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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO HELEN MARCIA BARBOSA SILVA ENTRE PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO E EMANCIPAÇÃO SOCIAL: A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) NOS CONTEXTOS ESCOLARES DO MUNICÍPIO DE CARIACICA/ES VITÓRIA-ES 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

HELEN MARCIA BARBOSA SILVA

ENTRE PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO E EMANCIPAÇÃO

SOCIAL: A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) NOS

CONTEXTOS ESCOLARES DO MUNICÍPIO DE CARIACICA/ES

VITÓRIA-ES

2009

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HELEN MARCIA BARBOSA SILVA

ENTRE PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO E EMANCIPAÇÃO

SOCIAL: A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) NOS

CONTEXTOS ESCOLARES DO MUNICÍPIO DE CARIACICA/ES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação, vinculada à linha de pesquisa: Diversidade e práticas educacionais inclusivas.

Orientadora: Profª. Drª. Edna Castro de Oliveira

VITÓRIA-ES

2009

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Silva, Helen Márcia Barbosa, 1970- S586e Entre processos de democratização e emancipação social :

a Educação de Jovens e Adultos (EJA) nos contextos escolares do município de Cariacica/ES / Helen Márcia Barbosa Silva. – 2009.

151 f. : il. Orientadora: Edna Castro de Oliveira. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito

Santo, Centro de Educação. 1. Ensino supletivo. 2. Democratização da educação. 3.

Experiência. 4. Liberdade. 5. Exclusão social. I. Oliveira, Edna Castro de. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

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HELEN MARCIA BARBOSA SILVA

ENTRE PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO E EMANCIPAÇÃO

SOCIAL: A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) NOS

CONTEXTOS ESCOLARES DO MUNICÍPIO DE CARIACICA/ES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação, vinculada à linha de pesquisa Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas.

Aprovada em _____ de _________ de 2009.

COMISSÃO EXAMINADORA

________________________________________ Prof.ª Dr.ª Edna Castro de Oliveira

Universidade Federal do Espírito Santo Orientadora

________________________________________

Prof.ª Dr.ª Ivone Martins de Oliveira Universidade Federal do Espírito Santo

_________________________________________

Profª. Drª. Maria Aparecida Santos Corrêa Barreto Universidade Federal do Espírito Santo

________________________________________

Prof. Dr. Osmar Fávero Universidade Federal Fluminense

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DEDICATÓRIA

À Tania Araujo, teóloga, feminista e militante das causas perdidas, por

realizar comigo as travessias, ao lado de quem superei a vergonha de ser Silva

e ser povo, junto a quem descubro os significados políticos para aquela

máxima do Saramago: “Se puderes olhar, vê; se puderes ver, repara”.

À Aurea Barbosa Silva, minha mãe, representante das mulheres

empobrecidas deste país, analfabeta, que sentiu na pele e na alma a opressão

de gênero, empregada doméstica e lavadeira de roupa – ofícios com os quais

criou sozinha três filhas. A despeito dos reveses da vida, foi capaz de amar e

bem soube traduzir um poema da Adélia Prado chamado “Ensinamento”,

“Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo. Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,

ela falou comigo: “Coitado, até essa hora no serviço pesado”.

Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo”.

Por fazerem acreditar que da fragilidade e das margens podemos criar

potência; por me mostrarem os significados políticos do amor, também no

trabalho com as classes populares, e, por provarem que o amor está acima de

qualquer vocabulário “de luxo”, estereótipo ou teoria produzida, pois é,

sobretudo, práxis.

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AGRADECIMENTOS

“Borboleta, rosa e jornal vivem horas curtas, mas renascem, e documentam a permanência da vida”.

(Carlos Drummond de Andrade, 1987, p. 56).

Às pessoas que, de diferentes formas, seguem pela vida promovendo

“borboletas e rosas”, fazendo de suas histórias os jornais diários e as

“metamorfoses encarnadas”, testemunhas autoras de um “outro mundo

possível”. Colegas e amigos que participaram e contribuíram com a tessitura

deste trabalho, obrigada!

À professora Dr.ª Edna Castro de Oliveira, minha orientadora, pela atenção

e disponibilidade, sensibilidade e sabedoria com que lidou com minhas (im)

pertinências também epistemológicas, por ter sabido paciente e amorosamente

esperar pelo “meu tempo”, ensinando-me, assim, que emancipação é mais que

um conceito ou categoria de análise, é uma escolha e um modo de viver que se

realiza aqui e agora.

