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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS MARGARETE MARQUES DE BARROS PEDRO CASALDÁLIGA: LIBERDADE EM PROSA E VERSO CUIABÁ-MT 2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · Literatura brasileira ... Trata-se de uma produção engajada, ... necessário um breve estudo sobre liberdade no que se refere

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS

MARGARETE MARQUES DE BARROS

PEDRO CASALDÁLIGA:

LIBERDADE EM PROSA E VERSO

CUIABÁ-MT 2010

MARGARETE MARQUES DE BARROS

PEDRO CASALDÁLIGA:

LIBERDADE EM PROSA E VERSO

CUIABÁ-MT

2010

MARGARETE MARQUES DE BARROS

PEDRO CASALDÁLIGA:

LIBERDADE EM PROSA E VERSO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de Concentração: Estudos Literários Orientadora: Profª Dra. Célia Maria Domingues da Rocha Reis

CUIABÁ-MT 2010

Cuiabá, 30 de agosto de 2010

FICHA CATALOGRÁFICA

B277p Barros, Margarete Marques de.

Pedro Casaldáliga: liberdade em prosa e verso / Margarete

Marques de Barros. – 2010.

80 f.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia Maria Domingues da Rocha

Reis.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato

Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-Graduação em Estudos

Lingüísticos, Área de Concentração: Estudos Literários, 2010.

Bibliografia: f. 77-80.

1. Literatura brasileira – Análise socioestilística. 2. Análise

literária. 3. Casaldáliga, Pedro, 1928-. I. Título.

CDU – 821.134.3(81).09

Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931

A meus pais, Calixto e Maria, de quem recebi e recebo os mais valiosos ensinamentos desta vida.

À minha irmã Marlene Marques de Barros e à minha avó Maria Luíza, uma homenagem póstuma.

À Marizete, Carlos e Assis, meus irmãos.

Aos sobrinhos Lucas, Vítor, Amanda, Maria Clara, Luan. À Regiane, minha cunhada.

Ao amigo Edson Flávio.

AGRADECIMENTOS

A Deus, que permitiu minha existência para a realização deste.

Em especial, à minha orientadora Célia Maria e à professora Rhina Landos,

que me acolheram, mostraram-me um horizonte de possibilidades e me incentivam a caminhar com entusiasmo e dedicação.

Vivir es ir poniendo El corazón y un pie detrás del otro

Sobre el camino que se vaya abriendo.

(Casaldáliga,Vivir,1986, p.80)

BARROS, Margarete Marques de. Pedro Casaldáliga: Liberdade em

prosa e verso.

Este trabalho se constitui de um estudo de obras – um diário e

alguns poemas -, do bispo-poeta Pedro Casaldáliga Maria Plá, tendo

como eixo o tema da liberdade. Trata-se de uma produção engajada, que

expressa a ligação dele com movimentos sociais, sob a orientação da

Teologia da Libertação, assumindo um caráter de protesto e denúncia

contra os males do capitalismo que atinge as comunidades com as quais

trabalha. Sob a perspectiva socioestilistica, buscou-se compreender essa

liberdade com a qual o poeta se sustenta e projeta em prosa e verso.

Palavras-chave: Pedro Casaldáliga, Liberdade, poética engajada, análise

socioestilistica.

ABSTRACT

BARROS, Margarete Marques de. Pedro Casaldáliga: Liberdade em

prosa e verso.

This thesis is a study of the works - a diary and some poems – of a poet

and bishop Pedro Casaldaliga Maria Pla, in which the central theme is

freedom. This is an engaging production, which expresses his connection

to social movements, under the direction of liberation theology. It

describes a character of protest and complaint against the capitalism evils

that reaches communities in which he works. From the socioestilistic

perspective we aim to understand that freedom, which the poet claims, is

projected in prose and verse.

Key-words: Pedro Casaldaliga, Liberty, engaged poetic, socioestilistic

analysis.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................... 11

1 – LIBERDADE: ALGUMAS REFLEXÕES...........................................14

2 – NASCE UM IDEAL DE LIBERDADE...................................................30

2.1. O diário como um gênero textual ................................................30

2.2. Nasce um ideal de liberdade: o diário de Pedro Casaldáliga.......33

3 – POESIA, LIBERDADE E REALIDADE SOCIAL..................................50

3.1. Terra, Liberdade, Poesia...............................................................51

3.2. Apropriação crítica da tradição literária:

intertexto e metalinguagem em “Canção do exílio”......................65

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................75

BIBLIOGRAFIA..........................................................................................77

11

INTRODUÇÃO

Em estudos durante a graduação, conhecemos algumas obras do

poeta espanhol D. Pedro Casaldáliga, escritor de vasta produção social,

literária, teológica, que chega ao Brasil e se instala na região de São Felix

do Araguaia, norte de Mato Grosso, na década de 60.

Após pesquisa e leituras preliminares, percebemos que o poeta

Pedro, extrapolando, então, o ofício sacerdotal, tem uma produção

literária de alto valor estético, pois se faz protagonista de sua própria

obra, apresentando reflexões profundas sobre sua trajetória existencial,

suas lutas, paixões e envolvimento com a comunidade, esta, que se faz

representar em seus enredos, sobretudo por posseiros e índios, sujeitos

colocados às margens do sistema capitalista. Tendo em mãos esse

material poético, resolvemos fazer dele o objeto de pesquisa da

dissertação de mestrado.

De toda a obra estudada, percebemos que o grande tema, o que

move toda a obra, o que transcende pela/da palavra, é a liberdade;

liberdade esta revestida de compreensão, busca e vivência, tanto para si

como para os outros. Dessa percepção surgiu o que veio a se tornar este

estudo: Pedro Casaldáliga: - liberdade em prosa e verso.

Buscando obras que tratassem desse assunto, e que se

colocassem em sintonia com o que emana do nosso objeto de estudo, no

âmbito dessas ideias de liberdade como “autodeterminação”, como

“necessidade”, como “possibilidade ou escolha”, conforme consta em

Abbagnano (2007), encontramos a importante coletânea organizada por

Adauto Novaes, jornalista e professor, intitulada O Avesso da Liberdade

(2002), da qual participam eminentes pensadores, dentre os quais

relevamos os seguintes, de cujos ensaios faremos uso nesse trabalho – o

próprio Novaes, com o ensaio “O Risco da Ilusão”; Gerd Bornheim, com

“As medidas da Liberdade” e, Francis Wolff, com “A Invenção Materialista

12

da Liberdade”. Também faremos uso de um estudo de Kant intitulado “O

que é Esclarecimento” (1783).

O corpus de análise da produção de Casaldáliga compreenderá

duas modalidades textuais. A primeira, em prosa – diário: Creio na Justiça

e na Esperança (1978) -, seguindo a perspectiva da literatura

confessional. Servimo-nos de referencial teórico de Philippe Lejeune, com

El Pacto Autobiográfico (1996); Maciel, com o ensaio A Literatura e os

gêneros confessionais (2004); a coletânea organizada por Remédios

intitulada Literatura confessional (1997) e Maurice Blanchot (1969). A

outra perspectiva, em verso, compreenderá poemas retirados dos livros –

A cuia de Gedeão (1968); Cantigas Menores (2003); As Águas do Tempo

(1989); Clamor Elemental (1971); Murais da Libertação na Prelazia de

São Félix do Araguaia-MT (2005); El tiempo y la espera (1986).

Estudaremos como construção literária engajada e nos auxiliará a obra de

Jean Paul Sartre, Que é a Literatura? (1989). Utilizaremos tal obra a fim

de compreender como a literatura se constrói, sob a perspectiva da busca

da liberdade, no âmbito sócio-religioso, e como isso se elabora em termos

estilísticos, o valor estético, veio para o qual faremos uso do texto de

Antonio Cândido, O estudo analítico do poema (2006) e Introdução à

Estilística, de Nilce Martins (2000). Ressaltamos, nesse sentido, que a

tarefa da estilística é

[...] examinar como é constituída a obra literária e considerar o prazer estético que ela provoca no leitor; quer dizer, o que interessa à estilística literária é a natureza poética do texto. Traços lingüísticos, dados históricos, ideológicos, sociológicos, psicológicos, geográficos, folclóricos, etc., a visão de mundo do autor, tudo se engloba no valor estético da obra, que está impregnado do próprio prazer do autor ao criá-la e que vai suscitar no leitor um prazer correspondente. (Alonso apud MARTINS, 2000, p.10).

Tal reflexão é endossada por Antônio Candido em Literatura e

Sociedade:

13

[...] a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões1 desassociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra... O externo ( no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se , portanto, interno. (2006, p.13-4)

Em outra obra, Vários Escritos (1995), Candido afirma que a

literatura pode confirmar ou negar, propor ou denunciar, apoiar ou

combater e ainda fornecer a possibilidade de vivermos dialeticamente os

problemas, razão pela qual

O conteúdo só atua por causa da forma e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere. O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. (1995, p.246)

Essa capacidade de humanização referida por Candido é o

exercício da reflexão sobre nossa existência e o reconhecimento da

condição existencial e social do outro por meio do despertar das nossas

emoções diante dos problemas sociais. A literatura desenvolve em nós a

quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e

abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CANDIDO, 1995,

p.249).

Casaldáliga nos nutre dessa humanização com uma literatura

engajada, sustentada pelos pilares da Fé, da Justiça e da Esperança. É o

que iremos ver no trabalho que segue, dividido em três partes,

organizadas, como já dito, sob o prisma da temática da liberdade e da

perspectiva socioestilística – a primeira, contendo reflexões sobre o modo

como Casaldáliga materializa em palavras literárias o que compreende

por liberdade; seguida do estudo de passagens fundamentais de um

diário do poeta espanhol e, a terceira, dedicada aos seus poemas.

1 Forma e conteúdo

14

CAPÍTULO 1. LIBERDADE: ALGUMAS REFLEXÕES

Em depoimento inicial na obra Águas do Tempo (1989, p.17),

Pedro Casaldáliga define a poesia como “(...) a palavra emocionada, por

onde (...) diz-se o Universo, o Próximo, o Povo, a Morte, a Vida, Deus,

calidamente. (...) é a resposta sensibilizada a tudo e a todos num

encontro, que pulsa a alma e compromete as opções”. O poeta não se

limita a expressar apenas as coisas que podem ser vistas, ele vai além,

sente, vive e transcende tudo isso por meio da palavra; para ele, a poesia

é como uma forma de “evangelização”, que leva uma “Boa Noticia para os

Pobres”, um verdadeiro “pregão eficaz de libertação”; por isso, a “palavra,

depois do sangue, é sempre o poder maior”(1989,p.17).

Tal “pregão eficaz de libertação” de que o poeta nos fala é

percebido em sua literatura, que têm como cenário e inspiração temática

uma vida de total renúncia e sacrifício, alicerçados no amor, na busca da

verdade que permita o bem viver, na consciência e no espírito, tudo

regido pela fé.

Observar como se manifesta essa libertação, ou liberdade, na

produção literária do poeta Casaldáliga é o nosso objetivo. Para tal, faz-se

necessário um breve estudo sobre liberdade no que se refere ao conceito

e que corresponde à produção literária em prosa e verso do poeta.

Há uma tendência, e senso comum, em conceber a liberdade como

a liberação do corpo físico, e a sua ausência como a limitação e a coação

desse corpo. Lucrecio2 (apud Abbagnano, 2007, p.699) afirma que

podemos desviar nossos movimentos sem sermos determinados pelo

tempo ou lugar, mas pelo que nos inspira nosso espírito, por isso, a

vontade é o principio dos atos e, através dela, o movimento se expande

por todos os membros. Em se tratando de Casaldáliga, sua vida se

2 Poeta e filósofo latino que viveu no século I a.C. As datas exatas de seu nascimento e morte não

são conhecidas, mas geralmente são situadas entre 99 e 55 a.C. In:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lucr%C3%A9cio .

15

sustenta desse “espírito”, dessa “vontade” de que Lucrecio nos fala, para

protestar, denunciar, ganhar dimensão universal.

Em Espiritualidad de la liberación (1992, p.24), Casaldáliga expõe

“espíritu” como “vida, construcción, fuerza, acción, libertad . (…) no es

algo que está fuera de la materia, fuera del cuerpo o fuera de la realidad

real, sino algo que está dentro (…) los lanza al crecimiento y la creatividad

en un ímpetu de libertad”.

Para Dias, em Genealogia da Liberdade (2004, p.09), a liberdade

está ligada ao seu oposto, aos mais variados tipos de escravidão e

servidão. Na medida em que a conquista da liberdade avança sobre

determinada área, o engenho humano, que manipula os interesses de

outros segmentos, aperfeiçoa a forma de substituir o processo que

mantém as pessoas dependentes de um sistema, para outro mais

disfarçado, mais sutil, que nem por isso, pelo menos em tese, deixa de

ser perverso e contrário aos mais legítimos desejos de desfrutá-la.

Pensando em liberdade desde o Gênesis, com Adão e Eva, Dias lembra

que a limitação da liberdade era apenas a de não comer do fruto de duas

árvores que estavam no centro do paraíso, uma, da sabedoria, e a outra,

da vida, o que tornava a liberdade condicionada e limitada. Nesse sentido,

a história do Gênesis também nos conta que o homem e sua mulher,

como símbolos da humanidade, tinham no seu âmago o desejo de obter

mais conhecimento. Apesar da restrição, comeram o fruto da árvore do

conhecimento, que pode ser entendida como símbolo da sabedoria e do

conseqüente aumento do nível de consciência. O autor infere, por esse

ato (2004, p 21), “que a liberdade é inerente à criatura humana e que o

homem sempre aspira por uma liberdade maior”, acrescentando que o

fato de Adão e Eva terem comido o fruto de tal árvore indica que é

possível à humanidade, pelo estudo e pelo aumento do conhecimento,

avançar na busca da liberdade. Quanto maior o conhecimento, maior a

propensão de obtenção de uma liberdade que não seja alienada a

nenhum sistema; o conhecimento é o reconhecimento do sistema que

aliena o homem e o impede de ser livre.

Para Aristóteles (apud Abbagnano, 2007, p. 699) a liberdade está

relacionada à virtude a ao vício e estes dependem de nós. Para esse

16

filósofo [...] as coisas em que a ação depende de nós, a não-ação

também depende; e para as coisas que podemos dizer „não‟ também

podemos dizer „sim‟. Por esse viés, realizar uma boa ou má ação

depende de nós. Logo, “o homem é o princípio e pai de seus atos”, e “só

para quem tem em si mesmo seus princípios, o agir ou não depende de si

mesmo”.

A produção literária de Pedro é carregada por esse nível de

consciência e é essa consciência que procura despertar no leitor e

naqueles com os quais convive; ele acredita que o conhecimento provido

da consciência é uma forma de desalienação e saída do homem de sua

menoridade. Tal consciência Kant define em seu artigo “O que é

Esclarecimento”3 como

(...) a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade, se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção do outrem. Sapere aude! Ter coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento (...) Para este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão liberdade. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar de liberdade é, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões (...)

“Esclarecido”, o homem se constituirá livre e, portanto, a liberdade

se obtém com a não sujeição mental que, por sua vez, tem compromisso

com a prática. Refletir com freqüência, fazer “uso do próprio

entendimento”, como poetiza Casaldáliga em El tiempo e la espera (1986,

p.36)

Si el Señor es Pan y Vino y El Camino por do andais, si al andar se hace camino ?qué caminos esperais?

3In: http://www.ateus.net/ebooks/acervo/o_que_e_esclarecimento.pdf .

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Nesse belo quarteto, de métrica regular e rimas alternadas, o que

mostra certa habilidade de versejador do bispo-poeta, o eu poético

reconhece em si mesmo a causa e o princípio de suas ações. Isto o

define como um sujeito autodeterminado, um ser livre. Metaforicamente, o

Senhor é “Pão y Vinho”; “Pão”, alimento para o corpo e para a alma. É um

símbolo espiritual porque representa o corpo de Cristo, a redenção. O

“Vino”, por um lado significa sangue e sacrifício; por outro, juventude, vida

eterna (CIRLOT, 1984). Então, de que caminho o poeta nos fala? Que

caminho alguém que é alimentado por esse “Pão y Vinho” pode “andar” e

o que pode “hace[r]”? Ao mesmo tempo em que o elemento anafórico “si”

funciona como indagação e reflexão, também funciona como afirmação.

Poeticamente, Casaldáliga vai construindo a ideia de que a realidade é

fruto de nossas ações, representadas pelo verbo “andar” e “hace[r]”.

