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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DISSERTAÇÃO
MEMÓRIA E NARRATIVAS SURDAS: O QUE SINALIZAM AS PROFESSORAS
SOBRE SUA FORMAÇÃO?
BIANCA GONÇALVES DA SILVA
Pelotas
2012
BIANCA GONÇALVES DA SILVA
MEMÓRIA E NARRATIVAS SURDAS: O QUE SINALIZAM AS PROFESSORAS
SOBRE SUA FORMAÇÃO?
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (PPGE/UFPEL) como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação na Linha de Pesquisa Currículo, Profissionalização e Trabalho Docente. Orientadora: Prof.ª Dr.ª. Madalena Klein
Pelotas
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Daiane Schramm – CRB-10/1881
S588m Silva, Bianca Gonçalves da
Memória e Narrativas Surdas: O que sinalizam as
professoras sobre sua formação?/ Bianca Gonçalves da
Silva; Orientadora: Madalena Klein. – Pelotas, 2012.
127f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de
Educação – FaE. Programa de Pós-Graduação em Educação
-PPGE. Universidade Federal de Pelotas.
1. Professoras surdas. 2. Formação. 3. Identidade
docente. 4. Narrativas. I. Klein, Madalena, orient. II.
Título.
CDD 370
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Drª. Madalena Klein – UFPEL (orientadora)
Prof.ª Drª. Adriana Da Silva Thoma – UFRGS
Prof.ª Drª. Lúcia Maria Vaz Peres – UFPEL
DEDICATÓRIA
Esse trabalho é dedicado a minha família e às professoras surdas que narraram
suas experiências para esta pesquisa.
AGRADECIMENTOS
A Deus, meu refúgio e fortaleza, por me suprir em todas as minhas
necessidades, por essa chance de vida!
Aos meus pais Dejair e Eva Marilene, meus exemplos de vida, que com muita
sabedoria e dedicação estiveram ao meu lado, me encorajando nas horas
difíceis e se alegrando com minhas conquistas diárias. Obrigado por me
ensinarem a nunca desistir de um sonho. Esse sonho acontece por vocês!
As minhas irmãs Adriana e Letiane e aos sobrinhos Fellipe e Emanuelle, por
entenderem minhas ausências e também me incentivarem nesta caminhada.
Vocês são meus amores.
A minha orientadora Profª Drª Madalena Klein, pelo apoio e incentivo durante
todo o processo, por sua eficiência, comprometimento profissional e também
pela confiança em mim depositada.
A Taiane Santos dos Santos, por tua amizade sincera, companheirismo de
todas as horas, pela cumplicidade e respeito que sempre tivemos uma com a
outra. Tu, desde o início, foste fundamental para a realização deste trabalho.
Amiga, se tu não existisses, pediria para Deus te inventar.
A Caroline Braga Michel, por todo carinho, pelo tempo que disponibilizou em ler
o meu trabalho, auxiliando-me com seu olhar.
A Israel Borba Silveira, por estar sempre presente nos momentos de choro ou
de riso, pelo ombro amigo, pela paciência em ouvir meus desabafos ao longo
deste processo. Quando tudo se tornava obscuro tu me levavas para
espairecer, minhas forças eram renovadas.
A todas as pessoas que de uma forma direta ou indireta contribuíram para a
conclusão desta dissertação.
O que denominamos “nossas identidades”, poderia provavelmente ser melhor conceituado como as sedimentações através do tempo daquelas diferentes identificações ou posições que adotamos e procuramos “viver”, como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, Histórias e experiências única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas identidades são, em resumo, formadas culturalmente (HALL, 1997. p.26).
SILVA, Bianca Gonçalves da. Memória e Narrativas surdas: o que sinalizam as professoras sobre sua formação? 2012. 128f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Pelotas.
RESUMO
Esta dissertação de Mestrado pretende contribuir para as discussões da educação de surdos, com base nos processos de formação de professoras surdas, abordando as Histórias de formação. Os objetivos da pesquisa consistem em compreender a constituição da identidade de professoras surdas e os aspectos de formação, mais especificamente analisar, a partir das narrativas, os processos formadores vivenciados ao longo de suas vidas que proporcionam a construção de uma identidade docente. Os dados dessa pesquisa foram buscados mediante a contribuição de três professoras surdas através de narrativas autobiográficas das Histórias de vida e formação docente. Assim, esse trabalho foi produzido e analisado, dialogando com autores que se aprofundam nos estudos relacionados à surdez, envolvendo os Estudos Surdos e suas interlocuções com os Estudos Culturais, como também autores que trabalham com o método (auto)biográfico e a formação, atrelado às narrativas de vida. Na coleta dos dados, desenvolve-se uma metodologia estratégica a fim de contemplar os objetivos centrais estipulados para a pesquisa. Foram organizados três encontros semi-estruturados, em grupo, filmados e realizados em Língua Brasileira de Sinais. Os encontros aconteceram através de uma metodologia estratégica contemplando as narrativas e tentando, contudo, estabelecer um clima informal, que deixasse à vontade as informantes. Com os relatos das professoras sobre suas Histórias de vida foram privilegiados alguns temas: oralização, a experiência visual como marcador cultural surdo, o letramento, a literatura infantil, a literatura surda, entre outras questões que apareceram nas narrativas e ao serem analisadas, apontaram para uma possível constituição das identidades docentes com base nas experiências vividas.Também foi possível constatar que na medida em que se produz cultura, também se produz identidade, ou seja, a partir dos relatos das professoras, que ao dizerem sobre suas experiências de vida, enfatizaram essas questões e apontaram para um comprometimento com o fazer pedagógico que atendesse as necessidades de aprendizagem de seus alunos surdos, constituindo uma Pedagogia surda.
Palavra chave: professoras surdas, formação, identidade docente, narrativas.
SILVA, Bianca Gonçalves da. Memory and Deaf Narratives: what do the teachers sign about their formation? 2012. 128f. Dissertation (Master’s Degree) - Education Post-Graduation Program, Universidade Federal de Pelotas.
ABSTRACT
This Master’s degree dissertation intends to contribute to the debate
around deaf people education, based on the process of deaf teachers’
formation, taking into account their formation history. The research aims to
understand the constitution of the deaf teachers’ identity, more specifically, to
analyze, through the narratives, the constituent processes experienced
throughout their lives which have enabled the construction of a teaching
identity. The data collected in this research was searched through the
contribution of three deaf teachers, using autobiographical narratives of their life
and teaching formation history. Thus, this research was created and analyzed
dialoging with authors who deepen in the deaf related studies, involving the
Deaf Studies and their dialogues with the Cultural Studies, also, authors who
work with the (auto) biographical method and formation, tying to life narratives.
In the data collection, it was developed a strategic methodology aiming to
achieve the main goals of the research. Three semi-structured group meetings
were organized, recorded and in Brazilian Sign Language. With the teachers’
reports about their life histories some themes could be highlited: oralism, the
visual experience as a deaf cultural marker, literacy, child literature, deaf
literature, among other issues that were shown in the narratives. When
analyzed, they pointed to a possible constitution of teaching identities based on
their experiences. It was also possible to find that, as culture is produced, so is
identity, in other words, from the teachers’ reports, which showed their
experiences, emphasized such issues, showed a commitment to teaching
according to their deaf students’ needs, creating a pedagogy of the deaf.
Key Words: deaf teachers, formation, teaching identity, narratives.
SUMÁRIO
RESUMO .................................................................................................................... 07
ABSTRACT ................................................................................................................ 08
Minha História em contexto: um exercício de conhecimento e autoformação ....................................................................................................... 10
Contextualizando a pesquisa ................................................................................. 13
PARTE1 – DAS FERRAMENTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS ............................ 17
1. ESTUDOS SURDOS EM EDUCAÇÃO .............................................................. 18
1.1 Um breve olhar sobre a trajetória dos movimentos surdos ............................. 20
1.2 Cultura e Identidade surda: discursos e problematizações ............................. 23
1.3 A formação docente no contexto da cultura surda .......................................... 27
2. A ABORDAGEM BIOGRÁFICA E A FORMAÇÃO: ENTENDENDO O MÉTODO ........................................................................................................... 31
2.1 Narrativas de formação .................................................................................. 33
2.2 O contexto sócio-cultural das narrativas surdas ............................................. 35
3. CAMINHOS METODOLÓGICOS ....................................................................... 40
3.1 O delineamento Metodológico ........................................................................ 41
PARTE2 – OLHARES SOBRE AS NARRATIVAS AUTOBIOGRAFICAS DE FORMAÇÃO .......................................................................................................... 46
4. IMAGENS E MEMÓRIAS: AS EXPERIÊNCIAS NA FORMAÇÃO ...................... 47
4.1 Tulipa: O letramento como experiência formadora ......................................... 48
4.2 Lírio: Infância, oralização e docência ............................................................. 53
4.3 Dália: A metáfora da flor ................................................................................. 58
5. ABRINDO A CAIXA DE MEMÓRIAS: REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE DOCENTE ................................................................................... 65
5.1 Algumas reflexões sobre literatura infantil como construtora de identidade docente .......................................................................................... 65
5.2 Literatura surda, cultura visual: significando sua prática.............................. ................................................................................ 78
5.3 Construindo a identidade de professora: ressignificando a prática pedagógica ...................................................................................................... 83
6. NAS TRAMAS DAS NARRATIVAS: PÉTALAS, SEMENTES, VOOS ................. 89
6.1 Revendo as narrativas: ressignificando as experiências ................................ 89
6.2 Das costuras possíveis e da impossibilidade de uma conclusão final ............ 94
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 98
ANEXOS .................................................................................................................. 104
MINHA HISTÓRIA EM CONTEXTO: UM EXERCÍCIO DE
CONHECIMENTO E AUTOFORMAÇÃO.
A experiência de si, historicamente constituída, é aquilo a respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo mesmo, etc. E esse próprio sempre se produz com relação a certas problematizações e no interior de certas práticas (LARROSA, 1994, p.43).
A capacidade de reflexão sobre o que fazemos, como fazemos e o que
deixamos de fazer conosco faz parte da nossa condição humana. Essa
capacidade se dá por meio da linguagem, que possibilita a constante
reinvenção de nós mesmos. A experiência da escrita é um exercício de
transformação, pois por meio dela organizamos e reorganizamos o
pensamento, afirmamos e reafirmamos conceitos, possibilitando
transformações de si. Nesse sentido, preciso narrar aqui um pouco sobre
minhas experiências, a fim de que minhas memórias me possibilitem a beleza
do processo autoformador.
Lembrar é refletir e refazer o momento que estamos vivenciando a partir
de fatos e situações históricas, as quais passaram ao longo de nossas vidas.
Podemos dizer que é um processo criativo que se desenvolve através das
memórias, e que, juntamente com as experiências do “hoje”, possibilitam o
entendimento de nossa subjetividade, singularidade e identidade. As muitas
Histórias que são contadas por nós fazem parte de um grande processo de
construção de nós mesmos, pois quando contamos algum acontecimento
outrora vivido, é como se voltássemos no tempo, criando novas possibilidades
de “ser” e “compreender” realidades. Isso se torna possível através do método
(auto)biográfico envolvendo práticas de narrativas que funcionam como
técnicas de conhecimento de si. Ora, esse instrumento é muito importante para
que os sujeitos se conheçam, permitindo experiências relacionadas ao “Eu”, na
busca de suas subjetividades através da autoformação. Segundo Finger:
11
Esse saber apresenta-se assim não só como crítico, reflexivo e histórico, mas também implica uma investigação da parte da pessoa, uma pesquisa fundamentalmente formadora. Com efeito, esse saber reflexivo e critico insere-se num processo, e mais precisamente em processos de tomada de consciência. Esses últimos têm um objetivo emancipador para a pessoa e para a sociedade, pois é por intermédio deles que a pessoa atribui um sentido às suas próprias vivências e experiências, assim como as informações que lhe vem do exterior (FINGER, 2010, p.126).
Diante dessas reflexões, cabem duas problematizações que julgo
pertinentes para dar continuidade à escrita que proponho neste trabalho. São
elas1: Como estou me tornando o que sou? O que me levou a pesquisar o que
pesquiso? Por isso, não posso deixar de narrar um pouco do meu processo de
formação, pois assim me conecto com o vivido, tentando compreender os
acontecimentos que formaram meu ser. Falar sobre mim não é fácil, ainda mais
quando preciso refletir sobre vivências que deixaram marcas de crescimentos,
conhecimentos e experiências compartilhadas que servem como diretrizes ao
meu caminhar. Sendo assim, com simplicidade narro, nas próximas linhas, um
pouco das minhas experiências formadoras.
Inicialmente sou a Bianca, formada em Pedagogia, e dei seguimento aos
estudos através da conclusão do Curso de Especialização em Educação, no
qual participei do Núcleo de Educação de Surdos em 2009, e do ingresso no
Mestrado, no ano de 2010. Esses acontecimentos são marcados a partir de
uma trajetória de inserção em estudos relacionados à surdez, no campo
respectivo aos Estudos Surdos em Educação. Mas a indagação pessoal que
trago é por que a escolha desse caminho? Mesmo sabendo a resposta, contar
novamente aqui não é tarefa cansativa, nem tampouco sem significado, pois
acredito que sempre me reinvento e me possibilito novos olhares ao falar em
mim.
Quando pensei em prestar vestibular para ingressar no Ensino Superior
eu não possuía total convicção sobre que curso escolher. Isso acontece com
1A origem dessas questões tem base nos estudos realizados pela Suíça Marie-Christine Josso
(2010), que desenvolveu um método de pesquisa a partir das Histórias de vida das pessoas, o qual ela denominou de Narrativas (auto)formadoras. Essas questões foram o mote da Disciplina do Mestrado/ 2ª semestre 2010: S.A Histórias de vida e processos de autoformação, ministrada pela Professora Drª Lúcia Maria Vaz Peres (Programa de Pós-Graduação em Educação PPGE -UFPel). Com base nas discussões por meio das leituras realizadas nessa disciplina, fui incorporando essa abordagem nesta dissertação.
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grande parte das pessoas que passam por essa fase, por ser uma escolha
muito importante que dará rumo aos caminhos que serão vivenciados.
Encontrava-me indecisa, não havia uma identificação com o perfil dos
candidatos, e não achava nenhum fator que me despertasse interesse.
Nessa fase de minha vida havia feito alguns cursos de Língua Brasileira
de Sinais – Libras - e mantinha relação de amizade com muitos surdos que
frequentavam minha casa. Também trabalhei como intérprete informalmente
em uma igreja por um determinado tempo e assim estabeleci contato com a
língua e cultura surda. Optei pela Pedagogia intencionando um possível
trabalho com alunos surdos. Só que aconteceu o que jamais poderia ter
imaginado, algo muito especial em minha trajetória na Universidade: o convívio
com uma colega surda que ingressou juntamente comigo no Curso de
Pedagogia. Posso afirmar que sua presença no curso mudou significativamente
minha forma de ver algumas coisas, aguçando meu olhar para as diferenças.
Os percursos de formação que trilhei e que ainda venho trilhando me
direcionaram na construção de uma identidade de pesquisadora, essa
identidade que, longe de estar pronta, é responsável por estabelecer diretrizes
nos caminhos investigativos que venho trilhando. Isso justifica o porquê das
pesquisas que venho desenvolvendo nesse período de vida acadêmica. Hoje,
através de um olhar reflexivo e formador sobre meu passado, compreendo que
a ideia de pesquisar sobre a formação de professores surdos nasceu a partir
da graduação, quando comecei a conviver com minha colega surda, podendo
presenciar o choque cultural que ela sofria por não estar em um ambiente
cultural significativo, que contemplasse os aspectos linguísticos e sociais de
formação do sujeito surdo. Ao olhar minha trajetória, percebo o quanto fui
atravessada por essas questões, ao ponto de desenvolver pesquisas que
buscam a valorização da formação de professores surdos dentro de seu
contexto linguístico cultural. Entendo que através das narrativas dos
professores surdos em formação vão se criando discursos sobre um fazer
docente, modos de agir e construir suas práticas. Isso é processo
autoformador, pois envolve Histórias de vida, memórias e todo o jogo de
significados que será utilizado em prol do sujeito que forma e que se forma.
Vejamos o que Adéle Chiené nos diz:
13
É, portanto, passando pela narrativa, que a pessoa em formação pode reapropriar-se da sua experiência de formação. Em resumo, trata-se de utilizar a instancia do discurso por meio da qual o individuo pode introduzir a sua experiência, e depois, por meio da analise de nos colocarmos com ele no lugar de interprete, para sublinharmos o distanciamento do texto em relação à experiência [...] (CHIENÉ, 2010, p.133).
O sujeito da formação é aquele que consegue se colocar em um lugar
de destaque, assumindo o papel de ator nas aprendizagens realizadas através
de tomadas de consciência que o tornam independente e autônomo na forma
de aprender. Essa independência faz com que o ser em formação retome seus
valores culturais na luta por aprendizagens significativas, favorecendo-o no
papel de se autoformar para depois auxiliar na autoformação do outro. Para
subsidiar esse pensamento ainda cito Chiené:
[...] O formador favoreça a expressão do sentido que a pessoa em formação dá às suas aprendizagens, não só para que esse sentido seja mais claro para a consciência, como também para que ele ou ela adquiram um poder sobre ele (CHIENÉ, 2010, p.132).
Os processos de escolha profissional passam pelo viés das Histórias de
vida, por isso a biografia educativa2 que proponho aqui é tarefa na qual os
sujeitos se apropriam do processo de formação. Partindo desse principio,
utilizei esses conceitos na valorização das Histórias de vida dos sujeitos da
pesquisa através de narrativas para que assim reconhecessem a partir de suas
vivências, mecanismos formadores em suas práticas como professores.
Contextualizando a pesquisa
2A biografia educativa, tal como é encarada por G. Pineau, inscreve-se no objeto de
autoformação defendido pelo movimento de Educação Permanente. Portanto, ao mesmo tempo em que serve de revelador do grau de apropriação do processo de formação, contribui para reforçar as possibilidades de apreensão desse processo. A abordagem biográfica tem a sua origem em um processo educativo, não constituindo apenas uma orientação metodológica (DOMINICÉ, 2010, p.148).
14
Esta dissertação justificou-se a partir dos caminhos investigativos
percorridos na pesquisa por mim desenvolvida no curso de especialização3,
visto que transitei por espaços de problematizações que envolveram as
expectativas dos professores surdos sobre as práticas desenvolvidas no ensino
da Libras como disciplina em cursos de formação universitária. Durante as
análises da pesquisa, confirmou-se que as práticas docentes que vêm sendo
desenvolvidas têm gerado um fazer diferenciado, possibilitando a constituição
da identidade de professora surda, tanto nos discursos que são produzidos,
quanto nas relações que se estabelecem nesse ambiente social. Partindo
dessas constatações, no decorrer do Mestrado4 pensei em dar um enfoque
diferente, mas ainda sim contemplando aspectos relacionados à docência, ou
seja, compreendendo como foi acontecendo a construção da identidade
docente a partir de narrativas de formação das professoras surdas.
A História dos seres humanos é construída por fases da vida, marcadas
pela infância e vida adulta. As experiências vividas e adquiridas nesses tempos
são fundamentais para a constituição de nossas identidades, valores e cultura.
Na medida em que relembramos acontecimentos passados, nos apropriamos
de vivencias através do exercício de contar os fatos como forma de capturar e
interpretar nossa História. Sobre isso, Souza nos diz:
Compreendo que as pesquisas pautadas nas narrativas de formação contribuem para a superação da racionalidade como principio único e modelo de formação. Também porque a pesquisa narrativa de formação funciona como colaborativa, na medida em que quem narra e reflete sobre sua trajetória abre possibilidades de teorização de sua própria experiência e
3 Trata-se da pesquisa O professor surdo e o espaço acadêmico: Desafios e conquistas no
exercício docente no ensino de Libras. Essa pesquisa foi realizada no curso de Especialização em Educação, da Faculdade de Educação - FAE – Universidade Federal de Pelotas - UFPel, sendo concluída no ano de 2009, sob orientação da Profª Draª Madalena Klein. 4 Durante o curso de Mestrado, fui bolsista pela CAPES, do projeto Prócultura: Produção,
Circulação e Consumo da Cultura Surda Brasileira. Trata-se de uma pesquisa interinstitucional, que envolve três Universidades Federais do Rio Grande do Sul. São elas: Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Universidade Federal de Pelotas – UFPel e Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Os objetivos que têm centrado essa pesquisa (em andamento): mapear as produções culturais das comunidades surdas brasileiras; coletar as produções culturais nas diferentes regiões brasileiras, com ênfase nos espaços em que há um movimento surdo organizado, através de associações de surdos e espaços educacionais; analisar o conjunto dos processos sociais de significação envolvidas na produção, circulação e consumo dos artefatos pertencentes à cultura surda; dar visibilidade e contribuir com a divulgação das produções culturais das comunidades surdas brasileiras.
15
amplia sua formação através da investigação-formação de si. Por outro lado, o pesquisador que trabalha com narrativas interroga-se sobre suas trajetórias e seu percurso de desenvolvimento pessoal e profissional, mediante a escuta e
leitura da narrativa de desenvolvimento do outro (SOUZA, 2006, p.98).
A investigação no contexto das Histórias de vida intenciona uma
autoformação por parte de quem reflete sobre suas experiências5, ou seja, o
pesquisador ou o sujeito informante da pesquisa, possibilitando a construção
de novos conhecimentos tanto sobre si como sobre os outros e sobre
diferentes realidades.
Para aqueles que são ou desejam se tornar professores é fundamental a
identificação de experiências autenticamente formativas na autobiografia, pois
promove a consciência de si, do lócus de formação pessoal e constitui um
exercício para que as vivências atinjam o status de experiência, na medida em
que se faz um trabalho de reflexão dessas vivências (Josso, 2010). As
experiências e as significações da vida não atuam de forma única consigo
mesmo, mas acontecem através das relações interindividuais que as tornam
válidas (Delory-Momberger, 2008).
A compreensão das aplicações das vivências dentro do processo da
formação docente construídas na trajetória de vida de cada um é importante
dentro de um processo de autoconhecimento. As diferentes experiências
possuem elementos formadores que participam da construção do sujeito e de
suas concepções.
Esses elementos influenciam no perfil profissional do docente. Levando
em consideração esses fatores, a pesquisa nasce do desejo e da necessidade
de melhor compreender a constituição da identidade de professoras surdas,
bem como os aspectos da formação das mesmas.
Os objetivos da pesquisa apresentada nesta dissertação consistiram em
analisar, a partir das narrativas de professoras surdas, os processos
formadores vivenciados ao longo de suas vidas que proporcionam a construção
5Proponho, pois, considerar o que designamos comumente por “experiências” como vivências
particulares. [...] vivemos em uma infinidade de transações, de vivências; essas vivências atingem o status de experiências a partir do momento que fazemos certo trabalho reflexivo sobre o que se passou e sobre o que foi observado, percebido e sentido (JOSSO, 2010, p.48).
16
de uma identidade profissional, ou seja, como essas professoras articulam os
diferentes saberes gerados ao longo da vida na construção das identidades
docentes. Mais especificamente, meus objetivos são:
- compreender como as surdas tornaram-se professoras;
- a partir das narrativas de memórias que envolvem as Histórias de vida
pessoal, escolar e pratica docente, compreender como ocorre a construção da
identidade docente ao longo da vida;
- promover a socialização das Histórias de formação entre os informantes da
pesquisa, permitindo a autoformação.
No decorrer desta dissertação, aproximo-me de teorias que contemplam
os Estudos Surdos em Educação, estabelecendo relações com questões que
envolvem a construção da identidade de professora surda através do processo
de formação ao longo da vida, para melhor compreender como se constroem
essas identidades docentes.
Esta dissertação está dividida em duas partes. Na primeira parte são
abordadas questões referentes às teorias que embasam este trabalho, bem
como o delineamento metodológico da pesquisa. A segunda parte dedica-se a
olhar analiticamente para os dados da pesquisa, de modo a suscitar as
problematizações que compõem este estudo.
PARTE 16
DAS FERRAMENTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS
6A imagem da flor foi escolhida para representar esta dissertação, uma vez que uma das
professoras surdas, informantes da pesquisa, utilizou-a representativamente em suas narrativas. É importante frisar que a imagem aqui apresentada não é a mesma que foi utilizada pela professora e sim foi retirada da internet para compor este trabalho. Disponível em: http://images.search.conduit.com/ImagePreview/?q=dente+de+le%C3%A3o&ctid=CT3027459&SearchSource=13&FollowOn=true&PageSource=Results&start=35&pos=32
1. ESTUDOS SURDOS EM EDUCAÇÃO
Como podem ser relacionadas, dentro de um contexto educacional mais amplo, essas representações sobre a surdez? Pode-se dizer que a educação dos surdos parece se encontrar, hoje, diante de uma encruzilhada. Por um lado, manter-se, ou não, dentro dos paradigmas da educação especial reproduzindo o fracasso da ideologia dominante – movimento de tensão e ruptura entre a educação especial e a educação de surdos. Por outro lado, aprofundar as práticas e os estudos num novo campo conceitual, os Estudos Surdos, quebrando assim a sua dependência representacional com a educação especial, e se aproximando dos discursos, discussões e práticas próprias de outras linhas de pesquisa e estudo em educação (SKLIAR, 1998, p.11).
No presente capítulo trago alguns elementos sobre os Estudos Surdos
em Educação, campo teórico que, a partir de problematizações acerca da
surdez, tem gerado saberes sobre o universo dos surdos e investigações e
preposições educacionais que atentam para o contexto cultural e político dos
mesmos.
Segundo Carlos Skliar:
Os estudos surdos se constituem enquanto um programa de pesquisa em educação, onde as identidades, as línguas, os projetos educacionais, a História, a arte, as comunidades e as culturas surdas são focalizadas e entendidas a partir da diferença, a partir de seu reconhecimento político (SKLIAR, 1998, p.5). .
Esses estudos surgem no Brasil a partir dos movimentos surdos
organizados e com influência da perspectiva teórica dos Estudos Culturais, que
enfatizam questões como: culturas práticas discursivas, diferenças e lutas por
poderes e saberes. Os Estudos Culturais argumentam que a cultura é formada
por micro culturas, isto é, realizam estudos das culturas minoritárias que vivem
19
às margens da sociedade, tais como os estudos sobre a sexualidade, gênero,
raça e surdez, entre outros.
Atentamos para a seguinte citação:
Os Estudos Culturais (EC) vão surgir em meio às movimentações de certos grupos sociais que buscam se apropriar de instrumentos, de ferramentas conceituais, de saberes que emergem de suas leituras do mundo, repudiando aqueles que se impõem, ao longo dos séculos, aos anseios por uma cultura pautada por oportunidades democráticas, assentada na educação de livre acesso. Uma educação que as pessoas comuns, o povo, pudessem ter seus saberes valorizados e seus interesses contemplados (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p.37).
Com esses estudos, começa a se travar uma luta contra a compreensão
da surdez como deficiência, levando-se em consideração a forma como os
surdos querem se narrar e serem narrados. A visão dos surdos como pessoas
deficientes, doentes e impossibilitadas de ser felizes - experiências que são
marcadas a partir de uma falta - não é a base para subsidiar os Estudos
Surdos. Em Lopes (2007) ficam evidenciados os tensionamentos permanentes
desse campo, no sentido de uma mudança epistemológica:
Com a ênfase colocada no caráter cultural da surdez e com a compreensão de que os surdos são sujeitos que pertencem a uma minoria linguística cultural, o debate da Educação de Surdos foi retirado do contexto da Educação Especial, fortemente marcada pela ênfase numa dimensão clínico-medicalizadora. Não quero dizer que a partir de 1960 os discursos clínicos tenham sido negados e excluídos da História surda, pois eles continuam até os dias de hoje fazendo investigações e ações de profilaxia. Entretanto, tais olhares médicos não entram no que chamamos hoje de Estudos Surdos (LOPES, 2007, p.26).
Segundo Skliar (1998, p.5) “A ambivalência desse discurso da
deficiência reside, justamente, no fato de que é um discurso mascarado pela
benevolência”. No entanto, para os Estudos Surdos o mais importante é frisar
as questões culturais, linguísticas e identitárias que definem as pessoas surdas
enquanto grupo diferente, dentro de um contexto sociocultural que apresenta
20
vários grupos e comunidades específicas, cada um com suas peculiaridades,
sejam eles maiorias ou minorias7.
O que interessa, para este campo de estudo, é construir questões teóricas fundamentais nas comunidades surdas, nas escolas, com os interpretes de lingua de sinais, no processo de formação dos professores ouvintes e surdos etc. Ou seja, os projetos de pesquisa, nessa perspectiva, focam pontos como as identidades surdas, discursos hegemônicos sobre a surdez e os surdos, práticas discursivas e dispositivos pedagógicos, currículo, novos paradigmas etc (VIEIRA-MACHADO, 2010, p.48).
Assim os surdos, enquanto grupo culturalmente organizado, não se
definem como pessoas com deficiência auditiva, porque para eles o mais
importante não é focar a atenção sobre a falta da audição, mas sobre aspectos
linguísticos e de ordem cultural. Por isso os Estudos Surdos em Educação
ganham significado, pois por meio de suas pesquisas vêm problematizando
questões que envolvem o mundo dos surdos, possibilitando a criação de novos
discursos sobre a surdez e, consequentemente, conhecimentos sobre esse
campo de pesquisa.
1.1 Um breve olhar sobre a trajetória dos movimentos surdos
A trajetória dos movimentos surdos e a organização da comunidade
surda no Brasil foram e vêm sendo marcados por lutas e conquistas
relacionadas ao reconhecimento político e identitário desse grupo,
evidenciando a importância de se unirem e reivindicarem seus direitos frente à
sociedade. É fato que as lutas dessa comunidade permanecem acontecendo e
se multiplicando (THOMA; KLEIN, 2010). Por isso cabe destacar aqui um breve
histórico dos movimentos surdos e de suas contribuições em questões que
envolvem a valorização de políticas sociais que proporcionam a ascensão de
espaços com igualdade de direitos, como qualificação profissional e formação
acadêmica, entre outros.
7Na utilização do termo “minoria” não intenciono relacionar essa expressão com a quantidade
de sujeitos pertencentes aos grupos, mas sim salientar as relações de poder que definem os espaços desses grupos e suas condições de dizer de si na sociedade. De acordo com Skliar (2003b), não é o quantitativo que demarca o território do minoritário e do majoritário, mas sim, certo tipo de mecanismo de poder, aquele que outorga tal condição: um mecanismo de poder que a nossa tradição tentou traduzir em termos de uma relação entre dominantes e subordinados.
