por serem ocas,

rasas ou profundas, pequenas ou grandes, estão ligadas às sensações de segurança, proteção,

aconchego, compartilhamento, representando a figura materna e a maternagem.

Lapierre e Aucouturier (1978) consideram o solo como objeto substitutivo, pois com

ele se estabelecem permanentes contatos, que podem ter tonalidade afetiva, emocional,

sensual e erógena. A vivência com o solo é ambivalente, na medida em que promove o desejo

de permanecer no chão, local de segurança e estabilidade e, ao mesmo tempo, desejo de se

libertar para conquistar independência e liberdade. Uma ambivalência entre “ficar” e “partir”.

Outro ponto suscitado pela vivência com o solo é a do simbolismo que a posição

deitada nos traz: posição de morte, fantasmas da morte, limite entre a vida e a morte. Chão

está ligado ao solo e solo ao que está abaixo; e, abaixo, está a semente que é vida e traz o

renascimento.

Quando, durante o jogo, a criança se vale de um objeto substituto, ela está

substituindo o corpo do outro pelo objeto eleito; o corpo do outro é trocado pelo objeto. Já na

mediação, ela está sempre presente, pedindo que algum nível de relação aconteça, porém a

distância. Esta distância é, então, preenchida simbolicamente por esses mediadores: bolas,

panos, cordas, bambolês, bastões, caixas.

Há vários tipos de mediadores em função do afastamento, da continuidade ou

ruptura do contato e da natureza material ou imaterial dos objetos usados. Interposição ocorre

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quando o objeto é colocado entre dois corpos, mantendo um contato permanente, preenchendo

o espaço e havendo comunicação tônica. No objeto prolongamento o contato é com um único

corpo e na projeção a perda de contato com o corpo é total, mas o objeto lançado permanece

simbolicamente como prolongamento do eu no espaço, como o bebê que lança

sistematicamente os objetos e os segue com os olhos a sua trajetória.

A voz, o olhar e o gesto também são mediadores da comunicação, produzidas pelo

corpo e destinados a penetrar no corpo do outro, suscitando respostas. Incluem-se, também, o

som instrumental, o grafismo, as produções plásticas como mediadores de produção indireta

do corpo, pois se valem de algum material ou objeto.

Os mediadores socioculturais se referem à possibilidade oferecida pela vivência

grupal de reproduzir fenômenos sociais que parecem desconectados do contexto cultural atual

como, por exemplo, cenas ritualísticas de morte, entronização do poder, processos regressivos

fusionais, dentre outros.

No jogo espontâneo, onde o simbólico da criança vai ganhando expressão, conforme

citado acima, aparecem, também, os fantasmas que emergem do mundo imaginário, como

elementos que irrompem sem disfarces, pois fantasmas são representações das pulsões que, de

alguma forma, buscam satisfação dos desejos reprimidos no inconsciente. Os fantasmas estão

presentes nas brincadeiras infantis, devaneios, contos de fada e, em todas as circunstâncias

onde se busca um refúgio compensatório da realidade através da fantasia.

Em Apuntes para uma psicologia baseada em la relación, Tizón Garcia (1988, p.47)

esquematiza e resume as fantasias inconscientes, quando se fazem presentes no jogo

simbólico e/ou fantasmático:

São conteúdos primários dos processos mentais inconscientes. Referem-se fundamentalmente à corporalidade e representam tendências pulsionais para os objetos. São, pois, os representantes mentais das pulsões de apego, de agressão, de amor e de ódio. Elaboram-se mediante a experiência com a realidade externa, mas não dependem e nem refletem diretamente essa realidade. Não tem forçosamente uma expressão em palavras. Os elementos mais primitivos das fantasias são meras percepções e sensações. Depois se acrescentam a elas representações mentais mais elaboradas. São nossas programações fundamentais.