Refletimos, então, sobre a produção literária de Casaldáliga como

um todo. Sartre (1989, p 39) vai dizer que “toda obra é um apelo” à

consciência do leitor, pois é nele que as intenções do poeta se

completam, e continua: “(...) a liberdade de escrever implica a liberdade

do cidadão” (p.53). Casaldáliga é esse autor-cidadão, que busca a própria

liberdade, fala sobre ela, e proporciona ao leitor um cenário em que o

próprio leitor é coautor da realidade que aquele denuncia. Segundo

Sartre,

Se a sociedade se vê, e sobretudo se ela se vê vista, ocorre por esse fato mesmo a contestação dos valores estabelecidos e do regime: o escritor lhe apresenta a sua imagem e a intima a assiná-la ou transformar-se. E de qualquer modo ela muda, perde o equilíbrio que a ignorância lhe proporcionava, oscila entre a vergonha e o cinismo, pratica a má-fé; assim, o escritor dá à sociedade uma consciência infeliz, e por isso se coloca em perpétuo antagonismo com as forças conservadoras, mantenedoras do equilíbrio que ele tende a romper. (1989, p. 65) (grifos do autor)

Os leitores, ao perceberem que suas ações são temas, focos de

análises, e mais do que isso, que eles mesmos são os agentes dessas

análises e observações, eles “muda[m], perde[m] o equilíbrio que a

ignorância lhe[s] proporciona”.

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Para Vázquez, em Ética (2006), a liberdade também está ligada à

consciência que, por sua vez deve gerar práticas conscientes e

integradoras, que se coadunam com o social e o natural. São essas

práticas fundamentadas na consciência social que conferem ao poeta

uma liberdade que supera a condição sócio-política, existencial. Juntas,

elas são a mola propulsora para a luta pelo fim das relações que

escravizam: o poeta revela uma liberdade da alma. Ao tempo que o

mundo se abre a ele, que se faz reconhecido, ele se abre para o mundo,

livremente:

(...) Como um rio que me arrastra, poderoso, en su corriente mientras abro, libremente, el curso mío. (“Como um rio”, 1986, p.22)

Através do termo comparativo “como”, o poeta vai construindo uma

aproximação entre a liberdade que ele sente com a força e fluidez

irreversíveis que o rio apresenta. O fluxo desse rio se torna música

orquestrada pela natureza cujo curso pode levar à vida ou à morte. O “r”

ou “rr” vibrantes nos termos como “rio‟, “arrasta”, “poderoso” e “corriente”

evidenciam a força desse curso que rompe com as relações que o

poderiam escravizar.

Lido o texto, contemplados os poemas, esse conhecimento que

propõem Casaldáliga (1978) e Sartre (1989) passa a ser o do leitor, o

nosso. Olhamo-nos e às nossas ações, reconhecemos a existência do

outro e nos reconhecemos como coautores da situação deles, tentando

também reconhecermo-nos nessas águas, ainda que em princípio como

riachos, mudando nossas práticas sociais.

Gerd Bornheim afirma, no estudo “As Medidas da Liberdade” (in

NOVAES, 2002, p.41) que “a liberdade revela-se histórica de ponta a

ponta (...). As origens situam-se em três níveis principais: um, de ordem

propriamente biológica, (...) outro, aferra-se aos contextos sociais, e a

liberdade passa a ser o objetivo de uma longa e laboriosa conquista.(...)

um terceiro lugar, a lenta especificação das concordâncias psicológicas.

No que se refere ao condicionamento biológico, explica que (...) o

corpo é por inteiro desejo, e dessa sua condição tudo parece depender.

19

(...) realmente, é pelo corpo que o homem passa a situar-se no espaço e

no tempo, podendo por aí tornar-se essencialmente o ente histórico que

diz da competência maior da realidade humana. (ibidem, p. 48). Contrário

à possibilidade de liberdade, figuraria o determinismo, sistema cerrado em

sua própria imanência, preso a reações específicas, atravancando

qualquer fresta que viesse a insinuar o surto de liberdade. “[...] a liberdade

intromete-se nos modos como o homem exerce o seu próprio corpo, (...)

pelo corpo o homem se faz livre, e [de que] pela liberdade o corpo

alcança a sua plenitude humana” (ibidem, p.49).

Em relação ao condicionamento sociológico, a liberdade pode

manifestar-se no reconhecimento da necessidade e esta pode determinar

o grau de sua servidão diante dos mecanismos opressores que a própria

sociedade impõe. Não reconhecer esses mecanismos opressores é viver

na menoridade descrita por Kant anteriormente. Alberto Magno4, diz ser

livre o homem que é causa de si e que não é coagido pelo poder do outro

(apud Abbagnano, 2007, p 700). Pedro é a “causa de si”, ao assumir a

luta de um povo.

Diante desses níveis, Bornheim (2002, p.42) conclui dizendo que

não há „liberdade‟, mas „liberdades‟ que vão fazendo; não existe a história

de uma liberdade única, e sim a grande diversidade, as histórias das

liberdades, sempre no plural.

Abbagnano (2007) aponta que a liberdade define-se no âmbito de

várias perspectivas da ciência, comporta definições que se

complementam, pensamento este também de Novaes, jornalista e

professor que, em seu ensaio “O Risco da Ilusão”, inserido em O Avesso

da Liberdade(2002, p. 07), afirma que a liberdade ao longo da história foi

construída pela teologia, pela metafísica, pela moral e pela política, até

chegar ao que é hoje, não sendo interessante separar essas perspectivas

para que se tenha uma compreensão mais ampla e aprofundada do seu

significado. E também dos seus paradoxos - a liberdade traz, na sua

4 San Alberto Magno (latim: Albertus Magnus), da Ordem dos Pregadores, também

conhecido como Alberto de Colônia, Bispo de Regensburgo e Doutor da Igreja, tornou-se famoso por seu vasto conhecimento e por sua defesa da coexistência pacífica da ciência e da religião. Ele é considerado o maior filósofo e teólogo alemão da Idade Média, e foi o primeiro intelectual medieval a aplicar a filosofia de Aristóteles no pensamento cristão. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_Magno .

20

própria história, o seu contrário, a servidão, tanto quando se trata da

política e das relações sociais como quando se fala do indivíduo.

Pensando assim, a liberdade sempre comporta o risco da ilusão e do

fracasso (NOVAES, 2002, p 07).

Novaes afirma que a palavra liberdade sempre foi expressa de

forma impura e se justifica citando Valéry ( 2002, p. 08) para alertar sobre

o poder e constituição ideológica que cada palavra apresenta, que as

palavras de que nos servimos exprimem nossas ideias e foram criadas

em épocas diferentes, nas mais diversas circunstâncias e pelos mais

singulares indivíduos e grupos de indivíduos. As palavras ganham sentido

de acordo com o contexto de cada um e representa de forma concreta a

realidade do homem que a usa; assim, seria impossível definir liberdade

usando apenas um caminho, um modelo. Para tanto, é preciso lembrar

ainda que Valéry, em seu ensaio “Flutuações sobre a liberdade” (apud

NOVAES, 2002, p.07) diz que “Liberdade: têm mais valor do que sentido”

e cada palavra de que nos servimos para descrever um pensamento e

suas operações vem carregada de uma imensa acumulação de atitudes

emotivas e noções religiosas e morais. E acrescenta: “a linguagem é o

meio mais forte do Outro – alojado em nós mesmos”.

Novaes cita Espinosa e Hannah Arendt ( 2002, p.11) para nos dar

duas grandes lições. O primeiro ensina-nos que os homens são livres

apenas durante o tempo em que dura a ação, nem antes nem depois; ser

livre e agir são uma só e mesma coisa, o que endossa os versos “si al

andar se hace camino /?qué caminos esperais?.”

A segunda ensina-nos que a liberdade só se manifesta quando o

eu quero e o eu posso coincidem, “(...) uma junção de desejo e poder” (

2002, p.11). Mas que poder tem Casaldáliga senão o que ele próprio se

concedeu, cavou, delegou-se no trabalho junto com a comunidade?

Voltamos à liberdade que ele acredita: a da auto-consciência, consciência

do próprio valor:

Como un rio que me invade mansamente. Que penetro, deslumbrado. Como um rio que me arrastra, poderoso, en su corriente mientras abro, libremente, el curso mío.

21

(...) Donde muere el dia y nasce el dia nuevo. Como un rio que me lleva y que yo llevo. Como um rio que se sabe rio y mar. (“Como um rio”, 1986, p.22)

O poeta vai construindo o sentido de liberdade no uso dos

elementos como “rio” e “mar” para mostrar a força e o valor da auto-

consciência na existência humana e de que forma essa consciência e

autoconsciência nos desperta para a liberdade. Anaforicamente, há a

recorrência da comparação “Como un rio”, que enfatiza a ideia de

continuidade, leveza, liberdade. Imaginemos que “rio” representa toda a

força criadora da natureza e do tempo, além de simbolizar a fertilidade e a

progressiva irrigação da terra. Já ao mar, assim como aos oceanos,

corresponde ao grande movimento, o agente transitivo e mediador entre o

informal (ar, gases) e o formal (terra, sólido) e, analogicamente, entre a

vida e a morte, a fonte da vida e o final da mesma (CIRLOT, 1984).

Esses versos apresentam rimas alternadas e emparelhadas,

paradoxalmente, emprega termos que marcam oposição, como no 1°

verso da primeira estrofe “mansamente”, e no 3° verso “arrasta, poderoso,

em su corriente”; no 1° verso da segunda estrofe, “muere (...) nasce”. Há

ainda a recorrência da conjunção “que” marcando a subordinação de uma

oração a outra na construção do sentido do poema.

Na linguagem referencial da obra Creio na justiça e na esperança,

esse eu “que se sabe rio y mar” afirma:

(...) a liberdade do Homem é mais que sócio-política. (...) e não pode ser amordaçada por homem algum. Nenhum sistema e nenhum aparelho repressivo alcançam essa profundeza espiritual (...) o Homem é sociedade e da sociedade depende para se realizar como Homem. Um clima de escravidão liberta mais ainda aos poucos verdadeiramente livres; mas apavora, embrutece ou desespera aos muitos livres apenas na raiz afogada de sua condição humana (1978, p. 235).

A primeira vista pode parecer estranho dizer que a liberdade nasça

mais da “escravidão”; no entanto, é vivendo no âmbito da “escravidão”,

observando até que ponto a ação do homem pode embrutecer o outro,

22

tirar-lhe a humanidade, violar-lhe a dignidade, a honra, ferir-lhe o corpo,

usurpar-lhe os bens, a família, é que os homens podem reconhecer o

direito de viver condignamente e se esforçar internamente para

amadurecer cada vez mais essa consciência e se articular com outros

homens para lutar por isso. “As batatas/ só se sentem juntas no saco/

quando começam a apodrecer”, dialoga metaforicamente o bispo-poeta

consigo mesmo em outro texto, “Hai-kai da solidariedade” ( In: Cantigas

Menores, 2003, p 82), ou seja, é necessário passar por situações que

despertem uma consciência social. Uma das condições necessárias para

a existência da liberdade é essa consciência social, somada à ação, como

já foi dito.

A literatura de Pedro mostra que, pela consciência, os homens se

adéquam à dinâmica geral das coisas, inserem-se nelas como a parte e o

todo, “capaz[es] entretanto de saber de si, dos outros, de senti-los e de

amá-los” (BOFF, 2004,p.85). Lembremos ainda Merleau-Ponty, que

sugere uma entrada no diálogo – e inicialmente na relação silenciosa com

o outro – se quisermos compreender o poder da palavra (apud NOVAES,

2002); a palavra tem o poder de nos tornar parte da realidade do outro de

forma infinita. A ação de Casaldáliga é mostrar essa realidade, propor-nos

esse contato, nutrir-nos de uma realidade negada, ocultada, da qual se

torna testemunha e porta voz. E faz tudo isso sem perder a beleza da

forma poética, isto é o que o torna livre. De acordo com o filósofo grego

Epicteto ( apud Abbagnano, p.700), “são livres (...) os atos do homem que

têm princípio no próprio homem”.

Assim, Candido vai dizer em A educação pela noite e outros

ensaios que

A criação literária traz como condição necessária uma carga de liberdade que a torna independente sob muitos aspectos, de tal maneira que a explicação dos seus produtos é encontrada sobretudo neles mesmos. Como conjunto de obras de arte é que a literatura se caracteriza por essa liberdade extraordinária que transcende as nossas servidões. Mas na medida em que é um sistema de produtos que são também instrumentos de comunicação entre homens, possui tantas ligações com a vida social que vale a pena estudar a correspondência e a interação entre ambas. (...) pois a ligação entre a

23

literatura e a sociedade é percebida de maneira viva quando tentamos descobrir como as sugestões e influências do meio se incorporam à estrutura da obra – de modo tão visceral que deixam de ser propriamente sociais para se tornarem a substancia do ato criador. (2003, p. 163)

A criação da literatura em si já deve ser pensada como a

manifestação de liberdade, uma vez que é um “instrumento de

comunicação e interação entre homens”, e é por meio dela que o homem

se percebe como “substância do ato criador”. A literatura, aqui, pensada

como obra literária, permite o encontro fecundo do autor com público, a

sociedade, lugar de onde se extrai a matéria que permite a existência da

obra. Segundo Tristão de Athayde, no prefácio da obra Águas do tempo

(1989, p.23) Casaldáliga “não é um poeta de salão, mas do ar livre. Não é

apenas um cultivador de acrobacias assimétricas ou bardo „edificante‟.

Nem um bispo distante entre quatro paredes.” A literatura deste poeta tem

como substância o homem junto com aquele que sofre às margens do

capitalismo excludente.

Casaldáliga mantém uma postura carregada de consciência e

espírito atento ao produzir sua obra a fim de que ninguém possa ignorar o

mundo em que vive; então, analisando a postura e o compromisso do

poeta, verificamos que

(...) la noción de libertad también está íntimamente ligada a la actividad creadora del pensamiento y la acción científica; por tanto, el concepto de libertad es capacidad de conocer, de pensar, de opinar, de discutir, de hacer con nuestros esfuerzos lo más que podamos para desarrollar nuestras potencialidades y capacidades personales y construir nuestro destino de acuerdo a nuestros ideales. Esta concepción de libertad, no limita la de otros y es fundamental para el desarrollo del ser. (…) libertad es luchar por construir la forma de vida que mantenga la justa relación entre el individuo y la sociedad.( GÓMEZ et al 5, p. 04)

5 GOMEZ, J.R.L.; LOPEZ, C.B; GONZÁLES, R.M.“El significado de la liberta”. In:

http://www.lajornadanet.com/diario/archivo/2009/agosto/5/9.html acesso em 24/05/2010.

24

De acordo com Francis Wolff (2002, p.16), ao nos perguntamos se

em tal país se é livre, ou quando invocamos as liberdades políticas, as

liberdades fundamentais, ou ainda quando dizemos de um homem que

ele é livre (por oposição a um escravo ou a um preso), referimo-nos ao

que se pode chamar liberdade de direito, isto é, em linhas gerais, a

ausência de coerções externas – as interdições e as obrigações –

nascidas do Estado, da coletividade ou da sociedade.

Poeticamente, Pedro Casaldáliga educa para uma “ética

emancipadora” (MORENO, 2001, p.10). Então, pensando na postura

assumida do poeta enquanto clérigo e escritor, percebemos que este

goza de uma liberdade ilimitada que se concretiza em pensamento,

palavra, ato.

No contexto dessa sua proposta de educação, desenvolve o

trabalho de despertar nas pessoas um querer próprio. É isso possível?

Wolff diz haver um segundo sentido que se pode chamar liberdade de

fato, por oposição à de direito: não se trata mais de perguntar “é permitido

fazer (dizer, pensar)”? Mas “é possível fazer (pensar querer...)?”. Não nos

referimos mais à ausência de coerções extrínsecas (às leis civis,

obrigações sociais, regras coletivas, interdições...), mas intrínsecas –

aquelas que concernem ao próprio sujeito (2002, p.16). Wolf afirma que,

quanto maiores os meios (riquezas, cultura, saúde, força etc.), mais se

pode fazer o que se quer e, portanto, se é mais, nesse sentido.

Christian Cazabonne em El significado de la libertad (2009, p 01)

determina que a Liberdade é

(…) una condición de cada persona, las cuales no están obligadas por su estado al cumplimiento de ciertos deberes. Es la facilidad, soltura y disposición natural para hacer una cosa con destreza. En su sentido general, libertad es el estado del individuo que no está sujeto a ninguna obligación, que obra conforme a su voluntad y naturaleza.

Este autor explica que há uma distinção entre dois tipos de

liberdade, uma que provém do interior e outra do exterior:

25

(…) libertad interior, llamada también de necesidad o libre albedrío, ésta se percibe desde un plano estrictamente psicológico, el cual no implica ninguna metafísica como “sentimiento de la espontaneidad de las propias acciones”. Libertad exterior o de coacción, es la posibilidad de realizar sin trabas determinadas actividades (pertenece a las libertades cívicas, religiosas y políticas).(ibídem, 2009, p 01).

