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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
Colegiado dos Cursos de Graduação em Geografia
HERNANE MAGALHÃES NERY
A DINÂMICA DA FRONTEIRA E A SUJEIÇÃO DO TRABALHO A CONDIÇÕES
ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO NO OESTE DA BAHIA
Salvador - Bahia
2014
HERNANE MAGALHÃES NERY
A DINÂMICA DA FRONTEIRA E A SUJEIÇÃO DO TRABALHO A CONDIÇÕES
ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO NO OESTE DA BAHIA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Geografia como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel em Geografia pela Universidade Federal da Bahia.
Orientador: Prof. Dr. Alcides dos Santos Caldas
Salvador - Bahia
2014
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do Instituto de Geociências - UFBA
N456d
Nery, Hernane Magalhães A dinâmica da fronteira e a sujeição do trabalho a condições
análogas à escravidão no Oeste da Bahia / Hernane Magalhães Nery.- Salvador, 2014.
93 f. : il. Color.
Orientador: Prof. Dr. Alcides dos Santos Caldas Monografia (Conclusão de Curso) – Universidade Federal da
Bahia. Instituto de Geociências, 2014.
1. Trabalho escravo - Bahia. 2. Trabalhadores rurais - Bahia. 3. Direito do trabalho - Bahia. I. Caldas, Alcides dos Santos. II. Universidade Federal da Bahia. III. Título.
CDU: 326(813.8)
TERMO DE APROVAÇÃO
HERNANE MAGALHÃES NERY
A DINÂMICA DA FRONTEIRA E A SUJEIÇÃO DO TRABALHO A CONDIÇÕES
ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO NO OESTE DA BAHIA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Geografia como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel em Geografia pela Universidade Federal da Bahia.
APROVADO EM: ...... de .................. de 2014
Banca Examinadora: _______________________________________________________________ Prof. Dr. Alcides Santos Caldas. Orientador. Prof. Dr. em Geografia, Universidade Federal da Bahia _______________________________________________________________ Profa. Dra. Guiomar Inez Germani. Membro. Profa. Dra. em Geografia, Universidade Federal da Bahia _______________________________________________________________ Prof. Ms. Tiago Rodrigues Santos. Membro. Prof. Ms. em Geografia, Universidade Federal da Bahia
A meus pais,
que do Oeste da Bahia trouxeram os valores
fundamentais da minha formação
AGRADECIMENTOS
Nessa etapa que se completa, quero agradecer profundamente e
principalmente a meus pais pelo apoio incondicional e em todas as instâncias da
minha vida e minha família, especialmente minhas tias Maria e Floripes. Sem vocês
essa graduação não se tornaria possível, ao menos não da forma que foi.
Agradeço à professora Guiomar, que foi muito mais que membra da banca,
que me acompanhou, incentivou e possibilitou a pesquisa e o crescimento
pessoal/profissional durante toda a graduação. Também à Tiago (Band rs) a quem
tive o prazer de ter na minha banca, mais que um sociólogo-geógrafo qualificado,
um amigo. E ao professor Alcides que gratamente aceitou a tarefa de me orientar.
Ao Grupo GeografAR, por dar vida ao saber/fazer acadêmico, por ter me
acolhido e pelas grandes contribuições diretas e indiretas à essa monografia.
Especialmente meus agradecimentos à profª Gilca, a Denilson, Hyngrid, Edite e
todos que por lá passaram, Pablício, Rafa, Paulo, e tantos outros. Agradeço
enormemente à Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Associação de Advogados
de Trabalhadores Rurais do Estado da Bahia (AATR) que foram mediadores e
parceiros em valiosos momentos da pesquisa. Também aos professores (as) que
foram fundamentais na minha formação, como André, Clímaco, Noeli e Tomasoni.
A todos meus colegas e amigos, principalmente a galera do IGEO, a galera
do possas, pelos ricos momentos de troca de saberes, experiências e muitas
resenhas, muitas rs. Sem vocês, aí sim a graduação teria sido dolorosa. Também
agradeço a Poliana que acompanhou boa parte do processo e sempre ajudou.
E por fim, a todos os espaços não-formais de aprendizado na universidade
em que destaco o movimento estudantil, da UFBA e o movimento de área regional
de geografia, que foram determinantes para minha formação e visão de mundo e
mais recentemente a Mata Inteira e o Espaço Seu Gonçalo pelos momentos de
saberes e ludicidades.
RESUMO
O trabalho escravo contemporâneo, entendido como simplificação da denominação
trabalho em condições análogas à escravidão, existe em profunda relação com o
processo de expansão da frente pioneira, que sob o impulso da agroindústria,
especialmente o complexo da soja, avança para as zonas de fronteira. Assim, o
objetivo desse trabalho é o estudo sobre as condições socioespaciais que permitem
a existência das relações de trabalho análogas à escravidão, no Chapadão
Ocidental do Oeste da Bahia. Para tanto, a noção de fronteira aliadas aos
condicionantes históricos aqui serão fundamentais para apreender o processo de
produção do espaço no Oeste da Bahia no esforço de estabelecer o vínculo com as
relações de trabalho. Na Bahia, a grande maioria dos mais de 3200 trabalhadores
flagrados nessa condição foram resgatados na região oeste do estado,
fundamentalmente lidando com as etapas intrínsecas à expansão territorial do
agronegócio, em especial nas atividades de desmatamento, carvoaria e limpeza e
preparação do terreno para a instalação do empreendimento agrícola. Assim sendo,
o trabalho análogo ao escravo não pode ser entendido como anomalia, mas sim
como um resultado e condição do padrão de desenvolvimento da agricultura
brasileira no modo de produção capitalista. Além disso, as condições históricas e
sociais que permitem a manutenção dessa relação extremada de trabalho estão
inseridas no mesmo processo de acumulação do capital, pois a acumulação carrega
consigo a concentração da propriedade da terra e a formação de um exército de
trabalho sobrante, face à lógica da acumulação. A consequência desse processo
tem sido a manutenção da miséria e esgotamento das condições de sobrevivência
de milhares de famílias que veem na migração e consequente subordinação a
formas degradantes de trabalho, a alternativa última para a garantia da reprodução
social de suas famílias.
Palavras-chave: Trabalho análogo ao escravo; fronteira; frente pioneira; Oeste da
Bahia
ABSTRACT The current slave labor, understood as simplifying by labor in conditions similar to
slavery designation, occurs in deep relation with the process of expanding pioneer
front, that under the impulse of agribusiness, especially the soybean complex, go
forward to the frontier areas. Thereby, the objective of this paper is the studying of
the socio-spatial conditions for the existence of work relations analogous to slavery in
Western Bahia. Therefore, the notion of frontier combined with the historical
conditions here will be essential for apprehending the production process of the
space in Western Bahia in an effort to establish the link with labor relations. In Bahia,
most of the more than 3200 workers caught in this condition were rescued in the
west of the state, primarily dealing with the inherent steps to the territorial expansion
of agribusiness, especially in deforestation activities, charcoal and cleaning and
preparing the ground for the installation the agricultural enterprise. Therefore, the
compulsory labor can not be understood as an anomaly, but as a result and condition
of the Brazilian standard agriculture development in the capitalist mode of production.
In addition, the historical and social conditions that allow the maintenance of such
extreme working relation are inserted into the same process of capital accumulation,
because the accumulation carries the concentration of land ownership and the
formation of a surplus labor army, due the accumulation's logic. The consequence of
this process has been the maintenance of misery and exhaustion of living conditions
of thousands of families, that see migration and consequent subordination to
degrading forms of work, the last alternative for guaranteeing social reproduction of
their families.