21
Há algum tempo atrás, os estudos sobre os surdos eram entendidos a
partir da medicina e estavam ligados à falta de audição e à deficiência. Hoje
esses estudos ganharam um novo olhar com a possibilitade de ver o surdo
através de sua identidade, cultura e lingua de sinais.
No Brasil, a primeira escola para surdos foi o Instituto Nacional dos
Surdos Mudos8 (INSM), fundada no ano de 1857 pelo professor surdo E. Huet.
O instituto foi criado no Rio de Janeiro e a comunicação era realizada
principalmente em lingua de sinais, como acontecia em outras escolas de
surdos na Europa e nos Estados Unidos da América. Já no final do século XIX,
devido a um conjunto de acontecimentos que culminaram com o Congresso de
Milão (1881) e a determinação do oralismo como filosofia e método para a
educação de surdos, o ensino centrou-se na linguagem oral e escrita, não
valorizando um currículo surdo9.
Mesmo diante desses fatores, os movimentos surdos se mantiveram
dentro ou fora dos espaços escolares, em associações ou em espaços de
informalidade com o propósito de compartilhar experiências na formação e
constituição do sujeito em busca de novas oportunidades. As associações de
surdos, juntamente com o movimento de pessoas deficientes10 (cegos,
8A expressão “surdo-mudo” é uma forma antiga de identificar a pessoa surda. Essa forma de
denominação não está correta, mas ainda assim muitos meios de comunicação em nossa sociedade ainda a utilizam. O fato de uma pessoa ser surda não significa que ela seja muda. Muitos surdos foram oralizados ao longo da vida através de exercícios fonoaudiológicos e isso mostra que os surdos emitem sons. A surdez esta ligada à falta parcial ou total da audição, já a mudez está relacionada a problemas na voz. A cultura surda tem visto a utilização da termologia surdo-mudo como um erro social dado por desconhecerem os significados das duas palavras. Se pensarmos sobre o significado da palavra “mudez” entendendo-a como falta de comunicação, então podemos dizer que os surdos não devem ser nomeados dessa forma, pois a comunicação acontece através de sua lingua de sinais e sua cultura. Sendo assim, os surdos não são mudos. 9 Currículo surdo seria aquele que contempla os aspectos fundamentais da educação de
surdos. Os elementos necessários que devem ser respeitados para que se tenha um currículo que atenda a tais especificidades são: História da cultura; lingua de sinais; diferentes identidades; artes (literatura e poesia entre outras); o jeito surdo de ser, com todas as características culturais que os formam; o contato surdo-surdo; a política; os movimentos sociais etc. Ainda sobre as discussões relacionadas ao currículo surdo é pertinente dizer que: “[...] Ao longo da História dos surdos, várias denominações que contemplam uma essência surda foram surgindo: “jeito surdo”, experiência visual”, “coisas próprias do surdo”, que funcionam para descrever a diferença/essência surda. Porém, há cerca de, no máximo, 30 anos, surge no Brasil a ideia conceitual de “cultura surda”, que agrega esse essencialismo e que parece ter caráter mais científico e legítimo do que os termos anteriores, tanto nas discussões acadêmicas quanto na construção da identidade surda ( GOMES, 2011, p.123-124). 10
Segundo o Aurélio o termo deficiência se define por: falta, carência, insuficiência. Os surdos, por sua vez, não querem ser narrados pela falta ou incompletude, mas sim pelo campo da
22
deficientes físicos e mentais) iniciaram campanhas intensas no sentido de
propagar os direitos desses cidadãos: direitos a atendimentos qualificados, à
educação, ao lazer, à profissionalização e ao emprego (KLEIN, 1998).
Na década de 90 do século XX os movimentos surdos ganharam
destaque, sendo fortalecidos através da organização dos surdos juntamente
com pesquisadores na luta pelo reconhecimento da lingua de sinais. No Rio
Grande do Sul, o Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos
(NUPPES) teve sua formação no ano de 1996, sendo composto por alunos e
professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cabe ressaltar que nesse Programa
formaram-se os primeiros mestres e doutores surdos do país. Esse Núcleo,
entre suas atividades, fez parcerias com a Secretaria de Educação do Estado,
assumindo a partir daí a elaboração dos currículos, bem como a formação de
professores nos cursos oferecidos pelo Estado. Além disso, o NUPPES
realizou diversos movimentos para que a comunidade surda se fizesse
presente no contexto acadêmico através da entrada de surdos na
Universidade. Ainda é importante destacar que esse mesmo grupo:
[...] sem duvida, contribuiu muito para alguns avanços sociais, educacionais e políticos no que concerne à causa surda, no Brasil. Tendo como aliada a Linha de Pesquisas Estudos Culturais em Educação, daquele mesmo programa de pós- graduação, o NUPPES, durante muitos anos, funcionou como um centro tanto produtor e irradiador de conhecimentos e formador de especialistas no campo dos Estudos Surdos quanto catalisador de ações políticas em prol dos direitos dos surdos (LOPES, 2007, p.31).
A partir da produção intelectual e da inserção de professores surdos em
espaços escolares e acadêmicos os surdos têm ocupado lugares de destaque.
Isso só foi possível devido ao processo de lutas por poderes e saberes que se
estabeleceram no decorrer da História. Com a oficialização da Língua Brasileira
de Sinais (Lei Federal nº 10.436 de 24 de abril de 2002) e a implementação do
Decreto nº 5.626 de 2005, o qual preconiza a inclusão da Libras nos cursos de
formação de professores, os surdos vêm conquistando diferentes espaços
identidade e da diferença, ou seja, a surdez pensada como diferença. Porém, nos espaços de luta pelos direitos de cidadania, lutam com os demais grupos nomeados deficientes e portadores de deficiência, dependendo do momento político e da especificidade das lutas.
23
educacionais. Nesse contexto, muitas universidades federais e particulares no
nosso país vêm reconhecendo e inserindo esses profissionais como
professores responsáveis pelo ensino da Libras como disciplina11. Com isso,
muitas dessas instituições têm realizado concursos públicos e realizado
contratações para o suprimento das vagas desses profissionais. Porém, ainda
é pequeno o número de surdos com formação em pós-graduação (mestrado e
doutorado), sendo que muitas vagas para professor de Libras em instituições
públicas vêm sendo ocupadas por professores ouvintes com fluência
comprovada na língua12.
1.2 Cultura e Identidade surda: discursos e problematizações
Questões como o que é cultura surda e quais discursos vêm permeando
essa perspectiva cultural, entre outras, surgem diante de possibilidades de
análises que envolvem poder e significação. Analisando os diferentes
discursos, sabe-se que os mesmos criam verdades, que por sua vez definem
modos de ser, conviver em sociedade, experienciar e significar acontecimentos
na medida em que se aplicam a um determinado grupo ou comunidade.
Com isso, cabe aqui destacar que o termo “discurso” representa um dos
temas centrais dos estudos de Foucault, podendo encontrar uma de suas
definições como:
[...] um bem finito, limitado, desejável, útil, que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não somente em suas “aplicações práticas”), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objetivo de uma luta, e de uma luta política (FOUCAULT, 1997, p. 139).
As análises aqui problematizadas sobre os discursos acerca da cultura
surda ganham destaque, pois os surdos são um grupo minoritário que vem
lutando para que sua cultura seja respeitada com legitimidade no contexto
11
A disciplina de Libras passa a ser obrigatória nos cursos de licenciatura no ano de 2005, com isso muitas instituições abrem concursos para profissionais surdos. 12
Essa proficiência vêm sendo atestada pelo PRO-LIBRAS, sob responsabilidade da UFSC, realizando provas de proficiência em Língua Brasileira de Sinais para exercício da atividade de docente em Libras, ou para a atividade de Tradutor/Interprete dessa língua. Essa prova está prevista no Decreto nº 5.626 de 2005, que regulamenta a oficialização da Lingua de sinais no país.
24
político-social, por meio de discursos situados no campo da diferença. Perlin
nos ajuda a pensar sobre isso:
A escolha cultural do surdo pode parecer um processo anômalo para quem defende a normalidade. No entanto, a cultura surda, vista do nível das múltiplas culturas, ou da proliferação cultural ou das diferenças, faz com que transpareça com toda a sua excelência nas linguagens constitutivas das culturas. Entrar no lugar da cultura surda requer conhecimento da experiência do ser surdo com toda a transformação que o acompanha (PERLIN, 2004, p.73).
Ao falar sobre lugar, a autora refere-se às possibilidades de significar a
partir de uma cultura própria, através do compartilhar de experiências que são
vivenciadas dentro de um grupo cultural específico. Esse compartilhar só é
possível quando se rompe com padrões de normalização ditados pelos
discursos acerca da cultura ao longo dos tempos. Tais discursos hegemônicos,
baseados principalmente na cultura majoritária, fazem com que a surdez seja
vista a partir das lentes do ouvintismo13, a partir de experiências impostas por
um modelo que não valoriza as marcas surdas. Nesse embate por poder e
significação, os discursos “normalizadores” ganham força na medida em que
tentam enquadrar o surdo dentro de um modelo ideal a ser seguido. A
normalização imposta ganha padrões de verdade no exercício de
desconsiderar as outras identidades existentes, ou seja, diz que há uma
identidade considerada superior a todas as outras. Como argumenta Silva
(2000, p. 83):
A normalização é um dos processos mais sutis através dos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação a qual as
outras identidades são avaliadas e hierarquizadas.
Sobre os processos de normalização impostos aos surdos, Skliar afirma
que:
13
O ouvintismo – as representações dos ouvintes sobre a surdez e sobre os surdos – e o oralismo – a forma institucionalizada do ouvintismo – continuam sendo, ainda hoje, discursos hegemônicos em diferentes partes do mundo. O que é mais especificamente o ouvintismo? Trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se a narrar-se como se fosse ouvinte (SKLIAR, 1998).
25
Foram mais de cem anos de práticas enceguecidas pela tentativa de correção, normalização e pela violência institucional; instituições especiais que foram reguladas tanto pela caridade e pela beneficência, quanto pela cultura social vigente que requeria uma capacidade para controlar, separar e negar a existência da comunidade surda, da lingua de sinais, das identidades surdas e das experiências visuais, que determinam o conjunto de diferenças dos surdos em relação a qualquer outro grupo de sujeitos (SKLIAR, 1998, p.7).
O autor segue argumentando:
A configuração do ser ouvinte pode começar sendo uma simples referencia a uma hipotética normalidade, mas se associa rapidamente a uma normalidade referida à audição e, a partir desta, a toda uma sequência de traços de ordem discriminatória. Ser ouvinte é ser falante e é, também, ser branco, homem, profissional, letrado, civilizado, etc. Ser surdo, portanto, significa não falar – surdo mudo – e não ser humano (SKLIAR, 1998, p. 21).
O discurso da normalização, ao narrar a surdez, coloca-a no campo da
deficiência e não no campo da diferença, produzindo-se o “anormal – surdo”
que, para ser aceito na sociedade, deve ser envolvido em processos de
normalização. Diante dessa ordem, a diferença cultural que existe entre cultura
surda e ouvinte não é valorizada, pelo contrário, nesse instante ganham força
técnicas de normalização como, por exemplo, o oralismo e a inclusão
educacional, entre outras. Por isso que as pessoas surdas têm muito a nos
dizer sobre suas realidades, sobre jeitos de ser desse povo, pois falam de um
lugar político em que as vivências surdas existem, no qual as identidades são
aceitas e as culturas são priorizadas e colocadas em prática por meio de
discursos que nascem e renascem embasados na alteridade e na diferença.
Falando desse lugar político e ressaltando tais afirmações, cito Perlin, que nos
diz:
A cultura surda é então a diferença que contêm a prática social dos surdos e que comunica um significado. É o caso de ser surdo homem, de ser surda mulher, deixando evidências de identidade, o predomínio da ordem, como, por exemplo, o jeito de usar sinais, o jeito de ensinar e de transmitir cultura, a nostalgia por algo que é dos surdos, o carinho para com os achados surdos do passado, o jeito de discutir a política, a pedagogia, etc. (PERLIN, 2004, p.77).
26
Quando um grupo compartilha de uma cultura, ele cria mecanismos de
força de ordem subjetiva para lidar com as relações de poder. Esses
mecanismos se tornam mais fortes quando os surdos estão juntos, funcionando
como uma espécie de alavanca para o desenvolvimento da cultura surda14,
criando assim possibilidades de disputas por lugares de predominância do
poder da cultura dominante. Na tentativa de assumir tais locais, lutas em torno
da significação têm sido travadas há muitos anos, possibilitando a criação de
novos discursos situados no campo da diferença e não da deficiência.
As relações estabelecidas no cenário social, em seus diferentes locais,
através dos diferentes papéis que os sujeitos venham a ocupar, são de suma
importância para a constituição de identidades. Por esses motivos é
imprescindível compreender que os elementos da cultura surda são legítimos.
É através desse resgate cultural que se rompe com padrões de dominação,
buscando modificar através de ações, posicionamentos e discursos, a lógica
que a sociedade ouvinte impôs aos surdos. Afirmo aqui que todas essas
discussões são extremamente relevantes, visto que as lutas políticas sobre os
direitos dos surdos têm crescido satisfatoriamente, gerando novos frutos. O
fato de hoje existirem surdos como professores de lingua de sinais, a criação
do curso de Letras-Libras15 que vem formando professores no ensino superior,
a luta por políticas educacionais, enfim, todos esses fatores fazem com que os
sujeitos surdos, a partir de novos discursos, promovam sua cultura e identidade
com o propósito de torná-las respeitadas por todos16.
14
A educação de surdos, pensada dentro uma política educacional que respeita e valoriza a cultura dos mesmos, é vista como uma grande alavanca no processo de transformação desses sujeitos. 15
Em agosto do ano de 2006 ocorreu o primeiro vestibular para o curso de Licenciatura em Letras-Libras, desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O curso teve a participação de oito instituições de ensino superior, em diferentes regiões do nosso país na modalidade à distância, visando expressar o conhecimento em Língua Brasileira de Sinais e evidenciar as formas de ensinar e aprender dos surdos. As aulas presenciais aconteceram quinzenalmente, oportunizando o encontro dos surdos, quando compartilham de suas experiências. Nos primeiros meses de 2011 aconteceram as formaturas desses diferentes Polos, sendo que no dia 26 de fevereiro realizou-se, em Santa Maria/RS a formatura de 47 alunos deste Polo. Em 2008, outro vestibular proporcionou o ingresso de novas turmas tanto de Licenciatura (formação de professores para o ensino da lingua de sinais) quanto de Bacharelado (formação de tradutor intérprete Libras/Língua Portuguesa). 16
Cabe aqui registrar a atualidade das lutas surdas, uma vez que, por exemplo, no ano de 2012 ocorreu uma mobilização da comunidade surda brasileira, cujo ápice foi uma mobilização em Brasília (DF) nos dias 19 e 20 de maio de 2011, conforme divulgado em http://wn.com/MOVIMENTO_EDUCA%C3%87%C3%83O_DOS_SURDOS_E_CULTURA_SURDA__LIBRAS.
27
Destaco as palavras de Perlin, quando diz:
Chega-se ao momento em que a cultura surda tem de ser negociada, em vez de negada, uma vez que se trata de um tema extremamente importante. Ela não está ai para uma subversão, mas como uma estratégia dos surdos para a sobrevivência. As narrativas surdas constantes à luz do dia estão cheias de exclusão, de opressão, de estereótipos. O problema histórico do povo surdo subsiste. O que é crucial para o ouvinte é simplesmente transformar essa noção de que há uma única cultura e aventurar-se pelo espaço do que significa viver no diferente, noutra cultura, do que significa a existência de uma fronteira de diferença cultural e o ser portador de outras linguagens, de outras culturas (PERLIN, 2004, p.80).
Ainda relacionada a essas discussões, a próxima seção apresenta
algumas considerações acerca da formação de professores surdos, tais como
a construção da identidade docente e a valorização de um contexto próprio,
que possibilite as trocas culturais e o fortalecimento do discurso surdo.
1.3 A formação docente no contexto da cultura surda
Atualmente, muitos fatores potencializadores da cultura surda vêm
transformando e reafirmando o cenário que envolve a educação de surdos. Um
exemplo a ser citado é a presença de surdos na universidade, rompendo com
uma territorialização cultural perpetuada ao longo de muito tempo, influenciada
pelo modelo ouvintista de educação. Cabe destacar também a importância dos
profissionais docentes surdos se inserirem em espaços acadêmicos de
predominância culturalmente ouvinte por meio do ensino da Libras. Isso se
torna relevante, porque com as práticas docentes desenvolvidas esses
profissionais podem se utilizar de mecanismos para narrar sua diferença e
propagar suas especificidades culturais.
O processo de formação de professores, juntamente com as questões
surdas, envolve a educação com todas as características, marcas e lutas
desses sujeitos. Ao pensar no processo formador, é preciso atentar-se para a
pluralidade de significados que se revelam através das vivências, tanto no
período escolar quanto no cotidiano de cada um ao longo da vida. Sabe-se que
28
o histórico dos surdos é marcado por conflitos e rupturas. O embate entre
oralismo e lingua de sinais ao longo dos tempos deu a possibilidade de
redefinirem sua História, através de discursos sobre a surdez e sobre o ser
surdo.
O curso de Letras–Libras, dentro do contexto de formação cultural, é
visto como um novo e importante espaço de formação, no qual se produz
saberes que incluem os aspectos sociais, culturais e políticos presentes em
seu currículo.
Questões como cultura e poder são fundamentais para se pensar o
currículo As discussões sobre o currículo surdo estão atreladas a essas
questões. A possibilidade de elaboração de um currículo na educação dos
surdos precisa ser construída a partir da ideia de diferença como uma
construção cultural e histórica, permeada por relações de poder (LUNARDI,
1998 p.166).
Não podemos deixar de falar em currículo sem associarmos essas
questões à lingua de sinais. As experiências compartilhadas através da
Língua Brasileira de Sinais possibilitam aos surdos que a formação aconteça
dentro de um contexto linguístico compartilhado. Nesse sentido, Sá comenta
que:
Atribui-se importância ao uso de lingua de sinais na construção da(s) identidade(s) do surdo, pelo valor que a língua tem como instrumento de comunicação, de troca, de reflexão, de crítica, de posicionamento, pois, como se poderia imaginar uma significativa e natural interação entre surdos que utilizassem uma língua oral, uma língua oral sinalizada? O instrumento natural e habitual para sua interação não pode ser outro se não a lingua de sinais da comunidade surda local. Não há como negar que o uso de lingua de sinais é um dos principais elementos aglutinantes das comunidades surdas, sendo assim um dos elementos importantíssimos no processo de desenvolvimento da identidade surda/ de surdo e nos de identificação dos surdos entre si (SÁ, 2002, p. 105).
Entender a diferença lingüística da Lingua de sinais, que por muito
tempo foi desvalorizada, criando uma falsa ideia de que a Língua Portuguesa,
por ser a língua oficial do país, deveria ser utilizada por todas as pessoas como
primeira língua, ainda é um desafio nos dias de hoje. Mesmo diante de todos
29
os progressos relacionados aos estudos referentes à cultura surda, mesmo
sabendo que o português não é puro e único e que sofre várias influências de
outras línguas, ainda assim existem resistências de aceitação e utilização da
lingua de sinais como primeira língua dos surdos em espaços sociais.
Afirmo, no entanto, que para a identidade docente surda ser construída
é necessário o envolvimento com a comunidade surda e com aspectos da
língua, a movimentação em prol dos ideais, o contato surdo-surdo e os
momentos de lazer e conviver, entre outros. Esses aspectos que fazem parte
da História de vida de cada sujeito, quando levados em consideração dentro de
um processo formativo possibilitam, a partir das vivências, um resgate de quem
fomos, de quem somos e de quem queremos ser.
Com isso, torna-se possível problematizar os processos de identificação
que se estabelecem na ação de rememorar acontecimentos e fatos que
marcaram a caminhada histórica de formação, partindo para uma
reapropriação de tais vivências, utilizando-as na construção da identidade de
professor surdo. A identificação acontece mediante a produção de significados
que se relacionam. Essa relação é estabelecida no contato com o outro igual
ou grupo. É importante entender o lugar a partir do qual se produz uma nova
identificação do professor surdo. É esse profissional que constrói sua cultura,
sua lingua de sinais, sua identidade e sua alteridade, a partir da qual vai
construído seu jeito de ser (REIS, 2007).
Flaviane Reis (2007) complementa, destacando que também é
importante afirmar a diferença, ou seja, a identidade do professor surdo,
entendendo melhor a sua formação e entendendo a afirmação da postura do
professor dentro do processo de identificação.
Procurando atender aos objetivos da pesquisa a que se refere esta
dissertação, abordo narrativas de formação de três professoras surdas, a fim
de possibilitar a elas contarem suas Histórias. Muitas dessas Histórias
emergiram através das lembranças das experiências vividas no tempo da
escola. Com as Histórias que envolvem os processos de escolarização, foi
possível compreender como a escolha pela docência foi acontecendo e
constituindo as identidades docentes de cada uma delas. As narrativas
biográficas foram sinalizadas pelas professoras surdas no decorrer de três
30
encontros, contando com o auxilio de estratégias metodológicas, como o uso
de imagens e de caixa de memórias17.
No próximo capítulo aproximo-me das discussões referentes ao Método
(auto)biográfico, uma vez que o mesmo recorre a fontes como as Histórias de
vida a partir de memórias e narrativas de formação. Assim, através de um
recorte teórico-metodológico dessa perspectiva, subsidio a investigação que
proponho neste trabalho.
17
Essas estratégias metodológicas serão explicadas no decorrer da dissertação, na parte de metodologia.
2. A ABORDAGEM BIOGRÁFICA E A FORMAÇÃO:
ENTENDENDO O MÉTODO
De que modo as nossas experiências nos formam? Como a nossa
trajetória de vida influencia no ser humano que somos hoje? Como as vivências
formadoras afetam as escolhas dos sujeitos no que diz respeito às decisões do
futuro, como por exemplo, a profissão? Desprezando os processos formativos
e todo o conjunto de crenças, ideologias, princípios e verdades que o
envolvem, é possível compreender o processo em totalidade e de forma
significativa?
É impossível pensar a educação sem levar em consideração os
processos formadores que constituíram a subjetividade do indivíduo ao longo
de sua vida. Suas vivências na infância, a cultura em que esteve inserido, o
modo como se deu sua escolarização, sua trajetória de relações sociais, enfim,
o sujeito tem em seu processo de formação uma gama de situações que atuam
de maneira significativa em sua trajetória.
Entender como se forma o individuo de hoje implica, intrinsecamente,
um trabalho de investigação de como ocorreu a formação do sujeito ao longo
de sua vida, que momentos foram marcantes em sua trajetória e decisivos nas
identidades do ser em questão. Para que isso ocorra, a abordagem utilizada
não pode ser engessada dentro de uma estrutura que não privilegia formas
subjetivas para desencadear essas vivências. Os processos de formação são
extremamente peculiares e particulares e se apresentam de forma diferente de
pessoa para pessoa.
Pode-se dizer que existem diferentes fatores que movimentam esses
processos e que precisam ser levados em consideração por estarem atuantes
na construção e constituição da identidades das pessoas. A estrutura social, o
meio em que está inserido e a cultura do sujeito são fatores que se apresentam
32
muito variáveis para se estudar à luz de padrões considerados
metodologicamente enrijecidos, frente ao universo de diferenças multiculturais.
O desafio de se entender as questões relacionadas à formação docente
de surdos, tema na qual enfoco meu trabalho, implica necessariamente
compreender as subjetividades que permeiam a construção da identidade de
ser professor, atreladas à cultura surda. Sobre isso:
Para desenvolver tal tema, argumentamos que, além da lingua de sinais, da arte, do teatro e da poesia surda, a noção de luta, a necessidade de viver em grupo e a experiência do olhar são marcadores que nos permitem falar de identidades surdas fundadas em uma alteridade e uma forma de ser surdo. Longe de defender uma pretensa essência surda, nosso objetivo é mostrar que a expressão ser surdo abrange uma experiência de ser, de estar num mundo, que é vivida no coletivo, mas sentida de maneiras particulares. Embora tenhamos distintas formas de viver a condição de ser surdo, alguns elementos presentes nas narrativas surdas sobre si permitem-nos reconhecer, na dispersão dos enunciados, alguns elementos recorrentes que, ao serem agrupados, conectados e selecionados, nos indicam marcadores comuns dentro de um grupo cultural especifico (LOPES; VEIGA-NETO, 2010, p.116).
Em vista disso, a metodologia que utilizei no trabalho e que contempla
os aspectos abordados até aqui, é o método18 (auto)biográfico. Definindo19 um
pouco esse método, podemos dizer que o mesmo se mostra em caráter
subjetivo, qualitativo, alheio a todo o esquema de estudo enrijecido, e que tem
por foco as Histórias de vida de cada sujeito como processos de formação. Ele
apresenta como fundamento que a vida de cada um é uma apropriação
individual sobre as relações, saberes e vivências que se dão em um cenário
18
A partir dos anos 2000, observa-se nos estudos pós-graduados no Brasil um movimento que vem contribuindo para a fundação da pesquisa (auto)biográfica em Educação. Ele se expressa mediante a explosão de teses e de dissertações de mestrados que tomam como palavra-chave da investigação o termo (auto)biográfico: o êxito dos Congressos Internacionais sobre Pesquisa (Auto)Biografica (CIPA); A CRIAÇÃO DA Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biografica (BIOgraph); a existência de publicações nacionais e internacionais sob o titulo de Pesquisa (auto)biográfica. Esses fatos sinalizam uma forma de superar a flutuação terminológica gerada pela multiplicidade de denominações relativas ao uso de fontes (auto)biograficas: abordagem biográfica ou autobiográfica, método (auto)biográfico, narrativa de vida, relato de vida, Histórias de vida em formação, pesquisa narrativa, investigação biográfico-narrativa (PASSEGGI e SILVA, 2010, p.106). 19
O trabalho biográfico, nesta dissertação, centra-se na reconstrução de Histórias de formação,
proposto por estudiosos como: Marie-Christine Josso (2010), Christine Delory-Momberger (2008), Pierre Dominicé (2010) e Elizeu Clementino de Souza (2006). Esses pesquisadores têm contribuído relevantemente para que a metodologia que envolve as Histórias de vida faça parte do processo de formação do sujeito no mundo contemporâneo.
33
social no qual está inserida. Com isso, acontece uma apropriação por parte do
sujeito em relação às experiências formadoras que se dão nesse meio, das
quais se utiliza na construção do seu “eu”. Existem territórios acessíveis aos
nossos sentidos que pertencem ao nosso ambiente humano e natural e
testemunham, com uma espécie de evidência, lugares de experiências
formadoras e fundadoras. Mas existem igualmente espaços invisíveis - ou não
tão tangíveis - nos quais as simbólicas do sentido, humanamente construídas
no singular-plural, se dão a conhecer como tipologias experiências (JOSSO,
2008).
Finger; Nóvoa (2010, p.23) descrevem o método biográfico assim
dizendo:
O método biográfico permite que seja concedida uma atenção muito particular e um grande respeito pelos processos das pessoas que se formam: nisso reside uma das suas principais qualidades, que o distinguem, aliás, da maior parte das outras metodologias de investigação em ciências sociais. Respeitando a natureza processual da formação, o método biográfico constitui uma abordagem que possibilita ir mais longe na investigação e na compreensão dos processos de formação e dos subprocessos que o compõem.
Partindo disso, é fundamental entender como ocorre a interiorização das
vivências e como atuaram e vêm atuando na constituição da docência. No
caso, entender como funciona os meios sociais e culturais surdos e como o
sujeito surdo absorve tais vivências, utilizando-as como a base que subsidiará
sua constituição e formação. Essas problematizações acerca da construção da
identidade docente surda serão abordadas no transcorrer das analises
desenvolvidas na pesquisa aqui apresentada.
2.1 Narrativas de formação
Atualmente, as pesquisas realizadas nas ciências sociais têm dado
maior atenção às pesquisas relacionadas à biografia e à História de vida. Na
educação, em especial, essas abordagens vêm ganhando um espaço de
discussões, privilegiando a narrativa pessoal e a utilizando na articulação de
saberes a partir do terreno político, cultural e social.
34
As narrativas orais e, no caso do presente trabalho, gestuais20, provêm
de uma base epistemológica21 representada historicamente por fatos,
episódios, acontecimentos e experiências que influenciam a construção do
olhar que temos sobre nós mesmos e que estão intrincados a um conjunto de
valores, ideias e símbolos que representam a identidade de cada um. Partindo
desse pressuposto, sabemos que as identidades são construídas
permanentemente ao longo da vida, a partir de uma teia de relações que se
estabelece com o/no grupo cultural do qual fazemos parte. Por exemplo:
professores surdos relatam experiências22 que marcaram suas vidas pessoais
e que refletem nos seus cotidianos profissionais, como as ocorridas na infância,
quando ainda eram alunos e estavam inseridos em um sistema de ensino em
que privilegiava a língua falada, dentro de uma organização curricular ouvinte.
Lembrando esses momentos, eles podem trazer essas experiências para o
contexto atual e de forma ressignificada construir novas possibilidades de ação
docente.
A opção pelas narrativas (auto)biográficas corresponde neste trabalho
como instrumento de formação, pois permite que os sujeitos da formação
ressignifiquem suas aprendizagens. Através da prática dos relatos, o percurso
de sua vida é evidenciado, ou seja, os professores, no exercício de rememorar
sua trajetória, demarcam suas singularidades, possibilitando, a partir das
ressignificações entenderem os sentimentos e as representações dos sujeitos
no processo de autoformação. Para sustentar essa ideia, cito Chiené (2010,
p.132):
20
Os informantes da pesquisa realizarão as narrativas em Libras. 21
A palavra epistemologia refere-se ao estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas; Teoria da Ciência. Neste caso, a epistemologia está relacionada a um conjunto de princípios e valores que representam historicamente os surdos. 22
Pesquisas com essa abordagem já vem acontecendo no campo da Educação de Surdos, envolvendo memórias e narrativas. Um exemplo foi o curso de formação continuada Memórias, narrativas e experiências docentes na educação de surdos – desenvolvido como parte integrante da pesquisa intitulada: Lingua de sinais e Educação de surdos: políticas de inclusão e espaços para a diferença na escola sob a coordenação da professora Drª Adriana da Silva Thoma. O mesmo foi realizado no ano de 2008, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e contou com a participação de professores surdos e ouvintes que, através de suas escritas que se deram através de cartas, diários individuais e de um diário coletivo virtual – Blog. Assim, escolheram escrever sobre suas trajetórias na educação de surdos. Essa pesquisa resultou em alguns textos publicados em anais de eventos como também em livros da área. Alguns destes textos serviram como referencia nesta dissertação e constam das referencias bibliográgicas, tais como Thoma e Bandeira (2010a, 2010b), entre outros.
