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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CIÊNCIAS SOCIAIS Paulo da Costa Pereira Neto BARGANHA E FREGUESIA NO MERCADO PÚBLICO: UM ESTUDO DE CASO FLORIANÓPOLIS 2010.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CIÊNCIAS SOCIAIS · 2010. 12. 10. · Um estudo de caso. Este Trabalho foi julgado adequado para obtenção do Título de “Bacharel em Ciências

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CIÊNCIAS SOCIAIS

Paulo da Costa Pereira Neto

BARGANHA E FREGUESIA NO MERCADO PÚBLICO:

UM ESTUDO DE CASO

FLORIANÓPOLIS

2010.

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Paulo da Costa Pereira Neto

BARGANHA E FREGUESIA NO MERCADO PÚBLICO:

UM ESTUDO DE CASO

Trabalho de Conclusão de Curso elaborado sob a supervisão da

professora doutora Alicia Norma González de Castells o qual,

acompanhado de sua defesa e apresentação à banca examinadora,

confere o grau de bacharel em Ciências Sociais ao acadêmico.

FLORIANÓPOLIS,

2010.

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Paulo da Costa Pereira Neto

Barganha e Freguesia no Mercado Público:

Um estudo de caso.

Este Trabalho foi julgado adequado para obtenção do Título de “Bacharel em Ciências Sociais” e aprovado em sua forma final.

Florianópolis, 17 de novembro de 2010.

________________________ Professor Doutor Jacques Mick

Coordenador do Curso Banca Examinadora:

________________________ Professora Doutora Alicia Norma González de Castells

Orientadora Universidade Federal de Santa Catarina

________________________ Professora Doutora Maria Soledad Etcheverry Orchard

Universidade Federal de Santa Catarina

________________________ Professor Doutor Rafael José de Menezes Bastos

Universidade Federal de Santa Catarina

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Agradecimentos

Em primeiro lugar (e, sobretudo), agradeço a minha orientadora, Alicia Norma

González de Castells, pela seriedade, paciência e compreensão que dedicou a meu trabalho desde

seu projeto até sua conclusão. Os textos indicados por ela foram, sem dúvida, de grande ajuda.

Entretanto, é com sua rara capacidade de escutar com toda atenção o que os alunos têm a dizer,

com sua notável honestidade tanto ao criticar quanto ao elogiar o que lê e escuta e com sua

amabilidade que sinto que tenho um débito maior.

Agradeço também a meu primo, Diogo Santiago da Costa Pereira, pelas ótimas fotos

anexadas ao trabalho e a Ana Cristina Guimarães pela leitura paciente, pelas sugestões

bibliográfica, pelas críticas e conversas sobre o tema e a meu primo, Diogo São Tiago da Costa

Pereira que, voluntariamente, tirou as ótimas fotos aqui presentes. Além de um bom olho, um

fotógrafo deve ser veloz ao sacar a câmera, direcioná-la ao que se deseja registrar, focar e, sem

pedir qualquer autorização, apertar o botão;

ao professor Alberto Groissman, cujo auxílio durante o tempo que ficou responsável

pela disciplina de elaboração do TCC foi tão útil a tantos. Os comentários e as sugestões feitas

pela banca de avaliação durante a qualificação de meu projeto foram também muito úteis,

portanto, obrigado professor Rafael Bastos e professora Maria Soledad por aceitarem meu convite.

Por último, um agradecimento póstumo a alguém que jamais tive a oportunidade de

fazê-lo: a professora Cécile Raud. Foi ela quem despertou meu interesse pelo tema da Sociologia

Econômica durante um mini-curso que ministrou na 58a reunião do SBPC.

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Resumo

O objetivo deste trabalho é avaliar os elementos sociais e culturais envolvidos na

hora da compra e venda através de um estudo de caso: o comércio de frutos do mar no mercado

público. Dessa maneira, contesta os pressupostos generalizantes do homem econômico, buscando

fatores tão relevantes e decisivos quanto o próprio fator preço para a decisão durante a troca.

Palavras-chave: Mercado público, barganha e antropologia econômica.

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Lista de Figuras

Figura 1 -. ........................................................................................................................................ 25

Figura 2 - ......................................................................................................................................... 27

Figura 3 -. ........................................................................................................................................ 30

Figura 4 -. ........................................................................................................................................ 33

Figura 5 -. ........................................................................................................................................ 36

Figura 6 – ........................................................................................................................................ 38

Figura 7 - ......................................................................................................................................... 40

Figura 8 -. ........................................................................................................................................ 43

Figura 9 - ......................................................................................................................................... 45

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Sumário

Introdução ................................................................................................................................... 11

1. Discussão Teórica Preliminar ..................................................................................................... 16

1.1 Indivíduo e Valor .................................................................................................................. 16

1.2 Definição de Consumo .......................................................................................................... 19

1.3 Definição da Barganha .......................................................................................................... 21

2. O Mercado público: das origens aos dias de hoje ....................................................................... 23

2.1 As barraquinhas .................................................................................................................... 23

2.2 O mercado e a vida política local: Barraquistas versus Vinagristas ..................................... 24

2.3 O Mercado hoje .................................................................................................................... 27

3. Indo ao Mercado ......................................................................................................................... 28

3.1 Preconceitos, problemas e medos iniciais ............................................................................. 28

3.2 Por que escolhi o Mercado .................................................................................................... 29

3.3 Descrição das saídas ............................................................................................................. 30

3.4Algumas hipóteses ................................................................................................................. 33

3.5 Problematizando as primeiras hipóteses ............................................................................... 34

3.6 As vitrines ............................................................................................................................. 36

3.7 A proximidade e a compra .................................................................................................... 38

3.8 Conversando com clientes .................................................................................................... 40

3.9 Últimas impressões do mercado e “outros mercados” .......................................................... 42

4. Considerações Finais ................................................................................................................... 43

4.1 Fronteiras convencionais do tradicional e do moderno ......................................................... 43

4.2 Aproximação como "fato social" .......................................................................................... 44

4.3 Frutos do mar são "bons para pensar" ................................................................................... 46

4.4 Barganha e Freguesia ............................................................................................................ 48

Referências Bibliográficas .............................................................................................................. 49

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Introdução

O assassinato cometido por Rodión Románovich Raskolnikov, personagem principal

do romance "Crime e Castigo" (2002), quando enxergado sob um ponto-de-vista estritamente

econômico, desde seu planejamento até as ações que o sucederam, pareceria algo absurdo.

Raskolnikov é um jovem desempregado que recentemente abandonou seus estudos.

O aluguel de seu minúsculo quarto está há meses atrasado e diariamente o jovem intelectual se vê

obrigado a escapar sorrateiramente da pensão onde mora e dos olhos de sua proprietária. A

constante falta de dinheiro o leva a penhorar bens de estima como o relógio de seu falecido pai e,

não raro, Raskolnikov passa dias se alimentando mal ou mesmo sem comer qualquer coisa.

Até aí parece não haver dúvidas de que o plano que vem arquitetando (e do qual, por

mais que tente, não consegue escapar) é conseqüência de sua miséria material ou até de algo como

a "pressão social que sofre do meio em que está inserido", um tema freqüente na literatura do

século XIX, particularmente entre aqueles escritores conhecidos como "naturalistas” 1. Com o

correr das páginas, o protagonista afinal reúne coragem suficiente para consumar o ato. Numa das

seqüencias mais famosas da literatura universal, assassina a velha dona da casa de penhores junto

de sua irmã, que por acaso surge na cena do crime, e foge com dinheiro e alguns pertences de

valor que consegue enfiar no bolso. Entretanto, ao contrário do que se poderia esperar de um

“indivíduo racional” (Douglas,1987) Raskolnikov não paga a pensão atrasada, não compra roupas

novas, não foge do país, não gasta todo o dinheiro em uma noite de prazeres nem renova seu

estoque de comida. Ao invés disso, dirige-se até um terreno baldio abandonado e lá esconde todo

o produto do roubo sem demonstrar qualquer intenção de um dia voltar para resgatá-lo. Para

completar tal quadro de incoerências, Raskolnikov seguiria o resto da trama recusando dinheiro de

quem lhe oferece, atirando alguns trocados que ocasionalmente surgissem em suas mãos do alto de

uma ponte ou ainda doando à família miserável de um alcoólatra de quem sabe muito pouco a

respeito. Pouco a pouco, fica claro ao leitor que suas motivações não foram de ordem material.

Não tratava-se de uma medida econômica desesperada. Não foi a fome, a ganância ou a

humilhação por se sentir um miserável que o levaram a cometer o crime hediondo2. Como as

novelas policiais de Agatha Christie que hipnotizam o leitor e não lhe permitem que largue o livro

até que a identidade do assassino seja revelada, aqui também há um mistério, embora saiba-se de

ante-mão quem cometeu o crime, não sabe-se o porquê.

Embora o romance citado seja, evidentemente, uma ficção, não é difícil

encontrarmos em nossa vida cotidiana exemplos de casos semelhantes, isto é, casos onde, à

primeira vista, as escolhas dos indivíduos envolvidos não fazem nenhum sentido quando

1 Ver, por exemplo, "Germinal", de Émile Zola, ou "O Cortiço" de Aloísio Azevedo. 2 As razões que levaram Raskolnikov a cometer o assassinato já foram bastante discutidas por críticos da obra,

como o próprio tradutor da obra para o português coloca no posfácio da edição que li (Dostoievsky, 2002). No livro, o personagem da sua própria explicação: afirma que, baseando-se na teoria por ele mesmo elaborada e exposta num artigo sobre as duas categorias de homem, os "ordinários", que estão submetidos à moral, e os "extraordinários", que estão além desta, estaria tentando provar a si mesmo que pertence ao segundo grupo. Entretanto, o personagem também afirma que a liberdade intelectual que o dinheiro poderia lhe proporcionar foi também uma de suas motivações quando iniciou o desenvolvimento do plano.

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encarados de acordo com a fórmula do "mínimo gasto e do máximo ganho3". Como pode um bar

que vende as mesmas marcas de cerveja por um preço mais elevado ser mais freqüentado que

outros mais baratos? Ou ainda, por que escolhemos um produto sem muitas vezes sequer conferir

os preços de outras marcas e estabelecimentos?

Além do mencionado fator-preço, é fato que existem outros elementos importantes

que orientam as escolhas do consumidor na hora da compra. Como afirmam Douglas e Isherwood

(2004), os publicitários têm plena consciência disso e é precisamente por esse motivo que têm

seus empregos garantidos e bem remunerados. Quando um comercial é exibido na televisão, é

notável a diferença de formato de acordo com o público que se visa atingir: crianças, milionários,

pessoas chiques, mulheres... Um exemplo: o tipo de apelo encontrado nas propagandas de uma

revista de charutos é absolutamente diferente daquele encontrado entre as páginas de uma revista

para meninas adolescentes. Ora, há um comprador para cada produto, quero dizer,

É claro que nada disso é novidade. Não seria nem exagero tratar um ponto de vista

dessa natureza como parte integrante do “imaginário coletivo ocidental”, quero dizer: ninguém

precisa estudar antropologia para saber que alguns produtos exercem um fascínio sobre

determinado grupo humano e outros produtos exercem sobre outros grupos humanos. É

exatamente essa a razão. No entanto, os economistas tradicionais deliberadamente buscam

alcançar a maior objetividade possível através da anulação da ação individual (Douglas e

Isherwood, 2004). A eles pouco interessa saber porquê o indivíduo está consumindo, quais são

seus desejos e como o bem adquirido pode saciá-los. Isto é tratado como coisa subjetiva, matéria

interessante talvez a psicólogos, mas não àqueles que pretendem entender as dinâmicas

econômicas rigorosamente (ibidem). É, assim, tomado como fora de questão as já mencionadas

motivações racionais do sujeito econômico: independente da localização geográfica e do período

histórico, é o critério preço que guia a ação do comprador.

Tal postura seria justificável teoricamente através do pressuposto de que, haja visto

seu caráter inesgotável, tentar entender a realidade econômica em sua plenitude seria impossível

(Kreps, 1990). Assim, far-se-ia necessário estudar alguns "elementos-chave" dessa realidade e

manter outros, por assim dizer, ceteris paribus (usando o jargão economista), isto é, deixá-los

constantes, sem variação, argumento que considero bastante razoável quando levamos em conta

que as motivações dos agentes envolvidos só se reduzem teoricamente à esta espécie de "cabo de

guerra" entre consumidor e firma.

No entanto, tal postura extrapolou a ciência econômica, de modo que aspectos

culturais que poderiam ser relevantes para o entendimento das dinâmicas econômicas de um país e

de uma época são deixados de lado como se fosse o mercado, de fato, auto-regulável e as ações

humanas irrelevantes para seu entendimento (Polanyi, 2000). Caio Prado Júnior (1994), por

exemplo, tentando compreender as razões que levaram o Brasil a não se tornar uma super-potência

3 Refiro-me ao modelo do homo oeconomicus que serve de base para a teoria microeconômica. De acordo com

este, as ações econômicas são guiadas segundo o princípio de que o consumidor busca reduzir o preço ao máximo enquanto a firma tenta aumentá-lo, alcançando um ponto de equilíbrio que é o preço que se verifica (ver, por exemplo, Kreps, 1990)

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econômica, caso do também recém descoberto Estados Unidos, apesar do território vasto e dos

abundantes recursos naturais, escreve:

Como se vê, as colônias tropicais tomaram um rumo absolutamente

diverso do de suas irmãs da zona temperada. Enquanto nestas se

constituirão colônias propriamente de povoamento (...), escoadouro dos

excessos demográficos da Europa que reconstituem no novo mundo

uma organização e uma sociedade à semelhança do seu modelo e

origem europeus; nos trópicos, pelo contrário, surgirá um tipo de

sociedade inteiramente original. Não será a simples feitoria comercial

(...), mas conservará no entanto um acentuado caráter mercantil; será a

empresa do colono branco que reúne à natureza, pródiga em recursos

aproveitáveis (...), o trabalho recrutado entre raças inferiores que

domina: indígenas ou negros africanos importados. (Prado Júnior,

1995, p. 30 - 31).