Keywords: Labor analogous to slavery; frontier; pioneer front; Western Bahia
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Mosaico de fotografias sobre a situação dos trabalhadores resgatados da condição de trabalho análoga à escrava na Bahia ...........................................................................................24 Figura 2 – Mapa dos trabalhadores resgatados da con dição análoga à escrava no Brasil, 1995-2006.......................................................................................................................................................32 Figura 3 – Naturalidade dos trabalhadores resgatado s da condição análoga à escrava no Brasil, 1995-2006 .................................................................................................................................34 Figura 4 – Mapa da origem e destino dos trabalhador es resgatados da condição análoga à escrava, Brasil, 1995 – 2006 ...............................................................................................................35 Figura 5 – Zonas Pioneiras do Brasil, Século XIX e década de 1950 .............................................47 Figura 6 – Recorte do monitoramento da expansão das áreas irrigadas no Oeste da Bahia, uso e cobertura das terras, 1985 e 2000 ...................................................................................................70 Gráfico 1 – Atividades de trabalho realizada pelos trabalhadores resgatados da condição análoga à escravidão, Brasil, 2007 ....................................................................................................36 Gráfico 2 - Atividades de trabalho realizada pelos trabalhadore s resgatados da condição análoga à escravidão, Bahia, 2003-2014 ...........................................................................................55 Mapa 1 – Municípios com trabalhadores em condições análogas a escrava resgatados e número de ocorrências, Bahia, 2003 a 2012 .....................................................................................52 Mapa 2 – Trabalhadores em condições análogas a de e scravo resgatados que receberam seguro-desemprego por município de residência, Bahi a, 2012......................................................54 Mapa 3 – Unidades de paisagem do Além São Francisco , Bahia, 2014 .........................................58
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Estrutura fundiária resumida do municípi o de São Desidério, Bahia, 1970, 1980, 1996 e 2006....................................................................................................................................................74 Tabela 2 - Área plantada e quantidade produzida par a o algodão herbáceo, milho e soja – Mesorregião Extremo Oeste Baiano, 1990, 2000 e 2011 ..................................................................76
SUMARIO 1. INTRODUÇÃO....................................................................................................................12
2. CAMINHOS DA PESQUISA: O MÉTODO E OS PROCEDIMENTO S METODOLÓGICOS................................................................................................................16
3. ACERCA DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO ........................................................................................................................20
3.1. DO QUE SE TRATA O “TRABALHO ESCRAVO” CONTEMPORÂNEO........................20
3.2. ESPACIALIZAÇÃO E OCORRÊNCIA DO TRABALHO ANÁLOGO AO ESCRAVO NO BRASIL...................................................................................................................................31
4. UMA FRONTEIRA EM MOVIMENTO: ABORDAGENS SOBRE A D INÂMICA DA FRENTE DE EXPANSÃO E DA FRENTE PIONEIRA ..........................................................38
4.1. A FRONTEIRA E AS DESIGNAÇÕES DE FRENTE DE EXPANSÃO E FRENTE PIONEIRA...............................................................................................................................39
4.2. ASPECTOS HISTÓRICO-ESPACIAIS DA EXPANSÃO DA FRENTE PIONEIRA NO BRASIL...................................................................................................................................44
5. A EXPANSÃO DA FRENTE PIONEIRA NO OESTE DA BAHIA A PARTIR DO AVANÇO DA AGRICULTURA CAPITALISTA E A SUJEIÇÃO DO TRABALHO À CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO ...............................................................................................51
5.1. A OCORRÊNCIA DO TRABALHO ESCRAVO NA BAHIA..............................................51
5.2. CONDICIONANTES DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL DO OESTE DA BAHIA...............56
5.3. O PROCESSO HISTÓRICO DA EXPANSÃO TERRITORIAL DO CAPITAL E PRODUÇÃO DO ESPAÇO NO OESTE DA BAHIA...............................................................64
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS E PERSPECTIVAS ...............................................................84
REFERÊNCIAS......................................................................................................................88
12
1. INTRODUÇÃO
[...] a acumulação da riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital (MARX, 1996, p. 275, grifo meu).
Essa monografia é fruto do acúmulo de conhecimentos adquiridos através da
participação em pesquisas que foram desenvolvidas, desde 2010, no âmbito do
Grupo de Pesquisa GeografAR – A Geografia dos Assentamentos na Área Rural. A
iniciativa dessa investigação partiu da relação existente entre o Grupo
GeografAR/POSGEO e as organizações sociais, em especial a Comissão Pastoral
da Terra (CPT) e a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais do Estado
da Bahia (AATR).
No Brasil, segundo dados da CPT (2010), no período de 2003 a 2010, foram
resgatados do trabalho em condições análogas a de escrava 39.699 pessoas. Na
Federação, o estado com maior percentual de resgates de trabalhadores foi o Pará
com 29,3%, seguido dos estados do Mato Grosso (14,1%), Goiás (8,1%) e Bahia,
este ocupando o 4º lugar no ranking, com 7% dos resgates efetuados pelo Grupo
Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
De acordo com dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho/MTE e do Ministério
Público do Trabalho1 foram autuadas na Bahia, de 2003 a 2011, 55 propriedades –
localizadas, sobretudo na região Oeste do estado – com um total de 2.869
trabalhadores resgatados.
Foi nesse contexto que, em 15 de agosto de 2005, foi oficialmente lançada
nacionalmente a “Campanha de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo”, uma
iniciativa da CPT, AATR, Pastoral do Migrante e outras entidades, cujas principais
linhas de ação são: formação, parceria e articulação com entidades de classes,
divulgação e visibilidade, melhorar e alimentar o banco de dados, continuar e
garantir a presença e o trabalho nas bases. Em 2009, o Projeto GeografAR foi
convidado pela CPT/BA para participar mais ativamente nesta Campanha, de modo
1 Esses dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) referem-se às informações divulgadas tanto pelo Cadastro de Empregadores Infratores do MTE conhecido como “Lista Suja do Trabalho Escravo” quanto pelo quadro das operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM). Tais informações sobre as ocorrências do trabalho análogo ao escravo foram acrescidas através de notícias na mídia impressa e digital, catalogadas e organizadas na hemeroteca do GeografAR.
13
a acrescentar a leitura realizada pelo GeografAR às questões relacionadas ao
“trabalho escravo contemporâneo”. Assim, surgiu a pesquisa “Diagnóstico e
Mapeamento do Trabalho Escravo no Estado da Bahia” como fruto dessa parceria.
Esse projeto de pesquisa teve como proposta a compreensão e a explicitação da
natureza e dos processos que gestam formas contemporâneas de escravidão no
campo baiano. Conforme o seu desenvolvimento ela se consolidou como mais uma
linha de pesquisa do GeografAR que perpassa todas as demais, relativas às
distintas temporalidades e espacialidades que emergem do movimento contraditório
do espaço agrário, tais como o conflituoso quadro de luta pela/na terra no campo
baiano assim como sua articulação com diferentes sujeitos sociais: trabalhadores
rurais, movimentos sociais, a grande propriedade fundiária e o capital, e a ação do
Estado face a esses processos.
Foi nesse contexto e diante dessas motivações – entre as quais a própria
relevância e gravidade do tema na contemporaneidade – que o estudo, que tem
como produto essa monografia de conclusão de curso, se deu. Inicialmente, a partir
da bolsa de iniciação científica (PIBIC-CNPq), vigente entre 2010 e 2011, sob o título
“Diagnóstico e Mapeamento do Trabalho Escravo no Estado da Bahia” e, em
continuidade, entre 2011-2012, outra bolsa (PIBIC-Fapesb), cujo título foi “Trabalho
Escravo e o Desenvolvimento da Agricultura Capitalista no Oeste da Bahia”.
Essa monografia vem no sentido de realizar um enlace entre esses dois
momentos da pesquisa. Se no primeiro momento o foco era o conhecimento acerca
do que se tratava como “escravidão contemporânea”, foi mediante o próprio
movimento da investigação que a tônica se deslocou para o estudo sobre as
condições socioespaciais que asseguram essa relação de trabalho. Isso, na medida
em que se passou a estudar o “porquê do onde”, ou o porquê da concentração das
ocorrências dessa prática (e crime) se darem sobretudo na região oeste da Bahia.
Assim, a “escravidão contemporânea”, sua natureza e condições sociais estarão em
diálogo com a formação histórico-territorial de uma região e a particularidade do seu
processo histórico de produção do espaço. Assim, como integrante da práxis
humana, portanto sujeita às leis dialéticas da história, conforme o desenrolar da
investigação, novas necessidades e novas possibilidades surgiram. Se o objetivo
inicial era tratar da “escravidão contemporânea”, a própria realidade e sua
investigação, apontaram caminhos e perspectivas que conduziram também ao
14
estudo sobre o “chão social”, ou seja, sobre a particularidade espacial que essa
forma de relação de trabalho assume. É isso o que se pretende com esse trabalho.
Desvelar as condições sociais que engendram e viabilizam a existência de
determinada relação social é também uma tarefa da geografia na medida em que “o
conhecimento geográfico trata da descrição e análise da distribuição espacial das
condições (criadas pelo homem ou existentes na natureza) que formam a base
material para reprodução da vida social” (HARVEY, 1988, p. 162). Também porque
tais relações sociais, nesse caso em se tratando de relações sociais de produção, se
realizam, interagem e produzem novas sínteses através do espaço. Dessa forma o
modo de produção (e falar de produção, é falar de trabalho) das distintas formas de
sociedade
[...] organiza – produz – ao mesmo tempo que certas relações sociais, seu espaço (e seu tempo) (...) [ele] projeta essas relações sobre o terreno, o qual reage sobre elas. Sem que haja correspondência exata, definida de antemão (...) O novo modo de produção (a sociedade nova) se apropria, ordena para seus fins, o espaço preexistente, modelado anteriormente. Modificações lentas penetrando uma espacialidade já consolidada, mas subvertendo às vezes com brutalidade (LEFÉBVRE, 2006, p. 8)
Aqui, em Lefébvre, já presente uma concepção (também adotada de por Milton
Santos) sobre o espaço e sobre a produção do espaço. O estudo presente nessa
monografia busca captar a dinâmica da transformação do espaço através de sua
produção, por meio do trabalho. Em especial, uma forma determinada de relação
social de trabalho em sua interação com o espaço social. Por isso ao tratar de
relações sócio-espaciais, cabe a análise das formas diferenciais que as relações
sociais de produção – no caso, a relação capital-trabalho – se evidenciam e se
diferenciam conforme lugares e regiões particulares.
Assim sendo, o objeto de estudo dessa monografia diz respeito às relações de
trabalho análogas à escravidão que se desenvolvem no interior do processo (e
espaço) de expansão da fronteira. Aqui a fronteira é compreendida como processo e
relação, diferente do sentido imediato e mais difundido, acerca da delimitação de
unidades territoriais. Trata-se, sobretudo – sob o impulso da moderna agricultura
capitalista –, da expansão territorial do capital em uma região cujas relações de
produção não eram tipicamente capitalistas, nem tampouco com vinculo e
integração efetiva à economia nacional e global.
15
A ênfase sobre o trabalho análogo à escravidão que se desenvolve no
processo de expansão da fronteira é a particularidade histórico-social e espacial
deste trabalho. Isso equivale dizer que não se trata aqui de estudar outras situações,
embora com relativa semelhança, tais como os trabalhadores da construção civil e
da indústria da confecção, atividades tipicamente urbanas. Embora, em 2013, pela
primeira vez na história, a CPT registrou mais ocorrências de “trabalho escravo” na
zona urbana que na zona rural, na Bahia, essa forma de relação trabalhista tem
sido, até o momento, uma atividade tipicamente rural e associada às atividades de
fronteira.
