Upload
vanque
View
244
Download
3
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS GRADUAO EM HISTRIA
TNIA MARIA PINTO DE SANTANA
CHARITAS ET MISERICORDIA:
AS DOAES TESTAMENTRIAS EM CACHOEIRA NO SCULO
XVIII
Salvador
2016
TNIA MARIA PINTO DE SANTANA
CHARITAS ET MISERICORDIA:
AS DOAES TESTAMENTRIAS EM CACHOEIRA NO SCULO
XVIII
Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Ps-graduao em Histria da Faculdade de
Filosofia e Cincias Humanas da Universidade
Federal da Bahia como requisito parcial para
obteno de ttulo de Doutor em Histria.
Orientador: Dr. Evergton Sales Souza
Coorientadora: Dra. Maria Antnia Lopes
Salvador
2016
S231c Santana, Tnia Maria Pinto de
Charitas et misericordia: as doaes testamentrias em Cachoeira no sculo XVIII / Tnia Maria Pinto de Santana. Salvador/BA: Universidade Federal da Bahia / Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2016.
307p.
Orientador: Dr. Evergton Sales Sousa
Coorientadora: Dra. Maria Antnia Lopes
Tese (Doutorado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade Filosofia e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Histria, 2016.
1. Histria do Brasil (perodo colonial) 2. Histria da Bahia (Recncavo) 3. Igreja - Estado Moderno 4. Testamentos Sculo XVIII 5. Religiosidade 6. Caridade I. Sousa, Evergton Sales. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.
CDD 981.03
Ficha Catalogrfica elaborada por: Ivete Castro CRB/1073
TNIA MARIA PINTO DE SANTANA
CHARITAS ET MISERICORDIA:
AS DOAES TESTAMENTRIAS EM CACHOEIRA NO SCULO
XVIII
Tese apresentada como requisito parcial para obteno de ttulo de doutor em Histria Social pela Universidade Federal da Bahia. Salvador, __/__/2016
Banca Examinadora
_______________________________________________ Renato Jnio Franco
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________________ Fabrcio Lyrio dos Santos
Universidade Federal do Recncavo da Bahia
_______________________________________________ Cndido da Costa e Silva
Universidade Catlica do Salvador
_______________________________________________ Maria Antnia Lopes - Coorientadora
Universidade de Coimbra
___________________________________________
Evergton Sales Souza - Orientador Universidade Federal da Bahia
A Marlia, minha filha querida
A Marcus, com quem muito tenho aprendido
6
AGRADECIMENTOS
A redao de uma tese resulta de um trabalho que , ao mesmo tempo, solitrio e
coletivo. Assumindo a total responsabilidade pelas falhas nela contidas, expresso aqui o meu
reconhecimento por toda a colaborao recebida.
A CAPES agradeo o financiamento parcial da pesquisa atravs da concesso da bolsa
de estgio de pesquisa, entre novembro de 2014 e fevereiro de 2015, em Portugal (PDDE), e
da bolsa Pro-doutoral, intermediada pela Universidade Federal do Recncavo da Bahia
(UFRB) instituio a qual sou vinculada como docente -, iniciada em novembro de 2015.
A UFRB agradeo pela liberao das atividades docentes durante o doutorado. Aos
estudantes e professores do Curso de Licenciatura em Histria, agradeo pelo importante
apoio e motivao, fundamental para o ingresso no doutorado. Entre os estudantes, em
especial, a Antonildo Santos, Josiane Rocha e Cristiane Nascimento. Entre os professores, a
Denis Correa por me substituir ao longo destes anos. A Fabrcio Lyrio pela amizade,
motivao e apoio constantes, e a generosidade com que auxiliou o levantamento de fontes
portuguesas. A Marco Antnio Nunes agradeo pelo igual auxlio dado pesquisa e pela sua
prestatividade e amizade.
A minhas amigas Mrcia Gabriela Barreto, Meire Reis e Graciela Rodrigues agradeo
pelo estmulo seleo para o doutorado, e pela leitura criteriosa da primeira verso do
projeto de pesquisa. A Graciela agradeo a escuta atenta, as indicaes e sugestes feitas ao
longo da redao deste trabalho. A Mrcia Gabriela, amiga sempre presente, agradeo a
escuta generosa de todos os meus temores, as sugestes e o dilogo constante, to importante
nos momentos mais decisivos deste projeto. Esta amizade, to especial, tem sido um presente
para mim. Agradeo aos amigos de Cachoeira, Jernima, e a sua famlia, assim como Suzane
Pinho e Ivete Castro, a motivao que me renovava sempre. A Ivete Castro tambm agradeo
pela elaborao da ficha catalogrfica. A Eduardo Borges agradeo as sugestes, estmulo e
amizade. Estmulo e amizade que sempre encontrei na professora Elizete da Silva. Minha
gratido Edileuza e a Lus Carlos, casal que me apoiou cotidianamente em minhas
demandas domsticas.
Agradeo as sugestes das professoras do Programa de Ps-Graduao em Histria, da
UFBA, Lgia Bellini e a Gabriela Sampaio, assim como as pesquisadoras Guida Marques e
Giussepina Raggi, docentes das disciplinas e cursos que frequentei durante o doutorado. A
7
Lgia Bellini agradeo tambm a confiana e o estmulo, recebidos desde os tempos de
graduao. Agradeo o apoio dos colegas da turma do doutorado, em especial a Patrcia Mota,
Lvia Carvalho e a Mrcia Gabriela. Aos colegas do grupo de estudo sobre o mundo
portugus moderno agradeo os momentos de trocas e apoio mtuo, em especial a Luciana
Onety, Naira Mota, Emily Machado, rica Lopo, Ediana Mendes, Moreno Pacheco e Ana
Paula Medicci. A Ana Paula agradeo as valiosas indicaes bibliogrficas. Aos responsveis
pelo Projeto American, European, and African forging of a colonial capital city (Bahia 16-
19), em especial ao meu orientador, agradeo por me proporcionar ricas experincias de troca
e aprendizado.
Aos profissionais das instituies onde desenvolvi a pesquisa agradeo o prestativo
atendimento: Arquivo da Santa Casa da Misericrdia da Bahia, Arquivo Pblico do Estado da
Bahia, Arquivo Pblico Municipal de Salvador, Arquivo Pblico Municipal de Cachoeira,
Memorial da Santa Casa da Misericrdia de Cachoeira, Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, Arquivo da Universidade de Coimbra, Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
Arquivo Histrico Ultramarino, Biblioteca do Palcio da Ajuda e Biblioteca Nacional de
Portugal. Agradeo, em especial, aos profissionais dos dois arquivos onde pesquisei os
inventrios post mortem e testamentos de Cachoeira, pelo empenho na disponibilizao destes
documentos. No Arquivo Pblico do Estado da Bahia, agradeo a Luiz Pedro Rosrio, Elza
Miranda e Reinaldo de Souza, assim como aos profissionais do Setor Judicirio, to
prestativos em atender as minhas constantes demandas. No Arquivo Pblico Municipal de
Cachoeira, a D. Anglica, D. Elizabete, D. Rita, D. Jaci e a Fernando que to gentilmente me
atenderam sempre. Ao ento Secretrio de Cultura de Cachoeira, Jos Luiz Anunciao
Bernardo, agradeo a permisso para o registro fotogrfico destes documentos. A Cristiane
Nascimento agradeo pelo auxlio pesquisa no Arquivo Municipal de Cachoeira, e a Marta
Alves a digitao de algumas transcries ainda manuscritas. A Ana Paula de Albuquerque
agradeo pela disponibilizao de fontes, bibliografia e da sua dissertao de mestrado,
quando ainda em fase de reviso. A Robson Guimares pelo atencioso trabalho de adaptao
do mapa da regio pesquisada, que utilizo neste trabalho.
Agradeo as pessoas que me auxiliaram durante o estgio em Portugal. A Mafalda
Pinho Almeida e a Nazar Varela, e as suas respectivas famlias, pelo acolhimento e amizade
que dispensaram a mim e a minha filha, to importantes ao longo da nossa estadia. As
professoras Maria de Lourdes Rosa e Hermnia Vilar pela disponibilizao de bibliografias. A
8
Mrcia Gabriela, rica Lopo, Marco Antnio, Miguel Seixas, Fabricio Lyrio, Srgio Guerra
Filho e a Eduardo Borges as orientaes que facilitaram a nossa rotina em Portugal.
Agradeo ao professor Cndido da Costa e Silva pela sua valiosa amizade e pela sua,
igualmente valiosa, contribuio a este trabalho atravs das leituras, indicaes e
participao na banca de qualificao e de defesa. Apoio, sempre fundamental, desde os
tempos da minha graduao. A sua esposa, Conceio agradeo pela amizade e pelas palavras
de nimo e estmulo.
A professora Maria Antnia Lopes, minha orientadora durante o estgio em Portugal,
agradeo pela sua significativa contribuio tese. Sua gentil acolhida em Coimbra, assim
como as valiosas orientaes, dilogo e indicao de fontes e bibliografia foram fundamentais
para este trabalho. Registro tambm a minha gratido pela forma generosa e cordial como
aceitou prolongar esta experincia fazendo a leitura atenta dos captulos desta tese, na medida
em que iam sendo redigidos, e participando da minha banca de qualificao e de defesa.
Ao professor Evergton Sales, meu orientador, no tenho palavras para agradecer a
forma competente e generosa como desempenhou esta tarefa. Crtico e extremamente
competente, foi atento e rigoroso leitor desta tese. Cordial, esteve sempre disposto a ouvir e a
discutir as possibilidades que se apresentavam ao longo da pesquisa. Generoso, disponibilizou
importantes fontes e bibliografias. Agradeo acima de tudo a confiana e a motivao,
fundamentais para o avano deste trabalho.
Ao meu pai agradeo pela sua influncia e apoio, decisivos para a minha opo pela
carreira acadmica. Meu pai um autodidata, amante dos livros, seu exemplo inspirou o meu
gosto pela leitura. A minha me agradeo pela sua tenacidade e coragem, servindo-me de
exemplo, para enfrentar os desafios da pesquisa. Aos meus irmos Elizabete, Sandra, Carlos e
Jos e tambm os seus filhos e cnjuges pelo apoio e companheirismo sem igual.