Embora os constantes comentários etnocêntricos, como a afirmação de que a

escravidão no Brasil não trouxe o avanço que se verificou em outras partes devido ao fato dos

povos aqui subjugados não terem tido com o que contribuir para o progresso tecnológico, ou até

racistas, como o final da citação acima, poder-se-ia dizer que Caio Prado Júnior estava

precisamente tentando ir além dos argumentos que atribuíam a elementos biológicos as causas do

"insucesso" da investida brasileira, como o argumento da inferioridade racial de nossos

colonizadores. A lógica de sua argumentação tampouco nos daria margem para afirmar que, caso

o processo tivesse sido inverso, os do norte explorados e os do sul povoados, a história teria sido

igual, porém de cabeça para baixo. O autor atribui muito de nosso "pecado original" à nossa

preguiça: ao fato de desperdiçarmos nosso tempo livre deitados em redes e de nos contentarmos

com técnicas antiquadas para o plantio e extração mineral.

Todas essas pequenas referências à cultura brasileira são, além de superficialmente

tratadas, apenas um pano de fundo para a argumentação econômica e política (isto é, da relação

entre as nações) que parece muito mais relevante. Não se pergunta ele, por exemplo, por que o

mercado interno não se desenvolveu ou os critérios para obtenção de status entre os donos de

engenho, como se fosse a acumulação de capital uma meta universal entre os "opressores": os

homens são implicitamente retratados em sua obra como entes homogêneos que compartilham dos

mesmos interesses e objetivos, independente do contexto em que se apresentam. Lucro e

minimização de gastos seriam, assim, metas universais.

Muitas críticas a este tipo de generalização economicista já foram feitas por

economistas e teóricos de outras áreas das ciências humanas4 Karl Polanyi (2000), baseando-se em

4 O próprio Dostoievsky poderia ser considerado, nesse sentido, um precursor e "Crime e Castigo" é visto por

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fontes históricas e etnográficas, mostra-nos como a busca pelo lucro é uma motivação limitada,

tanto no sentido espacial quanto temporal: em sociedades fora do escopo ocidental, a "re-

distribuição" e "a retribuição"5 são conceitos muito mais eficazes para explicar as razões que

movem os indivíduos a trocar e produzir. Um exemplo tomado pelo autor é a prática do kula,

estudada por Malinowski:

"Descrevemo-lo [o Kula] como um comércio, embora ele não envolva

qualquer lucro em dinheiro ou em espécie. As mercadorias não são

acumuladas, nem mesmo possuídas permanentemente; o gozo dos bens

recebidos está justamente em poder dá-los em seguida" (Polanyi, 2000,

p. 69).

Além de argumentar que a permuta comercial e suas motivações não são universais,

é interesse deste autor mostrar como estes elementos só vem à tona muito recentemente na história

européia. O "comércio interno" ou "nacional", termos análogos que remetem ao tipo de prática

comercial onde produtos iguais produzidos em diferentes partes tornam-se concorrentes, não

substituiria o "comércio local" e o "comércio complementar" sem o advento do Estado. Para

Polanyi (ibidem) não há "evolução natural" de uma forma para outra: das trocas "simples" para

outras mais complexas, como se o escambo, por exemplo, fosse um tipo de prática rudimentar que

um dia amadureceria para outra mais complexa (capitalista). O Estado moderno é elemento

fundamental para o surgimento da competitividade entre nações européias (que depois se

espalharia pelo mundo) e as motivações que levam diferentes indivíduos a permutar bens varia de

acordo com o contexto cultural.

Ainda assim, pareceria legítimo ignorar as diferenças culturais e as motivações

pessoais dentro dos limites da sociedade ocidental moderna, já que não se trata nem de estudar o

outro nem de estudar o passado. No entanto, como coloca Zelizer (2007), ainda que sejam tratadas

como formas marginais de troca, as permutas onde as relações inter-pessoais transparecem com

mais força representam uma quantia bastante significativa para o PIB nacional. Mesmo nas bolsas

de valores, onde a racionalidade do sujeito econômico parece alcançar seus graus mais elevados,

os "rumores" e a influência da ação dos "acionistas maiores" sobre os "menores" exercem grande

influência na decisão da melhor aplicação (Müller, 2005).

O objetivo de meu trabalho é resgatar a pessoalidade latente nas relações econômicas

através de um estudo de caso. Escolhi a "barganha" como objeto de estudo e o Mercado Público

muitos como uma crítica às teorias deterministas biológicas e sociais tão em voga na época.

5 "Re-distribuição" diz respeito àqueles tipos de prática vigentes em sociedades onde os produtos da caça ou da colheita são agrupados em lugar comum e re-distribuídos pelo líder. A "Retribuição", por sua vez, assemelha-se muito à idéia de "obrigação de retribuir a dádiva" desenvolvido por Marcel Mauss (2003), embora este não seja citado pelo historiador húngaro. Mauss se utiliza de uma abundante bibliografia etnográfica para demonstrar que a continuidade das trocas em sociedades onde há prestação total não se dá através do interesse mútuo de acumulação, mas sim num movimento de doação e obrigação de retribuir que por vezes culmina na destruição massiva dos bens trocados, caso do potlach.

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Municipal de Florianópolis como local de trabalho, mais precisamente, a venda dos frutos do mar

que ocorre lá. É importante notar que, como já suspeitava antes de sair a campo e como viria a

confirmar mais tarde, os preços já estão pré-estabelecidos e não são negociáveis da forma como

seria de se esperar em um estudo dessa natureza. Entretanto, na hora da compra é comum ocorrer

um tipo de proximidade entre consumidor e vendedor pouco usual quando comparado com a

compra num supermercado, onde bens do mesmo gênero são comercializados. Não trata-se de

algo restrito àqueles que já têm um passado consolidado no mercado e que já são familiares com

os freqüentadores: muitos dos consumidores não fazem suas compras se não esporadicamente,

outros são turistas e outros ainda são freqüentadores que permanecem no anonimato, o que no

entanto não impede que analisem com cuidado os produtos nas vitrines e conversem por longo

tempo com os atendentes antes de efetuar suas compras, como observei em minha saída de campo.

Interessa-me, portanto, descobrir os elementos que encorajam a aproximação entre as duas partes.

O trabalho é dividido em quatro capítulos: no primeiro, resgato uma discussão teórica

ligada a três conceitos fundamentais para o desenvolvimento de minha argumentação: valor,

consumo e barganha. No segundo, procurei familiarizar o leitor com o mercado através de um

apanhado histórico e de uma descrição do local hoje. O terceiro é um resumo de minha saída de

campo enquanto o quarto toma um pouco de cada capítulo antecessor para concluir o trabalho.

Em diversos momentos, fiz comparações com as dinâmicas de compra que se

verificam em supermercados e shopping centres. Não foi meu objetivo colocá-los em oposição ao

mercado, como espero que fique claro mais para frente, somente usá-los como um meio para

melhor desenvolver a argumentação. Também me utilizei ocasionalmente da terminologia de

Simmel (2005), particularmente sua distinção entre "relação de ânimo" e "relação de

entendimento". Não obstante, é importante notar que Simmel estava fazendo uma análise macro

das grandes cidades em comparação com as pequenas, absolutamente diferente do tipo de estudo

que empreendi. Era seu objetivo entender as formas do cidadão da grande cidade lidar com o meio

urbano que o rodeia e as conseqüências psicológicas disso em comparação com a vida nas cidades

pequenas.

A "relação de entendimento" é a relação típica do meio urbano. Ela só poderia

ocorrer num contexto onde estamos tão rodeados por desconhecidos que eles já não causam

estranhamento: na calçada, a grande maioria dos que passam por nós sequer chama nossa atenção;

o motorista do ônibus pára com indiferença no ponto para quem acena; no banco, somos atendidos

pela ordem numérica da senha, em suma, na grande cidade, a carga de informações a que estamos

submetidos (pessoas, letreiros, construções, avisos, sons, cheiros...) é tão volumosa que somos

obrigados a ignorar a grande maioria delas ou tratá-las com indiferença numérica, burocrática,

matemática... Por sua vez na pequena cidade, onde todos se conhecem, cada indivíduo, aos olhos

de seus concidadãos, é portador de algo que o distingue dos outros habitantes locais. A "relação de

ânimo" é caracterizada pela proximidade das relações humanas. Um estranho, aqui, não passa

despercebido, mas é notado e até estigmatizado.

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Quando adotamos um olhar menos amplo da realidade urbana, isto é, menos

generalizante, mais micro e mais restrito, é fácil notar que os contornos da figura formada quando

estamos afastados torna-se mais complexo, com mais detalhes, mais sutilezas. No lugar da

imagem uniforme que a dicotomia esboçada por Simmel sugere, o indivíduo manifesta diferentes

formas de se relacionar com os que o cercam, circulando entre relações de pessoalidade (entre sua

família, por exemplo) impessoalidade (com os desconhecidos, com a caixa de supermercado) e até

relações intermediárias (as relações de vizinhança, ver Mayol, 2000).

No mercado público, "pessoalidade" e "impessoalidade" co-existiram e se revelaram

elementos-chave para a compreensão das dinâmicas de troca. Se, por um lado, pode parecer

inadequado o uso da terminologia de Simmel num estudo de caso, por outro, ela serve para

enfatizar a ambigüidade desse espaço enquanto lugar que está situado entre o tradicional e o

moderno numa cidade que é grande e pequena ao mesmo tempo.

1. Discussão Teórica Preliminar 1.1 Indivíduo e Valor

Nos primórdios da ciência econômica moderna6, um dos problemas centrais com que

se depararam os pensadores da época (que ainda não eram conhecidos como economistas) foi a

tentativa de entender o porquê do elevado preço de algumas mercadorias e o reduzido preço de

outras. Neste ponto, é importante notar que mais do que diferenças paradigmáticas restritas ao

campo do pensamento econômico, quando comparado ao pensamento científico e filosófico

vigente hoje, havia uma diferença ontológica, como assinalado por Foucault (1995), intimamente

relacionada com a forma com que estes pensadores buscavam uma solução para o problema.

Tratava-se de uma ontologia medieval que estabelecia uma divisão do ente em uma parte matéria e

uma parte espírito: o sentido do signo estaria em si mesmo e não na relação deste com um outro

ente que lhe atribuiria o sentido. É assim que o valor do ouro era tido como algo "divinamente

dado" (Foucault, 1995) e o preço das mercadorias como proporcional à sua utilidade (Denis,

1993).

Havia, porém, um problema prático evidente do qual foi o "paradoxo da água e dos

diamantes" sua manifestação célebre. Este paradoxo é explicado nas palavras de Adam Smith:

"Não há nada mais útil do que a água, mas com ela quase nada se pode

comprar. Pelo contrário, um diamante quase não tem nenhum valor de

uso, mas poder-se-á trocá-lo freqüentemente por uma enorme

quantidade de outras mercadorias" (Citado por Denis, 1993. pág. ).

6 - Para falar em "primórdios da ciência econômica" tenho como base o pressuposto bastante difundido nos

manuais de economia (ver, por exemplo, Pinho (Gremaud, 2006) ou Denis(1993)) que apontam como sendo o "Quadro Econômico" de Quesnay e a "Riqueza das Nações" de Adam Smith as duas grandes obras sistematizadoras e demarcadoras dos problemas econômicos.

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Foi partindo deste questionamento que Smith delinearia a distinção entre "valor de

uso" e "valor de troca", separação que viria a influenciar várias gerações subseqüentes de

economistas7.

Karl Marx foi um desses leitores de Smith que tanto bebeu de sua teoria quanto a

refutou. Ao analisar a mercadoria economicamente, Marx (1989) afirma que é em sua diversidade

de usos que esta adquire valor de troca8. A mercadoria pode se revestir sob a forma das mais

diversas utilidades e será precisamente pelo fato de serem "úteis" e, conseqüentemente,

possuidoras de valores de uso distintos entre si que poderão ser trocadas: não há sentido em

permutar dois bens exatamente iguais segundo os critérios da utilidade.

Entretanto, a Marx interessa analisar isto que é comum a todos os bens e não sua

utilidade, que varia de um para outro. A mercadoria torna-se elemento social na troca e não em

seus usos, que diferem de uma para outra. Seu "valor" (sic) é resultado dos trabalhos humanos nela

contidos e é através desses trabalhos que a mercadoria adquire sua característica social. É no

trabalho, que vai desde a sua extração até a manufatura, portanto, que está a chave para o

entendimento deste "mistério" da mercadoria, de seu "fetiche".

Dita associação de "valor" com "trabalho" não foi novidade de Marx. Como coloca

Foucault (1995), ela já aparecia na "Riqueza das Nações" e seria justamente este o grande marco

da virada epistemológica da disciplina que vai na mesma direção da mudança ontológica

caracterizada pelo rompimento entre "palavras" e "coisas" (Foucault, 1995): O valor dos bens,

enquanto valor de troca, deixa de ser visto como algo intrínseco aos próprios bens e passa a ser

analisado através das relações humanas envolvidas. Não obstante, enquanto Smith tratava o valor

de uso como "fato social" (Denis, 1993), isto é, o bem desejado coletivamente por ser útil para

algo específico, Marx encarava a mercadoria como possuidora de formas múltiplas de uso: Um

grão pode servir tanto para alimentar seres humanos como para engordar o gado que, por sua vez,

poderá servir como fornecedor de leite ou ser abatido para consumo.

