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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA DA RELIGIO
VOZES DA ORTODOXIA
O Snodo de Missouri e a Igreja Evanglica Luterana do Brasil: processos de formao e
relaes nos contextos da I Guerra Mundial e do final do Regime Militar
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio como requisito parcial obteno do ttulo de doutor em Cincia da Religio por Arnaldo rico Huff Jnior. Orientador: Prof. Dr. Zwinglio Mota Dias
Juiz de Fora
2006
Livros Grtis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grtis para download.
Para meus pais, Pastor Arnaldo e Dona Lgia, pelo exemplo de
vida e de dedicao s pessoas e ao seguimento de Jesus,
bem como pelo amor que deles tenho recebido.
Agradecimentos
So vrias as pessoas s quais se deve agradecer ao final de um curso de doutorado.
Pessoas que tiveram importncias diferentes. Umas um papel mais acadmico, outras mais
afetivo. Ainda outras, ambos. Todas fundamentais.
Comeo por agradecer minha namorada, Deliane, pelo abrigo que me deu em seu
corao a cada momento, e tambm pelo apoio, compreenso, incentivo e pacincia quem j
escreveu um trabalho acadmico sabe que essa uma qualidade importante; bem como sua
famlia pelas diversas acolhidas sempre carinhosas.
Tambm aos muitos amigos e colegas que tornaram minha estada em Juiz de Fora uma
aventura prazeirosa. De modo muito especial: aos amigos da universidade, Luis e Ana, Gigi,
Eduardo e Snia, Zwinglio e Elisa, Quico, Paulo e Ana, nio, Ednilson, Paulo Webler,
Vernica, Leandro; aos amigos da msica: Roger, Nanda, Rafa e Gustavo; bem como aos
amigos da Comunidade Evanglica Luterana Redentor, na pessoa do pastor Lademir.
Algumas pessoas de longe permaneceram tambm por perto. Valiosamente: Gugu,
Augusto, Volmir e Tita, Agenor, Fred Pieper, Luciano e Suzana, Csar, Xandy, Dani, Jerson.
Ao professor Zwinglio, orientador e amigo, devo uma deferncia especial pela
sabedoria em me deixar livre estando ao mesmo tempo presente.
Aos demais professores do PPCIR, minha gratido pela acolhida concomitantemente
profissional e amiga, especialmente a Lus Dreher, Francisco Pereira Neto, Marcelo Camura
e Ftima Tavares. Tambm a Antnio Celestino, pela ateno na secretaria.
Menciono ainda os professores e amigos que me acolheram em Amsterdam, na Vrije
Universiteit, aos quais devo muito: Andr Droogers, Marjo de Theje e Tijo Salverda, de modo
especial.
Outras pessoas foram tambm generosas e contriburam na elaborao deste trabalho.
Cito a Anneliese Dalmoro, bibliotecria do Seminrio Concrdia, a Ana van Meegen, da
biblioteca da Faculdade de Cincias Sociais da Vrije Universiteit Amsterdam, ao prof. Carlos
Moris, do Instituto Histrico da IELB, e tambm aos amigos Roberto Radnz e Eliseu
Teichmann, que gentilmente me enviaram por e-mail seus trabalhos de doutorado e de
mestrado, respectivamente.
Professores que estiveram comigo em outras pocas tiveram tambm papel
fundamental em minha formao. Devo agradecer sincera e especialmente a Nelson Kirst, na
EST, a Dinarte Belato, na UNIJU, e a Arnaldo Schler (falecido em 1999), no Seminrio
Concrdia.
Agradeo ainda aos funcionrios, membros e amigos da Comunidade Evanglica
Luterana da Paz, do CENASA e do SEMEAR, por terem tantas vezes me abrigado
proporcionando infraestrutura e afeto, tambm desta vez durante as pesquisas para a tese em
Porto Alegre e So Leopoldo.
Menciono finalmente s agncias de fomento FAPEMIG e CAPES, que tornaram este
doutorado possvel em termos materiais, e ao povo brasileiro, que com seu trabalho mantm o
ensino pblico gratuito.
A todos um abrao sincero e minha gratido,
Arnaldo rico Huff Jnior,
Juiz de Fora, 31 e julho de 2006.
O que nascido da carne carne; o que nascido do Esprito esprito. No te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas no sabes de onde vem, nem para onde vai; assim todo o que nascido
do Esprito. Jesus
O que torna o protestantismo protestante o fato de ele poder transcender o prprio carter religioso e confessional e a
impossibilidade de se identificar completamente com qualquer de suas formas histricas particulares ... O protestantismo tem
um princpio situado alm de suas realizaes. Paul Tillich
Quem sabe se a terra segue o seu destino, bola de menino para sempre azul... Quem sabe o homem mata o lobo homem e
olha o olhar do homem que seu igual... Quem sabe a festa chega floresta e o homem aceita a mata e o animal... Quem
sabe a riqueza e toda beleza estar nas mesas da terra do sul... Eu sou a atlntica dor plantada no lado sul...
Milton Nascimento
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................ 1
1. A IELB e o problema da pesquisa ........................................................................................ 2
2. O que j se produziu e a abordagem desta pesquisa ........................................................... 11
3. Um modo de ver a histria da IELB ................................................................................... 17
3.1. Mito e teologia na forma do discurso ............................................................................... 17
3.2. A prtica discursiva religiosa entre estruturas e eventos .................................................. 21
3.3. Elaborao de memrias e produo de identidades na histria ...................................... 29
4. Um modo de fazer a histria da IELB ................................................................................ 39
4.1. As fontes e seu tratamento ............................................................................................... 39
4.2. Escrita e organizao do texto .......................................................................................... 44
5. O locus poltico deste discurso ............................................................................................ 48
PARTE I: PROCESSOS FORMATIVOS DO LUTERANISMO DA LC-MS E DA IELB....52
CAPTULO 1: FORMAES DO LUTERANISMO NO CONTEXTO EUROPEU .......... 53
1. O processo de Confessionalizao ...................................................................................... 53
2. Lutero e Melanchthon: justificao pela f, confisses e nova durao ............................. 55
3. A doutrina dos dois reinos e o mundo social ...................................................................... 63
4. A Confessionalizao territorial .......................................................................................... 68
5. A Era da Ortodoxia e a influncia da filosofia .................................................................... 71
6. Ortodoxia e Pietismo ........................................................................................................... 76
7. O Racionalismo entre a Ortodoxia e o Pietismo ................................................................. 80
8. Algumas consideraes ....................................................................................................... 84
CAPTULO 2: O SCULO XIX E A FORMAO DO SNODO DE MISSOURI E DA IELB ........................................................................................................................................ 87
1. Transformaes nos territrios alemes sob a Revoluo Francesa ................................... 87
2. Restaurao modernizante e represso ................................................................................ 90
3. A Unio Prussiana ............................................................................................................... 93
4. Despertamento e Confessionalismo: uma outra reao ...................................................... 95
5. O Stephanismo .................................................................................................................. 101
6. Imigrao e crise nos Estados Unidos ............................................................................... 107
7. C. F. W. Walther e a fundao do Snodo de Missouri ..................................................... 113
8. A imigrao alem e os primrdios do Luteranismo no Brasil ......................................... 126
9. O incio das atividades do Snodo de Missouri no Brasil ................................................. 129
10. Algumas consideraes ................................................................................................... 134
PARTE II: O SNODO DE MISSOURI E A IELB EM DUAS CONJUNTURAS NO BRASIL ................................................................................................................................ 139
CAPTULO 3: O SNODO DE MISSOURI NO BRASIL DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL ............................................................................................................................ 140
1. Teuto-estadunidenses, teuto-brasileiros e a I Guerra ........................................................ 140
2. Proibio do idioma alemo, nacionalidade, confessionalidade ....................................... 145
3. Alemes, no, Luteranos! .................................................................................................. 151
4. Em portugus, ingls ou alemo, importava a pregao da Palavra ................................. 157
5. Os missourianos e os riograndenses .................................................................................. 161
6. Os missourianos e o poder pblico ................................................................................... 169
7. Uma investida extramuros: o incio da misso em Lagoa Vermelha ................................ 174
8. Os missourianos e o Catolicismo ...................................................................................... 176
9. Roma, o Anticristo: Hasse e os contornos de um discurso fundamentalista ..................... 185
10. Algumas consideraes ................................................................................................... 194
CAPTULO 4: A IGREJA EVANGLICA LUTERANA DO BRASIL AO FINAL DO REGIME MILITAR .............................................................................................................. 197
1. O Brasil dos anos 80 ......................................................................................................... 197
2. A IELB no Brasil dos anos 80 .......................................................................................... 200
3. Ainda luteranos e confessionais ........................................................................................ 207
4. Um af evangelstico ......................................................................................................... 212
5. Luteranos, sim, mas tambm cidados .............................................................................. 222
6. Uma aproximao do poder pblico ................................................................................. 233
7. IELB e IECLB em dilogo ................................................................................................ 241
8. Guerra e paz com o Catolicismo ....................................................................................... 247
9. Confisso, cincia e demais religies ............................................................................... 254 10. Algumas consideraes ................................................................................................... 260
CONCLUSO ...................................................................................................................... 262
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 270
Resumo
A tese trata dos processos de formao da Igreja Luterana - Snodo de Missouri e da
Igreja Evanglica Luterana do Brasil e de suas relaes socioculturais nos contextos da I
Guerra Mundial e do final do Regime Militar. A questo central gravita em torno da
construo de discursos, memrias e identidades do Luteranismo confessional e ortodoxo
destes grupos na Alemanha e nos Estados Unidos e de sua posterior recriao no Brasil.
Abstract
The dissertation deals with the processes of formation of The Lutheran Church -
Missouri Synod and the Evangelical Lutheran Church of Brazil, focusing on its sociocultural
relations in the differing contexts of World War I and the final phase of the Military Regime.
The central question is how the construction of discourses, memories and identities of these
groups orthodox and confessional Lutheranism happened both in Germany and the United
States and how it was later recreated in Brazil.