A contribuição dada por Suzana Cabral (2000), psicanalista e psicomotricista

relacional, sobre como classificar os jogos dentro da Psicomotricidade Relacional, oferece-

nos uma contribuição didática muito elucidativa porque ela os classifica a partir de sua

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vivência clínica e educacional, bem como seu trabalho com a formação de educadores. A

autora diferencia três tipos de jogos: atos ou jogos expressivos, jogos simbólicos e jogos

fantasmáticos. Os atos ou jogos expressivos são jogos ou exercícios funcionais que revelam o

prazer corporal, servem para descarga de tensões e afirmação pessoal e contem regras e

acordos grupais; os jogos simbólicos são jogos representativos, de papéis em situações

lúdicas, faz-de-conta e dramatização buscando soluções para conflitos e os jogos

fantasmáticos são momentos em que os fantasmas surgem, livres da censura, em cenas

carregadas emocionalmente que se extravasam, onde a cena reprimida é vivida com angústia

ou prazer, numa descarga pulsional .

Esta classificação mostra o limite tênue entre até onde vai o jogo simbólico e onde

começa o fantasmático, os quais, por vezes, dentro do espaço educacional se manifestam

bastante associados.

Suzana Cabral marca a diferença quando afirma que o fantasma se encontra latente

no jogo simbólico face ao conteúdo manifestado. Já no jogo fantasmático, o conteúdo

manifesto se apresenta de modo mais direto e mais próximo do conteúdo latente. As crianças

não brincam mais de “como se” ; nesse momento “agora é”.

O jogo espontâneo, de que nos fala Lapierre e Lapierre (1978) com características

aparentemente anárquicas, dispersivas, explosivas, regressivas, tem um poder de evocar a

memória afetiva e emocional marcada por experiências corporais de prazer e desprazer,

colocando “em jogo” (no duplo sentido da expressão) esses mecanismos arcaicos articulados

no passado emocional. Os fantasmas são projetados nas relações que se estabelecem nos

encontros que ocorrem ao acaso. Os sentimentos ligados às figuras parentais transferem-se

corporalmente sobre o focalizador, o educador ou o psicomotricista e sobre os outros

participantes. Esse encadear de situações provoca respostas corporais.

Subjacentes a tudo isso, estão os conflitos básicos e suas estratégias que emergem

espontaneamente para poderem ser elaborados e compreendidos, sendo decodificados pelo

psicomotricista que, a partir daí, intervém corporalmente. Por isso, Lapierre (1997, p.17)

afirma com muita propriedade:

Mas se o adulto quer misturar seu corpo e sua pessoa a estes jogos, é melhor que ele saiba de que está brincando. Ele não brinca com balões mas com fantasmas, do seu inconsciente e das crianças e ele deve ser capaz de perceber o conteúdo simbólico das relações nas quais se engaja e ser capaz de controlá-las sem misturar aí suas próprias projeções inconscientes.

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[...] Os adultos que viveram no curso de sua formação pessoal este tipo de interação sabem muito bem quais fantasmas profundos, emocionais e, às vezes, ansiogênicos, são mobilizados aí.

É neste ponto de encontro, entre o conteúdo formal e o latente, que se dá pela

tonicidade da linguagem corporal que o psicomotricista relacional monta a sua estratégia de

intervenção. Para que tal estratégia de intervenção se monte é necessário que se considere dois

fatores. O primeiro fator diz respeito à intervenção que se dá nos seguintes núcleos de

incidência: afetividade, expressão e limite e frustração. O núcleo da afetividade diz respeito a

uma intervenção que intencione uma circulação da carga emocional e uma conexão com os

sentimentos. O núcleo da expressão intenciona ampliar formas de expressão, tornando-as

mais cômodas para o sujeito e o núcleo limite e frustração objetiva que a frustração seja usada

pelo psicomotricista como agente mantenedor do desejo. O segundo considera alguns marcos,

tais como: observação – deixar a criança jogar e observar como se apresenta; participação

corporal direta, com prazer sensório-motor onde o tônus e a postura visam à relação corporal,

unidade corporal e a transcendência aos aspectos reais para favorecer a vivência do simbólico

e o contato com a realidade para que os aspectos ligados ao limite e segurança física e

psíquica sejam considerados, proporcionando uma vivência integrada.