Retomando uma questão já colocada, a liberdade é decorrente de

três conceitos, que aproximam áreas dos mais variados campos, em suas

“disputas metafísicas” em torno dessa questão, segundo o Dicionário de

Filosofia de Nicola Abbagnano (2007, p.699):

1.ª L6. como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a L. é a ausência de condições e de limites; 2.ª L. como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente, a autodeterminação, mas atribuindo a totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substância, Estado); 3.ª L. como possibilidade ou escolha, segundo a qual a L. é limitada e condicionada, isto é finita [...] Não constituem conceitos diferentes as formas que a L. assume nos vários campos, como por exemplo L. metafísica, L. moral, L. política, L. econômicas etc. As disputas metafísicas, morais, políticas, econômicas etc., em torna da L. são dominadas pelos três conceitos em questão, aos quais, portanto, podem ser remetidas as formas especificas de L. sobre as quais essas disputas versam. ( 2007; p.699)

A liberdade de Casaldáliga nasce da “ausência de condições e

limites” e, são as imposições e os limites que o motivam a agir, revelando-

se tanto na ação como missionário quanto no uso da palavra como poeta.

De acordo com Gerd Bornheim (In Novaes, 2002, p.41), a liberdade se faz

a partir do elemento não livre, da presença de um obstáculo sem o qual

nem se poderia conceber o surgimento da liberdade.

No que se refere a “necessidade” é interessante refletir que

Casaldaliga, tomando algumas necessidades próprias, assume para si as

necessidades do outro, que vão muito além da fome, da miséria etc.,

pensamento este comum a Boff (2004, p.151) quando diz que o pobre

não configura apenas um ser de necessidades, mas significa um ser de

desejo, de comunicação ilimitada, de fome, de beleza.

6 O autor usa a letra maiúscula L,seguida de ponto para se referir à Liberdade.

26

Sartre (apud Abbagnano, 2007, p 701) afirma que a Liberdade é a

escolha que o homem faz de seu próprio ser e do mundo; então quanto à

liberdade como possibilidade de “escolha”, nosso poeta escolheu ser

missionário, não um simples missionário, mas aquele que toma para si o

verdadeiro sentido da palavra e o coloca em prática.

Boff, em nota introdutória à obra Murais da Libertação (2005, p.08)

diz que Casaldáliga é um dos melhores frutos da Igreja da Libertação, que

ele entregou Espírito ao seu povo. Ele é, antes de tudo, um pastor no

meio de sua comunidade, animando a caminhada e suscitando carisma e

serviços. É um profeta da palavra corajosa, como a dos antigos Profetas,

apontando com o dedo em riste as injustiças e as violências do latifúndio

e do capital mundial contra camponeses, ribeirinhos e indígenas. É um

poeta da mesma têmpera de um São João da Cruz, que une sua paixão

por Deus à sua paixão pelo povo sofrido.

Pedro se identifica com os ideais da Teologia da Libertação e é um

dos principais representantes desse movimento no Brasil. Nosso poeta

padre faz a opção por uma vida simples a serviço dos pobres. Para

Leonardo Boff (2004, p150) a opção pelos pobres constituiu e continua

constituindo o núcleo axial da Teologia da Libertação. Optar pelos pobres

implica uma prática: significa assumir o lugar do pobre, sua causa, sua

luta e, no limite, seu destino muitas vezes trágico.

Essa opção pelos pobres tem sido a de Casaldáliga como

sacerdote, como homem, como poeta. Para ele, assim como para Boff

(2004, p. 151-152) o pobre

(...) não é apenas aquele que não tem; ele também tem cultura, capacidade de trabalho, de colaboração, de organização e de luta. Somente quando o pobre confia em seu potencial e opta por outro pobre, criam-se as verdadeiras condições de libertação autêntica. (...) O pobre transforma-se em sujeito histórico de sua própria libertação; ele se faz um homem livre, capaz de autodeterminar-se para a solidariedade com o outro, diferente dele para serem juntos livres numa sociedade mais justa, fraterna e ecologicamente integrada.

Para Boff (apud Michael Löwy, 1991, p.25) “(...) a Teologia da

Libertação é, ao mesmo tempo, o reflexo de uma práxis anterior e uma

27

reflexão sobre ela. Mais precisamente, é a expressão/legitimação de um

vasto movimento social, que surgiu no início dos anos 1960 (...)”. Desse

movimento participavam setores significativos da igreja (padres, ordens

religiosas, bispos), movimentos religiosos laicos (Ação Católica,

Juventude Universitária Cristã, jovens trabalhadores cristãos),

intervenções pastorais de base popular como pastoral operária,

camponesa e urbana, além das comunidades eclesiais de base.

Por meio desse movimento, os próprios pobres tomam consciência

da sua condição e se organizam para a luta enquanto cristãos, vinculados

à Igreja e inspirados por uma fé. Na apresentação da obra Murais da

Libertação (2005, p 07), Boff afirma que o surgimento da Igreja da

libertação, com sua correspondente teologia da libertação, representa,

antes de tudo, uma revolução espiritual. Como toda revolução, muda-se o

olhar sobre as coisas, novos caminhos se abrem e antigos ganham nova

direção.

Segundo Michael Löwy em Marxismo e Teologia da Libertação

(1991, p. 27-8) a Teologia da Libertação tem como doutrina:

1 – Um implacável requisitório moral e social contra o capitalismo dependente, seja como sistema injusto, iníquo, seja como forma de pecado estrutural. 2 – A utilização do instrumental marxista para compreender as causas da pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de classes. 3 – Uma opção preferencial em favor dos pobres e da sua luta pela autolibertação. 4 – O desenvolvimento de comunidades cristãs de base entre os pobres, como uma nova forma da Igreja e como alternativa ao modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista. 5 – Uma nova leitura da Bíblia, voltada principalmente para passagens como o Êxodo – paradigma da luta de libertação de um povo escravizado. 6 – A luta contra idolatria (e não o ateísmo) como inimigo principal da religião – isto é, contra os novos ídolos da morte, adorados pelos novos faraós, os novos Césares e os novos Herodes: Mammon, a Riqueza, o Poder, a Segurança Nacional, o Estado, a Força Militar, a “Civilização Cristã Ocidental”. 7 – A libertação humana histórica como antecipação da salvação final em Cristo, como Reino de Deus. 8 – Uma crítica da teologia dualística tradicional como produto da filosofia platônica grega e não da tradição

28

bíblica – nas quais as histórias humana e divina são distintas mas inseparáveis.

A produção literária do poeta Pedro aborda a terra e a relação do

homem com a mesma; as questões sociais envolvendo a terra; a luta em

prol dos índios banidos de suas terras, dos posseiros espoliados, dos

trabalhadores semi-escravos etc. Estas preocupações se inserem no

movimento da Teologia da Libertação. Para Boff, em Ecologia: Grito da

Terra, Grito dos Pobres (2004, p.143) a Teologia da Libertação e o

discurso ecológico têm algo em comum - partem de duas chagas que

sangram:

A primeira, a chaga da pobreza e da miséria, rompe o tecido social dos milhões e milhões de pobres no mundo inteiro. A segunda, a agressão sistemática à Terra desestrutura o equilíbrio do planeta ameaçado pela depredação feita a partir do tipo de desenvolvimento montado pelas sociedades contemporâneas e hoje mundializadas. Ambas as linhas de reflexão e de práticas partem do grito: o grito dos pobres por vida, liberdade e beleza. (cf. EX 3, 7): a teologia da libertação; e o grito da Terra que geme sob a opressão (cf. RM 8, 22-23) a ecologia. Ambas visam à libertação, uma dos pobres a partir deles mesmos, como sujeitos históricos organizados, conscientizados e articulados com outros aliados que assumem a sua causa e a sua luta; e outra da Terra mediante uma nova aliança do ser humano para com ela, num relacionamento fraternal/sororal e com um tipo de desenvolvimento sustentável que respeite os diferentes ecossistemas e garanta uma boa qualidade de vida às gerações futuras.

Boff (2004, p.150) afirma que o fato propulsor que deslanchou do

movimento da libertação, ainda nos anos de 1960, foi a indignação ética

dos profetas em face da pobreza e da miséria coletiva das multidões,

principalmente no então chamado Terceiro Mundo, explorado pelas

grandes potências:

Cada vez que (eu) miro la Luna, Siento (eu) el pie de Amstrong En mi ojos. (“Hai Kai de la luna ocupada, 1971, p.66)

29

Isso propiciou um renovação da Igreja, pois não era a sociedade que

deveria se adequar à Igreja, ao contrário, a Igreja deveria repensar suas

práticas e adequá-las no âmbito do que Bíblia propunha.

30

CAPÍTULO 2. NASCE UM IDEAL DE LIBERDADE: O DIÁRIO DE PEDRO

CASALDÁLIGA

Em sua obra em prosa Creio na Justiça e na Esperança (1978)7,

Pedro Casaldáliga abre as páginas de sua vida. O poeta, aqui, é o

protagonista e narrador da própria obra, revelando-nos, por meio de

narrações, ações de seu dia-a-dia, suas experiências, suas

frustrações,seu abandono, sua trajetória antes de chegar ao Brasil, fatos

históricos, suas expectativas como ser humano a serviço do próximo.

Assim composta, essa obra se configura como “diário”, uma das

ramificações da literatura dita confessional ou intimista, narrativa que tem o

“sujeito como objeto de seu próprio discurso”, podendo se constituir, além

desse formato “diário”, também como “memória”, “autobiografia” etc., diz-

nos Remédios em Literatura confessional: autobiografia e ficcionalidade

(1997, p.09). Essa autora sustenta que tal modalidade de produção literária

é a que mais se aproxima do leitor, em razão de expor um eu, pessoa real,

que lhe abre os mais íntimos sentimentos de vida.

Nesse capítulo, estudaremos a temática da liberdade de pensar e

agir na expressão em prosa de Pedro Casaldáliga, na perspectiva crítica

da literatura confessional. Antes de iniciar esse estudo, julgamos

interessante colocar em evidência algumas características do diário como

gênero textual.

2.1. O diário como um gênero textual

Para Massaud Moisés (2004) o termo “diário” indica o relato de

acontecimentos vividos ao longo de um dia, podendo ser registrado por

meio do jornal, de publicação diária ou periódica, ou em lugar reservado,

com comentários pessoais sobre os acontecimentos vividos, sendo esta

7 A edição usada é a de 1978, embora a obra tenha sido publicada anteriormente, em

1975.

31

modalidade – o diário íntimo - de interesse literário, por fazer uso da

fantasia na investigação interior.

Obediente ao calendário, ao presente fugaz de cada dia, o diário pode ser de vários tipos, conforme a ênfase recaia nos acontecimentos ou nas reflexões que suscitam. Desde os episódios políticos até a pura introspecção, passando pelo registro crítico dos cenários e das peripécias que as viagens propiciam, ou pelos embates da vida literária, tudo pode ser objeto de interesse para quem se disponha relatar as vivências cotidianas no ritmo em que ocorrem. Diário político, diário de viagem, diário intimo constituem as principais modalidades, assim designadas de acordo com a predominância de um desses aspectos. (MOISÉS, 2004, p.121-2)

Há autores que sustentam a diferença entre o diário e a

autobiografia, na perspectiva da retrospecção, como Remédios (1997,

p.14), considerando a reduzida “distância temporal e espacial entre o eu,

o vivido e o registro desse vivido pela escrita”, e o fato de, por se tratar de

escritura íntima, privativa, “o diário deixa de lado o pacto entre o autor e o

leitor”.

Por outro lado, Philippe Lejeune em El Pacto Autobiográfico

(1996, p 50), define autobiografia como um relato em prosa de fatos

passados, feitos por pessoa real acerca de sua própria existência, com

relevo para questões individuais e, especialmente, para a história de sua

personalidade. Lejeune reforça ainda a ideia de que, para que haja

autobiografia, é preciso que autor, narrador e personagem coincidam

identitariamente (1996. p 52). Comentando sobre essa teoria, Maciel

(2004) esclarece que o pacto só é possível

Se houver uma afirmação no texto da identidade do nome (autor= narrador= personagem), pois todas as formas de pacto manifestam a intenção de honrar sua firma e o leitor poderá questionar o que está dito, nunca, porém, a identidade de quem se escreve.

O que se pode inferir, pelo exposto, é que o diário é uma forma

autobiográfica por ser escrita voltada para o eu; é escrita fracionada, ou

seja, são registrados apenas os fatos julgados relevantes, seguidos de

32

marcação temporal; é um retorno ao passado semi-acabado, às vezes

como uma tentativa de salvar o presente, no sentido de uma

compreensão possível de suas ocorrências. Um diálogo interior consigo

mesmo.

De tal forma configurado, os pesquisadores sustentam-no como

um gênero específico, contendo fatos biográficos que incorporam os

ficcionais, presença do cotidiano (sua principal determinação), que lhe

garante ser “diário”, acompanhando o calendário (Maciel, 2004).

O calendário é o único expediente que subordina o diário, é o

“pacto que sella”, diz Maurice Blanchot em El diario íntimo y el relato

(1969. p 47), em sua aparência dissoluta, na qual cabem todas as coisas,

fatos, situações ordenadas, desordenadas, volúveis, anarquistas, tudo lhe

convém: é uma forma “dócil ante los movimientos de la vida y capaz de

todas las libertades”.

Todas essas características ficam muito claras na obra Creio na

Justiça e na Esperança, de Casaldáliga, na qual o poeta deixa

transparecer a preocupação em retomar fatos passados. O autor

reconstrói sua história com acontecimentos da infância até os dias atuais,

distribuindo-a em cinco capítulos, embora se detenha mais no primeiro,

fiel ao calendário. Uma recriação da realidade em que vive. Retornos que

são os mecanismos encontrados pelo autor para que ele mesmo, e o

leitor, possam justificar/entender o presente que estão vivendo,

juntamente com sua comunidade local e demais comunidades,

expressando isso em sua obra.

Ao registrar a sua vivência do cotidiano, anotando fatos, pensamentos e procurando conter a passagem do tempo, o diarista quer organizar o que, a priori, não é subordinável. A tentativa de racionalização da experiência do cotidiano é a base do gênero. As datas que costumam aparecer nas anotações de um diário, além de tentativa de organização de uma possível existência, é uma ordenação dos acontecimentos dentro da narrativa, criando um elo que une, muitas vezes, acontecimentos sem nenhuma ligação entre si. (MACIEL, 2004, p.10-11)

Embora tudo caiba num diário, esse conteúdo requer um

domínio de linguagem, requer o uso da linguagem de forma criativa

33

(MACIEL, 2004). A narrativa autobiográfica do poeta Pedro é carregada

por uma linguagem capaz de nos despertar a comoção, de tocar o mais

íntimo de nossa sensibilidade, de nos fazer reconhecer no outro as

consequências de nossas ações e de nos fazer descobrir na menoridade,

segundo Kant, a nossa incapacidade de usar a razão, de fazer uso do

nosso próprio entendimento. Há uma entrega de si ao relatar os fatos e

comentá-los, um verdadeiro reflexo de sua alma, de seu amor ao próximo,

de sua tentativa de contribuir para melhorar o mundo, para mudá-lo, uma

espécie de pedido de socorro.

2.2 - Nasce um ideal de liberdade: o diário de Pedro Casaldáliga

Por meio da obra Creio na Justiça e na Esperança, tomamos

conhecimento de uma vida que deu sentido ao credo espiritual. Pedro

Casaldáliga, o autor, narra inicialmente sua infância na Espanha, as

dificuldades que sua família passou por conta da Guerra Civil, seu trajeto

até o seminário e pós-seminário, a chegada ao Brasil, onde teve, por meio

da missão que lhe foi dada em São Félix do Araguaia, prelazia situada no

Estado do Mato Grosso, Centro-Oeste do Brasil, o amadurecimento de

sua Fé em meio a conflitos violentos a mando de autoridades ora

passivas, ora coniventes.

A obra foi publicada pela primeira vez em 1975, pela Editorial

Espanhola Deslée de Brouwer, de Bilbao, na coleção Testemunhos de

Fé. A coleção interessou a muitos, esse interesse ultrapassou as

fronteiras, porque a fé não é estrangeira. Foi publicado na Itália, pelos

cadernos ASAL (1976), de Roma, e foi traduzido, na França, pelas

Editions du Cerf (1978).

Pelo exposto, e de acordo com Hilda Magalhães (2002), a obra de

D. Pedro se fundamenta, no plano temático, sobre dois pilares

fundamentais, a religião e a política, nascendo aí uma poética de

denuncia e engajamento.