Agradeo, em especial, aos meus cunhados Walter, Arilzia e Marta com os quais tenho
compartilhado muitos momentos de alegrias. As minhas meias-irms Vera e Ana, assim como
as suas famlias, agradeo o estmulo constante. Minha irm Elizabete colaborou de forma
significativa neste trabalho e eu tenho muito para lhe agradecer. A sua participao como
estatstica, na concepo do banco de dados e na elaborao das tabelas e grficos da tese, foi
fundamental. Acima de tudo, agradeo pela sua imensa amizade, disponibilidade e apoio.
9
Agradeo a Marcus com quem compartilhei todos os dias desta caminhada, assim
como as minhas ideias, angstias e medos. Recebi seu apoio constante, mesmo quando isto
implicou a renncia ou protelao de seus projetos pessoais. Apoio que me ajudou a
prosseguir. Agradeo a Marlia, minha filha querida e muito amada, que inunda a minha vida
de alegria todos os dias, a compreenso e interesse que sempre demonstrou, mesmo quando a
tese lhe roubou a minha presena. Agradeo a sua participao durante a pesquisa
iconogrfica nas igrejas e museus portugueses, me auxiliando no registro fotogrfico onde isto
foi possvel, demonstrando uma curiosidade e espirito colaborativo incomum para a sua idade.
A Marcus e a Marlia dedico este trabalho, sem o amor e o apoio de ambos teria sido mais
difcil conclu-lo.
Por fim, agradeo a v Maria pelos momentos de prosas memorveis, cheios de
lembranas, afeto e sabedoria. A redao da tese me trouxe ricas experincias de crescimento
e aprendizado, mas lamento que em funo dela eu tenha deixado de vivenciar outros
igualmente importantes, acreditando que poderia retom-los ao final deste trabalho. A morte
de v Maria, rpida e inesperada, me chamou a ateno para o poder da morte e das partidas...
no h o que retomar depois delas. Registro aqui o meu agradecimento por todo o bem que a
sua presena trouxe minha vida.
10
RESUMO
Esta tese estuda a influncia dos princpios da caridade e das obras de misericrdia,
disseminados pela Igreja, nas doaes testamentrias dos moradores da vila de Cachoeira e
seus termos, ao longo do sculo XVIII. O seu fio norteador , do ponto de vista macro, o que
aqui denominamos de uma pedagogia crist da caridade disseminada em todo Ocidente
catlico e, do ponto de vista micro, a vivncia das prticas e crenas construdas em torno
da caridade em Cachoeira, analisando as regras prescritas pela religio e o uso que os sujeitos
dela fizeram em suas escolhas cotidianas. No estudo dos testamentos, atentamos para a anlise
dos legados e esmolas neles determinados, buscando compreender a relao entre estes atos e
a busca pela salvao da alma, tendo em vista o carter religioso assumido por tais
documentos, legitimado pelo direito cannico e civil. As doaes determinadas pelos
testadores, as suas escolhas, assim como o efetivo cumprimento das suas ltimas vontades
dependeram de forma significativa das relaes sociais, polticas e econmicas estabelecidas
na comunidade local na qual estavam inseridos. Em funo disto, buscamos compreender a
influncia da escravido, das relaes sociais e interpessoais, e da parquia, em torno da qual
se organizou a vida comunitria na sociedade colonial, sobre as escolhas dos testadores, e o
papel que exerceram na rede de transformaes dos seus bens materiais em benefcios
espirituais em favor da sua alma. Entretanto, ao longo deste sculo, especialmente na sua
segunda metade, transformaes significativas afetaram as relaes entre o Estado Portugus
e a Igreja. Nesse contexto, a legislao testamentria sofreu significativas alteraes, que
visaram ampliao do direito dos herdeiros e limitao da destinao de bens para a alma
do testador. A tese analisa o impacto destas transformaes na distribuio de esmolas e
legados nos testamentos de Cachoeira e na prtica religiosa dos testadores.
PALAVRAS CHAVES: Religio Caridade Testamentos Sculo XVIII
11
ABSTRACT
This thesis studies the influence of the principles of charity and works of mercy, disseminated
by the Church, in the testament donations of the residents in Vila of Cachoeira and its terms,
during the eighteenth century. Its guiding thread is, in the macro point of view, what we call
here a Christian pedagogy of charity - spread throughout the Catholic West - and the micro
point of view, the experience of the practices and beliefs built around charity in Cachoeira
analyzing the rules prescribed by religion and the use that the subject did in their daily
choices. In the study of the testaments, we dedicated to the analysis of the legacy and alms
determined by the bequests, seeking to understand the relationship between these acts and the
search for the salvation of the soul, in view of the religious character assumed by such
documents, legitimized by canon and civil law. The donations determinated by the testators,
their choices, as well as the effective fulfillment of their last wishes depended significantly on
social, political and economic relationship established in the local community in which they
were inserted. Because of this, we seek to understand the impact of slavery in social and
interpersonal relationships, and the influence of the parish, which is around it, community life
in the colonial society was organized on the choices of the Cachoeira testators, and the role
played in network transformation of their material goods into spiritual benefits in favor of his
soul. However, throughout this century, especially in its second half, significant changes have
affected the relationship between the Portuguese State and the Church. In this context, the
testamentary legislation has undergone significant changes, which were aimed at expanding
the rights of heirs and the limitation of the destination of goods for the soul of the testator.
The thesis analyzes the impact of these changes in the distribution of alms and legacies in
testaments in Cachoeira and the religious practice of the testators.
KEYWORDS: Religion Charity Wills 18th century
12
ABREVIATURAS
APMC Arquivo Pblico Municipal de Cachoeira
APEB Arquivo Pblico do Estado da Bahia (Salvador)
ASCMB Arquivo da Santa Casa da Misericrdia da Bahia
ASCMC Arquivo da Santa Casa da Misericrdia de Cachoeira
IPAC Instituto do Patrimnio Artstico e Cultural da Bahia
BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
AHU Arquivo Histrico Ultramarino (Lisboa)
ANTT Arquivo Nacional Torre do Tombo (Lisboa)
AUC Arquivo da Universidade de Coimbra
BNL Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa)
13
Sumrio
Agradecimentos ................................................................................................................................. 6
Resumo.............................................................................................................................................10
Abstract ............................................................................................................................................11
Abreviaturas .....................................................................................................................................12
INTRODUO ................................................................................................................................16
A pesquisa e suas fontes ................................................................................................................20
Estrutura da tese ............................................................................................................................21
CAPTULO I ....................................................................................................................................26
PELO AMOR DE DEUS E DOS HOMENS: CARIDADE E SALVAO EM CACHOEIRA NO SCULO XVIII ................................................................................................................................26
A doao testamentria .................................................................................................................26
A pedagogia da caridade crist ......................................................................................................43
A comunidade paroquial ...............................................................................................................57
CAPTULO II ...................................................................................................................................83
A PARTILHA DOS BENS: MOTIVAES E INTERESSES DOS TESTADORES .......................83
A manifestao das ltimas vontades.............................................................................................83
As disposies pias .......................................................................................................................89
A redao do testamento sob a gide da Igreja e do Estado Portugus .......................................... 100
A produo econmica, o cotidiano rural e os vnculos sociais dos testadores .............................. 122
CAPTULO III ............................................................................................................................... 150
AS OBRAS DE MISERICRDIA NO CONTEXTO DAS DOAES TESTAMENTRIAS ....... 150
As doaes destinadas aos mais prximos ................................................................................... 153
As doaes para os pobres ........................................................................................................... 165
As alforrias de escravos ............................................................................................................... 175
As doaes para mulheres e crianas ........................................................................................... 193
CAPTULO IV ............................................................................................................................... 211
A PEDAGOGIA DA CARIDADE E O HOSPITAL DE SO JOO DE DEUS DA VILA DA CACHOEIRA ................................................................................................................................. 211
Antnio Machado e o hospital de caridade................................................................................... 211
Visitao pastoral: conflitos entre o arcebispo e o prior do hospital .............................................. 238
Um administrador leigo no hospital ............................................................................................. 248
O Hospital de So Joo de Deus da vila da Cachoeira .............................................................. 266
CONCLUSO ................................................................................................................................ 271
FONTES ......................................................................................................................................... 274
Manuscritas................................................................................................................................. 274
Impressas .................................................................................................................................... 276
Referncias bibliogrficas ............................................................................................................... 285
14
Referncias das imagens ................................................................................................................. 298
ndice de ilustraes ........................................................................................................................ 301
ndice de tabelas, grficos e mapa ................................................................................................... 302
APNDICE I .................................................................................................................................. 304
APNDICE II ................................................................................................................................. 307
15
NOTA PRVIA
Os documentos originais manuscritos e impressos dos sculos XVI ao XVIII foram transcritos
sem nenhuma alterao quanto ortografia, pontuao e acentuao grfica. Conservamos a
grafia original sem desdobramento das abreviaturas. Foram separadas as palavras grafadas
unidas indevidamente e foram unidas as slabas ou letras grafadas separadamente, mas de
forma indevida. As palavras e partes de palavras ilegveis ou inteligveis foram assinaladas
entre colchetes.
16
INTRODUO ______________________________________________________________________
Esta tese analisa a influncia dos princpios da caridade e das obras de misericrdia,
disseminados pela Igreja catlica no Ocidente cristo, sobre as doaes testamentrias feitas
pelos moradores da vila de Cachoeira e de seus termos, ao longo do sculo XVIII. Os
princpios da caridade e da misericrdia esto includos num conjunto de crenas e prticas,
que foram amplamente divulgadas entre os fiis no Ocidente cristo1. O uso do testamento
enquanto instrumento religioso, destinado salvao da alma dos sujeitos, foi outra prtica
igualmente disseminada entre os fiis catlicos. Pretendemos investigar a importncia da
instrumentalizao religiosa do testamento em Cachoeira, buscando compreender a influncia
da doutrina da caridade sobre a prtica das doaes nestes verificadas.