SIGLAS
AC Apologia da Confisso de Augsburgo
CA Confisso de Augsburgo
IECLB Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil
IELB Igreja Evanglica Luterana do Brasil
LC-MS The Lutheran Church-Missouri Synod
MC Mensageiro Christo
ML Mensageiro Luterano
ULBRA Universidade Luterana do Brasil
INTRODUO
De fato, luteranismo no tem nada que ver seja com poltica, ou Kultur, ou zonas de interesse, ou qualquer outro assunto deste mundo (Johannes Kunstmann, 1918).1 Enquanto vivem neste mundo, os cristos no podem afastar-se do contexto scio- poltico em que Deus os colocou e tm a tarefa sagrada importante de atuarem social e politicamente para melhorar o mundo em que vivemos. (Johannes Gedrat, 1984).2
A despeito das diferenas, as frases acima tm algo em comum. Para alm de seus
primeiros nomes, os respectivos autores compartilhavam alguns dados significativos, apesar
das notrias diferenas em termos de contedo, viso de mundo e momento histrico.
Primeiramente, a pertena institucional de ambos era a mesma: a Igreja Evanglica Luterana
do Brasil (IELB), na qual ocuparam posies de liderana, destacando-se o cargo de
presidente. Some-se a isso o fato de ambos possurem ascendncia alem. E acresa-se a
filiao de ambos a um tipo de religio que chamaremos de Luteranismo Confessional
Ortodoxo, trao que conferiu igreja a que pertencem posturas doutrinrias notadamente
uniformes ao longo de sua histria. Sublinhe-se por fim que, por serem ambos pastores-
lderes, eram representantes do discurso oficial de sua igreja.
As diferenas nos pronunciamentos so, por outro lado, latentes. Kunstmann
afirmava que o Luteranismo no tinha nada que ver com as questes deste mundo. Gedrat,
ao contrrio, assegurava que os cristos tinham uma tarefa social e poltica sagrada. como
se o primeiro apontasse somente para o cu e o segundo tambm para a terra. Eram modos
diferentes tanto de entender o lugar da religio na sociedade, quanto os seus prprios lugares
enquanto seres humanos. Note-se tambm que, apesar de ambos se pronunciarem desde um
mesmo lugar, isto , o discurso oficial da IELB, ao passo que Kunstmann se referia apenas ao
universo do Luteranismo, Gedrat tinha como referncia o universo do Cristianismo como um
todo. Eram, tambm nesse sentido, perspectivas notoriamente diferenciadas.
1 MC, 31/10/1918, suplemento para leitores em ingls: In fact, Lutheranism has nothing to do whatsoever with politics, or Kultur, or zones of interest, or any other affair of this world. [Todas as tradues so do autor]. 2 ML, 01-02/1984, p. 7-8.
2
Antes de continuarmos por perguntar o que mudou e o que no mudou relativamente
s concepes e prticas religiosas e polticas da IELB ao longo do sculo XX, convm que
esclareamos algo sobre ela enquanto organizao e que acerquemos, ainda que de modo
inicial, o que representa em termos religiosos e tnicos, para que ento possamos delimitar o
problema mais precisamente, aclarar nossa abordagem terico-metodolgica, explicar o
tratamento das fontes, a forma deste escrito e apontar o locus desde o qual escrevemos.
1. A IELB e o problema da pesquisa
O Luteranismo veio ao Brasil com os imigrantes europeus, principalmente a partir
do sculo XIX, desde 1824. Atualmente, as organizaes mais expressivas que representam o
Luteranismo no pas so a Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil (IECLB), que
conta com cerca de 800 mil membros, e a Igreja Evanglica Luterana do Brasil (IELB), com
perto de 200 mil.3 Alm destas, a tradio luterana conta no pas com a Associao de
Comunidades Luteranas Livres e com a Igreja Evanglica Congregacional do Brasil, tambm
existindo ainda algumas comunidades luteranas livres, no modelo das Freigemeinden. Todas
essas denominaes tm, entretanto, sua origem em um mesmo povo imigrante e razes
comuns no sculo XIX.4 Dentre estas, alm da IELB, tambm a IECLB, por sua importncia
nos processos que analisaremos, receber nossa ateno.
A IECLB fruto direto da emigrao dos territrios alemes para o Brasil, tendo
sido fundada, em 1949, pela unio entre o Snodo Riograndense (criado em 1886), o Snodo
Evanglico-Luterano de Santa Catarina, Paran e outros Estados da Amrica do Sul (criado
em 1905), a Associao de Comunidades Evanglicas de Santa Catarina e Paran (1911) e o
Snodo Evanglico do Brasil Central (1912). O processo conferiu ao grupo um carter deveras
plural, pelo fato de existirem entre eles tanto luteranos quanto calvinistas, entre outros, e
tambm de ter havido entre seus pastores tanto aqueles que obtiveram formao teolgica em
universidades quanto os que a receberam em academias de misso.5
A IELB, diferentemente, foi o resultado das atividades missionrias de um nico
snodo teuto-estadunidense, o Deutschen Evangelisch-Lutherischen Synode von Missouri,
Ohio und andern Staaten (Snodo Evanglico Luterano Alemo de Missouri, Ohio e outros
3 Ren GERTZ, Os luteranos no Brasil, p. 10. 4 Martin DREHER, Histria do povo luterano, p. 49. 5 Ricardo RIETH, Dois modelos de igreja luterana: IECLB e IELB, p. 259-261; tb. Martin DREHER, Histria do povo luterano, p. 52.
3
Estados), fundado em 1847, atualmente conhecido como The Lutheran Church - Missouri
Synod, LC-MS (A Igreja Luterana - Snodo de Missouri).
Deu-se assim que, em 1900, sabendo da presena de alemes luteranos no sul do
Brasil, o Snodo de Missouri passou a enviar missionrios a fim de prestar atendimento
religioso aos imigrantes teutos no Rio Grande do Sul. Dessa atividade surgiu, em 1904, o 15o
Distrito do Snodo de Missouri, que se tornou, em 1920, Snodo Evanglico Luterano do
Brasil e, em 1954, Igreja Evanglica Luterana do Brasil.6
Segundo dados oficiais da IELB, os membros a ela filiados esto divididos em mais
de 1.800 congregaes e pontos missionrios, atendidos por mais de 500 pastores. Tambm
afiliadas ao grupo esto centenas de escolas, o Seminrio Concrdia, a Editora Concrdia, um
nmero pequeno mas crescente de instituies de servio social e a Universidade Luterana do
Brasil (ULBRA) em 2001, a quarta no conjunto das universidades do pas em nmero de
alunos e a terceira entre as particulares.7 Alm disso, o grupo mantm uma programao
diria de mensagens pelas rdios do pas, coordenada pela organizao Cristo Para Todas as
Naes (CPTN). 8
Em termos de relaes internacionais, a IELB participa do International Lutheran
Council (ILC) [Conselho Luterano Internacional], organizao de igrejas luteranas
confessionais alternativa Lutheran World Federation (LWF) [Federao Luterana Mundial],
de posturas teolgicas mais diversificadas.9
A clula bsica da estrutura organizacional da IELB a congregao, comunidade
de luteranos formalmente constituda e reunida sob a responsabilidade de uma diretoria local e
de um ou mais pastores. Duas ou mais congregaes unidas formam uma parquia.
Congregaes e parquias unidas formam um distrito. Para a administrao dessa agremiao
de congregaes, h uma Diretoria Nacional, eleita para um mandato de 4 anos. Acima da
Diretoria Nacional, um Conselho Diretor, composto por representantes dos distritos. E ainda
acima do Conselho Diretor, a Conveno Nacional, composta por representantes das
congregaes, a qual responsvel tambm pela eleio da Diretoria Nacional. Ao lado desta
estrutura, existem algumas agremiaes em nvel nacional internas ao grupo, chamadas de
organizaes auxiliares, so elas: a Liga de Servas Luteranas do Brasil (LSLB), a Liga de
6 Mrio L. REHFELDT, Um gro de mostarda, p. 110. Walter STEYER, Os imigrantes alemes no Rio Grande do Sul e o luteranismo, p. 14. Quanto datao da primeira mudana no nome do grupo, h discordncia entre autores: Rehfeldt situa-a em 1920, Steyer, em 1937. 7 As informaes sobre a universidade foram extradas da Folha de So Paulo por Ren GERTZ, Os luteranos no Brasil, p. 10. 8 IELB - Igreja Evanglica Luterana do Brasil (Site oficial). 9 Idem.
4
Leigos Luteranos do Brasil (LLLB), a Juventude Evanglica Luterana do Brasil (JELB), a
Associao Nacional de Educao Luterana (ANEL) e a Associao de Entidades Sociais da
IELB (AESI).10
Um dos traos que tem acompanhado a IELB sua identidade tnica teuta. Assim,
por exemplo, ainda que a organizao esteja presente atualmente em todos os estados da
Federao e no Distrito Federal (alm de manter uma comunidade no Uruguai e de ter
empreendido misses na Argentina, Paraguai e Portugal, hoje igrejas independentes), h uma
maior concentrao de congregaes da IELB nos estados do Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Paran e Esprito Santo, no por coincidncia, pontos de referncia da imigrao
alem. De outra forma, dos 815 pastores arrolados pela IELB em seu site em 2005, somente
cerca de 10% tm sobrenomes reconhecidamente portugueses, como Machado, Oliveira,
Santos, Silva ou Souza, enquanto que os demais portam principalmente sobrenomes alemes,
como Hoffmann, Krger, Lange, Muller, Schmidt, Schneider ou Sonntag. Traos tnicos
podem, portanto, ser percebidos sem esforo at os dias atuais.11
A caracterstica da instituio que mais nos interessa, porm, articula-se em termos
religioso-doutrinrios. Conforme o Artigo 3o de seus Estatutos, o grupo define-se da seguinte
maneira: A IELB aceita todos os livros cannicos das Escrituras Sagradas, do Antigo e do
Novo Testamento, como palavra infalvel, revelada por Deus. Como nica exposio correta
da Escritura Sagrada, ela aceita os livros simblicos da Igreja Evanglica Luterana, reunidos
no Livro de Concrdia do ano mil quinhentos e oitenta (1580), e no admitir alterao
alguma desta norma.12
Ao subscrever, assim, completamente o Livro de Concrdia, o qual contm
confisses de f e doutrina do Luteranismo, a IELB define-se oficialmente como uma igreja
luterana confessional. Para fins de tratamento terico, opto por acrescentar o termo ortodoxo
categoria anterior, a fim de diferenciar entre a confessionalidade da IELB e a de outros
grupos que tambm fazem uma opo confessional sem serem necessariamente ortodoxos,
como o caso da IECLB, que j em seu nome se apresenta como Igreja Evanglica de
Confisso Luterana no Brasil. A IELB no , portanto, a nica igreja luterana a dizer-se
confessional. A IECLB tambm o , porm com outra compreenso de confisso. A
10 IELB - Igreja Evanglica Luterana do Brasil (Site oficial). 11 A partir de dados extrados de IELB - Igreja Evanglica Luterana do Brasil (Site oficial). Muitos destes 815 no esto envolvidos diretamente em atividades pastorais, o que explica a diferena entre os pastores arrolados e os que so efetivamente contados entre os mais de 500 mencionados anteriormente. Tb. Arnaldo E. HUFF JNIOR, The orthodoxy must go on...: official discourses and political identities among confessional German Lutherans in Brazil, p. 1. 12 IELB, Estatutos, regimento e cdigo de tica pastoral, p. 15.