Dom Pedro Casaldáliga nos fala, sobretudo de posseiros e de indígenas, os que estão no fim da cadeia do poder

34

na região. A obra de Dom Pedro Casaldáliga é uma denuncia, mas também um grito de guerra. Enquanto denuncia, ele nos mostra situações que ilustram o esquema de dominação no estado, as faltas cometidas pelo poder econômico e político, que esmagam os menos favorecidos. Enquanto engajamento seus textos trazem mensagens de luta e de resistência. (2002, p. 141-2).

Ressaltamos, então, a questão do “engajamento”. Na obra Que é a

literatura?, Sartre explica que o escritor “engajado” tem consciência de

que a palavra é ação, que não há possibilidade de desvelamento das

coisas, das situações senão com a intenção de transformá-las, não

podendo, com isso, manter uma “imparcialidade”. Por isso, na visão de

mundo que um autor expõe em sua obra

Não pode sequer ver uma situação sem mudá-la, pois o seu olhar imobiliza, destrói, ou esculpe, ou, como faz a eternidade, transforma o objeto em si mesmo. É no amor, no ódio, na cólera, no medo, na alegria, na indignação, na admiração, na esperança, no desespero que o homem e o mundo se revelam em sua verdade. [...] a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele. (SARTRE, 1989, 20-1)

Na elaboração do texto, Casaldáliga reaproveita narrativas

anteriores para construir a atual, justificando-a com uma metáfora:

Copio várias páginas do meu Diário porque elas já estavam escritas anteriormente e dão, com mais franqueza a autenticidade, o pão quente de

cada dia. ( 1978, p.16)

No capítulo I, A vida que tem dado sentido ao meu credo, o autor

conta o que tem dado sentido a sua vida todos esses anos, como ele

recebeu a Fé, como ensinou a crer, como tentou viver o que cria, e como,

através da vivência, foi intensificando o crendo. E é essa vivência que ele

coloca ao longo da obra, tentado uma ordenação cronológica dos fatos,

datados, de modo que se assentem melhor na memória do leitor com

quem estabelece franco diálogo, como este, em que justifica seu relato:

35

O livro está cheio de referência a nomes, lugares, histórias e estórias espanholas que, pelo contexto, se podem entender o cerne do texto.

Acrescento ainda um número considerável de páginas à edição original, as quais começam no intercapítulo 21 do capítulo I, desta edição. Elas recolhem os últimos acontecimentos, as vivências últimas que mais afetaram a mim e à nossa Igreja de São Félix.

Aproveito a ocasião para dizer que considero bem vivido tudo o que foi vivido porque, no fim, tudo terá sido Graça. (1978, p, 16).

Pedro nasceu em Barcelona, em 16 de fevereiro de 1928 e,

enquanto criança, presenciou os horrores da guerra civil espanhola; com

oito anos, escreveu seu primeiro livro Memórias autobiográficas de um

aspirante a jornalista. Aprendeu com a guerra e com os mais velhos,

naquela época, a ouvir e a calar, ainda que não concordasse.

Ainda criança, tem oportunidade de conviver amplamente com a

natureza, uma das grandes marcas de sua poesia, quando se vê proibido

de frequentar a escola e a igreja:

Sem escola, durante a semana, porque a escola era mista e atéia e a professora, socialista, era uma “porca” - conforme o despacho qualitativo de minha mãe -; sem Missa nem catecismo aos domingos, sem a possibilidade do cinema público que me estava proibido como a escola mista... primos e amigos criamos um grupo prematuro. E em bandos percorremos todos os montes e regatos da comarca, algumas hortas também e os dois castelos “mouros” que cercavam a aldeia. E nessas excursões piratas e nas prolongadas estadas nas fazendas de Candáliga e de El Cortés Del Pi apaixonei-me pela natureza livre. Daqueles dias, trago a imagem de uma árvore que queimamos involuntariamente, como quem carrega o remorso de um homicídio. Digo isto para explicar como me doíam, à minha chegada a Mato Grosso, os infinitos tocos das queimadas do latifúndio. (1978, p. 20).

A vivência dos horrores da Guerra Civil Espanhola vividos por ele e

sua família, as dificuldades do pós-guerra, estimularam-lhe a vocação

religiosa:

Estudei o primeiro ano de Latim, em casa, com o vigário

da idade em um ensebado Miguel. E no verão seguinte entrei para o seminário de Vic onde meu tio (sacerdote morto durante a Guerra Civil) estudara; no novo seminário da Gleva, mais precisamente, às margens do rio Ter foi um ano de frios e de provas. Mas ali se

36

fortaleceu minha vocação sacerdotal, prematura e já consciente. (1978, p.21)

O autor, aqui, narrador e personagem, segue sua narrativa

compartilhando com o leitor momentos de sua vida, decisivos para a

“ardência” - a militância religiosa:

Foi também por aqueles deliciosos, tempos do curso que comecei a pedir o martírio, como se pede um lugar no Tercio (pelotão).

O mundo era mau. Fora da Igreja não havia salvação e o zelo - temperamento, formação e Graça – me abrasava. A definição de missionário claretiano que o fundador nos legara pedia isto: “um homem que arde em caridade, que abrasa por onde passa.”

Com meus 24 anos, sob as chamas de Pentecostes e do verão, celebrei nervosamente feliz a primeira Missa, no Santuário do Coração de Maria em Barcelona. E depois de 12 anos de ausência, voltara à minha casa, à minha aldeia, feito sacerdote. (CASALDALIGA, 1979. p.24)

Ao fim da guerra civil, retoma parte de sua rotina, agora, cheia de

cicatrizes provocadas pela guerra, as perdas, a dor, a ausência das

pessoas queridas e do calor humano, tudo conspirando para o despertar

de sua vocação prematura e consciente.

Foi para um colégio claretiano, de onde saiu sacerdote em 1952, a

exemplo do tio, e também do próprio pai, que ali estivera por um período,

antes de optar pelo casamento – veja-se que já há um pendor familiar

para a vida religiosa. Em digressão, por meio de parênteses, expõe a

perda desse tio, atestando sua dor. Em paradoxo, mostra o sofrimento e

persistência, vocação sacerdotal e dom poético, a possibilidade de dar

vida verbal a seus sentimentos, suas concepções de mundo, seus ideais:

Ali cantei muitas vezes canções de Verdaguer e ali lancei no mercado meus primeiros versos, em defesa de Manresa, minha comarca, contra uns arrogantes Igualadinos. “Serei poeta”, disse em minha casa naquelas férias. E sei que meu pai se emocionou, veladamente, porque ele tinha dentro de si muitas vocações truncadas, desde que fora dois anos seminaristas, em Vic também. (1978, p.21)

37

Decidiu que seria poeta, aquele que tinha, nas ações da sociedade,

a inspiração para seus versos, que materializaram diálogos travados

consigo mesmo em meio a tanto silêncio, angústias e injustiças.

No seminário, poderia ter escolhido ser apenas um padre, com

suas atribuições limitadas; no entanto, escolheu ser um missionário.

No seminário, um pequeno grupo brincávamos de ”missionários, dos de verdade, perseguidos e martirizados. Era a versão seminarística dos “Llades y civil” de nossas cidades. Estes brinquedos, as visitas ao túmulo de Santo Antonio Maria Clarret, em Vic e as conversas de conchavo – um pouco a despeito dos superiores “seculares”- me despertaram para a vertente última de minha vocação sacerdotal: seria missionário ( 1998, p.22)

Para ele, ser missionário era viver intensamente o amor de Cristo,

amar ao próximo como a si mesmo, sentir-se parte da vida do outro e

sentir que o outro fazia parte de sua vida. Suas primeiras lutas

aconteceram ainda no seminário; por muitas vezes, abandonou a poesia,

pois a Literatura não era bem vista pela Igreja. A religião o obrigava a

renunciar a muitas coisas, inclusive optar por uma língua e isto, para

Casaldáliga, era um sentimento de castração, pois o uso da palavra era

uma forma de se sentir vivo dentro de uma sociedade que vive na

servidão.

Mais de uma vez repeti aos companheiros, nessas confidências vocacionais que pungem e incendeiam tantas horas de seminário, meu propósito indeclinável de escrever. Mais de uma vez também senti a vida-ministério de escritor como uma vida laicizante. A literatura tinha má fama na boca dos nossos diretores espirituais. Da poesia, concretamente, despedi-me em muitas dolorosas ocasiões como alguém que se despede de uma amiga impossível

Renunciei oficialmente ao “catalão” porque era preciso optar por “uma” língua. Depois haveria de renunciar ao castelhano também, para me entregar ao português. Ou, menos dramaticamente, ficaria com as três línguas irmãs, mas cada uma por sua vez e em sua medida incerta, sempre com uma boa dose de castração para quem fez da palavra uma arma primordial. (Tudo isto, mesmo que não pareça, faz parte da minha Fé que sempre me complicou a vida, nas suas consequências.). (1978, p.23)

38

Durante o período de sua formação como sacerdote, optou pelas

missões. Seus trabalhos fora do seminário e, principalmente, os

obstáculos que enfrentava, intensificavam ainda mais sua vocação pelas

missões, sua vontade de mudar o mundo, de reformar a Igreja, tudo

crescia dia após dia. Trabalhou no seminário de Madrid de onde foi

encaminhado para Rússia, lá realizou trabalhos pastorais e trabalhou em

uma rádio onde promovia discussões sociais. Volta à Espanha e se

dedica a escola claretiana de Barcelona. Foi no caminho de renovação e

intensificação de sua fé que optou por vir para o Brasil, pois a Santa Sé,

por meio da Nunciatura no Rio vinha pedindo, havia quatro anos, que a

Congregação Claretiana – que tinha missionado os sertões centrais de

Goiás – se encarregasse da região norte de Mato Grosso que estava

desatendida.

No dia 26 de janeiro de 1968, Manuel e eu trocávamos os 11 graus abaixo de zero de Madri pelos 38 graus acima de zero do aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro. Era um pulo no vazio do outro mundo. Eu tinha conseguido, finalmente, o que tinha sonhado e pedido e procurado, raivosamente, durante todos os dias de minha vida de vocação: “as Missões”, um clima heróico para viver heroicamente – dizia pra mim mesmo, ingênuo e obstinado e talvez fiel. (CASALDALIGA. 1978. p. 29)

Chegando ao Brasil, Casaldáliga passa por um período de

preparação antes de se entregar à sua missão no extremo norte de Mato

Grosso. Quando, enfim, preparado, chega a Mato Grosso e, a partir daí,

começa a registrar, com paixão e criatividade, seus momentos vividos na

mais nova terra, uma terra de ninguém, ou quase ninguém, onde apenas

os latifundiários, apoiados pela política e lei local eram donos.

Foi em julho de 1968. Chegamos a um mundo sem retorno. A Missão tinha 150.000 km² de rios, sertões e florestas, no nordeste de Mato Grosso, dentro da Amazônia chamada “legal”, entre os rios Araguaia e Xingu, abrangendo também a Ilha do Bananal que é a maior ilha fluvial do mundo. Sem outra “base” eclesiástica senão nossa casa de 4 por 8m, à beira do Araguaia, maravilhoso e turvo; sem saber por onde começar; sem saber sequer quem habitava a região onde as distancias

39

de toda espécie justificavam todas as indecisões. A única estrada que existia, vermelha e poeirenta, estava ainda em construção e na selva e descampados que acabávamos de atravessar a “onça”, materialmente concreta, tinha pleno direito de nos cruzar o caminho à frente do caminhão.

[...] No dia 15 de agosto, eu começara o meu Diário: “Talvez, porque aqui vou precisar mais do que nunca do

diálogo interior, em meio a tantos silêncios - escrevia eu. Chegamos à Missão no dia 30 de julho e já pensei e já senti e temi e esperei e gozei muitas coisas.Dos homens, da natureza e de Deus.” (CASALDALIGA, 1978 p. 30 e 31)

Assim, Casaldáliga começa a narrar momentos vivenciados ao

lado de um povo que sofre em um silêncio imposto pelos poderosos.

Pedro se reconhece nesse povo:

Casei-me com esta Terra -Moema de Santa Cruz- e ganhei dela uma filha

que se chama Liberdade. (“Naturalização”, Cantigas Menores, 2003, p.107)

Pedro, metaforicamente, usa a expressão “casar-se com esta

Terra” para dizer que assume a luta do povo; para indicar afetividade e

envolvimento com o povo desta terra. O poeta usa a palavra “Terra” com

a inicial maiúscula antecedida pelo pronome demonstrativo “esta”, que

indica a proximidade de quem fala com o objeto referido, além de indicar

que não se trata de uma terra comum, mas desta Terra (Mato Grosso);

faz alusão ao índio quando diz “Moema de Santa Cruz”: “Moema”, em

tupi-guarani, significa doçura. Desse casamento (missão), instaura-se a

“Liberdade” movida pela consciência e espírito.

No poema, composto em redondilha maior, com versos brancos, o

poeta faz metalinguagem, indagando-se sobre o efeito e alcance de suas

palavras sobre aquela gente que “escuta” e “cala”:

Esta gente escuta - escrevia também no Diário- sorri às vezes, cala quase sempre. A que distância estarão minhas palavras da sua alma simples, elementar, endurecida pelo sofrimento e pelo abandono? gente de aluvião, levados e trazidos pela maré da pobreza, da solidão, do crime próprio ou alheio (do crime coletivo da

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injustiça social!). Gente simples, gente que carrega a cruz. Estes são, apesar de tudo que se queira dizer em contrário, os pobres do Evangelho. (1978, p.31)

Segue apresentando uma narrativa centrada nas experiências do

“eu”, no contato do “eu” com o novo, com o sofrimento, com a vida de

muitos que são, por muitos, esquecidos. Situação sem fim, experiências

que ainda continuam nos dias atuais (1978, p.33):

Mato Grosso era e ainda é uma terra sem lei. Alguém o tinha classificado como o “Estado-curral” do Brasil. Não encontramos nenhuma infra-estrutura administrativa, nenhuma organização trabalhista, nenhuma fiscalização. O Direito era do mais forte ou do mais bruto. O dinheiro e o “38” se impunham. Nascer, morrer, matar, esses sim eram os direitos básicos, os verbos conjugados com uma

assombrosa naturalidade.

Cada dia narrado pelo autor traz uma história que sensibiliza. Ele

entra em contato com situações de risco, de dor e de muita angústia,

sentimentos que se confundem com impotência, fraqueza, desamparo,

solidão. Dessas situações abstrai alimento para auto-fortalecer-se. Traz,

ainda, momentos que falam um pouco de tudo, da passagem, da sua Fé

em Deus, em Cristo, na Igreja, no Homem, no Mundo, momentos que

falam de sua Fé na Justiça e na Esperança. Momentos como este:

Dia 31/01/71 “Ontem, a uma da tarde, morreu Antonio Barbosa de S.

Miguel do Araguaia. Tivemos de enterrá-lo urgentemente, enquanto caía a tarde. Eu tinha enrolado o cadáver com panos que sobraram dos uniformes do Ginásio e que tinham servido de cortina e de tela. Levamos Antonio de jipe ao cemitério. Acompanharam-nos um boiadeiro, “Cearense” e dois peões. Pedi, a eles e aos coveiros, que nos sentíssemos pais, irmãos, amigos, daquele pobre moço abandonado que ia ser enterrado até mesmo sem caixão. Enquanto eu rezava a oração da sepultura, a passarada do pequizeiro começou a cantar. Todo um acúmulo de sentimentos - ira, compaixão, esperança, pobreza - me subiu à garganta e a voz se me quebrou em pranto. Eu sou a Ressurreição e a Vida. Joguei terra sobre o cadáver. Eu queria solidarizar-me com Antônio, com todos os peões, com todos os injustiçados do mundo. Contra o supersticioso costume desta região de sepultar com o

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rosto virado para o rio, Antônio foi enterrado de cara para as fazendas. Como uma acusação. De cara para o morro e para o céu também.” (1978. p. 38-9)

As palavras do poeta trazem a nós a vivência do próximo,

anunciado pelo Evangelho nos Mandamentos. Essas palavras são

capazes de nos transportar a lugares que não condizem com a nossa

necessidade ou com valores, que até podem estar adormecidos em nós

mesmos, impõe-nos o sofrimento, a negação do direito, da liberdade.