No que diz respeito à estrutura da monografia, essa está dividida em três
capítulos, salvo a introdução, metodologia e as considerações finais. O terceiro
capítulo trata-se de uma caracterização do “trabalho escravo contemporâneo”
enquanto tal, ou seja, acerca das condições de trabalho análogas à escravidão. Isso,
numa perspectiva mais geral e com referência à escala nacional. No quarto, dado ao
fato de que a maioria das ocorrências se concentra no setor agrícola e que estão
intimamente relacionadas ao processo de expansão da fronteira (em que a região
Oeste da Bahia2 também se insere), será discutido o que se convém chamar de
fronteira e como historicamente ela tem sido produzida. E, por fim, no quinto
capítulo, o foco será dado à expansão da fronteira no Oeste da Bahia propriamente
dita, em primeiro lugar, apresentando uma caracterização geral da paisagem (como
que isso ofereceu as bases naturais favoráveis ao padrão de acumulação do capital
na agricultura brasileira) e em seguida, o processo histórico particular de produção
do espaço mediante a expansão territorial da agricultura capitalista e qual a relação
disso com o trabalho escravo.
2 Compreende-se aqui basicamente apenas a parte mais ocidental do Oeste da Bahia, especialmente nos municípios de Formosa do Rio Preto, Riachão das Neves, Barreiras, Luis Eduardo Magalhães, São Desidério, Correntina, Jaborandi e Cocos. Municípios esses, conforme veremos, que estão situados sobre o Chapadão Ocidental coberto por Cerrado com veredas, que concentram as ocorrências de “trabalho escravo” na Bahia e que possuem semelhantes características quanto a estrutura fundiária e produtiva.
16
2. CAMINHOS DA PESQUISA: O MÉTODO E OS PROCEDIMENTO S
METODOLÓGICOS
Antes de adentrar precisamente sobre os caminhos e procedimentos
metodológicos dessa pesquisa, vale algumas considerações acerca do método.
Aqui, portanto, já presente uma distinção entre a metodologia de pesquisa
propriamente dita, que versa sobre procedimentos, etapas, materiais e recursos do
fazer ciência. O método, por sua vez, está mais relacionado a uma visão de mundo,
uma matriz de pensamento e uma orientação filosófica e também política.
Se entendermos que a função do método, como sugere Sérgio Lessa, é “nas
mutáveis condições da vida social, auxiliar na descoberta do como enfrentar
eficientemente o desconhecido de modo a convertê-lo em elemento potencializador
da práxis humana” (LESSA, 1999, p. 3), o materialismo-histórico e dialético assume
um significativo papel. Isso, em primeiro lugar, por reconhecer a própria mutabilidade
das condições da vida social, ou seja, a perene transitoriedade do ser, em que tudo
no/do mundo está em constante transformação. Em segundo porque é na práxis (na
atividade humana sensível, concreta e historicamente determinada) que se encontra
o critério da dialética materialista enquanto método. Afinal, como Marx estabelece na
2ª tese sobre Feuerbach, “É na práxis que o homem tem de provar a verdade, isto é,
a realidade e o poder, a natureza citerior3 [Diesseitigkeit] de seu pensamento.”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 533). Para o materialismo-dialético, a história é
[...] produto social, criado ao mesmo tempo que outros produtos da atividade humana pela cooperação dos homens no marco da divisão do trabalho, nas condições naturais e sociais de produção de uma época determinada da história da natureza e da história humana (KORSCH, 2008, p. 137).
Na gnosiologia marxista, na produção dialética do conhecimento, o método de
elaboração conceitual, se dá não como “um método que consiste em desenvolver
significados dando uma autonomia absoluta às ideias, dessa maneira absolutamente
desligadas do fato concreto” (CARVALHO, 2008, p. 34). Pelo contrário, conforme
Marx e Engels já assinalaram,
3 Em algumas traduções “Diesseitigkeit” aparece em português como “terreno”, ou seja, “o caráter terreno do seu pensamento”.
17
[...] os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais, de que só se pode abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação. Esses pressupostos são, portanto, constatáveis por via puramente empírica (MARX; ENGELS, 2007, p. 86-87).
O proceder materialista histórico-dialético de investigação foi pouco
desenvolvido por seus fundadores. Esse conteúdo pode ser encontrado
especialmente na Introdução ao Grundrisse, escritos em 1857 por Marx. Tomando
por base esse texto, o filósofo húngaro György Lukács, em sua “Ontologia do Ser
Social”, traz uma importante formulação de como produzir teoricamente é um
exercício inserido na práxis. Pois com o método das duas vias, Lukács buscava
“primeiro, decompor analítico-abstratamente o novo complexo de ser”, a totalidade
complexa, “para depois retornar (ou avançar até) ao complexo do ser social não só
enquanto dado e portanto simplesmente representado, mas agora também
concebido na sua totalidade real” (LESSA, 1999, p. 15). Nesse sentido, também
numa tentativa de explicar o método das duas vias, Edmilson Carvalho nos
esclarece: “o trabalho e o trabalhador teórico têm de assumir um trânsito
eminentemente dialético: afastar-se para aprofundar-se em riqueza conceitual e, ao
mesmo tempo, manter-se ligado à prática [a história] da qual ele faz parte”
(CARVALHO, 2008, p. 27).
Para concluir essa pequena parte sobre o método, há de se tratar
sumariamente de duas categorias-chave para a compreensão materialista e dialética
da história, que serão imprescindíveis e nortearão essa pesquisa: a totalidade e o
trabalho.
Totalidade, no materialismo dialético, é muito mais que a soma das partes e
não tem relação com o todo, ou seja, falar de totalidade não é ter a pretensão de
falar de tudo do mundo. Totalidade, de acordo com essa brilhante síntese de
Lukács, significa que
[...] de um lado, que a realidade objetiva é um todo coerente em que cada elemento está, de uma maneira ou de outra, em relação com cada elemento e, de outro lado, que essas relações formam, na própria realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades, ligados entre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas (LUKÁCS, 1967, p. 240).
18
A concepção, e também o método, que Marx e Engels inauguram resgata a
tradição dialética hegeliana a partir, e tomando por base, a materialidade das
relações sociais, fundadas na história e na prática dos homens realmente existentes
e empiricamente verificáveis. É, portanto, um legado metodológico e uma concepção
de história que “consiste, portanto, em desenvolver do processo real de produção e
a partir da produção material da vida imediata” (MARX; ENGELS, 2007, p. 42). O
que Marx quer se referir a respeito da produção material da vida é a centralidade
que a categoria do trabalho exerce em seu onto-método.
Ao articular a teleologia à casualidade, ou seja, a prévia-ideação subjetiva ao
mundo objetivo histórico, o trabalho estabelece a distinção da humanidade em
relação ao mundo orgânico e inorgânico – eis que assim o trabalho ofereceu
condições e possibilidades históricas da sociabilidade e da própria humanização do
homem. Isso é a base, portanto condição de existência do ser social. Engels, disse
isso de outro modo, porque
[...] Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana: o simples fato, até aqui encoberto sob pululâncias ideológicas, de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião, etc; de que, portanto, a produção dos meios de vida materiais imediatos (e, com ela, o estágio de desenvolvimento econômico de um povo ou de um período de tempo) forma a base, a partir da qual as instituições do Estado, as visões do Direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão, se desenvolveram e a partir da qual, portanto, têm também que ser explicadas (ENGELS, 1982, p 179).
Após tais pressupostos e tendo em vista essa concepção sobre o mundo e sua
história, nesta pesquisa, em termos de procedimentos metodológicos, foi
estabelecida uma articulação entre uma revisão bibliográfica, documental e
iconográfica continuada e coleta e tratamento de dados junto aos órgãos públicos e
instituições. Destaca-se aqui a leitura de textos bases sobre o tema e a coleta e
sistematização de notícias de jornais (impressos ou digitais) assim como o acesso a
materiais, dados, boletins e informações produzidas pela CPT4.
4 Esses dados e informações da CPT são resultados de acompanhamentos locais, realizado por agentes mediadores e por pessoas da base, no âmbito da pesquisa “Diagnóstico e Mapeamento do Trabalho Escravo na Bahia”. A importância desses é que nenhum órgão do Estado consegue dar a amplitude, e riqueza das situações observadas pela CPT. Tanto é que os órgãos públicos usam esses próprios dados, expressando uma confiabilidade e respeito aos mesmos.
19
No que tange à coleta de dados, esses foram obtidos junto à Superintendência
Regional do Trabalho e Emprego (STRE) do MTE, em Salvador (BA), à Procuradoria
do Trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT), unidade de Barreiras (BA) e
também à CPT. Desses se destacam os quadros das operações do Grupo Especial
de Fiscalização Móvel (GEFM), os relatórios de fiscalização das ocorrências de
trabalho análogo ao escravo, acrescidos sempre das informações e dados da CPT.