Vrias questes nortearam esta pesquisa, mas a que mais fortemente se fez presente foi:
quais motivaes levaram as pessoas a destinar parte dos seus bens, no a seus herdeiros
legtimos, mas a outros sujeitos, como seus escravos e afilhados? A prtica da concesso de
alforrias gratuitas ou onerosas, ou de deixar dinheiro para o dote ou como esmola para os
afilhados, parentes distantes e pobres desconhecidos do doador, aparece com maior frequncia
do que presumimos inicialmente, o que incitou procura de caminhos que pudessem nos
ajudar a compreend-la. Na busca por respostas para tais indagaes recorremos a uma
abordagem que privilegia a religio em sua anlise, na medida em que parte do princpio de
que a Igreja legitima comportamentos e relaes encontradas entre os testadores, pois constri
e propaga as crenas observadas entre estes. Concentramos nossa anlise no sculo XVIII,
perodo significativo para a compreenso das permanncias e mudanas verificadas em tais
prticas na regio que ser objeto de estudo. No sculo XVIII, verificamos uma participao 1 A Igreja Catlica fundamentou a prtica das obras de misericrdia a partir do texto bblico de Mateus 25: 31-46. A doutrina crist medieval prope a partir deste texto um conjunto de 14 obras de misericrdia propostas para a prtica dos cristos salvos: sete espirituais e sete corporais. Entre as espirituais temos: ensinar aos simples, dar bons conselhos, castigar com caridade os que erram, consolar os tristes, sofrer as injrias com pacincia, perdoar a quem errou, rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos. Entre as corporais destacamos: alimentar e saciar a sede dos famintos, vestir o que estiver nu, cuidar dos enfermos, dar hospedagem aos estrangeiros, visitar e cuidar dos presos, providenciar os funerais dos cristos pobres. Assistir aos pobres, atravs das obras de misericrdias, este era o objetivo principal da caridade crist, desenvolvida atravs da doutrina das Beatitudes. Segundo Anita Guerreau-Jalabert, Santo Agostinho teria sido o responsvel pela insero da ideia das formas de misericrdia, assim como do perdo e da prece enquanto obras de misericrdia de natureza espiritual. Ver GUERREAU-JALABERT, Anita. Caritas y don en la sociedade medieval occidental. In: Hispania, LX/1, n 24 (2000), p. 51.
17
mais efetiva dos leigos nas comunidades paroquiais de Cachoeira, o que remete influncia
da Igreja sobre tais sujeitos. Por outro lado, o sculo XVIII, especialmente em sua segunda
metade, foi um perodo marcado por significativas transformaes nas relaes entre a Igreja
e o Estado em Portugal. Tais transformaes afetaram as comunidades que compunham o
Imprio Portugus de diferentes formas. Nesta tese analisaremos como as mudanas afetaram
o direito de testar e os seus impactos sobre as doaes testamentrias em Cachoeira.
A regio, objeto de nossa anlise, composta pela vila de Cachoeira e seus termos, pertence
capitania da Bahia2. Esta regio dividia-se, na segunda metade do sculo XVIII, em oito
freguesias, ou parquias3: a de Nossa Senhora do Rosrio do Porto da Cachoeira, fundada em
1668, onde localizava-se a vila; So Tiago Maior do Iguape, no sc. XVI; Nossa Senhora do
Desterro do Outeiro Redondo, em 1682 (atual So Flix); So Pedro do Monte da Muritiba,
em 1705; So Gonalo dos Campos da Cachoeira, 1618; So Jos das Itapororocas, em 1657
(Maria Quitria, distrito de Feira de Santana); SantAna do Camiso, em 1751 e Santo
Estevo do Jacupe, em 17514. Embora estas freguesias tivessem um importante polo
agregador e urbano a vila de Cachoeira , com relativa densidade demogrfica e
significativa importncia econmica para a regio, elas se distinguiam, sobretudo, por seu
carter rural. A maior parte destas freguesias pertencia regio denominada como
Recncavo, que estava situada ao redor da Baa de Todos os Santos, um grande brao de mar
que adentra a linha costeira tropical, formando uma baa de cerca de oitenta quilmetros de
2 A palavra termo refere-se ao espao que abrange a jurisdio dos juzes de uma cidade ou vila. Ver: BLUTEAU, Padre Rafael. Dicionrio da lngua portuguesa. [Reformado e acrescentado por Antnio de Moraes Silva / natural do Rio de Janeiro]. Tomo 2. Lisboa: Oficina de Simo Thaddeu Ferreira, 1789, p. 454. 3 Freguesia e parquia so termos equivalentes no sculo XVIII, em Portugal e nos seus domnios ultramarinos. Ambos designam um territrio subordinado jurisdio de um proco ou vigrio, e sero utilizados nesta tese com este significado. Rafael Bluteau relaciona ambos os termos igreja paroquial. Nas Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia os territrios subordinados a jurisdio de um proco so designados parquias e os fiis a esta vinculados so designados fregueses. BLUTEAU, Padre Rafael. Dicionrio da lngua portuguesa. [Reformado e acrescentado por Antnio de Moraes Silva / natural do Rio de Janeiro]. Lisboa: Oficina de Simo Thaddeu Ferreira, 1789, tomo 1, p. 636; tomo 2, p. 161. VIDE, Sebastio Monteiro da. Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia. Livro I, Ttulo III. Estudo introdutrio e edio Bruno Feitler, Evergton Sales Souza. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2010, pp. 127-128. Sobre a evoluo destes conceitos em Portugal ver o verbete parquia em: AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, vol. 3, Rio do Mouro: Crculo de Leitores S.A. e Centro de Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica Portuguesa, 2000, pp. 372-376. 4 As datas da fundao destas freguesias e seus respectivos nomes foram extrados de: SILVA, Cndido da Costa e. Os Segadores e a Messe: o clero oitocentista na Bahia. Salvador: EDUFBA, 2000, p. 67-73. Sobre as freguesias que compem a vila de Cachoeira ver: Mapa de todas as freguesias que pertencem ao Arcebispado da Bahia. 03/03/1775. AHU/Bahia, Castro e Almeida, cx. 47, doc. 8745-8752. No geral, os testadores no residentes na vila, identificavam o local da sua residncia informando o nome da freguesia, procedida da designao termo da vila de Cachoeira. Frequentemente o nome da freguesia era precedido do nome do stio, engenho, fazenda ou da localidade onde era morador.
18
comprimento5. Em toda esta regio, o trabalho escravo de grupos indgenas e
principalmente de africanos e seus descendentes foi maciamente explorado pelos
portugueses e seus descendentes6. Segundo Lus dos Santos Vilhena cronista que escreveu
sobre a regio entre 1798 e 1799 , o recncavo abrangia a cidade de Salvador, com suas
freguesias suburbanas, e as cinco vilas que cercavam a Baa de Todos os Santos: So
Francisco do Conde e Santo Amaro da Purificao na margem norte, Cachoeira no oeste,
Maragogipe e Jaguaripe ao sul7. Entretanto trs das freguesias pertencentes a Cachoeira
localizavam-se na regio do serto de baixo: So Jos nas Itapororocas, SantAna do
Camiso, e Santo Estevo no Jacupe. Vias de acesso ao interior foram construdas, a partir da
vila de Cachoeira, em direo regio de minas e gado, surgindo a necessidade de organizar
ncleos de povoamento, vinculados Cachoeira, o que resultou na ereo destas freguesias8.
As comunidades paroquiais organizadas nas freguesias de Cachoeira ocuparam um
importante lugar em nossa anlise. A parquia enquanto espao institucional da Igreja
influenciou os sujeitos da comunidade local em suas ideias e convices, relativas aos demais
participantes da comunidade com os quais interagiram e nas aes que protagonizaram em seu
cotidiano. A catequese desenvolvida nestes espaos, sob a responsabilidade do clero secular,
foi fundamental neste processo. Para alm da catequese, tambm contribuiu para a divulgao
destas ideias o estmulo dado aos leigos para a participao nas irmandades e em suas mesas
administrativas e tambm como financiadores e executores de obras e outros tipos de
atividades realizadas nas matrizes paroquiais, vinculadas manuteno do culto cristo, como
por exemplo, a construo, ampliao e reforma das igrejas, o cuidado com os altares dos
santos, suas alfaias e o suprimento das suas lmpadas. Sua participao tambm foi solicitada 5 SCHWARTZ, Stuart: Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. So Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 77. As terras situadas ao redor deste mar interior possuem uma paisagem onde se alternam morros baixos e terrenos planos, cujo solo contm uma mistura variada de argila e areia. Ao norte da baa encontramos um solo mais pesado, com maior concentrao de argila, conhecido como massap e tambm o solo conhecido como sales, uma mistura de argila e areia. Nas regies mais ao ocidente e ao sul predominam solos mais arenosos e leves. 6 BARICKMAN, B. J: Um contraponto baiano: acar, fumo, mandioca e escravido no Recncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro, 2003, pp. 38. 7 VILHENA, Lus dos Santos: A Bahia no sculo XVIII, vol. I Salvador, 1969, p. 40-47. Vilhena, Lus dos Santos, I, 1969: 40-47. 8 No sentido geogrfico a palavra serto se referia a regies mais ou menos afastadas do litoral, sendo designada por Rafael Bluteau como regio, apartada do mar, & por todas as partes, metida entre terras. Ver: BLUTEAU, Rafael Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712, verbete Serto. Segundo Fabrcio Lyrio, Serto de Baixo foi a designao dada regio que se formou em menor distncia da costa. Sua ocupao se deu no rumo dos rios Jacupe e Itapicuru, confinando com a capitania de Sergipe, ao norte, na altura do Vasa Barris, e seguindo alm da divisa entre as duas capitanias at atingir, novamente, o rio So Francisco. Ver: SANTOS, Fabrcio Lyrio. Colonizao e povos indgenas na Bahia (1750-1800). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Histria da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012, p. 52.
19
nos ritos sacramentais, como na eucaristia e no batismo enquanto padrinhos, por exemplo
ou na organizao e execuo de festas aos santos e procisses. O envolvimento nestas aes
intensificava a relao entre sujeitos e comunidade paroquial. Estas aes - relacionadas
manuteno do culto, das irmandades e confrarias, do espao religioso - aparecem
referenciadas nos inmeros testamentos lidos. Um dado importante para o perodo foi o
empenho clerical na construo de espaos fsicos para a prtica religiosa. O sculo XVIII
caracterizou-se, no recncavo baiano, como o perodo de construo de igrejas matrizes,
capelas e oratrios disseminados pelo seu interior, o que indica o empenho do clero na
promoo da vivncia religiosa entre os fiis, buscando garantir a existncias dos espaos
fsicos para tais fins. O acesso matriz, aos sacerdotes, aos ritos litrgicos e s irmandades,
foi, por certo, o caminho atravs do qual as questes relativas salvao da alma - e ao papel
da caridade neste processo foram colocadas para os sujeitos que habitaram tais
comunidades.