Na narrativa, o personagem violado carrega a geografia no nome:

“Antonio Barbosa de S. Miguel do Araguaia”, nomeado e escravizado,

sem dignidade e sem identidade, inexistente para a sociedade. Enrolado

em sobras de terra, de alimento, de pano, condição residual que lhe foi

imposta pelo capitalismo. A cena se compõe com elementos trágicos e

sublimes: o coletivo nas palavras “boiadeiro e peões”; as derradeiras

homenagens resgatando alguma dignidade – a de ligação com o sagrado

- “rezava a oração da sepultura”, e a da natureza, a “passarada” cantando

pelo fim e, talvez, pelo recomeço em outra dimensão, quiçá mais livre,

conforme o credo católico. Ambiência conflitual de

ira/compaixão/esperança/pobreza, tornando a existência um completo

paradoxo. Como o ser humano pode sentir tamanha cólera e ao mesmo

tempo, tomado pela cena, pela imagem sentir tamanha comiseração,

expressa verbalmente pelo /r/ aliterante “rosto (...) rio (...) enterrado (...) de

cara para o morro”. A desobediência à superstição – “Contra o

supersticioso costume desta região de sepultar com o rosto virado para o

rio” -, contribui ideológica, colérica e fragilmente para a vingança,

sensação de liberdade de poder ser enterrado de frente para morro, para

a terra, como um sinal de acusação e também de contemplação. A terra é

jogada sobre o corpo envolto em panos, a concretude do fim.

Esse momento narrado por Dom Pedro, assim como outros ao longo

do diário, provoca uma comoção tão intensa – as lágrimas dele são as

nossas lágrimas -, que desperta no leitor a curiosidade e a vontade de

prosseguir na leitura; há o desejo de saber mais sobre a vida do autor

diante de tantas provações vividas por ele como homem, como bispo,

sobretudo, por ser uma produção que conduz o leitor ao reconhecimento

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de si no outro, conduzido pela sinceridade e liberdade do autor em suas

narrações. Esta sinceridade e liberdade, segundo Maurice Blanchot

(1969, p.48) é fundamental para quem escreve um diário:

[...] De ahí que lá sinceridad representa, para el diario, la exigencia que debe alcanzar, pero sin traspasarla. Nadie debe ser más sincero que el autor de diario, y la sinceridad es esa transparencia que le permite no echar sombra sobre a la limitada existencia de cada dia a la cual se reduce su fan de escribir. Hay que ser superficial para no faltar a la sinceridad, gran virtud que también exige valor. La profundidad tiene sus comodidades. Por lo menos, la profundidad tiene la resolución de no limitarse al juramento que nos liga a nosotros y a los demás por medio de alguna verdad.

Pedro segue ao longo do diário com suas narrativas do cotidiano.

Em alguns momentos, deixa–as de lado para estabelecer consigo mesmo

um diálogo, uma espécie de reflexão de seus atos, da função pedagógica

da Igreja, muitas vezes à luz da sabedoria antiga. Em uma dessas

passagens, reconhecendo que o povo já lhe dedica confiança, lembra-se

de um conselho de Confúcio(1978, p.43):“Se queres colher por um dia, dá de

comer aos homens. Se queres colher por um ano, planta o grão. Se queres

colher para sempre, instrui o Povo.”

O poeta-bispo consegue externar em seu poema “O Varal da

Memória”, um dos pontos que considera como “instrução”:

O Povo

tem nas mãos as roupas,

as bandeiras, úmidas de sereno

e de sangue. Falta-lhe o varal

da memória história

das lutas. (In: A Cuia de Gedeão, 1982, p. 38)

Com versos brancos e livres, usando da metonimização ao

empregar os elementos “mãos”, “roupas”, “bandeiras” para representar

todo um contexto de lutas, sonhos, etc., o poeta expõe a necessidade do

reconhecimento que o povo precisa ter, do esclarecimento de si, da

43

situação em que se está inserido na sociedade da qual faz parte. O povo

sofre as conseqüências do esquecimento de sua própria história de luta,

falta-lhes “memória”. De que “memória” o poeta nos fala? Essas “roupas”,

“bandeiras, úmidas de sereno” são as condições a que o povo se

submeteu ou foram deixados ao longo do tempo pela busca da

sobrevivência, que não podem ser esquecidas, mas devem constituir a

motivação de cada um para a luta por condições melhores. Uma das

características da produção de Casaldáliga é o emprego de maiúscula

fora dos casos regulamentados pelo acordo ortográfico, e neste, não foi

diferente, pois ele emprega o substantivo “Povo” aplicando essa

característica, sugerindo respeito, admiração, sentimento religioso ou

cívico, um verdadeiro acatamento de autoridade que o “Povo”

desconhece ter.

Há uma tendência do ser humano, em geral, de não reconhecer

a situação do outro até que a realidade do outro passe a ser a sua; o

problema do outro só será seu quando se reconhecer no outro. Pedro nos

chama para fazer esse reconhecimento, para nos conscientizar da

situação do povo e, mais que isso, reconhece, que a Igreja tem se

isentado dessa responsabilidade quando diz que coonestar a injustiça é um

pecado demasiadamente „católico‟. A Igreja é responsável desde séculos. Deve

reconhecê-lo e chorar, e se há de converter (1978, 43)

O ser humano precisa desse reconhecimento, dessa

compreensão, dessa visão coletiva de sua vida na sociedade da qual

pertence. O teólogo e filósofo Leonardo Boff em Igreja: Carisma e Poder

esclarece que

Na medida em que se organizam e aprofundam a reflexão, eles se dão conta de que seus problemas apresentam um caráter estrutural. Sua marginalização é conseqüência do tipo de organização elitista, de acumulação privada, enfim, da própria estrutura econômico-social do sistema capitalista Aí emerge a questão política, e o tema da libertação ganha conteúdos concretos e históricos. Não se trata de uma libertação apenas do pecado (do qual sempre nos devemos libertar), mas de uma libertação que também possui dimensões históricas (econômicas, políticas e culturais). (2005, p.35 )

44

Boff diz que, nesse caso, os pobres não são compreendidos

apenas do ponto de vista da carência, mas também como possuidores de

Força histórica, capacidade de mudança, potencial evangelizador. A Igreja acede a eles diretamente; não passa pela mediação do estado ou das classes hegemônicas. Por isso, aqui não se trata mais de uma Igreja para os pobres, mas de uma Igreja de pobres e com os pobres. A partir desta inserção nos meios pobres e populares é que a igreja define sua relação com os demais estratos sociais. Ela não perde sua catolicidade; dá-lhe um conteúdo real e não retórico; dirige-se a todos, mas a partir dos pobres, de suas causas e de suas lutas. Daí ser a temática essencial desta Igreja a mudança social na direção de uma convivência mais justa, direitos humanos, interpretados como direitos das grandes maiorias pobres, justiça social, libertação integral, passando principalmente pelas libertações sócio-históricas, serviço concreto aos deserdados deste mundo etc. ( 2005, p. 37)

Casaldáliga acredita e pratica essa igreja, que se despoja de bens,

que opta pelos pobres, uma coerência profunda entre pensamento e

ação, persistindo, embora se sinta enfraquecido em alguns momentos,

em seu compromisso religioso:

Dia 26 A Esperança não decepciona – diz Paulo no oficio de hoje. ...Eu não poderei duvidar nunca da radical maldade das estruturas opressoras (do Capitalismo). Nem poderei duvidar nunca de uma legítima luta da classe oprimida para libertar-se. Não será um governo opressor que livrará os oprimidos! Creio ainda, cada dia mais firmemente, que é preciso desmitificar a propriedade privada. Estou lendo Pobreza Evangélica y promoción humana, de Gonzales Ruiz, um livro de pistas luminosas, excitantes. Evangelizar é promover com o plus gratuito do Dom de Cristo. Só quem evangeliza promove o homem até o fim. Mas dificilmente evangelizará quem não „promover humanamente‟ ao mesmo tempo!... ...Faz dias que renovo meu oferecimento total. Cada dia mais pobre e despojado. Às vezes sinto que só me resta debilidade – física e moral – os nervos destroçados e uma „fatal‟ esperança...

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A materialização humana da Fé e da Esperança, frequência de

entrega total. Seu diário vai se revelando como denúncia de uma

sociedade que castiga parte de si própria, ainda que não o reconheça.

Em 1971 foi nomeado bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.

Seu primeiro ato como bispo foi publicar uma carta pastoral, “Uma Igreja

da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”,

denunciando a situação iníqua da estrutura agrária brasileira e declarando

que a prelazia se consagraria com todas as suas forças à defesa dos

lavradores e índios, posição que manteve em todos esses anos e que

ainda mantém, a base teológica e espiritual da sua vida missionária.

“Depois de três anos de „missão‟ neste norte de Mato Grosso, tentando descobrir os sinais do tempo e do lugar, juntamente com outros sacerdotes, religiosos e leigos, na palavra, no silêncio, na dor e na vida do Povo, agora, com motivo de minha consagração episcopal, sinto-me na necessidade e no dever de como partilhar publicamente, como que a nível de Igreja Nacional e em termos de consciência pública, a descoberta angustiosa, premente.

Para dar a conhecer esta Igreja às outras Igrejas-irmãs, à Igreja. Para pedir e possibilitar, também desde esta Igreja, uma comunhão maior, uma colegiabilidade mais real, uma mais decidida corresponsabilidade. Talvez também para despertar e obter respostas e vocações concretas...

Nenhuma Igreja pode viver isolada. Toda Igreja é universal, na comunhão de uma mesma Esperança e no serviço comum do amor de Cristo que liberta e salva...

Cada parte contribui, com seus dons peculiares, em favor das demais e da Igreja toda, de modo que o todo e cada parte crescem por comunicação mútua e pelo esforço comum, em ordem a alcançar a plenitude na unidade”. ( Lumen Gentium, vc)

O „momento publicitário‟ de projetos e realizações que a Amazônia está vivendo e a opção de prioridade que a própria Igreja do Brasil fez por ela através da CNBB justificam também, com nova razão, esta minha declaração pública.

Se „a primeira missão do bispo é a de ser profeta‟ e „o profeta é aquele que diz o que é verdadeiro diante de todo um Povo‟; se ser bispo é ser a voz dos que não têm voz ( Card. Marty) eu não poderia, honestamente, permanecer de boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal”. ( 1978, p 49-50)

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Com muita força retórica e de atitude, Pedro diz da necessidade de

uma igreja que deve ser cada vez mais unida, que fale um só discurso,

que organize ações conjuntas e efetivas.

Mesmo sofrendo perseguições políticas, submetido a

humilhações, Pedro quer falar cada vez mais alto. De muitas dessas

circunstâncias nascem poemas que trazem Verdade, tornam-se orações,

auto-entrega:

(...)

Me chamarão subversivo

E eu lhes direi. O sou. Por meu povo em luta vivo

Com meu povo em marcha, vou.

Tenho fé de guerrilheiro e amor de revolução.

E entre o Evangelho e canção sofro e digo quanto quero. Se escandalizo, primeiro

queimei o próprio coração ao fogo desta paixão

crua do Seu mesmo madeiro

(...) ...

E chamo a Ordem de mal e o progresso de mentira. Tenho menos paz que ira Tenho mais amor que paz

...Creio na foice e no feixe destas espigas caídas:

Uma Morte e tantas vidas! Creio nesta foice que avança --sob este sol sem disfarce e na comum Esperança –

tão encurvada e tenaz. (“Canção da foice e do Feixe”, 1978, p.55-6)

Nos versos predominantemente heptassílabos (redondilha maior),

apresentando um esquema rímico variado, ora alternado, como na

primeira estrofe, ora interpolado, como na segunda, e misturadas, nas

duas últimas. Pedro afirma sua escolha pelo povo, “meu povo”. O uso do

possessivo denota essa apropriação das causas pelo povo porque se vê

como parte desse povo.

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Nos dois primeiros versos “Me chamarão subversivo / E eu lhes

direi: O sou.”, há uma exteriorização da consciência e da liberdade do

poeta que se materializa em suas práticas, confirmadas também na

segunda estrofe, quando o eu lírico diz que o “amor” dele é tão grande

que queima o próprio coração; vê-se como um “guerrilheiro”, uma direção

bem oposta para um bispo; no entanto, é exatamente essa oposição de

práticas e ideais que enfatizam a liberdade do poeta e que ele insere em

seus poemas e prosa.

Profundamente conhecedor de nossa história, o poeta faz, na

terceira estrofe, uma alusão ao lema nacional “Ordem e Progresso” desse

país. A primeira palavra é escrita com letra inicial maiúscula, que ele

define como “mal”. A segunda, propositadamente, com letra minúscula,

que para Pedro é uma “mentira”. Lembremos que "Ordem e Progresso" é

o lema nacional da República Federativa do Brasil a partir do momento de

sua instauração. A expressão é o lema político do Positivismo, forma

abreviada do lema de autoria do positivista francês Auguste Comte: "O

Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim", cujo sentido

é a realização dos ideais republicanos de estabelecimento de condições

sociais básicas - respeito às pessoas, salários dignos etc.-, e o

desenvolvimento material, intelectual, moral do país. Diante dessa

realidade pensada, mas não real, o poeta diz sentir “ira” e “amor”,

sentimentos paradoxalmente enfatizados pelos advérbios “menos” e

“mais”.

A última estrofe,

Creio na foice e no feixe destas espigas caídas:

Uma Morte e tantas vidas! Creio nesta foice que avança --sob este sol sem disfarce e na comum Esperança –

tão encurvada e tenaz.

carregada de elementos capazes de evidenciar os porquês das luta e

marcha do povo que sobrevive as margens do capital. Logo no primeiro

verso, o poeta diz “Creio”, como se fosse começar uma oração, no

entanto, diz crer na “foice e no feixe / destas espigas caídas:”; embora

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“foice” represente uma alegoria da morte, Diel (apud CIRLOT) vai dizer

que a foice é também um símbolo da colheita, e que de certa forma

também faz uma alusão ao comunismo. A palavra “feixe” está ligada ao

campo simbólico das ligaduras, nós, entrelaçados, cordas e cordões,

todos alusivos à situação existencial. O feixe é símbolo de unificação, de

integração e de força. A “espiga” é uma figura emblemática da

fecundidade, simbolizando a ideia de germinação e crescimento, de

desenvolvimento. Pedro reforça aqui a esperança de um renascimento e

unificação do povo diante do próprio reconhecimento existencial.

Há o emprego de elementos antitéticos - “Uma Morte e tantas

vidas!” -. Embora marquem oposição, a morte aqui pode ser pensada

como a não sujeição do ser humano e a libertação da sua condição

residual.

Na linguagem referencial de outros textos, Casaldáliga nos oferece

elementos para a compreensão mais aprofundada da necessidade de não

sujeição, expondo objetivos, meios e compromissos das linhas básicas da

Pastoral da Prelazia, diante de uma comunidade que cresce

„dolorosamente‟ livre, unida na causa (1978, p.73–4):

Numa primeira análise, que não pretende ser exaustiva,

destacamos, da realidade de opressão em que vive o Povo desta região, os seguintes pontos: - superstição, fatalismo e passividade; - analfabetismo e semi-analfabetismo; -marginalização social; - Latifúndio capitalista responsável pela permanência desta situação de opressão.

Objetivos: A Prelazia tem como objetivo desencadear e acelerar no Povo da região o processo de libertação total com que Cristo nos libertou (Cf. Gal. 5)

Meios: 1. Encarnação na pobreza, na luta e na esperança do Povo.

2. Educação libertadora pela conscientização e promoção humana.

3. Denuncia profética. Compromissos: a) Conscientes dos conflitos e

implicações que esta opção fundamental comporta, comprometendo-nos a respeitar as etapas do crescimento libertador do Povo e o pluralismo de carismas e serviços.

b) Respeitando as opções pessoais dos diferentes membros da equipe, comprometemo-nos também, como

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grupo eclesial, a uma vivência explicita da Fé – no testemunho de vida e oração, particularmente na celebração eucarística – e a uma revisão periódica para confrontar a opção básica e a ação concreta‟.

Casaldáliga se manifesta livre de coerções externas, assume o que

diz e liberta-se de princípios que poderiam propagar „absurdos‟:

o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da Igreja a que serve, pois foi admitido com esta condição. Mas, enquanto sábio, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da religião e da Igreja.

[...] sacerdote, no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de fazer uso de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo (nas coisas espirituais) deverem ser eles próprios menores constitui um absurdo que dá em resultado a perpetuação dos absurdos.

O poeta goza do esclarecimento e revela isto em sua obra, o que

não o coloca na menoridade descrita por Kant.

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CAPÍTULO 3. POESIA, LIBERDADE E REALIDADE SOCIAL

Como visto até aqui, Pedro Casaldáliga tem vasta produção, tanto

referencial como literária. Optando por dedicar um capítulo ao estudo da

modalidade literária “diário”, quisemos também fazê-lo em relação à

poesia, embora o tempo todo temos ilustrado comentários com a citação

de textos poéticos. O que se pretende, então, é aprofundar alguns temas

e observar com maior profundidade o fazer poético do autor em estudo,

na perspectiva socioestilística.