5
confessionalidade da IELB reveste-se, na verdade, de traos diferenciados, pelos quais torna-
se fator central a definir pertenas e prxis.
Pode-se entender, de modo ideal, que o Luteranismo Confessional Ortodoxo um
tipo de Luteranismo que tem oficialmente como normas incondicionais de f e prtica: 1) a
Bblia, considerada como a palavra de Deus inspirada e infalvel e 2) as Confisses Luteranas
agrupadas no Livro de Concrdia de 1580, consideradas como a verdadeira exposio de tal
palavra de Deus. Os seguintes escritos compem o Livro de Concrdia: os trs Credos
Ecumnicos, a Confisso de Augsburgo (1530), a Apologia da Confisso de Augsburgo
(1530), os Artigos de Esmalcalde (1537), o Catecismo Menor (1529), o Catecismo Maior
(1529) e a Frmula de Concrdia (1577).13 So estes os Livros Simblicos do Luteranismo. A
assuno de que a nica interpretao correta da Bblia, a infalvel revelao de Deus, est
apresentada no Livro de Concrdia o critrio oficial para pertena individual e grupal s
instituies do Luteranismo de tipo ortodoxo-confessional, bem como um fator central na
busca pela manuteno da unidade de igrejas e organizaes.
Na verdade, a identificao da igreja-me Snodo de Missouri e da IELB com a
questo da inerrncia verbal da Bblia marcou profundamente suas construes identitrias
durante o sculo XX, refletindo a tenso da busca de reconciliar o Luteranismo Ortodoxo a
questes contemporneas. Conforme Mary Todd, o Snodo de Missouri redefiniu durante o
sculo XX sua identidade confessional a fim de assegurar a imutabilidade de suas crenas
diante das rpidas foras de mudana histrica que estiveram em movimento. A proibio do
ministrio feminino no grupo, assentada sobre o argumento de uma fixa subordinao da
mulher em funo da defesa de uma ordem da criao, , segundo a autora, um exemplo de
tal reao, que considera relativamente recente.14 O que aconteceu na IELB nesse perodo
deu-se de modo semelhante, a saber, um processo de articulao s transformaes na
sociedade brasileira e mundial, por vezes na contramo das mesmas, a fim de garantir a
propagao de suas verdades religiosas e a perpetuao do grupo. So, portanto, identidades
construdas nos contatos e trocas sociais.
13 LIVRO DE CONCRDIA, passim. 14 Mary TODD, Authority vested: a story of identity and change in the Lutheran Church-Missouri Synod, p. 3-5. A posio poltico-acadmica da autora fica clara j na introduo do livro, sua tese de doutorado: A narrative of inconsistency records the struggle of this historically ethnic denomination to define itself over against the rapid social changes of the twentieth century, changes that have threatened both its intent and its attempt to remain in the world but not of the world (p. 5) [Uma narrativa de inconsistncia registra a luta desta denominao historicamente tnica para definir-se diante das rpidas mudanas sociais do sculo vinte, mudanas que tm ameaado ambas, sua intencionalidade e sua busca por permanecer no mundo sem ser do mundo].
6
H, nesse contexto, como que um ncleo duro e aglutinador das crenas da IELB e
da LC-MS, o corao de seu sistema religioso oficial e herana forte da Reforma do sculo
dezesseis: a crena de que o ser humano salvo somente pela f por meio de Jesus, e no por
qualquer tipo de boas obras. A salvao eterna, nessa viso, fruto exclusivo da graa e
compaixo de Deus, ao passo que as obras tornam-se uma conseqncia da vida crist, no
uma necessidade para alcanar a Deus. De acordo com tal concepo, Deus quem vem aos
homens, e no os homens que a ele chegam. A sustentao dessas crenas garantida pelo
entendimento de que elas esto reveladas na Bblia diretamente por Deus, em sua palavra
inspirada e infalvel, a qual foi, por sua vez, exposta corretamente apenas nas Confisses
Luteranas de 1580. A verdadeira igreja de Cristo na terra , por conseguinte, somente aquela
que assim se posicionar. Em tais crenas no so admitidas alteraes de nenhum tipo e os
pastores devem atender ao chamado divino de atalaias e propagadores dessa verdade.15 Ao
redor desse ncleo duro foram sendo derivadas e elaboradas doutrinas, discursos, memrias e
identidades que fundamentam aes e polticas individuais e grupais, e que ao mesmo tempo
constituem outros ncleos, relativos, por exemplo, s esferas da educao, da misso, da
diaconia, etc. O todo desse conjunto forma uma estrutura que fundamenta a IELB enquanto
instituio. Atravs de tal estrutura cultural e social as pessoas, ento, elaboram sentidos nas
situaes concretas da vida. Nesse processo, todavia, essa prpria estrutura colocada em
prtica e re-vista, de modo que pode sofrer deslocamentos, rearranjos e mesmo
transformaes mais ou menos substanciais, numa dinmica no necessariamente linear ou
evolutiva. E comeamos, assim, a delinear nosso problema.
Vejamos um exemplo. As concepes religiosas do ncleo duro do Luteranismo
Confessional no so novas e podiam j ser encontradas, ao menos em parte, em Lutero, no
sculo XVI. De fato, o modo como os luteranos constroem a memria de seu lder carismtico
faz dele uma figura central na constituio de suas identidades grupais e individuais. Dizer-se
luterano, diferentemente de dizer-se catlico, assembleiano, presbiteriano, umbandista ou
batista, constitui uma identidade que principia por atrelar-se ao prprio fundador do
movimento, figura central da reforma alem: Martinho Lutero.
Um dos fatores de convergncia dessas identidades o braso conhecido como rosa
de Lutero, criado e explicado pelo prprio reformador.
15 IELB Igreja Evanglica Luterana do Brasil (site oficial).
7
(Disponvel em: . Acesso em: 15/08/2005)
Sobre a rosa, explicou Lutero:
Primeiro, deve haver uma cruz preta dentro de um corao o qual retm a sua cor natural para que eu seja lembrado que a f no Crucificado nos salva. Pois quem cr de corao ser justificado (Romanos 10.10). Embora seja uma cruz preta, que mortifica e que tambm deve causar dor, ela deixa o corao em sua cor natural. Ela no corrompe a natureza, isto , ela no mata, mas mantm vivo. "O justo viver por f" (Romanos 1.17), mas pela f no Crucificado. Tal corao deve estar no meio de uma rosa branca, para mostrar que a f d alegria, conforto e paz. Em outras palavras, ela coloca o crente em uma rosa branca, de alegria, pois esta f no d paz e alegria como o mundo d (Joo 14.27). por isso que a rosa deve ser branca, e no vermelha, pois o branco a cor dos espritos e dos anjos (conforme Mateus 28.3; Joo 20.12). Tal rosa deve estar numa rea de azul celeste, simbolizando que tal alegria em esprito e f o comeo da futura alegria celestial, que j comea, mas obtida em esperana, pois ainda no revelada. Ao redor dessa rea est um crculo dourado, simbolizando que tal bno no cu dura para sempre; sem fim. Tal bno vai alm de toda a alegria e bens, assim como o ouro o melhor metal, o mais valioso e precioso. Este o meu compendium theologiae [o sumrio da teologia]...16
A imagem discursiva e iconogrfica criada por Lutero, publicada na pgina oficial
da IELB na internet, ainda hoje um lugar importante de convergncia identitria entre
luteranos no mundo todo, dada sua capacidade de sntese das crenas grupais. Tais
identidades, todavia, no adquirem necessariamente um mesmo contedo ou uma mesma
forma, como vemos, por exemplo, no logotipo da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
16 IELB - Igreja Evanglica Luterana do Brasil (Site oficial).
8
(Disponvel em: . Acesso em: 15/08/2005)
O logotipo indicativo dos modos pelos quais uma ortodoxia religiosa pode ser
designed e redesigned, e de como antigos contedos em formas novas podem embasar
identidades grupais.17 Trata-se de uma adequao de Lutero s necessidades de marketing do
mundo capitalista.
De fato, o Luteranismo da IELB no revela anlise histrica a unanimidade que
seu discurso oficial sustenta. Basta que vejamos as declaraes citadas na epgrafe. Ao lado
de permanncias seculares, manifestam-se, tanto sincrnica quanto diacronicamente, fissuras,
descontinuidades, possibilidades latentes ou reprimidas de transformao ou divergncia. Se
existem, assim, na IELB, crenas, doutrinas, discursos e modos de agir que remontam
Reforma e a Lutero ou s tradies do Cristianismo bblico, estas estruturas estiveram e esto,
ao mesmo tempo, sujeitas a reformulaes e interpretaes locais conforme a realidade
histrica em que forem inseridas e vividas. H como que uma via de mo dupla entre o que se
entende como herana e tradio e as dinmicas da existncia histrica. Assim, se por um
lado, as doutrinas e teologias so constantemente reforadas no ritual e na educao, e
histrias hericas dos momentos de origem das crenas so contadas e recontadas, em
processos que tendem a confirmar e garantir a permanncia da confessionalidade ielbiana; por
outro lado, estas estruturas so constantemente desafiadas atualizao, negociadas e
disputadas internamente, no seio da prpria igreja, e externamente, na fronteira com outros
grupos e estruturas. O que pode ou no ocasionar transformaes de maior ou menor alcance.
Dito isso, as questes centrais que nos acompanharo nesse estudo so as seguintes:
Como se deu a formao desse Luteranismo Confessional Ortodoxo? Como pastores e lderes
da IELB construram tal Luteranismo no Brasil? Que percepes acerca do lugar da igreja na
sociedade foram geradas nesse contexto? Para recortar a espessura destes processos,
tematizaremos a produo de discursos, identidades e memrias.