Além disso, foi realizada análise e tratamento de dados, obtidos nos Censos
Demográficos, Censos Agropecuários e nas Pesquisas Agrícolas Municipais (PAM),
ambas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Também como parte integrante da construção da pesquisa, realizamos
trabalhos em campo, ou seja a busca de informações primárias. As pesquisas em
campo foram realizadas através da parceria entre o GeografAR, a CPT e a AATR,
em municípios baianos. Os trabalhos de campo tiveram oficinas como técnica e
pressuposto fundamental. Tais oficinas foram realizadas com trabalhadores e
lideranças sindicais, pastorais e eclesiais. Essas oficinas tiveram como caráter, a
verificação em campo das condições de vida e trabalho nos municípios baianos e
também a formação política e jurídica dos envolvidos com as oficinas. Tais trabalhos
aconteceram nos municípios de Antônio Gonçalves, Barreiras, Caetité, Carinhanha,
São Desidério e Senhor do Bonfim, além dos acompanhamentos e entrevistas
realizadas no 11º Acampamento das trabalhadoras rurais da Bahia e durante a
ocupação, no ano de 2012, dos movimentos sociais no Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), ambos realizados em Salvador. Foi
também muito importante a participação na 2ª Audiência Pública sobre condições de
trabalho no campo sob a ótica do combate ao trabalho escravo no Estado da Bahia,
realizada pela Câmara de Deputados, mas articulada e demandada pela sociedade
civil e movimentos sociais, realizada no dia 17 de junho de 2011, na cidade de
Barreiras (BA). Todas essas atividades foram realizadas a partir da pesquisa
“Diagnóstico e Mapeamento do Trabalho Escravo na Bahia”, desenvolvidas pelo
Grupo de Pesquisa GeografAR, coordenado pelas prof(as) Guiomar Inez Germani e
Gilca Garcia de Oliveira, e apoiado pelo Cnpq.
Essas etapas metodológicas foram aqui separadas meramente para efeito de
exposição, o que equivale dizer que durante a pesquisa elas aconteceram
simultaneamente, conforme iam surgindo novas demandas e possibilidades. Todo
20
esse processo também foi acompanhado de intenso debate entre os pesquisadores
do GeografAR, entre os parceiros e com órgãos do Estado.
3. ACERCA DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO ANÁLOGAS À ESCR AVIDÃO
O que é o trabalho escravo hoje? Como pode existir trabalho escravo hoje, no
século XXI, se a escravidão foi abolida no século XIX? Sim, de fato a escravidão, ou
melhor, a escravização de povos africanos, foi abolida no Brasil. Nesse sentido, o
que hoje pode-se dizer sobre trabalho escravo encontra uma definição mais
apropriada como sendo o trabalho em condições análogas à escravidão. Expressões
como trabalho escravo contemporâneo, semi-escravidão, peonagem, trabalho
forçado, ou ainda servidão por dívida, aparecem associadas às condições análogas
à escravidão, e em geral dizem sobre a mesma coisa, o mesmo processo. Elas,
frequentemente aparecem na mídia e sociedade, através de uma extensa literatura
acadêmica, mas também a partir de notícias publicadas pela imprensa e também a
partir de denúncias dos próprios sujeitos e movimentos/organizações sociais.
Notícias e relatos que desde longa data nos fazem observar casos onde as relações
de trabalho existentes ultrapassam os limites da dignidade humana.
3.1. DO QUE SE TRATA O “TRABALHO ESCRAVO” CONTEMPORÂNEO
Desde início da década de 1970, quando Dom Pedro Casaldáliga, o Bispo de
São Félix do Araguaia (MT), tornou público o documento “Uma igreja na Amazônia
em conflito com o latifúndio e com a marginalização social” – no qual denunciava as
condições precárias de trabalho e servidão por dívida enfrentada pelos peões, pelos
trabalhadores das grandes propriedades da nova fronteira agrícola brasileira – que o
país vem assistindo notícias sobre essa prática.
Na Bahia, umas primeiras e mais emblemáticas ocorrências se deu na
Fazenda Roda Velha, em São Desidério, sendo divulgada no Jornal A Tarde (2003),
“Fazenda em São Desidério, no oeste da Bahia, detinha 849 pessoas sem carteira,
nem salário e em péssimas condições”. Em 2006, apareceu a notícia de que “no
município de Santa Rita de Cássia, os empregados não recebiam salário,
alimentação era de má qualidade e os alojamentos inadequados” (A TARDE, 2006).
Também, em mais um exemplo, noticiou-se que no município de Encruzilhada (BA),
21
“fazendeiro mantinha 63 pessoas em situação similar à escravidão” (A TARDE,
2011). São as condições de trabalho que – pela gravidade da situação encontrada
pelos auditores fiscais do MTE –, são definidas como sendo similares a de um
escravo.
Na realidade, notícias, denúncias e casos dessa ordem já se faziam presentes
antes mesmo dessa época e muito antes do reconhecimento pelo Estado brasileiro
da existência das relações sociais de trabalho em seu território – o que só vai
ocorrer em 1995, mas com a base legal apenas em 2003. Pois é somente em 2003
que o Estado brasileiro, após o reconhecimento, estabelece como crime, previsto no
código penal brasileiro, a prática de submeter alguém à condição análoga a de
escravo. Juntamente com esse reconhecimento vem, sob a forma de lei, toda a
definição do que se entende hoje como o trabalho escravo contemporâneo, ou seja,
as características que embasam a ações de fiscalização. A lei sobre a qual referimos
é a de nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003 – que, ao alterar o artigo 149, do
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – estabelece como crime
[...] reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. (BRASIL, 2003)
Segundo o Código Penal5, portanto, basta existir apenas um dos elementos – a
exploração extensiva e intensiva da jornada de trabalho, condições degradantes de
trabalho (abaixo do mínimo, abaixo do limite humano razoável, de higiene, saúde,
segurança, alimentação, alojamento etc.) e servidão ou imobilização da força de
trabalho em razão de dívida –, para que seja classificado enquanto trabalho escravo.
Muito embora em grande número de ocorrências já registradas estiverem todos
esses elementos presentes. A avidez por mais-trabalho em sua dimensão absoluta e
a forma capitalista de sempre economizar nas condições de trabalho andam juntas.
A categoria jurídica de escravidão foi abolida, legalmente, em 13 de maio de
1888, porém o conjunto de elementos, tais como identificados na lei acima,
5 Foi aprovado no senado o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 57A/1999, conhecido como a “PEC do trabalho escravo” que prevê a expropriação da glaba em que for flagrada a ocorrência de trabalho escravo. Entretanto tramita no legislativo sua regulamentação que dentre outras implicações se propõe a esvaziar a definição do trabalho análogo ao escravo, uma legislação considerada avançada e de acordo com a realidade verificada em campo. O esvaziamento se dá no sentido de flexibilizar (retirar) aspectos como a definição das condições degradantes de trabalho.
22
permitem a caracterização de formas contemporâneas de relação de trabalho como
parecidas à escravidão. Trata-se, portanto, de um conceito legal, mas em estreita
ligação com a realidade já verificada na sociedade, e que apresenta
correspondência com a diversidade de situações encontradas em campo. Afinal de
contas, a lei enquanto tal é fruto de um processo histórico que só pôde ser posto à
tona pela visibilidade a partir de denúncias que os movimentos sociais realizaram
em várias regiões do país.
Se atentarmos à história, não seria muito identificar que o que hoje se define
como trabalho análogo ao escravo já estivesse presente até durante o sistema
escravista propriamente dito. Ou seja, as características que permitem classificar
como “trabalho escravo contemporâneo”, tais como o sistema do aviamento6, o
“barracão” (que reproduzem e fomentam a servidão por dívida), também a restrição
da locomoção e as condições degradantes, já se encontravam presentes, como
relata Martins (2009 e 2010) em vários contextos socioespaciais. Durante a
imigração européia na transição do século XIX para o século XX, também na
Amazônia envolvendo os trabalhadores migrantes envolvidos com a extração e
produção da borracha e entre trabalhadores livres (nordestinos, principalmente) que
durante o período da escravização legal realizavam a abertura e formação de novos
cafezais, sobretudo em São Paulo. A existência, muito comum nos casos de
trabalho escravo hoje, do “barracão” (ou truck system) – conforme abordaremos
adiante – encontra também raízes no interior da plantation tradicional. O
aprofundamento sobre essas raízes históricas carece de uma abordagem que
extrapola os limites dessa monografia em particular.
Os aspectos ou características do trabalho análogo ao escravo – jornadas
exaustivas, condições degradantes de trabalho e trabalho forçado/restrição da
locomoção em razão de dívida – podem ser aqui explicitados. As jornadas
exaustivas de trabalho (e aqui, trata-se de jornadas na faixa das 12, 14, 16 ou mais
horas por dia) tem sido um elemento historicamente presente no trabalho
assalariado agrícola no Brasil, até mesmo dado o próprio caráter da agropecuária de
requisitar a força de trabalho para um período em específico (não para todo o ano,
6 Conforme Martins (2009), o complexo sistema de aviamento, que foi muito expresso no processo de extração do látex nos seringais da Amazônia, envolve um sistema de dominação fundada no poder personalizado, baseadas fundamentalmente num “sistema de crédito sem dinheiro” que operam em toda cadeia da produção de borracha, incluindo o seringueiro que se vê atado a essas teias de exploração mercantil associado à exploração do trabalho.