Embora a literatura de Mato Grosso tenha tido início com a Ata de

Fundação de Cuiabá, em 08 de abril de 1719, período conhecido como

“Ciclo dos Cronistas”, é, do começo até meados do século XX, que surge

uma literatura conservadora e resistente às influências da modernidade.

Essa resistência se dá, em partes, devido ao isolamento geográfico em

que a região vive na época e à ausência de meios de comunicação e

transporte.

A partir de 1950, Mato Grosso foi incluído nos programas de

ocupação do centro-norte do país, implementados pelo então governo

federal Getúlio Vargas. Com isso, Mato Grosso passa a receber um

grande número de migrantes, principalmente do Sul, Sudeste e do

Nordeste. No sentido da infra-estrutura, há um investimento na

construções de estradas, bancos, correios, etc.

A literatura de Mato Grosso, na primeira metade do século XX,

mostra-se comprometida ainda com o poder da classe dominante,

representando uma realidade voltada aos interesses da burguesia. Para a

pesquisadora Hilda Magalhães, em Literatura e Poder em Mato Grosso,

Na primeira metade do século XX, as condições em que esse poder é exercido são discretamente delineadas nos textos, sem, entretanto, ocupar um espaço verdadeiramente importante no conjunto artístico-literario do estado. Isso revela, por um lado, a elitização da literatura, que faz com que a manifestação artística se afirme como a voz do dominador, e, por outro lado, a

51

inexistência de consciência política na população como um todo, já que arte manifesta valores do imaginário coletivo. (2002, p.23).

Na segunda metade do século XX, surge uma literatura que permite

uma visão sobre as relações de poder emergentes dos programas de

ocupação e integração que nossa região sofreu a partir dessa década.

Para essa fase, cito alguns representantes como Ricardo Guilherme

Dicke, com a metalinguagem e o mito; Marilza Ribeiro com uma literatura

compromissada com o social e o questionamento existencial; Tereza

Albués, com sua poética regional e mística; Dom Pedro Casaldáliga, com

uma literatura engajada, etc.

Em relação a Pedro Casaldáliga,Tristão de Athayde, em prefácio à

obra Água do Tempo (1989, p 21) vai dizer que

“(...) a poesia brasileira nasceu do conúbio de um basco com as nossas florestas virgens e com o nosso homem das selvas, dono da terra. Nasceu com Anchieta, que escreveu seus poemas nas areias das praias da Bertioga e afirma que quatro séculos mais tarde, essa mesma poesia renasce do contato de um catalão com essas mesmas florestas intangidas e esses mesmos seres humanos intocados pela chama da civilização. Mas capazes de lhe restituírem as virtudes nativas de que a descivilização nos privara”.

O prefaciador diz “a poesia brasileira nasceu com Anchieta” e,

“quatro séculos mais tarde renasce” com Casaldáliga, do contato dele

com as florestas e as pessoas ainda alheias aos ditames da civilização. É

uma valorização especial da obra, do lugar onde ela surge, Mato Grosso,

no contexto da literatura brasileira. Ressaltamos então que, de caráter

universal, a produção literária de Casaldáliga apresenta elementos

regionais, contribui sobremaneira para a cultura do Estado.

3.1. Terra, Liberdade, Poesia

No cenário político da década de 70, temos a divisão do Estado que,

com o apoio da União, conseguiu notavelmente o aumento da rede viária

52

da região. O governo federal começa, então, a execução de projetos de

apoio às atividades agropecuárias, proporcionando o fluxo migratório em

Mato Grosso. Contudo, as condições impróprias da terra, a distância dos

grandes centros urbanos, as pequenas propriedades, tudo faz com que os

pequenos produtores abandonem suas propriedades para buscarem

atividades mais promissoras em outras regiões.

É preciso lembrar que a expansão agropecuária e a modernização

não beneficiavam o camponês, os migrantes, mas os grandes latifundiários

que se instalavam nas terras contempladas pelo projeto do governo

brasileiro.

Otavio Ianni, em Ditadura e agricultura: o desenvolvimento do

Capitalismo na Amazônia8, explica que

[...] os programas colocados em prática após os anos cinqüenta tinham por objetivos beneficiar os grandes, os mais ricos e ignoravam os menos favorecidos, isto é, os indígenas e os camponeses que tinham se instalado na região desde anos vintes, fugindo dos problemas climáticos e sociais, principalmente os do nordeste brasileiro. (1986, p.47)

Esses programas sociais implementados pelo sistema acabam

modificando, de uma forma ou de outra, a cultura do povo local e dos

migrantes. De acordo com Ribeiro (2001, p.73) a terra tem, para o

empresário, um valor quantitativo, enquanto que para o antigo habitante e

para o posseiro um valor qualitativo; e ainda completa dizendo que para o

capitalismo, o valor da terra é determinado pelo que ela pode produzir. Já

aos olhos dos colonos ou do indígena, a terra é um instrumento que

garante a sobrevivência.

Analisando o poema “Hai-kai da lua ocupada”, em Água do Tempo

(1989, p.40) Cada vez que olho a lua / Sinto o pé de Armstrong / Em meus

olhos, percebe-se que a modernização é vista como sofrimento, dor,

invasão. O próprio título nos dá a ideia de ocupação, de invasão, de perda

de sonhos e direitos.

Composta por um único período em ordem inversa (a direta seria

“Sinto o pé de Armstrong em meus olhos cada vez que olho a lua.”),

8 O autor se refere à Amazônia Legal e esta compreende os Estados do Acre, Rondônia,

Amazônia, Pará, Roraima, Amapá, Mato Grosso, Tocantins e o oeste do Maranhão.

53

enfatizando a temporalidade e a situação que se repete, “cada vez que”,

os versos são carregados de uma ironia que provoca simultaneamente

comicidade e reflexão no leitor, que passa a estabelecer associações

entre os elementos emblemáticos que apresenta, a lua, o astronauta que

pousou na lua, a nacionalidade dele, os olhos, a contemplação. Segundo

Akashi (1999, p. 28) essa é uma das características do gênero haicai,

considerando que o texto seja um, em respeito ao que o denomina o

próprio autor. Quando comparado à estrutura de um haicai tradicional,

percebe–se uma liberdade de criação do poeta quanto ao uso de uma

versificação livre, que não correspondem a 17 sílabas poéticas nem à

distribuição das sílabas tônicas entre a 5ª sílaba no primeiro verso, 7ª no

segundo verso e a 5ª no terceiro verso. Tal liberdade determina as

características de criação desse tipo de poema no Brasil, como afirma

Akashi (1999, p 75).

A lua, no plano imaginário, é um símbolo poético, no entanto, para

o poeta, nesse contexto, representa o progresso. Logo, “o pé de

Armstrong” representa o pé dos poderosos, dos que estão no comando

do país, ou porque não do planeta, enquanto que aquele que sente o

incômodo em seus olhos, é o que compõe a classe dominada.

“Armstrong” deve ser pensado como uma metonímia, uma parte que

representa o todo (USA), e a “lua”( parte), por sua vez, também é

metonimizada, porque representa a dominação do planeta (todo). Os

termos “olhos” e “pé” nos falam de chão, terra, realidade, sonho, e,

consequentemente, da destruição desses sonhos. O progresso, a

modernização representa, para muitos, a instauração da miséria humana,

da invasão e perda de direitos. A modernização é recorrente à

globalização, metáfora evidente na expressão “pé de Armstrong”. Lima

Filho, em Dimensões da Globalização (2004, 24), afirma que “

(...) no mundo globalizado não somente permanecem o capitalismo e sua essência, mas também são acentuadas suas características fundamentais de concentração de renda e riqueza e de exclusão social.

54

Magalhães vai dizer, em Relações de Poder na Literatura da

Amazônia Legal, que “a poesia de Dom Pedro Casaldaliga, está sempre

ligada à idéia de um direito natural, um direito divino. A negação desse

direito aos que o possuem por destinação natural, motiva as

desigualdades e o sofrimento” (2002, p. 91). E complementa:

A literatura de Dom Pedro Casaldaliga é a escrita de um eu coletivo. Um eu que nos remete à luta de grupos armados na bordas do Araguaia, um eu que nos fala dos que tentam resistir à niilização cada vez mais próxima, um eu que nos fala de camponeses que se reúnem em colônias de resistência nas igrejas e nos sindicatos, de corpos que tombam, de uma realidade que ultrapassa a ficção. São essas pessoas que interessam ao poeta, cujas metáforas românticas de uma Amazônia ancestral não podem, entretanto, apagar a crueza do cotidiano dos exilados da floresta. (2002, p.158)

Como vimos, a ação de Pedro é a de luta pela justiça e de

esclarecimento educativo sobre a situação do povo e dos conflitos. Para

Bosi, em Dialética da Colonização (1992, p.51):

Não há dúvida de que, nos traumas sociais e nas migrações forçadas, os sujeitos da cultura popular sofrem abalos materiais e espirituais graves, só conseguindo sobrenadar quando se agarram à tábua de salvação de certas engrenagens econômicas dominantes. Tal sobrevivência não dá, nem poderia dar, resultados felizes em termos de criação cultural, pois é conduzida às cegas pelos caminhos de exploraçao do sistema. O migrante que chega à cidade ou à terra alheia é um homem mutilado, um ser reduzido ao osso da privação...

Sartre defende o engajamento no trabalho intelectual e apenas vê

sentido na atividade literária se esta constituir uma tomada de partido, em

busca da liberdade, e, portanto, para ele

...o universo do escritor só aparecerá em toda a sua profundidade no exame, na admiração, na indignação do leitor; e o amor generoso é promessa de manter, e a indignação generosa é promessa de mudar, e a admiração é promessa de imitar; ...é certo que a literatura é uma coisa e a moral é outra bem diferente,mas no fundo imperativo estético discernimos o imperativo moral.

[...]

55

Assim, quer ensaísta, panfletário, satirista ou romancista, que fale somente das paixões individuais ou se lance contra o regime social, o escritor, homem livre que se dirige a homens livres, tem apenas o único tema: a liberdade. [...] a liberdade de escrever implica a liberdade do cidadão. (SARTRE, 1989, p.51-3)

A literatura engajada se revela e se concretiza no leitor quando

este desperta de uma situação inerte, para se ver como peça fundamental

na mudança dessa realidade pintada pelo poeta através das palavras.

Assim, para CANDIDO,

A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a função da literatura é mutilar a nossa humanidade [...] a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. (1995. p. 256.)

Percebe-se que essa preocupação é exposta por Casaldáliga no

poema “O Reino e o Anti-reino” ( In: Murais da libertação, 2005, p.11.):

Nas trevas da mentira a máquina do lucro,

a fome do poder, os ídolos da Morte. Diante deles caem os joelhos incautos.

Eles vêm massacrando teus anônimos filhos sem defesa.

Seu braço imenso tenta capturar-nos

a todos, Pai da Vida!

[…]

O poema “O Reino e o Anti-reino” retrata as consequências do

sistema econômico capitalista, que é o modo de produção dominante

deste país e que se caracteriza pela propriedade privada dos meios de

produção; nesse sistema, a produção e a distribuição das riquezas

concentra-se na mão da minoria. No capitalismo, as classes não mais se

relacionam pelo vínculo da servidão, como no período feudal da Idade

56

Média, mas pela posse ou carência de meios de produção e pela livre

contratação do trabalho e/ ou trabalhadores.

O poema intitulado “O Reino e o Anti-reino”, marca uma oposição

entre o mundo pensado e criado por Deus com o mundo modificado pela

ação do homem (Deus X homem). O “Reino”, não se constitui na riqueza

acumulada pelo homem, mas na justiça. Segundo Isaias (32. 17), "o efeito

da justiça será a paz, e o fruto da justiça, repouso e segurança, para

sempre". Para Mateus (19. 13 -16) o Reino é gratuito, pertence aos

pobres e é dom e partilha. Pedro denuncia nos primeiros versos a

ausência desse “Reino”, dessa gratuidade na relação humana.

Nas trevas da mentira a máquina do lucro,

a fome do poder, os ídolos da Morte.

A sequência de substantivos, “trevas”, “máquina”, “fome”, “ídolos”,

ganha ênfase com os artigos definidos, para os quais, respectiva e

metaforicamente são atribuídas locuções adjetivas em gradação político-

existencial: “lucro”, “poder”, “morte. Há uma ausência de verbos que

evidencia a entonação rítmica emocionada do poeta, uma ânsia em fazer

com que o leitor estabeleça uma conexão entre os termos e que a

contextualize na realidade em que vive (leitor). Há repetição da vogal /o/,

arredondado, reproduzindo um som profundo, grave sugerindo certa

tristeza, dor. A palavra “fome” não indica carência de alimento físico, mas

diz de uma avidez pela conquista, pelo ter. O uso da letra inicial

maiúscula em “Morte”, que sugere o fim de um período, indica uma

tensão. O termo “trevas”, provocando um impacto sonoro onde o [r]

vibrante oclusivo, realça o abalo, o sentimento forte (ódio, desespero)

diante da situação em o povo é envolvido.

Na estrofe, composta por 10 versos livres, rimas misturadas, o

poeta usa uma inversão nos versos “Diante deles caem / os joelhos

incautos”, enfatizando a necessidade da prudência neste mundo, no qual

“os ídolos da Morte” são muitos. Nos últimos versos, usa o pronome

57

possessivo “teus” e o vocativo “Pai da Vida” para evidenciar um clamor a

Deus, uma súplica pelos filhos anônimos e desprovidos de toda a sorte.

Em O Ser e o Tempo da Poesia, Bosi nos fala que “o poeta é o

doador de sentido” (2000, p. 163) e ainda determina que o sonho, a

necessidade, dos poetas é que seus escritos encontrem “eco” no espírito

dos homens. “Eles sabem que a poesia só se fará carne e sangue a partir

do momento em que for recíproca” (ibidem p. 168.).

As situações e mensagens ilustradas pelo poeta espanhol, dessa

forma verdadeira, no fundo de sua condição imaginária, declarada e

intensa, estimulam a reciprocidade de que Bosi nos fala. Sua poesia, sua

literatura, é viva, capaz de levar o leitor a uma situação antes negada ou

imperceptível. Casaldáliga, por meio da palavra, revela o sentido da

existência do ser.

Na poetização de temas político-sociais, encontramos poemas que

mantêm fecunda relação entre si, em perguntas e respostas, denúncia e

confissão de culpa. É o que ocorre com “Terra Nossa, Liberdade” (1989,

p.37-8) e “Confissão do Latifúndio” (2003, p.128).

(...) Malditas sejam

as cercas vossas, as que vos cercam

por dentro, (...)

com seu arame e seus títulos, fora de vosso amor,

aos irmãos! ( Fora de seus direitos,

seus filhos e seus prantos e seus mortos,

seus braços e seu arroz!) (...)

Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos

para ampararem cercas e bois e fazer a Terra, escrava e escravos os humanos!

(...)

Na sua essência, os versos tratam de questões sociais que

surgem por motivo da má distribuição da terra. Pedro cria uma dialogia

58

irônica com os que, pelo título, tornaram-se donos da terra, quando faz

uso e recorrência dos pronomes “vosso”, “vos”, “seu” e “seus”. Há ainda

recorrências de expressões como “Malditas sejam...” que anaforicamente

constituem a manifestação de repúdio sobre as ações desses “donos” da

terra e das conseqüências dessas ações. De acordo com Riffaterre (1973,

p. 213), a recorrência de uma palavra ou expressão não vem apenas com

ecos da primeira vez que foi usada, mas recebe influências da estrutura e,

cada vez que a estrutura atua sobre um determinado contexto, o

resultado é diverso.

Mudando o ponto de vista da narração, Casaldáliga se reveste

polifonicamente da voz do outro no poema, “Confissão do Latifúndio”:

Por onde passei,

plantei a cerca farpada,

plantei a queimada. (...)

a morte matada. Por onde passei,

matei a tribo calada, a roça suada,

a terra esperada... Por onde passei, tendo tudo em lei, eu plantei o nada.

Pedro, ao assumir polifonicamente a voz do outro, mantém uma

intertextualidade deste com o poema “Terra Nossa, Liberdade”. Aqui, o

“latifúndio”, personificação de um eu poético, vai confessar e assumir as

acusações feitas naquele poema. Há o emprego de uma linguagem

figurada enriquecendo a construção poética. No segundo verso, usa o

verbo “plantar” para um contexto que não corresponde ao campo

semântico, assim como no sétimo verso emprega o verbo “matei”,

também na mesma situação. O rastro de destruição deixado pelo

latifúndio é o que sobra para o pobre, o nada. Nos verbos “passei” e

“plantei”, a consoante oclusiva surda bilabial [p] indica uma explosão mais

acentuada por conta da emoção do eu poético, dos atos e sentimentos

ligados à força bruta. A nasal sonora bilabial [m] em “matei”, que sugere

uma certa suavidade na ação, perde essa conotação para o [t] oclusivo

59

surdo linguodental, que sugere ação ligada à força e intensidade. O uso

de elemento do mesmo campo semântico como “morte matada” denuncia

o modo como se deu o termo da vida. A recorrência da locução adverbial

“Por onde...”, chama a atenção para o espaço da destruição do homem

pela ação do próprio homem.