A todos os amigos/as e colegas da SEME (Secretaria Municipal de Educação

de Cariacica), pela oportunidade de trabalhar junto e acreditar num projeto

comum, pelos embates, consensos e dissensos que produziram e pela

renovação de perspectivas políticas e confirmação da crença de que, onde

quer que estejamos, “é necessário implicar-se”.

À rede de escolas EJA de Cariacica e à comunidade destas escolas, pela

sempre acolhida e ensinamentos sobre ser “mais gente”.

Aos alunos e alunas da EJA, pelo brilho dos olhos, a persistência e a ousadia

em desejar mais da vida, cujas biografias de resistência estão nas salas de

aula e nos pressionam a “tirar as vendas” e “sair do lugar”.

Aos colegas e amigos do FORUM/EJA-ES, com quem tenho aceitado e

compartilhado o desafio da dialogização.

Aos colegas e amigos(as) da turma de 2009 do curso de Especialização Lato

Sensu do PROEJA/IFES, pela possibilidade de humanização também

naquelas tardes de sábado e por compartilharem discussões calorosas e

fraternas acerca de uma EJA engajada com um projeto de vida mais justo.

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A Celia Maria Vilela Tavares, Ivana Queiroz Bello, Kleynayber Souza e

Teresinha Giacomin da SEME/Cariacica , pelo “bom encontro”.

À minha amiga Lílian Pereira Menenguci, por “fazer parte do mundo que eu

tremulamente construí e se tornar alicerce do meu encanto pela vida”.

Às minhas amigas Maria Dorothea dos Santos Silva e Rosanea Teixeira,

com quem acredito que a pedagogia pode ser arte.

Aos colegas e amigos da turma 21, pelas trocas e pela dádiva de muitos ao

permanecerem seguindo juntos o caminho.

Às minhas irmãs Helenilda Barbosa Silva e Juliana Batista Barbosa, pelas

diferenças que aprendemos a superar e as intersecções amorosas que

criamos.

À professora Drª. Ivone Martins de Oliveira e à professora Drª. Maria

Aparecida Santos Corrêa Barreto porque aceitaram balizar o caminho.

Ao professor Dr. Osmar Fávero por ter acolhido o convite e participar

duplamente desta história, como referência teórica e em presença encarnada.

À arte, aos artistas e às almas de artista pela salvação nossa de cada dia,

porque só a vida não basta.

À vida, cuja dinâmica inesperadamente traz, do anonimato ou de debaixo dos

olhos, situações e pessoas que pressionam outros olhares e perspectivas. É

justamente isso que torna o processo tão maravilhoso, caro e raro.

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RESUMO

Situa-se esta pesquisa no contexto das políticas educacionais realizadas na

gestão 2005-2008 no Sistema de Ensino do município de Cariacica/ES,

palco de contínuas administrações em que predominaram desmandos de

toda ordem e o coronelismo urbano. A partir de 2005, numa gestão

denominada “de ruptura”, teoricamente, inicia-se a efetiva participação da

comunidade na gestão da escola, o que instigou o problema de pesquisa -

compreender em que medida as atividades propostas e as relações

estabelecidas em um cotidiano escolar proporcionam aos sujeitos da EJA

condições para problematizarem suas realidades na perspectiva da

cidadania e da emancipação social. Os objetivos foram: analisar de que

maneira a escola responde às especificidades dos sujeitos da EJA, dialoga

com suas trajetórias e “saberes de experiência feito” (FREIRE, 2005), e,

identificar os pressupostos da Educação Popular. Dado o contexto histórico,

social e cultural dos(as) alunos(as) da EJA, a opção metodológica orientou-

se pela abordagem qualitativa, tendo como estratégia a pesquisa-ação, no

estudo com a realidade que envolveu 16 educadores(as) e 40 alunos(as).