O enfoque desta tese, porm, no ser a estrutura institucional que fundamentou o trabalho
eclesistico desenvolvido nas parquias, e ao qual at aqui temos referido. Se a parquia
influenciou os sujeitos em suas ideias e prticas, certo que o contrrio tambm ocorreu. A
comunidade paroquial foi profundamente influenciada pelas especificidades que marcaram as
relaes sociais desenvolvidas na comunidade local. Em nossa narrativa nos deteremos nos
sujeitos vinculados a estas comunidades, buscando identificar, atravs da anlise das doaes
testamentrias, a interpenetrao e dependncia entre as suas relaes sociais e a sua insero
na comunidade paroquial. As informaes obtidas no foram tantas quanto desejvamos.
Muitas vezes, esses dados insuficientes precisaram ser associados a outros numa tentativa de
preencher lacunas, que insistiram em se manter, e apenas pudemos remeter para as mltiplas
possibilidades e significados possveis de serem atribudos aos testemunhos deixados pelos
nossos sujeitos. As narrativas individuais, em sua maioria recolhidas dos testamentos lidos,
teceram o fio condutor atravs do qual buscamos chegar a um conhecimento maior das
sociedades que ocuparam o recncavo baiano, mais especificamente Cachoeira, no sculo
XVIII. A nossa proposta , portanto, atravs da recorrncia ao mtodo descritivo do conjunto
das experincias dos sujeitos selecionados, tentar decifrar a identidade coletiva atravs das
individualidades9.
9 SILVA, Cndido da Costa e. Os segadores e a messe: o clero oitocentista na Bahia. Salvador: SCT, EDUFBA, 2000, p. 14.
20
A pesquisa e suas fontes
Os testamentos redigidos pelos moradores de Cachoeira, ao longo do sculo XVIII, foram
as fontes primordiais da nossa pesquisa. Os testamentos encontravam-se, em sua maioria,
anexos a outros tipos de documentos como inventrios post mortem, processos para
habilitao dos herdeiros residentes no reino, processos de notificao de contas de
testamentos e livros de registros de testamentos. O mtodo usado na anlise destes
documentos foi prioritariamente descritivo. Priorizamos a leitura das vrias informaes sobre
os testadores selecionados, disponveis nos diferentes documentos que compunham tais
processos, e em outros onde pudemos encontr-las. A leitura destes documentos nos permitiu
ter acesso a um maior nmero de informaes, relativas aos testadores, para alm daquelas
registradas em seu testamento. O tempo para leitura e processamento das informaes, num
banco de dados que elaboramos com tal finalidade, era reduzido ento foi preciso fazer
escolhas. Optamos por reduzir o nmero de testamentos a serem lidos. Selecionamos 93
testamentos para a pesquisa. Compuseram a nossa amostra 43 testamentos da primeira metade
do sculo e 50 testamentos da segunda metade. Nos arquivos haviam poucos testamentos
disponveis para a primeira metade do sculo, em boas condies para a pesquisa. Para
permitir a comparao entre os dois perodos foi selecionado um nmero equivalente de
testamentos para a segunda metade do sculo. Ainda buscou-se, para ambos os perodos, fazer
uma distribuio proporcional dos testamentos por dcadas, contemplando todas elas.
Tratava-se de investigar tambm, para alm das experincias individuais dos sujeitos, os
padres de comportamentos compartilhados entre os que puderam exercer o direito de testar,
buscando perceber as mudanas e permanncias nestes comportamentos.
Priorizamos, nesta pesquisa, a seleo de testamentos que estivessem acompanhados de
documentos que nos permitissem conhecer melhor os testadores, e os sujeitos integrados sua
rede de relaes, assim como acompanhar o cumprimento das suas determinaes. Ao mesmo
tempo em que buscamos conhecer, nos limites que a documentao nos ofereceu, os
testadores em suas experincias individuais, tambm buscamos conhec-lo enquanto parte de
uma comunidade. As experincias individuais dos sujeitos seriam assim consideradas como
reveladoras das identidades, construdas coletivamente, e influenciadas pela presena da
Igreja, atravs da sua comunidade mais atuante entre os leigos: a parquia. O perfil dos
testadores da nossa amostra composto prioritariamente de brancos os portugueses e seus
descendentes. Embora os residentes na vila de Cachoeira componham um significativo grupo
21
de testadores, a maioria deles residiu nas freguesias rurais vinculadas vila, dedicando-se
principalmente a atividades agrcolas, em especial o cultivo de fumo e de mandioca. Mas, a
despeito da predominncia de portugueses e lavradores, encontramos em nossa amostra
sujeitos pertencentes a outros grupos raciais e profissionais.
Os arquivos Pblico do Estado da Bahia e o Municipal de Cachoeira concentram a quase
totalidade dos documentos onde obtivemos os testamentos, fontes fundamentais desta
pesquisa. A maioria est anexa a inventrios post mortem. A opo pelos testamentos anexos
aos inventrios post mortem se revelou fecunda. Havia uma riqueza de informaes
fornecidas pelos documentos, constantes dos inventrios, a respeito dos nossos testadores, dos
seus herdeiros, testamenteiros, legatrios e assim optamos por priorizar a leitura completa dos
inventrios, sempre que isto foi possvel. Eles foram coletados em sua maioria no Arquivo
Municipal de Cachoeira, embora haja um nmero considervel de inventrios post mortem,
das freguesias de Cachoeira, no Arquivo Pblico do Estado da Bahia. O Arquivo Municipal
de Cachoeira dispunha de uma lista que identificava os inventrios com testamentos anexos, o
que facilitou a nossa busca. No Arquivo Nacional da Torre do Tombo identificamos os
processos de habilitao de herdeiros de testadores de Cachoeira, com testamentos anexos.
Estes documentos completaram a nossa amostra. Documentos de outra natureza foram
amplamente pesquisados. A leitura de obras de carter doutrinrio e devocional, produzidas
pelo clero portugus, entre os sculos XVI e XVIII - todas disponveis na Biblioteca Nacional
de Lisboa -, foi fundamental para esta pesquisa. A abordagem que fizeram de temas como
caridade, esmola e obras de misericrdia serviu de fundamento para a nossa compreenso da
doutrina da caridade, assim como da sua divulgao entre os leigos.
Estrutura da tese
A tese est estruturada em quatro captulos: no primeiro discutimos o que chamamos de
pedagogia crist da caridade. Dedicamos o captulo dois caracterizao do perfil dos
testadores e dos destinatrios das doaes. No captulo trs analisamos as obras de
misericrdia e a forma como se apresentam nos legados pios institudos pelos moradores de
Cachoeira em seus testamentos. No captulo quatro nosso estudo se concentrou no Hospital de
So Joo de Deus, uma instituio de caridade, que funcionou na vila de Cachoeira. Fundado
por franciscanos, no princpio do sculo XVIII, no Convento de Santo Antnio, as margens
22
do Rio Paraguau, este hospital foi transferido para a Vila de Cachoeira, em 1728, por
iniciativa do leigo Antnio Machado. O hospital passou a funcionar, ao longo de todo o
sculo XVIII, no mesmo local onde atualmente encontra-se instalado o hospital da Santa Casa
da Misericrdia de Cachoeira.
A questo central do primeiro captulo da tese foi: quais critrios os testadores de
Cachoeira utilizavam na escolha das pessoas que beneficiavam atravs destas doaes?
Buscamos respostas na religio a qual estas pessoas pertenceram, religio que construiu ao
longo do tempo esta estrutura que orientou a organizao da vida social, na qual conceitos
catlicos como culpa, pecado e caridade tiveram uma importncia fundamental. Propomos
respostas para a questo que aparece no incio deste pargrafo atravs do estudo da doutrina
da caridade crist e sua influncia sobre as doaes. A caridade uma das trs virtudes
teologais do cristianismo ao lado da f e da esperana fundamentalmente inspirada na
ddiva e na partilha. No captulo analisamos a disseminao desta doutrina entre os leigos,
atravs do que definimos como uma pedagogia crist da caridade. Sendo assim, propomo-
nos a estudar o que se fala sobre a caridade, onde se ensina sobre a caridade e onde ela
aparece no cotidiano das prticas dos leigos catlicos de Cachoeira. Na discusso do primeiro
elemento proposto o que se fala sobre a caridade apresentamos os aspectos que compem
a doutrina da caridade, destacando a nfase na sua prtica pelos leigos, evidenciada na
teologia catlica da salvao. Discutimos, ao longo do texto, a ideia de ser a prtica das obras
de misericrdia, do ponto de vista da doutrina crist uma obrigao de todos os fiis (esmola)
e assim entramos no segundo elemento que inserimos no que chamamos de pedagogia crist
da caridade, que consiste no ensino e assimilao da mesma por parte dos fieis leigos. A
partir da a discusso recaiu sobre os recursos usados pela Igreja para ensinar e disseminar tal
doutrina, ou constituir uma pedagogia crist da caridade, destacando-se o uso dos
catecismos, dentre outros textos impressos, manuscritos e iconogrficos destinados
catequese dos fiis e formao dos clrigos para a atividade pastoral. Os testamentos foram
fontes privilegiadas para a anlise do terceiro elemento da pedagogia crist da caridade,
permitindo mostrar onde ela aparece no cotidiano das prticas dos leigos catlicos.
No captulo dois nos dedicamos ao estudo da tera, isto , parte do patrimnio sobre o
qual o testador tinha liberdade para testar e que era assim designada na legislao por
corresponder a um tero dos bens do testador, usualmente destinado composio dos
legados pios. O objetivo foi compreender o perfil dos testadores e dos demais sujeitos que
participaram da partilha da tera quer fossem eles os destinatrios destes recursos ou os
23
responsveis pela sua distribuio, ou seja, pelo cumprimento das ltimas vontades dos
testadores. Observamos em nossa anlise, as diferentes conjunturas polticas portuguesas e, de
forma mais especfica, as que caracterizaram os reinados de D. Jos e de D. Maria, marcados
por reformas que trouxeram mudanas significativas na legislao testamentria, a partir das
intervenes propostas pelo Ministro de D. Jos, Sebastio Jos de Carvalho e Melo, que
impuseram limites liberdade de testar, avaliando a sua influncia sobre as prticas
testamentrias de Cachoeira, mais especificamente sobre as doaes. A influncia de questes
mais especficas relacionadas ao perfil da comunidade local, e aos vnculos estabelecidos
entre testadores e recebedores de doaes, foram igualmente considerados em nossa anlise.