23
fixo), assim de certa maneira realizando uma compensação pelos meses “ociosos”
exigindo ao máximo da força de trabalho no período da empreitada. Vale destacar
também que, por mais que no texto da lei apresente como jornada exaustiva (em
termos de tempo de trabalho) não se pode deixar de fazer referência à intensidade
do trabalho, pois o trabalho rural exige das capacidades físicas do trabalhador de
uma forma em geral ainda mais brutal que de outros setores da economia. A
extensão da jornada e intensidade do trabalho, ambos são meios, de acordo com
Marx (1996), para a extração e elevação da mais-valia absoluta, e que são aspectos
que, juntamente com as condições degradantes de trabalho, deterioram o valor de
uso da força de trabalho, as capacidades vivas do trabalhador, ao ponto de encurtar
seu tempo médio de vida. Tal ponto remete ao conceito de “superexploração do
trabalho” proposto por Marini (2005) enquanto característica da formação social do
capitalismo dependente.
As condições degradantes de alojamento, de saúde do trabalhador, de
alimentação, as condições sanitárias e de higiene e a falta de equipamentos de
proteção, que os trabalhadores lidam cotidianamente no processo de trabalho, é
outra característica que quase sempre se faz presente. A figura 1, um mosaico de
fotografias registradas e cedidas por Edvaldo dos Santos da Rocha (auditor fiscal do
MTE) no âmbito da elaboração dos relatórios de fiscalização, dá-nos uma dimensão
dessa realidade. Essas condições, ainda que avaliadas pela subjetividade do auditor
fiscal e de sua equipe, possuem critérios objetivos, por expressarem justamente o
mínimo socialmente razoável para o ser humano. Abaixo desse mínimo, afeta
diretamente a saúde e vida do trabalhador até mesmo no curto prazo. O que dizer
de comida estragada? Ou mesmo beber água em recipientes de agrotóxicos? Ou
ainda dormir com bichos e debaixo da lona preta?
24
Figura 1 – mosaico de fotografias sobre a situação dos trabalhadores resgatados da condição de trabalho análoga à escrava na Bahia.
Fonte: Edvaldo Santos da Rocha
Aliado a tudo isso, na maioria dos relatórios de fiscalização produzidos pelo
Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) do MTE, nos empreendimentos em
que houve flagrante da situação análoga a escrava na Bahia, há a presença de um
complexo sistema de dívidas contraídas pelo trabalhador que se vê assim atado ao
local de trabalho. Dívidas essas que podem se desenvolver de dois modos, ainda
que muitas das vezes associados.
Assim, a teia de relações que caracterizam a “servidão por dívida”, pode se dar
até mesmo através da dívida que é contraída pelo “peão” durante a empreitada,
durante o próprio período de trabalho, especialmente no comércio que opera dentro
da propriedade. Em muitos casos, por vezes associados às distâncias das
propriedades em relação aos centros urbanos, durante a empreitada, as turmas de
trabalhadores também residem (trabalham e dormem) nas próprias fazendas sob as
mais diversas condições. Especialmente nessas situações (o que não exclui
25
portanto ocorrências em que os trabalhadores se deslocam todos os dias para o
trabalho) a dívida é contraída, ou incrementada, na compra de diversos produtos
nas cantinas ou armazéns no interior das fazendas, conhecido como “barracão” –
“truck system” – cujo preço é quase sempre bem superior ao de mercado. Nesse
caso a distância dos estabelecimentos em relação ao povoado mais próximo (como
o caso da empresa G5 Agroindustrial, no município de Cocos (BA), cujo povoado
mais próximo estava a 80 km da propriedade) também dificulta a saída do
trabalhador em busca de alternativas. É comum os auditores fiscais do MTE
encontrarem as cadernetas com as dívidas contraídas pelo trabalhador no barracão.
Quase sempre não são fornecidos os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e
até os mais elementares instrumentos de trabalho não são fornecidos, como botas,
luvas, enxadas. Ou seja, além da alimentação (salvo os casos em que os
trabalhadores trazem de casa), até os equipamentos de trabalho são comprados no
barracão, resultando, por vezes, saldo negativo em relação ao salário (por tarefa7)
recebido. A título de exemplo, um caso de 2005 (da Fazenda Roso, localizada à 180
km da sede de Barreiras) em que 67 trabalhadores oriundos de Posse (GO) foram
resgatados, que de acordo com notícia do Jornal A Tarde a situação descrita por
uma trabalhadora é emblemática, pois, segundo ela
[...] “só comprei umas bolachas e uns doces e no fim estava devendo 60 R$. Isso é um roubo.” Ela disse que havia mais de 200 pessoas trabalhando na capina de algodão e que até anzol e lagartixa foram encontrados dentro da comida, classificada como de “péssima qualidade” (A TARDE, 2005)
Seja também – e associado, já que lhe é normalmente anterior ao “barracão” –
a dívida contraída junto ao “gato”, como popularmente é conhecido o arregimentador
da mão de obra no meio rural. Isso se dá principalmente no processo de transporte
das turmas de trabalhadores ao local de trabalho, por vezes em municípios distantes
dos municípios originários dos trabalhadores. Nesse caso o gato lhes promete
trabalho e os leva às frentes sob a condição de que com o salário recebido na
empreitada assim arque com seus custos. O fato é que o salário por vezes é
insuficiente, quando de fato recebe, pois a dívida já contraída com o gato só tende a
aumentar pelo sistema do barracão.
7 Salário recebido por tarefa ou por peça é aquele recebido pela empreitada, ou por produção, diferentemente do salário mensal recebido pelo tempo de trabalho total.
26
Sobre o “gato” em particular é preciso algumas considerações. Esse surge da
própria relação do capital. O gato é como outro trabalhador qualquer, é o trabalhador
volante, por vezes a análise de sua trajetória é similar ao dos “peões”, “bóias-frias”, e
que se diferencia pela posse do veículo que transporta trabalhadores8. Em campo,
através das oficinas, puderam-se observar detalhes dessa relação. Na Comunidade
de Pedra Grande, município de Pindaí, no sudoeste da Bahia, o “gato” é de dentro
da Comunidade, amigo de todos e leva as turmas para o corte de cana em Teixeira
de Freitas, no Sul da Bahia. Na Comunidade Quilombola de Barra do Parateca, no
município de Carinhanha, sudoeste da Bahia, segundo uma moradora, “chega um
gato na Comunidade, de fora, arruma as pessoas e se precisar de 50 homens pra
levar ele leva”. Quando lhe foi perguntado quem é esse “gato” a mesma respondeu:
[...] depende... não é um só, sabe, vem de outra comunidade, chega lá e conversa... tem vários gatos, por cada serviço aparece um gato, cada lugar diferente aparece uma pessoa pra poder arrumar... aí ilude, fala que vai ter isso que vai ter aquilo, que vai ganhar muito dinheiro, chega lá não é nada daquilo (Depoimento de quilombola de Barra do Parateca, 2011).
No Município de Santana, no Oeste da Bahia, os “gatos” utilizam até a rádio da
cidade para fazerem as promessas de trabalho. A multiplicidade de situações
observadas em campo mostra a complexidade dessa relação.
O “gato” às vezes além de agenciador é motorista e ainda realiza o controle no
processo de trabalho. Maria Aparecida de Moraes e Silva em seu estudo sobre os
cortadores de cana do interior de São Paulo mostra que
[...] o surgimento do ‘gato’ deve ser entendido nos contextos da circulação da força de trabalho, da eficácia da lei9 como instrumento de negação do trabalhador e do mascaramento das relações entre patrões e empregados (SILVA, 1999, p. 114).
Em continuação, a autora apresenta como que, após as grandes greves, de
1984 e 1985, envolvendo os bóias-frias em São Paulo, as empresas têm
metamorfoseado a figura clássica do “gato” em empreiteiro contratado pela usina, e
até mesmo a metamorfose em firma agenciadora, sendo que “os papeis continuam
8 Sobre esse aspecto ver: Gomes, 2014. 9 Trata-se da lei 5889/1973 e da lei 6019/1978 que substituíram e modificaram o Estatuto do Trabalhador Rural de 1963, mas que manteve como traço característico desse a negação e o não reconhecimento do trabalhador volante, dos trabalhadores temporários da agricultura brasileira. Sobre esse aspecto ver: Gonzales; Bastos, 1977 e Silva, 1999.
27
os mesmos, com exceção do script, que agora está legalizado” (SILVA, 1999, p.
122)10. Marx ao comentar sobre o gangmaster, referência ao arregimentador da
força de trabalho – equivalente do nosso gato – na Inglaterra do século XIX, mostra
o quanto esse tem sua importância para a acumulação do capital, pois
[...] não há método mais engenhoso para manter seu pessoal de trabalho muito abaixo do nível normal e ainda ter sempre disponível, para todo trabalho extra, a mão-de-obra extra, para extrair com o mínimo de dinheiro o máximo de trabalho (MARX, 1996, p.323).
O fato é que a dívida contraída é importante no complexo que engendra as
condições para a imobilização da força de trabalho e sujeição às condições
degradantes. Às vezes, os fiscais públicos encontram a presença de vigilância
armada, porém o mais comum é o trabalhador manter-se ligado à fazenda por
preceito moral. Tal questão foi abordada pela antropóloga Neide Esterci, associando
tal dominação, aos moldes weberianos do conceito, aos padrões paternalistas de
relação (ESTERCI, 1994 e 1999).
De fato, por esses aspectos e natureza, a “escravidão” de nosso tempo carrega
diferenças significativas da escravidão propriamente dita que vigorou no Brasil, até
finais do século XIX. No regime escravocrata, o escravo entrava no processo
produtivo como equivalente do capital, como renda capitalizada. A renda, no sentido
marxiano do termo, é um tributo social que excede o lucro médio, que só pode existir
dado o monopólio privado dos meios de produção. Segundo análises de José de
Souza Martins, o funcionamento não-capitalista da relação capital, evidenciado pela
associação da renda, de origem pré-capitalista, ao capital, tornando-se renda
capitalizada, é parte fundamental do sistema escravista (MARTINS, 1980 e 2010). O
tributo pago pela fração da mais-valia ao comerciante de escravos pelo proprietário,
no processo de circulação, fazia com que o escravo não entrasse nem como capital
fixo, nem muito menos como capital variável, mas sim, dado o monopólio sobre o
trabalho, esse seria expressão da renda capitalizada.