Considerados estes fatores, o psicomotricista precisa perceber qual a ansiedade que

a criança manifesta no seu tônus e na sua postura, pois a depender do tipo de ansiedade

dominante, o psicomotricista modulará a sua atitude tônica numa direção ou em outra direção.

André Lapierre e Bernard Aucouturier (1978), quando organizaram a abordagem

prática da Psicomotricidade Relacional, basearam-se em conceitos da Psicanálise freudiana

(Escola de Viena) e nas contribuições de Melanie Klein (Escola de Londres).

Dois conceitos são basilares na compreensão do trabalho de Melanie Klein (SEGAL,

1975, p.64): os conceitos de fase e posição. Esta autora compreendia que a criança, mais

especificamente o bebê, organiza a experiência emocional através de duas fases: a esquizo-

paranóide e a depressiva que, por não serem fenômenos passageiros, persistem durante toda a

vida em uma configuração específica de relações de objeto, ansiedades e defesas. Para a

posição esquizo-paranóide (esquizo significa divisão – split – dos conteúdos internos sentidos

como maus (ódio) dos bons (amor) e paranóide porque gera sentimentos de perseguição

decorrentes da sensação de que o objeto visto como mau (mãe = seio materno) possa danificar

a estrutura egóica em formação) corresponderia, então, como ansiedade básica, a ansiedade

persecutória.

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Para a posição depressiva, que implica em um movimento de diminuição dos

mecanismos projetivos e aumento dos mecanismos introjetivos, corresponderia, como

ansiedade básica, a ansiedade depressiva, onde o ego em formação percebe ter um vínculo

ambivalente (amor e ódio) para com a mãe, reconhecendo-a como boa e má e reconhecendo

que ele próprio a ama e a odeia.

Ao importarem os conceitos acima descritos do trabalho de Melanie Klein, André

Lapierre e Bernard Aucoutirier aplicaram-nos no jogo relacional, valendo-se da teoria objetal

com uma atenção específica à ansiedade manifestada pela criança através da sua expressão

corporal durante o jogo.

A percepção da ansiedade da criança facilita a compreensão da posição do

desenvolvimento relacional em que a criança se situa, pois a ansiedade define a posição e a

posição, por sua vez, contém a ansiedade, da mesma forma que o tônus pode nos fornecer a

ansiedade contida na sua musculatura e esta ansiedade traduzir-se através de um mecanismo

de defesa que lhe é peculiar.

Partindo de seu trabalho em creches, na França, Lapierre e Lapierre (1987, p.54)

observou que havia um esquema de evolução comum ao conjunto de crianças referente ao

modo como se colocavam diante dos objetos, do espaço, do psicomotricista relacional e do

jogo livre:

Certamente esse esquema não é linear nem monolítico, há em todas as crianças períodos de ambivalência, de regressão, há ritmos diferentes de uma para a outra, evoluções bloqueadas, retardadas, atípicas... Mas dessa diversidade, depreendemos uma certa coerência, que pode servir, não de norma mas sim de linha diretriz, assinalada por fases muito características.

Denominou esse esquema de fases ou posições do desenvolvimento no jogo

relacional, admitindo que não são estanques, têm pulos e retrocessos, aparecendo tanto na

evolução de cada criança como na evolução grupal dentro de cada sessão de Psicomotricidade

relacional. São elas: inibição, agressividade, domesticação, entrega/fusionalidade,

agressividade simbólica e autonomia.

As posições do desenvolvimento relacional, denominadas de inibição e

agressividade, estão ligadas às posições esquizo-paranóides e traduzem ansiedades

persecutórias. O trabalho nestas posições objetiva o resgate da função básica de confiança e se

dá sobre a matriz psíquica do que não foi respeitado no processo de desenvolvimento do bebê

e da criança pequena e onde a constituição de vínculos se deu de forma muito precária.