Buscamos compreender o papel desempenhado pela comunidade paroquial nesta sociedade e
a sua influncia sobre as doaes testamentrias. A comunidade paroquial foi, por outro lado,
profundamente marcada pela colonizao e pela escravido. Ambas, colonizao e
escravido, desempenharam um papel fundamental nas relaes sociais estabelecidas entre
doadores e recebedores de doaes em Cachoeira, assim como sobre os intermedirios deste
processo. Neste captulo analisamos os vnculos estabelecidos entre essas pessoas, procurando
perceber o peso que estas relaes tiveram sobre tais vnculos e sobre as suas escolhas
individuais.
No captulo trs estudamos a prtica das obras de misericrdia atravs dos legados pios
institudos por testadores de Cachoeira, analisando as diferentes formas como se fizeram
presentes, assim como as especificidades que marcaram a sua prtica nesta regio. As obras
de misericrdia seriam destinadas, conforme a doutrina da caridade, aos vivos e mortos, em
situao de carncia material ou espiritual, pertencentes comunidade crist. Neste captulo
pretendemos identificar os sujeitos que, enquadrados nesta situao, foram alvo das esmolas,
alforrias e legados dos testadores de Cachoeira. A doutrina da caridade e das obras de
misericrdia inspirou s doaes testamentrias no Ocidente cristo, expressas no apenas na
proviso de recursos materiais para os pobres e nas preces pelas almas, mas tambm no
auxlio para os parentes, na assistncia s crianas enjeitadas, a rfos e vivas, no auxlio
para composio de dotes de moas pobres, assim como na concesso de alforrias aos
escravos. A distribuio das doaes dos testadores de Cachoeira entre tais grupos ser
analisada neste captulo, assim como os critrios que nortearam esta distribuio,
fundamentados no modelo de organizao desta sociedade, hierrquica, desigual e escravista.
O tema do impacto das alteraes da legislao testamentria sobre a redao dos testamentos
24
em Cachoeira ser retomado neste captulo, sendo aqui analisada a forma como influenciou a
escolha dos sujeitos a serem beneficiados pelas doaes dos testadores.
No quarto captulo nos dedicamos ao estudo das representaes e prticas que
estimularam a pedagogia da caridade em Cachoeira a partir da anlise da trajetria do hospital
de So Joo de Deus da vila de Cachoeira, que inicialmente funcionou no convento
franciscano s margens do Rio Paraguau, buscando compreender a relao entre as
condies que permitiram o seu funcionamento e a divulgao e manuteno desta pedagogia
na regio da Cachoeira. A influncia do Estado sobre a Igreja e sobre a prtica da assistncia
aos pobres tambm foi analisada neste captulo, convertendo-se o hospital no espao
privilegiado a partir do qual desenvolvemos esta anlise. A primeira parte do captulo
destinada ao estudo das origens do hospital da vila, destinado aos pobres, discutindo a
participao de diferentes instituies e sujeitos neste processo. O impacto da disseminao
da doutrina da caridade que vinculou a salvao da alma ao exerccio das obras de
misericrdia, em especial as destinadas aos pobres - foi analisado atravs da experincia dos
sujeitos que conceberam este projeto e dos que o financiaram. Para alm das questes ligadas
doutrina catlica e sua prtica em Cachoeira, foi preciso compreender tambm o contexto
econmico, poltico e administrativo no qual estas prticas foram vivenciadas, analisando as
relaes entre o Estado e a Igreja, investigando o impacto do processo de subordinao da
segunda pelo primeiro, sobre os destinos do hospital da vila, vivenciado com maior
intensidade na segunda metade do sculo XVIII. Esta questo norteou a discusso de aspectos
importantes do nosso estudo, especialmente quando tratamos do afastamento da ordem
religiosa responsvel pelo hospital, assim como do perodo em que o mesmo esteve
subordinado autoridade do juiz de fora da vila.
Limitado em vrios sentidos, este estudo busca apontar algumas perspectivas de anlise
das sociedades do recncavo baiano, mas especificamente de Cachoeira, no perodo colonial,
sem pretender, no entanto, esgot-las. Acreditamos que o estudo das experincias religiosas
destas comunidades pode contribuir para uma compreenso mais ampla das suas relaes
sociais, econmicas, polticas e culturais, assim como do lugar que elas ocuparam no Imprio
Portugus. Esta tese se prope a este exerccio. Esperamos que o futuro possibilite a
continuidade e o surgimento de novas pesquisas sobre a regio, proporcionando a ampliao
e/ou reviso dos resultados aqui apresentados.
25
MAPA 1: O recncavo baiano e as freguesias de Cachoeira (1751-1800)10
10 Mapa adaptado a partir do mapa Recncavo da Bahia e a Cachoeira produtora de tabaco 1774 a 1830. SILVA, Ana Paula de Albuquerque. Produo fumageira: fazendas e lavradores no recncavo da Bahia (1774-1830). Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Faculdade de Filosofia e Cincia Humanas da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2015, p. 60. A adaptao foi realizada por Robson Guimares.
26
CAPTULO I
PELO AMOR DE DEUS E DOS HOMENS: CARIDADE E SALVAO
EM CACHOEIRA NO SCULO XVIII ______________________________________________________________________
A doao testamentria
Em 10 de abril de 1792, Jos Alexandre Peixoto Mascarenhas resolveu preparar-se para a
sua morte, atravs da redao do seu testamento11. Ele pediu a Simo Brando de Mello que
redigisse o testamento por ele ditado. Jos Alexandre no informa nenhum motivo urgente
que o tenha movido redao do documento como uma doena, por exemplo -, apenas o
desejo de preparar-se para a morte, numa justificativa usualmente encontrada nos testamentos
com os quais trabalhamos em Cachoeira:
Em nome da Santissima Trindade Padre Filho e Espirito Santo Tres Pessoas distintas e um s Deoz verdadeiro. Eu Jos Alexandre Peyxoto Mascarenhas estando em meo perfeito juzo e entendimento que Nosso Senhor me deo achando me nesta Villa da Cachoeira temendo me da morte, e desejando por minha alma no caminho da salvao por no saber o que Nosso Senhor de mim quer fazer, e quando ser servido levar me para si fao este testamento na forma seguinte. [...].
O prximo passo de Jos Alexandre na redao do testamento foi encomendar a sua alma
Primeyramente encomendo a minha alma a Santissima Trindade que a criou e rogo ao Eterno Pay que pela morte e paixo de seu Unigenito Filho a queira receber, e a Virgem Maria Senhora Nossa, e ao Santo do meu nome e a todos os santos da Corte do Ceo logo sejo meoz intercessores quando a minha alma deste Mundo partir, para que va gozar da Bem aventurana para que foi criada, porque como verdadeiro cristo protesto viver e morrer na Santa F Catholica, e crer tudo o que tem, e cre a Santa Madre Igreja Romana em a qual ezpero salvar a minha alma. [...]
At aqui o seu testamento segue exatamente todas as etapas recomendadas no manual escrito
pelo Padre Estevo de Castro, Breve aparelho e modo fcil para ensinar a bem morrer um
cristo. O jesuta dedicou o captulo 24 a apresentar a forma e ordem de se fazer o 11 APEB, Judicirio, Livro de registro de testamentos de Cachoeira, n 6, Testamento de Jos Alexandre Peixoto Mascarenhas. Uma cpia deste testamento tambm pode ser encontrada no traslado do inventrio dos bens deste testador. Ver: APEB, Judicirio, Doc. 02/704/1166/01, Traslado do Inventrio de Jos Alexandre Peixoto de Mascarenhas, fl. 3v-9.
27
testamento12. A parte da encomendao da alma contm poucas variaes. Claudia Rodrigues
chamou a ateno para o carter escatolgico dos testamentos, evidenciado na prpria estrutura
que eles seguem. Eles se constituam em um importante instrumento de salvao da alma do
fiel e de expresso da preocupao com a sua sorte no alm-tmulo13. As etapas seguintes do
roteiro contido no manual do jesuta so seguidas de perto pela redao do testamento de Jos
Alexandre o que refora ainda mais esta interpretao: em seguida a encomendao da alma o
testador deveria enumerar os seus testamenteiros; determinar a forma como seria realizado o
seu funeral (hbito com o qual seria amortalhado e a igreja onde pretendia ser sepultado, os
sacerdotes e as irmandades que deveriam acompanh-lo); deveria informar os sufrgios, missas
e ofcios por sua alma, discriminando o nmero e os valores a serem dispendidos com essas
celebraes; informar naturalidade, filiao, estado civil, filhos, herdeiros; discriminar os bens,
dvidas e crditos; disposio da tera14; revogao de qualquer outro testamento ou codicilo,
caso necessrio. Aps esta parte, h um item do roteiro proposto pelo Padre Estevo de Castro
em que se reforaria o pedido feito ao testamenteiro para que aceitasse a funo pelo testador
lhe outorgada:
Para cumprir meus legados ad causas pias aqui declarados, & dar expediencia ao mais que neste meu testamento ordeno, torno a pedir ao senhor fulano, por Servio de Deus Nosso Senhor, & por me fazerem merc, queiro aceitar serem meus testamenteiros como no principio deste testamento peo, aos quais & a cada hum insolido, dou todo o poder, que em direito posso, & for necessrio pera de meus bens tomarem & venderem o que necessrio for pera meu enterramento, & cumprimento de meus legados, & pagas de minhas dividas 15.
O padre insistia na satisfao dos legados - destacando este fim por duas vezes -, das causas
pias e das disposies relativas s cerimnias fnebres e sufrgios16. Estas so
fundamentalmente as disposies relacionadas salvao da alma do testador e foram
12 CASTRO, Estevo. Breve aparelho e modo fcil para ajudar a bem morrer um cristo, com recopilao das matrias de testamento e penitncia, vrias oraes devotas, tiradas da Escritura sagrada e do Ritual Romano
de N. S. P. Paulo V. Lisboa: Matheus Pinheiro, 1627, pp. 100-105. 13 RODRIGUES, Cludia. Nas fronteiras do Alm: a secularizao da morte no Rio de Janeiro (sculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 100. 14 Quota dos bens destinada livre disposio do testador, equivalente a tera parte do total dos bens que possua. 15 CASTRO, Estevo. Op. cit., p. 104-104v. 16 As Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia fazem a distino entre causas pias e legados. As causas pias so as que instituem por herdeiro de determinado bem do testador algum mosteiro, igreja, hospital, casa de misericrdia, rfos, pobres ou outro qualquer lugar ou casa pia. Os legados pios so missas, sufrgios, ofertas e esmolas que se deixam aos pobres em testamento. Ver: VIDE, Sebastio Monteiro da. Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia. Livro IV, Ttulo XL. Estudo introdutrio e edio Bruno Feitler, Evergton Sales Souza. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2010, p. 425.