35
Elaborada de forma descritiva, a narrativa de formação tem por objetivo principal, segundo o que é pedido, falar da experiência de formação. Relativamente à narrativa de vida, presume-se que a narrativa de formação apresente um segmento da vida: aquele durante o qual o individuo esteve implicado num projeto de formação.
Ainda nesta direção, Delory-Momberger (2008, p. 37) argumenta:
É a narrativa que confere papéis aos personagens de nossas vidas, que define posições e valores entre eles, é a narrativa que constrói, entre as circunstancias, os acontecimentos, as ações, as relações de causa, de meio, de finalidade; que polariza linhas de nossos enredos entre um começo e um fim e os leva para sua conclusão; que transforma a relação de sucessão dos acontecimentos e encadeamentos finalizados; que compõe uma totalidade significante, na qual cada evento encontra o seu lugar, segundo sua contribuição na realização da História contada.
Pelo que foi argumentado até o momento, é pertinente afirmar que a
metodologia discutida até aqui privilegia, de forma ampla e significativa, a
compreensão dos diferentes modos como os professores surdos podem dar
sentido às vivencias e aos processos sócio-históricos que contribuíram para a
escolha da profissão de educador. É a narrativa que faz de nós o próprio
personagem de nossa vida; e é ela, enfim, que dá uma História à nossa vida:
não fazemos a narrativa de nossa vida porque temos uma História; temos uma
História porque fazemos a narrativa de nossa vida (DELORY-MOMBERGER,
2008).
2.2 O contexto sócio-cultural das narrativas surdas.
Pela razão de que as pessoas Surdas como um grupo não são caracteristicamente imaginadas como tendo sido criadas em algum tempo ou lugar, isto levou um longo tempo para que reconhecêssemos a História seguinte pelo o que ela é: o conto popular sobre as origens dos grupos. As Histórias contadas pelos membros de uma cultura sobre as suas origens, se elas possuem motivos religiosos ou fantásticos, são criações do significado a respeito da existência da cultura. Elas reafirmam o presente instilando seu significado no passado. Este conto popular em particular serve ao mesmo propósito — contar onde
36
e como as pessoas Surdas começaram (PADDEN, 1988, p.22)23.
Entendendo que as Histórias do povo surdo são contadas de geração
em geração pelos membros dessa cultura, é interessante pensarmos algumas
questões: Como seriam as narrativas surdas? De que lugar essas pessoas
falam? Acredito que esses dois questionamentos são importantes para
compreensão de alguns pontos sobre as narrativas surdas.
No capitulo anterior foram mencionadas algumas discussões em torno
da lingua de sinais. Ainda é pertinente falar dentro de um contexto sócio
cultural que a lingua de sinais, por possuir características linguísticas próprias,
assim como as que caracterizam as línguas orais, também oferece
possibilidades de constituição de significados, cumprindo um papel
fundamental na educação das pessoas surdas e na constituição de suas
identidades.
Assim como as línguas orais, a Libras possui todos os níveis linguísticos:
fonológico, morfológico, sintático, semântico e pragmático, alem de possuir
estrutura gramatical própria, sendo utilizada na comunicação.
Além disso, Quadros e Karnopp mencionam o seguinte:
As línguas de sinais são, portanto, consideradas pela lingüística como línguas naturais ou como um sistema lingüístico legitimo e não como um problema do surdo ou como uma patologia da linguagem. Stokoe, em 1960, percebeu e comprovou que a língua dos sinais atendia a todos os critérios lingüísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças [...] observou que os sinais não eram imagens, mas símbolos abstratos complexos, com uma complexa estrutura interior. Ele foi o primeiro, portanto, a procurar uma estrutura, a analisar os sinais, dissecá-los e a pesquisar suas partes constituintes (QUADROS; KARNOPP, 2004, p.30).
No entanto, a língua não é composta simplesmente pela gramática, mas
também é reconhecida como componente de uma cultura envolvida em um
jeito-surdo-de-ser e que, através dessa forma diferente, os surdos vão
23
Texto traduzido para uso em aula e seminários.
37
constituindo sua subjetividade, com a valorização de suas vivências,
capacidades e experiências compartilhadas.
No caso dos ouvintes, as narrativas são orais, contadas dentro de uma
estrutura linguística que tem a fala como enfoque. Isso não ocorre com os
surdos, pois nesse caso, as narrativas são gestuais, contemplando os aspectos
representativos desse povo.
Nas últimas décadas foi bem estabelecido que as línguas de sinais dos surdos são sistemas linguísticos completamente desenvolvidos que se apóiam fortemente no uso do espaço e os movimentos das mãos- em lugar das modulações acústicas do trato vocal. As línguas de sinais mostram sistemas gramaticais complexos, mas diferentemente das línguas faladas, esses sistemas linguísticos fazem uso de padrões e contrastes espaciais (EMMOREY; BELLUGI; KLIMA, 1993, p. 19-20 apud PEREIRA, 2011 p.39).
As especificidades das narrativas surdas não estão unicamente
localizadas no uso da lingua de sinais. Outros aspectos da cultura surda
também ficaram evidenciados nas narrativas das professoras surdas que
participaram da pesquisa apresentada nesta dissertação e estão relacionados
com a pedagogia (jeito de ensinar), as narrativas das artes (teatro, piadas,
literatura), as narrativas sobre as lutas políticas, os processos de formação etc.
Hall (2003) ajuda-nos a pensar nisso quando diz que todos nós nos
localizamos em vocabulários culturais, e sem eles não conseguimos produzir
enunciações como sujeitos culturais.
Os surdos, por serem entendidos como grupo social que se diferencia
dos demais grupos, também utilizam de vocabulários culturais compartilhados
e que indicam características peculiares de formação. Tais características
estão diretamente relacionadas aos locais sociais por onde os mesmos
transitam. Por esses fatores, é correto afirmar que existem alguns locais
culturais de onde as pessoas surdas falam e que caracterizam uma tradição
dessas narrativas. A seguir veremos algumas características desses espaços
de significação.
A família é referida como o primeiro espaço primordial para que ocorra a
identificação, considerando que ela é a primeira referência que os sujeitos têm
para construir-se. A família é o núcleo social básico que promove relações
38
interpessoais importantíssimas entre seus membros. Com base nessa
afirmação, cabe problematizar aqui as seguintes questões: como se dão as
relações interpessoais quando a criança surda nasce numa família de pais
ouvintes? E quando um casal surdo tem um filho ouvinte? A identidade surda,
de acordo com as discussões que vêm sendo realizadas ao logo deste trabalho
prioriza acontecer na família em que os pais são surdos, por apresentarem
elementos culturais que lhes constituem, favorecendo a interação entre todos.
As famílias de pais ouvintes que têm filhos surdos devem, no entanto,
proporcionar a esses sujeitos o convívio com pessoas surdas, para que através
de um referencial de identificação possam ter contato com a lingua de sinais e
direito a uma educação que se utilize da pedagogia surda. Infelizmente, ainda
são muitos os casos de famílias ouvintes que negam esses direitos aos seus
membros surdos, possibilitando a eles somente um modelo de identificação, no
caso, o modelo ouvinte. Em consequência disso, se nega também aos surdos
o direito de construírem suas subjetividades surdas.
O segundo espaço que defino aqui acontece no âmbito escolar, ou seja,
os surdos reunidos no mesmo espaço da escola, na troca de experiências e no
compartilhamento linguístico, em que todas as assimilações se identifiquem a
um jeito surdo de ser, viver e aprender. Em contrapartida, as Histórias de
escolarização de muitos surdos enfatizam o não compartilhamento da lingua de
sinais e a utilização de técnicas de ouvintização, a partir de práticas que
obstinavam a correção e a normalização dessas pessoas. Por isso as
narrativas surdas se tornam práticas necessárias para afirmarem o campo da
surdez como sendo o local no qual acontecem os processos de subjetivação. A
História dos surdos, como já foi discutido na seção anterior, foi marcada pela
medicalização da surdez, na qual a norma ouvintista se impunha sobre
qualquer outro modo de entender os surdos. As narrativas surdas pretendem
produzir outros padrões de identificação e de referência. Isso nas palavras de
Lopes e Veiga-Neto (2010) significa que:
Começaremos dentro de outro juízo de valor, a dar lugar com menos ênfase para tal enfoque. Neste outro enfoque, o ouvinte não é o outro do surdo; o próprio surdo é que passa a ser o outro do surdo. É na norma surda que deve ser gerada a medida para que possamos avaliar os surdos e determinar se estão enquadrados no que o grupo específico pensa ser
39
normal, problemático, anormal, estranho, etc. (LOPES; VEIGA-NETO, 2010, p.121).
E o terceiro espaço é definido pelas associações de surdos, entendidas
como lugares potenciais de ressignificação de suas vivências e onde podem
refazer sua historia através dos movimentos sociais e políticos promovidos por
essas instituições. Além disso, esses locais proporcionam uma aproximação
entre os sujeitos surdos e os movimentos de lutas históricas de seus iguais,
que foram travadas para desmistificar todo o tipo de representações dos
surdos e da surdez ligadas a concepções clínicas e patológicas. Também
associações ou outros espaços de encontros informais entre surdos podem
proporcionar processos de identificação de Histórias não necessariamente
ligadas a um movimento político e de lutas, mas a possibilidade do
compartilhamento de língua e de experiências cotidianas comuns, não
enquadrando todas as possibilidades de identidades surdas em um modelo de
militância e engajamento.
As práticas de letramento dos surdos, as demarcações por territórios
simbólicos, as lutas pelo reconhecimento das especificidades culturais e todos
os componentes formadores constituem narrativas surdas, ou seja, uma
tradição que foi se estabelecendo ao longo da História, a partir das vivências
de cada sujeito surdo e que os autorizou a se narrarem e assim trazerem
novos sentidos para aquilo que denominamos surdez e entendemos por jeito-
surdo-de-ser.
3. CAMINHOS METODOLOGICOS
No presente capítulo apresento os caminhos metodológicos percorridos
na pesquisa. Deterei-me aqui em traçar algumas diretrizes sobre como foram
realizadas as coletas de dados e possíveis análises. Os dados dessa pesquisa
foram buscados mediante a contribuição de informantes surdas, através de
narrativas autobiográficas das Histórias de vida e formação docente. A partir
das narrativas foi possível obter informações que contemplam os objetivos
iniciais propostos neste trabalho.
Com a pesquisa realizei problematizações acerca da formação de
professoras surdas. Abordei questões que envolveram a construção da
identidade profissional dessas professoras, através do processo de formação
ao longo da vida24. Essas contextualizações possibilitaram o reconhecimento
da História dos surdos para entendermos quais as relações que foram se
estabelecendo entre suas vivências pessoais e as aplicações dessas
experiências no desenvolver da identidade profissional.
Sendo assim, como já apresentados anteriormente, os objetivos dessa
pesquisa focaram-se em:
- compreender como as surdas tornaram-se professoras;
- a partir das narrativas de memórias que envolvem as Histórias de vida
pessoal, escolar e pratica docente, compreender como ocorreu a construção da
identidade docente ao longo da vida;
- promover a socialização das Histórias de formação entre os informantes da
pesquisa, permitindo a autoformação.
24
A formação ao longo da vida é uma categoria central para os estudiosos que preconizaram o
método (auto)biográfico.
41
3.1 O delineamento metodológico
A proposta em questão constitui-se como uma pesquisa qualitativa, pois
se baseia nas vivências, crenças e percepções acumuladas ao longo da vida
dos sujeitos de pesquisa. Muitos estudos na área da educação, envolvendo os
aspectos sociais, vêm se utilizando desses métodos para desenvolver esses
tipos de investigações. Enquanto os estudos quantitativos preocupam-se
principalmente com o rigor preestabelecido e hipóteses geradas por
instrumentos estatísticos para análise dos dados, as pesquisas mais
conhecidas por “quali” buscam a descrição de dados a partir do contato direto
com os investigados ou situação de investigação. Quanto a isso vejamos:
A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento [...] a pesquisa qualitativa supõem o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada, via de regra através do trabalho intensivo de campo. [...] Como os problemas são estudados no ambiente que eles ocorrem naturalmente, sem qualquer manipulação intencional do pesquisador, esse tipo de estudo é também chamado de “naturalístico”. Para esses autores, portanto, todo estudo qualitativo é também naturalístico (BOGDAN e BIKLEN, 1982 apud LUDKE, 1986 p.11).
Na coleta dos dados, desenvolveram-se estratégias a fim de contemplar
os objetivos centrais estipulados para a pesquisa. Assim, este trabalho foi
produzido e analisado, dialogando com autores que se aprofundam nos
estudos relacionados à surdez, envolvendo os Estudos Surdos e suas
interlocuções com os Estudos Culturais, assim como autores que trabalham
com o método (auto)biográfico e a formação, atrelado às narrativas de vida.
Como estratégia na investigação foram organizados três encontros semi-
estruturadas (respeitando um roteiro que não é fechado) em grupo, filmadas e
realizadas em Língua Brasileira de Sinais, com a presença das três professoras
surdas e tradutor interprete25. Os encontros se embasaram nos relatos das
25
Somente no primeiro encontro contamos com a presença do tradutor interprete da Libras. Nos
demais encontros a própria pesquisadora conduziu as os mesmo em Língua Brasileira de Sinas. Isso se deu, devido a dificuldade de encontrar interpretes para atuarem no dia do encontro marcado. Posteriormente encaminharam-se os dois encontros filmados, para um profissional realizar a tradução para o português escrito.
42
professoras surdas considerando suas narrativas como fonte significativa para
a coleta de dados. Assim, as mesmas puderam conversar sobre suas
experiências e compartilhar dessas Histórias. Os encontros aconteceram de
forma intencional26, através de estratégias metodológicas que estimulassem as
narrativas, tentando, contudo, estabelecer um clima informal, que deixasse à
vontade as informantes.
O público alvo ficou definido da seguinte forma: três professoras
surdas27 que atuam no Ensino Fundamental - séries iniciais e no ensino de
Língua Brasileira de Sinais - de uma escola específica para surdos.
Organização dos encontros
A coleta dos dados foi organizada em três encontros28 presenciais com
as informantes da pesquisa, registrados através de filmagens, contemplando as
seguintes atividades previstas:
Primeiro encontro: A pesquisa, seus objetivos e as atividades previstas foram
explicados às professoras surdas. Nesse momento, solicitou-se que as
informantes lessem e assinassem o termo de Consentimento Livre e
Informado, garantindo os aspectos éticos da pesquisa e assegurando a
participação voluntária das docentes. Logo em seguida foi proposto a elas a
realização de uma breve apresentação, na qual cada uma falou sobre si,
respeitando o seguinte tema: “O que é importante falar, neste momento, sobre
a minha vida, que represente a construção da minha identidade docente?”.
Conforme foi acontecendo os relatos das professoras, foram propostas outras
perguntas para motivar as narrativas.
26
Os encontros nesse caso, intencionaram, através das experiências narradas pelas
professoras, atingir os objetivos centrais deste trabalho. Contudo, procurei sempre desenvolver essas entrevistas deixar as professoras surdas livres, para interagirem e se expressarem considerando quaisquer vivências que elas viessem apresentar como sendo significativas no contexto de conversação que estava acontecendo. 27
Para as informantes da pesquisa, foram atribuídos os seguintes nomes: Tulipa, Dália e Lírio. Esses nomes foram escolhidos pelas próprias professoras surdas, para representá-las nessa dissertação. 28
Os encontros aconteceram, semanalmente de acordo com a disponibilidade dos informantes.
43
Na sequência, e ainda no mesmo
dia, utilizou-se imagens como estratégia
para a coleta de dados, para permitir que a
memória reconstituísse com as
professoras surdas o percurso do que já foi
aprendido. A dinâmica ocorreu da
seguinte forma: espalhou-se pelo chão da
sala materiais para recorte como jornais e
revistas velhas. Esses materiais ficaram à disposição para serem manuseados.
As professoras puderam escolher uma ou mais imagens29 com as quais elas se
identificavam, ou seja, quais imagens - acontecimentos ali registrados -
combinavam com o que elas podem chamar - minha experiência de vida e
formação. As imagens fotográficas, em especial, agem como dispositivos que
estimulam a mente a sonhar, refletir, imaginar e produzir, a partir do repertório
simbólico interior (mental e do exterior o ambiental), sobre instigações que
trazem à tona um movimento de pensamentos e discussões internas a cada
indivíduo (PERES; BRANDÃO, 2009). Com a utilização dessa estratégia
metodológica envolvendo imagens, possibilitou-se a representação do universo
dos surdos, buscando, a partir de elementos visuais, fazer com que as
informantes da pesquisa narrassem suas Histórias de formação.
Logo após esse momento, foi entregue a cada uma das professoras
surdas, caixas simbólicas, denominadas “caixa de memórias”30. As respectivas
caixas vazias foram levadas pelas professoras, que ao longo do tempo em que
estiveram com as caixas puderam escolher objetos pessoais que foram
colocados para compor a mesma, qualquer objeto ou material que tivesse
significado e servisse como suporte para as memórias, representando assim a
construção da identidade de professora.
29
As imagens escolhidas pelas professoras serão apresentadas no decorrer desse trabalho. 30
Esse termo foi criado pela pesquisadora para denominar o local onde as professoras colocaram os objetos que escolheram para compor a caixa.
44
CAIXA 1 CAIXA 2 CAIXA 3
Com o resgate das Histórias de vida e de formação, foi possível colocar
as memórias das professoras em movimento, ou seja, mostrar que os objetos
significativos podem subsidiar-nos a contar e ressignificar nossas Histórias de
formação.
Segundo encontro: Nesse momento as professoras surdas narraram suas
Histórias de formação docente, focadas na experiência de ser surda. Os relatos
autobiográficos são considerados um material importante para uma melhor
compreensão sobre o modo como vamos construindo a nossa docência. Por
isso, nesse momento, foi utilizada a caixa de memórias, com os objetos
escolhidos por elas para suscitar as narrativas sobre o processo de formação
docente. Os objetos trazidos pelas professoras foram os seguintes, conforme
constam na tabela a seguir:
Lista dos objetos que compuseram as caixas de memória31
Caixa 1 - Tulipa Caixa 2– Lírio Caixa 3 – Dália
- Livro didático de português;
- Livro didático de ciências;
- Quebra cabeça;
- Jogo da memória;
- Dominó;
- Gibi;
- Livro de literatura infantil;
- Foto de um aniversário
- Cartaz com imagens
- Livro – Mexa-se;
- Livro – Estudos Surdos II;
- DVD;
- Baralho de configuração de mãos;
- Caixa com vocabulário;
- Dado das configurações de mãos;
- saco com verbos;
31
Esses foram os objetos que apareceram na caixa de memórias de cada uma das professoras. Porém, no desenrolar das análises, alguns objetos se destacam mais.
45
Terceiro encontro: Os vídeos com as narrativas filmadas nos encontros
anteriores foram assistidos pelas professoras surdas, para que pudessem ver
como se narraram ao longo do processo. Logo após a projeção do vídeo32 com
as narrativas, as professoras foram convidadas a se expressarem, comentando
as impressões que tiveram sobre o vídeo e sobre a experiência vivenciada
durante a pesquisa. Elas puderam acrescentar outras narrativas que não foram
evidenciadas nos encontros anteriores. Esse é um processo importante porque
proporcionou o exercício de olhar para si, possibilitando que as mesmas
ressignificassem o que foi dito e narrado.
A metodologia prevista com as professoras ancora-se em um “olhar para
si”. Para isso, como já foi mencionado ao longo da dissertação, utilizei o
método (auto)biográfico para que, através das narrativas sobre os processos
de formação, as professoras surdas pudessem apropriar-se dos conhecimentos
vivenciados ao longo de suas trajetórias de vida, a partir do resgate e da
compreensão de sua caminhada formadora.
Ao escolher esse método, foquei-me na prioridade de criar um espaço
no qual as surdas pudessem se expressar e, sobretudo, se autoformarem.
Através das narrativas dessas professoras, foi possível fazer com que as
mesmas trouxessem à memória vivências que foram importantes no processo
de formação e que possibilitaram a construção da identidade profissional
docente. Assim, com as narrativas dessas Histórias aconteceu a tomada de
consciência na qual se desencadeia um processo de reflexão desses sujeitos
sobre os conhecimentos e interações com o meio e consigo mesmo.
32
Foi elaborado um vídeo ilustrativo, com as etapas da pesquisa, editado a partir de alguns
recortes realizados pela pesquisadora, contendo as narrativas dos encontros anteriores. Uma copia desse vídeo foi entregue para cada uma das professoras.
PARTE 2
OLHARES SOBRE AS NARRATIVAS AUTOBIOGRAFICAS
DE FORMAÇÃO
4. IMAGENS E MEMÓRIAS: AS EXPERIÊNCIAS NA
FORMAÇÃO
A partir das narrativas de formação, evidenciadas nessa pesquisa
através de encontros, muitas Histórias foram contadas pelas professoras,
focadas na experiência de ser surda. Com base nessas Histórias, as análises
realizadas enfocam o processo de formação para compreender como ocorreu a
construção da identidade de professoras ao longo da vida. As análises a seguir
contemplam pontos que se destacaram nos encontros, por apresentarem
elementos que dizem sobre as identidades docentes.
Nesse sentido conduzo a escrita, explorando os temas que apareceram
nas narrativas, problematizando-os. Assim, na tentativa de olhar analiticamente
para os dados, trago acontecimentos, fatos e Histórias que foram relevantes
nos encontros realizados, marcando a trajetória de vida de cada professora,
refletindo sobre como ocorreu seu percurso de formação. Para a realização das
análises foi respeitada a singularidade de cada História, de modo que a
organização da escrita privilegia uma História por vez. É importante dizer que
os trechos das narrativas não serão apresentados por ordem cronológica dos
fatos, mas sim pelo encadeamento das reflexões dos professores sobre as
Histórias contadas. Serão apresentados através de uma aproximação de
temas33, organizados nesta dissertação a partir de uma espécie de costura das
Histórias e acontecimentos que, ao serem narrados pelas professoras,
proporcionam a compreensão do percurso de formação e da construção da
identidade docente. “No plano da interioridade, implica deixar-se levar pelas
associações livres para evocar recordações-referenciais e organizá-los numa
coerência narrativa, em torno do tema da formação (JOSSO, 2010, p.36)”.
33
Através da metodologia utilizada, que foi organizada a partir de três encontros, apareceram diferentes temas que compuseram as narrativas, como por exemplo: oralização, literatura
surda, experiência visual e relação professor aluno, entre outros.
48
Com a transcrição dos encontros, deparei-me com um universo de
informações valiosas que iam ao encontro da proposta inicial deste trabalho
que era analisar, a partir das narrativas de professoras surdas, como ocorre a
construção das identidades docentes. Os relatos autobiográficos possibilitaram
inferir diferentes análises sobre o que foi dito, sob o olhar da pesquisadora.
Porém, é apenas um olhar, entre tantos que esse trabalho possa suscitar. É
com esse propósito que convido o leitor a conhecer essas Histórias de vida e
de formação.
Nos trechos a seguir, apresento algumas análises referentes às
narrativas que as professoras surdas relataram no primeiro encontro, através
da utilização de imagens. A estrutura da escrita tem base nas temáticas
abordadas por elas nesse primeiro encontro, ou seja, explorando o tema de
maior ênfase. O objetivo dessa estrutura é fazer com que o leitor conheça, de
um modo sintético, os caminhos que cada uma delas escolheu para começar a
falar sobre suas Histórias de formação.
4.1 Tulipa: O letramento como experiência formadora
Para dar início a sua narrativa, Tulipa utiliza-se da uma imagem
representada pelo desenho de um mundo. Com essa forma de representação,
ela aborda um trecho interessante, que faz pensar sobre o papel do professor
surdo frente a um fazer pedagógico que, problematizado, indica para as
questões de identidade docente.
Eu escolhi este desenho por que eu fiquei
imaginando que o mundo tem muita coisa, tem
variações, têm diferentes coisas, ele tem tudo. Se eu
quiser conhecer, saber alguma coisa, eu posso
procurar porque o mundo tem várias regiões, onde eu
procuro, então eu posso fazer uma busca, ir me
apropriando dessas regiões e buscar informações. As
coisas que eu quero saber, eu posso pesquisar,
buscar, me apropriar daquilo, assim posso dividir com
outra pessoa, por exemplo, eu sou professora, então
49
tenho que estudar muito, para poder dividir com
meus alunos, posso explicar para eles, para que
conheçam e entendam como é o mundo, e depois
eles possam fazer as buscas deles, de acordo com
cada um, mas eu vou dar esse começo e depois eles
vão buscar, porque o mundo tem diferentes coisas
(Excerto - Entrevista Tulipa)34.
Com o excerto acima, percebe-se que Tulipa estabelece uma relação
com o mundo. Através da interação com o meio social, acontece o
desenvolvimento e a aprendizagem do ser humano. Com os surdos não é
diferente, eles precisam estabelecer contato com o mundo, criando novas
formas de produção e apropriação dos saberes. Holcomb (2011, p. 139),
pesquisador surdo americano, salienta essa relação:
A cultura oferece aos membros da comunidade acesso a soluções criadas historicamente para um modo eficiente de vida. A cultura surda não é diferente. Para os surdos que vivem em um mundo ocupado basicamente por pessoas que ouvem, soluções são necessárias para viver de forma eficiente neste mundo (HOLCOMB, 2011, p.139).
Como vimos na narrativa ilustrada, a professora mostra um
comprometimento no exercer da docência. Quando diz sobre sua relação com
o mundo, na apropriação de saberes para seu fazer pedagógico, ela revela um
modo de realizar sua formação. Esse modo possibilita o fazer de uma prática
pedagógica que se constitui a partir de saberes de ordem cultural que podemos
pensar sobre a constituição de identidade de professor surdo. Nesse sentido
concordamos com o que Hall (2006, p.12) argumenta:
A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.
34
Os trechos com as falas das professoras serão apresentados em Itálico, com fonte e recuo
diferenciado.
50
Stuart Hall define muito bem essa capacidade de movimentação e
transformação que a identidade tem. Identidade e cultura são temas
intimamente relacionados, que não podem ser separados. Falar de Identidade
é pensar na cultura como algo que possibilita ao sujeito a construção e a
apropriação de jeitos de ser e de se relacionar com o meio no qual se insere.
Na pós-modernidade, o autor problematiza que o sujeito não é composto
apenas por uma única identidade fixa, mas que assume diferentes identidades
em diferentes momentos da vida, ou seja, ocorre um deslocamento conforme
as identificações que vamos fazendo. Ainda sobre isso, Hall nos diz:
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada umas das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2006, p.13).
Nessas condições a identidade surda é representada a partir de um
rompimento com outra identidade cultural existente, a de ser ouvinte. Com essa
ação, os surdos reafirmam o pertencimento a uma comunidade que
compartilha de uma cultura e de necessidades especificas que os definem
como grupo.
Ainda que neste trabalho as análises sejam direcionadas à construção
da identidade docente, as mesmas estão fundamentadas na compreensão de
que essa identidade está sujeita a transformações, pois não esta pronta,
acabada, mas sim passa por processos de deslocamentos através dos meios
sócio-culturais em que é gerada. É nesse sentido que as narrativas das
professoras surdas sobre suas vivências formadoras podem apontar para um
jeito de ser professora, para uma possível identidade que vem sendo
construída a partir das experiências que marcaram o decorrer de suas vidas.
A criança, desde o seu nascimento e inserção no mundo, passa a
integrar um universo composto por linguagem. É através da linguagem que ela
começa a se relacionar com o mundo a sua volta. Essa socialização é iniciada
primeiramente através da família, canal direto de comunicação. Essas relações
no cotidiano das atividades que acontecem na família, no dia a dia, estão
51
conectadas às questões culturais, que dizem sobre o modo de ser, viver e estar
no mundo. Assim a criança vai se apropriando de valores, regras e
consequentemente adquirindo conhecimentos de uma cultura. Com o decorrer
do desenvolvimento, ela passa a adquirir um grau linguístico mais elevado. Por
isso, a escola tem uma função fundamental, pois com a socialização com
outras crianças que compartilham de uma mesma língua as aprendizagens vão
ocorrendo e é possibilitado o pertencimento a um grupo.
A criança surda filha de pais ouvintes pouco ou nada conhece sobre os
valores culturais que estão imersos na LS. Na maioria das vezes, a escola é o
único ambiente em que o surdo pode aprender e utilizar a LS e a se comunicar
de uma forma mais natural, visto que em suas famílias não desfrutam de uma
inserção linguística na LS, na maioria das vezes mantendo a comunicação
através da oralidade, ou através de um tipo de linguagem que é criada entre os
membros da família. Com isso, as experiências das crianças surdas ficam
restritas a acontecer no espaço escolar, que acaba assumindo o papel inicial
de inserir seus alunos surdos no contato direto com a lingua de sinais e, desse
modo, servindo de referência para a família, auxiliando nas relações entre pais
ouvintes e filhos surdos e principalmente divulgando a necessidade de a
comunicação acontecer através da LS.
Atualmente, com o entendimento da surdez a partir de uma diferença
linguística e cultural, é possível compreender a lingua de sinais com todas as
suas características estruturais. Por ser uma língua essencialmente visual, ela
precisa ser explorada, respeitando suas características peculiares. A
experiência a partir da visualidade torna-se uma marca surda, pois nela está
contida uma forma de aprendizagem que compõe a cultura surda.
Para identificar a marca “surdo” que apresentamos, preciso aproximar o que é fácil entender por sujeito surdo. É uma marca que identifica nós os surdos em crescente posição de termos próprios no sentido de gerar poder “para si e para os outros” Os surdos são surdos em relação à experiência visual e longe da experiência auditiva (PERLIN, 1998, p.54).
52
Vejamos algumas marcas surdas, deixadas através das práticas de
letramento35 na História de formação da professora surda Tulipa. Ela conta o
seguinte:
Eu lia gibi, livro didático, principalmente de ciências, gostava muito de ciências,
tinha curiosidade em saber sobre os animais, como eles nasciam, como eles
viviam, como era a natureza, essas coisas de ciências principalmente, porque
tinha muitos desenhos. Em geografia, por exemplo, tinha o desenho dos ciclos,
e era bem claro para mim, porque eu sou surda, a leitura era difícil, mas quando
tinha desenhos junto com a leitura eu entendia o contexto, então eu lia e
articulava com os desenhos. No gibi também, tinha desenhos com os textos,
assim eu conseguia me apropriar, aprender (Excerto - Entrevista Tulipa).
Tulipa fala sobre a prática de leitura que realizava. Ela conta que os livros
didáticos chamavam sua atenção por apresentarem muitos desenhos.