Esta dualidade de interpretações do termo seria herdada por economistas ulteriores,

como deixa claro o verbete "utility" no dicionário econômico Palgrave (Eatwell, 1994). Aqui, o

autor (R. D. Collison Black) nota sua ambigüidade semântica, podendo tanto ser interpretado

como sinônimo de "usefulness"9 como ago parecido com um desejo "mais subjetivo", de acordo

com o jargão econômico. Smith, na tentativa de entender o "valor" da mercadoria, busca analisar

tanto seu valor de uso quanto seu valor de troca, ambos como elementos sociais (Denis, 1993).

Marx é, nesse sentido, um economista mais aos moldes das escolas econômicas que se seguiriam,

estas que deliberadamente deixam de lado a análise dos usos dos bens (Douglas e Isherwood,

7 Oliveira (Gremaud, 1996), ao introduzir o leitor aos princípios da microeconomia, começa justamente com

uma discussão sobre a utilidade dos bens, o que comprova a importância que até hoje guarda a separação feita por Smith. 8 Na verdade, Marx, neste capítulo, não fala em "valor de troca", mas simplesmente em "valor" como um outro

elemento constitutivo da mercadoria junto com o "valor de uso". 9 "Usefulness", no caso, não poderia ser simplesmente traduzido pelo termo "utilidade", já que este carrega a

mesma ambigüidade da palavra inglesa "utility", da qual tenta-se escapar. Trata-se da substantivação da qualidade de ser útil no sentido mais objetivo da palavra: um martelo é útil para pregar.

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2004) da mesma forma que a Marx não lhe interessa ir mais a fundo na discussão sobre os usos

dos bens, a ele bastando saber que suas utilidades variam de mercadoria para mercadoria.

A utilidade foi, assim, separada do preço. Entretanto, para os economistas é ainda ela

o elemento-chave para o entendimento das motivações do agente econômico na aquisição do bem.

Mas não é a utilidade da forma trabalhada por Marx, mas sim aquela que vê nos bens utilidades

bem particulares e generalizantes (de acordo com tal perspectiva, o vinho seria igualmente útil

para um “francês típico” como para um esquimó).

Isto vem sendo problematizado pela Antropologia / Sociologia econômica. Thomas

(Humphrey, 1992), dentre uma infinidade de outros autores que poderíamos usar, constatou que

alguns dos bens mais valorizados em diferentes culturas são precisamente aqueles que não são

utilizados nos afazeres cotidianos: seu alto valor simbólico faz com que sejam poupados e

colocados em exposição, o que já deixa claro que seus usos não são absolutos mas dependem da

relação estabelecida com o bem. Além disso, há um outro ponto importante já levantado por Marx

e que mais tarde Douglas e Isherwood (2004) retornariam: enquanto muitos economistas tentaram

entender a utilidade do bem através de uma separação entre necessidades físicas e espirituais,

Marx, como bom materialista, colocava em dúvida a possibilidade desta divisão. Tomando mais

uma vez o exemplo do texto de Thomas: afinal, as ferramentas devem ser entendidas enquanto

bens de luxo que conferem status ao seu possuidor, ou como ferramentas que servem para plantar

e colher10?

O conceito de valor que adoto neste trabalho difere-se daquele tradicionalmente

definido por economistas na medida em que não está relacionado com a idéia de utilidade, seja em

sua dimensão subjetiva, seja como necessidade. Tampouco me interessa estudar o valor como

valor de troca, ao menos como algo separado da dimensão cultural em que está inserido. Enquanto

Marx (como fazem os economistas de uma forma geral, ver Douglas e Isherwood, 2004) deixou de

lado a dimensão qualitativa do valor de uso e focou o aspecto quantitativo do valor-trabalho

(medido em horas de trabalho) meu trabalho engloba justamente isto que fica aquém ou além

(dependendo do ponto de vista) da análise econômica: o valor enquanto categoria simbólica

compartilhada por um grupo. Portanto, o valor enquanto elemento cultural, compreendido

socialmente.

E como isso se manifesta nas práticas individuais? Marshal Sahlins (1995) trabalha

esse problema em termos de "valor" e "interesse". Em primeiro lugar, o signo não apresenta um

valor absoluto que pode ser apreendido através de uma observação cuidadosa, como defende a

corrente empiricista clássica (ibidem). O capitão Clerke, ignorando as diferenças de valor que um

ato simples como um amigável tapa nos ombros pode ter em diferentes contextos, o praticou com

um importante líder havaiano como sinal de amizade para logo em seguida ter sua mão

delicadamente retirada por um dos responsáveis por garantir a segurança do chefe, que

10 Refiro-me ao fato dos primeiros navegantes ingleses a entrar em contato com os habitantes das ilhas

havaianas se espantaram ao notarem que as ferramentas para trabalhar a terra que haviam presenteado os nativos locais não estavam sendo usadas para os fins que supunham, mas foram colocadas em exposição e poupadas.

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gentilmente solicitou ao capitão que tal gesto não se repetisse (Sahlins, 1995). O valor não está no

signo em si mesmo, mas na relação que os indivíduos estabelecem com o signo. Por si só, o ouro é

desprovido de qualquer valor, como a já mencionada discussão trazida por Michel Foucault nos

mostra. O valor enquanto categoria social será trabalhado pelo indivíduo em sua prática conforme

o seu interesse. Mas o interesse não é algo restrito ao campo individual na medida em que deve

passar pelos valores compartilhados pelo grupo. O valor de uma nota de cinco francos, como

ilustra o exemplo que Sahlins (1995) tomou de Sausurre, é determinado por sua relação com os

bens que pode comprar ou por outras unidades de valor quantificáveis (um franco, dez francos...),

ou seja, é socialmente compartilhado enquanto os usos que farei dessa nota dependerão de meus

interesses, seja comprar pão ou leite, depositar na poupança...

Portanto, o valor que me interessa é um valor antes simbólico e não quantificável:

ele varia de cultura para cultura segundo as relações positivas e negativas que este mantém com

outros signos. O valor do salmão para o nativo florianopolitano não se restringe ao seu preço,

ainda que um possa refletir o outro, mas é relativo à posição que ocupa em seu imaginário, onde

será determinado por suas relações com outros signos: enquanto peixe, está em contra-posição

com qualidades locais por vir "de fora", embora mantenha uma relação positiva com estes quando

comparado com a carne ou com o arroz...

1.2 Definição de Consumo A economia tradicional11 é definida por seus teóricos como "o estudo da alocação de

bens escassos" (Kreps, 1990). Temos aqui uma primeira distinção entre duas categorias de bens:

os escassos, aqueles que podem ser trocados, e os não escassos, abundantes e, portanto, não

passíveis de serem permutados.

Esta é uma definição interessante pela constatação de que nem todas as coisas são

potencialmente comercializáveis: não faz sentido tentar vender "ar" porque ele está

suficientemente ao alcance de todos (pelo menos por enquanto). Note-se, entretanto, que existe

uma questão a ser respondida primeira, talvez antes teórica do que prática porque, no fim das

contas, os economistas enquanto “interventores da realidade” devem ter o seu mérito (embora a

questão esteja num patamar tão hiper-especializado ao ponto de tornar-se difícil para alguém de

fora saber até que ponto eles de fato são eficazes no que fazem). O fato é que para produzirem

planos econômicos e fazerem suas previsões eles parecem não precisar deter-se mais longamente

com tais questões (Douglas e Isherwood, 2004). Já antropólogos e sociólogos que não possuem o

mesmo prestígio no quesito “prática” levam muito a sério esse tipo de coisa. Entre uma infinidade

de autores, poderíamos citar Thomas (Humphrey, 1994) que mostra como a linha divisória entre o

permutável e o não-permutável varia de cultura para cultura: Um porco, que para os navegantes

britânicos teria seu valor determinado por seu peso ou pela quantidade de carne que propiciasse à

tripulação, era, para os nativos havaianos, objeto de alta estima, isto é, suas vidas eram muito mais

11 Ver Nota 1.

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respeitadas entre estes do que entre aqueles. É claro que os havaianos resistiram todas as vezes que

tiveram que usar o porco como objeto de escambo. O que era uma forte estima simbólica

converte-se em “preços” mais elevados (pagos em enxadas, foices...) que os britânicos teriam que

se submeter a pagar para receberem os desejados porcos.

Mais adiante, o mesmo Thomas (ibidem) coloca um outro problema: os utensílios

para o arado eram bens muito valorizados pelos havaianos, embora não fossem usados em seu

trabalho cotidiano, mas sim poupados e deixados em exposição como sinal de status.

Inversamente, balaios de palha e arcos e flecha são deixados à mostra nas salas de jantar da casa

de antropólogos e outros simpatizantes da causa indígena, cumprindo aqui a mesma função dos

quadros e das toalhas com quem dividem o espaço. Ou seja: analisar o bem por si só não basta

para entender sua "escassez" nem o fato de ser trocado significa que seus usos e seus valores

sejam iguais para as duas partes. É nesse sentido que Douglas e Isherwood (2004) trazem à tona a

discussão acerca do conceito de consumo.

Consumo é comumente confundido com o fenômeno da troca comercial em si

mesmo: uma pessoa consumista é aquela que gasta deliberadamente (e até desnecessariamente). O

termo já tornou-se pejorativo no vocabulário comum, algo que remete à superficialidade e à

banalidade no mundo capitalista, refletindo ganância e egoísmo.

Não obstante, uma definição desse tipo excluiria todas aquelas sociedades que não

conheceram ou não conhecem a moeda e o mundo capitalista. Excluiria, inclusive, como coloca

Polanyi (2000), a maior parte da história ocidental, que só veio a conhecer muito recentemente o

comércio interno (em contra-posição a outras formas de comércio complementar).

É assim que Mary Douglas e Baron Isherwood (2004) buscam re-definir o consumo

como objeto de estudo antropológico de acordo com duas características que seriam universais: 1)

O consumo é uma ação livre e 2) O consumo está além do mercado12. Isto quer dizer que o sujeito

não consome uma maçã enquanto a compra, mas quando a come, joga fora, oferece aos deuses... É

livre porque o indivíduo não precisa necessariamente fazê-lo de uma forma específica, mas da

forma que bem entende segundo os fins que quer alcançar.

Aqui, vale lembrar a discussão apresentada acima sobre valor e interesse: dita

liberdade não significa afirmar que o sujeito aja isoladamente ao consumir. Seu interesse frente ao

bem está diretamente relacionado ao valor (ou aos valores) compartilhados socialmente a que o

bem remete. Quando Marcel Duchamp13 decidiu assinar um mictório e expô-lo em um museu o

fez ciente de que aquele uso do bem era inadequado segundo os critérios da cultura em que estava

inserido. Ele trabalhou os valores da sociedade burguesa européia da primeira metade do século

12 Esta definição não é completamente isenta de contradições. Como admitem os próprios autores, o consumo

(da forma definida) não é nem completamente livre nem precisa estar "além do mercado". Dois exemplos podem ilustrar essa afirmação: primeiro, quando adquire um maço de cigarros, de acordo com a lei, o sujeito está proibido de oferecê-lo para um menor de idade, quer dizer, não pode consumi-lo tão livremente. Segundo, embora uma empresa ao acionar o ar-condicionado para seus funcionários esteja consumindo livremente a energia elétrica que lhe é disponível, esta empresa pode considerar isto um gasto de produção e solicitar um abatimento no imposto de renda, ou seja, está ainda dentro dos limites do mercado.

13 Marcel Duchamp (1887 - 1968) foi um artista plástico franco-americano cujo nome é associado aos movimentos de vanguarda artística da primeira metade do século XX (particularmente, ao dadaísmo e ao surrealismo).

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XX para atingir seu interesse (escandalizar, revolucionar as artes plásticas...). Sua ação não foi

uma ação subjetiva no sentido estrito: foi antes o resultado de uma forma de trabalhar com valores

compartilhados relativos ao ideal de obra-de-arte, de bem industrializado, dos usos daquele objeto

específico e do trabalho do artista que convergem no sentido a alcançar o fim de causar a polêmica

e re-abrir uma discussão conceitual. Ou seja: por trás do bem não há uma maneira correta ou

necessária de uso, estes são, antes, socialmente construídos.

Assim os autores encontram uma maneira diferenciada de encarar o consumo quando

comparado à perspectiva econômica tradicional, que pode ser vista como exatamente oposta à

definição proposta: os economistas focam o consumo precisamente no momento da compra,

portanto, "no mercado" e não "além deste". Além disso, eliminam o "gosto" da análise tratando-o

como algo estritamente subjetivo. A prática individual é encarada como resultado de interesses

econômicos estritos: o sujeito "compra mais" quando o preço cai, seu desejo de adquirir o bem

diminui à medida que já o possui em certa quantidade, entre outras leis da teoria micro-econômica

que, por assim dizer, tornam a ação do sujeito subjugada às oscilações do mercado e, portanto,

"não livre".

A definição de Douglas e Isherwood pareceu-me conveniente para meus propósitos:

foi meu interesse estudar justamente os usos da mercadoria, estes que apontam para os valores que

definem as formas de utilização, por assim dizer, "compatíveis" culturalmente, e que estão

diretamente relacionados com o status do bem. Dessa forma, a necessidade ou a utilidade da

mercadoria não terão espaço em minha caracterização, quero dizer, uma peça de roupa não será

encarada como algo "útil" para vestir ou para proteger do frio, mas como portadora de uma série

de significados compartilhados por um grupo social determinado que a tornam apropriadas ou não

para determinadas ocasiões: comportadas ou indecentes, extravagantes, provocantes, chiques...