Os instrumentos utilizados no levantamento de dados foram: registros das

rodas de conversa, entrevistas, oficinas e diário de campo. Na busca de

dialogo com os dados empíricos, tomamos como fundamento os estudos de

Arendt, Bauman, Fávero, Freire, Frigotto e Santos. Conclusões provisórias

indicam que, para superação da condição de marginalidade, a EJA deve ser

considerada como modalidade que, implantada, passa a integrar a escola e

o Sistema de Ensino; para avançar neste debate é necessário transformar o

olhar com que o coletivo escolar se relaciona com os sujeitos e seus

saberes; isso significa romper concepções, (in)visibilidades e a (re)invenção

dos pressupostos da Educação Popular; uma possibilidade é o trabalho da

tradução entre os saberes, o que exige a participação e a negociação como

práticas sistemáticas entre a comunidade e a escola. Os aluno(as) da EJA

possuem trajetórias emancipadoras e buscam nos contextos escolares a

cumulação subjetiva de forças contrárias à exclusão social.

Palavras-chave: EJA, Saber de Experiência, Problematização da

Realidade, Emancipação Social.

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ABSTRAC

This research is situated in the context of the educational politics carried out during

the 2005-2008 management in the Educational System in the County of

Cariacica/ES. This locality has been the scenery of successive managements

where irregularities of all kinds and also an urban authority predominated. From

2005 on, during a management called “rupture” it is, theoretically, what we consider

the beginning of an effective participation of the community in the school

management. Thus, research problem investigation was designed for this purpose -

to understand in what way the proposed activities and the relations established in a

daily school activity provide the EJA subjects with the conditions to put in doubt

their realities in the perspective of the citizenship and the social emancipation. The

objectives were: to analyze in what way the school answers the specificities of the

EJA subjects, how it dialogues with its trajectories and “knowledge of experience

done” (FREIRE, 2005), and, to identify the backgrounds of the Popular Education.

According to the social and cultural history of the EJA pupils, the methodological

option for this research was the qualitative approach which strategy is an

investigation based on an action research, involving 16 educators and 40 pupils.

The instruments used in the data collection were: record of the conversations,

interviews, workshops and a log-book. Searching for a dialogue with the empirical

data, we based upon the studies of Arendt, Bauman, Fávero, Freire, Frigotto and

Santos. Provisory conclusions indicate that, for overcoming the condition of

marginality, the EJA must be considered as modality that, once implanted, starts to

integrate the school and the Educational System; to advance in this debate it is

necessary to change the look the collective of educators perceive the EJA

subjects and their Knowledge, it means to break with conceptions, (in)visibilities

and (re)inventions of the Popular Education backgrounds. A feasible possibility is

the work of the “ translation among knowledges” what demands the participation

and the negotiation as systematic practices between the community and the

school. The EJA pupils have emancipational trajectories and they search in the

school contexts the subjective accumulation of forces that are opposed to social

exclusion.

Keywords: EJA, Knowledge of Experience, to put in doubt of the Reality, Social

Emancipation.

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SUMÁRIO

1 DA TRAVESSIA QUE INSTIGOU DESLOCAMENTOS............................ 11 1.1 DO BOM ENCONTRO COM A EJA À DIRETRIZ DA PESQUISA........... 17

1.2 DA DISPOSIÇÃO DOS CAPÍTULOS........................................................ 20

2 APRESENTANDO A REDE DE SIGNIFICAÇÕES QUE VEM COMPONDO A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) ...................................... 24

3 CARIACICA/ES – A BIOGRAFIA DA CIDADE (IN)VISÍVEL QUE (DES)AFIOU PERGUNTAS........................................................................... 36

3.1 O PANORAMA POLÍTICO......................................................................... 41 3.2 O PANORAMA EDUCACIONAL................................................................ 44 3.3 O CONTEXTO DA PESQUISA................................................................. 45 3.3.1 A IMPLANTAÇÃO DA MODALIDADE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) NO MUNICÍPIO DE CARIACICA/ ES..................... 50 4 DAS ESCOLHAS TEÓRICO-CONCEITUAIS: REUNINDO PEÇAS.......... 57

4.1 CONSTRUINDO SENTIDOS..................................................................... 58 5 O DIREITO À EDUCAÇÃO PARA JOVENS E ADULTOS NO BRASIL:

UMA CONQUISTA ENTRE AS FORÇAS DA REGULAÇÃO E DA EMANCIPAÇÃO........................................................................................ 70

6 A PROPOSTA METODOLÓGICA EM PESQUISA-AÇÃO: UMA OPÇÃO

PEDAGÓGICA, POLÍTICA E POÉTICA.............................................. 79 6.1 A PERGUNTA SÍNTESE ........................................................................ 82 6.1.1 AS QUESTÕES QUE DÃO SUPORTE À INVESTIGAÇÃO................... 84 6.1.2 O OBJETIVO GERAL E ESPECÍFICOS................................................. 84