28
secularmente incentivadas pelo clero17. Para Claudia Rodrigues a instituio eclesistica
procurava insistir em que o testamento estivesse subordinado aos objetivos soteriolgicos,
ainda que fosse um instrumento de transmisso de herana18.
Por fim, o manual do padre Estevo de Castro instrua que o testamento fosse concludo
com o testador afirmando ser este a sua ltima vontade, assinando-o, e informando o lugar e
data em que o mesmo estava sendo redigido, fazendo recomendaes sobre como proceder
assinatura do testador quando o mesmo no pudesse faz-la19. No apenas o testamento de
Jos Alexandre, mas todos os demais lidos para a regio de Cachoeira seguem este padro,
com algumas variaes. Sugerimos que a pessoa responsvel pela escrita do testamento de
Jos Alexandre conhecia as orientaes relativas redao do testamento expostas neste
manual e no apenas ele, mas um conjunto numeroso de pessoas que assumiram este papel em
Cachoeira20. Manuais de bem morrer, como o escrito pelo Padre Estevo de Castro, foram
muito divulgados no Ocidente cristo. Desenvolvida entre o sculo XIV e XV, a ars
moriendi, um gnero de literatura devocional, comps-se de um conjunto de textos e imagens
que se destinava a preparar os fiis para a boa morte, como livros de horas, as imagens
volantes e os manuais em formato de livros onde estavam contidos as oraes e os passos a
serem seguidos no momento da morte. A crena de que neste momento ocorria o julgamento
17 Sobre a relao entre as causas pias discriminadas em testamento e a salvao da alma ver: VILAR, Hermnia. A vivncia da morte no Portugal Medieval: a Estremadura Portuguesa (1300-1500). Cascais: Redondo, 1995 (captulos III e IV); ARAUJO, Ana Cristina. ARAJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representaes (1700-1830). Lisboa: Editorial Notcias, 1997 (captulo IX); CARDOSO, Cristiano. Legado pio e esmola na testamentria da freguesia de Alvarenga (Lousada): 1745-1799. In Revista do Municpio de Lousada (Suplemento do Patrimnio). Ano 11, n 75, maio/ 2010; ROSA, Maria de Lourdes. As almas herdeiras: fundao de capelas fnebres e afirmao da alma como sujeito de direito (Portugal 1400-1521). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda S. A., 2012 (captulo II). LOPES, Maria Antnia. Pobreza, assistncia e controlo social em Coimbra (1750-1850), 02 volumes. Viseu: Palimage Editores, 2000 (vol. I, captulo I); TAVARES, Maria Jos Pimenta Ferro. Pobreza e morte em Portugal na Idade Mdia. Lisboa: Editorial Presena, 1989 (captulo 2). 18 RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do Alm ..., p. 101. 19 Estas orientaes, que se referem a parte da concluso do testamento, seguem as normas estabelecidas nas Ordenaes Filipinas. Ver: Ordenaes Filipinas, Livro IV, Ttulo LXXX. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,1935, p. 900-901. 20 A Ordem de So Joo de Deus, que atuou em Cachoeira durante o sculo XVIII atravs da administrao do hospital da vila destinado aos pobres e viajantes, apresenta orientaes semelhantes na Postilla Religiosa destinada a formao dos membros da ordem, cuja vocao especfica era a enfermagem. Ver: SANTIAGO, Diogo de. Padre. Postilla Religiosa, e Arte dos enfermeiros. Oficina de Miguel Manescal da Costa, Impressor do Santo Ofcio, 1741, Parte III (edio em fac-smile, em parceria com a Ordem Hospitaleira de So Joo de Deus, Lisboa: Alcal, 2005), pp. 189-197. Claudia Rodrigues e Mauro Dillman referem-se a outras duas obras que traziam orientaes para a redao do testamento: a obra Mestre da vida que ensina a viver e morrer santamente, escrito pelo dominicano portugus Joo Franco, publicada entre 1731 e 1882, com grande difuso editorial em Portugal, no sculo XVIII. A outra obra foi escrita por Frei Manoel de Maria Santssima, Devoto instrudo na vida e na morte, publicada inicialmente em 1784. Ver: RODRIGUES, Cludia; DILLMAN, Mauro. Desejando pr minha alma no caminho da salvao: modelos catlicos de testamentos no sculo XVIII. In: Histria Unisinos, n 17, vol. 1, Janeiro/Abril 2013, p. 4.
29
da alma do fiel e o combate entre demnios e anjos pela posse da mesma espalhou um clima
de agonia, e os manuais insistiam na necessidade da preparao atravs dos sacramentos,
oraes e ritos realizados pela Igreja. A partir do sculo XVI - sob a influncia do Conclio de
Trento que estimulou a conduta piedosa ao longo da vida com pr-requisito para a salvao -,
os manuais de bem morrer tendem a insistir na necessidade da preparao para a morte
antes da hora da agonia e no apenas nestes derradeiros momentos de vida. Eles passaram a
preparar o fiel atravs de prticas realizadas ao longo de sua vida, como a meditao sobre a
morte pela visualizao de imagens e leitura de livros de horas, a realizao de sufrgios
ainda em vida e a redao de testamentos como forma de preparao da alma atravs da
disposio dos seus bens visando benefici-la. Estes manuais forneciam o roteiro e as normas
necessrias boa morte21. Um dos manuais mais populares em Portugal foi o do Padre
Estevo de Castro que, segundo Ana Cristina Arajo, teve onze reedies entre 1621 e 1724,
o que revela sua ampla aceitao e divulgao22.
Em seu testamento Jos Alexandre Peixoto Mascarenhas informa que era Capito-mor,
e filho legtimo do Capito Jos Pereira Mascarenhas e de sua mulher Francisca Pereira de
Lima. Era natural do prprio recncavo, da Freguesia de Santiago do Iguape e casado com
Hilria Francisca de Jesus com quem tinha dois filhos legtimos, Alexandre e Maria do Carmo,
ambos menores. Alm destes tinha um filho natural, Jos Caetano no se sabe se nascido
antes ou durante o seu casamento, nem quem foi sua me -, o qual instituiu como herdeiro,
juntamente com os demais. Jos Alexandre enfatiza no testamento esta deciso de tornar este
filho natural seu herdeiro afirmando o qual quero, e de meu gosto [...] sem empedimento
algum entre na herana com os legitimados nas suas partilhas dos meus bens23. Supomos que
Jos Caetano foi concebido antes do casamento de seu pai, pois j era maior de 25 anos por
ocasio da redao do testamento do mesmo e a diferena entre a sua idade e a dos seus dois
irmos era de mais de dez anos. Ambos, pai e filho, provavelmente mantinham relaes
prximas, pois Jos Alexandre o nomeou tutor dos seus irmos menores Alexandre e Maria
do Carmo em caso de impedimento da sua esposa e me das crianas.
Jos Alexandre possua uma considervel extenso de terras na freguesia em que
residia. Estas terras eram divididas em inmeras fazendas nomeadas no inventrio post
21 RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do Alm..., p. 53-6. 22 ARAJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa..., p. 164. 23 APEB, Judicirio, Livro de registro de testamentos de Cachoeira, n 6, Testamento de Jos Alexandre Peixoto de Mascarenhas.
30
mortem dos bens que deixou em sua maioria destinada criao de gado24. Eram elas:
Fazenda de Camiso, que era a sua residncia. Ali ele mantinha 32 escravos e a maior parte
da sua riqueza em joias, mveis, ornamentos e objetos em ouro e prata, alm de toalhas,
lenis e roupas de luxo. Estava ali tambm o seu oratrio com quatro imagens - duas da
Senhora da Soledade e da Conceio, Santo Antnio e o menino Deus. Na propriedade
encontramos um sobrado, onde morava, avaliado em 120$000 ris, cinco senzalas e uma casa
de fazer farinha, currais de gado com 191 cabeas de gado vacum, 14 cavalos de vaquejar,
roas de algodo e outra de mandioca onde mantinha mais seis escravos, alm das matas onde
moravam seus colonos; Fazenda da Caisara, situada na Ribeira do Ribeirado Parategi,
terras de criar gados avaliadas em 800$000 reis, onde ele mantinha 4 escravos, 22 cavalos de
vaquejar e 943 cabeas de gado vacum; Fazenda da Ponta do Poo: um sitio de terras de
criar gados situada na Ribeira do Rio do Peixe avaliadas em 300$000 reis, onde ele mantinha
65 cabeas de gado vacum, 4 cavalos de vaquejar e criao de bezerros; Fazenda de Pascoal
Gomes: um sitio de terras de criar gados na Ribeira do Rio do Peixe avaliadas em 400$000
reis, onde mantinha 230 cabeas de gado vacum e 4 cavalos de vaquejar; Fazenda do
Mocambo: um sitio de terras de criar gado na mesma Ribeira do Rio do Peixe avaliadas em
400$000, onde mantinha dois escravos, 483 cabeas de gado vacum e 6 cavalos de vaquejar;
Fazenda da Tiririca: um sitio de terras de cria gados na mesma Ribeira do Rio do Peixe
avaliado em 300$000 ris, onde mantinha dois escravos e 255 cabeas de gado vacum;
Fazenda do Sitio: um sitio de terras de criar gados avaliado em 260$000 ris, onde mantinha
um escravos, 87 cabeas de gado vacum e dois cavalos de vaquejar25. Ele chegou a possuir
outras fazendas o que indica que no se limitou a sua criao de gado, mas que lucrou
tambm com a venda destas propriedades. Manoel Francisco de Andrade, outro morador da
regio, no Stio de Mori, na Serra, termo da vila de Cachoeira, informa em seu testamento
que teria comprado duas fazendas de gado vacum, uma chamada Binguela e a outra
Caldeyroens, das mos de Jos Alexandre Peixoto Mascarenhas, por 400$000 reis, ambas26.