1.3 Definição da Barganha

Meu objeto de estudos, a barganha, pode se manifestar de diversas formas: pode

ocorrer tanto em transações comerciais monetizáveis quanto no escambo, envolver dois ou mais

indivíduos, resultar em conflito ou consenso... O dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009)

traz como primeiro sentido do verbo "barganhar" o de "negociar por meio de troca; trocar

favores". Sua terceira definição é a que está mais próxima da que me interessa: "pedir redução do

preço de algo, pechinchar, regatear" (pág. 403).

O dicionário econômico Palgrave (Eatwell, 1987), por sua vez, dedica mais de cinco

páginas para a definição de "bargaining", sem levar em conta, "por falta de espaço", como assinala

o redator, os tipos de barganha que envolvem mais de duas partes (isto é, cliente e firma). Nesta

barganha "bi-lateral", duas conseqüências básicas podem surgir: o conflito (conflict) ou o acordo

(agreement). Todo o resto do esforço de definição é aqui justamente o de retirar qualquer resquício

de individualidade ou subjetividade. Além disso, um ponto muito significativo entra em jogo logo

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nas primeiras linhas: o autor só levará em conta os casos onde existe "informação completa"

(complete information)14.

Antes de sair a campo, essa parecia ser a situação: minha proposta era justamente

focar o preço como se fosse o único elemento passível de sofrer variação. Em minhas primeiras

observações (como descreverei com maiores detalhes mais para a frente) dei-me conta de que não

era o preço o elemento que levava os compradores a passar um tempo considerável observando e

conversando com os vendedores (a bem dizer, o preço tornou-se justamente a parte sólida do

processo de troca).

A proposta de Geertz (1978) para a análise antropológica da barganha nos bazares

marroquinos tem como foco principal a busca por informações num ambiente onde estas são

escassas e confusas. Num meio onde existe uma clara diferença qualitativa entre os bens, muito

mais do que o que se verifica nos estabelecimentos comerciais modernos, onde os produtos são

padronizados e a diferença é antes quantitativa, não basta uma negociação de preços: não se trata

de uma briga entre uma parte que quer pagar menos e outra que quer ganhar mais. As informações

tornam-se valiosas. Não apenas aquelas relativas a preços (saber onde se vende mais barato), mas

também, e principalmente, aquelas relativas a procedência do bem que se tem em vista, de sua

qualidade. É o que o autor chama de barganha intensiva (intensive bargaining), em oposição à

barganha extensiva (extensive bargaining).

Geertz usa a analogia da compra de carros para explicar esta diferença: ao comprar

um veículo novo, o indivíduo sabe que todos os veículos sairão de fábrica idênticos, ou seja, não

há razão para empreender uma busca por informações ligadas àquele que está adquirindo, mas há

para buscar em outras lojas ofertas melhores para aquele mesmo produto (barganha extensiva).

Em contra-partida, quando se compra um carro usado, esta busca por informações faz sentido, já

que saber quem foi o seu antigo proprietário, quantas vezes o carro sofreu acidentes ou se teve

problemas mecânicos no passado pode evitar uma má aquisição ou pode servir para a negociação

dos preços (barganha intensiva). De maneira análoga, os frutos do mar não são produzidos e

embalados em esteiras mecânicas por máquinas, seguindo uma lógica de divisão do trabalho que

busca torná-los iguais uns aos outros. Pelo contrário: além de variar consideravelmente de um para

o outro, são muito mais suscetíveis a passagem dos dias do que os produtos industrializados,

embalados a vácuo ou com adição de conservantes, o que justifica a preocupação dos clientes em

adquirir o peixe "fresco".

Assim, para nossos fins, interessa enxergar a barganha antes como uma "busca por

informações" do que como "tentativa de reduzir os preços". Note-se que isto vem na mesma

direção das definições já feitas de valor e consumo. A informação que se busca também depende

14 "Complete information" é chamada a situação, segundo a teoria dos jogos, onde todos os jogadores conhecem

as opções e as conseqüências de todos os envolvidos. O "dilema dos prisioneiros" é uma ilustração dessa situação: É oferecido a dois prisioneiros suspeitos, colocados em celas separadas e sem comunicação, o mesmo acordo. Se um deles acusar o outro enquanto este permanece calado, o traidor será posto em liberdade enquanto o que se absteve deverá cumprir 10 anos de prisão. Se os dois permanecerem em silêncio, haverá uma sentença comum de 6 meses de prisão enquanto no caso de um acusar o outro, cada um pagará com 5 anos de prisão (Gremaud, 2006).

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dos usos e dos significados por trás do bem: quando alguém pergunta qual peixe é mais adequado

para determinado prato (o que notei ser bastante comum no mercado) está empreendendo uma

busca de informações ao mesmo tempo em que está pensando numa situação específica onde este

será servido sem que haja disparidade entre o pescado escolhido, o prato, a refeição, a situação e

os valores compartilhados entre os indivíduos presentes.

Por outro lado, se tomarmos mais uma vez o conceito de "consumo" adotado junto

com o de "barganha", notaremos algo que poderia se afigurar como uma contradição: um está

além do mercado, nos usos do bem, enquanto o outro acontece precisamente "no mercado". Ora,

enquanto compra o consumidor tem em mente um uso específico do bem que reflete sua relação

com os valores deste mesmo bem. Ao mesmo tempo a compra para se efetivar dependerá de uma

série de elementos que só poderiam ser verificados no mercado: a qualidade do bem, seu preço e

até as relações com o vendedor. Portanto, as duas dimensões são antes complementares, e não

contraditórias.

2. O Mercado público: das origens aos dias de hoje

2.1 As barraquinhas

O prédio do mercado público que conhecemos hoje foi construído no final do século

XIX, mais precisamente em 1899. Antes dessa última edificação tomar corpo, o mercado existiu

sob diversas formas e em diferentes localizações do centro da cidade sendo freqüentemente

deslocado, conseqüência de um jogo de repúdio e simpatia a que esteve sempre submetido: por um

lado, desejado e necessário por sua função mais elementar nos tempos passados, a de fornecer

mantimentos indispensáveis para a vida na capital e por seu notável potencial para aglomerar as

massas ou, melhor dizendo, clientes para os estabelecimentos próximos (como veremos abaixo).

Por outro lado, a circulação da camada mais baixa da sociedade florianopolitana por seus

corredores conferiu ao estabelecimento a parcela de má fama que até hoje guarda em parte.

Em fins do século XVIII, o mercado era conhecido como local insalubre, sujo e

fétido onde se aglomeravam prostitutas, vagabundos e escravos (Silva, 1996). Nesta época, não

havia ainda um prédio ou um espaço demarcado para a compra e venda, somente um conjunto de

barracas montadas sobre a areia da praia que ficava logo em frente à praça principal da capital da

província, (atual praça XV)15 local, ao que tudo indica, escolhido pela confluência entre cidade e

mar: a praça era o coração da cidade onde se localizavam os prédios administrativos e a catedral

metropolitana (Cabral, 1979) e o mar, o local de trabalho dos pescadores estes que ali se

ajuntavam para trazer o produto fresco e vendê-lo em tendas ou nas próprias canoas.

15 Quem passa pela praça hoje não vê a praia que antes, segundo Cabral (1979), vinha até a altura da junção

entre as ruas Conselheiro Mafra e João Pinto.

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Mais tarde, com a abertura de vias para o interior da ilha, agricultores que plantavam

em suas comunidades espalhadas e até então isoladas começaram a trazer frutas e verduras para o

comércio. Eles viajavam mais de dois dias pelos precários caminhos até alcançar o centro da

cidade e por lá pernoitavam o tempo necessário antes de tomarem o caminho de volta. Por fim,

surgiram os produtos manufaturados nas casas da cidade: panelas, balaios e quitutes (Teixeira,

2002). Assim se formou este centro comercial meio anárquico que ficou conhecido na época como

"as barraquinhas".

Uma visão retrospectiva que tenha como parâmetro o sistema econômico e social

vigente hoje poderia, equivocadamente, encarar as barracas como locais de venda marginais na

economia da época quando, na realidade, até o advento dos modernos centros comerciais

(supermercados, shopping centres...), foram estas e as edificações que viriam subseqüentemente os

abastecedores de bens quase exclusivos da antiga Desterro16 (Silva, 1996), estigmatizadas mas, ao

mesmo tempo, fundamentais para a população urbana que não plantava nem pescava.

2.2 O mercado e a vida política local: Barraquistas versus Vinagristas

Como já dito, havia um conflito entre a importância do mercado enquanto fonte de

mercadorias indispensáveis à cidade e sua má fama. Às tendas precárias, sujeira e circulação de

maus elementos no centro da cidade seguiram-se uma série de discussões sobre o que fazer com as

"barraquinhas", evidenciando um discurso e uma preocupação "médico-higienista" nascente: Pela

primeira vez as preocupações sanitárias não estavam relacionadas a problemas temporários de

saúde pública, particularmente àqueles das épocas de epidemia, apontando para um discurso

urbanista de preocupações permanentes e estéticas (ibidem).

Em 1831 um ofício da câmara de Desterro solicita a destruição das barracas ao

governo provincial. Em 1834 a Regência determina a derrubada e em 1838 é decretada a

construção de um novo mercado. Nada saia do papel. Além da já mencionada importância para o

fornecimento de bens e do evidente custo que um novo mercado significaria ao erário, havia mais

um problema: as barracas foram construídas pela nação (por soldados desocupados) e eram

alugadas àqueles que as utilizavam, rendendo um montante anual de 126$840 (Cabral, 1979).

Não havia qualquer sinal de que alguma coisa fosse ser feita e poderíamos supor que

tudo continuaria igual por um bom tempo, não fosse o anúncio da visita do imperador à capital da

província, em 1845. Foi assim que as autoridades locais decidiram levar a cabo as decisões que

vinham se arrastando por mais de uma década: transferiram às pressas as barracas da praça central

para o "largo de Santa Bárbara, junto à Ponte do Vinagre, nas proximidades do Forte daquele

16 Antes de ser conhecida como Florianópolis, a cidade foi batizada com diversos nomes, entre eles Desterro. Silva (1996) afirma que a derradeira mudança onomástica foi resultado da política higienista que ganhou força com a proclamação da república. Desterro era um nome que remetia ao atraso e fazia-se necessário modernizar a capital em todos os aspectos. O artista plástico Franklin Cascaes era um dos que se recusava a fazer uso do nome que homenageava o Marechal Floriano Peixoto e que tornou-se motivo de controvérsia entre historiadores, já que foi durante seu governo que ocorreu o período de repressão e fuzilamento dos revoltosos contra a revolução federalista de 1893-4. Ver, por exemplo, o livro organizado por Eloy Galloti Peixot: "Florianópolis: homenagem ou humilhação?".

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nome, hoje Capitania dos Portos, lugar então que, de toda a cidade, era talvez o que mais

conviesse àquela sujeira toda... pois já gozava da fama de ser, dela, o mais imundo!" Cabral, 1979

(pág. 85).

Figura 1 - Os fundos do Mercado são a porta de entrada para os produtos que vem de fora. O mar chegava até aqui onde agora estão os caminhões estacionados. Crédito da foto: Diogo Santiago da Costa Pereira.

Com a visita do imperador, o povo teve finalmente a praça livre das barracas. O

imperador partiu, mas as barracas não voltaram, embora fosse este o plano original. Ao invés

disso, preferiram aproveitar o espaço para o lazer das famílias locais que antes se sentiam

intimidadas com a presença daqueles indivíduos de procedência duvidosa que freqüentavam o

mercado com outros fins além do de fazer compras (Cabral, 1979). Estava resolvido o problema

estético.

Havia, porém, outra complicação que viria instantaneamente à tona sob a forma de

uma grande controvérsia: Se não mais próximo à praça central, onde seria seu local definitivo?

Enquanto uma parte defendia a volta do mercado a sua localização original, estes que

antes já se opunham a remoção do mercado da praça, outra queria as barracas em qualquer outro

lugar da cidade, desde que longe da praça central (Cabral, 1979). O primeiro grupo era conhecido

como "barraquista" ou "cristão" que representava a ala conservadora da disputa, o segundo era

chamado "vinagrista" ou judeu, ala liberal. Seria da disputa entre estes dois grupos que nasceriam

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os dois primeiros partidos políticos catarinenses (Teixeira, 2002).

Jerônimo Coelho encabeçava o grupo dos "vinagristas" enquanto os conservadores

eram liderados por João Pinto da Luz, este que, não por coincidência, era dono de um

estabelecimento logo na entrada da antiga rua Augusta (hoje batizada com seu nome) de frente

para a praça. Pinto da Luz sofreu com a considerável diminuição de transeuntes depois da

locomoção do mercado. Junto com seus aliados reuniu mais de 60 assinaturas em um abaixo-

assinado para alcançar seus fins de trazer o mercado de volta à praça. Os vinagristas responderam

com um outro abaixo-assinado com mais de 100 assinaturas (Silva, 1996).

Havia um consenso entre as duas partes de que as barracas não eram adequadas para

a apresentação do centro da cidade, mas havia também o interesse econômico dos comerciantes

que era avesso à necessidade estética. Cabral (1979) narra com mais pormenores as controvérsias

que se sucederam em torno do problema. Por hora, basta colocar que a solução encontrada foi

levantar um prédio para o mercado junto à praça da igreja matriz, o que tanto traria o movimento

de volta para aquelas proximidades quanto não macularia a imagem da praça central com as

barracas. A permuta ocorreu em 1851, depois de solucionados os problemas de falta de verba para

a construção.

O fato do mercado localizar-se num prédio e não ficar mais espalhado em barracas

não evitou que a insalubridade continuasse a reinar no recinto, tanto que novas reformas já eram

previstas poucas semanas depois de sua inauguração (Silva, 1996). Os mesmos problemas de

ordem pública que tanto preocupavam os moralista da época apareceram: vagabundagem,

violência e prostituição. Diversas medidas foram tomadas para tentar regularizar a situação, mas

nada surtia o efeito desejado para a desordem que se alastrava para a praça central. Junto disso, um

novo problema surge no prédio: Sua pequenez não possibilitava que pescadores e agricultores

tivessem espaço dentro do mercado. Seus produtos se deterioravam com muito mais rapidez

expostos ao sol e à chuva.