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6.2 OS SUJEITOS INCLUÍDOS NA PESQUISA........................................ 84 6.3 A ORGANIZAÇÃO DOS TEMPOS E OS INSTRUMENTOS DE

PRODUÇÃO DOS DADOS..................................................................... 85 7 A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) NA ESCOLA:

DIMENSÕES DA PRÁTICA.................................................................... 87 7.1 QUANTO AOS PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO DA GESTÃO DA ESCOLA FRAÇÃO/INTEIRO DE UM SISTEMA DE ENSINO.......................... 91 7.2 QUANTO À MODALIDADE EJA FRAÇÃO/INTEIRO DE UMA ESCOLA..........................................................................................................100 7.3 DA PERSPECTIVA DOS (AS) EDUCADORES (AS) NA RELAÇÃO COM OS SABERES DOS EDUCANDOS E DOS SENTIDOS DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES (AS) PARA A MODALIDADE EJA.........................................109 7.3.1 PARA AVANÇAR O DEBATE É NECESSÁRIO TRANSFORMAR O OLHAR............................................................................................................ 112 7.3.2 A TRANSFORMAÇÃO DO OLHAR POLITIZA A EDUCAÇÃO E OS EDUCADORES DA EJA................................................................................. 114 7.4 NA PERSPECTIVA DOS EDUCANDOS E DAS EDUCANDAS: RESISTÊNCIA, AUTORIA E EMANCIPAÇÃO AQUI E AGORA................... 117 7.4.1 A PLATAFORMA DO DIÁLOGO: SABER QUEM SÃO ESTES ALUNOS E ALUNAS.......................................................................................................... 121 7.4.2 DE ONVE VEM A (IN) VISIBILIDADE DOS ADOLESCENTES E JOVENS DA EJA?........................................................................................................ 122 8 DA TRADIÇÃO ESCOLAR À ESCOLA DA TRADUÇÃO: GERANDO “INÉDITOS VIÀVEIS” PARA ADOLESCENTES, JOVENS, ADULTOS E IDOSOS......................................................................................................... 128 9 PROSSEGUIR OUSANDO EXPERIMENTAR........................................ 138

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 144

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1 DA TRAVESSIA QUE INSTIGOU DESLOCAMENTOS

“Escrever" existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por que - é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação: É assim? Será que estou me traindo? Será que estou desviando o curso de um rio? (Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (pulsações), 1978).

Este trabalho exige, de partida, assumir roteiro e perspectiva. Mas de qual fio

sentido, vivido ou teorizado devo puxar esta narrativa? Nestas inquietações

iniciais tomamos fôlego nas “pulsações claricianas” (1978) e elegemos um (im)

provável modo de começar, no qual pontuamos de forma cronológica o curso

dos acontecimentos que foram construindo nossa inserção não prevista na

Educação de Jovens e Adultos – EJA. Portanto, as vivências relatadas

estabeleceram nossa trajetória no campo1 e deram input ao percurso formativo

pertinente às necessidades de jovens e adultos na escola.

Exercitando o distanciamento em relação à nossa prática como educadora de

jovens e adultos e tendo em mãos os dados produzidos com os (as)

educadores(as) da instituição de ensino onde estivemos pesquisando,

constatamos que a atuação profissional nesta modalidade raramente significou

escolha e projeto profissional esboçado a priori.

As entrevistas sinalizaram que a entrada dos profissionais no campo da EJA

passou por uma infinidade de caminhos e em diferentes espaços e contextos.

Então, para os educadores envolvidos na pesquisa foi a partir da prática que se

estabeleceram as possibilidades de interlocuções e a busca por formação

específica no trabalho com estes sujeitos.

Nesse sentido, por caminhos semelhantes aos desses educadores, nossa

inserção na EJA foi se configurando por três vias:

1 As formas de inserção no campo e os dilemas dos percursos formativos dos(as)

educadores(as) de EJA guardam muitas semelhanças entre si e levam a um panorama que aponta lacunas e oferta insuficiente de formação.