No escravo as características étnico-raciais eram determinantes, eram
pressupostos invariáveis. No caso da escravização africana, o indivíduo era
comprado (sua compra dependia do tráfico negreiro) juntamente com seu trabalho, e
a propriedade jurídica de um homem sobre o outro legitimava essa dominação. No
10 Tramita no legislativo brasileiro, a partir da regulamentação da PEC 57/A, a proposta de transferir a responsabilidade da ocorrência para o gato em detrimento do proprietário do estabelecimento.
28
nosso tempo, a propriedade legal sobre os indivíduos não mais existe, e o homem
que entra na condição requalificada de “escravo” entra “respeitando” os princípios da
igualdade e da liberdade. Ele é juridicamente igual e livre em sua dupla
determinação, tanto pela liberação dele para com seus meios de (re)produção
social, quando pela liberdade de vender, ele mesmo, sua força de trabalho ao
mercado, ou seja, trata-se de uma força de trabalho livre para se submeter às
condições oferecidas pelos proprietários dos meios de produção. Esse estatuto de
liberdade é a base para que a servidão ao capital se opere de modo fetichizado,
oculto na consciência do trabalhador. Hoje, a mão de obra é sobremaneira mais
abundante, e como o proprietário não necessita da antecipação de fração da sua
mais-valia para aquisição da mão de obra, essa se torna descartável.
Contudo, por mais que as características raciais não sejam por elas mesmas
determinantes, há um profundo traço racial na escravidão contemporânea. Isso na
medida em que, com a Lei de Terras de 1850, por inaugurar a propriedade privada
da terra como mercadoria (aquisição não mais pela posse, mas pela compra)
inaugurou, como afirma Martins, o “cativeiro da terra”, pois “se no regime sesmarial,
o da terra livre, o trabalho tivera que ser cativo; num regime de trabalho livre a terra
tinha que ser cativa” (MARTINS, 2010, p. 47). O cativeiro da terra, lançando as
bases para a transição para o trabalho livre, representou o projeto histórico das
classes dominantes de negação da inserção do negro na sociedade brasileira pós-
abolição. A Lei de Terras criou a superpopulação relativa, sobrante, aos interesses e
necessidades da produção capitalista. “Aqui, a propriedade teve a função de forçar a
criação da oferta de trabalho livre e barata para a grande lavoura” (idem, p. 48). A
acumulação do capital que se seguiu completou a obra da Lei de Terras. Desse
modo, o processo histórico assegurou a continuidade da negação de direitos e a
continuidade do trabalho em condições sub-humanas e sob sub-valor, do período da
escravização propriamente dita aos dias de hoje, ainda que sua forma seja
substancialmente distinta.
Toda análise dessa realidade social, em especial as observadas nas
ocorrências para o resgate, aponta caminhos que levam à compreensão de que o
escravo aos quais se refere essa pesquisa é o trabalhador “livre” em sua forma
extremada de assalariamento e condições de trabalho. É o trabalhador rural
rebaixado ao mínimo do salário e que está sempre com um “pé no pântano do
pauperismo” (MARX, 1996, p. 272). A caderneta, o barracão, as dívidas contraídas
29
no transporte e durante o trabalho, as precárias condições de trabalho, o pistoleiro, o
trabalhador descartável, as doenças, são elementos importantes para a
metamorfose do típico trabalhador assalariado para o assalariado escravizado.
Escravizado, porque pauperizado, porque sem perspectivas e condições de
vida nos locais originais de residência, porque aprisionado pela simples necessidade
de garantir a sua reprodução material. Segundo trabalhadora do município de
Antônio Gonçalves (BA), quando em entrevista questionada sobre os motivos que a
levaram a sair da Bahia em busca de trabalho no corte de cana em Inhumas (GO),
respondeu que “quando se tá precisando de comer não se quer saber de onde vem
a comida” – mesmo se essa comida vier estragada e com “bichos”, como é freqüente
nos casos entendidos como “trabalho escravo” e como foi o caso dessa
trabalhadora.
Das pesquisas em campo, nas oficinas realizadas pelo GeografAR em parceria
com a CPT e a AATR, em alguns municípios baianos, verificou-se que o problema
da migração e consequentemente o problema do “trabalho escravo” encontra seus
fundamentos na estrutura e distribuição da propriedade da terra. É comum ouvir “se
eu tivesse um pedacinho de terra não precisava sair (...) deixar minha família,
acreditar na promessa dos gatos”, ou então “os pequenos produtores às vezes tem
terra, mas não tem estrutura, não dá para se manter, aí tem que migrar”. Assim, a
menção quanto ao problema agrário sempre surge nas falas dos sujeitos sociais.
Seja questão estrutural provocada pela concentração da propriedade fundiária e a
negação do acesso à terra (problema do qual decorrem os sem-terras e os
trabalhadores agrícolas volantes) ou mesmo pela regularização fundiária para
assegurar a continuidade da reprodução da vida nos territórios já ocupados por
famílias de trabalhadores. A precariedade das condições de reprodução social nos
locais de origem está na base do processo de sujeição ao trabalho assalariado
volante no campo, por vezes reduzido à condição análoga à escravidão. Outro
aspecto da estrutura fundiária altamente concentrada reside no fato de que para
muitas famílias lhes cabe a vida e trabalho em terras “residuais”, por assim dizer, de
baixa qualidade em termos de fertilidade natural e/ou acesso a água. Como
exemplo, o caso de um trabalhador que fugiu de uma carvoaria em Barreiras (BA),
que em depoimento diz, “lá em Serra do Ramalho onde a gente morava, não tinha
mais condições de viver. Primeiro a gente vendeu nossa terrinha seca e, depois
viemos para Barreiras procurar serviço” (A TARDE, 2009).
30
O “escravo” de nosso tempo é, portanto, o trabalhador subcontratado, sem
Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) – por vezes tendo “assinado”
contrato verbal –, que nem sequer sabe da existência dos seus direitos
conquistados, e que, quando trabalhando sob condições degradantes e/ou privado
do direito de ir e vir, é caracterizado enquanto tal. Os “escravos” contemporâneos,
conforme essa investigação tem apontado, é o trabalhador temporário, seja volante,
no sentido de ser um eterno errante – desterritorializado –, seja migrante ou mesmo
já do lugar. Em geral, por sua baixa escolaridade, apenas o trabalho agrícola
temporário aparece como oportunidade de renda, já que outros empregos
tipicamente urbanos sua força de trabalho não é assim adequada.
Sob um aspecto sociológico, e em termos de classes sociais, esse trabalhador
pode ser entendido enquanto um proletário rural ou não. E isso porque tal como nos
apresenta Garcia Júnior (1989) em seu importante livro sobre as estratégias de
reprodução camponesa e transformação social – que traz a reflexão tendo por base
análise das trajetórias de camponeses nordestinos que após o declínio da
dominação personalizada (morada) realizaram migração sazonal em busca de
trabalho – o trabalho temporário (ou a perenidade do temporário) agrícola não
necessariamente conduz à proletarização, mas sim à afirmação da condição de
camponês, sendo a venda temporária da sua força de trabalho papel complementar
na sua unidade econômica familiar campesina. O que não exclui o fato de que
grandes partes desses trabalhadores já se constituem enquanto autênticos
proletários rurais, que habitam as periferias das cidades no interior do Brasil e
realizam o trabalho na zona rural, nos empreendimentos agropecuários.
Outra característica relevante é que nas explorações em que sua força de
trabalho é exigida a forma-salário que comumente entra em cena é o salário por
peça (por produção, por tarefa). Afinal de contas, o salário por produção é a forma
mais adequada ao modo de produção capitalista, pois além de mascarar a relação
de exploração e promover o individualismo e concorrência de trabalhador versus
trabalhador, serve ao prolongamento do tempo de trabalho e rebaixamento do
salário. Exatamente essa foi a forma utilizada pelo capital no período de crescimento
da grande indústria na Inglaterra, no qual foi descrito por Marx (1996, p. 184-186).
Não é à toa que essa forma tem sido usada no setor da produção que passa pelo
seu período de crescimento e modernização: a agricultura capitalista, o agronegócio,
através da conquista de terras e elevação da produtividade e cuja regulação legal
31
ainda não impôs um definitivo limite ao capital, dada a sua sede pela apropriação de
mais-trabalho em escala sempre ampliada.
3.2. Espacialização e ocorrência do trabalho análogo ao escravo
Essa caracterização social do assim chamado “trabalho escravo”
contemporâneo carece de um aprofundamento muito mais amplo sobre os nexos
causais que forjam tal condição. Também, tanto sobre as situações envolvidas nos
casos de resgate, quanto nos motivos da migração e/ou sujeição a esse tipo de
trabalho, aprofundamento esse que extrapola os limites e objetivos dessa
monografia. Ainda assim, não se pode privar de apresentar, mesmo sumariamente,
um quadro explicativo acerca desse processo.
Por essa razão há uma dimensão que sob hipótese alguma pode ficar de fora,
que é a dimensão do espaço geográfico. A sociedade não pode prescindir do
território, portanto não pode ser explicada desprezando o espaço geográfico – o que
por vezes pode até acontecer com as demais ciências sociais. Nesse ponto, um dos
recursos que salta aos olhos quando se trata de inserir a dimensão do espaço na
análise é a espacialização, a cartografia do processo social.