Comenta a presença das imagens nesses livros, como uma ferramenta que
facilitava a aprendizagem do português. Esses artefatos culturais contribuem
nos processo de significação revelando uma forma de ser e aprender
propriamente surda. Esse jeito de aprender está ligado ao uso das imagens –
do visual – que é apresentado frequentemente como marca surda. Lopes e
Veiga Neto (2010, p.116) em seus estudos enfatizam que “a expressão ser
surdo abrange uma experiência de ser, de estar no mundo [...]” Ao
problematizar essa questão esses autores comentam sobre essas experiências
que, mesmo sendo sentidas de maneiras particulares através dos elementos
presentes nas narrativas surdas sobre si, contêm alguns elementos recorrentes
que, quando conectados, indicam marcadores comuns dentro de um grupo
cultural. Assim a experiência visual36 para os surdos torna-se uma marca
surda, presente na vida e nos processos de ensino-aprendizagem, ou seja, os
surdos constituem um povo que possui marcas que os definem e que
constroem suas verdades pautadas em um partilhar cultural.
Percebe-se que na História de formação de Tulipa, a mesma buscou
significar suas aprendizagens a partir de estratégias de leitura que facilitavam a
35
Aqui, o termo Letramento é entendido como o desenvolvimento de habilidades textuais como
leitura e escrita, através de diferentes tipologias textuais, na compreensão da escrita partindo das necessidades de aprendizagem e leitura de mundo dos surdos. 36
Sobre experiência visual, vou me deter mais adiante.
53
compreensão do contexto. Essas estratégias de leitura possibilitam a
construção de conhecimentos a partir de suas subjetividades na medida em
que ela identifica a necessidade de aprender.
Na História dos surdos encontram-se experiências formadoras que hoje,
no cotidiano, quando são retomadas, demonstram muitos aspectos de como
esse sujeito sócio-histórico foi construído e afetado por suas vivências.
No campo da cultura, a partir das questões linguísticas, a lingua de
sinais é considerada uma minoria diante de uma língua majoritária, que é o
Português37. Por esse motivo, quando os surdos falam sobre suas experiências
de formação, das estratégias que foram utilizadas no período escolar e dos
saberes aplicados no cotidiano de professor, isso se torna relevante para
entendermos quais caminhos são possíveis para a formação docente.
4.2 Lírio: Infância, oralização e docência.
Uma parte significativa das narrativas da professora Lírio refere-se à
questão da oralização, a qual deixou marcas em sua História de formação.
Essas marcas são refletidas nas linhas a seguir, quando a mesma fala sobre
acontecimentos que marcaram sua vida, no período da infância:
37
Com as conquistas na educação de surdos, percebe-se uma mudança nas estratégias para o ensino do português para surdos, comprovadamente a L2 – segunda língua dos surdos. Historicamente o português foi ensinado através de técnicas de oralização, não considerando a lingua de sinais a L1. Hoje, com os professores surdos e as discussões no campo linguístico e cultural, criam-se novas estratégias para o ensino, que rompe com o modelo ouvinte de aprender.
54
Eu escolhi essa foto! Quando eu era criança, por ser
surda, não conseguia me sentir em igualdade com
os ouvintes, as pessoas falavam, eram oralizadas,
daí eu fui crescendo e a escola dizia que eu
precisava oralizar, depois com a família, o contato
com os ouvintes era só oralização. Também tinha
lugares na escola que usavam a lingua de sinais
escondida. Sempre teve uma dominação, na
verdade. Depois eu fui crescendo e percebi: no
futuro eu não vou conseguir trabalhar? Eu posso
trabalhar? Meu pai respondeu que não, mas eu
disse que quero ser professora surda, quero
trabalhar, não tem surdo trabalhando (Excerto -
Entrevista Lírio).
É interessante notar que Lírio, ao dizer sobre suas experiências vividas
na escola, refere-se aos sentimentos que tinha sobre esse período. Ao
mencionar as questões sobre a oralização, ela evidencia uma forma de
aprender que lhe foi imposta, desde a infância, na qual começou seu processo
de alfabetização. É sabido que o oralismo38 consolidou-se na História dos
surdos como um método de ensino que privilegia a língua oral como forma
mais eficaz de ensinar os surdos.
Segundo Goldfeld (1998, p. 71):
O oralismo ou Filosofia Oralista caracteriza-se principalmente pela idéia que o deficiente auditivo necessita aprender a língua oral de seus pais para só assim se integrar à comunidade ouvinte; isto pelo fato da população não estar preparada para receber um individuo que se comunique apenas com a lingua de sinais. O oralismo acredita que a aquisição da lingua de sinais é prejudicial para esta criança [...].
Ao longo da História dos surdos, esse tema vem sendo abordado de
forma bastante polêmica. Assim como as vivências de Lírio sobre a oralização,
a grande maioria dos surdos passou por essas situações relatadas por ela.
Essa foi mais uma condição de padronização dada pela sociedade e exercida
38
A partir do Congresso de Milão, o oralismo foi o referencial assumido e as práticas educacionais vinculadas a ele foram amplamente desenvolvidas e divulgadas.
55
na escola, onde o modelo linguístico adotado tem o dever de desenvolver,
dentro dos princípios da sociedade, perfis aceitos e não deixar disseminar a
instabilidade e o caos originário das diferenças. “A escola não sabe trabalhar
com a instabilidade. Necessita de referências fixas para descrever e
educar/disciplinar os sujeitos desiguais” (LOPES, 1998, p.107). Assim, o papel
da escola na educação dos surdos foi se constituindo a partir de um modelo
hegemônico de se pensar a educação, privilegiando alguns grupos em relação
a outros. Com base em um modelo ouvinte, os surdos foram se educando.
A maioria dos surdos, em sua História, não desenvolveu satisfatoriamente
a aquisição da fala. A oralidade acontecia de forma desigual à dos ouvintes.
Com isso havia outras dificuldades, como por exemplo a realização da leitura e
escrita cheias de falhas, não correspondendo ao modelo ouvinte utilizado como
referência.
Com o modelo de escola historicamente constituído sob as referências
ouvintes, os surdos, como grupo cultural, necessitaram criar novas formas de
aprender através de referências que privilegiaram suas especificidades. Nesse
sentido buscaram estratégias para aprender, rompendo com uma forma que
não lhes tinha significado.
Nesse sentido, a abordagem que Lírio traz demonstra um impasse,
através da relação que a mesma estabelece entre, de um lado, o mundo de
aprendizagem dos ouvintes, do qual ela tentava se apropriar e de outro, o
mundo de aprendizagem dos surdos39, meio pelo qual encontrava sentido para
entender e interagir com o mundo. Mesmo cercada de referências ouvintes, ela
criou estratégicas para utilizar a lingua de sinais na escola, reafirmando um
39
Sobre o uso dessa designação “mundo dos ouvintes”, “mundo dos surdos”, encontramos muitas dessas referências em Histórias que surdos contam, sinalizando ou escrevendo. Em várias dessas narrativas usam da máxima binária, em que o mundo ouvinte representa a insatisfação, os limites, a opressão, e o encontro/entrada no mundo surdo indica o reinício, a possibilidade. Um exemplo a ser dado é o livro TIBI E JOCA – UMA HISTÓRIA DE DOIS MUNDOS, de Cláudia Bisol e Tibiriçá Maineri. Conforme argumenta Karnopp (2010, p. 167): “No desenvolvimento da História, observamos que o personagem é um menino surdo que nasceu em uma família com pais ouvintes. Todos passaram por momentos difíceis até que começam a usar a lingua de sinais. O texto é rico em ilustrações e, além da História registrada na língua portuguesa, há um boneco-tradutor que sinaliza as palavras-chave de cada página, que permitem ao usuário da Libras acompanhar a História”.
56
jeito de aprender próprio de surdos utilizando a lingua de sinais, mesmo que
em locais escondidos.
O modo como nos tornamos sujeitos envolve uma série de saberes que
são historicamente constituídos. É possível dizer que esses saberes, que
compõem o cenário social, constroem os sujeitos e suas identidades. A forma
pelo qual o surdo vai subjetivar40 as identidades possibilita a busca por
estratégias de resistência. De acordo com WOODWARD (2000, p. 55):
[...] identidade e subjetividade não são intercambiáveis. A identidade constitui-se como uma ponte entre o eu e as dimensões cultural e social. A subjetividade, por sua vez, dá conta dos sentimentos, dos processos psíquicos mais íntimos, mais particulares. É no discurso dos sistemas sociais e culturais que essa particularidade é significada e se significa. Subjetividade e identidade dão lugar ao sujeito: “as posições que assumimos e pelas quais nos identificamos constituem nossa identidade”.
Problematizando as colocações de Lírio apresentadas no início desta
seção, quando ela fala sobre o contexto vivido na escola, precisou buscar
formas de resistir à imposição de uma cultura, e nessa ação estabelecer uma
batalha por uma reafirmação cultural. Como argumenta Silveira (2005, p. 131):
Como as identidades não se encontram fixadas, mas estão, sim, sempre em processo, construindo-se na e por meio da linguagem, resistências podem se desenvolver e favorecer a criação de contradiscursos em que novas posições se estabeleçam. Mudanças, portanto, são possíveis de serem incentivadas e catalisadas no espaço escolar, tanto pela critica de identidades dominantes, como pela compreensão do processo de construção das identidades presentes nesse espaço.
Resistir, nesse sentido, é pensar a formação de professoras atravessada
por essas experiências vivenciadas na escola, e ter a possibilidade de
constituição das identidades docentes com foco em um fazer diferente, que
atende os aspectos culturais que identificam os surdos entre si.
Dando sequência a sua narrativa, Lírio traz elementos de sua História
que merecem ser abordados:
40
De acordo com Larrosa (1994, p.55), a “ontologia do sujeito não é mais que a experiência de
si que Foucault chama de "subjetivação".
57
Depois eu encontrei um professor surdo e perguntei: tem como ensinar Libras?
Um professor pode ensinar Libras? Ai eu comecei a imaginar, comecei a pensar
em ser igual a ele, perguntei para minha mãe: é verdade, uma pessoa pode
ensinar Libras? Ela respondeu, não adianta, não vai dar certo Lírio! Depois eu
conversei com outras pessoas, mães de surdos, então eu falei para minha mãe:
viu, é verdade, tu achaste que era mentira minha, mas eu tinha essa capacidade.
Eu tinha medo do futuro, das escolas de ouvintes, de rodar, por que o português
é bem difícil para nós surdos, e não tínhamos contato com outros surdos;
também precisamos de contato com outros surdos (Excerto - Entrevista Lírio).
Mesmo diante de sua História de oralização, o desejo por ser professora
superou as condições de formação às quais foi submetida. Lírio não se desfez
dessas experiências de formação, mas sim deu outro sentido a elas.
Falar das próprias experiências formadoras é, pois, de certa maneira, contar a si mesmo a própria História, as suas qualidades pessoais e socioculturais [...] Contudo é também, um modelo de dizermos que, nesse continuum temporal, algumas vivências têm uma intensidade particular que se impõe à nossa consciência e delas extrairemos as informações úteis às nossas transações conosco próprios e/ou com nosso ambiente humano e natural (JOSSO, 2010, p.47).
Tais afirmações relacionam-se com o que diz Lírio ao relatar seu
encontro com um professor surdo que ensinava Libras. Esse encontro foi
importante para ela, que viu nesse professor um modelo, em um momento de
sua vida quando ela precisava ter uma referência surda. Com essa referência,
ela percebeu que era possível o surdo trabalhar, nesse caso, ser uma
professora. Também foi preciso romper com a falta de credibilidade dos pais,
que não acreditavam na possibilidade de a filha ser professora.
Esse descrédito se dá por fatores como: a falta de interação
comunicativa entre pais ouvintes e filhos surdos; os discursos que enaltecem
modelos de normalização e a visão da medicina que trata a surdez como a
experiência de uma falta, incapacidade ou deficiência na busca de ajustes para
recuperar algo de que o surdo foi desprovido. Assim esses discursos
constroem a visão de muitos pais, que seus filhos são limitados e que não têm
as mesmas potencialidades dos ouvintes. Para Skliar (1997), no caso de pais
ouvintes e filhos surdos, as interações comunicativas podem ser muito
58
deficitárias, dependendo do tipo de informação recebida após o diagnóstico dos
filhos e das modificações daí decorrentes, no curso natural das comunicações
familiares.
Muito são os discursos que circulam sobre os surdos e sua formação.
Os discursos são “práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam” (FOUCAULT, 1997). Historicamente, em nossa sociedade ocidental,
circularam discursos que foram criando uma forma de olhar para a surdez
inserida em uma lógica da deficiência, voltada para as práticas de reabilitação
desses sujeitos. Olhar pra os surdos a partir da lógica da deficiência leva-nos a
entender que o surdo pode conseguir fazer algumas coisas, mas em outras não
obterá êxito, pois lhes falta algo importante, que lhes coloca em desigualdade
nas relações sociais.
Ao ser afrontada por seus pais, quando não acreditaram que fosse
possível a filha se tornar uma professora, Lírio foi buscar estratégias para fugir
da condição de impossibilidade de não poder ser o que gostaria de ser: uma
professora de surdos. A busca por uma experiência com outros surdos foi de
fundamental importância para que ela conhecesse outras possibilidades e
outros modelos surdos que serviram de incentivo para que continuasse lutando
pelos seus propósitos. Assim, é possível dizer que essas estratégias de lutas
por ressignificações se tornam possíveis em um contexto de lutas
compartilhadas, de lutas junto com outros surdos.
4.3 Dália: A metáfora da flor
Eu peguei três imagens, a primeira uma flor, eu não sei o nome dessa flor, não é para assoprar, é para deixar no lugar, depois no futuro a
gente assopra41
. (Excerto entrevista Dália).
41
Trecho sinalizado pela professora surda, quando inicia sua narrativa a partir da imagem escolhida. No decorrer das narrativas apresentadas nesta dissertação, ela explicará o porquê da escolha, como faz menção nesse trecho, no qual cria uma representação com a imagem da flor, relacionando com sua História de vida.
59
Como vimos no excerto aqui apresentado, ser professora é um processo
de construção que envolve uma série de acontecimentos que marcam a nossa
caminhada formadora. Dália, ao relatar alguns desses acontecimentos
importantes pelas quais passou, conta sobre a escolha de sua mãe, em um
determinado período de sua infância, que resultou em colocá-la em uma escola
de ouvintes. Lendo esse trecho percebe-se que a escolha partiu do desejo de
estimular Dália a continuar estudando, para que assim obtivesse um futuro
melhor. Segundo essa postura, se entende que a mãe de Dália acreditava que
na escola de ouvintes o aprendizado ocorreria de forma mais efetiva e por
consequência, o desenvolvimento de sua filha seria satisfatório, oportunizando
maiores oportunidades profissionais no futuro.
Essa ação da mãe, de utilizar uma estratégia para incentivá-la a estudar,
revela uma possibilidade analítica interessante. Dália, na sua infância, já
Bem, porque a escolha dessa flor. Quando eu era
criança, eu só tive escola oralista, e eu via a
professora, ela era bonita, jovem [...] eu via aquela
professora bonita e tinha ela como modelo. [...] Eu
lembro que na casa da minha vó tinha uma caixa,
onde ela guardava livros e cadernos velhos, então eu
olhei para caixa e disse para minha mãe: Meu Deus,
eu quero seguir esse modelo, quero usar meu
quadro, gostava de ser professora. Eu cresci, e na
terceira série, eu fui levada para uma escola de
ouvintes [...] eu aceitei, ela me aconselhou dizendo,
minha filha, tens capacidade, tu vais te alfabetizar lá,
vais passar por todas as etapas do ensino
fundamental, e depois o que tu vais fazer no futuro?
Ela me provocava perguntando: Vais trabalhar em
fabrica minha filha? Não, eu dizia, em fabrica eu não
vou trabalhar, respondia chorando, lá tem cheiro ruim,
prejudica as mãos. Então ela dizia: vai estudar então.
Aceitei estudar na escola oralista. (Excerto -
Entrevista Dália).
60
mostrava o desejo de se constituir professora, através das brincadeiras que
realizava, do interesse que mantinha sobre essas questões. A bonita
professora que serviu de modelo e a caixa contendo materiais didáticos
encontrada na casa de sua avó foram elementos significados por ela, que
naquele contexto fizeram parte do processo de identificação. Essas vivências
foram fundamentais na escolha pela docência.
Uma das possíveis formas de problematização que o trecho instiga é a
postura mantida pela mãe de Dália em colocar sua filha em uma escola
oralista. No entanto, não é propósito desta análise defender a escola oralista,
nem mesmo a escola de surdos, mas sim direcionar um olhar para o processo
vivido por Dália, levando em consideração uma determinada época, quando a
educação de surdos era consolidada a partir de uma perspectiva oralista, e
também de pouco investimento na continuidade da vida acadêmica dos surdos.
Ou seja, pensar nas condições que existiam e que possibilitaram a formação
de mesma. Para prosseguir em seus estudos, teve que enfrentar situações de
não pertencimento e não identificação cultural. Essas situações vivenciadas
foram importantes porque Dália foi uma pioneira na luta pela educação de
surdos em sua cidade. Certamente suas experiências serviram para abrir
caminhos para outros surdos continuarem seus estudos.
Hoje, temos professores surdos, mas para se chegar a essa conquista,
muitos tiveram que pagar o preço de serem submetidos a um ensino que não
correspondia a suas especificidades. Ao olhar para sua História, Dália dá um
novo significado às vivências sobre o período de oralização pelo qual passou
na escola. Essas experiências fazem parte do processo de significação e a
construção de identidade de professora constitui-se através desses
atravessamentos.
Na perspectiva de construção de uma identidade docente, a professora
surda Dália continua sua narrativa relatando o seu processo de iniciação em
uma escola, como professora de lingua de sinais. Ela referiu-se a esse tempo
da seguinte forma:
[...] a direção da escola me chamou, perguntando o que eu estava fazendo. Eu
pensei que eles queriam que eu trabalhasse em fábrica, porque geralmente eles
ligavam para chamar os surdos para trabalharem. Mas eu fui torcendo para que
não fosse para trabalhar em fábrica. Então foi quando eles me disseram que era
61
para trabalhar como professora de Libras. Eu fui tomada por uma felicidade, e eu
perguntei: como assim, professor de lingua de sinais? E eles disseram que sim,
e eu disse Ok! Foi à primeira vez que surgiu esse contrato, era só com o grupo
de “X”, não tinham pessoas de outros lugares. Era bem difícil o grupo, eles não
conheciam lingua de sinais, precisaram se desenvolver [...] (Excerto - Entrevista
Dália).
Há anos atrás, muitas empresas adotavam a filosofia de implantar a
contratação de deficientes para trabalharem na área de produção. Essa era
uma das poucas opções de emprego frente ao contexto existente da época, e
como muitos surdos não tinham a oportunidade de estudar, e às vezes não
recebiam incentivo da família, acabavam migrando unicamente para esse tipo
de emprego. Klein (1998, p.80) traz uma consideração relevante que se
relaciona com essa ideia:
O surgimento da escola moderna e o inicio da industrialização compartilham da organização dos saberes que vão dando sustentação a uma nova ordem nas relações sociais e econômicas. Nas escolas de surdos, podemos encontrar indícios de uma relação entre os objetivos das escolas e as necessidades emergentes de sujeitos preparados para ingressar nas fábricas.
Diante dessa condição, a escola de surdos preparava os sujeitos para
ingressar no mercado de trabalho, dentro de uma lógica que atendia às
exigências do mercado e produzia determinadas identidades de surdos
trabalhadores, que se naturalizavam a partir dos discursos da deficiência e da
benevolência (KLEIN, 1998). Naquele momento, pensar outras possibilidades
de profissões para os surdos era romper com essa lógica.
Em sua narrativa, Dália, ao saber sobre a contratação como professora
de Libras, demonstra surpresa por ser a primeira a atuar na escola no ensino
da lingua de sinais em sua cidade e região. A possibilidade de ser professora
nesse contexto oportunizou novas experiências de ensino e constituição de
uma prática pedagógica surda envolvendo a lingua de sinais, identidade,
alteridade. A partir daí ela inicia uma produção cultural surda, ou seja, produz
um jeito de ser professora, com todos os saberes que envolvem a cultura
surda, servindo como modelo para outros surdos.
62
Reis (2007, p.97) argumenta em seus estudos sobre a necessidade de
esclarecer a importância da prática dos professores surdos que vem surgindo e
sendo vivenciada entre o povo surdo. Ela comenta ainda que: “Ser diferente
significa produzir a partir da História, do conhecimento próprio, e compartilhado
uns com os outros com o objetivo de ter mais experiência dessa prática
pedagógica”. A partir desse processo de identificação cultural, as inovações
começam a acontecer e ocorrem as transgressões fazendo acontecer múltiplas
experiências sobre o fazer pedagógico.
No seu percurso de formação, Dália teve muitas experiências que
marcaram sua trajetória. Em especial, uma dessas experiências demonstra ser
relevante tanto para ela como também para a comunidade surda de sua
cidade, servindo como incentivo e ampliação de uma visão cultural do mundo
dos surdos: Atentemos para o relato:
[...] no ano de 1999 eu viajei para o congresso bilíngue. Aqui em “X” não tinha
uma visão ampliada do mundo dos surdos, por isso eu escolhi a imagem da flor,
porque ela representa a ampliação dessa visão. Quando eu fui no congresso eu
vi que os surdos tinham capacidade, tinham direitos, e não via isso na cidade de
“X”. Então foram esses dois surdos ao congresso e passaram a acreditar na
liberdade e na capacidade que os surdos têm. Então quando eu voltei, passei a
divulgar isso para todos os surdos de “X” [...] (Excerto - Entrevista Dália).
Ao mencionar essas vivências, ela se utiliza de uma metáfora muito
interessante, na qual representa essa divulgação das informações à
comunidade surda. Ao escolher a imagem de uma flor42 no inicio de sua
narrativa, a professora surda frisa que a mesma não deveria ser assoprada,
mas sim que as sementes da flor deveriam permanecer no lugar. Dando
sequência, ela começa a sinalizar sua História de vida e formação.
42
Essa flor, mais conhecida por dente de leão, embora a maioria das pessoas a desconheça, nasce amarela e somente depois de um tempo perde suas pétalas e forma-se um fruto, que é aquela flor branca. Quando assoprada, o vento incumbe-se de espalhar suas sementes. “No Nordeste é conhecida por "esperança": abre as janelas e deixa a esperança entrar na tua casa trazida pelo vento da tarde [...] Planta da família das compostas (como a serralha e muitas outras), tem inflorescências amarelo-brilhantes ou mesmo brancas. Tem um alto potencial biótico devido à facilidade com que suas sementes se disseminam: com a forma de pequenos paraquedas, são facilmente levadas pelo vento. Taraxacumofficinale é um indicador de solo fértil”. http://pt.wikipedia.org/wiki/Dente-de-le%C3%A3o
63
No Congresso Latino Americano de Educação Bilíngue para Surdos43,
vários surdos participaram e consequentemente obtiveram uma ampliação da
visão de mundo e também se manifestaram em relação a qual tipo de
educação almejavam. Esse congresso foi um marco na História dos surdos. Os
movimentos em prol da educação bilíngue foram sendo disseminados, de
forma que lutas foram travadas por surdos em suas diferentes comunidades,
modificando suas realidades.
Dália, ao participar do evento, teve uma fundamental importância na
divulgação para a comunidade surda da qual pertencia. Como ela informou,
foram apenas dois surdos de sua cidade que participaram desse evento. Por
isso, teve importância sua responsabilidade em espalhar para os surdos sobre
as aprendizagens realizadas, mostrando com isso que os surdos eram
capazes. Assim começa a divulgar à comunidade surda sobre a cultura surda e
o quanto os surdos poderiam se desenvolver e serem livres para buscar seus
sonhos, revelando seus potenciais. Essa ação foi essencial para que essa
comunidade se movimentasse.
Com essa relação, parece-me que Dália coloca a flor como uma espécie
de simbologia, representando a cultura surda. Com o pedido para que a flor
não fosse assoprada no início de sua narrativa, ela estabelece uma relação
simbólica entre a condição na qual os surdos se encontravam, sem
informações sobre o universo dos surdos e suas potencialidades (flor amarela)
e a participação no congresso, onde pôde fazer novas aprendizagens,
ampliando seu olhar para as questões referentes à cultura surda, ou seja, a
metamorfose da flor sendo representada como ampliação dessa visão. Na
ação de compartilhar essa visão com a sua comunidade, Dália simbolicamente
sopra a flor, espalhando esses saberes.
A flor escolhida ilustra também uma espécie de resistência de Dália
frente a uma História de educação que tinha se constituído dentro de um
modelo ouvinte, como se essa flor fosse a representação de uma identidade
surda que precisava ser afirmada em meio àquela situação de não
pertencimento a um grupo cultural. Sua História evidencia, entre tantos outros
43
O V Congresso Latino americano de Educação Bilíngue para Surdos aconteceu em Porto Alegre no ano de 1999, promovido pelo Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos – NUPPES/UFRGS - e Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos – FENEIS.
64
pontos interessantes, que uma identidade docente já vinha se constituindo
desde sua infância, através de vivências que possibilitaram a busca por sua
cultura e a ressignificação de suas aprendizagens.
Nesse sentido percebe-se que a sua História, desde o período de
escolarização, direcionou-se para a constituição de uma identidade de
professora surda. Suas experiências impulsionaram-na a ser professora, a
desenvolver uma pedagogia surda, a ser um modelo para os outros surdos. Em
sua última imagem ela complementa sinalizando:
Nas narrativas que Dália apresenta fica enfatizada a importância da
lingua de sinais. A comunicação com a família e com o mundo só se dá quando
se está imerso em um contexto linguístico-cultural em que ensino e a
aprendizagem se efetivem em conformidade com as especificidades dos
surdos e propiciem que esses sujeitos se eduquem significativamente. A todo o
momento sua preocupação está em que as crianças desde pequenas possam
sentir-se inseridas no mundo e se compreenderem nas suas diferenças
linguísticas e culturais.
Dessa forma finalizo a apresentação das narrativas a partir de imagens
que envolveram o primeiro encontro, abordadas nesse capitulo. Na
continuidade das análises, o próximo capitulo trará reflexões sobre as
narrativas das professoras, referentemente ao segundo encontro da pesquisa,
com base nas caixas de memória.
[...] eu escolhi essa foto, porque o meu sonho é
que todos aprendam na escola, que todos saibam
Libras. Eu sou professora de alunos surdos, eu
quero ensinar, eu quero ser um modelo de vida
para eles, quero ensinar Libras para que possam
se comunicar com a família desde pequenos,
contribuir dessa forma para que eles construam a
identidade surda, aprendam sobre a cultura surda,
para que essas coisas façam parte do processo de
aprendizagem deles (Excerto - Entrevista Dália).
5. ABRINDO A CAIXA DE MEMÓRIAS: REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE DOCENTE
Neste capítulo da dissertação, trago algumas análises com base nas
narrativas das professoras surdas através das caixas de memória,
apresentadas no segundo encontro. Com suas narrativas, elas apresentam as
representações que foram construindo sobre o ser professora. Para Hall
(1997), a representação através da linguagem é central para os processos
através dos quais é produzido o significado. Segundo o autor, damos
significado aos objetos, pessoas e eventos através da estrutura de
interpretação que trazemos, ou também através da forma como os utilizamos,
ou os integramos em nossas práticas do cotidiano. É justamente a investigação
sobre a forma como se constrói o significado que mobiliza a análise desse
autor sobre o conceito de representação. Assumindo a representação como
processo de significação das coisas, objetos e acontecimentos, é que as
análises a seguir focam nas representações das professoras sobre a
construção de suas identidades docentes: “[...] a moldagem e a remoldagem de
relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm
efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e
representadas” (HALL, 2006. p 71).
5.1 Algumas reflexões sobre a literatura infantil como construtora
de identidade docente
Nesta dissertação não tenho a intenção de
aprofundar os estudos sobre infância, mas considero
interessante trazer uma pequena contextualização
sobre esses campos de estudos, principalmente em
relação à literatura infantil, uma vez que nas
narrativas apresentadas pelas professoras
66
entrevistadas, a materialidade da literatura infantil se fez presente.
Analisando a infância do ponto de vista histórico é possível dizer que a
mesma foi sendo reconhecida ao logo dos tempos, na medida em que se
produziu a necessidade de um período de maior atenção às crianças, um olhar
mais atento para essa fase da vida entendida como aquela em que as
aprendizagens ocorrem de forma intensa. A infância passa a ser foco da
literatura e essa se constitui em artefato pedagógico importante na constituição
das identidades infantis.
Sobre literatura infantil, Silveira (2000) comenta:
A literatura infantil, como produto cultural de contornos específicos, se constituiu no mundo ocidental no momento em que o conceito de infância também se consolidou, ou seja, quando a sociedade passou a representar as crianças como seres em perspectiva, a serem formados e educados para uma posterior vida adulta (p.175).
Com a valorização dessa etapa na vida dos sujeitos, iniciou-se uma
série de produções culturais para atender as especificidades desse período.
Livros literários começaram a ser produzidos com o propósito de ensinar as
crianças, passando informações para que elas interajam com o mundo. O ato
de ensinar as crianças se consolidou ao longo dos tempos como uma prática
cultural, produtora de significados. Nesse sentido, é interessante atentarmos ao
que afirma Silveira (2011, p.192), quando diz:
Colocar a literatura infantil a serviço de objetivos de informação e formação da infância tem sido prática corrente desde o seu surgimento e se concretiza sob formas diversas, que podem ir da doutrinação evidente e sem rodeios até a concepção de determinadas ideias e concepções através das tramas imaginativas e sedutoras.
A literatura na infância é ferramenta propulsora do poder imaginário na
tessitura das leituras de mundo. Ao construir imaginariamente uma História, a
criança constrói conhecimentos que falam de si [...] (CASARIN, 2008). Ao
abordarmos essa questão, podemos pensar sobre a formação de identidades
nesse período infantil, quando as aprendizagens começam a ser desenvolvidas
efetivamente através das relações com o meio social na qual se inserem. Por
67
sabermos que as crianças encontram-se nesse período em pleno
desenvolvimento cognitivo e emocional, elas absorvem modos de ser, agir e
conviver em sociedade, de forma permanente. Podemos dizer que quando a
criança tem contato com o universo imaginário a partir da literatura infantil,
acontece uma identificação com personagens, de modo a ela apropriar-se de
elementos da História, entrando num mundo envolvente de fantasia. Isso
possibilita uma forma significativa de rememorar acontecimentos que são
ressignificados através da prática de interpretação literária. Essas Histórias
possibilitam formas de se constituírem sujeitos, com seus diferentes jeitos de
ser.