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Na inibição, toda a agressividade está potencializada, gerando uma paralisação dos

movimentos corporais e/ou movimentos muito lentos e pouco espontâneos. Há um excesso de

carga e, consequentemente, estase nos movimentos.

Na agressividade, já há movimento da criança em direção ao espaço relacional

mesmo que seja uma liberação de carga sem maior simbolização (ou nenhuma simbolização).

Como classifica o coreógrafo inglês e estudioso do movimento humano Rudolf

Laban (1990), na ansiedade persecutória, podemos observar que o corpo da criança se

apresenta hipertônico, tenso, com a fluência bloqueada, os movimentos são diretos, sem

leveza, pesados, densos. Não há relacionamento.

A posição domesticação evidencia uma passagem onde ainda há resquícios de

ansiedade persecutória, mas já há desejo de permanência do objeto (psicomotricista

relacional) e reconhecimento do mesmo (embora ainda seja muito grande e distante). O desejo

básico é o de afirmação de seu poder perante o poder do outro, onde a criança joga para ter

controle e poder sobre o adulto.

As posições de fusionalidade/entrega, agressividade simbólica e autonomia estão

ligadas à posição depressiva e expressam ansiedade depressiva.

A fusionalidade/entrega é a busca do acordo tônico e do desejo de vínculo. A

criança pode se entregar porque já sabe que o outro não é onipotente sobre ela, nem vai

destruí-la. O vínculo e o desejo de permanência do objeto se matrizam assim como o desejo

de independência e afirmação.

Na agressividade simbólica, a criança e o outro podem conviver. Surge o símbolo

como mediador da relação amor-ódio. O desejo é manter íntegro o objeto de amor e vínculo.

Na autonomia, a criança convive com o outro, sabe-se dependente do amor do

adulto, mas pode ter escolhas. A valência amor x ódio permanece juntamente com o desejo de

coexistência; a fluência dos movimentos é liberada e eles se apresentam flexíveis com peso

variável, espontâneos e graciosos, havendo intencionalidade, segundo Laban.

Após situar a criança na posição relacional e decodificar como ela está vivenciando

a ansiedade desta posição, o psicomotricista estrutura o seu projeto de intervenção para as

próximas sessões de trabalho, bem como para aquela sessão em que está observando a

criança. Cabe lembrar que as intervenções acontecem dentro do jogo espontâneo e simbólico

e que qualquer movimento e/ou postura do psicomotricista é uma intervenção. Porém, vale

ressaltar que impreterivelmente a intervenção se dá pela modulação tônica do psicomotricista

em consonância com a modulação tônica da criança. O acordo tônico pré-verbal, então, volta

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à cena e, a partir dele, novas modulações vão se organizando e toda uma carga energética

começa a ser acionada para mover-se ou para estagnar-se.

Se o psicomotricista, ao jogar com uma criança que está situada na inibição,

estimula, gradativamente, a energia paralisada para que circule e, então, possa liberar sua

agressividade, estará “mexendo” em todo um arcabouço fisco, mental, emocional, anatômico,

facilitando-lhe um novo grouding e um novo trajeto energético na estrutura existente. A

energia, até então estagnada, encouraçada, moveu-se, o que vem a solicitar um novo

“processo de acomodação”.

José Leopoldo Vieira (2005, p.139), psicomotricista relacional, compreende que

cabe ao profissional dessa área integrar a equipe pedagógica da escola e ser o responsável

pelas sessões de Psicomotricidade Relacional, incluindo, eventualmente, a participação do

educador infantil, após período de familiarização deste profissional com as crianças e com o

espaço do jogo. Afirma que o objetivo deste trabalho na escola é sempre focado na prevenção

e profilaxia mental e não no tratamento de distúrbios.

Sessões de Psicomotricidade Relacional podem e devem compor o plano de

atividades da Educação Infantil, sendo coordenadas por profissionais devidamente treinados

neste método de trabalho, o qual exige constantes supervisões e aprofundamentos da técnica.