Um galpão de peixe foi providenciado 1891, mas estava claro que aquele edifício não

poderia continuar abrigando um centro comercial de tamanha importância para os citadinos o que

fez ressurgir a velha disputa para definir a localização do novo mercado: Santa Bárbara, onde

ficaria ao lado do novo edifício da alfândega ou, obviamente, a praça central. A primeira saiu

vitoriosa. De acordo com Silva (1996), este foi mais um dos resultados da nova conjuntura política

nacional, pois “a república era considerado o sistema de governo do novo, da ‘verdadeira

civilização.’ Pois bem, uma ‘verdadeira civilização’ não pode ver a área central da cidade com

ares de atraso e sujeita a crises epidêmicas ainda freqüentes” Silva, 1996 (pág. 33).

Assim, ia o discurso médico-higienista causando transformações nas configurações

da cidade que antes se modificava sem nenhuma intervenção oficial. Em 1899 inaugurava-se o

novo prédio, que consistia na ala norte do mercado atual. Além do maior espaço, o gás acetilado,

um dos sinais de progresso, veio a substituir o querosene, uma série de normas limitava a

circulação daqueles indivíduos “não desejados” e a separação das “casinhas” (hoje conhecidas

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como “boxes”) propiciava uma melhor organização das mercadorias (Silva, 1996).

2.3 O Mercado hoje

Figura 2 - Área entre as duas alas do mercado. Não é mais permitida a passagem de carros por aqui onde se espalham as mesas e guarda-sóis dos bares. Crédito da foto: Diogo Santiago da Costa Pereira.

A ala sul seria construída três décadas depois da inauguração do mercado, em 1931,

junto com as duas pontes que a conectam à outra ala. O novo espaço era a área de luxo do lugar,

com salas para banhos, salas para refeição e um “elegante café”, o “Bar Miramar”, que tornar-se-

ia ponto de encontro da boemia da época (Silva, 1996). Antes do aterro feito durante o governo

Colombo Salles (1972-1975) a ala sul tinha contato direto com o mar e era através dos mesmos

portões por onde hoje é conduzido o pescado transportado pelos caminhões estacionados que

chegavam os barcos dos pescadores com seus produtos (Teixeira, 2002). Esta ala agora é voltada

para o Terminal Integrado de ônibus do Centro (TICEN), e é lá onde estão as peixarias, os bares e

restaurantes. A ala norte, em contra-partida, que antes abrigava as peixarias, verdureiras e

açougues, é hoje ocupada por lojas de sapato e roupas populares. Entre as duas, há um espaço por

onde antes passavam automóveis, agora preenchido com mesas e cadeiras dos restaurantes locais,

lugar bastante popular durante o verão, quando a cidade fica repleta de turistas, e que nos fins de

semana torna-se espaço para o samba.

Esta diferença funcional entre as duas alas reflete o tipo de freqüentador de cada

uma. Em minhas observações, notei que, em geral, as pessoas que freqüentam a ala norte estão

ligadas ao comércio de alguma forma, seja comprando, vendendo ou avaliando os preços. Por

fora, as lojas voltadas para a rua Conselheiro Mafra também são da mesma natureza, embora a

circulação constante de pessoas por este importante calçadão (não há tráfego de carros nessa rua)

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faça com que haja uma atmosfera muito mais "heterogênea" quando comparado ao seu interior.

Ainda assim, aqueles que param estão também ocupados com a compra ou venda. Em

contrapartida, a outra ala, a ala sul, onde foquei a maior parte de minha atenção, abriga bares e

restaurantes, alguns deles renomados, como o famoso "Box 32", isto é, além de palco para as

transações comerciais é também lugar da descontração e do turismo, onde se misturam pessoas de

classes sociais diversas (como mostram as fotos dos freqüentadores célebres penduradas nas

paredes dos bares). A co-presença de pessoas de diferentes raças e classes sociais confere ao

mercado sua fama de “lugar democrático" (Teixeira, 2002).

Enquanto abastecedor de bens, o mercado não ocupa mais a posição central de

antigamente, o que se evidencia no uso que se faz hoje de seu espaço físico: pouco sobraram dos

antigos açougues e verdureiros a que se referia Silva (). Entretanto, o mercado continua ocupando

um lugar central em termos urbanos: De um lado está outra importante construção histórica, a

alfândega, de outro, o camelódromo central. Em sua frente está o recém construído terminal

integrado de ônibus do centro junto com a Avenida Beiramar, atrás, duas ruas das mais

movimentadas do centro da cidade: a rua Conselheiro Mafra17 e a rua Felipe Schmitt.

3. Indo ao Mercado

3.1 Preconceitos, problemas e medos iniciais Havia já 17 anos quase ininterruptos que residia na ilha de Santa Catarina. Essa

vivência, que teve início quando eu era ainda muito pequeno, fez com que o mercado e seus

freqüentadores tornassem-se, em grande medida, familiares, ou pelo menos fortemente ligados a

uma série de valores que influenciariam decididamente na escolha. Uma vantagem, por um lado,

mas também uma forte desvantagem: Como coloca Strathern (1987), ainda que não fosse

necessário superar barreiras culturais e lingüísticas para entrar em contato com meus nativos,

ainda que eu não precisasse me deslocar para longe e ter maiores gastos para isso, ainda assim

manter o distanciamento necessário de um objeto que já ocupa uma posição de peso no imaginário

do investigador, posição esta construída ao longo de tanto tempo, seria muito mais difícil.

Em meu caso, atrelei valores a meu objeto de estudos que me levaram a formular

hipóteses que guiaram meu olhar a enxergar práticas que não se verificavam na realidade e que,

não obstante, eu seguia insistindo em tentar confirmá-las. Por algum tempo tentei enfiar uma

realidade redonda (ou de forma amebóide) dentro de uma forma quadrada sem, evidentemente, ser

17 Alguém que atravessasse o calçadão da Conselheiro Mafra até seu fim notaria a presença de pequenas lojas

cujos vendedores permanecem na porta oferecendo seus produtos aos que trafegam, do mercado informal onde as mercadorias

mais inusitadas são anunciadas aos gritos (pilhas, cartão telefônico, meias, brinquedos...), dos distribuidores de panfleto e das

mulheres encostadas contra a parede que analisam os homens que passam, selecionando clientes em potencial. Contrastando com

a informalidade, é até um pouco irônico saber que é também nessa rua que se localiza o prédio da prefeitura municipal.

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bem sucedido. A pressão do tempo e a vontade de colher resultados o mais rápido possível me

preocupavam: parecia que eu teria que começar tudo desde o começo. Mas, afinal, que mercado

era este que estava em minha cabeça e não conseguia se ajustar com o mercado concreto que eu

observava?

3.2 Por que escolhi o Mercado Quando escolhi o mercado como local de estudo, o fiz na esperança de encontrar lá

"elementos da tradição" (Baumann, 2008) evidentes e, mesmo quando essa tradição parecia

ofuscada por sinais de modernidade, quando a proximidade humana cedia lugar à frieza de

relações impessoais e as pessoas pagavam o preço cobrado sem reclamar, (e, pior, usando cartão

de crédito!) ainda assim eu insistia em meus preconceitos, sobretudo por acreditar que eles eram

necessários para a justificativa de meu projeto: qual seria o fundamento de estudar o mercado se

não fosse esse um espaço pequeno e bem delimitado que pudesse ser contrastado com outros

locais de comércio que emergiriam no capitalista contemporâneo? Quero dizer, se eram relações

humanas que buscava na troca comercial, o lugar escolhido deveria ser aquele que as deixasse

mais evidentes, sendo ideal que fizesse um contra-ponto com as permutas frias e impessoais do

mundo moderno.

Como quase nativo, eu já conhecia o lugar, já o cruzara inúmeras vezes, mas nunca o

tinha observado com a devida atenção. A princípio, simplesmente não acreditei na informação

dada por Silva (1996) de que existem mais de 140 boxes dentro do mercado: pareceu-me um

número exagerado. Logo em minhas primeiras visitas, mais precisamente em meu segundo dia de

visita, contudo, percebi que o espaço do mercado, de uma hora para outra, tornara-se muito maior

do que antes concebera. Claro que junto com sua dimensão física houve um aumento considerável

de suas "proporções simbólicas": dei-me conta de que qualquer generalização ligada a seus

freqüentadores e seus respectivos modos de agir poderia ser perigosa. As mudanças por que

passou a cidade (e evidentemente, o país e o mundo) não poderiam deixar de influenciar

significativamente o mercado em todos os seus aspectos. Florianópolis é hoje mais do que a

capital da província que era quando a história do mercado começou. Tornou-se um pólo turístico

importante e é a segunda maior cidade do estado. Seu crescimento criou novas necessidades de

infra-estrutura urbana, como o aterro feito nos anos 70 que atingiu o mercado diretamente ao

retirar seu acesso ao mar, mas que possibilitou a construção da avenida beira-mar, que permite um

fluxo muito maior de automóveis e um acesso mais dinâmico às praias do norte da ilha.

Paralelamente aparecerem os shopping centres e os supermercados que tiraram do mercado a

posição de mais importante abastecedor de mercadorias da região (Silva, 1996). Bares e

restaurantes renomados ocupam uma área bastante considerável onde antes haviam lojas para a

venda de carne, verdura, artesanatos... (ibidem) e os nativos que freqüentam o lugar regularmente

para a aquisição de bens dividem espaço com turistas, com aqueles que só o fazem

ocasionalmente, com os freqüentadores dos bares...

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Isto, porém, não significa dizer que a tradição tenha sido eliminada de sua esfera, que

as relações de entendimento18 (Simmel, 2005) predominem soberanas. Na realidade, as

performances culturais19 se manifestam sobre múltiplas formas e coexistem com a impessoalidade

das relações sociais no mercado. Se, por um lado, muitos indivíduos circulam anônimos por seus

corredores, ainda são freqüentes os cumprimentos e os gracejos de familiaridade. Se hoje se pode

pagar com cartão de crédito e os preços são mais rígidos e menos negociáveis, isto não anula a

liberdade com que o vendedor se dá de invadir a individualidade do passante com gritos,

oferecendo seus produtos, ou mesmo as subseqüentes conversas que acontecem entre as duas

partes na hora da compra. Assim sendo, o mercado público não se transformou num

"estabelecimento comercial moderno", mas tampouco é, por assim dizer, seu oposto.

3.3 Descrição das saídas

Figura 3 - Um dos mais afamados bares do mercado: o box 32. Crédito da foto: Diogo Santiago da Costa Pereira.

Fig.

Minha primeira saída a campo ocorreu numa quinta-feira à tarde. O que basicamente fiz foi

18 A definição tanto de "relação de entendimento" quanto de "relação de ânimo" foi feita acima, na introdução. 19 Uso o termo "performance cultural" no sentido proposto por Richard Baumann (2008), isto é, como a

categoria de performance onde elementos da tradição são "criadores" da encenação e, ao mesmo tempo, a própria performance serve para perpetuar esses elementos, o que garante seu caráter reflexivo.

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circular pelo mercado como um anônimo, tentando captar um pouco da atmosfera do ambiente e

observar as trocas sem que clientes ou vendedores soubessem o que fazia ali. Esperava que,

agindo assim, ambas as partes se comportassem de maneira mais natural.

Chegando ao mercado, me deparei com uma cena que chamava a atenção de todos os

presentes: um funcionário de uma das peixarias segurava um menino maltrapilho pela blusa,

impedindo que fugisse, enquanto a criança chorava e gritava sem tentar se desvencilhar. Ao longo

do corredor, todos olhavam e tentavam entender o que ocorria. Creio que tratava-se de um furto,

mas considerei aquilo assunto irrelevante para meus propósitos e acabei não me informando dos

fatos. Por fim, o homem soltou o menino se defendendo das acusações de agressão que este fazia e

sumiu, deixando o menino chorando no mesmo lugar. Os que assistiam se dispersaram aos poucos.

Ninguém se sensibilizou com a criança.

Procurei vários lugares onde poderia ter uma visão mais panorâmica do que

acontecia nas peixarias. Logo constatei que isto não era tão simples: ficar parado em frente a uma

loja seria notório, enquanto todos os bares ficavam suficientemente afastados para que não

conseguisse acompanhar os diálogos entre vendedores e clientes. Escolhi um café de onde podia

observar a movimentação de uma grande peixaria do outro lado do corredor.

Um grupo de árabes que trabalha no comércio próximo conversava em sua língua

mãe. Além deles, todos os outros presentes eram mulheres, o que julguei ser fato digno de nota já

que este é o único estabelecimento onde o público é predominantemente feminino na ala sul do

mercado nesta hora do dia. De resto, as peixarias são freqüentadas igualmente por homens e

mulheres enquanto nos bares o público é constituído, em sua maioria, por homens. Ao que parece,

as mulheres adultas que circulam pelo mercado durante o horário comercial o fazem basicamente

por duas razões: para comprar peixe ou utilizar o espaço como um atalho para o terminal de

ônibus.

Além do fato de estarem ali numa hora em que profissionais normalmente trabalham,

estas mulheres têm uma postura e até uma forma de se vestir que denunciam sua condição de

donas de casa: roupas coloridas, menos uniformizadas e leves, com sapato baixo, tudo em sintonia

com o conforto do lar. Os vendedores parecem bem conscientes disto: quando estão desocupados,

procurando entre a multidão clientes em potencial, são estas mulheres que mais abordam. Mais

para a frente, constatei que aquelas que trabalham fora de casa são vistas com muito menos

freqüência fazendo compras na peixaria no meio da tarde de um dia de semana e que aparecem

mais nos bares, ainda assim no final da tarde, quando terminam o expediente e aparecem com seus

colegas de trabalho. É muito raro ver uma mulher sozinha num bar (neste ponto, o mercado não é

nenhuma exceção).