Ao abrir sua caixa de memórias, Tulipa começa a relatar algumas
experiências que vão ao encontro dessas problematizações. Em sua narrativa,
ela utiliza um livro de literatura infantil como um dos objetos que escolheu para
compor sua caixa de memórias. Vejamos, a seguir, o que ela relata, com base
nesse objeto.
Bem eu escolhi esse livro de Histórias infantis. Quando eu era pequena, minha
mãe utilizava livros de Histórias para contar para mim através da Libras. Eu
adorava essas Histórias e sempre ficava muito curiosa e atenta enquanto ela
estava contando. Sempre que as Histórias terminavam eu queria mais, mais,
muito mais! Então, após tanta insistência, minha mãe pegava outro livro de
História e contava para mim. Às vezes ela até repetia a mesma História, de tanto
que eu gostava. E quando eu continuava insistindo ela dizia: Agora tu vai ver as
Histórias sozinha, não comigo. Eu não gostava dessa forma, porque muitas
vezes eu não conseguia entender. Tinha que me esforçar muito para
compreender o que História queria dizer [...] Algumas vezes eu entendia o que a
palavra significava apenas pelo contexto da História, pois me lembrava de
quando a minha mãe havia me contado. Eu adorava essas Histórias. Eu queria
cada vez mais. Como se não bastasse minha mãe contar para mim e depois eu
também vê-las sozinha, eu começava a contar para outras crianças. (Excerto -
Entrevista Tulipa).
O interesse de Tulipa pelas Histórias infantis fica evidente nesse relato.
Com detalhes, ela descreve como era seu processo de leitura. Ao observamos
a relação estabelecida entre Tulipa e o universo literário, ela revela elementos
que envolveram sua prática de leitura, como por exemplo a importância de sua
68
mãe contar Histórias, e também o ato de contar essas mesmas Histórias a
outras crianças. Será que é possível dizer que uma identidade de professora
estava sendo forjada nesse tempo? A partir das brincadeiras, do universo
lúdico, estava sendo constituído um desejo por ensinar? “As Histórias infantis
capacitam as crianças para traduzirem as experiências que fazem parte de sua
vida, bem como exprimirem seus anseios, aprendizagens e desejos”
(CASARIN, 2008, p.133). Considerando esses questionamentos, o trecho a
seguir evidencia que Tulipa, através das Histórias infantis, foi percebendo a
necessidade de construir uma prática pedagógica voltada para as crianças
surdas. Essas percepções apontam para um fazer diferente, que foi sendo
identificado como parte da cultura surda, na medida em que ela se apropriava
desse universo literário. Isso a fez pensar sobre como sinalizaria para as
crianças no futuro. Vejamos o que ela salienta sobre isso:
[...] eu ficava imaginando de que forma eu sinalizaria para contar aquelas
Histórias, que sinais eu utilizaria. E quando eu contava, as crianças adoravam
também! Eu adorava quando minha mãe sinalizava as Histórias para mim, mas
eu sei que eu sinalizava de uma forma muito melhor quando contava para as
crianças, até porque eu sou surda. E a relação entre eu e as crianças surdas é
muito melhor para o entendimento delas, pela forma como eu sinalizo. As
Histórias foram um grande auxílio para minha vida, elas ajudaram na construção
de quem eu sou. (Excerto - Entrevista Tulipa).
O principal traço que define os surdos como grupo cultural é sua lingua
de sinais, a Libras para os surdos brasileiros. O compartilhar dessa língua, no
contato surdo-surdo, é de fundamental importância para que a interação entre
esses sujeitos culturais proporcione a construção de conhecimentos através
dos elementos que os caracterizam como um grupo diferente. Essa fluência
linguística de plena interação indica que há uma pedagogia surda envolvida
nessa ação.
Quando Tulipa comenta sobre a forma que ela sinalizava para as
crianças surdas, ali está sendo representada uma maneira de ensinar e de
produzir Histórias para surdos. A produção dessas Histórias faz com que os
surdos identifiquem-se com a forma de contação das mesmas, ou seja, assim
69
podem construir suas identidades surdas através de Histórias que são
experienciadas através de um contexto cultural de significação44.
O interessante a ser explorado dentro dessas problematizações é o fato
de que Tulipa, ao ser estimulada em seu período de infância a manter contato
com a literatura infantil, mesmo não se tratando de uma literatura voltada
especificamente para os surdos, fez com que ela percebesse, com a prática de
leitura que mantinha, uma necessidade de compartilhar com outras crianças o
universo literário de significação que envolve a cultura surda. É por isso que “a
literatura surda é significada um meio de referencia e cria uma aproximação
com a própria cultura e o aprendizado de sua primeira língua, que facilitará na
construção de sua identidade” (ROSA e KLEIN, 2011, p.94). Esse processo
formador foi significativo tanto para ela como também para as crianças para
quem ela fez as leituras, produzindo uma prática cultural de ensino naquele
contexto.
Assim, como salienta Tulipa, as Histórias foram fundamentais para a
constituição de sua identidade. Ela diz: “[...] ajudaram na construção de quem
eu sou”. Através de seu relato fica perceptível que sua identidade docente vem
sendo construída a partir da necessidade de se pensar a educação de surdos
articulada a uma concepção de uma pedagogia cultural.
As relações entre identidade surda e cultura surda estão imbricadas. Ao
falar sobre a cultura surda e suas produções, não podemos deixar de pensar
na produção e constituição das identidades surdas. A cultura surda é
socialmente construída tendo como uma das referências a contestação de uma
cultura majoritária ouvinte. Ao contestarem essa cultura ouvinte a partir de
movimentos de lutas e resistências, os surdos vão negociando suas
identidades na medida em que se colocam como sujeitos culturais diferentes
da cultura dominante. É por isso que quando falamos de cultura surda nos
referimos a tudo aquilo que diz respeito às formas pelas quais esses sujeitos
organizam suas vidas e suas maneiras de ser e estar no mundo através de
suas marcas culturais
Silva (2000, p.75), quando escreve sobre identidade e diferença, coloca
que entre elas existe uma relação de dependência. O autor comenta que
44
Sobre Literatura Surda e sua importância para as crianças surdas, ver Rosa (2010).
70
quando expressamos a identidade, de forma afirmava, acabamos escondendo
essa relação. Exemplificando, ele argumenta a questão da identidade de ser
brasileiro. Quando falo, “sou brasileiro” não preciso dizer que “não sou”
argentina, japonesa entre outras. Assim quando afirmamos que existem
identidades surdas, a diferença está posta, mesmo não sendo dita. Por isso
que identidade e diferença não podem ser separadas, uma precisa da outra
para existir.
O campo dos Estudos Culturais nos ajuda a pensar sobre a questão da
produção das diferenças culturais. Nesse sentido, é relevante pensarmos em
termos dessa produção no que diz respeito à cultura surda, ou seja, a cultura
sendo abordada como produtora de identidades em uma arena de significados.
Assim, pensarmos na cultura como espaço de produção de identidades refere-
se à: “medida em que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos
identificar” (HALL, 2006, p. 13). Ao abordar essa questão, o autor quer dizer
que as identidades não são fixadas em algum lugar, mas passam por
transformações de acordo com os discursos de verdades aos quais são
submetidas. Esses discursos de verdades movimentam e circulam a cultura,
produzindo uma rede de significados. Ainda nessa lógica, é pertinente
atentarmos para o que Stuart Hall diz:
Eu uso “identidade” para me referir ao ponto de encontro, o ponto de sutura entre, de um lado, os discursos e práticas que tentam nos “interpelar”, dirigir-se a nós ou nos aclamar como sujeitos sociais de discursos particulares, e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, processos que nos constroem como sujeitos que podem ser nomeados. Assim, identidades são pontos temporários de ligação à posições de sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. (HALL, 1997, p.26).
No caso aqui apresentado, a identidade docente de Tulipa vem sendo
constituída mediante a emergência de uma Pedagogia Cultural Surda, na qual
saberes específicos são ensinados e aprendidos de forma a constituir valores e
ideais, bem como modos de pensar e de interagir que representam o sujeito
surdo. Perlin (2011), quando comenta sobre a “Pedagogia dos surdos”
metaforiza dizendo que a mesma atua como um resgate ao cordão umbilical, e
relaciona isso ao fim da diáspora. Ainda sobre a Pedagogia surda continua
71
dizendo que: “Se mostra presente [...] suavizando o hibridismo, a mistura,
a deficiência, o estereotipo. É como se algo moldasse a imaginação,
influenciasse as ações, convergindo, reapropriando a identidade” (PERLIN,
2011, p.9). Essas colocações dizem respeito ao sentido de representar as
possibilidades de os sujeitos surdos se constituírem como povo surdo.
Outro ponto que gostaria de destacar, ainda no campo da literatura, está
relacionado com a questão do ensino e da aprendizagem do português para
surdos. Considero oportuno problematizar essa questão para entendermos
quais mecanismos possibilitam as aprendizagens através de atividades de
letramento com livros infantis. Sobre isso, outro material trazido por Tulipa foi
um “gibi”. Ela comenta:
Outra coisa que eu adorava eram os gibis [...] era muito mais fácil de entender o
contexto, pois tem o texto juntamente com o desenho. Então os gibis foram
muito importantes para a construção do meu conhecimento do Português.
Auxiliou muito para que eu aprendesse o significado das palavras através dos
contextos (Excerto - Entrevista Tulipa).
Os surdos vêm sendo narrados ao longo dos tempos como sujeitos
visuais. Essa visualidade é entendida como um marcador45 cultural. Como
elementos da cultura surda presentes nos gibis, podemos mencionar os
desenhos, as expressões dos personagens e a organização das Histórias
através de uma sequência visual, representando uma narrativa. Tulipa
continua:
Outra coisa que eu me lembro também são as Histórias em sequência, de três
ou quatro quadrinhos [...] Estas Histórias também me ajudaram a aprender
muitas coisas. Tinha uma delas que mostrava o quadro de crianças jogando
ping-pong, logo após lavavam as mãos e depois faziam a refeição. Eu entendia
facilmente. Acho que este tipo de material é muito apropriado para os surdos,
para utilizar durante as aulas a fim de que eles entendam sobre diversos
45
Marcas, s, f.: “- traço, sinal, impressão deixada por alguém ou algo; - desenho, inscrição, nome, número, selo, símbolo, carimbo, etc. que se coloca sobre um artigo para distingui-lo de outros, ou como indicação de propriedade, qualidade, categoria, origem; - traço distintivo por que se reconhece alguém ou algo; estilo ou maneira pessoal; - conjunto de características fundamentais; - expressão reveladora de sentimentos, tendências ou estado físico ou mental, impressão, efeito de uma causa qualquer sobre o espírito, sobre os sentimentos; - limite, fronteira.” (LOPES, VEIGA-NETO, 2010, p.118).
72
assuntos. Então hoje, eu como professora utilizo muito esse tipo de atividade
com meus alunos (Excerto - Entrevista Tulipa).
Essas Histórias contêm informações interpretativas que provocam a
imaginação dos leitores. Sobre isso, Canclini (2000, p.339) pontua:
Poderíamos lembrar que as Histórias em quadrinhos, ao gerar novas ordens e técnicas narrativas, mediante a combinação original de tempo e imagens em um relato de quadros descontínuos, contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo que pode ser condensado em imagens estáticas.
As Histórias em quadrinhos são consideradas como o gênero literário
que articula as imagens com as palavras, representadas através de
simbologias que tornam a leitura bem mais sedutora e significativa. “[...] a
demanda da sociedade, por sua vez, pressiona a educação formal a modificar
ou criar novos conceitos ou denominações para a pedagogia visual”
(CAMPELL0, 2007, p.113). Na educação de surdos, dentro de uma pedagogia
visual, é muito importante que os professores se utilizem dessas estratégias
em sua prática.
Strobel (2009, p.40) refere-se à experiência visual como um marcador
cultural a ser considerado, pois é com ela que os surdos “percebem o mundo
de maneira diferente, a qual provoca as reflexões de suas subjetividades: De
onde viemos? O que somos? Para onde queremos ir? Qual é a nossa
identidade?”. Nesse sentido, para que o surdo tenha o entendimento de quem
ele é, precisa se perceber como sujeito que partilha de experiências visuais, as
quais estão ligadas a formas de ver e interpretar o mundo dentro de
singularidades específicas relacionadas à língua e à cultura.
Como essas leituras foram importantes para sua aprendizagem quando
criança, hoje, no cotidiano de suas práticas educativas e no exercício docente,
Tulipa ressignifica essas aprendizagens no desenvolver de uma Pedagogia
surda.
Neste trabalho é interessante analisarmos a questão da aprendizagem
dos surdos e o estímulo ao raciocínio lógico por meio de atividades lúdicas
73
como a utilização de jogos. Tulipa narra a possibilidade do uso de jogos como
objetos que favorecem a aprendizagem.
Outro objeto que eu trouxe foi o dominó. Eu adorava jogar com a minha família e
também com crianças da vizinhança. Eu gostava tanto de jogar que estranhava
por que na escola não tinha este tipo de jogo. Eu adorava porque estimulava o
meu raciocínio. Eu gostava de completar as peças rapidamente. Eu acho muito
importante esse tipo de jogo na escola também [...] Outro jogo que eu me lembro
e gostava muito também é o jogo dos antônimos. Era preciso encontrar os pares:
magro, gordo etc. Eu gostava muito desse jogo e também do jogo da memória. E
o fato de não fazer esse tipo de jogos na escola me intrigava, pois eu sempre
queria mais, sempre achei que isso tinha que acontecer mais vezes na escola
também. Então eu prometia: No dia em que eu for professora, vou utilizar muito
esses jogos, pois eles me ajudavam muito a ficar ativa, mais esperta. Os surdos
geralmente apresentam mais dificuldade para perceber determinadas coisas. Por
exemplo, pergunta o antônimo de gordo. Depois de um longo tempo é que ele
vai responder magro. Por isso eu acho fundamental esse tipo de jogos para os
surdos para que possam ficar mais espertos, desenvolver o raciocínio. É
histórica a questão de os surdos não terem informações de mundo, mas esses
jogos e essas Histórias também podem servir para adquirir conhecimentos,
informações. Outro jogo que eu adorava quando criança era o quebra-cabeça. E
sobre eles eu pensava da mesma forma, que a escola poderia aproveitar muito
mais esses tipos de atividade (Excerto - Entrevista Tulipa).
Podemos observar que o brincar é uma atividade cotidiana na vida das
crianças. Através da brincadeira a criança desenvolve estratégias para resolver
problemas e também estimula o raciocínio, favorecendo a aprendizagem. No
caso das crianças surdas, por terem em sua cultura elementos visuais
característicos, elas necessitam de participação em diferentes atividades
lúdicas, que vão sendo desenvolvidas através de uma perspectiva da
percepção visual do mundo. Para os alunos surdos, a motivação deve partir de
suas experiências visuais, artefato cultural das comunidades surdas, o que vem
a constituir, segundo Strobel (2009), a base da Pedagogia Visual.
A dinâmica que implica os jogos desencadeia ações como:
comunicação, expressão, desafio, imaginação atenção e concentração entre
outras, desenvolvendo habilidades nas suas variadas formas. Nesse sentido,
os jogos podem ser entendidos como instrumentos na criação de estratégias
74
do fazer docente. Essas estratégias tornam o processo de aprendizagem mais
interessante e significativo, pois os alunos, através das brincadeiras,
conseguem aprender sobre sua cultura.
Baseados em referências sociológicas, estudos na contemporaneidade
vêm analisando a função do brincar como um fenômeno cultural. De acordo
com o sociólogo Gilles Brougère (1995, p. 61) “o círculo humano e o ambiente
formado pelos objetos contribuem para a socialização da criança e isso através
das múltiplas interações, dentre as quais algumas tomam a forma de
brincadeira”. A cultura pode ser entendida como algo que é aprendido através
do brincar, na fase da infância. O ato de brincar proporciona um confronto entre
a criação e o mundo que a circunda, a brincadeira funciona como uma espécie
de mecanismo que vai fazer com que a criança se aproprie de saberes e
práticas sociais. As questões referentes ao uso de jogos como estratégia
didática na educação de surdos apresentam benefícios nos processos de
formação desses sujeitos.
Segundo Brougère (1997), o brincar exige uma aprendizagem; sendo
assim, o professor terá o papel fundamental de inserir a criança na brincadeira,
criando espaços, oportunidades e interagindo com ela. Assim, consideramos
que a prática pedagógica aliada ao uso de jogos é uma ferramenta na
formação de aprendizagens e deve ser explorada na educação de surdos.
Entre os objetos que compuseram a caixa de Tulipa, foram também
selecionados por ela alguns livros didáticos. Para justificar a escolha desses
materiais, ela referiu-se a suas vivências de aprendizagem.
Na minha casa sempre tinham muitos livros didáticos porque minha mãe era
professora. Minha mãe sempre me dizia que aqueles livros não eram somente
para uso dela, mas que eu poderia utilizá-los também para aprender. Então eu
adorava ver os livros dela, principalmente os de Ciências. Eu adorava! Eram
livros muito ricamente ilustrados, que chamavam a minha atenção, me
ensinavam coisas. Aprendi muito sobre a vida dos animais, sobre as plantas,
sobre diversos assuntos. Foi um grande aprendizado. Eu pensava: os surdos
precisam saber disso também [...] Então eu sempre prometia para mim mesma,
que quando eu fosse professora, eu utilizaria esses livros para ensinar muitas
coisas às crianças surdas (Excerto entrevista Tulipa).
75
O contato que Tulipa teve com diferentes livros didáticos está
particularmente relacionado ao fato de sua mãe ser professora. Como ela bem
enfatiza no trecho acima, sua mãe a estimulava a usar os livros didáticos como
um recurso que favorecia as aprendizagens. A referência de sua mãe como
professora e as relações que ela estabelecia com os livros didáticos foram
presenciados por Tulipa, que ao ver essa relação, se apropriava desses
recursos.
Um dos pontos importantes que merece ser analisado é a
ressignificação que Tulipa faz na utilização desses livros, criando estratégias
que estão relacionadas à forma pela qual os surdos aprendem. Ela enfatiza
que gostava muito das imagens contidas nos livros e isso seria uma estratégia
que ela usaria no futuro, quando professora, ou seja, a visualidade se
reafirmando como marca cultural surda. Nessa lógica, a cultura surda vai sendo
significada cotidianamente, na medida em que vai produzindo identidades.
Essas identidades criam-se através do compartilhamento de experiências
visuais.
Nesse contexto, falar de identidade é falar de produção de cultura. A
identidade de professora surda, de acordo com a História de Tulipa, foi
produzida através das peculiaridades e necessidades de aprendizagem que
iam surgindo no decorrer de sua História de vida, ligadas ao pertencimento ao
povo surdo. O povo surdo tem uma cultura46 que possibilita a construção de
identidades próprias, que se inserem no contexto de práticas pelas quais esses
sujeitos significam e produzem tal cultura. É através dela que os surdos
buscam suas diferentes identidades e buscam significar as práticas vivenciadas
ao longo da vida, criando suas Histórias de vida, e produzindo cultura. Segundo
Canclini:
46
STROBEL (2009) apresenta oito artefatos culturais do povo surdo, que podem caracterizar a cultura surda, constituindo-os como sujeitos e construindo suas formas de olhar e se relacionar com o mundo. Seguem eles: a experiência visual, que constitui os surdos como indivíduos que percebem o mundo através de seus olhos; o linguístico que se refere à criação, utilização e difusão das línguas de sinais; o familiar que abrange a questão do nascimento de crianças surdas em lares ouvintes e de crianças ouvintes em famílias de surdos, sendo que na maioria dos casos, as crianças surdas são uma dádiva para famílias surdas e uma lástima para famílias ouvintes. A literatura surda que abrange criações, tais como poesia em lingua de sinais e livros publicados por autores surdos. As artes visuais que são consideradas os artefatos em que se localizam as artes plásticas e o teatro surdo. Existem ainda os artefatos compostos pela vida social e esportiva e o artefato político, destacado pelos lideres surdos, e as lutas sociais através de organizações e associações. Por último, a autora aponta as criações e transformações materiais, tais como telefones adaptados e campainhas luminosas, entre outras tecnologias criadas para melhorar as condições de acessibilidade.
76
Pode-se afirmar que a cultura abarca o conjunto dos processos sociais de significação ou, de um modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social (CANCLINI, 2007, p.41).
Para melhor compreendermos a produção desses significados culturais,
é interessante comentar sobre as marcas surdas, que definem esses sujeitos.
Lopes e Veiga-Neto (2010) comentam que a lingua de sinais, a arte
surda, teatro surdo, a poesia surda, a luta dos surdos, a necessidade de
compartilhar experiências com seus iguais e a experiência do olhar, tudo isso
pode ser entendido como marcadores que permitem falar sobre as identidades
surdas, baseadas em um jeito surdo de ser e se constituir sujeito. Strobel
conceitua a cultura como sendo:
[...] o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-o com suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas. [...] Isso significa que abrange a língua, as idéias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo. (STROBEL, 2009, p. 27).
Os livros didáticos que foram citados por Tulipa no último excerto
tiveram uma importância significativa para as aprendizagens em sua infância.
Ao relembrar esses recursos didáticos, ela comenta que já naquele tempo,
intencionava utilizar esse tipo de recurso em sua prática, quando professora.
Tulipa também comenta sobre o livro didático de português. A questão do
português vem sendo narrado neste trabalho de forma reincidente, isso mostra
o quanto esse tema foi importante no processo de formação de Tulipa e das
demais professoras no que diz respeito ao letramento, como vimos até aqui.
Nesse sentido é possível dizer, a partir das narrativas de Tulipa, que há uma
produção cultural acontecendo através de práticas de ressignificação que
direcionam para a constituição de uma identidade de professora. No trecho a
seguir ela comenta sobre a questão do português em seu processo de
aprendizagem.
Eu trouxe também um livro didático de Português. Sempre preferi o de Ciências,
mas sabia que também precisava aprender o Português, pois eu tinha muito
problema com ele. Então eu utilizava esse livro para aprender mais palavras do
Português. E sempre pensava que um dia eu utilizaria isso com as crianças
77
surdas. Apesar de ser um livro voltado especificamente para os ouvintes, eu
utilizo para adaptar ao ensino das crianças surdas, recortando as imagens,
colando, tirando algumas coisas desnecessárias. Então eu uso estratégias para
aproveitar esses livros didáticos voltados para os alunos surdos. (Excerto -
Entrevista Tulipa)
A linguagem escrita da língua portuguesa para surdos tem gerado
diversos estudos, com embasamento em perspectivas teóricas que envolvem
os Estudos Surdos e linguísticos. Pode-se dizer que em sua grande maioria, os
sujeitos surdos encontram dificuldades na utilização do português. Ao longo
dos tempos se pensou que os surdos não conseguiam aprender o português
devido à falta de audição. Por não ouvirem, as práticas de leitura e escrita eram
prejudicadas de modo a propiciar, consequentemente, erros de leitura e escrita.
Com os estudos atuais47, nos quais baseio este trabalho, começou-se a
entender o processo linguístico do surdo pelo viés do bilinguismo. O
bilinguismo48 se fundamenta, predominantemente, no ensino da lingua de
sinais como primeira língua para os surdos. Com a aquisição dessa primeira
língua os surdos passam a aprender a leitura escrita do português como sendo
sua segunda língua. O processo de aquisição da L149 deve ser desenvolvido a
partir de um contato direto com outros surdos usuários da lingua de sinais.
Quando eu era pequena, eu sonhava muito com as coisas que eu faria como
professora. Mas na prática é um pouco diferente. Algumas coisas que faziam
parte do meu sonho eu consegui aproveitar, como por exemplo, os jogos. A
questão do Português é muito complicada, muito difícil. Mas ainda não desisti.
Estou lutando para ver se consigo desenvolver algo melhor para o Português,
47
Entre alguns autores que vêm demarcando as discussões nesse campo, podemos citar, entre outros: Skliar (2009); Lodi e Lacerda (2009). A educação bilíngue tornou-se pauta nas discussões dos movimentos surdos junto ao Ministério da Educação desde o ano de 2011, quando várias manifestações vêm se organizando, sendo que a Federação Nacional de Educação e Inclusão dos Surdos – FENEIS - organiza uma manifestação para abril de 2012, em Brasília, para comemorar os 10 anos da oficialização da Libras, bem como entregar à presidenta Dilma Rousseff um documento sobre a proposta dos surdos para a Educação Bilíngue. 48
De forma geral, por bilinguismo entendemos a situação em que coexistem línguas de modalidades diferentes (LIBRAS e Língua Portuguesa, no caso do Brasil) como meio de comunicação num determinado espaço social, ou seja, um estado situacionalmente compartilhado de uso dessas duas línguas. A condição de bilíngue se modifica na trajetória de vida de pessoas surdas e assume diferentes contornos em relação ao domínio e à variação de uso de ambas as línguas. (KARNOPP, 2005, p.229). 49
Essa sigla é usada para identificar a lingua de sinais como sendo a primeira a ser adquirida pelas pessoas surdas.
78
talvez a criação de alguma estratégia ou a adaptação de material no qual eu
possa ensinar melhor o Português para meus alunos. Atualmente eu percebo
que é mais importante eles entenderem o contexto e depois introduzir o
Português (Excerto - Entrevista Tulipa).
Tulipa apresenta no trecho acima que as praticas de professores
precisam estar sempre sendo adaptadas na busca por estratégias de ensino
que facilitem a compreensão do português. Por isso, os aperfeiçoamentos de
novos métodos de aprendizagem vêm sendo pensados por ela no cotidiano de
suas aulas. O letramento e o ensino do português são temas que preocupam
professores e pesquisadores na educação de surdos. Isso é evidenciado na
quantidade de trabalhos sobre esse assunto apresentados em eventos ou em
publicações. É interessante perceber que essa não é uma preocupação
somente dos professores ouvintes procurando inserir os surdos na língua
majoritária, mas também dos professores surdos, que entendem o acesso a
essa língua como uma estratégia de empoderamento frente aos desafios de
inserção social.
5.2 Literatura surda, cultura visual: significando sua prática.
Dando início a sua narrativa, a professora
Lírio, ao abrir a sua caixa de memórias, pega
um livro de literatura surda. Com base nesse
livro50 ela faz algumas colocações que
merecem ser destacadas.
Trouxe este livro de Histórias que é muito legal, é em Libras. Antigamente não
tínhamos o privilégio de ter a literatura surda, as Histórias diretamente em Libras.
Hoje elas existem. Como era difícil antigamente para termos acesso a Histórias,
gibis, livros de Histórias. Eram voltados apenas para os ouvintes. Agora é
50
“Um mistério a resolver: o mundo das bocas mexedeiras”. A História mostra, com sensibilidade e clareza, às crianças e adultos surdos e ouvintes como a descoberta da surdez e a prática da lingua de sinais representa um passo fundamental para a inclusão do surdo no mundo que o cerca. A imagem do livro de literatura infantil encontra-se em anexo, ao final desta dissertação.
79
importantíssimo para os surdos ter essas Histórias, pois é um canal de
informação para eles. São Histórias que são facilmente entendidas pelas
crianças surdas (excerto da entrevista de Lírio).
Assim como Tulipa, Lírio também traz em suas memórias a importância
da literatura surda em sua formação. Partindo do contexto histórico da literatura
surda, sabe-se que ela já existe há muito tempo. São vários os surdos que há
muitas décadas têm contribuído com suas obras51 para o enriquecimento da
cultura surda. As diferentes Histórias que circulam representam as marcas
culturais dessas pessoas, privilegiando a lingua de sinais e a experiência
visual. Essas Histórias literárias vêm sendo produzidas e passadas à
comunidade surda no compartilhar de pais e filhos, como também na relação
estabelecida entre professores e alunos surdos nas escolas, associações e
espaços de lazer. Contudo, os estudos referentes à literatura surda e sua
produção têm se destacado no cenário investigativo recentemente52.
Esses estudos começaram a ser desenvolvidos a partir do
reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais (Libras), que por sua vez foi
sendo explorada através da literatura voltada aos surdos, tanto em matérias
digitais, como também em livros impressos53 que contemplam enredos que se
fundamentam na cultura surda. Assim a literatura é entendida como sendo uma
ferramenta na construção de identidades. Rosa e Klein (2011, p.94), nesse
sentido, contribuem dizendo:
A literatura surda constitui-se das Histórias que tem a Libras, a questão da identidade e da cultura surda presente nas narrativas. Mas porque precisamos de uma literatura surda? Muitos surdos não conhecem sua própria língua. Ao conhecer a Libras, estranham saber que existe uma cultura surda. A cultura surda auxilia no conhecimento da língua e cultura para os surdos que ainda não tem acesso a elas. Para as crianças surdas, a literatura surda é um meio de referencia e também
51
Refiro-me principalmente àquelas produções culturais surdas que vêm sendo produzidas ao longo dos tempos nas comunidades surdas, como por exemplo, o teatro, a contação de Histórias e as piadas, entre outras produções. 52
Nessa perspectiva podemos citar pesquisas de Lodenir Karnopp, Fabiano Souto Rosa e
Claudio Mourão, entre outros. 53
Esses materiais vêm sendo catalogados e analisados na pesquisa “Produção, circulação e
consumo da cultura surda brasileira. Essa pesquisa já foi mencionada anteriormente.
80
cria uma aproximação com a própria cultura e o aprendizado da sua primeira língua, que facilitará na construção de sua identidade.
Há algum tempo os surdos não conseguiam encontrar matérias desse
gênero. Dessa forma, tinham como referência as obras voltadas para um
público em geral, não atendendo as suas especificidades. A leitura na língua
escrita, sem a representação do visual, tornava-se muitas vezes chata, o
entendimento não era claro e não tinha um significado contextual. Por isso Lírio
segue afirmando:
Ao ver este livro agora, consegui entender algumas coisas que antes não era
possível. Quando eu queria saber algo de alguma História, tinha que pedir
auxílio a alguém para compreender o que estava sendo narrado. Às vezes as
pessoas não tinham paciência para tantas perguntas que eu fazia. Então eu me
restringia a saber apenas o que as imagens me transmitiam (excerto - Entrevista
Lírio).
Em sua História de formação, Lírio teve dificuldades em relação a essa
apropriação do mundo da literatura. As aprendizagens não aconteciam
facilmente, por isso ela necessitava de um apoio na realização das leituras,
para que assim conseguisse entender as informações. Como ela diz, realizava
uma série de perguntas que objetivavam à compreensão sobre o que estava
sendo abordado no texto, que ia sendo desvelado com o auxilio de outra
pessoa. Como essas vivências foram marcando sua trajetória de formação e a
relação que ela manteve com o mundo literário e com o aprendizado? Como
que isso pode ter despertado nela o interesse pela busca de uma pedagogia
voltada para sua cultura, com todas as peculiaridades que a envolvem?