No último verso, há o uso do pronome indefinido “nada” para

completar o sentido do verbo “plantei”, cujo sentido é o de semear, de

cultivar, ações renovadoras. Mas, que tipo de esperança e vida se tem,

quando o que foi semeado e colhido é o nada?

Pensando na essência dos dois poemas que marcam essa

intertextualidade da terra e da ação do homem, é preciso lembrar, numa

perspectiva ecológica, segundo Boff em Ecologia: Grito da Terra, Grito

dos Pobres (2004, p 95) que o sonho do crescimento ilimitado significa a

invenção de forças destrutivas (em vez de produtivas) e a produção

histórico-social da doença e da morte da Terra, de suas espécies e de

tudo o que a compõe. Expor essa verdade geral à sociedade é o que

confere a Casaldáliga um caráter engajado e libertador. A terra, além das

questões sociais e econômicas, constituem substância fundamental de

sua poesia. O poeta opta por um socialismo anticapitalista, definindo

socialismo como a ampla participação dos cidadãos nos bens naturais e

de produção, no maior parâmetro possível de igualdade, circunstância

que prevê a derrocada de privilégios da minoria e da exploração do

homem pelo seu semelhante (1978, p. 157).

No encontro do individual com o social na edificação de

imagens verbais sobre a condição humana, uma das mais belas imagens

o poeta as constrói com as águas do Araguaia, ao redor do qual se

colocam os ribeirinhos – homens, fauna, flora:

Nossas vidas são os rios.

Minha vida é este Araguaia! Indescritível, Indecifrável.

Que se ama e se agradece, e se teme e deseja; ao qual se volta sempre,

(...)

Exuberante e cruel, (...)

60

a multiforme fauna, E os peixes de todos os tamanhos e luzes,

(...) (Os peixes que dão vida,

holocausto à brasa e à pimenta.) Os pássaros, vestidos a rigor,

(...) Essa fileira e patos colegiais,

que espera um ônibus ali na margem... E, de súbito, o pulsar frágil de uma canoa.

E as nuvens, acima,

cansadas e fecundas. As famílias que chegam, retirantes;

os enfermos que vão à deriva; as cargas, e as cartas tremulas;

(...) e os meninos banhando-se,

somando-se às águas, como peixes. E eu, pela manhã, lavando-me do sono

com o espelho incandescente ao sol da outra margem; eu, pela tarde, entrando, reverente, estrangeiro,

vestido pela luz poente e pura na liturgia destas grandes águas...

( “Nossas vidas são os rios”, 1989.p. 49.)

O poema, de natureza descritiva, vai nos dando a ideia da

paisagem, do cotidiano da vida simples das pessoas; os versos vão

fluindo como o “rio”, uma verdadeira construção de memória, identidade,

trazendo no curso a vida e/ou a morte.

Casaldáliga reconhece a história do povo de Araguaia como sendo

sua também ao usar “Nossas vidas”. Metaforicamente, qualifica a vida

como “rio”, símbolo emblemático de fertilidade e da irrigação da terra,

também sugerido como renovação. O entusiasmo marcado no segundo

verso pelo uso do ponto de exclamação ao dizer “Minha vida é este

Araguaia!”, ganha amplitude nos versos

Indescritível, Indecifrável.

Que se ama e se agradece, e se teme e deseja; ao qual se volta sempre,

A anáfora provocada pela construção “que se” nas quatro orações

que compõe o terceiro verso, ainda que nas últimas três tenha ocorrido

61

um zeugma, e o polissíndeto, uso repetitivo da conjunção coordenativa

aditiva “e” ligando as orações, dá uma ideia de acréscimo infinito ao

sentimento de beleza e gosto pelo rio.

A linguagem poética constitui-se de paradoxos como “que se teme

e se deseja”, “exuberante e cruel”. Os termos “teme” e “cruel” colocam em

evidência toda a situação desumana que constitui a substância da

produção literária do poeta; enquanto que “deseja” e “exuberante”

reforçam a ideia do lugar como paraíso. O som sibilante do [s] nos versos

“Que se ama e se agradece, e se teme e deseja;/ ao qual se volta

sempre,” vai acrescentando a ideia de retorno.

O elemento “águas” presente em toda a estrutura dessa estrofe, de

acordo com Cirlot (1984, p 63) simboliza a união universal de

virtualidades, que se encontram na precedência de toda a forma ou

criação.

e os meninos banhando-se, somando-se às águas, como peixes.

E eu, pela manhã, lavando-me do sono com o espelho incandescente ao sol da outra margem;

eu, pela tarde, entrando, reverente, estrangeiro,

vestido pela luz poente e pura na liturgia destas grandes águas...

A imersão nas águas, como nos versos “e os meninos banhando-

se, / somando-se as águas, .../ ..., lavando-me do sono”, mostram o

retorno ao pré-formal, com seu duplo sentido de morte e dissolução, mas

também de renascimento e nova circulação, pois a imersão multiplica o

potencial da vida; “os meninos” representam o todo (o povo) que se

renova na esperança, dia após dia, assim como o eu poético, lavando-se

do “sono”, acorda para o tempo da justiça e da esperança.

Trabalhando poeticamente com o próprio código, o autor

estabelece um mecanismo de desenvolvimento de discurso, de como

“falar” com propriedade para se fazer ouvir, para sensibilizar,

conscientizar:

62

Domesticar a palavra é difícil missão

do silêncio, do ouvido, da espera,

da acolhida.

Só se aprende a falar, Aprendendo a calar o povo.

O verbo se fez carne no silêncio sofrido.

(“Domesticar a palavra”, 1982, p.38)

A palavra pode oferecer o mundo, mas pode também negá-lo.

“Domesticar a palavra” como a um animal bruto, sem controle, que pode

ferir e cujas consequências podem ser irreversíveis. Como todo processo

educacional, isso se faz na enumeração de atividades, na sua reiteração,

na paciência do autocontrole, na relação dialética dar-receber, orientar-

aprender, falar-silenciar, amar-reconhecer, um modo de compreender o

verso paradoxal “Só se aprende a falar,/Aprendendo a calar o povo”. Ao

que ele conclui O verbo se fez carne no silêncio sofrido, materialidade do

sofrimento se dá na presença de Cristo, conforme a recorrência do dito

bíblico O verbo se fez carne e habitou entre nós . Em Uma Igreja da

Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, denuncia

a situação iníqua da estrutura agrária brasileira, revelando que

Não se fala porque nunca pôde falar; porque as represálias – da política local, dos manda-chuvas das fazendas, dos poderosos na política ou no comércio – são automáticas. “Pobre não tem vez”. “peão não é gente”. “É fuá desse povo”...O Juiz de Direito vive a centenas de quilômetros e viajar a Brasília ou a Cuiabá supõe uma fortuna e boa influência. (1971, p.10)

A liberdade aqui está em ser avesso às imposições, em transgredir

regras impostas pelo sistema e deixar vir à tona uma realidade que por

muito tempo ficou às escondidas.

Como disse o poeta Murilo Mendes, cujos versos se solidarizam com

os tantos gritos de Casaldáliga, suas imprecações – “Deram-me um corpo,

só um!/Para suportar calado/tantas almas desunidas/que esbarram umas nas

outras,/De tantas idades diversas;/uma nasceu muito antes/de eu parecer no

mundo (...) “ (Choro do poeta atual . In: MENDES, 1994,p. 207).

63

Então, para encerrar este tópico, pensamos na grande busca do

poeta, a paz, aquela que surge da incansável luta, que surge do seio da

obscuridade, do âmago da improbidade, do cerne da corrupção,

Dá-nos, Senhor, aquela Paz estranha que brota em plena luta como uma flor de fogo;

que rompe em plena noite como um canto escondido; que chega em plena morte

como o beijo esperado.

Percebe-se nessa primeira estrofe construções paradoxais que vão

justificando a denominação “Paz estranha”; usa de uma comparação

metafórica ao dizer que essa “Paz” é como uma “flor de fogo”; flor e fogo

são aparentemente elementos que se contradizem; no entanto, este

representa, segundo Heráclito (apud CIRLOT, 1984, p 258), o agente

transformador, nesse sentido, o fogo se assimila à água, que também é

um símbolo de renovação, transformação e regeneração; aquela pode

significar, beleza, fugacidade das coisas, da primavera e da beleza ou, a

imagem da alma; logo, “Paz estranha / / como uma flor de fogo”, pode ser

compreendida como a paz transformadora da alma, pois é na luta que nos

sentimentos se intensificam, é na dor que o ser humano se renova, que

sua fé se intensifica. Pedro não fala de uma “Paz” dos homens, mas a de

Deus, um paz da alma; uma paz espiritual que “chega em plena morte”.

Na construção dessa estrofe, o poeta usa o vocativo “Senhor” para

estabelecer a conversação e ao mesmo tempo indicar de onde provém

essa paz; há ainda, elementos anafóricos como “que” e “em plena”

reforçando a ideia de fim que vai se construindo respectivamente por

meio dos elementos “luta”, “noite” e “morte”. Destacam-se ainda nessa

estrofe, elementos comparativos metafóricos “como um”, estabelecendo

uma aproximação entre “Paz” e “Flor de fogo”, “beijo esperado”. A força

emotiva do poeta é percebida nessa estrofe através do verbo “brota”,

onde o [b] oclusivo sonoro bilabial e o [r] construtivo vibrante enfatizam a

intensidade emotiva do poeta ao clamar pela Paz divina, espiritual. Clama

também por uma Paz que pode surgir

64

do meio das minorias:

Dá-nos a paz dos que caminham sempre,

nus de toda vantagem, vestidos pelo vento da Esperança.

dos que superam pela persistência:

Aquela Paz dos Pobres, vencedores do medo. Aquela Paz dos livres,

amarrados à vida.

aquela que se faz no caminho que ainda está sendo percorrido, que surge

da luta de classes, da conscientização, do reconhecimento:

A Paz que se partilha na igualdade, como a Água e a Hóstia.

Aquela Paz do Reino, que vem vindo,

inviável e certo.

Dá-nos a Paz, a outra Paz, a tua, Tu que és nossa Paz!

(Dá-nos a tua paz, 2003, p.56):

conforme diz Hilda Magalhães:

[...] para o padre da Teologia da libertação como para o poeta, o paraíso não é somente uma prioridade da vida divina, ou um espaço privado do sonho ou da poesia, mas uma construção que começa pela luta, pela luta de classe, na busca da preservação de seus direitos. (2001, p.283)

De acordo com o poeta bispo, em nota preliminar a Clamor

Elemental, a amargura ou a tristeza não negam a Esperança: purificam-

na, dando-lhe sua razão de ser desde a base, multiplicam–na, pela

partilha.

Sé que estos poemas podrán parecer, a veces, iracundos, amargos, tristes. Pienso que también esto es evangélico. Lo social no es moda en estas pobres palabras mías. Y la amargura o la tristeza no niegan la Esperanza: La purifican, le dan su razón de ser desde abajo, la multiplican repartiéndola. Quien no compartió el

65

dolor¿ cómo podría compartir la Esperanza? (1971, p 8-9)

3.2. Apropriação crítica da tradição literária: o intertexto e a metalinguagem com “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias

Uma das características mais marcantes de Pedro Casaldáliga,

que tornaram possível sua fé, perseverança, seus discursos incisivos, sua

luta incansável foi o fato de ter sido um excelente leitor. Em suas obras

ele faz, com freqüência, referência aos mais variados autores e obras,

das mais diversas origens. Uma delas, e que nos chamou a atenção, foi a

paródia feita com o poema famoso de Antônio Gonçalves Dias, “Canção

do exílio”. Curiosamente, outro religioso mato-grossense, também fez

paródia desse texto. Resolvemos, então, fazer um estudo comparativo

desses textos. É o que segue.

Gonçalves Dias nasceu em agosto de 1823 e morreu em 1864, no

naufrágio do navio Ville de Boulogne, na costa do Maranhão, quando

retornava da Europa. Segundo Bosi em História concisa da Literatura

Brasileira (2006, p.104):

Gonçalves Dias era filho de um português com uma mestiça, talvez cafuza, pois se dizia descendente das três raças (branco, negro e índio) que formaram a etnia brasileira. Estudou Leis em Coimbra, conhecendo, por volta de 1840, a poesia romântico-nacionalista de Garrett e Herculano que vincaria para sempre a sua linguagem (...) amadurecia o poeta voltado para pátria e para o índio, de que foi nosso grande idealizador.

Considerou o período em que estava estudando na Faculdade de

Direito em Coimbra como um exílio, embora sua permanência lá fosse por

vontade própria e não por vontades políticas. A distância e a saudade

provocaram no autor o desejo de expressar suas lembranças da terra

natal. Para isso, compõe a Canção do Exílio, em 1843, três anos após ter

iniciado seus estudos universitários, e cuja publicação, no Brasil, foi feita

em 1846, no livro Primeiros Cantos, um ano após seu retorno. Nessa

canção, o poeta insere, além da nostalgia, a preocupação com a criação

66

de uma expressão poética nacional e, para isto, elege a “palmeira” e o

“sabiá” como símbolos da natureza:

Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar –sozinho, à noite– Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá;

Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá.

De acordo com Sant‟Anna, em Paródia, Paráfrase e Cia. (2007,

p.23),

[...] a Canção do exílio é o poema mais parafraseado (imitação do texto original com outras palavras), estilizado (jogo de diferenciação em relação ao texto original) e parodiado (composição literária que imita cômico ou satiricamente, o tema ou a forma de outra obra) de nossa literatura.

Essa consideração de Sant‟Anna é confirmada em Mato Grosso,

como foi dito, com dois representantes da literatura sacra: Dom Aquino

Corrêa e Dom Pedro Casaldaliga.

A poesia religiosa de Mato Grosso traz Dom Aquino Corrêa (1885-

1956), arcebispo de Cuiabá, poeta, político, membro da Academia

67

Brasileira de Letras, fundador da Academia Mato-Grossense de Letras, e

criador de uma literatura comprometida com o conservadorismo político-

social da época. Clássico, associava-se à moral na escolha de seus

temas e ao rigor formal, retratando um mundo idealizado em sua poesia

cristã e patriótica, numa visão romantizada. Foi considerado o maior

orador sacro de seu tempo e, para muitos, ainda dos dias atuais.

Dom Aquino parodia a canção gonçalvina em “Canção de minha

Terra” na obra Nova et Vetera (1985, p.167-178). Ele mantém nela o

intento de Gonçalves Dias, ressaltando a natureza, valores religiosos,

patriotismo, neste caso, recorrendo a termos, como “Pindorama”, “Santa

Cruz” fazendo, ao longo da sua canção, uma alusão ao descobrimento e

colonização do Brasil.

Minha terra é Pindorama, De palmares, sempre em flor: Quem os viu e não os ama, Não tem alma, nem amor.

Santa Cruz é minha terra,

Terra santa, cá do sul: Seu pendão, a Cruz encerra,

Tem, a Cruz, no céu azul.

Deus, num último batismo, Meu país, Brasil chamou;

Se me abrasa o patriotismo, Brasileiro então eu sou.

Eis os nomes que assinalam Minha terra, sempre em flor:

São três nomes, que me falam De beleza, fé e amor.

Pindorama! és meu encanto!

Santa Cruz! és minha fé! Ó Brasil! eu te amo tanto,

Que por ti morrera até!

Com uma poética bastante diferente da de Gonçalves Dias e Dom

Aquino, apresenta Casaldaliga um “Recado a Gonçalves Dias”, poema

inserido na obra A cuia de Gedeão (1962, p.14-5), uma grande

discrepância entre um mundo idealizado, privilegiado, e o mundo que se

68

vê habitado pelo povo, desprovido e necessitado, sem lugar e sem

possibilidade de trabalho e sonho, mundo em preto-e-branco:

Tua terra tem palmeiras -Babaçu para exportar...

Só não tem, Gonçalves Dias, muito fácil sabiá.

Retirantes, como o Povo, cantarão noutro lugar?

Foi-se tanto maranhense para os campos do Goiás

-na ambição de plantar roça, na ilusão de colher Paz-,

que as palmeiras que cantavam não têm mais o que cantar.