Duas senhoras sentam-se ao meu lado no café. Tomei nota do diálogo. Depois de

conversar sobre as melhores formas de cozinhar o peixe, reclamam do preço do camarão. Diziam

que estava muito caro. Logo, uma delas diz que apesar de caro, ainda valia a pena comprar

camarão: muito embora seu preço por quilo seja relativamente mais elevado do que o da carne,

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1kg de camarão rende mais: pode alimentar a família toda, dizia a mulher. Este curto diálogo

revelou alguns elementos bastante significativos os quais trabalharei com maiores detalhes no

capítulo 4. Por hora, continuarei minha descrição.

Depois do café, resolvi me deslocar para algum ponto mais estratégico. Há um bar no

corredor que liga para a parte de fora do mercado. Ele fica ao lado de uma peixaria e de frente para

duas outras. Decretei que lá seria meu QG e, para não chamar muito a atenção, ficava lá sentado

numa banqueta bebendo cerveja e fazendo anotações num caderninho vermelho até chegar à

conclusão de que já havia extraído alguma coisa de valor. Foi assim que pude observar o público,

ver como se aproximavam, quem era abordado. Numa quinta-feira à tarde é de se esperar que o

movimento não seja tão intenso, e de fato não era, embora não pudesse afirmar que o ambiente

estivesse calmo. Ao que parece, o mercado é sempre movimentado.

Nesta mesma quinta-feira, notei que o público predominante era constituído por

donas de casa e aposentados (homens), estes que circulavam constantemente, passando de seus

grupos de cartas e dominó na praça da alfândega para dentro do mercado onde, embora muitos

conferissem os preços e a qualidade dos produtos no balcão das peixarias, eram pouco abordados

pelos comerciantes, mesmo nos momentos de baixa circulação. Circular pelo espaço parece ser

mais uma parte de suas rotinas do que uma ação com qualquer finalidade de compra. Os

vendedores percebiam isto e deixavam os aposentados fazerem sua ronda sem qualquer

intervenção. Eu, por minha vez, quando passava devagar pelas lojas tomando nota do que estava à

venda e dos preços, era o tempo todo alvo dos chamados dos atendentes que pensavam que eu não

poderia estar lá por outro motivo. Casais, homens adultos, vendedores ambulantes, freqüentadores

dos bares e alguns jovens que saiam do colégio perambulavam pelo mercado, mas poucos destes

dedicavam qualquer atenção ao que estava exposto nas vitrines.

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3.4Algumas hipóteses

Figura 4 - Cliente avalia o peixe no expositor. Crédito da foto: Diogo Santiago da Costa Pereira.

Minha primeira observação levou a elaboração de hipóteses, algumas que vieram a se

confirmar com o passar do tempo, outras que foram logo refutadas. Como já disse, num ambiente

"ambíguo" como o mercado, qualquer tipo de generalização é problemática.

Fiz uma pequena comparação do preço das mercadorias. O camarão laguna me

pareceu um bom referencial, já que estava presente em todas as peixarias. Não fiquei exatamente

surpreso, mas levemente desapontado ao notar que em todos os estabelecimentos o preço era o

mesmo: R$12,00 o quilo. O mesmo aconteceu com o salmão, este que só aparece em algumas

peixarias mais seletas. Não havia variação de preço se não ocasionalmente e, quando acontecia,

coisa que vim a confirmar mais tarde, era necessariamente ressaltada com um anúncio de

promoção.

Isto que num primeiro momento me pareceu problemático logo se mostrou revelador.

O fato é que pensava na barganha somente segundo seu sentido de "pedir redução do preço de

algo, pechinchar, regatear" (Dicionário Houaiss, 2009). Se eu fosse um economista que estivesse

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tentando entender as dinâmicas de troca do mercado segundo o modelo do homo oeconomicus,

certamente teria um grande problema: o homo oeconomicus não foi construído para ser pensado

nas práticas particulares de alguns agentes específicos, mas é justamente uma tentativa de eliminar

as especificidades e entender uma motivação comum, supostamente, a todos. Ele age

racionalmente segundo os critérios econômicos, portanto, ele certamente escolheria a peixaria que

oferecesse o melhor preço, levando em conta casos onde o que está em jogo são bens da mesma

"utilidade" (sic). A situação que tinha em frente era justamente oposta: os preços não diferiam,

mas a "utilidade" sim. O fato de não existir variação de preços (nem negociação de preços

propriamente dita) não eliminava a existência do diálogo entre as partes envolvidas. Era, de fato,

muito raro ver alguém que fizesse o pedido e fosse embora depois do pagamento: em geral, as

pessoas se detém analisando o produto na vitrine, fazendo perguntas ao vendedor, escolhendo o

melhor pescado... E por que o fazem se não estão barganhando os preços? Fazem por que estão

barganhando a qualidade do produto: como na já referida definição de barganha no bazar feita por

Geertz (1978), lhes interessa coletar o maior número de informações possível: quando chegou o

produto (se está "fresco"), a melhor forma de ser cozinhado, o peso...

Mas eu buscava um elemento diferencial, algo que fizesse da compra no mercado

particular quando comparada com transações que ocorrem em lugares "mais modernos" e "menos

tradicionais". Tinha muito forte em mim a oposição entre estas duas categorias e parecia-me

pouco justificado estudar o mercado se não como representante da segunda. Assim, arrisquei uma

generalização: afirmei que a negociação, isto é, o diálogo e a busca de informações, sempre

ocorrem naquele ambiente. Claro que este "sempre" não deveria ser tomado tão ao pé da letra, mas

parecia-me que algo nas relações entre comprador e atendente encorajava os clientes a agirem

desta maneira, interessando-me saber o que era esse elemento. Este tornar-se-ia o problema-chave

do trabalho.

Outra hipótese foi uma dessas que logo não se confirmou: a de que as mulheres

tendem a negociar menos do que os homens. Embora admita que a tenha formulado como fruto de

algo como uma "coincidência", ainda assim é de se notar duas coisas: 1) que as donas de casa são

quase obrigatoriamente abordadas quando passam, isto porque, como já dito, além de comprar, a

elas não sobra muito para fazer ali 2) que nos casos onde um casal sai para fazer compras juntos, o

homem é que toma a dianteira para se aproximar do balcão. Um bom exemplo disso foi um caso

em que mãe e filho compravam juntos: a mãe com o dinheiro falava para o filho (quase um

adolescente) que logo em seguida passava a informação ao atendente. Talvez um caso extremo e

isolado que serviria mais para um estudo de gênero do que para meus propósitos.

3.5 Problematizando as primeiras hipóteses

Minha segunda saída a campo ocorreu numa sexta-feira no final da tarde. Embora

pouco tempo tenha transcorrido de um dia para outro, pude constatar algumas claras diferenças.

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Os bares estavam muito mais cheios. Homens e mulheres que saiam do trabalho

partiam para um happy hour celebrando a chegada do fim de semana. Do lado de fora, um grupo

de samba tocava e as peixarias se preparavam para fechar suas portas (embora o movimento ainda

fosse intenso). Quase não havia negociação, os clientes eram mais dinâmicos em seus pedidos.

Enfim, mais uma vez me vi numa situação aparentemente comprometedora: em minha primeira

saída a campo, a busca por informações pareceu-me uma condição diferenciadora da compra no

mercado e, portanto, necessária para meus estudos. Se ela não ocorresse, isso significaria que o

mercado público não estaria mais em oposição aos supermercados e shopping centres. Minha

motivação inicial para estudar este espaço estava parcialmente comprometida.

Foi assim que o mercado enquanto lugar antropológico começou a tornar-se mais

complexo: não era mais uma ilha com nativos que se comportam de maneira regular e uniforme,

usando a analogia de Marc Augé (1994). Quem por ali circulava poderia tanto conversar

calorosamente com o atendente como simplesmente fazer seu pedido, pagar e ir embora. Naquele

horário e naquele dia, essa segunda atitude era a mais típica, tanto para homens quanto para

mulheres. O movimento intenso criava a necessidade de agilidade e dinamismo para a troca. Os

vendedores não precisavam chamar, pois as pessoas já faziam fila voluntariamente na frente de

suas lojas. Mesmo que não o fizessem, a maioria dos presentes estava lá para prestigiar a festa que

começava. O samba deixava a venda em segundo plano, era uma transformação que ocorria no

mercado. Os clientes sentiam nos gestos apressados e na fala econômica dos atendentes que

deveriam ser rápidos, até porque já estavam na hora de acabar seu expediente.

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3.6 As vitrines

Figura 5 - Corredor das peixarias. Crédito da foto: Diogo Santiago da Costa Pereira.

Segunda-feira perto do meio dia. Esperava que o movimento estivesse intenso no

mercado. O intervalo para o almoça parecia ser uma das horas mais propícias para os

trabalhadores fazerem suas compras. Mas eu estava errado: o local, na verdade, estava

extremamente calmo.

Muitos aposentados circulavam, alguns passantes avaliavam por longo tempo os

produtos, mas poucos de fato compravam e os atendentes não tinham muito o que fazer.

Abordavam pouco (continuavam dando preferência às mulheres) e aproveitavam o tempo para

descascar o camarão, limpar o marisco, cortar o peixe em postas... Uma nova generalização

parecia estar se confirmando: a que a busca por informações é inversamente proporcional à

circulação no mercado. Não obstante, num dia com pouca venda e, como conseqüência, poucas

negociações, resolvi focar a forma como os produtos estavam dispostos no expositor.

Uma das características mais marcantes do pescado é o fato de não ser homogêneo

como são os produtos industrializados. Numa prateleira onde estão empilhadas e enfileiradas

caixas ou embalagens com o mesmo peso, a mesma forma e o mesmo design, as diferenças de

uma unidade para outra não são se não ocasionais, um tipo de estética que inspirou a arte pop de

Andy Warhol e seus quadros de Marylin Monroe e Mao Tsé-Tung, mas também horrorizou

teóricos críticos da modernidade como Adorno e Aldous Huxley. Os frutos do mar, por sua vez,

variam qualitativamente de forma significativa de um para o outro: seu peso e sua cor, seu gosto e

cheiro para aqueles mais sensíveis, o que cria a necessidade de uma barganha intensiva (intensive

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bargaining usando a terminologia de Geertz, 1978).

Ainda assim, eles são expostos ao público da forma a criar a impressão de maior

uniformidade possível: os peixes são enfileirados, um ao lado do outro, todos apontando para a

mesma direção. Esta forma de dispor os peixes varia muito pouco de uma peixaria para a outra,

algumas fazendo desenhos geométricos cuja simetria justamente serve para transmitir a idéia de

uniformidade. Já com os camarões e outros frutos do mar graúdos, fazer algo parecido tomaria

muito tempo. Os vendedores, então, os armazenam em compartimentos plásticos onde o

comprador pode ver apenas uma massa mais ou menos da mesma cor. Notei a preocupação de um

vendedor desocupado em preencher seu tempo colocando por cima os camarões mais alaranjados

e escondendo por baixo aqueles amarronzados. Preocupação estética? Sem dúvida. Mas, mais do

que simplesmente um meio de atrair clientes, este arranjo dos bens é fundamental para reduzir as

negociações: criando a aparência de que todos os produtos mostrados são iguais, os compradores

não só farão suas compras de forma mais dinâmica como contestarão menos os preços.

Há ainda uma lógica de ordenação dos bens que vai no mesmo sentido da dita

disposição estética. Para facilitar a busca dos consumidores, os supermercados usam critérios de

classificação com os quais separam seus bens (integrais, café da manhã, enlatados, massas,

carne...). Isto também pode ser observada naquelas peixarias do mercado que proporcionam maior

variedade de mercadorias. Esta ordenação segue em parte o critério dos preços, mas também o

critério do uso: os diferentes tipos de camarão ficam recolhidos de um lado. Os peixes são

agrupados de acordo com sua freqüência (que coincide com seu preço): os mais "normais" para o

lugar e para a época do ano de um lado, os exóticos e até "mais nobres" (importados, peixes de

águas profundas) ficam de outro, muitos destes são expostos inteiros, como uma espécie de troféu.

Assim, há uma tentativa de homogeneização qualitativa na vitrine que cria a sensação

de que os pescados de mesmo tipo e mesmo preço são iguais. Poderíamos contrastar esta nova

realidade com os velhos tempos das barraquinhas, quando os peixes eram vendidos nos próprios

barcos dos pescadores (Teixeira, 2002). Há um conflito entre a uniformidade típica da era

industrial e a própria natureza heterogênea dos frutos do mar.

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3.7 A proximidade e a compra

Figura 6 – Exemplo de diálogo entre comprador e vendedor. Crédito da foto: Diogo Santiago da Costa Pereira.

Quando saí a campo pela quarta vez, tinha como primeiro objetivo continuar minha

verificação da organização dos produtos na vitrine. Era uma quinta-feira, mais ou menos no

mesmo horário em que ocorrera minha primeira visita. Tudo estava muito parecido com aquela

outra vez: o lugar estava razoavelmente calmo, muitas pessoas passando mas poucos comprando.

Deixei de lado meu primeiro plano, já que aquele se mostrava um dia privilegiado para observar as

negociações.