A partir dessas problematizações, podemos pensar que o docente surdo
vê a necessidade de ter os elementos da sua cultura sendo contemplados, no
sentido de ampliar as perspectivas de aprendizado dos seus alunos surdos. As
formas de aprender às quais Lírio foi submetida não condiziam com sua
necessidade de dar significado completo às experiências de aprendizado ao
longo de sua formação.
Ao trazer a materialidade de um livro de literatura surda e apontar em
seus relatos a falta que o mesmo fez em sua trajetória de formação, Lírio
apresenta a literatura como um dos elementos culturais que ela, como
81
professora surda, entende ser necessário como ferramenta na formação de
seus alunos surdos
É importante considerarmos que o livro é um elemento necessário para
que as pessoas aprendam sobre a vida e tenham informações sobre o mundo.
No caso especifico dos surdos, como já salientamos no decorrer das análises,
a experiência visual é a forma pela qual eles significam suas aprendizagens.
Assim, a literatura é entendida como sendo uma ferramenta na construção de
identidades.
Ao encontro das problematizações que fizemos acima, Lírio ainda faz a
seguinte colocação:
Hoje é diferente, as crianças surdas têm acesso a Histórias sinalizadas. Se
qualquer criança pegar esse livro, vai conseguir entender sozinha o que significa,
pois não há barreiras para seu entendimento como era anteriormente. Ela tanto
pode utilizar o dvd quanto observar as imagens (excerto - Entrevista Lírio).
Direcionando um olhar analítico para mais um objeto54 que compôs a
caixa de memórias, é interessante nos atermos a um tipo de material
direcionado às pessoas ouvintes que Lírio conseguiu ressignificar a partir da
identificação de um artefato de sua cultura.
É um livro55 feito por ouvintes, mas eu gostava muito de observar as cores. Não
entendia as palavras que estavam escritas, mas gostava muito das cores.
Através das imagens eu conseguia entender o contexto da História, não
precisava pedir auxilio para ninguém. Mesmo não sendo para surdos, era uma
História bem visual, a exemplo do que já temos disponível para os surdos hoje.
Então esse livro foi muito importante para mim por causa do seu belo visual
(excerto - Entrevista Lírio).
Esse excerto enfatiza uma questão importante: mesmo não se tratando
de uma produção voltada para surdos, como as que são vinculadas
atualmente, foi possível encontrar nesse livro elementos que despertaram o
interesse de Lírio. Mais uma vez, a experiência visual ganha destaque. 54
Imagem do livro “Mexa-se” encontra-se em anexo, ao final desta dissertação 55
Nesse livro as ilustrações se mexem como se fosse um filme. Você pode ver vários animais
em ação, como o pinguim andando, o sapo pulando, o porco correndo, a cobra rastejando, o
beija-flor voando e o golfinho saltando. Na realização desse livro foi utilizada uma técnica
chamada scanimation, de RufusButlerSeder pela Editora Sextante Parece até mágica. É só
mexer as páginas para ver tudo ganhar movimento por trás do plástico.
82
Podemos dizer que o pensamento dos surdos se articula através dessa
visualidade, tendo a visão como canal sensorial pelo qual se comunica e
significa o mundo a sua volta. Assim, os surdos conseguem construir seus
conhecimentos, superar limitações, criando possibilidades de aprender que
condizem com sua especificidade.
A lingua de sinais, por estar localizada dentro da modalidade visual-
gestual, é responsável pelo desenvolvimento cognitivo e emocional dos surdos.
Assim, através dos processos visuais, os surdos conseguem estruturar as
imagens com a lingua de sinais, possibilitando a comunicação e também a
apropriação de conhecimentos, conceitos e aprendizagens. Perlin e Miranda
(2003, p.218) comentam:
Experiência visual significa a utilização da visão, em (substituição total à audição), como meio de comunicação. Desta experiência visual surge a cultura surda representada pela lingua de sinais, pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo [...].
Pensemos então a visualidade sendo explorada em termos de uso
pedagógico. Na educação de surdos é necessário ter referências de
professores surdos que possibilitem o acesso do aluno a estratégias visuais de
leitura e de escrita. Essas estratégias ganham significado quando esses
professores dão sentido às mesmas, ou seja, quando esses profissionais criam
essas estratégias com ênfase nos aspectos que revisam as lembranças de
suas experiências. Por consequência, vai se constituindo uma prática
pedagógica em conformidade com as necessidades e peculiaridades do ser
surdo.
No decorrer de sua narrativa, Lírio menciona sobre o uso de um recurso
didático relevante a ser utilizado com os surdos. Com seus relatos percebe-se
que em sua formação ela não teve acesso a esses recursos. Por isso em sua
prática vem utilizando tal material de apoio.
Trouxe algo que gosto muito, que é meu baralho das configurações de mãos. É
um material muito fácil de utilizar, que antigamente não existia. Não tínhamos
nada de material de apoio, mas hoje já existem. [...] São cartas, jogos, dvd’s
sinalizados e livros, entre outros. Muitas coisas que antigamente não existiam,
até porque era a época da obrigatoriedade do oralismo e da escrita. Os
professores utilizavam apenas o quadro e o giz. Só isso! Não havia nem
83
imagens para apoiar o nosso aprendizado. As únicas coisas expostas nas
paredes eram as sílabas, como: fa-la-le, etc. (excerto - Entrevista de Lírio).
Muitos são os autores que com seus estudos reforçam, a partir da
experiência visual dos surdos, a necessidade de existirem práticas de
letramento que contemplem atividades estratégicas no processo educativo.
Contudo, ainda não se conhece de forma mais abrangente essas práticas
pedagógicas que vêm sendo produzidas no cenário sócio-educativo-cultural
dos surdos.
Com as narrativas de Lírio percebe-se que ela, ao dizer sobre si, retoma
os caminhos percorridos em sua formação, atribuindo às experiências novos
significados que, ao encontro de suas práticas atuais, reafirmam sua identidade
de professora. Assim, essa identidade continua sendo constituída. Tudo que
ela narrou naquela oportunidade possibilita um olhar para o seu processo e,
nessa ação, retomar sua historia continua criando essa identidade.
Lopes e Veiga-Neto (2010) nos ajuda a pensar a identidade surda e a
necessidade de defini-la, trazendo Bauman, que expressa a seguinte ideia:
Nós não sabemos quem somos e muito menos sabemos o que podemos nos tornar e o que ainda podemos aprender que somos. O impulso de saber e/ou tornar-nos o que somos nunca se aquieta, assim como nunca se desfaz a suspeita sobre o que ainda podemos nos tornar se nos guiarmos por esse impulso. (BAUMAN, 2006, p.17 apud, LOPES e VEIGA-NETO, 2010 p.127).
O professor surdo não é constituído somente de um jeito. Eles não são
constituídos por uma única identidade fixa, mas sim são sujeitos que estão
submetidos a uma ordem de acontecimentos culturais no meio da qual se
inserem mediante as lutas pelo seu reconhecimento político-identitário. Por isso
é possível problematizar que as identidades de professores surdos vêm sendo
constituídas e transformadas constantemente a partir das práticas culturais que
eles vivenciam, afirmando e reafirmando a cultura surda nas práticas sociais.
5.3 Construindo a identidade de professora: ressignificando a
prática pedagógica
84
Para Perlin (2004, p. 81), a pedagogia surda
“assume o jeito surdo de ensinar, de propor o jeito
surdo de aprender, experiência vivida por aqueles
que são surdos”.
No decorrer desta dissertação, conhecemos
um pouco sobre a trajetória de vida de Dália. Sua
História foi marcada por experiências de oralização.
Essas vivências influenciaram sua caminhada de formação,
fazendo com que buscasse a docência como profissão. Na tentativa de olhar
analiticamente para esse processo, é interessante pensarmos a prática
docente como sendo produtora de identidades. pois em suas narrativas
evidenciaram-se as práticas que vêm sendo desenvolvidas por Dália junto aos
seus alunos surdos.
A pedagogia dos surdos é uma pedagogia que se difere de outras. Na
perspectiva da identidade e da diferença é que se localiza a Educação dos
Surdos. Ao longo da História dos surdos foram ignoradas suas diferenças e sua
cultura foi desvalorizada. Essa desvalorização representou-se na forma de
educação na qual os surdos tiveram que se sujeitar a uma formação com base
no oralismo. Sobre isso Dália diz:
Eu cresci oralizando, não havia a Libras. A cada série que eu estudava, repetia
dois anos, para que eu memorizasse melhor o Português. Por isso então eu
trouxe uma caixa56 cheia de vocabulários. São diversas palavras. Antes foi muito
sofrimento a questão da oralização, do treino vocal, era muito chato (excerto -
Entrevista Dália)
Atualmente outras narrativas têm tido destaque no campo da educação
e vêm possibilitando aos surdos se constituírem a partir de uma experiência
cultural que condiz com suas necessidades de aprendizagem, de comunicação
e de convívio social. Com as línguas de sinais a comunicação acontece de
forma efetiva entre os surdos e os usuários dessas línguas, possibilitando uma
inserção em sua cultura e a construção de subjetividades.
56
A imagem do material encontra-se em anexo, ao final desta dissertação.
85
Entendemos que cultura e educação em geral estão envolvidas em
processos de transformação da identidade e da subjetividade. “[...] ao mesmo
tempo em que a cultura em geral é vista como uma pedagogia, a pedagogia é
vista como uma forma cultural: o cultural torna-se pedagógico e o pedagógico
torna-se cultural” (SILVA, 1999, p.139).
O desafio na construção de uma pedagogia surda tem como enfoque a
questão das representações sobre os surdos e suas identidades, considerando
as narrativas do povo surdo como uma ferramenta reconstrutora que possibilita
o surgimento de uma pedagogia surda, que faz com que as representações da
surdez sejam transformadas na medida em que os próprios surdos narrem sua
História educacional e suas práticas docentes.
Atualmente eu não obrigo que meus alunos tenham esse tipo de aprendizado.
Eu priorizo a Libras e faço isso através de muito visual. Eu coloco diversas
imagens na minha sala de aula com a palavra correspondente. Desta forma elas
podem aprender o sinal no contexto, bem como o significado. Eu não exijo que
elas memorizem as palavras, que internalizem aquilo, não! Por exemplo, elas
fazem o sinal de bola e eu obrigo a fazer a datilologia da palavra. Não, não é
assim que acontece. Antigamente era assim, mas agora eu os deixo mais livres.
E desta forma eu percebo que é melhor para a vida deles do que foi para a
minha. Agora que eu sou formada, posso oferecer algo melhor para eles.
Quando eu estudava, adorava matemática. Português era diferente, pois éramos
obrigados a memorizar o ba-be-bi-bo-bu. Era diariamente a mesma coisa [...]
(excerto - Entrevista Dália).
Quando nos atemos a olhar para trajetória de Dália, surgem alguns
questionamentos, como o significado de suas experiências na construção de
sua identidade docente ou ainda como essas vivências vêm sendo
resignificadas cotidianamente no exercício da docência.
Dália, ao ensinar seus alunos, revela-nos algumas estratégias que
fazem parte do seu cotidiano na sala de aula. Nesse sentido, cabe
destacarmos um pouco dessas práticas, que podem ser consideradas como
parte de uma Pedagogia Cultural Surda.
86
Para isso é interessante nos apoiamos no conceito de Ladd e Gonçalves
(2011) sobre holismo57 cultural. Esse conceito se fundamenta a partir do
entendimento de que as crianças surdas são seres completos e não
deficientes, que podem se desenvolver de forma plena tanto afetivamente,
como social e academicamente, se suas bases educacionais estiverem
estruturadas na língua e na cultura surda. Assim, os educadores surdos terão
como utilizar em sala de aula perspectivas culturais holísticas, e assim
sustentarem sua pedagogia. Ainda, complementando esse conceito:
Ao ingressar em escolas surdas como educadores, esses surdos adultos possuem, portanto, uma noção ampla dos caminhos e destinos das crianças: de onde elas “vêm”, aonde elas precisam “chegar”, e o que tem de ser feito para que elas desenvolvam seu potencial. Com sua experiência como membros de uma minoria bastante mal compreendida, e com experiências do que havia ou não funcionado em sua própria educação, esses educadores podem analisar a si mesmos e elaborar estratégias para reduzir as experiências negativas pelas quais seus alunos surdos passarão no futuro. Eles também conseguem munir as crianças de habilidades que as ajudam a superar ou conviver com experiências negativas que não podem ser evitadas (LADD, e GONÇALVES 2011, p.304).
Na medida em que entendemos o percurso de formação de Dália,
marcado por experiências que não privilegiavam sua cultura, podemos analisar
seu depoimento em relação às atividades que vem desempenhando com seus
alunos. Um pensar pedagógico encontra-se em constante movimento, e esse
pensar gera novas práticas na produção de uma Pedagogia surda.
Quando ingressei no magistério e conheci a disciplina de Didática, percebi
quantas atividades e recursos diferentes existem e que minhas professoras
nunca utilizaram comigo. Era só a obrigatoriedade das palavras e da oralização.
Não existia nada de lúdico. Era um ensino muito tradicional. Por isso que meu
aprendizado era sempre tardio. Mas no magistério eu aprendi muitos auxílios
didáticos voltados para o lúdico, que agregados à prática podem ter um
resultado muito positivo. O magistério me trouxe muitas ideias e a partir dele
57Holismo, no dicionário (Michaelis) significa: “Compreensão da realidade em totalidades
integradas onde cada elemento de um campo considerado reflete e contém todas as dimensões do campo (…), evidenciando que a parte está no todo, assim como o todo está na parte, numa inter-relação constante, dinâmica e paradoxal“.
87
comecei a ter muitas outras, pois eram atividades especificamente para ouvintes,
mas na minha mente eu prontamente fazia uma adaptação para alunos surdos.
Por exemplo, eu trouxe o dado das configurações de mãos. Com ele pode-se
criar diferentes jogos (excerto - Entrevista Dália).
O magistério foi destacado por Dália como muito importante em sua
formação. Por meio dele iniciou-se um processo de pensar a sua prática
atrelada a atividades mais lúdicas. Quando ela identifica essa necessidade, ao
mesmo tempo inicia-se o processo de significação. Como em sua História de
formação ela não teve acesso a essas atividades, buscou desenvolver essas
noções em sua prática pedagógica.
A criação dessas estratégias de ensino, a partir de adaptações para a
educação de seus alunos surdos, nos faz pensar sobre a produção de cultura.
Entendendo a cultura como campo onde a significação social acontece,
pensemos na constituição de identidades docentes na medida em que as
produções culturais de alunos e professores surdos ocorrem de forma
intensaquando são abordadas em um contexto cultural de significação. Para
Silva (1999, p.133):
[...] A cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferentes de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. A cultura é, nesta concepção, um campo contestado de significação. O que está centralmente envolvido nesse jogo é a definição da identidade cultural e social dos diferentes grupos.
Com base no conceito de cultura aqui evidenciado, podemos pensar que
é a partir da identificação cultural que o surdo percebe seu mundo e faz
escolhas. O foco centra-se em o sujeito surdo apropriar-se de fatores sociais
de expressão de sua cultura a partir de seu universo. Parece-nos que Dália
vem organizando suas práticas de ensino e contribuindo para que isso
aconteça. Nessa lógica, ela não só proporciona a seus alunos essas
identificações, mas essas experiências vão sendo vivenciadas por ela, na
medida em que vai se apropriando de estratégias, estabelecendo significados e
produzindo cultura. A identidade e a docência vêm sendo construídas a partir
da necessidade de uma Pedagogia surda, envolvendo um jeito de ensinar.
Sobre esse jeito surdo, vejamos algumas estratégias ressignificadas por Dália:
88
Trouxe o meu baralho das configurações de mãos. É baseado nas configurações
de mãos, como o dado, mas diferente. O aluno escolhe três cartas e precisam
criar um contexto a partir delas. Eles adoram! Quando faço essa brincadeira eles
me enchem de beijos. É uma atividade fundamental, pois estimula muito o
aprendizado dos alunos (excerto - Entrevista Dália).
E ainda:
Para os alunos surdos os verbos são muito difíceis. Então eu trouxe aqui este
saquinho que contêm diversos verbos, mas não em forma de palavras, pois para
eles não adianta, mas a ação em si, para que eles saibam o significado. Então
com os verbos vamos construindo os contextos. O verbo ‘precisar, eu preciso de
dinheiro. O verbo ‘gostar’, eu gosto de ter amigos. O verbo ‘comer’ etc. Então eu
escrevo o verbo ‘comer’ e a partir dele surgem diversas possibilidades para
complementar esse verbo, por exemplo: picolé, arroz, pão etc. Os alunos ficam
espantados com a infinidade de possibilidades com cada verbo. Com isso eles
entendem o significado do verbo. Dessa forma os alunos vão entendendo,
criando e ampliando os conhecimentos (excerto - Entrevista Dália).
Pensemos nessas práticas pedagógicas propostas por Dália, no sentido
de produção cultural. Canclini (2007, p.41) ao conceituar cultura diz que “a
cultura apresenta-se como processos sociais, e parte da dificuldade de falar
dela deriva do fato de que se produz, circula e se consome na História social”.
Esses recursos que vêm sendo utilizados em suas aulas evidenciam que uma
prática pedagógica surda vem sendo significada, através de materiais
reapropriados social e culturalmente. Ao pensar em estratégias de ensino no
seu cotidiano de professora, Dália traz esses saberes para o contexto atual e
produz novos sentidos para as aprendizagens, que ao serem colocadas em
prática criam um jeito de ensinar condizente com as necessidades culturais de
seus alunos surdos. Nesse constante processo de formação, a identidade
docente de Dália se constitui, nesses movimentos entre as experiências
vivenciadas e a emergência de uma Pedagogia surda, comunicam-se
significados que apontam para a constituição da identidade docente.
6. NAS TRAMAS DAS NARRATIVAS: PÉTALAS, SEMENTES,
VOOS
Neste último capitulo da dissertação, apresento algumas
problematizações referentes ao último encontro com as professoras, quando
elas assistiram a um vídeo com suas narrativas ao longo dos encontros
realizados. Também realizarei as considerações finais referentes a este
trabalho, com o propósito de costurar alguns pontos que apareceram com
maior reincidência entre as narrativas das professoras surdas.
6.1 Revendo as narrativas: ressignificando as experiências.
Sabemos que todas as narrativas, sejam orais ou escritas, pessoais ou
coletivas, oficiais ou não-oficiais, são “narrativas de identidades” (Anderson
1991, apud Errante, 2000, p.142). Dada a especificidade do foco desta
pesquisa – narrativas de professoras surdas -, acrescento também as
narrativas sinalizadas. As pessoas surdas, através da lingua de sinais também
contam suas Histórias. Essas narrativas não têm a oralidade como enfoque,
mas são feitas a partir do ato de sinalizar. Contando sobre sua vida e
formação, as professoras que contribuíram para esta pesquisa puderam
apropriar-se de si. As trocas de experiência e “escuta dos sinais” identificaram
momentos na trajetória de vida umas das outras. Para Delory-Momberger
(2008, p. 56), “[...] a narração é o lugar pelo qual o individuo toma forma, no
qual ele elabora e experimenta a História de sua vida”.
As narrativas (auto)biográficas podem ser entendidas de acordo com
Josso (2010) como “biografias educativas”, pois permitem que essas
professoras possam refletir sobre o passado e propor novas ações, tanto no
presente quanto no futuro. Dessa forma, entendemos que através da utilização
de relatos autobiográficos podemos compreender os caminhos que as levaram
à docência e à constituição da identidade de professora.
90
Esse campo de investigação tem procurado conhecer como cada um de
nós vem se tornando professor, e para isso se faz necessário pesquisar a vida
cotidiana, como também os efeitos das Histórias de vida, com suas emoções e
lutas que constituiem o processo identitário. Cada uma dessas professoras
surdas organiza suas aulas de uma forma particular, apropriando-se de meios
pedagógicos que possibilitam enfrentar o dia a dia de suas práticas. Nesse
fazer pedagógico e no olhar para os processos formadores que fizeram parte
de suas vidas, elas dão seguimento a esse continuo processo de formação.
Assim, no último encontro da pesquisa, propus uma dinâmica diferente,
na qual as professoras58 assistiram a um vídeo contendo suas narrativas
coletadas nos encontros anteriores. Sobre essa experiência de olhar para si,
vejamos o que elas relatam.
Primeiramente, Tulipa:
Ao rever o que foi sinalizado, eu pude relembrar meu passado novamente e
confirmar que realmente é verdade. Eu percebi que, se hoje eu sou uma
professora, é realmente em função dessas experiências que eu relatei nos
vídeos. Foi um resgate para mim. Eu me senti de volta ao passado. Deu vontade
de ver aquelas coisas novamente, de brincar novamente com meus primos e
vizinhos, de fazer tudo de novo. Ao ver os vídeos também senti vontade de
continuar buscando outros materiais, reforçou meu desejo de prosseguir minha
prática utilizando os textos e o visual (excerto - Entrevista Tulipa).
E, ainda, Lírio:
Quando eu me vi sinalizando achei muito diferente. Contei acontecimentos de
muitos anos atrás, não por serem fatos desde o meu nascimento, mas por se
tratarem de coisas que aconteceram como se fosse outro mundo diferente de
agora, um mundo cheio de marcas de proibições, de oralização, de diversas
coisas ruins. E hoje é muito diferente, é um mundo livre. [...] Ao visualizar o
vídeo, senti que estamos bem melhores agora, pois antes era uma época de
sofrimentos [...] antigamente não tínhamos nem livros para contar Histórias, não
tínhamos visual aliado às explicações dos professores [...] mas ao contrário
58
No último encontro a professora Dália, por motivos pessoais, não pôde permanecer até o final. Assistindo apenas ao vídeo, não ficou para a discussão. Solicitou-se que a mesma enviasse por escrito algum comentário sobre o que assistiu. Porém, até o momento da redação da dissertação, não obtive resposta. Sendo assim, os trechos das entrevistas desta parte das análises focam apenas as narrativas de Tulipa e Lírio.
91
daquela época, hoje posso apresentar para meus alunos livros de históricas e
eles aprendem com isso (excerto - Entrevista Lírio).
Trazer as experiências formadoras é contar a si mesmo sobre sua
História de vida. Nas narrativas aqui apresentadas, observamos que ao trazer
essas Histórias de formação, ambas afirmam que foi um processo importante,
pois perceberam as mudanças ocorridas no tipo de educação que tiveram, e
hoje as coisas mudaram devido às conquistas que os surdos vêm realizando
no campo da educação. Josso (2010), ao explicitar sobre o evocar experiências
para entender a formação, diz:
Essas experiências são significativas em relação aos questionamentos que orienta a construção da narrativa, a saber: o que é a minha formação? Como me formei? Nesse sentido, não se esgota o conjunto das experiências que evocamos a propósito da nossa vida. Mas para que uma experiência seja considerada formadora, é necessário falarmos sobre o ângulo da aprendizagem; em outras palavras, essa experiência simboliza atitudes, comportamentos, pensamentos, o saber-fazer, sentimentos que caracterizam uma subjetividade e identidades (JOSSO, 2010, p.47).
Quando foi exibido o vídeo para as professoras foi muito interessante ver
o quanto elas se olharam ao se verem sinalizando sobre si mesmas, avaliando
as vivências e comentando as conquistas que obtiveram ao longo de sua
trajetória. Em suas narrativas frisaram o quanto essa dinâmica foi interessante,
pois descobriram muitas aprendizagens, estratégias e experiências que fizeram
parte de sua formação.
Como objeto de observação e objeto pensado, a formação, encarada do ponto de vista do aprendente, torna-se um conceito gerador em torno do qual vêm agrupar-se, progressivamente, conceitos descritivos: processos, temporalidade, experiência, aprendizagem, conhecimento e saber fazer, temática, tensão dialética, consciência, subjetividade, identidade (JOSSO, 2010, p.34).
As Histórias de vida e de formação marcam as aprendizagens tanto no
sentido pessoal como no profissional. Essas aprendizagens, como em uma
rede, possibilitam aos sujeitos tramar essas experiências vividas com as
possibilidades de ser e de se constituir no cotidiano, gerando novas
potencialidades formadoras. Podemos entender essas potencialidades como
sendo as narrativas das professoras. Ao narrarem-se, compartilharam suas
92
Histórias umas com as outras, de modo que ao rever e pensar sobre essas
Histórias foram abrindo caminhos para compreender os processos identitários
e suas atuais realidades no exercício da docência. Quanto às narrativas
efetuadas em grupo, cada uma “permite que constatemos em que é que nesta
ou naquela semelhança há uma diferença e em que é que no próprio núcleo de
tal ou tal diferença há uma semelhança possível” (JOSSO, 2010, p.68).
Souza (2006) comenta sobre as narrativas de formação dizendo que as
mesmas são férteis, pois revelam experiências escolares e formadoras que
possibilitam superar os modelos construídos como aluna, e que implicam as
aprendizagens sobre a profissão.
As representações construídas pelas professoras através de suas
narrativas evidenciam-se através de “momentos-charneira”, como denominou
Josso (2010). As narrativas articulam vários fatos considerados formadores
vivenciados nos diferentes períodos da vida.
Nesses momentos-charneira, o sujeito confronta-se consigo mesmo. A descontinuidade que vive impõe-lhe transformações mais ou menos profundas e amplas. Surgem-lhe perda e ganhos e, nas nossas interações, interrogamos o que o sujeito fez consigo, ou o que mobilizou a si mesmo para se adaptar à mudança, evitá-la ou repetir-se na mudança (JOSSO, 2010, p.70).
Foi assim que as professoras, através de suas experiências escolares
marcadas por práticas de normalização com base no oralismo, refletiram sobre
a falta de possibilidades educacionais que atendessem às questões linguísticas
e culturais. Contestando essa forma de aprender, destacaram a importância
dessas questões e também a luta por uma educação desejada, que mobilizou-
as na busca de estratégias que condizem com suas necessidades educativas,
fazendo com que a docência seja constituída cotidianamente, no decorrer
dessas práticas. A busca por sua História de vida faz com que os sujeitos
entendam como suas identidades vão sendo forjadas.
O processo de formação tornou-se então, numa espécie de lugar de confluência de processos específicos, que interagem uns com os outros para se influenciarem e se reforçarem de tal maneira que a dinâmica designada pela noção de processo devia ser considerada como um conjunto em movimento (DOMINICÉ, 2010, p.197).
93
A formação é um processo contínuo, que não para. Assim como foi
possível as professoras olharem para suas historias formadoras, na mesma
medida a retomada dessas Histórias possibilitou um olhar para frente, para
outras possibilidades de ser e de fazer, de ser professora e de construir sua
prática pedagógica. Como processo de ressignificação dessas Histórias, elas
tomam consciência de algumas coisas que ainda precisam ser transformadas.
Ao se manifestarem sobre isso, dizem:
Sinto que falta um trabalho mais focado nos pais, como se fosse uma disciplina
específica para eles, além do trabalho com os alunos surdos. Um momento que
permitisse esse encontro com os pais a fim de auxiliá-los a lidar, conviver, e
ensinar seus filhos surdos. Além disso, eu também gostaria de ensinar meus
colegas, os professores ouvintes, para que eu pudesse ajudá-los no ensino dos
surdos. Eu gostaria também de integrar os alunos surdos com ouvintes, para que
houvesse uma integração social muito maior. Outra coisa também é o fato de ter
para os ouvintes apenas a disciplina de Libras. Não deve ser assim. Deveríamos
criar uma nova disciplina que contemplasse também as teorias sobre os surdos,
sobre sua História, a linguística e todos os outros assuntos. Acredito que deveria
ser uma nova disciplina mais teórica. E também outro sonho muito grande meu é
que na escola fosse criado um laboratório de Libras e uma sala de filmagens. Os
surdos têm muita dificuldade de leitura das disciplinas que são mais teóricos,
como geografia, História, ciências etc. Com o laboratório de Libras, esses textos
poderiam ser filmados, traduzidos para Libras e distribuídos um dvd para cada
um dos alunos. São sonhos, sonhos que não param nunca. (Excerto - Entrevista
Tulipa)
E, ainda:
O meu sonho é que aqui na escola tenhamos também o ensino médio. Mas vai
ser uma luta. Não podemos parar, precisamos nos organizar e lutar para isso,
porque da maneira como é agora, quando concluem o ensino fundamental, cada
surdo vai para um lugar, para um lado, para uma escola e acabam sentindo
saudade, falta daqui [...] (excerto - Entrevista Lírio)
Olhar para si, dentro do contexto autobiográfico, produz significados e
identidades, mas também produz expectativas e sonhos. Ao relatarem suas
experiências, as professoras surdas foram percebendo o percurso de formação
que cada uma trilhou na construção de suas identidades docentes. Nesse
94
caminho percorrido, muitos foram os desafios que se apresentaram a elas,
como os que conhecemos neste trabalho. Ao narrarem-se, entenderam os
caminhos que trilharam para ser o que são hoje, e com suas narrativas
percebemos como foi importante esse “olhar para si”, para que pensem outros
modos de constituírem-se professoras no cotidiano de suas práticas por uma
pedagogia surda.
6.2 Das costuras possíveis e da impossibilidade de uma conclusão
final
A pesquisa a que se refere esta dissertação teve como objetivo
compreender a constituição da identidade de professoras surdas e os aspectos
de sua formação, analisando, a partir das suas narrativas, os processos
formadores vivenciados ao longo de suas vidas e que proporcionaram a
construção da identidade profissional. Ou, dito de outro modo, como essas
professoras articulam os diferentes saberes gerados ao longo da vida na
construção das identidades docentes.
Dessa forma, pretendo contribuir no sentido de proporcionar um olhar
para as Histórias de vida, dando visibilidade ao processo de formação de cada
uma das professoras, de modo que elas possam se apropriar de suas
vivências, dando novos sentidos às experiências formadoras pelas quais
passaram. Com as narrativas deparei-me com informações que iam ao
encontro da proposta inicial deste trabalho. Os relatos autobiográficos
possibilitaram inferir diferentes análises sobre o que foi sinalizado, a partir do
olhar da pesquisadora. Porém, é apenas um olhar frente a tantos outros
olhares possíveis.
Essas Histórias ganham sentido ao serem compartilhadas, pois
proporcionam um entendimento sobre o processo de construção da identidade
de professoras surdas. Através do reconhecimento desses processos
formadores, vão se reafirmando as lutas surdas para pensar uma pedagogia
surda.