No Brasil, as ocorrências já registradas a partir das ações do GEFM, estão
espalhadas por todo território nacional, conforme se observa no mapa (figura 2)
extraído da publicação do Atlas do trabalho escravo no Brasil, por Thiery et al
(2009). Até 2006, ano-base da fonte de dados desse mapa, somente em cinco
estados (Roraima, Amapá, Pernambuco, Alagoas e Sergipe) não houve resgates de
trabalhadores da condição análoga a escravidão. Atualmente, apenas os estados do
Amapá e Sergipe ainda não estão espacializados no mapa da escravidão
contemporânea, já que nos anos de 2008 e 2009 houveram uma série de
ocorrências envolvendo trabalhadores no corte de cana-de-açúcar em Alagoas e
Pernambuco.
32
Figura 2 – Mapa dos trabalhadores resgatados da con dição análoga à escrava no Brasil,
1995-2006
Fonte: THERY et al., 2009, p. 22
Embora espalhados por todo país, seja nas zonas urbanas, seja nas atividades
rurais, a observação desse mapa permite verificar que há uma concentração
espacial das ocorrências. Essas se localizam, sobretudo na região central do Brasil,
numa zona que envolve os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins
(especialmente na região conhecida como “bico do papagaio”), Oeste da Bahia,
Oeste do Maranhão e Sudeste do Pará. Essa região conhecida como MATOPIBA11
é também chamado de novo-nordeste, pois é pra lá que segue a expansão da
fronteira agrícola do país.
11 Expressão designada por compreender os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
33
Convém ressaltar que essas regiões e esses estados se destacam na
economia nacional como sendo de grande produção agropecuária, a produção nos
parâmetros do agronegócio, em especial a produção de grãos e oleaginosas, como
a soja (também com destaque secundário ao milho e também a produção de cana-
de-açúcar), assim como pela pecuária (como é mais o caso do Pará). Equivale
também a uma região em que comumente tem sido designada como sendo a
fronteira agrícola do Brasil, seja por parte da intelectualidade, seja também por parte
do Estado e setores empresariais. De certo modo, também coincide com o
famigerado “arco do desmatamento” que incide sobre “a última fronteira”12, na borda
da Amazônia Legal (Mato Grosso, Tocantins, Maranhão e Pará).
Quanto à origem desses trabalhadores, de acordo com o local de nascimento,
o mapa (figura 3) também do Atlas, mostra que os trabalhadores vêm de todo o
território nacional, mas com destaque especial ao estado do Maranhão, parte oeste
do Piauí, a região do “bico do papagaio” no Tocantins, o sudeste do Pará e aos
municípios do Nordeste brasileiro. Nesses que se evidencia como a migração é um
aspecto fortemente relacionado ao “trabalho escravo”, na medida em que estados
como Alagoas, Pernambuco, Paraíba, parte central da Bahia, não estão
representados enquanto locais de ocorrência desse crime, mas sim como sendo
responsáveis pela origem dos trabalhadores que se sujeitam às condições
degradantes de trabalho.
12 Expressão utilizada por Branford & Glock (1985) e também Foweraker (1981).
34
Figura 3 – Mapa da naturalidade dos trabalhadores r esgatados da condição análoga à escrava no Brasil, 1995-2006
Fonte: THERY et al., 2009, p. 22
Outra espacialização que permite apreender essa dimensão da migração
encontra-se também no Atlas do trabalho escravo no Brasil, e refere-se ao fluxo, à
mobilidade espacial do trabalho que fora registrado como estando em condições
análogas à escravidão (figura 4). O sentido do deslocamento se concentra sobretudo
do Maranhão ao Sudeste do Pará, Tocantins e Mato Grosso, também do próprio
Tocantins (“bico do papagaio”) para o Pará e da região do Nordeste do Brasil para
essas mesmas áreas de fronteira, Mato Grosso, Tocantins, Pará e Maranhão.
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Figura 4 – Mapa da origem e destino dos trabalhador es resgatados da condição análoga à escrava, Brasil, 1995 - 2006
Fonte: THERY et al., 2009, p. 26
As atividades que envolvem diretamente esses trabalhadores pode ser
observada a partir do gráfico 1, produzido por THERY et al (2009) e construído a
partir do Cadastro Nacional de Empregadores Infratores do MTE, conhecido como
“lista suja do trabalho escravo”, até o ano de 2007.
36
Gráfico 1 – Atividades de trabalho realizada pelos trabalhadores resgatados da condição análoga à escravidão, Brasil, 2007
Fonte: THERY et al., 2009, p. 37
Pode-se ver, portanto, que no Brasil, com 49%, o trabalho de manejo e
formação das propriedades voltadas à pecuária bovina – que inclui a abertura da
vegetação nativa para a formação de pastagens para criação de gado, na limpeza
do pasto (também, na região amazônica conhecido como “roço de juquira”), na
aplicação de agrotóxicos para o terreno ou então na construção de cercas – lidera
as ocorrências de trabalho escravo no Brasil, com concentração, sobretudo no
bioma da Amazônia13. Os ramos de atividades que se seguem com destaque de
ocorrências – respectivamente, desmatamento (19,1%), atividades ligadas à
carvoaria (12%), colheita/plantio (11%) e catação de raízes (5%) – estão por sua vez
relacionados entre si e também com a atividade da pecuária. Em bom número de
casos operam como em cadeia, integrantes do mesmo processo de expansão das
nossas fronteiras.
A atividade do desmatamento é a pioneira desse processo de expansão e
abertura de novas áreas para a atividade produtiva, seguido e associado muita das
vezes às carvoarias, uma vez que se utiliza da madeira subtraída do Cerrado e da
13 Ainda que sumariamente, vale lembrar que esse processo de expansão da fronteira é responsável pelos altos índices de desmatamentos do Cerrado brasileiro e da Floresta Amazônica, e tem ocasionado uma série de problemas ambientais, tais como a erosão, perda da biodiversidade, assoreamento e redução dos bens hídricos, entre outos.
37
Amazônia para a produção de carvão vegetal. O trabalho de catação de raízes está
também incluso no âmbito da preparação e limpeza do terreno, “amansar a terra”
para o seguinte uso e manejo agrícola. Em todas essas atividades “dizem respeito à
formação da fazenda, isto é, à transformação da natureza bruta em base de um
empreendimento econômico lucrativo, processo que na indústria nem é tão
dramático, nem tão demorado, nem tão extenso” (MARTINS, 2009, p. 81).
Dessa produção agrícola, que lhe é consequente, atuam no plantio e/ou
colheita trabalhadores envolvidos principalmente com as seguintes culturas: soja,
cana-de-açúcar, algodão, milho e café. Exceto no caso da cana-de-açúcar e do café
em que ainda hoje a colheita se dá principalmente manualmente, o trabalho escravo
na fronteira tem se dado fora do processo de trabalho permanente da produção
propriamente capitalista, haja vista sua mecanização. Assim,
[...] o que a peonagem tem promovido na frente pioneira, desde pelo menos a expansão dos cafezais brasileiros para o oeste de São Paulo, no século XIX, é a produção de fazendas e não, fundamentalmente, a produção de mercadorias, nas fazendas, para o mercado de consumo; isto é, a peonagem tem produzido, sobretudo nos casos recentes, os meios de produção a serem utilizados pelo capitalista na produção de mercadorias (MARTINS, 2009, p. 82-83).
Esses trabalhadores estão, portanto, historicamente lidando de forma direta
com a fase inicial do processo produtivo, em atividades que remetem à abertura e
incorporação de novas áreas e sua conseqüente utilização produtiva, ao que se tem
atribuído enquanto processo de expansão da fronteira no Brasil. É a discussão que
se segue no capítulo seguinte.
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4. UMA FRONTEIRA EM MOVIMENTO: ABORDAGENS SOBRE A D INÂMICA
DA FRENTE DE EXPANSÃO E DA FRENTE PIONEIRA
Antes de tudo é importante tornar claro que a fronteira pode ser –
diferentemente de seu significado imediato e mais difundido –, mais do que um limite
político-administrativo, embasado juridicamente, que separa e demarca territórios
nacionais, unidades da federação, estados, municípios, entre outros. A fronteira é
um “processo particular de produção do espaço geográfico que implica encontro
entre territorialidades e temporalidades distintas e conflitantes” (SILVA, 2006, p.289).
Portanto, como sugere Reboratti (1990), diferentemente das fronteiras políticas que
resultam da concreção territorial do Estado, a fronteira a ser aqui estudada,
[...] é uma área de transição entre o território utilizado e povoado por uma sociedade e outro que, em um momento particular de desenvolvimento dessa sociedade e sob seu ponto de vista, não foi ocupado de forma estável, embora possa ter sido utilizado esporadicamente (REBORATTI, 1990, p. 4 da versão online, tradução livre).
Nesse aspecto, ainda segundo esse autor, essa concepção de fronteira tem
forte característica de etnocentrismo, pois normalmente aparece como separação
entre nós (a civilização, o ecúmeno) e eles (os outros, os não civilizados, os
bárbaros). Seguindo essa linha de raciocínio poderíamos pensar que a fronteira
“divide a terra já ocupada (utilizada, explorada, valorizada) de outra terra
potencialmente ocupável, que em geral poderia chamar de ‘terra nova’ – claro, nova
para nós que estamos desse lado da fronteira” (REBORATTI, 1990, p. 8 da versão
online, tradução livre).