Em uma delas, uma senhora passou algum tempo tentando demonstrar familiaridade

com a loja onde trabalhava o funcionário com quem conversava. Dizia que conhecia o dono e que

sempre era muito bem atendida por ele. O atendente chegou mesmo a interromper o intervalo de

seu patrão para que a cliente o cumprimentasse, mas era evidente que não havia proximidade de

fato entre os dois: este era apenas um artifício daquela senhora na tentativa de conseguir algum

desconto. Usando a terminologia de Marcel Mauss (2003), essa senhora tentava provar ao

vendedor que aquela compra não terminaria ali: que aquela era apenas uma etapa de um processo

contínuo de troca onde ela ofereceria sua freguesia, sua preferência àquela peixaria frente às

outras, mas esperava alguma retribuição, no caso, com o preço. O funcionário tentava se esquivar

de qualquer obrigação tratando-a quase com indiferença, o que ficou claro quando a senhora

perguntou o preço de certo produto ao que o atendente respondeu apontando para a placa que

anunciava o preço. Ela então procurou puxar um pouco mais de assunto, demonstrar um pouco

mais de proximidade, mas o funcionário queria tornar tudo mais dinâmico, permanecendo quase o

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tempo todo quieto. A cliente perguntou mais uma vez o preço da mesma mercadoria e o

funcionário respondeu novamente da mesma forma: apontando para a placa. Por fim, comprou

uma quantidade do produto para então chamar a atenção para a sardinha. Avaliou rapidamente o

peixe e fez uma expressão de quem não estava contente com a qualidade. Minutos depois, estava

em outra peixaria enquanto naquele mesmo estabelecimento outra senhora conversava com o

mesmo dono do lugar, desta vez com uma intimidade mais natural.

Esse diálogo comprova aquilo que já notara em minha primeira saída de campo: de

fato, não há negociação de preços e é muito ilustrativo o fato do vendedor ter respondido à

senhora nas duas vezes apontando para a placa. Era como se dissesse que o preço já está definido e

que as tentativas de tentar demonstrar proximidade seriam vãs.

Não obstante, algo no mercado encoraja seus freqüentadores a tentar. Isso tem

relação com a própria constituição física do lugar: o corredor por onde circulam seus

freqüentadores está entre duas fileiras de peixarias criando uma proximidade física entre os

vendedores e o público, separados um do outro apenas por uma bancada. Essa proximidade física

logo se converte em proximidade social com as abordagens. Eu mesmo já começava a me sentir

pouco à vontade, como se o olhar continuo de alguns atendentes demonstrasse que eles já

percebiam minha presença um pouco "diferente" no mercado.

Essa proximidade física se dá também entre as diferentes lojas. Desta vez notei o

diálogo que ocorre entre os vendedores dos estabelecimentos concorrentes. Entre brincadeiras e

gritos de um lado para o outro, podemos arriscar dizer que a estrutura física local exerce o seu

papel na manutenção da familiaridade que acontece mesmo entre estranhos. Seria igual caso

houvesse uma vitrine na frente de cada loja?

Vi chegar um carregamento de pescado: um dos funcionários de uma das maiores

peixarias carregava com um sorriso no rosto um enorme peixe com as próprias mãos. Havia um

que de orgulho em sua expressão, embora não fosse ele o responsável pela proeza de pescar aquele

peixe. Em seguida, chegaram muitas caixas empilhadas em um pequeno trolley: peixe encaixotado

como qualquer bem industrializado. É de se salientar o contraste entre o qualitativo, o local e

pessoal do peixe que chegou nas mãos do vendedor em oposição ao quantitativo, externo e

impessoal das caixas que foram sendo trazidas logo depois.

Na avaliação do pescado, notei ainda que clientes dão atenção especial ao tamanho

do produto, particularmente do peixe, o que não deve ser visto como uma análise somente

quantitativa do peso que se reverterá em seu preço, até porque boa parte desse seu peso bruto será

perdida depois de limpo. Ao comprar camarão os clientes calculam mentalmente o que será jogado

fora para avaliar se vale a pena ou não comprá-lo inteiro ou já descascado. Isto é, embora o peso

possa ser mensurado em quilogramas, é também o tamanho do pescado algo mais simbólico.

Muitos dos peixes "mais nobres", mais escassos e também mais caros, são colocados na prateleira

inteiros e não em postas como para que não sejam confundidos com os peixes mais corriqueiros e

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deixem transparecer sua nobreza, tanto na prateleira quanto quando são servidos sobre a mesa20. O

tamanho do peixe vai nesta mesma direção: um peixe grande é mais atrativo como verifiquei em

minhas observações das escolhas e é algo que transparece também na forma com que são expostos

aos clientes.

3.8 Conversando com clientesi

Figura 7 - Bar com saída para a rua. Crédito da foto: Diogo Santiago da Costa Pereira.

Em minha quinta saída de campo, entrevistei dois compradores. Interessava-me,

sobretudo, verificar os usos que faziam do bem: saber o que compraram, como e em que tipo de

ocasião o consumiriam, o que seria servido junto e tudo o que viesse na mesma direção. Não usei

gravador e tive de me dividir entre tomar notas no caderno e dar atenção ao que diziam. Deixei

que falassem o quanto quisessem, mesmo que o assunto fosse aparentemente irrelevante.

Uma senhora que comprou camarão para servir a sua família foi a primeira

entrevistada. Declarou que quase sempre compra no mesmo estabelecimento, embora não tivesse

familiaridade com os trabalhadores de lá. Sua escolha era determinada antes por um tipo de

conveniência, por já conhecer os produtos daquele lugar. Não havia, porém, o interesse de usar sua

freguesia na negociação. Respondeu que come peixe pelo menos uma vez por semana

acompanhado de batata, arroz ou salada. Quase nunca come carne por motivos de saúde. O

camarão é prato rotineiro tanto nos dias de semana quanto nos fins de semana ou ocasiões mais

20 - O salmão não seria uma completa exceção: embora exposto em postas, sua cor avermelhada o difere dos

outros peixes.

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especiais. Esta senhora foi muito objetiva em suas respostas: parcimoniosa em palavras,

demonstrava pressa (ou talvez desconfiança).

Meu outro informante, em oposição, falava muito. Era um senhor que, enquanto

comprava, conversava com intimidade com os atendentes da peixaria. Sua negociação atingia

níveis altos de familiaridade. Em dado momento, o vendedor, que tentava convencê-lo a levar

certa qualidade de camarão, tomou um com as próprias mãos da bandeja onde estava em

exposição e passou para este senhor que o analisou com ares de grande entendedor, permanecendo

sempre sério. Enquanto isto, o dono da peixaria falava no telefone com alguém justamente sobre a

qualidade e o preço do camarão naquele dia. Deveria haver algo especial ali!

Quando terminou a compra, perguntei se poderia entrevistá-lo, ao que ele respondeu

positivamente sem parar de caminhar em direção a um bar próximo. Disse que responderia o que

pudesse responder. Comecei perguntando se sempre comprava na mesma peixaria. Ele disse que

sim, mas colocou a freguesia em segundo plano. Segundo ele, sua verdadeira motivação era o fato

dali ser o único estabelecimento no mercado que vendia o peixe "meca", qualidade pouco

conhecida mas que de uns tempos até então tornara-se o seu peixe preferido. Disse que gostava de

testar seus amigos servindo a garopa e o tal peixe meca sem que estes soubessem qual era qual. A

preferência era unânime para o segundo, este que comprava sempre, tanto para refeições

cotidianas quanto nas datas célebres. Aquele, por exemplo, não seria um dia qualquer: ele estava

se preparando para uma partida de dominó com os amigos onde farofa, salada, vinho e cerveja

acompanhariam o prato principal.

Este senhor, bastante simpático e irônico, pediu uma cerveja fingindo autoridade para

o dono do bar: "Cadê minha cerveja?". O dono respondeu no mesmo tom apontando para mim

"Você agora está me trocando por garotinhos?". Ocasionalmente, meu entrevistado trocava

cumprimentos com vários dos que passavam pelo mercado. Estava claro que era um freqüentador

do lugar e não alguém que faz suas compras esporadicamente.

Declarou ser um "bom gourmet", alguém que compra como entendedor. Deu-me o

exemplo do filé mignon, uma carne "sem gosto", mas valorizada por aqueles que não entendem e

que são motivados única e exclusivamente pelo status da carne. Come peixe por gostar de peixe e,

embora admita ser um alimento saudável, tratou isso como "frescura". Por sinal, "frescura" foi um

termo recorrente em seu discurso: quando falou do filé mignon, da preferência por vinho branco

ao vinho tinto para acompanhar o peixe e da saúde na alimentação. Dentro do contexto que foi

usada, a palavra reforçava a sua posição de entendedor: agir com frescura seria o mesmo que agir

reproduzindo códigos sem de fato compreendê-los. Escolher o vinho branco no lugar do tinto seria

para aqueles que leram a opinião de outrem numa coluna e que decidiram reproduzi-la, não é a

atitude de um especialista que julga por si só.

Por fim, perguntei se havia negociação de preços no mercado. Ele declarou que não,

embora sua periodicidade naquela loja específica fizesse com que sempre conseguisse um

desconto...

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3.9 Últimas impressões do mercado e “outros mercados”

Minha última saída de campo "oficial" ocorreu, mais uma vez, em uma quinta-feira

no final da tarde. Era um dia ensolarado, depois de quase uma semana de chuva, e o espaço entre

as alas estava movimentado em relação aos outros dias. Já estava quase na hora de fechar os

estabelecimentos. As compras eram feitas com muita pressa pois o movimento aumentava pouco a

pouco. Do lado de fora, vários grupos de pessoas reuniam-se em mesas diferentes. Uma mulher

falava muito alto com pessoas de quase todas as mesas, sempre num tom agressivo. Um rapaz que

bebia uma cerveja provoca jocosamente um pedinte que se irrita e parte para a briga, mas é logo

separado por garçons e outros clientes. Enquanto isso, muitas pessoas saindo da escola ou do

trabalho cruzavam o mercado com rapidez sem dedicarem atenção especial a nada.

Eu já estava convencido de que possuía material suficiente para concluir o trabalho e

naquele dia só estava confirmando o que vinha observando já havia algum tempo. Decidi me

concentrar na elaboração escrita do trabalho. Entretanto, sem que fosse minha intenção, outros

dados muito relevantes foram surgindo.

Foi interessante, por exemplo, o aprendizado que tive com uma prima de segundo

grau que há décadas pratica um vegetarianismo "mais light", quer dizer, ela não come carne, com

exceção de peixes e frutos do mar. Ir ao mercado público de Niterói, cidade onde reside, tornou-se

parte de sua rotina que fez com que se transformasse numa semi-especialista na arte de escolher os

melhores peixes.

Quando me recebeu em sua casa, fomos ao Mercado São Pedro (nome do mercado

local) sem que eu fizesse qualquer menção ao trabalho de campo que vinha realizando. É um

prédio feio: a parede cheia de azulejos brancos faz com que o lugar mais pareça um grande

banheiro público do que um mercado municipal. Seu desenho arquitetônico é daqueles que,

mesmo quando novos, já parecem velhos e é todo voltado para a praticidade. As paredes são mais

finas e sem qualquer adorno, o teto das peixarias é baixo numa tentativa de aproveitar melhor o

espaço vertical. Tudo isso, somado ao fato dos restaurantes ficarem escondidos no andar de cima,

me levou a supor, talvez erroneamente, que dito mercado não exerce a atração turística do

florianopolitano.

Os frutos do mar que estavam à venda também diferiam muito dos da capital

catarinense. Algo previsível se pensarmos no lugar da costa que cada cidade ocupa. Mas ditas

diferenças não impediam que lá estivessem presentes as mesmas preocupações em organizar o

pescado em formas simétricas de maneira a passar a impressão de uniformidade. Minha prima

ainda chamou a atenção para outro aspecto muito relevante: muitos dos peixes estavam sem

cabeça. Isso, segundo ela, porque para escolher devidamente os melhores peixes deve-se levar em

conta o cheiro e a cor, mas também conferir os olhos do peixe. Sem a cabeça, um diagnóstico

completo do peixe seria impossível e todos passariam como mais ou menos iguais.

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Além de Niterói, foi notável perceber, ao passar diversas vezes pela peixaria de um

grande supermercado, peixaria esta que mais de uma pessoa chamou a atenção para a péssima

qualidade de seus produtos, (e onde eu mesmo tive a oportunidade de comprar um peixe caro e

estragado), cuja vitrine estava completamente desorganizada, com peixes e camarões lançados

anarquicamente no expositor, sem a simetria encontrada nas peixarias do mercado público e com

espaço mal aproveitado. Algo irônico se levarmos em conta que vinha fazendo um contraponto

entre mercado e supermercado (pessoalidade e impessoalidade; tradição e modernidade) que,

nesse caso, ficou invertido: a preocupação com a uniformidade dos produtos não estava lá.

4. Considerações Finais

4.1 Fronteiras convencionais do tradicional e do moderno

Para Marc Augé (1994), as fronteiras do lugar antropológico não são absolutas. Não

há nenhum elemento intrínseco que a priori determine onde começa e onde termina uma tribo, um

bairro ou um país. Estes limites são antes fruto da convenção social, das relações estabelecidas

entre os nativos e seu território, daquilo que cria uma identificação com o que é seu e o diferencia

do outro.

Figura 8 - O lugar do mercado no centro da cidade. Crédito da foto: Diogo Santiago da Costa Pereira.

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Dentro deste espaço, os indivíduos não se comportarão de maneira homogênea,

segundo o modelo do tipo ideal conceituado pelo teórico ou em oposição absoluta aos habitantes

do território vizinho. O lugar antropológico não é uma ilha e seus nativos não vivem aparte de

outros mundos sociais.