17 Jeremy STOLOW, Designing orthodoxy: paradoxes of authenticity and addressivity in a Jewish orthodox press; tb. Arnaldo rico HUFF JNIOR, Imagens de Lutero no luteranismo brasileiro: polticas e identidades na Igreja Evanglica Luterana do Brasil entre a I Guerra Mundial e o Ps-Ditadura Militar.
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Propomos, com essas questes, um olhar de problematizao por sobre uma igreja
que tem sido considerada freqentemente como um bloco monoltico e unnime. Queremos
observar num recorte de tempo longo o surgimento de seus discursos em disperso,
descontinuidade e rarefao, como dizia Foucault.18 Como veremos, uma ortodoxia, mesmo a
mais hermtica, pode ser compreendida em termos de suas transformaes e permanncias
pelas relaes historicamente datadas. A histria que pretendemos contar no ser vista,
portanto, como tendo um sentido, um alvo a perseguir como uma flecha disparada de um
ponto de vista supra-histrico; uma histria que lana por sobre o passado um olhar de fim do
mundo, fora do tempo. No queremos agregar histria da IELB um valor teleolgico, mas
antes coloc-la no caleidoscpio para percebermos a mirade de fatos e acasos e disputas que
a atravessou.19
s questes que colocamos poderamos, ento, alinhar ainda uma outra srie de
questes de acercamento mais especficas, como por exemplo: Como as crenas organizaram
os discursos e prticas polticas oficiais do grupo e como foram estas reconstrudas em
diferentes conjunturas? Como so negociadas as identidades polticas, tnicas e religiosas em
questo? Quais modos de estar no mundo so gerados pelas identidades construdas a partir
dessas crenas e das interaes sociais do grupo religioso? Que mudanas em termos de
cultura poltica podem ser identificadas? Quais relaes de poder esto em movimento interna
e externamente? Quais so os discursos sobre o outro (e sobre o self) em termos de religio,
etnicidade, nacionalidade e poltica? Como esses discursos so transformados, reconstrudos,
reinterpretados? De que modo as mudanas polticas e econmicas brasileiras influenciaram e
causaram alteraes nesses discursos? Como os pastores e lderes da IELB responderam a
essas mudanas? Enfim, como essa ortodoxia confessional tem sido praticada e recriada no
Brasil?
O primeiro entrave que nos deparamos na elaborao destas questes deu-se no
campo da percepo do tempo. Logo ficou claro que seria difcil uma compreenso adequada
do assunto IELB somente atravs de um recorte sincrnico. Era preciso uma percepo de
longa durao que abarcasse a formao das crenas e discursos que foram re-vividos no
Brasil. Por outro lado, um trabalho que abarcasse o todo do sculo XX, e que no pretendesse
18 Michel FOUCAULT, Arqueologia do saber, passim. 19 Paul VEYNE, Como se escreve a histria e Foucault revoluciona a histria, p. 248, 264; Michel FOUCAULT, Nietzsche, genealogia, histria, p. 271: nessa perspectiva, o sentido histrico escapar da metafsica para se tornar o instrumento privilegiado da genealogia se ele no se apia em nenhum absoluto. Ele deve ser apenas essa acuidade de um olhar que distingue, reparte, dispersa, deixa agir as separaes e as margens uma espcie de olhar que dissocia, capaz de se dissociar dele mesmo e apagar a unidade desse ser humano que, supostamente, o conduz soberanamente na direo do seu passado.
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ser raso, no caberia no espao e no tempo que uma tese de doutorado deve ter atualmente.
Optamos assim por uma estruturao do argumento em trs recortes temporais divididos em
duas partes. A primeira, de longa durao, tratar dos processos formativos das
macroestruturas que perfazem o Snodo de Missouri e a IELB e de como foram sendo gerados
discursos, identidades e memrias oficiais. A segunda parte corresponder anlise da IELB
nos contextos brasileiros da I Guerra Mundial e do final do Regime Militar. Teremos, assim,
uma anlise diacrnica e outra sincrnica, a partir das quais poderemos ter uma idia da
formao de discursos e estruturas e de suas reconstrues brasileiras. Acreditamos, nesse
sentido, que uma tal perspectiva poder nos proporcionar uma boa percepo das
movimentaes que perfizeram a implantao desse tipo de religio no Brasil e dos processos
de recriao que envolveram os atores em questo nesses diferentes perodos.
Por que a escolha dos contextos da I Guerra e do final da Ditadura? Primeiramente
porque constituem momentos suficientemente diferentes, poltica e religiosamente, na histria
do grupo e do Brasil, para possibilitar uma comparao, em funo mesmo de sua distncia
temporal. Segundo, por apresentarem dinmicas suficientemente fortes em meio sociedade
brasileira para demandar posicionamentos IELB e a seus pastores e lderes. No contexto da I
Guerra, pela primeira vez o grupo foi alvo de transformaes ocorridas na sociedade
brasileira. Da declarao de guerra por parte do Brasil Alemanha, em 1917, resultaram a
proibio do uso do idioma alemo (que durou somente at o final do conflito), o fechamento
de escolas alems e um impedimento das atividades missourianas no pas, porque totalmente
dependentes da lngua e da cultura germnicas. O recurso utilizado foi, de um modo geral, o
de argumentar que a igreja nada tinha que ver com poltica, mas apenas com a pregao da
palavra. Ao final da ditadura, por sua vez, a lngua oficial da IELB j no era mais o alemo,
mas o portugus, as atividades haviam se expandido para quase todas as regies do pas e
praticamente todo o clero era formado no Brasil. Em tal processo, na experincia das mazelas
que envolveram o pas naquele perodo, os lderes da IELB passaram a manifestar-se tambm
sobre questes desse mundo, como poltica, corrupo, pobreza, etc. As diferenas entre os
discursos e identidades construdas, bem como as disputas relativas a estas, so claras. A
anlise dos documentos ajudar, porm, a perceber que tais diferenas no se restringiram
somente s posies polticas, mas tm a ver com questes de percepo do prprio lugar da
igreja na sociedade, de sua responsabilidade e de suas relaes com os demais grupos sociais;
questes, portanto, de fundo tambm teolgico.
Todavia, por tratar-se de um estudo sobre discursos, memrias e identidades de
pastores e lderes, e portanto oficiais, que recorrem ao mbito da teologia, escapa
11
delimitao do objeto a esfera de ao do leigo comum, to interessante e cara a boa parte das
abordagens empreendidas atualmente sob a inspirao dos estudos culturais, da histria das
mentalidades ou da histria cultural, e que buscam uma compreenso de totalidade.20 De fato,
nossa anlise, no uma histria vista de baixo, ainda que por vezes estaremos procurando
tal perspectiva. Uma histria desde baixo precisa ainda ser escrita sobre a IELB. Todavia,
alm de nossa preferncia pessoal, h atualmente alguma relevncia poltica no estudo de
ortodoxias e fundamentalismos em sua acepo oficial, tendo em vista os confrontos
existentes em nvel mundial. Para acessar tais questes, faz-se necessria tambm uma
abordagem vista de cima. hora de relativizar, e a histria uma boa companheira nesse
esforo. Por outro lado, estaremos contemplando sujeitos histricos que, ligados por laos
estruturais de solidariedade, em alguma medida representam a IELB como um todo, tambm
porque foram eleitos para isso por processos mais ou menos democrticos.
2. O que j se produziu e a abordagem desta pesquisa
Os estudos dedicados ao Protestantismo no Brasil no so poucos. O nmero,
contudo, diminui se procurarmos por pesquisas dedicadas ao Luteranismo. E rareiam ainda
mais se buscarmos pelos estudos histricos sobre a IELB ou que a incluam. Alm das
dissertaes inditas de Paulo Buss (Relations between the Lutheran Church-Missouri Synod
and the Igreja Evanglica Luterana do Brasil), Agenor Berger (A postura da Igreja
Evanglica Luterana do Brasil frente ao regime militar [1964-1985]), Eliseu Teichmann
(Imigrao e Igreja: as comunidades-livres no contexto da estruturao do luteranismo no
Rio Grande do Sul), Srgio Marlow (Nacionalismo e Igreja: a Igreja Luterana Snodo de
Missouri nos pores do Estado Novo) e da tese de Roberto Radnz (A terra da liberdade, o
protestantismo luterano em Santa Cruz do Sul no sculo XIX), existem alguns poucos artigos,
como os de Ricardo Rieth (Igreja Evanglica Luterana do Brasil: uma abordagem histrica;
Dois modelos de igreja luterana: IECLB e IELB; Luteranismo rio-grandense no sculo 20: da
independncia institucionalizao) e de Srgio Marlow (Nacionalismo e Igreja: o Estado
Novo e a Igreja Luterana Snodo de Missouri), e os textos publicados de Carlos Warth
(Crnicas da Igreja), Roberto Radnz (Do poder de Deus depende), Walter Steyer (Os
imigrantes alemes no Rio Grande do Sul e o luteranismo) e Mrio Rehfeldt (Um gro de
mostarda [originalmente, The first fifty years of the history of the Igreja Evanglica Luterana
20 Ver, p. ex. Michel de CERTEAU, A inveno do cotidiano; Carlo GINZBURG, O queijo e os vermes; Jacques LE GOFF e Pierre NORA (Orgs.), Histria.
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do Brasil: the Brazilian District of the Missouri Synod]). A editora da IELB lanou tambm,
recentemente, uma coletnea de biografias e documentos, organizada por Carlos Winterle e
Martinho Krebs (Histrias da histria da Igreja Evanglica Luterana do Brasil), que parece
ser uma interessante fonte de pesquisa. Some-se a estes esforos ainda algumas pesquisas do
autor destas pginas (Espiritualidade, processos e prticas sociais, um estudo sobre
luteranismo confessional no Brasil; Imagens de Lutero no Luteranismo Brasileiro: polticas e
identidades na Igreja Evanglica Luterana do Brasil entre a I Guerra Mundial e o Ps-
Ditadura Militar; The orthodoxy must go on..., official discourses and political identities
among confessional German Lutherans in Brazil).21
Os trabalhos podem ser ditos alguns mais apologticos, outros menos. Alguns
mais religiosos, outros mais cientficos. Tais diferenciaes, porm, podem por vezes no
perceber os teores de f cientfica recorrentes nas anlises ditas puramente acadmicas, e
que da mesma forma embaam a viso do pesquisador.