A popularidade desse sentido para o termo vem com o historiador Frederick
Jacson Turner que, em 1893, publicou suas teses sobre o significado da fronteira na
formação da sociedade e do indivíduo norte-americano. A fronteira para Turner
“passou a significar o limite da zona povoada (...) uma zona mais ou menos larga
que se intercala entre a mata virgem e a região civilizada” (WAIBEL, 1955, p. 390).
Mais que isso, a fronteira foi responsável dentre outras coisas, pela morte do
localismo, pela formação do individualismo norte-americano e de uma nacionalidade
compósita, pelo surgimento da democracia (baseado numa abundância de terras
livres) e das instituições políticas (VELHO, 1976). Na verdade as teses de Turner
além de serem transculturais e transhistóricas erraram justamente por analisar
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somente a influência da fronteira na sociedade, não também o contrário, o que a
sociedade provoca na fronteira (LATTIMORE apud VELHO, 1976, p. 20). O fato é
que, em certa medida, influenciados por Turner (Gilberto Freyre, Sergio Buarque de
Holanda, Cassiano Ricardo) ou não, a fronteira passou a expressar essa zona, por
vezes reconhecida como de expansão da civilização, como fronteira econômica ou
até mesmo expansão do capitalismo.
4.1. A FRONTEIRA E AS DESIGNAÇÕES DE FRENTE DE EXPANSÃO E FRENTE PIONEIRA
A fronteira é “um espaço que oferece condições para a expansão das
atividades econômicas antes ausentes, ou presentes em escala menor” (SAWYER,
1984, p. 5). Nesse sentido, observa-se que a definição de fronteira está ligada a uma
potencialidade. Existe também outra diferenciação conceitual igualmente relevante,
a diferença entre fronteira e frentes. Enquanto que a fronteira se constitui enquanto
um espaço cujas tendências apontam para a ocupação potencial através da
expansão da sociedade nacional, as frentes, “são surtos concretos e multifacetados
de atividade, que se desenvolvem dentro do espaço mais abstrato e mais geral que
se constitui a fronteira” (MUELLER, 1983, 624). Partindo dessa compreensão,
Sawyer sintetiza que as frentes “são um conjunto de atividades – uma combinação
concreta de forças produtivas e relações de produção – que se introduz numa área
de fronteira” (SAWYER, 1984, p.6). Mas qual a natureza dessas frentes?
MARTINS (2009) trabalha essa questão a partir de duas concepções e
designações de referência para as atividades concretas na fronteira: a dos
geógrafos e a dos antropólogos, respectivamente, zona ou frente pioneira e frente
de expansão. Nessa última, justamente pelo ponto de vista da antropologia estar
focado no índio que se vê ameaçado pelo choque com os brancos, a frente de
expansão, usada inicialmente por Darcy Ribeiro não possui nada de específico e
definido, tanto pode ser uma “frente camponesa” (SAWYER, 1984, p.18), “fronteira
da civilização”, deslocamento da população, enfim, “frentes de expansão da
sociedade brasileira” (VELHO, 1972, p. 1). Aqui, na abordagem antropológica – que
cunhou e deu sentido ao termo frente de expansão – estava muito presente a noção
de “fricção interétnica”, de Roberto Cardoso de Oliveira.
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Sob outra perspectiva, a dos geógrafos, na qual tiveram como precursores e
representantes maiores sobre essa concepção Pierre Mombeig (1952) e Leo Waibel
(1955), – dado o olhar dirigido da geografia “tradicional” – com a designação de
frente pioneira, mal viam os índios e os conflitos nesse processo. Ainda segundo
Martins (2009), a ênfase original “estava no reconhecimento das mudanças radicais
na paisagem pela construção das ferrovias, das cidades, pela difusão da agricultura
comercial em grande escala” (MARTINS, 2009, p. 135). Nessa concepção está
sempre presente a produção do novo, o caráter dinâmico dos mercados, a criação
“de novos e mais elevados padrões de vida” e “também, melhoramentos no campo
da técnica e mesmo na vida espiritual” (WAIBEL, 1955, p. 391).
O importante nessa análise que Martins faz a partir dessas duas concepções é
o reconhecimento de que essa diferença representa a própria diversidade histórico-
espacial da fronteira. Pois,
[...] o desencontro de perspectivas é, nesse caso, essencialmente expressão da contraditória diversidade da fronteira, mais do que produto da diversidade de pontos de vista sobre a fronteira. Diversidade que é, sobretudo, diversidade de relações sociais marcadas por tempos históricos diversos e, ao mesmo tempo, contemporâneos (MARTINS, 1996, p. 30).
Levando em consideração a distinção feita por Neiva (1949), Martins propõe
ainda uma datação histórica da fronteira, baseado na não coincidência entre a
fronteira demográfica – que em geral no Brasil é temporalmente anterior, ocupa a
fronteira num primeiro momento na história, logo, se move antes – e a fronteira
econômica, na qual são os agentes da produção capitalista (contendo elementos do
moderno, da inovação, do racional, do urbano) os responsáveis (MARTINS, 2009).
Ou seja, por detrás dessas duas concepções de referência se escondem dois
momentos distintos da ocupação das fronteiras. A frente de expansão de
camponeses e pobres residualmente vinculadas ao mercado, no qual os
antropólogos se referem, geralmente diz respeito a essa fronteira demográfica,
sendo que, quando os geógrafos falam de frente pioneira “estavam falando de uma
das faces da reprodução ampliada do capital: a sua reprodução extensiva e
territorial, essencialmente mediante a conversão da terra em mercadoria e, portanto,
em renda capitalizada” (MARTINS, 2009, p. 30), pois trata-se justamente dessa
fronteira econômica que se
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[...] instaura como empreendimento econômico: empresas imobiliárias, ferroviárias, comerciais, bancárias, etc., loteiam terras, transportam mercadorias, compram e vendem, financiam a produção e o comércio. Passa-se, assim, da produção do excedente para a produção da mercadoria (MARTINS, 1975, p.47).
A frente de expansão foi a forma de ocupação do território brasileiro, do
“interior”, durante longo período da história, ou seja, desde o século XVI e XVII, no
período colonial. Entretanto, sua predominância em relação à forma de produção do
espaço na fronteira
[...] começou a declinar com a chamada Marcha para Oeste, em 1943, e a intervenção direta do Estado para acelerar o deslocamento dos típicos agentes da frente pioneira sobre territórios novos, em geral já ocupados por aqueles que haviam se deslocado com a frente de expansão (MARTINS, 2009, p. 151).
Os sujeitos sociais da frente de expansão, não são, portanto, os tipicamente
capitalistas, tratam-se de populações tanto ricas quanto pobres, ou seja, tanto de
latifundiários (em sua “forma clássica”14), quanto de camponeses residuais ou
camponeses agregados ao sistema do latifúndio (em que aqui as formas de
dominação personalizada são característicos: coronelismo, clientelismo, dívidas,
coação). Fundamentalmente, a frente de expansão, segundo Velho (1972 e 1973), é
o lócus da reprodução do campesinato marginal. Nessa modalidade de povoamento
do território, cuja expansão lenta é regulada “em consequência das características
próprias da agricultura de roça” (MARTINS, 2009, p. 149), o deslocamento se dava e
se dá “com base nos direitos assegurados pelo regime sesmarial” (MARTINS, 2009,
p. 152), ou seja, com base no critério da posse associada à utilização produtiva, em
que mesmo com a instauração do novo regime de propriedade (a Lei de Terras de
1850) continuou existindo nos confins das fronteiras interiores do país. Tal como
Martins (1996) sintetiza,
[...] Essa [frente de] expansão é essencialmente expansão de uma rede de trocas e de comércio, de que quase sempre o dinheiro está ausente, sendo mera referência nominal arbitrada por quem tem o poder pessoal e o controle dos recursos materiais na sua relação com os que explora, índios ou camponeses. O mercado opera, através dos comerciantes dos
14 O destaque em cima da “forma clássica” do latifúndio se dá pelo fato de que o capital, através da conversão da renda da terra em renda capitalizada, ressiginifica a classe dos latifundiários ao promover a associação entre a propriedade fundiária e o capital – o que é muito comum hoje –, aglutinando por vezes numa mesma personificação essas formas de repartição do excedente e classes sociais.
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povoados, com critérios monopolísticos, mediados quase sempre por violentas relações de dominação pessoal, tanto na comercialização dos produtos quanto nas relações de trabalho (sendo aí característica a peonagem ou escravidão por dívida). Portanto, muito longe do que tanto Marx quando Weber poderiam definir como capitalista. (MARTINS, 1996, p. 30-31).
A análise de Martins (2009) busca apreender relevância sociológica, da
caracterização sociológica da fronteira. Nessa relevância ele destaca a situação de
conflito social – já identificada por Goldfrey, Jean Hébette, entre outros –, conflito do
qual faz da fronteira se apresentar também como lugar da alteridade, lugar de
descoberta do outro e de desencontro, o desencontro contemporâneo de
temporalidades históricas diversas, entre grupos sociais situados diversamente no
tempo da história. Seja entre “brancos” e “índios” (mais próximo da designação de
frente de expansão), seja entre o latifúndio e/ou empresa rural capitalista contra o
campesinato (tal como se apresenta no caso da frente pioneira). Concretamente,
esses distintos grupos sociais expressam também o terreno da luta de classes, o
palco da luta entre frações da sociedade, entre camponeses, trabalhadores rurais,
latifundiários, capitalistas, e também o pr