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nas relações estabelecidas no Maiz, uma Organização não

Governamental (ONG);

como professora, em sala de aula montada pela Federação das

Indústrias do Espírito Santo (FINDES) em parceria com a Fundação

Roberto Marinho e a Fundação Bradesco, para atender aos interesses

de uma grande indústria;

na atuação como professora numa sala de aula da rede municipal de

ensino, na cidade de Cariacica/ES.

Primeiro, logo após a ruptura com a realidade educacional privada, surgiu a

oportunidade de trabalhar no Maiz (Autonomes Integrationszentrum von und

fuer Migrantinnen) na cidade de Linz, na Áustria. Essa associação é

especializada em educação popular para mulheres migrantes analfabetas. Na

maioria dos casos, estas mulheres viveram as reminiscências da tirania da

colonização européia e a opressão de gênero. O Maiz é uma organização de e

para mulheres migrantes e surgiu da necessidade de transformações

relacionadas às condições de vida e de trabalho dessas mulheres na Áustria,

buscando inserção e ampliação dos processos de participação cultural e

política. É uma organização que tem como referencial teórico-conceitual os

pressupostos da pedagogia do oprimido de Paulo Freire (FREIRE, 2005) e os

conceitos gramscianos de sociedade civil e luta contra-hegemônica

(GRAMSCI, 1978). Desta forma, dentro do contexto de globalização, de intensa

migração de mão-de-obra dita “desqualificada” e de feminização dos processos

migratórios, fui redescobrindo a importância da educação popular (FÁVERO,

1983). A educação popular é obscurecida no Brasil, ainda, pela violência da

colonização, pela ideologia elitista e conservadora imposta às classes

populares e pelo discurso neoliberal que no contexto do capitalismo

subdesenvolvido tenta manipular conceitos. Exemplo disso é a cooptação pelo

mercado das expressões: criatividade, criticidade, capacidade de solução de

problemas e de trabalhar em equipe, autonomia, “empoderamento”

(empowerment), emancipação, cidadania e muitas outras. Sabemos que,

originalmente e no contexto dos movimentos sociais, esses são conceitos que

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sinalizam para as formas de superação das concepções deterministas de

existência, mas que em contextos absolutamente mercantis a força conceitual

destas expressões se perde, tornam-se estéreis e a serviço do lucro.

Mais tarde, retornando ao Brasil, essa vivência conduziu-me à segunda

experiência na EJA. Por meio do trabalho como professora, atuei em um

projeto de formação educacional da Federação das Indústrias do Espírito Santo

(FINDES – SESI/ES). Esse programa tinha e ainda tem como objetivo a

conclusão de estudos em nível de Ensino Fundamental e Médio e é

exclusivamente destinado aos trabalhadores da CVRD (Companhia Vale do

Rio Doce) e empresas terceirizadas que prestam serviço a essa Companhia. A

formação dos(as) professores(as), a metodologia por “tele-aulas” e os demais

materiais utilizados são de responsabilidade da Fundação Roberto Marinho e

de sua marca - o Telecurso 2000. Nessa época, já sensibilizada com a causa

daqueles que não puderam concluir a escolaridade na idade prescrita pela lei,

ocuparam-me perguntas do tipo: de que modo o trabalhador consegue

desenvolver sua consciência política (KUENZER, 2002) utilizando ferramentas

metodológicas/ideológicas deste tipo de Fundação não só comprometida, mas

que constitui o poder hegemônico no país? De que forma poderia o local de

trabalho contribuir para a elaboração e ampliação da consciência de mundo se,

de acordo com relatos dos alunos, até o “brilho nos olhos” era cooptado e

transformado em “programa” nos setores de RH e em benefício do capital?

Ocupei-me, como aponta (GOMEZ et al, 2000) com as questões da qualidade

total, da formação abstrata e polivalente, da flexibilidade, participação,

autonomia e descentralização, que, impostas aos trabalhadores no contexto da

competitividade, fragmentam e distorcem a visão da realidade.

Outra questão crucial era o papel que desempenhava nesse processo: a quais

interesses estaria servindo? Em qual direção fluiria meu discurso emancipatório

inserido no bojo de mecanismos cada vez mais sofisticados de disciplinamento,

paradigmas de gestão e exploração do trabalhador? Percebia que meus

alunos sofriam, eles e elas começavam a verbalizar o sentimento de

“robotização” e expropriação. Contudo, percebia que, de forma paradoxal, a

sala de aula montada segundo os interesses da empresa e do mercado não

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apenas conformava, ia se constituindo no espaço do encontro, da fala/escuta e

do desabafo. Sobretudo, constituía-se em espaço da tradução de questões

pessoais para dilemas coletivos, por isso, também formava, subvertia e

emancipava. Esta experiência, em particular, marcou-me sobremaneira.