Sem menosprezar qualquer crtica pertinente, nossa questo , todavia, de outra
natureza. Pretendemos nos afastar daquela historiografia do Protestantismo que, por no ter
incorporado os avanos tericos no campo da prtica historiogrfica ocorridos no ltimo
sculo, permanece construindo uma narrativa acontecimental ou fatual, como apontaram j as
primeiras geraes da Escola dos Analles.22 Evitaremos, portanto, uma compreenso da
histria como uma srie encadeada de acontecimentos grandiosos protagonizados por heris
da f, para privilegiar uma problematizao no s destes ditos grandes acontecimentos, mas
tambm de outros no to valorizados protagonizados por atores aparentemente no to
importantes, inseridos em jogos de poder ao redor de discursos, memrias e identidades que
pertencem esfera da religio. Por outro lado, tais discursos, memrias e identidades,
justamente por pertencerem ao mbito religioso, alm do olhar de uma histria
problematizada, merecem tambm as possibilidades de interpretao que estudos de cunho
histrico-fenomenolgico tm oportunizado ao pesquisador.
Este trabalho, assim, no contexto do que j se produziu, se pretende um estudo de
histria sociocultural da religio acerca da IELB, com foco principal nos discursos, memrias
21 As referncias completas encontram-se na Bibliografia, nos pontos 4 e 5. 22 O. DUMOULIN, vnementielle [acontecimental] (histria), p. 315-316. Comeam a aparecer algumas anlises crticas sobre as condies de produo do discurso histrico relativo ao Protestantismo brasileiro. O que , por certo, muito saudvel. Ver, p. ex., Tiago Hideo Barbosa WATANABE, Caminhos e histrias: a historiografia do protestantismo na Igreja Presbiteriana do Brasil. Para uma aproximao do Protestantismo brasileiro pelo vis das novas abordagens ver, p. ex., Karina Kosicki BELLOTTI, Mdia, religio e histria cultural; tb. Lyndon de Arajo SANTOS, As outras faces do sagrado: protestantismo e cultura na primeira repblica brasileira.
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e identidades religiosas de pastores e lderes. No se trata, portanto, de uma Histria da
IELB na acepo fatual-positivista do termo, mas da anlise de sries de acontecimentos que
a envolveram. Todavia, ainda que por meios tericos e metodolgicos por vezes diversos dos
demais trabalhos e com objetivos diferentes, posiciono-me num esforo semelhante ao dos
demais autores, em busca de compreenso da IELB enquanto fenmeno religioso. Num
campo to escorregadio quanto o das cincias humanas, a postura de generosidade , penso,
imperativo fundamental.
Em meio aos estudos histricos da religio, podem ser separadas, histrica e
teoricamente, duas correntes principais. De um lado, temos a chamada histria das religies,
uma das muitas filhas da teologia e da filosofia, que, surgida no sculo XIX, caracteriza-se
por analisar as origens e os perodos mais antigos das religies, principalmente a partir de um
mtodo fenomenolgico, muitas vezes comparativo e filolgico, em busca de uma essncia
comum s diversas religies. Nessa corrente encontraremos nomes expressivos como os de
Max Mller, Mircea Eliade e G. Van Der Leeuw. Do outro lado, est aquela que tem sido
chamada de histria religiosa, representada tambm por reconhecidos estudiosos como Marc
Bloch, Jacques Le Goff e Carlo Guinzburg. Essa histria religiosa surge na confluncia entre
a histria literria das doutrinas, a histria eclesistica, a sociologia religiosa e os problemas
apresentados histria econmica e social pela estratificao scio-profissional das
civilizaes pr-industriais, que colaborou tambm para o surgimento, nos Annales, da
histria das mentalidades, hoje reconfigurada em histria cultural. Um trao distintivo da
histria religiosa em relao histria das religies o estudo especfico de uma s tradio
religiosa, afastando-se, portanto, do mtodo comparativo. Outra caracterstica a de que os
estudiosos afiliados histria religiosa apresentam, por vezes, o interesse na religio como via
de compreenso de questes sociais que transcendem o universo propriamente religioso, em
direo economia e poltica, por exemplo; no que se diferem tambm dos historiadores das
religies, em funo do claro interesse destes pelo especfico do fenmeno religioso.23
Atualmente, entretanto, as fronteiras entre as duas correntes no esto delineadas de
modo to claro como outrora o que , para mim, fato positivo. Um certo hibridismo terico-
metodolgico pode ser percebido em diversos esforos, como, por exemplo, no recente
nascimento da linha de pesquisa histria social e cultural da religio, qual nos
23 Eduardo Basto de ALBUQUERQUE, Distines no campo de estudos da religio e da histria, p. 57-67; Dominique JULIA, A religio: histria religiosa, p. 110-112; tb. Jaqueline HERMANN, Histria das religies e religiosidades, p. 339-340. Ronaldo VAINFAS, Histria das mentalidades e histria cultural, p. 150-153; A. ROUSSELLE, Religio, histria das religies, p. 667-672; C. LANGLOIS, Religio, histria religiosa, p. 658-667.
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congregamos no PPCIR da UFJF, vinculada rea de concentrao em cincias sociais da
religio. Ainda que de fato poucos avanos tenham acontecido no dilogo entre as duas
tradies, ao menos na nomenclatura a linha de pesquisa aponta para a relativizao de tais
fronteiras. Assim tambm a Associao Brasileira de Histria das Religies tem sido lugar de
encontro de pesquisadores interessados em ambas as formas dos estudos histricos acerca da
religio. O campo complexo e merece, de fato, mltiplos e atentos olhares.24
No tocante (nova) histria cultural, ou sociocultural como prefiro a exemplo de
Chartier25 porque enquanto preocupada com a cultura no descuida do social ,
caracterstica marcante tem sido o dilogo intenso com as demais cincias humanas, como a
antropologia, a sociologia, a psicologia e a lingstica. Nessa troca, historiadores vm
trazendo tona uma srie de temas e abordagens inspirados em processos interdisciplinares.26
Em nosso trabalho construiremos, nessa vertente, um discurso que se movimenta no campo da
histria em constante dilogo com a antropologia e a sociologia, mas tambm com a teologia,
uma vez que estaremos tratando de processos sociais e de construes simblico-religiosas
mais ou menos sistematizadas no mbito da teologia luterana.
No preciso que explicitemos a dependncia da disciplina da histria para com a
sociologia e a antropologia, entre outras, principalmente se considerados os desenvolvimentos
tericos da histria social e cultural ao longo do sculo XX.27 A relao desta para com a
teologia, entretanto, merece maior ateno. De fato, diversas crticas tm sido apresentadas
aos cientistas sociais da religio a respeito de seus interesses religiosos, termo empregado 24 Vide, p. ex., Giovanni FILORAMO e Carlo PRANDI, As cincias das religies, p. 14-15: A primeira contradio (...) est ligada subjacente concepo de histria. De um lado, h quem a entenda de um modo restritivo, terminando por confundi-la com a filologia. Trata-se de uma interpretao redutiva, que corre o risco de ignorar o grande desenvolvimento das cincias histricas no nosso sculo e, sobretudo, o imponente trabalho de reviso historiogrfica que algumas escolas, como a Analles, promoveram, estabelecendo relaes de vital e recproca fecundao entre histria e cincias humanas. Compreende-se, por isso, que, de outro lado, haja quem reinterpretando a histria das religies em funo dessa concepo mais ampla, dinmica, flexvel e aberta de histria a entendeu como uma disciplina de tipo essencialmente histrico, em cujo tronco se enxertariam tambm as contribuies provenientes das diferentes cincias humanas. (...) [Todavia,] o aspecto distintivo de uma histria comparada das religies sempre foi o fato de ter de levar em conta no s o momento diacrnico, mas tambm o sincrnico, no estudo dos fenmenos religiosos. Junto com as questes relativas gnese, ao desenvolvimento e eventualmente ao fim de um fenmeno religioso, o historiador das religies teve de aprender, por uma srie de demandas internas, ao seu prprio campo de estudos, a se envolver com questes relativas continuidade e durao, aos modelos e estruturas. 25 Roger CHARTIER, beira da falsia, a histria entre certezas e inquietudes, p. 21; tb. Peter BURKE, Histria e teoria social, p. 170: A difuso do termo composto sociocultural sugere ainda um grau cada vez maior de conscientizao sobre a importncia da cultura e, inversamente, sobre a maleabilidade da sociedade. 26 Temas como identidades, cultura popular, vida privada, performances, mitos, rituais, culturas hbridas, fronteiras, narrativas, discursos, prticas, so j terminologias usuais que habitam o fazer cotidiano destes novos historiadores. 27 Ver, p. ex., Peter BURKE, Histria e teoria social; tb. Id., A Escola dos Annales (1929-1989), a Revoluo Francesa da historiografia; tb. Franois DOSSE, Histria e cincias sociais.
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agudamente por Antnio Pierucci.28 Mais adiante nesta introduo tratarei de buscar um
acerto de contas com tais crticas, as quais podem ser preciosas. Por hora, contudo, detenho-
me em definir melhor nossa aproximao da teologia.
H primeiramente uma diferena, ainda que tnue, entre o discurso religioso e o
teolgico: o primeiro marcado pelo trao auto-implicativo e pela proximidade para com a
experincia vivida da religio; o segundo, regrado pelas exigncias da razo e, portanto,
sistemtico e metdico.29 Se que se pode considerar que estaremos aqui fazendo teologia,
at este ponto que queremos ir: o da prpria teologia, no o da religio. Telogos, nesse
sentido, so especialistas numa linguagem, so lingistas que estudam o dialeto de uma
religio dada, como disse Gross.30 Portanto, mesmo sem pretender sustentar uma
aproximao totalmente neutra e objetiva, pontuo que no vislumbro aqui uma
instrumentalizao propositiva do religioso, mas a utilizao de uma teologia compreendida
enquanto discurso sistemtico sobre mitos, ritos e smbolos de uma dada tradio (no caso, a
luterana), que pode colaborar na compreenso do fenmeno religioso.31
Considerando que esta uma tese de doutorado em cincia da religio (e no em
histria de modo especfico), acolho, assim, o desafio interdisciplinar que tem caracterizado a
rea e me coloco como historiador da religio a fazer perguntas de ordem antropolgica,
sociolgica e teolgica ao passado da IELB, e a tentar respond-las em um mesmo processo
interdisciplinar.