Tu pediste um travesseiro

cheio da terra de cá... Maranhão dos maranhenses, que não podemos retornar! Travesseiros de saudade

não adianta carregar. Se plantando em travesseiros,

só se colhem sonhos vãos. Lavrador que planta certo, planta na carne do chão.

E este chão, Gonçalves Dias, não é mais para plantar.

Corredor de beira estrada, serve só para passar.

entre a cerca e o asfalto, feito esgoto um Povo vai.

Tua terra tem palmeiras onde conta a Oleobrás,

onde conta a Empresobrás, onde conta Multibrás...”

Segundo Bosi (2004, p.168),

A ideologia não aclara a realidade: mascara-a, desfocando a visão para certos ângulos mediante termos abstratos, clichês, slogans, idéias recebidas de outros contextos e legitimadas pelas forças em presença. O papel mais saliente da ideologia é o de cristalizar as divisões da sociedade, fazendo-as passar por naturais; depois, encobrir, pela escola e pela propaganda, o caráter opressivo das barreiras; por último, justificá-las sob nomes vinculantes como

69

Progresso, Ordem, Nação, Desenvolvimento, Segurança, Planificação e até mesmo (por que não?) Revolução. A ideologia procura compor a imagem de uma pseudototalidade, que tem partes, justapostas ou simétricas... mas que não admite nunca as contradições reais.

Em Canção do Exílio (1843), Gonçalves Dias expressa uma ideologia romântica a partir da valorização da flora e da fauna, patriotismo nostálgico encarnado no uso repetitivo dos advérbios “cá”, Terra do exílio, e “lá”, Terra Natal, lugar paradisíaco e isento de problemas sociais.

Chauí, em O que é Ideologia (2004, p 118), afirma que somente

uma prática política nascida dos explorados e dominados e dirigida por

eles próprios pode desmantelar a ideologia. Acrescenta que, para que

essa prática política aconteça, é de grande importância preencher as

lacunas e os silêncios do pensamento e do discurso ideológicos, dizer

tudo o que não está dito, pois dessa maneira a lógica da ideologia se

desfaz e se desmancha, deixando ver o que estava escondido e que

assegurava a exploração econômica, a desigualdade social, a dominação

política e a exclusão cultural.

Dom Aquino, com sua ideologia político-social e religiosa, valoriza

a terra sem a nostalgia de Gonçalves Dias, mas com o mesmo intento

temático, ou seja, os poetas elegem a natureza como representante da

nação brasileira, destacando vaidosamente a ideia de pertencimento. O

poeta, ainda, assemelha-se a Gonçalves Dias no que se refere à estrutura

poemática, recorrência a advérbios, manutenção da métrica e da rima.

Ele estrutura seu poema em 5 estrofes, versos regulares heptassílabos ou

redondilha maior, e ainda, prescindindo de adjetivos, mantém uso

constante de substantivos, como: palmeiras, sabiá, estrelas, flores, vida,

amores, primores, assim como cria rimas com palavras monossílabas (lá,

cá, tem) e um ritmo, uma melodia, que, de poema, passou, para muitos, a

ser considerado um hino à nacionalidade. O gosto pelas redondilhas, pela

melancolia, assim como apresenta na 3ª e na 4ª estrofes “Em cismar,

sozinho, à noite” são características marcantes do período romântico no

Brasil.

A “Canção do Exílio” ganhou tanta notoriedade na época que

parte de alguns dos versos que compõe a canção foram usados na

70

composição do Hino Nacional Brasileiro, como aparece na segunda

estrofe da segunda parte do Hino Nacional “Do que a terra mais garrida/

Teus risonhos lindos campos têm mais flores; / “Nossos bosques têm

mais vida”, / “Nossa vida” no teu seio “mais amores”.

Em conformidade com Milton Luz9,

Por mais incrível que pareça, durante quase um século o Hino Nacional Brasileiro foi executado sem ter, oficialmente, uma letra. As muitas tentativas de acrescentar um texto à música não vingaram. Os versos não eram bons: os primeiros carregados de ressentimentos, insultavam os portugueses; os outros pecavam pelas bajulações ao soberano reinante. Assim, a composição de Francisco Manuel da Silva - uma marcha destinada à consagração do hino - só em 1909 recebeu uma letra definitiva. E apenas em 1922, finalmente completa, foi oficializada como Hino Nacional Brasileiro.

[...] Até então, versos diferentes tinham sido juntados à

composição de Francisco Manuel, muitos deles em adaptações inadequadas, eivadas de regionalismos e que comprometiam irremediavelmente a beleza e a dignidade do hino. E, pior ainda: em cada estado da União, cantava-se o hino com letras diferentes, nem sempre ajustadas ao bom gosto ou ao ritmo da música. Somente em 1906, Coelho Neto propôs à Câmara dos Deputados que fosse dado ao Hino Nacional um só poema. Proposta que só se concretizou 16 anos depois. Assim a letra definitiva do Hino Nacional foi escrita em 1909, por Osório Duque Estrada10. Porém só foi oficializada por Epitácio Pessoa em 1922, às vésperas do I.º Centenário da Independência. Por ter sido originalmente criada para execução em orquestra, a

música foi adaptada para também poder ser cantada.

A “Canção da minha terra”, de Dom Aquino, traz a expressão

“sempre em flor” que se repete por duas vezes, uma na primeira estrofe e

a outra na quarta. A recorrência dessa expressão chama a atenção

porque aparece no Hino de Mato Grosso, de autoria também do poeta

Dom Aquino, cuja música é do maestro e tenente da Policia Militar Emílio

9 Em A História dos Símbolos Nacionais, disponível no site http://www.mv-

brasil.org.br/brasil_hinoshistoria.html 10

Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927), poeta, professor, crítico literário, integrante da Academia Brasileira de Letras e jornalista carioca.

71

Heine. De acordo com Corsíndio Monteiro em O universo verbal de Dom

Aquino (1985, p. 188), a expressão “flor” é de uso constante em toda a

obra de Dom Aquino. Pode ser entendida como uma metonimização da

terra, como “paraíso”, recorrência à sua beleza natural, distanciada de

sofrimento, opressão, miséria.

Dom Aquino usa diferentes denominações historicamente dadas ao

Brasil – “Pindorama”, “Santa Cruz”,“Brasil”. “Pindorama” era o nome dado

à região ou país das palmeiras, exatamente como o Brasil era quando os

portugueses chegaram aqui. Ainda na primeira estrofe, evidenciando a

beleza dessa terra de Palmeiras, o autor diz que: “quem os viu e não os

ama,/ Não tem alma, nem amor”.

Já a expressão “Santa Cruz”, que aparece na 2ª estrofe, evoca

religião cristã, tanto no uso de “Santa” como “Cruz”, esta última como um

símbolo do domínio da Igreja Católica, a qual passaria a ser responsável

pela formação dos nativos que viviam aqui, no caso, os índios; a eles

seriam impostas a religião católica, desconsiderando suas próprias

crenças, cultos, mitos. É o processo de aculturação, como disse Bosi em

A dialética da colonização (1992,p.17): aculturar um povo se traduziria,

afinal, em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente

a um certo padrão tido como superior.

Bosi (1992, p.22) enfatiza que, no processo de colonização, ocorreu

a banalização ecológica e populacional que acompanhou as marchas

colonizadoras entre nós, tanto na zona canavieira quanto no sertão

bandeirante; daí as queimadas, a morte ou a preação dos nativos. Esse

cenário, contrariando a imagem de uma terra paradisíaca, parece não

existir na canção de Dom Aquino, tão pouco na de Gonçalves Dias.

Na última estrofe, Dom Aquino, com paralelismos semânticos

intensificados por pontos de exclamação, reafirma o valor que atribui à

Terra, seu encantamento, sua Fé e um amor incondicional pela pátria que

o faz aceitar a morte, por ela, como um feito glorioso.

Numa direção oposta a ambos, Casaldaliga denuncia em sua

canção, estruturada na contradição entre o mundo do sonho (paraíso) e o

mundo da realidade (presente), a opressão, a miséria, a desigualdade

social, frutos de um capitalismo que fortalece cada vez mais a classe

72

dominante. Numa alusão ao poder do Capitalismo, nos versos: “Tua terra

tem palmeiras/ onde conta a Oleobrás,/ onde conta a Empresobrás,/ onde

conta a Multibrás” troca o verbo “cantar”, que está presente no poema de

Gonçalves Dias, por “contar”, próprios das relações comerciais. Dando o

seu “Recado a Gonçalves Dias”, o eu lírico se torna porta-voz de pessoas

que, embora estejam na terra, não se sentem donos dela, sofrem, são

oprimidos, têm seus sonhos anulados, mutilados, não têm mais o que

cantar, porque não há mais palmeiras nem sabiá(s), nem terra para viver

e plantar; aqui, não existe o paraíso idealizado nas outras duas canções.

Casaldaliga quebra a harmonia do poema na última estrofe

usando as palavras “Empresobrás”, “Oleobrás” e “Multibrás”, que, embora

apresentem rima pobre entre si, não rimam com palmeiras.

“Palmeiras”, pelo que se observa nas outras duas canções, está

sempre ligada e empregada com a idéia de vida e paraíso, de terra

celeste. Já as palmeiras da canção de Casaladaliga, segundo Magalhães

(2002,p.151):

não pertencem mais aos habitantes da região, mas aos invasores, assim identificados: as empresas brasileiras privadas (Empresobrás), as empresas governamentais (Oleobrás = Petrobrás) e os interesses estrangeiras protegidos pela burocracia nacional (Multibrás). Observamos o peso da ação governamental nas transformações, pela repetição da forma “brás” (terminação freqüente na composição dos nomes que designam as empresas nacionais) compondo Oleobrás, Petrobrás e Multibrás.

Enquanto Gonçalves Dias e Dom Aquino usam o pronome

possessivo “minha”, Casaldaliga usa “tua”, estabelecendo um diálogo com

os dois autores, e provocando uma reflexão ao leitor sobre o nacionalismo

excessivo, uma visão romantizada e superficial das reais condições do

país, que vem sendo negado há muito tempo graças ao mascaramento

que a ideologia dominante provoca e que só tem se agravado com o

passar do tempo.

No uso do pronome “Tua” também transparece à consciência das

pessoas, das quais o eu-lírico sai em defesa, de que a terra não lhes

pertence mais, pertence agora à classe dominante, à elite, restando a

estas apenas o corredor, referência à terra que restou para o plantio de

73

subsistência, a faixa estreita das estradas de Mato Grosso, que separa a

rodovia das propriedades, onde muitos tem cultivado plantações.

Nos versos “Se plantando em travesseiros,/ só se colhem sonhos

vãos”, o poeta alerta Gonçalves Dias (e, por que não Dom Aquino

também?) de que a realidade não pode ser fundamentada na fantasia e

no passado, mas no presente; presente este transparecidos nos versos:

Retirantes, com o Povo, cantarão noutro lugar?

Maranhão dos maranhenses, que não podemos retornar! Lavrador que planta certo, planta na carne do chão

E este chão, Gonçalves Dias, não é mais para plantar,

Corredor de beira estrada, serve só para passar,

entre a cerca e o asfalto, feito esgoto um povo vai”.

O termo “retirante”, no poema, alude a história de muitos

nordestinos que por causa da seca11 migram para outros estados em

busca de melhores condições de vida; assim como os sabiás que,

ironicamente num tom mais declarativo que interrogativo, o poeta

questiona/afirma se/que cantarão noutro lugar.

Faz uso de uma construçao poética alusiva, marcada, por exemplo,

na silepse de número no verso “que não podemos retornar!” para afirmar,

enfatizar que, tanto Gonçalves Dias, que é maranhense, quanto os

retirantes, assim como o próprio Casaldáliga que embora estrangeiro

coloca-se como retirante, estão impedidos de retornarem à terra natal,

sentimento que é intensificado pelo uso do ponto de exlamação no final

11 "A seca, porém, impõe três posições importantes: o homem se lança ao crime e se

torna cangaceiro; emigra pacificamente e é chamado retirante; ou então procura, em práticas supersticiosas, aplacar a fúria de Deus e se transforma em beato - sai pregando ou seguindo um pregador rústico, a fazer sacrifícios, autoflagelando-se e acaba matando ou roubando em nome de Deus." Fonte: Moisés Massaud (Org.) (1999), Pequeno dicionário de literatura brasileira, 5. ed. atual. São Paulo: Cultrix. Obtida de "http://pt.wikipedia.org/wiki/Retirante" (acesso em 27/07/2010).

74

do verso. Pedro se identifica com esta terra, com a luta deste povo que é

a essência da poesia que produz.

A personificação nos versos “que as palmeiras que cantavam / não

têm mais o que cantar”, exemplifica a consequência dos males que o

capitalismo provoca; “Recado a Gonçalves Dias”, então, constitui

imagens eleitas pelo capitalismo excludente para compor o cenário da

nação brasileira.

O “corredor de beira estrada” é o espaço que sobra para o povo. O

povo

O gado e o Povo

-sabidos, teimosos – pastam

contra o Vento. (“Sobrevivência”, 1982, p.35)

rebaixado à condição dos bovinos que tomaram o seu lugar nas

paisagens devastadas e transformadas em pastagens, tem desses

bovinos uma característica: “pasta contra o vento”. Na esteira da

persistência de Casaldáliga religioso que labora com sua comunidade,

“pasta[r] contra o vento é a própria representação do ser humano em sua

caminhada, desprovido de direitos, carregada de obstáculos, sofrimento,

imposições e perdas, mas insistente, como disse Murilo Mendes, de quem

lembramos novamente, “Eu sou da raça do Eterno/(...)/ do amor que unirá

todos os homens:/”, e conclui, pela arte, que promove a congregação dos

povos, que constitui um chamamento “vinde a mim, órfãos da poesia”

(“Filiação”. In: MENDES, 1994,p.250)

75

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos estudar, ao longo deste trabalho, de que forma o

tema da liberdade está presente na literatura; em sentido estrito, como se

dá a elaboração artística da liberdade em Pedro Casaldáliga, com sua

literatura edificada sobre valores humanitários, com palavras vivas que

desvelam um universo criado e negado pelo capitalismo. O poeta traz,

pela palavra, sua consciência e espírito, sua vivência e fé:

Vivir es ir poniendo El corazón y un pie detrás del otro Sobre el camino que se vaya abriendo. (“Vivir”, 1986, p.80)

Observe os complementos “El corazón” e “um pie detrás del outro”

para a locução verbal “ir poniendo”, que é a definição metafórica de viver;

é nessa relação em que o homem se vê no outro que as coisas passam a

ter sentido para o ser humano, é nessa relação construída ao longo desse

“camino que se vaya abriendo” que as pessoas se aproximam e saem da

menoridade para o esclarecimento, a humanização.

A palavra, como determina Sartre (1989), “mobiliza, destrói, ou

esculpe (...) revela a verdade”. Tal verdade se nos causa prazer, também

nos aproxima de questões sociais, a “humanização” da literatura, como

explica Candido (1995), arte em seu arranjo especial de palavras (que

superam o caos), com propostas de sentidos.

Segundo Sartre (1989, p 39) “toda obra é um apelo” à consciência

do leitor, pois é nele que as intenções do poeta se completam. Desta

forma, o escritor é mediador por excelência e o seu engajamento é a

mediação (1989, p. 62), que faz ao expor na extensão de suas obras, um

cenário social ocultado pela própria sociedade. Pedro nos lembra em sua

obra Creio na justiça e na Esperança (1978), “que (...) o Homem é

sociedade e da sociedade depende para se realizar como Homem”. A

sociedade, então, não pode sabotá-lo. Em uma medida, como lembra

76

Hilda Magalhães (2002, p.91), a literatura de Pedro é a escrita de um “eu

coletivo”.

Nesse sentido, seus versos nos incitam ao reconhecimento de nós

mesmos e do nosso papel no âmbito dessa sociedade imbuída de

paixões materiais e construída com falsos valores. O homem é livre por

natureza (NOVAES, 2002, p. 08), no entanto, muitas vezes não realiza

esta condição porque está sujeito a determinações externas, coisificado.

Deve então, agir contra toda sujeição servil, e pensar com autonomia.

Pedro, em consonância com Wolff (in NOVAES, 2002, p.17),

afirma que ser livre é fazer o que depende de si. Então, nas várias fases

de sua vida, faz o que depende de si, como bispo e como homem bem

integrado à sociedade. A literatura que ele produziu, que ainda produz, vai

se nutrindo vigorosamente nas longas estradas percorridas em diversos

lugares, culturas, leituras, em contextos fronteiriços da existência, como a

guerra, momentos de grandes “provações”, desenvolvendo uma cultura

sólida, erudita, solidária, liberta.

77

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