Neste momento, proponho uma releitura da metáfora da flor,
apresentada por Dália no primeiro encontro como possibilidade de estabelecer
95
costuras entre cada uma das Histórias de vida e formação, construídas pelas
professoras surdas. Essas costuras só se tornam possíveis visto que muitas
das experiências, ao serem narradas, enfatizaram temáticas reincidentes.
Essas temáticas se fizeram presentes nos relados das professoras, que ao se
narrarem, puderam se identificar com as Histórias compartilhadas. Com base
nessas Histórias, as análises realizadas neste trabalho enfocam o processo de
formação para compreender como ocorreu a construção da identidade de
professoras ao longo da vida. As análises contemplam pontos que se
destacaram nas entrevistas por apresentarem elementos que dizem sobre as
identidades docentes.
Por isso, pensei em várias formas de como realizar as últimas
considerações nesta dissertação, mas a forma pela qual fui seduzida a retomar
alguns pontos importantes foi metaforizando a própria metáfora da flor. Através
desse “empréstimo metafórico” direciono uma das possíveis formas de olhar
essas narrativas, procurando pontos de convergência em direção à construção
de suas identidades docentes, visto que muitas das narrativas se
entrecruzaram, apresentando elementos que foram problematizados no
transcorrer deste estudo. Talvez em alguns pontos desta dissertação as
temáticas problematizadas se tornaram repetitivas. Mas as escolhas por mim
realizadas em olhar para essas narrativas, valorizando cada História em sua
particularidade, eram justamente pelo fato de, ao final deste trabalho, buscar o
que de mais forte se sobressaiu entre as experiências que foram sendo
compartilhadas.
Convido o leitor neste momento a pensar na flor “dente de leão” como
forma de representar as Histórias de vida e formação que foram narradas neste
trabalho pelas professoras, e o sopro na flor representando o ato de
compartilhar essas Histórias umas com as outras.
Ao relatarem suas Histórias, algumas marcas em suas trajetórias foram
evidenciadas de forma relacional: a questão da oralização nos processos
escolares; a experiência visual como sendo um marcador cultural surdo a ser
abordado nas práticas de ensino; o letramento na História das professoras
surdas sendo entendido a partir de um contexto cultural de significação; a
literatura infantil como construtora de identidades e a literatura surda
significada como artefato cultural; entre outras questões que apareceram nas
96
narrativas e foram problematizadas, apontando para uma possível constituição
das identidades docentes.
Tulipa, em sua História de formação, buscou significar suas
aprendizagens a partir de estratégias de leitura que facilitavam sua
compreensão sobre os variados assuntos. Ao mencionar essas estratégias ela
demonstra que as mesmas favoreceram na construção de sua subjetividade. A
experiência a partir da visualidade torna-se uma marca surda evidenciada em
suas narrativas. Tulipa, através das Histórias infantis, foi percebendo a
necessidade de construir uma prática pedagógica voltada para as crianças
surdas. O contato com a literatura infantil desde pequena, fez com que ela
percebesse a necessidade de compartilhar com outras crianças o universo
literário de significação que envolve a cultura surda, a partir da experiência
visual.
Lírio, ao dar ênfase ao contexto de oralização vivido na escola, comenta
que foi preciso buscar formas de resistir à imposição de uma cultura, na luta
por uma reafirmação cultural. O desejo por ser professora superou as
condições pelas quais passou em sua formação, e hoje, ao falar de sua
identidade docente, ela atribui novos significados para as experiências
passadas, mas com foco em um fazer diferente, que atenda os aspectos
culturais dos surdos. Isso é frisado na medida em que ela aborda em suas
narrativas a literatura surda como um artefato cultural necessário a ser utilizado
na formação de seus alunos surdos. Em seu fazer pedagógico, as práticas de
letramento para surdos contemplam atividades estratégicas que privilegiam a
experiência visual. No exercício de olhar para suas experiências, atribui novos
significados que reafirmam sua identidade de professora surda.
Dália, em suas narrativas, comenta sobre uma determinada época em
que a educação de surdos era consolidada a partir de uma perspectiva oralista.
Ao olhar para sua História, ressignifica suas experiências como parte do
processo de formação docente. Na medida em que suas narrativas foram
ganhando força, ela salientava algumas estratégias que hoje fazem parte do
seu cotidiano na sala de aula. A criação dessas estratégias de ensino, a partir
de adaptações para a educação de seus alunos surdos, nos faz pensar sobre a
produção de cultura e, consequentemente, sobre a construção de uma
identidade docente, que além de ser formada ao longo das experiências
97
vivenciadas ao longo da vida, também continua sendo construída na medida
em que se produz cultura pedagogia e identidade docente surda.
É interessante destacar que todas essas questões apareceram de uma
forma ou de outra nas narrativas das professoras, e que as mesmas
compartilharam experiências que, embora singulares, estavam imbricadas de
forma intensa e foram evidenciadas na reincidência dessas temáticas.
As produções culturais dos surdos vêm se ampliado. Algumas, como a
lingua de sinais, a poesia, a literatura e o letramento têm se destacado no
cenário de estudos e pesquisas que envolvem a educação de surdos. Nesse
sentido é possível afirmar que, na medida em que se produz cultura, também
se produz identidade e diferença. A partir dos relatos das professoras, que
enfatizaram essas questões, observamos um comprometimento com o fazer
pedagógico para atender as necessidades de aprendizagem de seus alunos
surdos. Ao ressignificarem suas Histórias de formação, evidenciam a
pedagogia surda. Mais do que entender o processo de construção da
identidade docente, acredito que este trabalho possibilitou a essas professoras
perceberem que essas identidades estão sendo produzidas culturalmente, e
que essa produção acontece na medida em que elas, no cotidiano de suas
práticas, criam uma pedagogia surda.
Gostaria de me referir novamente à metáfora da flor. Assim como a flor
mencionada, as nossas identidades também sofrem metamorfoses. A cada
vivência e a partir das diferentes relações que vão sendo traçadas
continuamente, é que as identidades docentes vão sendo constituídas, ou seja,
não existe uma forma única, ideal de ser professora surda, mas assim como a
flor passa por uma metamorfose, as identidades das professoras surdas
também vão passando por transformações que acontecem através de suas
experiências.
Então, pensemos a formação como a metamorfose da flor, as pétalas
transformam-se em pequenas sementes que, ao serem levadas pelo vento,
misturam-se e germinam em novas terras.
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Anexos
Anexo 1: Termo de Consentimento Informado, Livre e Esclarecido
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO
Termo de Consentimento Informado, Livre e Esclarecido
Prezado(a)Senhor(a):__________________________________________
Solicito sua participação voluntária no projeto de pesquisa intitulado "MEMÓRIA E
NARRATIVAS SURDAS: O QUE SINALIZAM AS PROFESSORAS SOBRE SUA
FORMAÇÃO?", de autoria da Mestranda Bianca Gonçalves da Silva, sob orientação
da Profª Drª. Madalena Klein. Os objetivos da pesquisa consistem em analisar a partir
das narrativas de professoras surdas, os processos formadores vivenciados ao longo
de suas vidas que proporcionam a construção de uma identidade profissional, ou seja,
como articulam os diferentes saberes gerados ao longo da vida na construção da
identidade de professoras. A técnica de investigação utilizada será precedida por três
encontros biográficos semi-estruturados, em grupo. Os encontros serão filmados e
realizados em Língua Brasileira de Sinais, com a presença de tradutor interprete. O
interprete dará a garantia que não se percam informações pela diferença linguística.
As ações previstas para os encontros envolvem dinâmicas que implicam
desenvolver atividades como utilização de imagens extraídas de jornais, revistas e
internet, como também a utilização de caixas simbólicas, que serão entregues a cada
uma das professoras como suporte para as memórias, representando assim a
construção da identidade de professora.
Espera-se, com esta pesquisa, que os aspectos que fazem parte da História de
vida de cada uma das professoras surdas envolvidas, que serão levados em
consideração dentro de um processo formativo possibilitem um resgate da História de
vida e formação. Com isso, torna-se possível problematizar os processos de
identificação que se estabelecem na ação de rememorar acontecimentos e fatos que
marcaram a caminhada histórica de formação, partindo para uma ressignificação de
tais vivências, utilizando-as na construção da identidade de professora surda.
Também foi assegurado que os resultados da pesquisa serão divulgados em eventos
científicos da área da educação e afins, bem como publicados em revistas de
interesse da área, e que todas e quaisquer identificações e informações fornecidas
106
pelas informantes da pesquisa, serão mantidas em absoluto sigilo, caso seja solicitado
pelas mesmas aoassinarem esse termo. Qualquer informação adicional, ou dúvida
referentes à pesquisa poderá ser obtida através do e-mail [email protected] ou
pelo telefone (53) 91542654.
A qualquer momento, o Senhor (a) poderá solicitar esclarecimentos sobre o
trabalho que está sendo realizado.A participação na pesquisa é voluntária, sendo
assegurado o direito de desistência a qualquer momento, comprometendo-me a
comunicar a pesquisadora quando isso ocorrer. Para tanto, fui informado do nome e
telefone do responsável pela pesquisa.
Aceite de Participação Voluntária
Eu, ___________________________________ (nome legível), declaro que fui
informado/a dos objetivos da pesquisa acima, e concordo em participar
voluntariamente da mesma. Sei que a qualquer momento posso revogar este aceite e
desistir de minha participação, sem a necessidade de prestar qualquer informação
adicional. Declaro, também, que não recebi ou receberei qualquer tipo de pagamento
por esta participação voluntária.
__________________________ __________________________
Pesquisador Voluntário
_________________________
Orientador
Anexo 2 – Transcrição dos encontros.
NARRATIVAS PRIMEIRO ENCONTRO
TULIPA: Eu escolhi este desenho porque eu fiquei imaginando que o mundo tem
muita coisa, tem variações, tem diferentes coisas, ele tem tudo. Se eu quiser
conhecer, saber alguma coisa, eu posso procurar porque o mundo tem várias regiões,
onde eu procuro, então eu posso fazer uma busca, ir me apropriando dessas regiões e
buscar informações. As coisas que eu quero saber, eu posso pesquisar, buscar, me
apropriar daquilo, assim posso dividir com outra pessoa, por exemplo, eu sou
professora, então tenho que estudar muito, para poder dividir com meus alunos, posso
explicar para eles, para que conheçam e entendam como é o mundo, e depois eles
possam fazer as buscas deles, de acordo com cada um, mas eu vou dar esse começo
e depois eles vão buscar, porque o mundo tem diferentes coisas.
Antes, quando eu era criança, eu não tinha computador, internet, mas eu pegava gibis,
porque gibis tem muita informação visual, e eu tinha bastante interesse. Eu perguntava
para minha mãe as coisas que eu queria saber, como é tal coisa? Então ela me
explicava. Assim eu ia me apropriando das coisas. Também conversava com as
pessoas, batia papo com os ouvintes, e assim trocávamos informações. Eu tive a Dália
como professora, então fazia várias perguntas e ela me ensinava, me dava muita
informação. Ela dava aula de Libras e tinha muitos temas importantes e então eu me
apropriava. Eu lia gibi, livro didático, principalmente de ciências, gostava muito de
ciências, tinha curiosidade em saber sobre os animais, como eles nasciam, como eles
viviam, como era a natureza, essas coisas de ciências principalmente, porque tinha
muitos desenhos. Em geografia, por exemplo, tinha o desenho dos ciclos, e era bem
claro para mim, porque eu sou surda, a leitura era difícil, mas quando tinha desenhos
junto com a leitura eu entendia o contexto, então eu lia e articulava com os desenhos.
No gibi também, tinha desenhos com os textos, assim eu conseguia me apropriar,
aprender. Hoje eu venho desenvolvendo, fazendo varias aquisições com o livro
didático, pesquisei com várias pessoas, depois fui para o magistério, as professoras
explicavam e eu passei a entender. Agora é mais fácil porque tem internet, pois ela
propicia essa procura. Também desde criança até agora venho participando de
palestras, seminários, congressos, eu ia a vários lugares, fazendo essa aquisição e
agora eu passo para os alunos.
108 Quando eu era criança sempre gostei de ser professora, sempre quis ser professora
na verdade, na minha casa, com meus vizinhos, sempre brincava de professora, de
dar aula e eu sempre falava, eu vou ser a professora, e eles pediam também, pois eu
era a mais velha e eles eram menores do que eu, então eu dizia que queria ser
professora, eu queria dar aula, eu queria ensinar. Às vezes a professora era minha
prima, ela era maior do que eu, mas ela era professora dos meus primos, eu era
professora dos meus vizinhos, então havia essa divisão, Mas não era só brincar de
aula, tinha outras coisas também. Muitas vezes eu brincava na aula, quando era dia
de chuva, e não podia brincar na rua, eu ficava brincando de ser professora e dar aula.
Também quando eu vi a Dália como a única professora surda, explicando, eu comecei
a aprender um monte de coisas, ela foi um modelo, eu gostei muito de ver ela, ela me
passava muitas informações, eu ficava imaginado, imagina eu fazendo essas
aquisições e passando para os meus alunos, ensinando as coisas que estava
aprendendo com ela.
Letras-Libras te ajudou a ser professora? Sim, por isso que eu fiz magistério e me
ajudou a ser professora, no Pelotense tinha interprete, então eu fui fazer magistério lá,
também fiz o curso de capacitação da prefeitura e foi muito importante. Depois fui para
o Letras-Libras, que me ajudou muito sim, na questão da lingua de sinais, eu
aprofundei as questões linguísticas. A metodologia, a didática eu aprendi no
magistério, o Letras Libras também me ajudou, mas focou mais na língua.
LÍRIO: Eu escolhi essa foto... Quando eu era criança, por ser surda, não conseguia
me sentir em igualdade com os ouvintes, as pessoas falavam, eram oralizadas, daí eu
fui crescendo e a escola dizia que eu precisava oralizar, depois com a família o
contato com os ouvintes era só oralização. Também tinha lugares na escola em que
eu usava a lingua de sinais escondida, sempre teve uma dominação na verdade.
Depois eu fui crescendo e percebi, no futuro eu não vou conseguir trabalhar? Eu
posso trabalhar? Meu pai respondeu que não, mas eu disse que quero ser professora
surda, quero trabalhar, não tem surdo trabalhando. Eu nunca tinha ido para fora de
Pelotas, então me avisaram tem sim, eu nunca tinha ido para fora, sempre vivi em
Pelotas, então eu tinha esses pensamentos. Depois eu encontrei um professor surdo,
e perguntei, tem como ensinar Libras? Um professor pode ensinar Libras? Aí eu
comecei a imaginar, comecei a pensar em ser igual a ele, perguntei para minha mãe, é
verdade que uma pessoa pode ensinar Libras? Ela respondeu, não adianta, não vai
dar certo, Lírio! Depois eu conversei com outras pessoas, mães de surdos, então eu
falei para minha mãe, viu, é verdade, tu achaste que era mentira minha, mas eu tinha
essa capacidade. Eu tinha medo do futuro, das escolas de ouvintes, de rodar, por que
109 o português é bem difícil para nós surdos, e não tínhamos contato com outros surdos,
também precisamos de contato com outros surdos. Depois eu fiz até a oitava e fiquei
muito feliz, pois eu sofri muito fora da escola. Depois eu me formei e tinha medo de
estudar novamente em outra escola, por exemplo, o Pelotense não tinha intérprete,
mas então começaram a surgir novos cursos de intérprete, mas eu tinha medo de
sofrer como eu tinha sofrido lá no começo, tinha várias dúvidas. Começou o trabalho
dos intérpretes de evangelismo, mas eu tinha muita dificuldade porque a didática era
diferente, parece que o surdo era diferente, os surdos começaram a ter didática para
ensinar, ter vários conselhos, discussões de como era a didática para surdos, eu
pegava os dicionários para ler e adaptar. Também em 1999 eu viajei para o congresso
bilíngue e trouxe varias informações, eu precisava sair para fora, não adiantava ficar
só nesse grupo de Pelotas, fomos de excursão e eu fiquei admirada, não acreditava
que era possível, que tinha cursos para surdos, me senti emocionada e fortalecida
também, comecei a dar os primeiros passos para desenvolver, comecei a me
apropriar, a ter mais conhecimentos, a procurar ter novas amizades fora da cidade, foi
então que comecei a me desenvolver, e aí surgiu o Letras-Libras. Eu tinha um pouco
de dúvida, eu estudar, eu tinha um bebê, uma filha, como eu vou, eu vou poder cuidar
do minha filha? Bem, mas resolvi me inscrever e tentar, fui fazer a prova e passei,
fiquei muito feliz, foram o meus primeiros passos e agora tenho que aprender mais, a
diversidade da língua e agora eu sei que não posso parar, que tenho que continuar
caminhando para um futuro, que farei novas aquisições Eu passei no pós, e agora vou
torcer para que venham novas conquistas.
DÁLIA: Eu peguei três imagens, a primeira uma flor, eu não sei o nome dessa flor,
não é para assoprar, é para deixar no lugar, depois no futuro a gente assopra. Bem,
porque a escolha dessa flor? Quando eu era criança eu só tive escola oralista, e eu via
a professora, ela era bonita, jovem, agora já esta velha, e eu via aquela professora
bonita e tinha ela como modelo. Mas fiquei triste porque os meus materiais ficaram
guardados... Eu pedia para mãe, por favor eu quero um quadro, giz, mas a mãe dizia
que era difícil, porque éramos pobres, tínhamos pouco dinheiro, meu pai era pedreiro,
mas ele procurou trabalho para procurar esse quadro para eu poder ficar brincando. Aí
depois passaram esses anos, e não estava mais a pasta, e sim uma mochila, daí
fiquei muito feliz porque... Eu tinha muito interesse porque ali tinha meus cadernos,
meus brinquedos minha boneca, que andava sempre junto. Depois, nos finais de
semana eu visitava os amigos, nós fazíamos várias trocas, eu tinha um quadro que
usava bastante. Eu lembro que na casa da minha avó tinha uma caixa onde ela
guardava livros e cadernos velhos, então eu olhei para caixa e disse para minha
mãe... Meu Deus, eu quero seguir esse modelo, quero usar meu quadro, gostava de
110 ser professora. Eu cresci, e na terceira série fui levada para uma escola de ouvintes,
porque aqui (no Dub) tinha um limite, terceira e quarta série não tinha, porque havia a
primeira, e eram três anos na primeira por causa da oralização com base para ampliar
a questão da fala, na segunda série também tinha que ter muita paciência, eu era a
menor da classe, tinha 4 anos de idade, e aí minha mãe reclamou que eu era
pequena, a professora disse que estava me estimulando, mas minha mãe disse que
eu tinha dificuldade, o que vou fazer com ela, ela é inteligente, tem vontade de
aprender, é curiosa. Então minha mãe resolveu me colocar nessa escola de ouvintes,
e eu aceitei, ela me aconselhou dizendo, minha filha, tens capacidade, tu vais te
alfabetizar lá, vais passar por todas as etapas do ensino fundamental, e depois o que
tu vais fazer no futuro? Ela me provocava perguntando: Vais trabalhar em fábrica,
minha filha? Não eu dizia, em fábrica eu não vou trabalhar, respondia chorando, lá tem
cheiro ruim, prejudica as mãos, então ela dizia, vai estudar. Então aceitei estudar na
escola oralista. Nessa escola não tinha intérprete, a escola era muito antiga, eu tinha
que ficar fazendo leitura labial, olhando para as professoras, as pessoas escreviam e
me mostravam, eu não aceitava falar, minha voz era muito ruim, as pessoas riam de
mim, então eu me mantinha calada, não emitia som. Dentro do Alfredo Dub era
permitido oralizar, mas lá fora não, era muito alta a voz. Na oitava série eu não
consegui passar, eu rodei, então fui estudar na escola de ouvintes e a escola e Alfredo
Dub me apoiava, estudava de manhã, e à tarde tinha esse apoio. Me apoiavam com
palavras, os professores me aconselhavam, até a oitava série, quando me formei.
Antes eu aprendi Libras com um homem surdo que chegou, e comecei a me apropriar
da lingua de sinais, e comecei a gostar da lingua de sinais. Depois na oitava série
outro professor me chamou e me leu um texto e pediu que eu explicasse em sinais,
depois fiquei trabalhando de monitora. Ok, terminei a oitava série e fui para casa.
Comecei o ensino médio no Pelotense, tinha prova, eu me saí mal, valia 40 e eu tirei
16, não lembro muito bem. Depois fiquei esperando em casa e em abril a direção me
chamou, perguntando o que eu estava fazendo. Eu pensei que eles queriam que eu
trabalhasse em fábrica, porque geralmente eles ligavam para chamar os surdos para
trabalharem. Mas eu fui, torcendo para que não fosse para trabalhar em fábrica. Então
foi quando eles me disseram que era para trabalhar como professora de Libras. Eu fui
tomada por uma felicidade, e eu perguntei, como assim, professora de lingua de
sinais? E eles disseram que sim, e eu disse Ok, foi a primeira vez que surgiu esse
contrato, era só com o grupo de Pelotas, não tinha pessoas de outros lugares. Era
bem difícil o grupo, eles não conheciam lingua de sinais, precisaram se desenvolver,
foi no ano de 1992 que começou, fui trabalhando até 1997. Na escola Santa
Margarida, eu consegui uma bolsa para cursar o magistério e a Bete era minha
111 intérprete. Eles não conheciam uma adaptação, uma didática para os surdos, era uma
didática ouvinte. Antes, na oitava série, eu fiz algumas aquisições, adquiri
conhecimentos, mas eu não tinha como opinar, então a Bete começou a me
aconselhar, e eu fui indo me desenvolvendo ao longo dos três anos. Depois no ano de
1999 eu viajei para o congresso bilíngue. Aqui em Pelotas não tinha uma visão
ampliada do mundo dos surdos, por isso eu escolhi a imagem da flor, porque ela
representa a ampliação dessa visão. Quando eu fui ao congresso eu vi que os surdos
tinham capacidade, tinham direitos, e não via isso na cidade de Pelotas, então foram
esses dois surdos ao congresso e passaram a acreditar na liberdade e na capacidade
que os surdos têm. Então quando eu voltei, passei a divulgar isso para todos os
surdos de Pelotas. Viajei para São Paulo, depois foi fundada a associação de surdos,
fui a Santa Maria. Eu fui fazer estágio, mas antes disso eu fiquei grávida. Antes, em
fevereiro, um colega meu começou a me provocar a fazer Pedagogia na Católica, fazia
um mês que minha filia havia nascido, mas aceitei fazer vestibular e passei. No curso
começou muita teoria e eu tinha feito magistério e tinha visto a parte da didática, mas
na pedagogia era muita teoria, era tudo novo, não tinha muita experiência, então
comecei a me assustar um pouco. Quando completou três meses de aula, nasceu
minha filha. Comecei a estudar e fazer estágio, estudava na católica e fazia o estágio.
Bem difícil estudar ali, eu lutei bastante. Depois de formada, os professores não
acreditavam na cultura surda, na capacidade dos surdos. Tive bastante paciência, me
formei, e hoje tenho meu certificado. Depois, dentro da escola, comecei a fazer muitas
mudanças, adaptações, começou uma vontade de ensinar de primeira até a quarta
série, só que não tinha ninguém que ensinasse Lingua de sinais. Mas eu queria
ensinar outras coisas, era formada em Pedagogia e não queria ensinar só Libras.
Então fomos tentando, tentando e então em 2006 eu comecei a trabalhar dentro da
escola como professora da primeira série, a primeira no Rio Grande do Sul. Depois fui
vestibular para o Letras-Libras, passei, me formei, e agora estou na Pós-Graduação. A
segunda imagem apresenta muitos e muitos livros, isso é próprio de ouvinte. Antes
não havia internet, então agora é mais fácil, você procura no Google e consegue os
mesmos livros, é mais fácil de fazer a aquisição, então os surdos podem se apropriar
com mais facilidade, ver qual didática pode ser utilizada. A terceira foto traz uma
professora e um aluno, eu escolhi essa foto porque o meu sonho é que todos
aprendam na escola, que todos saibam Libras. Eu sou professora de alunos surdos,
eu quero ensinar, eu quero ser um modelo de vida para eles, quero ensinar Libras,
para que possam se comunicar com a família desde pequenos, contribuindo dessa
forma para que eles construam a identidade surda, aprendendo sobre a cultura surda,
para que essas coisas façam parte do processo de aprendizagem deles.
112 O Letras-Libras ajudou na parte da didática? Sim, ajudou, porque eu comecei a
comparar o português, comecei a conhecer a estrutura, e assim adaptar para a
estrutura da Libras. Eu fiquei curiosa, na comparação entre essas duas estruturas
linguísticas.
No Letras-Libras eu aprendi a ensinar a Lingua de sinais para ouvintes. Tem a
estrutura, a gramática, as expressões. Mas no segundo ano da pedagogia, era mais a
questão visual, as disciplinas, a interdisciplinaridade, mais informações em relação ao
visual, depois escrever o português. Pedagogia é diferente.
Lírio: Tem muita diferença na configuração de mão, teatro... No Letras-Libras teve
bastante História, Literatura Surda, varias questões foram abordadas.
Tulipa: Letras-Libras me ajudou a ensinar os meus alunos ouvintes, na disciplina de
Libras, os alunos ouvintes, troquei a didática, porque antes do Letras-Libras eu tinha
curso de instrutora, e tem diferença entre uma graduação e o curso de instrutora, e na
verdade eu não aprendi a ensinar no curso de instrutora e sim no magistério, mas
quando entrei no Letras-Libras eu pensei, nossa, eu comecei a mudar o ensino com
ouvintes. Com as crianças surdas também, como a Dália falou, o jeito como vou
bordar essa gramática, a questão do visual, como vão se expressar, usando
ferramentas nesse processo.
Dália: Isso é bem importante, por exemplo, eu estou explicando, gênero, natureza, e
também estudos sociais, porque são muitas informações que precisam ser passadas e
não é no Letras-Libras que é ensinado.
NARRATIVAS SEGUNDO ENCONTRO
BIANCA – Peço que agora iniciem a contar alguns episódios da vida de vocês que
foram significantes na escolha profissional de vocês como professoras. Para narrar
estas Histórias vocês podem utilizar objetos que desejarem, como brinquedos, livros
de Histórias etc. Lembram que anteriormente eu já havia explicado sobre isso. Esses
objetos vão auxiliá-las a reativar as lembranças daquela época.
TULIPA: Bem, eu escolhi um livro de História infantil. Quando eu era pequena, minha
mãe utilizava livros de Histórias para contar para mim através da Libras. Eu adorava
estas Histórias e sempre ficava muito curiosa e atenta enquanto ela estava contando.
Sempre que as Histórias terminavam eu queria mais, mais, muito mais! Então, após
113 tanta insistência, minha mãe pegava outro livro de História e contava para mim. Às
vezes ela até repetia mesma História, de tanto que eu gostava. E quando eu
continuava insistindo ela dizia: Agora tu vais ver as Histórias sozinha, não comigo. Eu
não gostava dessa forma, porque muitas vezes eu não conseguia entender. Tinha que
me esforçar muito para compreender o que a História queria dizer. Além das imagens,
as Histórias também tinham frases e quando eu não conhecia alguma palavra, eu
perguntava o significado para minha mãe. Algumas vezes eu entendia o que a palavra
significava apenas pelo contexto da História, pois me lembrava de quando a minha
mãe havia me contado. Eu adorava estas Histórias. Eu queria cada vez mais. Como
se não bastasse minha mãe contar para mim e depois eu também vê-las sozinha, eu
começava a contar para outras crianças. E isso me fez pensar no meu futuro, sobre eu
sinalizando para crianças, eu ficava imaginando de que forma eu sinalizaria para
contar aquelas Histórias, que sinais eu utilizaria. E quando eu contava, as crianças
adoravam também! Eu gostava muito quando minha mãe sinalizava as Histórias para
mim, mas eu sei que eu sinalizava de uma forma muito melhor quando contava para
as crianças, até porque eu sou surda. E a relação entre eu surda e as crianças surdas,
é muito melhor para o entendimento delas, pela forma como eu sinalizo. As Histórias
foram um grande auxílio para minha vida, elas ajudaram na construção de quem eu
sou. Por exemplo, tinha uma História que falava sobre a importância de cuidar dos
dentes, de escovar sempre depois das refeições, passar fio dental etc. As Histórias
tinham muito a me ensinar, a auxiliar para a minha vida. Outra coisa que eu adorava
eram os gibis. Eu gosto muito!!! Eu gostava principalmente da Turma da Mônica. Era
muito mais fácil de entender o contexto, pois tem o texto juntamente com o desenho.
Então os gibis foram muito importantes para a construção do meu conhecimento do
Português. Auxiliou muito para que eu aprendesse o significado das palavras através
dos contextos. Realmente eu gostava muito dos gibis. E de fato eu pensava que no
futuro eu iria dar esses gibis para meus alunos lerem para que pudessem aprender o
Português. Outra coisa que eu me lembro também são as Histórias em sequência, de
três ou quatro quadrinhos. São quadrinhos que contam uma História em três ou quatro
partes. Essas Histórias também me ajudaram a aprender muitas coisas. Tinha uma
delas que mostrava o quadro de crianças jogando pingpong, logo após lavavam as
mãos e depois faziam a refeição. Eu entendia facilmente. Acho que este tipo de
material é muito apropriado para os surdos, para utilizar durante as aulas a fim de que
eles entendam sobre diversos assuntos. Então, hoje, eu como professora, utilizo muito
este tipo de atividade com meus alunos. Outro objeto que eu trouxe foi o dominó. Eu
adorava jogar com a minha família e também com crianças da vizinhança. Eu gostava
tanto de jogar que estranhava porque na escola não tinha este tipo de jogo. Eu
114 adorava porque estimulava o meu raciocínio. Eu gostava de completar as peças
rapidamente. E eu acho muito importante este tipo de jogo na escola também. Até
acontecem alguns momentos em que se joga, mas é um tempo muito reduzido. É
necessário mais tempo. Outro jogo que eu me lembro e gostava muito também é o
jogo dos antônimos. Era preciso encontrar os pares: magro, gordo etc. Eu gostava
muito deste jogo e também do jogo da memória. E o fato de não fazer esse tipo de
jogos na escola me intrigava, pois eu sempre queria mais, sempre achei que isto tinha
que acontecer mais vezes na escola também. Então eu prometia: No dia em que for
professora, vou utilizar muito esses jogos, pois eles me ajudavam muito a ficar ativa,
mais esperta. Os surdos geralmente apresentam mais dificuldade para perceber
determinadas coisas. Por exemplo, pergunta o antônimo de gordo. Depois de um
longo tempo é que ele vai responder magro. Por isso eu acho fundamental esse tipo
de jogos para os surdos para que possam ficar mais espertos, desenvolver o
raciocínio. É histórica a questão de os surdos não terem informações de mundo, mas
esses jogos e essas Histórias também podem servir para adquirir conhecimentos,
informações. Outro jogo que eu adorava quando criança era o quebra-cabeça. E sobre
eles eu pensava da mesma forma, que a escola poderia aproveitar muito mais esse
tipo de atividade. Na minha casa sempre tinham muitos livros didáticos porque minha
mãe era professora. Minha mãe sempre me dizia que aqueles livros não eram só para
uso dela, mas que eu poderia utilizá-los também para aprender. Então eu adorava ver
os livros dela, principalmente o de Ciências. Eu adorava! Eram livros muito ricamente
ilustrados, que chamavam a minha atenção, me ensinava coisas. Aprendi muito sobre
a vida dos animais, sobre as plantas, sobre diversos assuntos. Foi um grande
aprendizado. Eu pensava: os surdos precisam saber disso também, eles precisam
saber! Então eu sempre prometia para mim mesma, que quando eu fosse professora,
eu utilizaria esses livros para ensinar tantas coisas às crianças surdas. Eu trouxe
também um livro didático de Português. Sempre preferi o de Ciências, mas sabia que
também precisava aprender o Português, pois eu tinha muito problema com ele. Então
eu utilizava este livro para aprender mais palavras do Português. E sempre pensava
que um dia eu utilizaria isso com as crianças surdas. Apesar de ser um livro voltado
especificamente para os ouvintes, eu utilizo para adaptar ao ensino das crianças
surdas, recortando as imagens, colando, tirando algumas coisas desnecessárias.