A partir de uma tal perspectiva, estaria ao menos atenuada a problemtica do
esquecimento da dimenso social da religio, que caracterizou boa parte da produo da
cincia da religio atrelada ao modelo histrico-fenomenolgico da histria das religies. Por
outro lado, evitar-se-ia ao mesmo tempo a to comum abordagem reducionista, seja social ou
cultural, que demonstra, entre outras coisas, pouco entender sobre religio.32 Situamo-nos,
dessa forma, no encontro entre uma histria das religies, na linha de Eliade e Van Der
Leeuw, em funo da preocupao com o especfico da religio e seu significado, e uma
histria religiosa, na linha de Le Goff e Guinzburg, dado o dilogo que empenharemos com as
teorias da histria cultural, a sociologia e a antropologia, bem como pelo interesse em uma
28 Antnio Flvio PIERUCCI, Interesses religiosos dos socilogos da religio; Id., Sociologia da Religio: rea impuramente acadmica; ver tb. as crticas e proposies de Ciro Flamarion CARDOSO, Um historiador fala de teoria e metodologia, especialmente o captulo 10, onde trata sobre o tema Histria das religies, p. 209-229. 29 Faustino TEIXEIRA, O lugar da teologia na(s) cincia(s) da religio, p. 300. 30 Eduardo GROSS, Consideraes sobre a teologia entre os estudos da religio, p. 335. 31 Idem, p. 329. 32 Ver, p. ex., Frank USARSKI, Perfil paradigmtico da cincia da religio na Alemanha, p. 80-82,
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tradio religiosa apenas.33 Assumimos, assim, a relao entre uma histria social e cultural
da religio e aquela abordagem histrico-fenomenolgica anelada por Lus Dreher para uma
cincia da religio compreendida como exerccio hermenutico humano em seu carter
positivo. Nas palavras de Dreher:
A cincia da religio que eu gostaria de praticar uma disciplina que busca enfocar a especificidade da religio e dos fenmenos religiosos, sem cair em redutivismos ou dogmatismos, mas sem, no final das contas, ceder tambm terceira tentao, to prpria da abordagem fenomenolgica: a do descritivismo. (...) o alvo da pesquisa cientfica da religio, criativa mas sempre metodologicamente controlada, ser evitar as camisas-de-fora sem cair em superficialidades e em hibridismos metodolgicos mal fundamentados.34
Se tomarmos, nesse esforo, a explicao da abordagem fenomenolgica de Husserl
feita por Antnio Mendona, perceberemos a aproximao para com a perspectiva
interdisciplinar que propomos. Conforme Mendona, ao enfocar o fenmeno, Husserl
pretendia desvencilhar-se tanto do psicologismo quanto do empirismo, rumo a uma
combinao de dependncia mtua de ambos: a experincia (o fenmeno) reside na dialtica
relacional entre os a priori das conscincias e o vivido.35 Segundo Mendona, uma
fenomenologia que transcenda o descritivismo e busque a ligao entre as manifestaes
externas da religio, as teologias ou teodicias e a experincia do sagrado, traz em si o
atrativo de captar a dinmica das religies: as mudanas histrico-culturais e sociais
promovem ajustes nos conceitos de maneira a revelar novos perfis do sagrado universal.36
Nos pomos, assim, em busca de uma atitude hermenutica diante do objeto da
religio vivida ou praticada. A atividade de tal atitude seria, conforme Pond, a de partir de
uma fenomenologia emprica para buscar adentrar a experincia existencial interna do
homem religioso, a fim de a ver de que forma ele enfrenta vital e objetivamente, por meio da
cultura religiosa em questo, seu drama ontolgico ou seu terror da contingncia. A
33 Eduardo Basto de ALBUQUERQUE, Distines no campo de estudos da religio e da histria, p. 57-67; tb. Mircea ELIADE, Imagens e smbolos, ensaio sobre o simbolismo mgico-religioso, p. 25: (...) negligenciamos um fato essencial: na expresso histria das religies, a nfase deve ser dada palavra religio, e no histria desde a histria das tcnicas at a histria do desenvolvimento humano, s existe uma maneira de se abordar a religio: atentar para os fatos religiosos. Antes de fazer a histria de alguma coisa, muito importante compreender bem essa coisa, em si e por si mesma. 34 Lus Henrique DREHER, Cincia(s) da religio: teoria e ps-graduao no Brasil, p. 176, 175-177. 35 Antonio Gouva MENDONA, Comentrios sobre um texto prvio de Lus Dreher UFJF, Cincia(s) da religio: teoria e ps-graduao no Brasil, p. 191-192. 36 Idem, O presente status do estudo das religies, campo religioso e fenomenologia, p. 173.
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discusso epistemolgica e metodolgica se daria, destarte, ao redor das tentativas de melhor
acessar o ncleo espiritual desse drama ontolgico.37
Pode-se, todavia, questionar a existncia da possibilidade de se acessar de fato tal
ncleo espiritual, a experincia do homem religioso, visto que se trata de algo que chega ao
pesquisador sempre mediado e atravessado por formas contingentes diversas de discurso e
linguagem a cultura religiosa em questo , alm de sofrer as influncias das estruturas
sociais e culturais, tanto por parte do sujeito da experincia, quanto por parte do
pesquisador.38 Essa, porm, no uma dificuldade apenas dos estudos de religio. A
linguagem a mediao que atravessa, na verdade, o todo das cincias humanas. Qualquer
fato social ou cultural inacessvel sem linguagem.39
Na imbricao de tais fatores, sem menosprezar a validade de esforo algum de
compreenso, limitar-me-ei, aqui, aos efeitos ou sintomas da relao do homem com o
sagrado, assumindo com Filoramo e Prandi uma autonomia relativa da religio e me
aproximando, assim, de uma escola mais historicista: a forma como re-construo das
essncias, as essncias na forma. Ambas as abordagens so, contudo, vlidas, necessrias e
complementares.40
Dito isto, entre o meio da cultura religiosa em questo e o homem religioso,
tratemos de aclarar as questes terico-metodolgicas que nos acompanharo no trajeto deste
texto, ferramentas pelas quais pretendemos nos apropriar dessa totalidade complexa.
3. Um modo de ver a histria da IELB
3.1. Mito e Teologia na forma do discurso
Nossa pesquisa, como j se pode aferir, versa sobre as construes de significao
religiosa do mundo em meio aos processos e relaes sociais. Nessa direo, o campo da
anlise histrica de discursos religiosos pode ser lugar frtil para a aproximao entre as
perspectivas histrico-fenomenolgica e sociocultural. Explico: uma narrativa mtica pode ser
37 Luiz Felipe POND, Em busca de uma cultura epistemolgica, p. 43. 38 Robert H. SHARF, Experience, p. 114. 39 Observao de Lus Dreher como membro da banca desta tese. 40 Giovanni FILORAMO e Carlo PRANDI, As cincias das religies, p. 17-22; Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, p. 11: Atualmente, os historiadores das religies esto divididos entre duas orientaes metodolgicas divergentes, mas complementares: uns concentram sua ateno principalmente nas estruturas especficas dos fenmenos religiosos, enquanto outros interessam-se de preferncia pelo contexto histrico desses fenmenos; os primeiros esforam-se por compreender a essncia da religio, os outros trabalham por decifrar e apresentar sua histria [grifos no original].
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entendida como uma forma de discurso religioso: o mito na forma do discurso. Se
sistematizado, esse discurso mtico ganha forma de teologia, de logos. Nesses discursos
religiosos, por conseguinte, ao mesmo tempo em que so produzidas identidades e memrias,
so tambm com elas ou nelas negociados significados nas relaes socioculturais.
Costuma-se associar, em fenomenologia da religio (e por vezes tambm nas cincias
sociais), as idias de experincia religiosa, mito e rito, numa circularidade complementar e
continuada. A lgica a seguinte: o ser humano tem uma experincia do sagrado e atravs da
narrativa de seus mitos cosmognicos ou de outra natureza e de suas performances rituais
renova, na reatualizao do evento hierofnico primordial, essa mesma experincia religiosa,
garantindo, assim, a continuidade daquilo que aconteceu in illo tempore, como dizia Eliade.41
O mito, portanto, conta uma histria sagrada, quer dizer, um acontecimento
primordial que teve lugar no comeo do Tempo, ab initio.42 Veja-se, ento, que o mito, alm
de pertencer esfera do rito, pertence tambm esfera do discurso, da lngua, est ligado
palavra falada. pela fala que ele se faz conhecer. Trata-se de uma palavra com poder
decisivo em sua repetio, mas que, por isso, liga-se tambm s demais esferas da vida do
homem religioso. Da esfera do mito, pode-se ir, por isso, pelo discurso, tambm vida
cotidiana, s prticas e aes sociais.43
As j exploradas relaes entre mito e rito so frutferas tambm nesse sentido.
Enquanto o mito um padro de conceitualizao, diz-se, o rito um padro de
comportamento. O mito , assim, o complemento do rito: o primeiro uma palavra sagrada, o
segundo uma ao sagrada; o primeiro o fundamento da religiosidade, o segundo, sua
expresso. Por trs de um rito est, portanto, sempre uma crena profunda naquilo que o seu
centro: o mito. O rito, dessa forma, nunca est solto, no existe sem uma base mtica que
lhe atribua sentido. Por isso, mito e rito so co-operantes, e a relao entre eles estreita ao
ponto de quase se fundirem.44
O mesmo vale, pode-se assim dizer, para as relaes entre mito e discurso. Nas
diversas formas de fala e escrita, ou mesmo de arte se ampliarmos a noo de discurso, o
41 Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 36, p. ex. 42 Idem, O sagrado e o profano, p. 80. 43 G. VAN DER LEEUW, Religion in essence and manifestation, v. II, p. 413; Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 338: preciso que nos habituemos a dissociar a noo de mito das de palavra e de fbula (veja-se a acepo homrica de mythos: palavra, discurso), para a aproximarmos das noes de ao sagrada, de gesto significativo, de acontecimento primordial. mtico no s o que se conta de certos acontecimentos que se desenrolam e de personagens que viveram in illo tempore, mas ainda tudo o que se acha em relao direta ou indireta com tais acontecimentos e com personagens primordiais. [grifos no original] 44 Geo WIDENGREN, Fenomenologia de la religin, p. 135, 189-190:; G. VAN DER LEEUW, Religion in essence and manifestation, v. II. p. 413; Frank SENN, Christian worship and its cultural setting, p. 3.