Alm da criao de gado e da negociao de suas propriedades ele tambm se dedicou a
emprestar dinheiro. Por ocasio do inventrio dos seus bens, aps sua morte, sua esposa listou
110 crditos a receber, muitos correndo juros. Jos Alexandre era um homem rico. Os bens do
24 APEB, Judicirio, Doc. 02/704/1166/01, Traslado do Inventrio de Jos Alexandre Peixoto de Mascarenhas, Auto de descrio dos bens do testador, fls. 12-24. 25 APEB, Judicirio, Doc. 02/704/1166/01, Traslado do Inventrio de Jos Alexandre Peixoto de Mascarenhas. Todos os dados foram extrados do Auto de descrio dos bens do testador que consta no inventrio, fls. 12-24. 26 APEB, Judicirio, Livro de registro de testamentos de Cachoeira, n 5, Testamento de Manuel Francisco de Andrade.
31
casal somavam no total mais de 37 contos de reis, precisamente 37:503$456 contos de ris
conforme o auto de partilha contido no inventrio. Aps a meao dos bens 18:751$728
contos de ris foram destinados a viva e a outra metade destinada tera do testador e aos
seus trs filhos. Pouco mais de seis contos foram destinados tera, e cada herdeiro ficou com
pouco mais de quatro contos, precisamente 4:330$384 contos de ris para cada um. Ao filho
natural Jos Alexandre legou alm deste valor tambm o que ficou do remanescente dos bens
destinados tera aps o cumprimento dos seus legados, que compreendeu 2:391$454 contos
de ris. Os filhos legtimos seriam beneficiados com a herana da sua me, enquanto este
parecia depender apenas do que lhe destinou seu pai. Isto talvez explique a deciso de Jos
Alexandre de destinar um pouco mais dos seus bens a este filho natural do que aos seus filhos
legtimos.
Jos Alexandre residia na Freguesia de Santa Ana de Camiso, atual municpio de
Ipir27. Embora distante da vila de Cachoeira, e do ponto de vista das suas condies
climticas e geogrficas, fosse mais designada como serto do que propriamente recncavo, a
freguesia de Santana Ana do Camiso esteve vinculada Vila de Nossa Senhora do Rosrio
do Porto da Cachoeira at meados do sculo XIX, quando adquiriu o status de vila. Segundo
um mapa da populao de todas as freguesias que pertenciam ao Arcebispado da Bahia,
datado de 1775, a Freguesia de SantAna do Camiso era a menos povoada dentre as que
compunham a Vila de Cachoeira. Tinha um total de 91 fogos e 540 almas neste perodo28. A
principal atividade econmica da regio era a pecuria, complementada por lavouras de
subsistncia. A longa distncia no impediu Jos Alexandre de frequentar a sede da vila, a
Freguesia de Nossa Senhora do Rosrio do Porto da Cachoeira. Talvez ele j estivesse a
algum tempo ali hospedado, pois em 15 de maro de 1792 fez profisso e tomou o hbito da
Ordem Terceira do Carmo da Vila de Cachoeira, pagando por este direito o prmio de
150$000 reis29. O prximo passo seria a redao do testamento, ato que continuaremos a
acompanhar.
27 APEB, Judicirio, Livro de registro de testamentos de Cachoeira, n 6, Testamento de Jos Alexandre Peixoto Mascarenhas. 28 Mapa de todas as freguesias que pertencem ao Arcebispado da Bahia. 03/03/1775. AHU/Bahia, Castro e Almeida, caixa 47, doc. 8745-8752. Os dados informados para as freguesias da Vila da Cachoeira foram: N. Senhora do Rosrio do Porto da Cachoeira 986 fogos e 5.814 almas; S. Pedro da Muritiba 562 fogos e 4.012 almas; Outeiro Redondo 379 fogos e 2.947 almas; S. Gonalo dos Campos 455 fogos e 3.6265 almas; S. Jos das Itapororocas 312 fogos e 5.017 almas; SantAna do Camiso 91 fogos e 540 almas; So Tiago do Iguape 337 fogos e 3.671 almas; Santo Estevo do Jacupe 175 fogos e 1.354 almas. Total de 3.297 fogos 26.980 almas. 29 Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, Livro de Contas da Ordem 3 do Carmo de Cachoeira, folha 283.
32
Aps encomendar a sua alma aos santos da corte celeste Jos Alexandre iniciou as
recomendaes a respeito da sua cerimnia fnebre. Ele pediu que seu corpo fosse sepultado
na matriz de Santa Ana do Camiso, amortalhado no hbito de Nossa Senhora do Carmo,
acompanhado do seu vigrio, sacristo e mais sacerdotes que se achassem que lhe diriam pela
sua alma missa de corpo presente. Mas caso viesse a falecer na vila e no em sua freguesia,
ele deveria ser sepultado na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, da qual era irmo,
onde o testamenteiro deveria gastar o que fosse necessrio no enterro e ofcio. No mesmo dia
se daria esmola a todos os sacerdotes. Ele tambm solicitou que fossem distribudos cem mil
ris pelos pobres que acompanhassem seu corpo sepultura dando a cada um deles de esmola
uma pataca. A preocupao deste testador em deixar esmola para os pobres que
acompanhassem seu corpo sepultura se apresenta em inmeros outros testamentos redigidos
em Cachoeira ao longo do sculo XVIII. Manuel Ferreira da Fonseca, por exemplo, falecido
em 07 de abril de 1765, natural do reino, residente na vila de Cachoeira deixou 50$000 ris
para ser repartido entre os pobres no dia do seu falecimento e outros 50$000 ris para se
repartirem entre os mesmos, a 100 ris cada pobre, no dia do seu ofcio que seria celebrado no
Convento de Nossa Senhora do Monte Carmo da Vila30. Mateus de Madureira Bragana,
outro portugus, residente na Rua Direita, Porto de So Felix, na Freguesia de So Pedro da
Muritiba, cujo testamento foi redigido em 1789, solicitou que fossem dados 80 reis para cada
pobre que acompanhasse o seu corpo no dia do seu falecimento31. Jos Rodrigues de Amorim,
natural e residente na vila de Cachoeira, falecido em 05 de agosto de 1795 tambm deixou
esmolas para os pobres no total de 14$800 ris, cujo pagamento est identificado no
inventrio, no registro de gastos com o seu funeral32. Joo Jos Reis, ao abordar o tema da
distribuio das esmolas em funerais na Bahia no sculo XIX, informa que os pobres tinham o
compromisso de acompanhar o morto e assistir missa de corpo presente, ocorrendo ao seu
trmino a distribuio das esmolas33. Walter Fraga Filho tambm remete ao tema da
distribuio de esmolas em legados testamentrios na Bahia entre os sculos XVIII e XIX
confirmando que os mendigos, juntamente com os pobres da parquia, os presos, as vivas, as
30 APMC, caixa 15, doc. 134. Testamento de Manoel Ferreira da Fonseca, anexo ao seu inventrio post mortem. 31 APEB, Judicirio, Livro de registro de testamentos de Cachoeira, n 5, Testamento de Mateus de Madureira Bragana. 32 APMC, caixa 2, doc. 16. Testamento de Jos Rodrigues de Amorim, anexo ao seu inventrio post mortem. 33 REIS, Joo Jos. A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no Brasil no sculo XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 153.
33
moas pobres e as instituies de caridade figuravam entre os principais beneficirios do
dinheiro e dos bens deixados pelos mortos como legados pios34.
Segundo Manuel Hespanha o carter obrigatrio da caridade e da misericrdia foi
reforado pela teologia crist pois a colocou no centro das virtudes, tornando a esmola para os
pobres um dever crucial para os cristos, ao associ-la ao projeto de salvao de suas almas35.
Ao distribuir esmolas em seu legado testamentrio Joo Alexandre, assim como os demais
testadores citados, provavelmente recorria a elas como meio de diminuir o tempo de purgao
dos seus pecados. A relao entre a salvao da alma e a prtica das boas obras pode ser
compreendida a partir da doutrina da justificao proposta pela Igreja. Das discusses
mantidas durante o Conclio de Trento resultou um decreto e cnones sobre a justificao36.
Neles a Igreja reafirmava a crena, comum a todos os cristos, de que a justificao da alma
do homem pecador era proveniente dos mritos da paixo de Cristo e de que, ao ser
justificado, o homem recebia, alm da remisso dos seus pecados, os dons divinos da f,
esperana e caridade. A prtica das boas obras seria a ao que identificaria o homem
justificado, tendo em vista que a f, que traria a vida eterna, no poderia ser garantida sem a
esperana e a caridade, observadas atravs das obras praticadas pelos homens37. A prtica das
boas obras no justificava o homem, mas seriam o sinal de que este havia sido justificado.
Tais aes desempenhariam papel importante no julgamento final da alma38. Uma profisso
de f prescrita aos valdenses que retornaram a Igreja Catlica, redigida em 1208, reafirmava a
crena de que
34 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos moleques e vadios na Bahia do sculo XIX. So Paulo, SP: HUCITEC; Salvador, Bahia: EDUFBA, 1996, p. 36. 35 HESPANHA, Antnio Manuel. Imbecillitas. As bens aventuranas nas sociedades do Antigo Regime. So Paulo: Annablume, 2010, p. 236. 36 O Decreto sobre a justificao, visando a salvao da alma, foi elaborado a partir de discusses iniciadas em junho de 1546, e apresentadas na sexta sesso do conclio. Ele condena as doutrinas de Lutero sobre a justificao e sobre a cooperao do homem com a graa e os conceitos de Calvino sobre a predestinao, assim como os erros de Joviniano e Pelgio que negaram a necessidade da graa para obter e conservar a justificao. A ntegra do decreto encontra-se transcrita em: DENZINGER, Heinrich. DENZIGER, Heirinch. Compndio dos smbolos, definies e declaraes de f e moral. So Paulo, SP: Ed. Loyola; Paulinas, 2007, pp. 400-415. 37 DENZINGER, Heinrich, Op. cit., pp. 401-402. 38 Sobre o tema da morte e do julgamento final nas sociedades catlicas ocidentais ver: ARIS, Philippe. Histria da morte no Ocidente: da Idade Mdia aos nossos dias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (I Parte); CAMPOS, Adalgisa Arantes. (2004). So Miguel, as Almas do Purgatrio e as balanas: iconografia e venerao na poca Moderna. Memorandum, 07, pp. 102-127. Disponvel em 04/06/2015 em http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm; LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatrio. Lisboa: Estampa, 1995; TAVARES, Maria Jos Pimenta Ferro. Pobreza e morte em Portugal na Idade Mdia. Lisboa: Editorial Presena, 1989 (captulo 2); DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilizao do Ocidente (sculos 13-18). 2 vols. Bauru, SP: EDUSC, 2003 (vol. II, captulo 13); VOVELLE, Michel. Imagens e Imaginrio na Histria: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Mdia at o sculo XX, So Paulo: tica, 1997 (captulo 2).