Porém, a proposta que faço não é a de uma parceria entre o psicomotricista relacional e o

educador infantil dentro das sessões de Psicomotricidade Relacional. Proponho que na

formação do educador infantil haja a inclusão, na matriz curricular dessa formação, da teoria e

da vivência da Psicomotricidade Relacional, com o objetivo de lhe oferecer a oportunidade de

vivenciar sua corporeidade através do jogo espontâneo e simbólico, jogo de “fluxo livre”.

Nessa perspectiva de jogo, o educador poderá ter a compreensão integrada de si

mesmo e da criança com a qual irá trabalhar, a partir do contato com as memórias da criança

que um dia esse educador foi e que habita em algum lugar do seu psiquismo.

Acreditamos que este trabalho produza melhores resultados se for realizado com

grupos menores de, no máximo, dez crianças, pois requer um olhar muito especializado do

psicomotricista e/ou educador bem como toda uma disponibilidade corporal e tônica para

“dialogar e jogar” com as crianças.

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5.4 COMO A BIOENERGÉTICA, A LUDICIDADE E A PSICOMOTRICIDADE

RELACIONAL PODEM COMPOR O CURRÍCULO DE FORMAÇÃO DA

EDUCAÇÃO INFANTIL

Uma proposta de pesquisa que partiu da minha insatisfação, inquietação e vivência

pessoal contem o meu olhar sobre a questão da corporeidade na Educação Infantil. É o olhar

que colocamos sobre as experiências que, de certa maneira, as constituem. Numa perspectiva

pós-moderna, o olhar que dirigimos às coisas, produzem-nas, fazendo mais do que uma

representação do mundo, mas colocando-as como uma re-presença da realidade.

Nesse sentido, trata-se de mudar o olhar sobre a formação do educador infantil. Mais

do que incluir disciplinas na matriz curricular, o que proponho é alterar a forma de abordagem

dessas disciplinas, ajudando o educador a construir um novo olhar e um novo enfoque sobre o

seu papel e sua função e, consequentemente, sobre a criança que está sob a sua

responsabilidade de educar.

O educador infantil precisará ir ao encontro de sua corporeidade, reconhecê-la,

identificá-la, dialogar com ela, assenhorando-se de si mesmo e da história contada por sua

corporeidade.

A contribuição da Bioenergética, da Ludicidade e da Psicomotricidade Relacional

para a formação do educador é evidente, necessária e intrínseca, pois o foco dessas

abordagens se situa na dinâmica somato-psíquica cuja expressão primeira se dá pelo tônus.

Podemos situar alguns pontos mais significativos dos estudos bioenergéticos para a

formação do educador: respiração – a forma como o trabalho respiratório é visto e

compreendido e o que ele comunica sobre o que se passa com o sujeito e quais as

possibilidades de ampliação, estando atento à expansão como expressão de prazer e abertura e

a contração como angústia, fechamento, aperto; carga-descarga – sustentação desses dois

processos dentro do movimento curvilíneo que faculta o preenchimento e o esvaziamento

energéticos, traduzindo o tônus e seus estados afetivos – o afeto e a emoção que circulam ou

circularam pelo músculo, anéis e couraça; leitura corporal – que é a possibilidade de olhar no

corpo do sujeito e ver a “arquitetura energética” se constituindo ou constituída; o olhar no

corpo do outro o que a imagem corporal imprimiu no esquema corporal; perceber qual o

caminho feito pelo fluxo energético no sujeito.

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A seqüência que se dá vai do tônus que gera uma carga, que flui para a sensação,

que gera uma emoção e/ou sentimento que, por sua vez, demanda um significado que será

traduzido num sentido.

E através da modulação tônica, dentro do jogo espontâneo e simbólico, que o

psicomotricista propicia à criança a reinterpretação de suas próprias demandas e redefinição

de sua pulsação, portanto, re-significação de seu próprio tônus.