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homem religioso faz referncia ao mito, ou a sries de mitos, que fundamentam os discursos a
ponto de se (con)fundirem, dada sua proximidade na esfera da linguagem. H, nesse sentido,
tambm uma srie de mitos que fundamentam os discursos do Luteranismo Confessional
Ortodoxo da IELB, articulados em sua produo teolgica, forma de sistematizar o mito.
O mito, contudo, est ao mesmo tempo alm da linguagem, uma vez que ao ser
narrado, ele a ressurreio do que aconteceu in illo tempore, que retorna para fundamentar e
motivar a existncia humana como um todo.45 Na vida no mundo do sagrado, h, portanto,
uma dinmica de constante retorno ao tempo mtico das origens. O ser humano religioso
possui a caracterstica de repetir arqutipos, de querer retornar hierofania primordial,46 e
pe-se, ento, em movimento a articulao de diferentes temporalidades pela memria. Um
ritual ou um discurso possui validade, nesse sentido, somente enquanto repetio arquetpica
do tempo mtico das origens. Nessa repetio, h uma manifestao do sagrado e instaurado
o universo divino. O ser humano, ento, inserido em tempo e espao sagrados e posto em
contato com o sagrado, com o numinoso. O tempo mtico que se encontra fora do tempo do
mundo emprico e profano, em um outro tempo, ao ser reapresentado, re-cria e re-presenta
o acontecimento em si no , portanto, mera descrio deste.47 Ao ser instaurada, ento, a
hierofania primeira situa a pessoa no tempo e no espao de uma maneira total, em sua relao
com os outros, com o mundo e com o sagrado.48
Um mito, assim entendido, tem a ver com realidades vivas. As pessoas assumem um
comportamento mtico e, atravs deste, atestam sua realidade, no definida concretamente,
mas captada atravs do mito, no que se revela uma estrutura inacessvel compreenso
emprico-racionalista. Pela re-atualizao do mito, as pessoas explicam o mundo e o
representam simbolicamente. O mito a afirmao, carregada de emoo, do lugar do 45Bronislaw MALINOWSKI, O papel do mito na vida, p. 160: (...) [o mito ] a ressurreio, pela narrativa, de uma realidade primeva, contada para satisfazer profundas necessidades religiosas, anseios morais, submisses sociais, afirmaes e mesmo exigncias prticas. Na cultura primitiva o mito preenche uma funo: expressa, valoriza e codifica a crena; salvaguarda e refora a moralidade; garante a civilizao humana; no um contato despretensioso, mas uma fora ativa muito elaborada; no uma explicao intelectual ou uma fantasia artstica, mas um esquema pragmtico da sabedoria moral e da f primitivas. 46 Mircea ELIADE, El mito del eterno retorno, p. 18; Idem, Tratado de histria das religies, p. 338. 47 Idem, O sagrado e o profano, p. 59: (...) o tempo sagrado por sua prpria natureza reversvel, no sentido em que , propriamente falando, um Tempo mtico primordial tornado presente. (...) Por conseqncia, o tempo sagrado indefinidamente recupervel, indefinidamente repetvel; Idem, El mito del eterno retorno, p. 41; Thomas ODEA, Sociologia da religio, p. 63. 48Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 296. De fato, a noo de espao sagrado implica a idia da repetio da hierofania primordial que consagrou este espao transfigurando-o, singularizando-o, em resumo, isolando-o do espao profano a sua volta; tb. Thomas ODEA, Sociologia da religio, p. 63: Torna [o mito] o passado e o futuro imediatamente presentes; exprime a solidariedade do homem com seu mundo, e reafirma essa solidariedade diante da dvida humana (...) Atravs dele os homens se ligam a seu ambiente, a seus ancestrais, aos seus descendentes, ao alm que o fundamento de toda a existncia, ao que permanente, alm de toda a mudana.
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homem num mundo que tem sentido para ele, bem como de sua solidariedade com esse
mundo,49 e torna-se assim um precedente e um exemplo, tanto em relao s aes
sagradas ou profanas do ser humano, quanto em relao prpria condio humana: torna-
se um precedente exemplar para todas as aes e situaes que, depois, repetiro este
acontecimento.50
Sendo assim, o mito/teologia ritualizado ou em forma de discurso serve, tambm,
como veculo atravs do qual a realidade como um todo transmitida sociedade. Para que
determinada sociedade se mantenha coesa, ela necessita, por isso, estar em contato regular
com o mito, e na repetio ritualizada ou no do mito o mesmo preservado e ensinado s
novas geraes.51
Nestes processos, porm, pode acontecer o que Eliade chamava, talvez um pouco
exagerada ou romanticamente, de degradao do mito: o mito pode degradar-se em lenda
pica, em balada ou em romance, ou ento sobreviver em forma diminuda, nas supersties,
hbitos e nostalgias, etc., no perdendo, por isso, a sua estrutura nem o seu valor. Os mitos
vo, assim, por sua reinterpretao, ganhando novas coloraes locais, todavia, sem que os
modelos originais percam seu poder de reatualizao.52 Pode-se, ento, seguir a orientao de
Mendona: o sentido desse mito hierofnico deve ser buscado, como de regra, nas condies
scio-histricas dos seus sujeitos, visto que ele pode sofrer revises constantes e originar
tanto mudanas como correntes divergentes e excludentes dentro de uma mesma grande
tradio, como o caso, por exemplo, de correntes como o Liberalismo teolgico e o
Fundamentalismo no mbito do Protestantismo.53
com essa esfera, a da re-presentao e da re-construo dos mitos e teologias na
forma de discursos, que estaremos lidando nestas pginas. Os mitos tornam-se, ento, hieros
logoi, discursos sagrados.54 Todavia, a pureza das origens que os mitos referem existe, nessa
perspectiva, somente na forma do discurso e da memria, ou seja, de modo ideal.
Discursos mtico-religiosos embasam, nessas dinmicas, tanto aes e identidades,
quanto novos discursos, porque so formas de falar sobre o mundo e de compreend-lo e
constituem modos de auto-representao e experincias de totalidade. So prticas sociais de
49Thomas ODEA, Sociologia da religio, p. 63. 50 Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 334-335, 347-352; Maurice LEENHARDT, O Mito, p. 92. 51Frank SENN, Christian worship and its cultural setting, p. 3. 52 Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 352-353. 53 Antnio Gouva MENDONA, A persistncia do mtodo fenomenolgico na sociologia da religio: uma aproximao sob o prisma da essncia e da forma, p. 84, 86. 54 Ricardo Artur FITZ, Brasil: os mitos fundadores da nacionalidade, p. 14.
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elaborao de memrias e de produo de identidades, exercidas no contexto de estruturas
sobre e sob as quais agem os atores, em processos contnuos de construo e reconstruo.
So, por isso, portadores de rico capital simblico.55 possvel, pois, historiciz-los, num
esforo de superao das dicotomias entre o sincrnico e o diacrnico, pela anlise das formas
pelas quais uma dimenso incide sobre a outra nas prprias prticas discursivas.56
Como disse Ciro Flamarion Cardoso, a atividade narrativa, neste sentido, parte
inseparvel do plano de ao, no s algo incidental ou externo. A vida no somente se vive,
ela se relata, se conta o tempo todo: vivemos o relato, relatamos a vida. Com freqncia
mudamos o relato, ou seja, nossa viso acerca da vida, para levar em conta novos eventos
incidentes; mas tambm tentamos, na medida do possvel, mudar os eventos para salvar o
relato, isto , o plano, a verso, o futuro projetado.57
Nos discursos religiosos do Confessionalismo da IELB, tambm em seu fazer
teolgico, esto em movimento de construo e reconstruo sries de mitos hierofnicos, ao
passo que diferentes temporalidades so articuladas para fundamentar as relaes no presente.
3.2. A prtica discursiva religiosa entre estruturas e eventos
Enquanto discurso religioso que pe em movimento sries de mitos, teologias,
memrias e identidades, o Luteranismo Confessional Ortodoxo da IELB pode ser pensado
como uma formao discursiva. Segundo Foucault; com quem estaremos dialogando para 55 F. YUS, Discourse and identity, p. 3728; Louise PHILLIPS e Marianne JORGENSEN, Discourse analysis, as theory and method, p. 1 e 21; Katherine T. EWING, The illusion of wholeness: culture, self, and the experience of inconsistency, p. 265; Hans SIEBERS et alii, Identity Formation, issues challenges and tools, p. 82; D. E. APTER, Political discourse, p. 11645. 56 Marshall SAHLINS, Ilhas de histria, p. 188-189: J na natureza da ao simblica, sincronia e diacronia coexistem em uma sntese indissolvel. A ao simblica um composto duplo, constitudo por um passado inescapvel e por um presente irredutvel. Um passado inescapvel porque os conceitos atravs dos quais a experincia organizada e comunicada procedem do esquema cultural preexistente. E um presente irredutvel por causa da singularidade do mundo em cada ao (...) As pessoas, enquanto responsveis por suas prprias aes, realmente se tornam autoras de seus prprios conceitos; isto , tomam a responsabilidade pelo que sua prpria cultura possa ter feito com elas. 57 Ciro Flamarion CARDOSO, Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 67-68. Ainda que antagonista daqueles que considera adeptos do que chama de epistemologia ps-moderna (dentre os quais lista Deleuze, Foucault e Derrida, como infludos por Nietzsche e Heidegger), Flamarion Cardoso, contudo, assume mesmo assim a importncia da dimenso narrativa da existncia, sem referir-se, porm, noo de discurso. Diz Cardoso, p. 79: Tal movimento [ps-moderno] desembocou, previsivelmente, num estado de coisas suspenso entre o niilismo e o pansemiotismo, numa negao da explicao em favor da hermenutica relativista. A crtica aguda e pertinente, anda que unilateral, tem verses mais favorveis e compreensivas em outros tambm eminentes historiadores como Roger CHARTIER, beira da falsia (ver captulos 5 e 8), Paul VEYNE, Como se escreve a histria e Foucault revoluciona a histria (especialmente o ensaio final) e Franois DOSSE, A histria prova do tempo, da histria em migalhas ao resgate do sentido (captulos 10 e 14). De minha parte, acolho as advertncias de Cardoso, sem porm, abdicar das possibilidades que o desconstrucionismo de uma epistemologia ps-moderna possa trazer crtica da religio ortodoxa.