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm
34
[...] haver tambm um juzo por parte de Jesus Cristo e que cada um, segundo o que tiver feito nesta carne, receber castigos ou prmios.
Cremos que as esmolas, o sacrifcio e as outras boas obras podem ajudar os mortos.
[...] aqueles que, com suas posses, permanecem no mundo e com aquilo que possuem praticam esmolas e outras boas obras e observam os preceitos do Senhor, so salvos39.
O temor deste julgamento por certo, trouxe angstia e desassossego a inmeros catlicos
especialmente em momentos em que se viam na eminncia da morte, como o acometimento
de uma doena grave.
Autores portugueses modernos, como os Padres Antnio Vieira e Manoel Fernandes,
fizeram referncia ao que teria afirmado o prprio Cristo a respeito do julgamento final e dos
critrios que utilizaria em sua sentena que determinaria o destino das almas na eternidade,
que seria definida a partir da prtica das obras de misericrdia, pois elas traduziriam o
mandamento do amor ao prximo40. Em Primavera Espiritual, obra datada de 1673, o Dr.
Francisco Freire de Faria, logo aps fazer meno passagem bblica de Mateus, c. 25, onde
se relata o julgamento final, afirma que a esmola he a que abre as portas do Ceo, a que nos
da posse da gloria, a que nos faz semelhante a Deos41. Aps referncia ao mesmo trecho
bblico, Antnio Vieira concluiu, no Sermo das obras de Misericrdia, pregado em Lisboa,
39 Carta Eius exemplo ao arcebispo de Tarragona. 18/12/1208. In DENZIGER, Heirinch. Op. cit., pp. 281-282. Segundo Denzinger a carta contm a frmula de profisso de f de Durando de Osca, um valds retornado Igreja Catlica no ano de 1207. A frmula foi repetida numa carta dirigida ao arcebispo de Tarragona em 1210 e tambm utilizada, de forma abreviada, como profisso de f de outros valdenses, e serviu como modelo para as que se seguiram. 40 Ver Livro do Evangelho de Mateus 25: 31-46. (31. Quando o Filho do Homem vier em sua glria, e todos os anjos com ele, ento se assentar no trono da sua glria. 32. E sero reunidas em sua presena todas as naes e ele separar os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos bodes, 33. e por as ovelhas sua direita e os bodes sua esquerda. 34. Ento dir o rei aos que estiverem sua direita: Vinde, benditos do meu Pai, recebei por herana o Reino preparado para vs desde a fundao do mundo. 35.Pois tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber. Era forasteiro e me acolhestes. 36. Estive nu e me vestiste, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me. 37. Ento os justos lhe respondero: Senhor quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? 38. Quando foi que te vimos forasteiro e te recolhemos ou nu e te vestimos? 39. Quando foi que te vimos doente ou preso e fomos te ver? 40. Ao que lhes responder o rei: Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmos mais pequeninos, a mim o fizestes. 41. Em seguida, dir aos que estiverem sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos. 42. Porque tive fome e no me destes de comer. Tive sede e no me destes de beber. 43. Fui forasteiro e no me recolhestes. Estive nu e no me vestistes, doente e preso e no me visitastes. 44. Ento, tambm eles respondero: Senhor, quando que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e no te socorremos? 45. E ele responder com estas palavras: Em verdade vos digo: todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses mais pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer. 46. E iro estes para o castigo eterno, enquanto os justos iro para a vida eterna.). Bblia de Jerusalm (nova edio revista e ampliada), 9 edio, So Paulo: Paulus, 2013. Este trecho aparece citado em muitas obras que tratam das obras de misericrdia para justificar a importncia destas no processo de salvao dos fiis. 41 FARIA, Francisco Freire de. Primavera espiritual e consideraes necessrias para bem viver. Lisboa: Officina Joam da Costa, 1673, p. 151.
35
em 1647, que se vos salvastes, no foy porque no peccastes, seno porque com as vossas
esmolas remistes os vossos pecados42. O Padre Manoel Fernandes - jesuta e confessor do
Rei D. Pedro - dedicou a terceira parte, do terceiro volume da sua obra Alma instruda na
doutrina e vida christ a uma discusso ampla e detalhada de vrios aspectos que envolvem a
prtica das obras de misericrdia43. Citando um sermo de Santo Agostinho, Manoel
Fernandes adverte que ningum deveria se escusar de dar esmolas para que assim pudesse
receber a sentena favorvel sua alma e com ela o prmio eterno da entrada no reino dos
cus determinado nas palavras divinas: Ide, no porque nam peccastes, mas porque com
esmolas remistes vossos pecados44. Ele tambm remete ao poder da esmola e das obras de
misericrdia como advogadas diante do Tribunal de Cristo no somente patrocinando, como
fazem os advogados, mas tambm persuadindo ao mesmo Juis, que patrocine ao reo e de
sentena por elle ainda que mil vezes peccasse, ainda o coroa & promulga vencedor [...]45.
Segundo este autor no apenas a esmola atua junto ao juiz, mas tambm o pobre que a recebe,
que [...] excitasse pera orar por quem lha d, & impetrar de Deus pera esse a grassa da
converso46. A profuso de esmolas feitas em testamento so gestos que parecem refletir o
desejo de preparar-se para o momento decisivo que determinaria o destino dos fieis no alm.
Frei Manoel Fernandes no excita em recomendar que o acertado he pera aquelle dia, & pera
o da morte faser grde provimento & acompanhamento de esmolas47, como procurou fazer o
nosso testador Jos Alexandre.
Os pobres continuariam como alvos das esmolas de Jos Alexandre mesmo aps a
cerimnia de sepultamento. Ele pediu ao testamenteiro que se desse de esmola aos presos da
cadeia e pobres do Hospital de So Joo de Deus, e outras pessoas pobres reconhecidas, 600
ris a cada um. E, caso fosse sepultado em sua freguesia, se daria estas esmolas aos pobres
dela. Fundado na primeira metade do sculo XVIII, o hospital destinou-se prioritariamente a
assistncia aos pobres, foi administrado pela Ordem de So Joo de Deus entre 1755 e 1778,
passando para a administrao rgia atravs da nomeao de administradores pelo juiz de fora
42VIEIRA, Antnio (Padre). Sermam das obras de misericrdia. A Irmandade do mesmo nome. Na Igreja do Hospital Real de Lisboa, em dias de todos os Santos, com o Santssimo exposto, anno 1647. In: Vieira, Padre Antnio. Sermes do Padre Antnio Vieira, Visitador da Provncia do Brasil, Pregador de Sua Magestade. Sexta Parte. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1690, p. 195. 43 FERNANDES, Manoel, S.J. Alma instruda na doutrina e vida crist. Tomo III. Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes, 1664. 44 Idem, p. 740. 45 Idem, p. 741. 46 Idem, p. 735. 47 Idem, p. 740.
36
da vila e assim ele funcionou durante os anos seguintes48. A importncia da assistncia
prestada aos pobres de Cachoeira por este hospital est relatada num ofcio do Chanceler da
Relao Jos Carvalho de Andrade, datado de 1761, quando lembrava a ao dos religiosos
que administravam este hospital: so teis aos pobres doentes dezamparados; da vila ou de
fora ou passageiros por ser a vila de Cachoeira hum porto donde vem parar todos os viajeiros
das Minas e outras villas49. No apenas Jos Alexandre Peixoto de Mascarenhas, mas outros
testadores destinaram parte dos seus bens para esta instituio. Mateus de Madureira
Bragana, testador que j havia doado para os pobres que acompanhassem seu corpo a
sepultura, destinou 80 reis para cada enfermo do hospital50. Ana Maria da Silva, moradora na
Freguesia de So Joo da gua Fria, fora dos limites de Cachoeira, cujo testamento foi escrito
em 1787, tambm destinou esmolas para os pobres deste hospital como outros que
localizamos - no valor de 320 reis para cada um que l se encontrasse. Ela faleceu em 1789,
na vila de Cachoeira51.
No h meno s esmolas destinadas aos pobres a serem distribudas por ocasio do
funeral de Jos Alexandre no inventrio dos seus bens, assim como em relao a todas as
disposies referentes s cerimnias do seu funeral, o que no implica em afirmar o seu
descumprimento, mas em que desconhecemos a origem dos recursos para cumpri-los uma vez
que normalmente so includas na tera do falecido52. possvel que Jos Alexandre tenha
trazido consigo para a vila de Cachoeira valor compatvel com o que foi gasto em seu funeral
e esmolas com os pobres, no sendo necessrio lanar estes valores no inventrio do falecido,
em sua tera, como usualmente ocorria. Outra testadora, Leonor Maria da Conceio,
moradora no Stio do Tanque das Bananeiras, Freguesia de So Gonalo dos Campos -
falecida em 28 de maros de 1750 -, recomendou que os gastos com o seu funeral e legados
fossem pagos com os rendimentos de duas safras de tabaco. Seu genro, Manuel da Costa
Lemos, testamenteiro e inventariante, declarou que foram utilizados os rendimentos das safras
de 1751 e 1752 para este fim53. Esta foi, em alguns casos, uma estratgia utilizada por alguns
48 Este hospital atualmente administrado pela Santa Casa de Misericrdia de Cachoeira, que foi fundada em 1826 e desde esta data exerce esta funo. 49 AHU/Bahia, Castro e Almeida, Caixa 29, doc. 5457. 50 APEB, Judicirio, Livro de registro de testamentos de Cachoeira, n 5, Testamento de Mateus de Madureira Bragana. 51 APEB, Judicirio, Livro de registro de testamentos de Cachoeira, n 5, Testamento de Ana Maria da Silva. 52 APEB, Judicirio, doc. 02/704/1166/01, Traslado do Inventrio post mortem de Jos Alexandre Peixoto de Mascarenhas. Auto de partilha dos bens do testador, fls. 106v-110. 53 APEB, Judicirio, doc. 02/639/1095/06, Cachoeira. Inventrio post mortem de Leonor Maria da Conceio, com testamento anexo.
37
testadores para no diminuir a herana dos seus descendentes com os altos custos de seus
sufrgios e legados.
Outra determinao pia de Jos Alexandre em seu testamento nos chamou a ateno:
Peo a meu testamenteiro que logo ao tempo do meu falecimento ajunte a todos os meus escravos forros e cativos, em meu nome pea a todos perdo pelo amor de Deus me perdoem os servios que deles