Compreender em sua própria corporeidade que a modulação tônica é uma função

mestra dentro do jogo espontâneo e relacional e saber transitar entre as polaridades tônicas de

expansão (relaxamento) e contração exige uma atenção e um aprendizado contínuos de si

mesmo, do outro e um conhecimento profundo do seu próprio corpo, portanto, de suas

matrizes afetivas e relacionais e como elas se constituíram no padrão corporal que lhe

identifica como um sujeito.

Se o educador “não sabe brincar ou esqueceu como se brinca”, precisará reaprender

a fazê-lo. A ludicidade, tão estudada e investigada na atualidade, possui uma riqueza de

possibilidades para ajudar o educador no encontro consigo mesmo e com o outro.

Para que o educador compreenda o que acontece com as posturas da criança diante

do jogo espontâneo e simbólico, a Psicomotricidade Relacional poderá lhe ensinar que atrás

de cada conduta há um significado que fala do mundo interno desta criança a pedir tradução.

Ele poderá lhe ajudar nessa tradução se tiver aprendido a se libertar de críticas, preconceitos,

julgamentos, sendo que esse nível de aprendizado só ocorre quando é vivenciado em nossas

corporeidades.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como considerações finais desta Dissertação de Mestrado, quero afirmar o quanto

elas são relativas a este processo e o quanto já deixam para mim a necessidade de prosseguir

com uma investigação e um estudo referentes às inquietantes questões da corporeidade na

Educação e, especificamente, na Educação Infantil.

A formação do educador e, especialmente, a do educador infantil, no mundo

contemporâneo vem demandando soluções a partir de uma visão sistêmica da realidade de

cada sujeito envolvido no processo de educar. Educador e educando precisam ser

considerados em suas multidimensionalidades, o que significa a inclusão das dimensões

física, emocional, mental onde razão, intuição, sensação e emoção são consideradas na

construção do conhecimento e da aprendizagem. Na corporeidade de cada sujeito envolvido

no processo educacional é que se dá a complexa conjunção multidimensional; a unidualidade

razão, emoção onde o biológico e o cultural se entrecruzam.

Partindo dessa visão sistêmica de ser humano, de educação, de formação do

educador e de desenvolvimento infantil, é que proponho que honremos todo o saber que

construímos ao longo da História. Honrá-lo significa ampliar a nossa compreensão e o nosso

olhar, trazendo-os à realidade do dia-a-dia da formação do educador, para que ele também

possa compreender e olhar a criança com os mesmos olhos com que foi visto: um olhar aberto

às inter-relações e interações, onde tudo pode ser incluído, significado, re-significado e

transformado.

A formação do educador infantil deverá ser inclusiva, cuidando teórica e

vivencialmente dos processos relacionais através dos fenômenos da transferência,

contratransferência e ressonância que estão, impreterivelmente, presentes, direcionando as

ações pedagógicas de forma consciente ou inconsciente.

Ter sua corporeidade trabalhada é condição prioritária para que o educador infantil

se relacione com a criança pequena que chega à escola com uma corporeidade em

“construção”. Qualquer relação nessa faixa de desenvolvimento é corporal e lúdica. Sem o

jogo espontâneo e simbólico, onde o educador participe com sua corporeidade, nós estaremos

negando a essa geração a possibilidade de vivenciar a sua multidimensionalidade e, portanto,

sua condição humana básica.

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A corporeidade do educador em relação à corporeidade do educando é uma relação

dialógica, construída durante cada caminhar junto, onde o princípio básico é o do aprender

comum a ambos os envolvidos cujos saberes são diferentes, mas necessários.

Trago a canção-poema de Walter Franco (2001), intitulada Serra do Luar, que

sintetiza, de forma harmoniosa e poética, a relação da corporeidade humana:

Viver é afinar o instrumento

De dentro pra fora

De fora pra dentro

A toda hora

A todo momento

De dentro pra fora

De fora pra dentro.

Tudo é uma questão de manter

A mente quieta

A espinha ereta

E o coração tranqüilo.

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