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pensar o discurso, abraando, porm, principalmente sua metodologia, antes de sua filosofia
da histria; uma formao discursiva existir quando entre um certo nmero de enunciados se
puder descrever um sistema de disperso e entre os objetos, os tipos de enunciao, os
conceitos, as escolhas temticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlaes,
posies e funcionamentos, transformaes). Uma formao discursiva, nessa tica, est
sujeita a regras prprias, ou seja, condies a que esto submetidos os elementos (...)
condies de existncia (mas tambm de coexistncia, de manuteno, de modificao e de
desaparecimento).58 Conforme o autor, uma formao discursiva, em sua positividade e
materialidade, constitui, nesse sentido, um a priori histrico, compreendido como um
conjunto de regras que caracterizam uma prtica discursiva em certo espao e tempo.59 Tal
prtica discursiva, empreendida por sujeitos condicionados histrica e discursivamente, o
objeto da anlise histrico-social do discurso que almejamos aquilo que Foucault chamava
de arqueologia e genealogia: o estudo das condies de produo e das prticas das regras e
ordens do discurso.60
Todo acontecimento discursivo, e por isso tambm o mtico-religioso, se d, nessa
tica, no ambiente ou, melhor dizendo, na disperso de uma formao discursiva. Com o
discurso confessional luterano no diferente. Formaes discursivas pressupem-se, assim,
no em continuidade bem arrumada, mas em sistemas de disperso. A formao da ordem do
discurso acontece no mediante a ao de um sujeito consciente visando um fim. No que
dito, apresentam-se preconceitos, reticncias, salincias e reentrncias inesperadas de que os
locutores no esto nem um pouco conscientes. Ou, em outro sentido, h, sob o discurso
consciente, uma gramtica determinada pelas prticas e gramticas vizinhas, que a observao
atenta do discurso revela.61 Trata-se ento de perceber a prtica discursiva religiosa tanto em
suas determinaes mtico-estruturais, quanto em suas relaes scio-histricas.
58 Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 40; tb. Eni Pulcinelli ORLANDI, Os falsos da forma, p. 17-18: A formao discursiva dispe sobre o que o sujeito pode e deve dizer em uma situao dada numa conjuntura dada, de tal forma que, remetendo seu discurso ideologia, essa formao far que suas palavras tenham um sentido e no outros possveis. pela remisso formao discursiva que se identifica uma fala. 59 Maria do Rosrio GREGOLIN, Foucault e Pcheux na anlise do discurso, dilogos e duelos, p. 91; Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 142-149. Perceba-se a uma correlao possvel, ainda que em esferas diferenciadas, da concepo de Foucault com o a priori fenomenolgico, independentemente de seu distanciamento terico e poltico da fenomenologia de seu contemporneo Jean-Paul Sartre. Para uma aproximao da idia de sujeito livre em Sartre e o tema da religio ver Frederico Pieper PIRES, Liberdade e religio no existencialismo de Jean-Paul Sartre. 60 Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, passim; Id. A ordem do discurso, passim; Id. Nietzsche, Genealogia, Histria, passim. 61 Paul VEYNE, Como se escreve a histria e Foucault revoluciona a histria, p. 252.
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Tornam-se heuristicamente interessantes, aqui, as relaes que se pode fazer entre
prtica, acontecimento ou evento e formao discursiva religiosa, se pensarmos a ltima
como estrutura sociocultural que articula mitos, teologias, memrias e identidades.
Conforme Pierre Chaunu, numa perspectiva histrico-social, pode-se entender
estrutura como tudo o que, numa sociedade, numa economia, dotado de uma durao
suficiente para que seu movimento escape observao comum.62 Sob um outro prisma,
antropolgico, a poderamos compreender, segundo Marshall Sahlins, como o conjunto das
relaes simblicas de ordem cultural.63 Se unirmos as perspectivas, de modo a se
complementarem, entenderemos, ento, que uma estrutura possui uma durao longa, ou seja,
uma existncia na histria, e que consiste em relaes socioculturais.
Prtica, por sua vez, segundo Sherry Ortner, pode ser considerada como qualquer
tipo de ao humana portanto tambm o discurso na qual se perceba a reverberao de
relaes de assimetria, desigualdade e dominao, bem como de padres de cooperao,
reciprocidade e solidariedade, em um contexto histrico e cultural especfico. Assim
compreendido, o estudo da prtica acima de tudo o estudo de todas as formas de ao
humana, mas de um ngulo poltico particular, sempre em relao a uma estrutura social
e cultural.64
Uma prtica discursiva, nessa tica, no se d pela performance de atores livres,
conscientes e autnomos, mas condicionados por estruturas socioculturais. Conforme
Foucault a prtica discursiva o prprio conjunto de regras annimas, histricas, sempre
determinadas no tempo e no espao, que definiram, em uma dada poca e para uma
determinada rea social, econmica, geogrfica ou lingstica, as condies de exerccio da
funo enunciativa, ou seja, o que um sujeito histrico institucionalmente localizado pode
dizer sob contingncias estruturais.65 Poderamos afirmar, assim, que a prtica discursiva d-
se em relao a regras estruturais do discurso.
Todavia, uma das crticas que se faz anlise do discurso foucaultiana a da falta de
espao em sua teoria para a mudana social, tanto pelo determinismo de seu materialismo
62 Apud M. AYMARD, Estruturas, p. 309-310. 63 Marshall SAHLINS, Ilhas de histria, p. 9. 64 Sherry ORTNER, High religion, p. 11 e 12: So the study of practice is after all the study of all forms of human action, but from a particular political angle; p. 12: Practice is action considered in relation to structure () Human action considered apart from its structural contexts and its structural implications is not practice [Prtica ao considerada em relao estrutura () A ao humana considerada separadamente de seus contextos estruturais e de suas implicaes estruturais no prtica]; idem, Theory in anthropology since the sixties, p. 149, 157. 65 Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 133; Maria do Rosrio GREGOLIN, Foucault e Pcheux na anlise do discurso, p. 89.
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discursivo, quanto pela morte do homem que sustenta.66. Faz-se necessrio pontuar, ento,
que a ordem do discurso condiciona, mas no de modo absoluto. Penso que um olhar
adequado deva deixar algum espao para ao do sujeito entre as estruturas e os
acontecimentos ou eventos, como prefere Sahlins, de modo que se conceba que ao mesmo
tempo em que a histria ordenada culturalmente ou pela estrutura, tambm a cultura-
estrutura ordenada historicamente. Nessa perspectiva, pode-se pensar as dinmicas da
formao discursiva mtico-hierofnica sob a tica do binmio histria-cultura. A sntese
desse processo desdobrar-se-ia nas aes criativas dos sujeitos histricos, em prticas situadas
em eventos discursivo-religiosos.67
Nessa concepo, um evento acontece simultaneamente em dois planos: como ao
individual e como representao coletiva; ou melhor, como relao entre certas histrias de
vida e uma histria acima e alm dessas outras,68 como o mito. A ordem cultural, a estrutura
segundo Sahlins, existe somente in potentia, seu significado consiste nos usos, nas prticas
diramos, de pessoas e comunidades. , portanto, nas prticas, nos discursos, nos eventos, que
os significados culturais so realizados in presentia. Um evento de fato um acontecimento
de significncia e, enquanto significncia, dependente na estrutura por sua existncia e por
seu efeito. (...) Um evento no somente um acontecimento no mundo; a relao entre um
acontecimento e um dado sistema simblico69 e social, diramos. Dessa forma, a prtica
discursiva do Confessionalismo Ortodoxo da IELB se d em eventos que adquirem
significao no contexto de suas narrativas mtico-hierofnicas. Nessa atualizao dos mitos,
todavia, as estruturas so sujeitadas a transformaes e re-significaes locais.
Sahlins completa, ento, sua teoria com o conceito de estrutura da conjuntura: a
realizao prtica das categorias culturais em um contexto histrico especfico, assim como se
expressa nas aes motivadas dos agentes histricos, o que inclui a microssociologia de sua
interao,70 ou, de outra forma, um conjunto de relaes histricas que, enquanto
reproduzem as categorias culturais, lhes do novos valores retirados do contexto
pragmtico.71 Nessa perspectiva, a prtica entendida como uma espcie de sociologia
66 Ver, p. ex., Peter BURKE, Histria e teoria social, p. 210. 67 Marshall SAHLINS, Ilhas de histria, p. 7; p. 19: necessrio fazer o reconhecimento terico, encontrar o lugar conceitual do passado no presente, da superestrutura, na infraestrutura, do esttico no dinmico, da mudana na estabilidade () O problema agora de fazer explodir o conceito de histria pela experincia antropolgica da cultura. 68 Idem, p. 143-144. 69 Idem, p. 190-191. 70 Idem, p. 15. 71 Idem, p. 160; tb. cf. M. AYMARD, Estruturas, p. 310: o par estrutura/conjuntura deve permitir apreender a totalidade da diacronia e toda a espessura do real. A pesquisa se apropria, no nvel de seu encaminhamento, assim como da apresentao de seus resultados, de uma dupla hierarquizao. Do instante (o fatual) durao
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situacional do significado e aplica-se compreenso geral de mudana cultural e social. O
que acontece, segundo o autor, que a estrutura tem uma diacronia interna, o que ocasiona
que os conceitos bsicos [sejam] conduzidos atravs de estgios sucessivos de combinao e
de recombinao, produzindo ao longo do caminho termos novos e sintticos.72
A prtica, assim, tanto emerge da estrutura, quanto a reproduz e transforma. A
estrutura, ao mesmo tempo em que tem um efeito poderoso e mesmo determinante sobre as
prticas, por elas reproduzida e recriada. Podemos ento perguntar: Como a estrutura forma
a prtica (discursiva)? Como a prtica (discursiva) forma a estrutura?, a fim de compreender
a gnese, reproduo e mudana de forma e significado de um determinado todo
social/cultural o Luteranismo Confessional Ortodoxo , levando em considerao suas
relaes de poder e hegemonia.73
Uma instituio como a IELB, nessa tica, ao mesmo tempo um sistema de
relaes sociais, arranjos econmicos, processos polticos, categorias culturais, normas,
valores, ideais, padres emocionais, e assim por diante,74 que formam estruturas que influem
nas pr