Estudar as trocas dentro do mercado público serviu para ter isso claro em mente: de

maneira análoga, o mercado não é simplesmente lugar de tradição que se opõe à modernidade dos

supermercados e shopping centres. As relações de ânimo que surgem entre freqüentadores e

atendentes, ou mesmo entre os trabalhadores do local, co-existem com as relações de

entendimento daqueles que preferem manter-se afastados e efetuar uma troca dinâmica. Em meio

à atmosfera urbana caracterizada pelo excesso de informações (Simmel, 2005) seus habitantes

selecionarão aquelas que lhe despertarão a atenção enquanto ignoram a grande maioria das outras.

Para alguns, o mercado é signo componente da paisagem urbana que remete a elementos do

passado vivido onde desempenhou algum papel particular que preenche seu ideal com significados

específicos no imaginário destes que assim o enxergam. Para outros, em contra-partida, aquele não

será mais do que um lugar de passagem, um ponto de referência vazio, um "não lugar", voltando à

terminologia de Augé (1994).

O crescimento urbano fez com que a grande maioria dos transeuntes se tornassem

desconhecidos. O advento dos supermercados e a mudança nos hábitos alimentares que surge com

a substituição de alimentos naturais e locais por alimentos industrializados vieram para intervir nas

práticas de troca comercial, seja retirando do mercado público o papel de principal abastecedor de

bens da cidade (Silva, 1996), seja servindo como um modelo para práticas de troca mais

impessoais. Contudo, ainda que para muitos o mercado não seja mais do que um "lugar de

passagem" (Augé, 1994), para outros, pelo contrário, o mercado é um lugar com o qual mantém

relações fortes com seu espaço ou com seus freqüentadores que o torna um espaço único. Fazer

compras lá, para estes, não é apenas uma questão de adquirir bens, mas também de perguntar pela

família do atendente, de escolher um estabelecimento não pelo critério do melhor preço, mas pelo

da freguesia. É, assim, parte do cotidiano das peixarias lidar tanto com a clientela rotineira quanto

com aqueles que fazem suas compras esporadicamente ou mesmo com o turista que nunca mais

retornará.

4.2 A aproximação"

A existência desses dois tipos de compradores no mercado não anula a problemática

colocada na introdução: proximidade ou distanciamento não são questões meramente subjetivas,

não dependem apenas da vontade do indivíduo, de sua história de vida e da significação pessoal do

mercado para ele mesmo. Há algo que encoraja à aproximação, mesmo àqueles que não são

fregueses, mesmo os desconhecidos. Algo coercitivo, usando uma linguagem durkheiminiana

(1995), que está além do meramente individual. Três elementos me parecem fundamentais para

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entender este "fato social": 1) as variações qualitativas de um pescado para outro; 2) a reprodução

de um tipo de performance cultural pelos atendentes; 3) as características estruturais do edifício;

Figura 9 - Conversa. Crédito da foto: Diogo Santiago da Costa Pereira.

1) Se, por natureza, os produtos são qualitativamente distintos uns dos outros, isto

que se manifesta durante a permuta através do longo tempo que gastam analisando o pescado no

balcão antes de se decidirem a comprar ou não, por outro, os pescados não são apresentados da

maneira "desordenada" de outrora quando eram vendidos nos próprios barcos dos pescadores

(Teixeira, 2002). Como pude constatar em minhas saídas de campo, existe a preocupação estética

de enfileirá-los ou expô-los de modo a passar a impressão de homogeneidade, em alguns casos

resultando mesmo em uma ordenação dos produtos segundo uma lógica que facilitaria a busca do

cliente (todos os tipos de camarão de um lado, peixes organizados segundo uma ordem de

valores). Mas mais do que isso, ao "homogeneizar" seus produtos as lojas estão se fazendo

respeitar seguindo a padrão do comércio moderno, onde todas as informações estão, supostamente,

ao alcance do cliente (Geertz,1978). Há assim um conflito entre a busca por informações que

aproxima as duas partes, fazendo com que o cliente se sinta compelido a perguntar com o fim de

coletar informações e a barganhar o preço segundo seus critérios de qualidade, e a suposta

"complete information", que os afasta.

2) Os vendedores reproduzem um tipo de performance cultural na medida em que

agem de maneira oposta à atitude típica do comércio moderno que "visa simultânea e

indiferentemente a cada um de nós" (Augé, 1994. pág. 92). Quando abordam os passantes,

primeiro selecionam aqueles que mais se enquadram no perfil de quem sai para fazer compras para

depois invadir sua individualidade com chamados. Além de algo tradicional, este tipo de atitude é

uma necessidade num lugar onde produtos do mesmo gênero são vendidos ao mesmo preço. O

cliente, em contrapartida, sente-se mais livre para dialogar e iniciar uma pesquisa de informações.

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Isto é corroborado na medida em que os diálogos quase não ocorrem nos momentos de maior

movimento, quando os vendedores estão sem tempo para abordar os clientes, enquanto em

situações de baixa circulação os diálogos são muito mais constantes e extensos.

3) Enquanto construção histórica do final do século XIX e início do século XX, o

mercado já torna-se símbolo de um outro tempo. Fazer compras lá é, antes de tudo, manter contato

com essa tradição. Somado a isto está o fato da estreiteza do corredor criar uma proximidade tanto

entre os trabalhadores das peixarias que brincam com familiaridade entre si quanto com os

transeuntes que são a todo o tempo observados e abordados. Sua escolha fica consideravelmente

sujeita a essa proximidade: quando comparado a um shopping centre, onde o cliente pode observar

as vitrines livremente sem a intervenção do vendedor, obtemos uma imagem de como a arquitetura

de uma determinada época é um desdobramento da cultura deste mesmo tempo e acaba por

perpetuar alguns de seus elementos, estes que ainda sofrerão com as mudanças históricas nos usos

e adaptações do espaço, como as transformações tecnológicas: a substituição do sal pelos

frigoríficos para a conservação dos peixes que eliminou muito do cheiro forte que exalava das

peixarias e conferiu um aspecto de maior "salubridade" ao ambiente, a maior agilidade no

transporte que permitiu a importação de frutos do mar de regiões afastadas e até outros países

(como é o caso do salmão), o uso de cartão de crédito em alguns dos estabelecimentos que serviu

para tornar as trocas mais práticas e rápidas.

4.3 Frutos do mar são "bons para pensar"

Com relação à barganha, um quarto elemento não deve ser ignorado sendo, talvez, o

mais fundamental. Este, porém, depende de uma relação continua estabelecida pelo indivíduo ao

longo de sua vida: a freguesia.

A regularidade com que uma pessoa freqüenta o mercado não se converte em

familiaridade apenas na troca. Nos bares, indivíduos de mesas diferentes interagem com bastante

intimidade, nos cafés clientes falam sobre a rotina e sobre a vida com os atendentes. Ao permutar,

aquele que possui uma quantidade razoável de informações tem a capacidade de barganhar de

maneira tácita: pagar o mesmo preço por uma qualidade mais elevada: quando sabe o dia em que o

pescado chega, as melhores épocas para comprar determinada qualidade de peixe, as melhores

peixarias (como no caso do peixe meca). Mas para que isso ocorra é necessário não só um

conhecimento das dinâmicas dentro do mercado como também dos códigos por trás do bem, o que

depende do uso que se faz deste. O discurso das mulheres que se sentaram ao meu lado no café em

minha primeira saída de campo é típico daqueles que compram o peixe pensando na alimentação

da família. É quando estão reunidos ao redor da mesa que se dá o uso deste bem em particular. Ao

fazer a comparação entre o preço da carne e do camarão, sua fala poderia passar por um discurso

meramente utilitário: aparentemente, ela está mais preocupada com a utilidade do camarão e da

carne enquanto duas categorias de alimento que “servem para” nutrir, independente de suas

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particularidades qualitativas. No entanto, alguns aspectos devem ser destacados: em primeiro

lugar, o valor do bem, no caso, não é medida segundo o peso ou o tamanho, mas de acordo com o

critério da "satisfação" da família. Não depende somente da quantidade adquirida, mas da

qualidade dos dois bens: um detém uma propriedade que está ausente no outro, que é a

possibilidade de se fazer "render mais" através de uma forma de cozinhar que não é passível ao

outro. Em segundo lugar, é interessante notar que a senhora comparou o preço do camarão com o

da carne, e por que com esse produto em particular? É evidente que os dois bens "servem para o

mesmo fim": alimentar. Mas se a preocupação da dona de casa era única e exclusivamente de

ordem utilitária, por que ela não comparou o preço do camarão com o preço de um grão, uma

leguminosa ou uma fruta?

A explicação que proponho é que carne e camarão desempenham o mesmo papel

quando postos sobre a mesa. Usando o jargão econômico, poderíamos caracterizá-los como bens

concorrentes e não complementares (como seria o caso do arroz, do macarrão, da salada...). Claro

que isso ainda poderia ser caracterizado como um discurso utilitário: as duas mulheres estavam

preocupadas em suprir suas famílias com uma quantidade saudável de proteína animal em suas

refeições. De fato, essa preocupação poderia estar pesando na decisão da senhora21, o que, no

entanto, não se revelou em seu discurso como no daquela outra, a entrevistada que também

comprou camarão para a família, mas que o fez por não lhe ser recomendado comer carne.

Assim o camarão (e os outros frutos do mar em geral) ocupa um lugar no imaginário

destas mulheres ao mesmo tempo de oposição à carne vermelha, quando se pensa no critério da

saúde, mas também de convergência, quando comparado à salada, ao arroz, ao macarrão. Dentro

do mercado, será com base nestes valores e no seu uso que efetuarão suas compras: buscam um

bom "custo/benefício" seguindo a finalidade de satisfazer todos os membros de sua família (o que,

novamente, não depende somente do peso) mas ainda considerando que a presença do camarão

não causará nenhum estranhamento, seja por não ser um elemento propício para aquela ocasião em

particular (como seria a carne vermelha durante a semana santa) ou por não ser adequado àqueles

indivíduos (a carne de porco para um judeu): há o compartilhamento desses valores.

O senhor que comprou o peixe meca faz um uso consideravelmente diferente do

peixe que, por sua vez, terá um valor igualmente distinto quando comparado àquelas senhoras. Em

primeiro lugar, sua postura de "bom gourmet" era a de um profundo conhecedor dos códigos por

trás do bem, isso que o tornava independente de qualquer opinião alheia. Ele escolheria o peixe

"meca", embora pouco conhecido, porque era uma "autoridade" nesses códigos, enquanto

desprezava o filé mignon por ser a opção daqueles que jogam com os códigos sem conhecê-los:

pessoas que sabem do status privilegiado desse tipo de corte mas que não tem autonomia para

julgar por si só a qualidade de uma boa carne. O fato de escolher produtos pouco conhecidos ainda

reforçava sua autoridade, tornava-o alguém mais seleto. Impossível não lembrar daquele

21 - No mercado, esta preocupação com a saúde já se transformou em "marketing" deliberado: durante meu trabalho de campo, verifiquei que em várias lojas estavam afixados nas paredes cartazes informativos sobre a importância do peixe para uma alimentação balanceada.

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personagem citado por Douglas e Isherwood (2004), Lorde Mongrober, o qual através de

impiedosas críticas aos pratos e vinhos servidos nos jantares que enchiam sua agenda, estabelecia

sua reputação de homem fino e culto no assunto. Para o senhor do mercado, paralelamente, o

peixe meca é um símbolo de sua capacidade de manusear o vocabulário gastronômico. Esta é sua

pequena jóia, desconhecida para a grande maioria, que o torna alguém especial, capaz de julgar

não como amador, mas como "bom gourmet". Também fortalece seu vínculo com aquele

estabelecimento em particular: não só é essa peixaria a única a vender dita qualidade de peixe,

como também é ele o "freguês do meca". Os atendentes brincam com sua postura de especialista.

Mesmo que não o levem tão a sério (como o próprio senhor não parece levar) faz parte da

encenação deixar que o mestre dê o seu parecer, analisando de perto, usando as próprias mãos para

tanto se necessário. Ele não fará uso de peixe num almoço de dia de semana qualquer, mas sim

durante uma partida de dominó onde poderá exibir suas qualidades a seus amigos. Em comparação

com as senhoras, não é uma questão de simplesmente satisfazer os convidados: ele deve

impressioná-los e tornar a ocasião especial. Tem-se aqui uma amostra de como o conhecimento

adquirido dentro do mercado pode facilitar seus propósitos.

4.4 Barganha e Freguesia

Resta falar sobre um último elemento relacionado com a freguesia. Na hora da

compra, ela pode ser usada como instrumento para se ir ainda além da busca por informações. Em

graus elevados de intimidade, o comprador pode exigir um abatimento nos preços. Os vendedores

percebem isto e quando notam que um cliente está tentando fingir intimidade para atingir estes

fins, como foi o caso da senhora que disse conhecer bem o dono da peixaria, tratam-no com frieza.

Virar um(a) freguês(a) não é questão apenas de regularidade, mas depende da capacidade de se

aproximar com naturalidade dos atendentes das bancas: "a cultura deve se assentar não como uma

luva, mas como uma pele" (ibidem pág. 126). A outra senhora que comprava camarão por motivos

de saúde declarou que quase sempre comprava na mesma peixaria, mas sua compra ficava restrita

a permuta, sem maiores proximidades. O senhor comprador do peixe meca, por sua vez, além de

ser freguês da peixaria onde compra o tal peixe, tornou-se figura familiar para vários dos

freqüentadores do mercado. Tornou-se mais do que um comprador, e é precisamente por isso que

consegue seu desconto habitual. Negociar os preços, neste caso, não é um jogo de trocas

simbólicas entre freguesia e desconto que poderia acontecer com qualquer cliente. Para que

ocorra, a negociação deve estar numa esfera diferente da esfera do entendimento: é preciso que

haja o ânimo, resquício, talvez, de uma outra época, de um outro mercado e de uma outra cidade.

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