Então eu uso de estratégias para aproveitar esses livros didáticos voltados para os
alunos surdos. Quando chovia, eu aproveitava para brincar de aula com meus primos.
Eu trouxe, então, um foto para relembrar esse momento. Eram muitos primos. Eles
sempre queriam brincar de aula comigo, adoravam! E eu me sentia muito bem com
essa brincadeira. Eu queria muito ter trazido uma foto com meus vizinhos, mas não
115 tenho. Quando eu brincava de escola com meus primos, sempre a professora era a
minha prima mais velha. Mas quando a brincadeira era com a vizinhança, eu era a
professora e sempre usava esses livros didáticos da minha mãe. Também aproveitava
para usar meus cadernos de aula de anos anteriores, que não usava mais, para que
eles pudessem usar. Esses dois materiais que eu trouxe não fazem parte do meu
passado, são atuais. Quando eu era pequena, eu sonhava muito com as coisas que
eu faria como professora. Mas na prática é um pouco diferente. Algumas coisas que
faziam parte do meu sonho eu consegui aproveitar, como por exemplo os jogos. A
questão do Português é muito complicada, muito difícil. Mas ainda não desisti. Estou
lutando para ver se consigo desenvolver algo melhor para o Português, talvez a
criação de alguma estratégia ou adaptação de material no qual eu possa ensinar
melhor o Português para meus alunos. Atualmente eu percebo que é mais importante
eles entenderem o contexto e depois introduzir o Português. Eu trabalho agora
utilizando muitas imagens. Por exemplo, estas aqui. Nesta mostra dinheiro. E nesta
outra mostra alguém sem dinheiro. Então através destas imagens eu aproveito para
explicar o que é dinheiro, o que eu posso fazer com dinheiro, que posso comprar um
carro, bolacha, bicicleta, o que eu quiser. Mas para isso precisa de dinheiro. E então
eu mostro a imagem do sem dinheiro e explico que sem dinheiro não pode comprar
nada. Acho importante explicar todas essas coisas, pois a família não dá esse tipo de
informação, até porque muitas famílias não sabem Libras, então não ensinam muitas
coisas, não explicam coisas simples. Então depois que eu apresento o contexto,
aproveito para ensinar os sinais, como por exemplo: tem/não tem e todos os outros
que fazem parte do contexto.
LÍRIO: Não pode rir, pois peguei diversas bobagens e fui colocando na caixa. Trouxe
este livro de Histórias que é muito legal, é em Libras. Antigamente não tínhamos o
privilégio de ter a literatura surda, as Histórias diretamente em Libras. Hoje elas
existem. Como era difícil antigamente para termos acesso a Histórias, os gibis, livros
de Histórias eram voltados apenas para os ouvintes. Agora é importantíssimo para os
surdos ter esstas Histórias, pois é um canal de informação para eles. São Histórias
que são facilmente entendidas pelas crianças surdas. Além da sinalização, as imagens
são bem atrativas, estão de acordo com a necessidade visual das crianças surdas. Ao
ver este livro agora, consegui entender algumas coisas que antes não era possível.
Quando eu queria saber algo de alguma História, tinha que pedir auxílio a alguém para
compreender o que estava sendo narrado. Às vezes as pessoas não tinham paciência
para tantas perguntas que eu fazia. Então eu me restringia a saber apenas o que as
imagens me transmitiam. Hoje é diferente, as crianças surdas tem acesso a Histórias
sinalizadas. Se qualquer criança pegar este livro, vai conseguir entender sozinha o
116 que significa, pois não há barreiras para seu entendimento como era anteriormente.
Ela tanto pode utilizar o dvd quanto observar as imagens. Acredito que foi na década
de 90 que começou a produção deste tipo de material, pois anteriormente não existia.
Mas eu gostaria de saber exatamente quando começou a produção desses materiais.
Outro objeto que eu trouxe foi este livro. É um livro feito por ouvintes. Mas eu gostava
muito de observar as cores. Não entendia as palavras que estavam escritas, mas
gostava muito das cores. Através das imagens eu conseguia entender o contexto da
História, não precisava pedir auxílio para ninguém. Mesmo não sendo para surdos, era
uma História bem visual, a exemplo do que já temos disponível para os surdos hoje.
Então este livro foi muito importante para mim por causa do seu belo visual. Eu trouxe
também um dvd que é muito antigo, mas que gosto muito. Ele não tem legenda.
Infelizmente não são livros destinados ao público surdo, pois não tem legenda. Há
apenas os personagens mexendo a boca e nós sem entender nada. Eu gosto muito de
assistir filmes, mas que sejam específicos para surdos, como por exemplo, Filhos do
Silêncio. Tem uma sequência que é mais fácil de entender por causa das expressões.
Antigamente não havia tantos filmes, mas felizmente hoje temos muitos mais. Trouxe
algo que gosto muito que é meu baralho das configurações de mãos. É um material
muito fácil de utilizar, que antigamente não existia. Não tínhamos nada de material de
apoio, mas hoje já existem. Eu escolho uma configuração de mão e posso fazer
diversos sinais com ela, como por exemplo esta, com a qual eu posso fazer coelho,
cavalo, etc. Através deste baralho podemos tanto ensinar sinais, como contextos para
nossos alunos surdos. São diversas coisas a serem feitas. Posso dar as palavras e
eles mostrarem o sinal. Diversas coisas. E eu fico muito feliz por hoje ter diversos
materiais didáticos para nos apoiar, pois antigamente eles não existiam. São cartas,
jogos, dvd’s sinalizados e livros, entre outros. Muitas coisas que antigamente não
existiam, até porque era a época da obrigatoriedade do oralismo e da escrita. Os
professores utilizavam apenas o quadro e o giz. Só isso! Não havia nem imagens para
apoiar o nosso aprendizado. As únicas coisas expostas nas paredes eram as sílabas,
como :fa-la-le etc. Algumas coisas que eu trouxe foram enganadas, então não vou
apresentar. Este livro para mim é muito importante. Ele é resultado de discussões,
pesquisas, palestras. Nele são tratados diversos assuntos em relação aos surdos,
como o oralismo, o implante coclear, etc. E um material novo que eu ganhei no
Letras/Libras. Antigamente também não tinha este tipo de material. Não havia livros,
divulgação destas informações, nada! Então vivemos em um momento muito melhor
agora. E estão sempre surgindo bibliografias novas. Agora no Festival da Cultura
Surda havia diversos livros novos que eu queria adquirir, mas infelizmente não tive
condições para comprar. Vou ter que esperar um pouco mais, até porque é R$ 60,00.
117 Então às vezes eu peço emprestado para alguém que tenho e faço cópia, porque é
muito importante esse tipo de leitura. Tem algumas outras coisa que eu trouxe, mas
foram erradas, não era para ter trazido. Trouxe uma foto da minha filha que é algo que
muito me alegra. Sou feliz por ela já saber Libras, por ela ser bilíngue, por ter contato
tanto com surdos quanto com ouvintes. Já perguntei para ela se quer ser intérprete no
futuro, mas ela disse que não, que quer escolher outra profissão. Libras para ela serve
para comunicação com a família, apenas isso. E eu não posso obrigar ela a nada, até
porque desejo que ela escolha o que for melhor para a felicidade dela. Ela sabe se
comunicar com os pais, com amigos surdos, com todos. Não tenho problemas com
ela. Mas no futuro, quando ela crescer e tiver um filho, não sei se não vai ser surdo.
Pode ser.
DÁLIA: Eu cresci oralizando, não havia a Libras. A cada série que eu estudava,
repetia dois anos, para que eu memorizasse melhor o Português. Por isso então eu
trouxe uma caixa cheia de vocabulários. São diversas palavras. Antes foi muito
sofrimento a questão da oralização, do treino vocal, era muito chato. Atualmente eu
não obrigo que meus alunos tenham esse tipo de aprendizado. Eu priorizo a Libras e
faço isso através de muito visual. Eu coloco diversas imagens na minha sala de aula
com a palavra correspondente. Desta forma elas podem aprender o sinal no contexto,
bem como o significado. Eu não exijo que elas memorizem as palavras, que
internalizem aquilo, não! Por exemplo, elas fazem o sinal de bola e eu obrigo a fazer a
datilologia da palavra. Não, não é assim que acontece. Antigamente era assim, mas
agora eu os deixo mais livres. E desta forma eu percebo que é melhor para a vida
deles do que foi para a minha. Agora que eu sou formada posso oferecer algo melhor
para eles. Quando eu estudava, adorava matemática. Português era diferente, pois
éramos obrigados a memorizar o ba-be-bi-bo-bu. Era diariamente a mesma coisa. E
isso eu via por dois anos, pois, como mencionei, fiz cada série em dois anos. Agora
em apenas um ano ensinamos rapidamente de A até Z, mas antes precisávamos
aprender com base nas sílabas. Então ensino as palavras a partir de cada letra, algo
mais simples, pois não adianta fazer como era antigamente, com esta caixa cheia de
vocabulário que não era possível memorizar. Eu aprendi desta forma, mas meus
alunos agora não. Como já mencionei, eu adorava matemática. Para mim foi muito
fácil o aprendizado da matemática e é o que procuro transmitir para eles agora. Por
exemplo, motro para eles a conta 2+3= e ao lado do número 2 desenho duas bolas e
ao lado do número 3 desenho três bolas. Então chamo um aluno e peço para ele
somar. Rapidamente ele conta cada uma das bolas e obtém o resultado 5. Se é conta
de subtrair, eu mostro para eles que significa comer. Apresento a conta 6-3= faço o
desenho das bolas correspondentes ao lado de cada número e digo que risquem o
118 número de bolas correspondentes, o que é o ‘comer’. E então se obtém o resultado 3.
E isto eu utilizo até hoje, não só com meus alunos surdos, mas também com meus
filhos que são ouvintes. Meus filhos contam nos dedos, mas como? Antigamente eu
contava também oralmente, mas as crianças surdas não fazem isso. Elas contam as
bolas. E eu faço desta forma porque é visual e se torna mais fácil. Quando eu era
pequena sonhava em ser professora. Mas naquela época eu pensava apenas em
passar coisas no quadro para que os alunos copiassem. Quando ingressei no
magistério e conheci a disciplina de Didática, percebi quantas atividades e recursos
diferentes existem e que minhas professoras nunca utilizaram comigo. Era só a
obrigatoriedade das palavras e da oralização. Não existia nada de lúdico. Era um
ensino muito tradicional. Por isso que meu aprendizado era sempre tardio. Mas no
magistério eu aprendi muitos auxílios didáticos voltados para o lúdico e que agregados
à prática podem ter um resultado muito positivo. O magistério me trouxe muitas ideias
e a partir dele comecei a ter muitas outras, pois eram atividades especificamente para
ouvintes, mas na minha mente eu prontamente fazia uma adaptação para alunos
surdos. Por exemplo, eu trouxe o dado das configurações de mãos. Com ele pode-se
criar diferentes jogos. Por exemplo, ao cair a configuração de mão em L, o aluno
precisa fazer diversos sinais com esta configuração. Um outro jogo que pode ser feito
é criar uma frase que utilize apenas esta configuração de mão, não sendo permitido
nenhum outro sinal com configuração de mão diferente. Por exemplo, com esta
configuração de mão eu posso criar o contexto: eu gosto muito me olhar no espelho e
pentear meu cabelo, pois fico muito bonita. Pronto, criou-se o contexto. E isto se faz
apenas com uma configuração de mão, adaptando o sinal de eu, gostar, pentear,
espelho, etc. Cria-se um contexto utilizando apenas uma configuração de mãos, não
sendo permitido usar nenhuma outra. Então os alunos se esforçam ao máximo para
criar este contexto sem desrespeitar a regra. Isso estimula a criatividade e o
pensamento dos alunos. Trouxe o meu baralho das configurações de mãos. E
baseado nas configurações de mãos, como o dado, mas diferente. O aluno escolhe
três cartas e precisam criar um contexto a partir delas. Eles adoram! Quando faço
essa brincadeira eles me enchem de beijos. É uma atividade fundamental, pois
estimula muito o aprendizado dos alunos. Para os alunos surdos os verbos são muito
difíceis. Então eu trouxe aqui este saquinho que contém diversos verbos, mas não em
forma de palavras, pois para eles não adianta. Mas a ação em si, para que eles
saibam o significado. Então com os verbos vamos construindo os contextos. O verbo
precisar: Eu preciso de dinheiro. O verbo gostar: Eu gosto de ter amigos. O verbo
comer etc. Então eu escrevo o verbo comer e a partir dele surgem diversas
possibilidades para complementar esse verbo, por exemplo: picolé, arroz, pão etc. Os
119 alunos ficam espantados com a infinidade de possibilidades com cada verbo. Com
isso eles entendem o significado do verbo. Outro verbo, por exemplo, comprar e
desencadeamos todas as coisas que podem vir com esse verbo. Desta forma os
alunos vão entendendo, criando e ampliando os conhecimentos. Também gosto de
fazer outro jogo com os verbos, onde eles sorteiam três verbos diferentes e precisam
criar um contexto utilizando os três. E não podem ser frases de qualquer jeito, mas
que tenham um contexto coerente. E depois vai aumentando a dificuldade ao pegar
quatro verbos. Em outro momento posso aumentar o grau de dificuldade da atividade,
ao sortear três verbos e três palavras e eles precisam construir um contexto com eles.
Por exemplo, se sortear pato e canoa eles podem criar a frase: “Eu fui passear de
canoa, vi um lindo pato nadando na lagoa. Então eu peguei um caju da árvore e comi”.
Então eles vão aprendendo e trocando a partir do contexto.
BIANCA: Eu adorei todas as coisas que vocês colocaram. Apresentaram diversas
coisas que eu nem imaginava. Agora se vocês quiserem podem colocar mais alguma
coisa ou perguntar mais alguma coisa. Não é obrigatório.
TULIPA: Eu queria mencionar apenas que é muito legal esta interação, pois quando
eu era pequena eu aprendia muitas coisas com a Dália e hoje nós duas temos a
oportunidade de trabalhar juntas e compartilhar experiências. Por exemplo, este
material que eu apresentei anteriormente para explicar sobre o ter e não ter dinheiro,
eu lembro que a Rejane fazia conosco e agora eu utilizo com os meus alunos. E essas
coisas eu aprendi com a Rejane. O outro exemplo que ela deu sobre o vocabulário e a
criação de contextos, às vezes eu também faço. Aprendi com ela.
DÁLIA: Essa questão do livro de Ciências que a Aline colocou, assim como os outros
livros didáticos são antigos. Estes livros mais antigos são mais apropriados para os
surdos, pois são mais visuais. Os livros didáticos a partir do ano 2000 são muito
pesados, baseados em textos extensos, impossíveis para se entender o contexto. São
livros totalmente diferentes dos antigos, como por exemplo, as cartilhas, onde nós
tínhamos a apresentação de cada uma das letras. Ao utilizar esses livros menos
complexos os alunos são capazes de entender com clareza o que é ensinado. Nas
cartilhas também tinham textos de, no máximo, quatro ou cinco linhas, que aliados à
ilustração, era bem fácil de entender o contexto da História. E para fazer os exercícios
também se tornava bem fácil, pois as frases eram bem próximas, parecidas. Mas os
livros de agora são totalmente diferentes. Torna-se impossível fazer os exercícios que
v^wm a seguir, pois dificilmente iremos encontrar as respostas naquele imenso texto.
Podemos ler, ler, ler, mas não conseguimos entender o que o texto quer dizer. Quando
recebi os novos livros didáticos, logo percebi que seria impossível utilizá-los com os
120 surdos, pois são, de fato, muito diferentes dos anteriores, são apenas textos enormes.
Como pode se perceber neste aqui, há uma infinidade de imagens e pouco texto. Os
alunos gostam muito. Se eu for ensinar o conteúdo sobre a germinação das plantas,
primeiro eu explico o conteúdo em Libras e depois apresento no livro e então eles
fazem a ligação. Apresentar apenas no livro ou apenas na Libras não dá para eles o
entendimento completo. Um complementa o outro e o aprendizado acontece.
TULIPA/LÍRIO/DÁLIA: Este livro é antigo, não fazem mais deste tipo.
LÍRIO: Este livro é antigo, tinha textos pequenos. Mas os de agora apresentam textos
enormes, não é possível de entender. Já estes são bem visuais.
TULIPA: Este livro é para ouvintes, mas é possível ser usado para surdos porque a
maior parte deste material é visual e tem poucas legendas.
DÁLIA: Por exemplo, explica o nascimento dos animais através de imagens e não de
textos. E assim é com todos os livros didáticos antigos, como o de Estudos Sociais,
Matemática etc. São livros para ouvintes, mas utilizam muito visual. Já o de Português
não é tanto assim.
TULIPA: Sim, o de Português não é tão claro. É necessário fazer algumas
adaptações.
DÁLIA: Eu gosto mais dos livros antigos, pois tem uma ampla variedade de imagens,
de visual. Muitas pessoas reclamam que são livros tradicionais. Para mim isso não
importa, pois tem a vantagem das imagens. Eu prefiro esses livros. Assim eu posso
sinalizar e apresentar para eles as imagens. Se não, fica uma explicação baseada em
cópia do quadro. Então eu faço cópias desse livro e dou para os alunos, pois os textos
não chamam atenção. O que chama atenção dos surdos são as imagens. Através das
imagens, então, eu explico o conteúdo para eles. Após, oriento para que procurem em
revistas algumas coisas específicas do conteúdo e assim confeccionamos o painel
sobre o assunto. Por isto esses livros são mais apropriados. No livro de Estudos
Sociais é muito bom, pois apresenta as cidades, os tipos de casas, ricas ou pobres ou
favelas. Também apresenta imagens dos meios de transportes, que após serem
apresentados, construímos o painel diferenciando os meios de transportes terrestres,
aquáticos e aéreos. É um trabalho muito mais fácil. Se fosse tudo isso em forma de
texto, não adiantaria. Mas baseado no visual é muito mais fácil.
BIANCA: Através do relato de vocês agora, percebi como de fato os surdos têm uma
identidade construída de modo diferente, pois tem um jeito próprio, diferente. Tudo
precisa ser adaptado, pois não há nada específico. Como tu, Dália, explicaste, e vocês
121 também. Vocês comentaram a questão do texto em Português. Isso é uma
característica do ensino de e para ouvintes. Como tu comentaste, Dália, algumas
pessoas criticam o fato de utilizar livros antigos, mas é toda uma necessidade que
envolve os surdos e se torna mais fácil utilizando o visual que há nesstes livros. Eu
agradeço muito o que vocês colocaram hoje para mim, pois mostra um pouco de como
foi a constituição de vocês como professoras.
DÁLIA: Se eu quero ensinar algo sobre, por exemplo, Meio Ambiente e não tenho um
livro que sirva de apoio, eu faço em minha casa, no computador, algum material que
me possibilite trabalhar esse tema. Então vou utilizar imagens diferentes, como por
exemplo, lugar poluído ou lugar limpo. Então eu vou explicar a partir daquelas imagens
que organizei em um PowerPoint.
NARRATIVAS TERCEIRO ENCONTRO
TULIPA: Eu assisti ao vídeo anterior onde eu sinalizava sobre algumas questões que
são bem reais do meu passado. Mas tem algumas coisas que eu estava explicando,
como os livros didáticos de Ciências e também sobre os gibis. Eu gostava muito
destes dois materiais porque não eram apenas textos, mas tinham ilustrações
também. E isto facilitava meu aprendizado. Além disso, eu comentei sobre os alunos
surdos quando eles querem aprender o Português podem utilizar o gibi, pois também
possui o texto junto com a imagem. Mas fiquei pensando sobre isso e não precisa ser
apenas o gibi em si, podem ser outros materiais, mas também a mídia visual, como
por exemplo, vídeos, onde tem a imagem e a legenda junto. Enfim, qualquer tipo de
História, filme que tenha a imagem e também a legenda em Português pode ser
utilizado. Esses materiais vão ajudar o aluno surdo na construção da escrita do
Português, e certamente irao contribuir para seu aprendizado e desenvolvimento. Mas
sempre lembrando que é o Português juntamente com o visual. No início do
aprendizado dessa língua há, sim, uma dependência do visual para compreensão do
texto. Com o tempo começa um desprendimento do visual, até ele se tornar autônomo
na leitura do Português. E a partir desse momento, o aluno poderá ler qualquer coisa
escrita em Português.
BIANCA: Como tu te sentes após esses três encontros, revendo tudo o que tu
apresentaste? Como te sentes ao relembrar fatos da tua experiência, que é única?
Explica para nós.
122 TULIPA: Ao rever o que foi sinalizado eu pude relembrar meu passado novamente e
confirmar que realmente é verdade. Eu percebi que, se hoje eu sou uma professora, é
realmente em função dessas experiências que eu relatei nos vídeos. Foi um resgate
para mim. Eu me senti de volta ao passado. Deu vontade de ver aquelas coisas
novamente, de brincar novamente com meus primos e vizinhos, de fazer tudo de novo.
Ao ver os vídeos também senti vontade de continuar buscando outros materiais,
reforçou meu desejo de prosseguir minha prática utilizando os textos e o visual.
LÍRIO: Quando eu me vi sinalizando achei muito diferente. Contei acontecimentos de
muitos anos atrás, não por serem fatos desde o meu nascimento, mas por se tratar de
coisas que aconteceram como se fosse um outro mundo diferente de agora, um
mundo cheio de marcas, de proibições, de oralização, de diversas coisas ruins. E hoje
é muito diferente, é um mundo livre. Posso demarcar essa liberdade a partir de 2010,
quando tivemos o Letras/Libras e diversos outros avanços para os surdos. Ao
visualizar o vídeo senti que estamos bem melhor agora, pois antes era uma época de
sofrimentos. Agora não temos sofrimentos, angústias, está tudo bem, muito melhor.
Percebo a escola Alfredo Dub aberta, livre. Antigamente não tínhamos nem livros para
contar Histórias, não tinha o visual aliado às explicações dos professores, o enfoque
era apenas na oralização e na escrita. Não tínhamos nenhum material que os
professores nos dessem para apoiar, nada. Mas ao contrário daquela época, hoje
posso apresentar para meus alunos livros de Histórias e eles aprendem com isso,
como por exemplo, Chapeuzinho Vermelho etc. Eu dou esses livros para eles
manusearem e sei que vão crescer com esse aprendizado. Mas na minha época isso
não existia e hoje aproveito para apresentar para ele esses diversos materiais. O que
foi sinalizado realmente é verdade, pude constatar.
BIANCA: E analisando tua prática, vocês duas têm uma identidade de professoras.
Mas como essa identidade foi construída? Vocês não decidiram que seriam
professoras e pronto. Não! Teve influência de algumas coisas, fatos, pessoas. Desde
criança, os contatos, os contextos, fatos que influenciaram na constituição como
professora. E revendo o vídeo, tu te sentes bem? Tu sentes que hoje alcançaste o que
querias? Conseguiste estabelecer uma ligação entre as coisas que colocaste no vídeo
e a tua realidade e realizações de hoje?
LÍRIO: Antigamente o ensino era muito tradicional, totalmente diferente do ensino que
temos hoje. Naquela época era um momento de proibições e hoje é um momento de
empoderamento. Antigamente apenas copiávamos e hoje não temos mais isso. Hoje
também temos a grande diferença de possuir professores surdos atuando nas escolas,
coisa que antigamente nem se pensava. Hoje o surdo pode ser um professor e utilizar
123 na sua prática sua própria experiência, a contação de Histórias, o visual. Hoje os
professores surdos são também alfabetizadores, como temos aqui a Dália. E o que eu
sinto ao ver o vídeo é que antes era um sofrimento, não tínhamos todas essas coisas,
até porque os professores não conheciam as especificidades didáticas para os surdos.
Eram diversas as dificuldades. Mas hoje há o conhecimento da questão cultural dos
surdos, da comunidade surda e de como o ensino deve ser diferenciado. Hoje é muito
melhor!
BIANCA: Vocês se sentem felizes por serem professoras surdas hoje?
TULIPA: Sinto muito feliz, sim, pois meu sonho era exatamente isto que estou fazendo
agora. Antes fazia apenas parte dos meus sonhos e eu concretizava parte dele
quando brincava com meus vizinhos, mas não era real. E eu segui sonhando e
perseguindo esse sonho quando ingressei no magistério, fui estudando, me formei. E
quando me chamaram para atuar de verdade eu sinto a realização do meu sonho, que
ele se tornou real. E hoje eu desejo que os surdos cresçam, desenvolvam-se, vão
adiante! Mas eu me sinto feliz trabalhando tanto com alunos surdos quanto ouvintes.
Eu gostei deste trabalho com ouvintes. Mas o interessante é que atuar com alunos
ouvintes não fazia parte do meu sonho. Nos meus sonhos eu queria ser professora de
alunos surdos, até mesmo em função das necessidades que tínhamos naquela época.
Mas quando eu me dividi entre o trabalho com surdos e ouvintes, foi uma experiência
muito boa para mim, eu gostei. Hoje gosto muito de atuar com os dois, mas o trabalho
com alunos surdos tem mais o sentido de realização, pois é o que fez parte dos meus
sonhos por muitos anos.
LÍRIO: Quando eu pensava que queria ser uma professora, não me sentia capaz para
isso. Hoje eu sei que sou capaz! Não sinto da forma como eu pensava antigamente,
sobre essa incapacidade. Sinto-me como uma professora constituída, pronta para
atuar. Eu vislumbrava, sonhava com meu futuro e não conseguia me ver como uma
professora, até porque não existiam professores surdos na minha época, então eu não
achava que seria capaz disto. E hoje eu posso e sou uma professora surda. Quando
viajamos para o congresso em 1999 e vimos professores surdos ensinando através da
Libras, foi uma surpresa muito grande para nós. Foi um susto e uma alegria. E no ano
2000 ingressei no curso do Magistério, tudo em função daquela realidade e também
das orientações que nos deram naquele momento. E esse congresso em São Paulo
foi um marco para mim, pois eu vi que os surdos realmente poderiam ser professores.
BIANCA: Agora prometo que é a última pergunta. Falta alguma coisa para que vocês
tenham um futuro ainda mais feliz? Falta algo que vocês ainda queiram que aconteça?
124 Hoje vocês são professoras, alcançaram o sonho que tinham, mas falta alguma coisa?
Tem algo mais que vocês desejam?
TULIPA: Hoje sou uma professora, mas faltam algumas coisas sim. Ao mesmo tempo
em que eu trabalho na escola com alunos surdos, sinto que para a sociedade esse
trabalho ainda não é claro, que ainda faltam mais coisas. Sinto que falta um trabalho
mais focado nos pais, como se fosse uma disciplina específica para eles, além do
trabalho com os alunos surdos. Um momento que permitisse esse encontro com os
pais a fim de auxiliá-los a como lidar, conviver, ensinar seus filhos surdos. Além disso,
eu também gostaria de ensinar meus colegas, os professores ouvintes, para que eu
pudesse ajuda-los no ensino dos surdos. Eu gostaria também de poder integrar os
alunos surdos com ouvintes, para que houvesse uma integração social muito maior.
Outra coisa também é o fato de ter para os ouvintes apenas a disciplina de Libras. E
não deve ser assim. Deveríamos criar uma nova disciplina que contemplasse também
as teorias sobre os surdos, sobre sua História, a linguística e todos os outros
assuntos. Acredito que deveria ser uma nova disciplina mais teórica. E também um
outro sonho muito grande meu é que aqui na escola Alfredo Dub fosse criado um
laboratório de Libras e uma sala de filmagens. Os surdos têm muita dificuldade de
leitura das disciplinas que são mais teóricas, como Geografia, História, Ciências etc.
Com o laboratório de Libras, esses textos poderiam ser filmados, traduzidos para
Libras e distribuidos em um dvd das disciplinas para cada um dos alunos. São sonhos,
sonhos que não param nunca.
LÍRIO: O meu sonho é que aqui no Alfredo Dub tenhamos também o Ensino médio.
Mas vai ser uma luta. E não podemos parar. Precisamos nos organizar e lutar para
isso, para o futuro. Porque da maneira como é agora, quando concluem o Ensino
Fundamental, cada surdo vai para um lugar, para um lado, para uma escola e acabam
sentindo saudade, falta daqui, pois já estavam acostumados. Tanto que muitos deles
geralmente voltam para visitar, a fim de matar as saudades e relatam como está sendo
difícil em outros lugares. E na medida do possível nós os auxiliamos.
TULIPA: Já que hoje nós temos a tecnologia, temos que usá-la a nosso favor e
realizar diversas coisas com ela que venham a auxiliar os surdos. Claro que para os
ouvintes também, como os pais e a família. Nesse laboratório poderiam ser filmados
os vocabulários em Libras e gravados em um DVD. Ou então quando nascem filhos
surdos de pais ouvintes que não sabem nada sobre o que isso significa, poderíamos
dar a ele um DVD com explicações sobre o que e como fazer. Eu sinto que falta esse
tipo de material
Anexo 3: Fotos dos objetos da Caixa de Memórias – segundo encontro
Fotos dos objetos da Caixa de Memória 1 (TULIPA)
126
Fotos dos objetos da Caixa de Memória 2 (Lírio)
127
Fotos dos objetos da Caixa de Memória 3 (Dália)