Compreendi, finalmente, por onde passa o sofrimento das muitas pessoas que

não puderam ou conseguiram estudar na idade prevista. Estas pessoas2,

embora não soubessem expressar plenamente, sentiam-se estranhas num

mundo que não davam conta de decifrar, onde lhes cabia somente o papel da

obediência aos ditames patronais.

A terceira experiência no trabalho com jovens e adultos aconteceu numa

escola pública, possibilitada pelo concurso público democrático (e histórico)

realizado na cidade de Cariacica. Este concurso foi o meio que permitiu

assumir, a mim e a outros(as), como professora efetiva3 uma turma de alunos e

alunas do ERNS – Ensino Regular Noturno Semestral. Essa turma era

constituída por 20 educandos da 1ª e 2ª séries que possuíam faixa etária

compreendida entre 15 a 67 anos de idade. A turma, configurada por todos os

elementos da diversidade e da desigualdade, funcionava no período noturno

numa escola situada em região periférica. Assim, na escola pública -

teoricamente um espaço democrático e a serviço da cidadania - pude trabalhar

com mais liberdade e confluir impressões, aprendizagens, dilemas e ideias.

Essa experiência possibilitou a compreensão e o exercício da profissão de

forma mais consciente e clara, ou seja, o trabalho com e na educação de

jovens e adultos como ato político e emancipador. Desta forma, compreendi

que este trabalho deveria ser realizado na medida em que o sujeito aluno (a)

(se) perguntava, no ritmo que impunha, na amplitude que expunha e conforme

problematizava sua realidade. Ou seja, comecei a ter clareza de que minha

2 Estou me referindo às pessoas empregadas, ainda com certo acesso a direitos sociais

básicos e que, portanto, não constituem o exército de reserva desempregado excluído de vida digna por não poderem pagar por estes serviços. 3 Fazemos esta observação porque ser professor(a) efetivo(a) significa usufruir de certa

estabilidade no sistema, ao contrário de centenas de profissionais contratados que, nesta condição, são impedidos de estabelecer vínculos quaisquer nas escolas que trabalham. A busca pela efetivação dos professores é luta histórica na EJA, e, em Cariacica, o maior percentual de profissionais contratados encontrava-se nesta modalidade EJA.

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função era levantar questões e não fornecer respostas prontas, imagens

estereotipadas e já formatadas por meus modelos de mundo.

Portanto, estas experiências marcaram e (re) orientaram minha trajetória

profissional. Assim, na busca por formação específica para atuar com este

público, conhecemos Brandão (2006) e a asserção de que “[...] a educação

pode ser tanto uma forma de pressão quanto uma forma de libertação. Isso

depende apenas de como é pensada e praticada”. Com Oliveira (1996)

começamos a observar que a formação docente demanda do educador um

exercício permanente o que

Pressupõe romper com concepções e práticas que negam a compreensão da educação como uma situação gnoseológica. A competência técnico científica e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas (1996, p. 11).

Portanto, falamos “a partir de” e “por entre” esses lugares e pessoas. Trabalhar

com os sujeitos da EJA provocou inquietações que me instigou a deslocar

teorias e conceitos, modificando convicções e hábitos relacionados aos

terrenos mais ou menos estáveis do ensinar e aprender no “ensino”

fundamental.

O encontro com a EJA tocou-me quanto à necessidade de transcender a mera

adaptação à realidade e potencializou sentimentos quanto às possibilidades de

intervenção no mundo. Esta dinâmica é descrita por Freire neste fragmento de

sua última entrevista4, no qual afirma que,

Indiscutivelmente do ponto de vista biológico talvez nenhum outro ser tenha desenvolvido a capacidade de adaptação às circunstâncias maiores do que o homem e a mulher. A adaptação no ser humano é um momento apenas que eu chamo da sua inserção. Essa é a distinção que eu faço entre adaptação ao mundo ou inserção. A distinção é a seguinte: é que na adaptação, há uma adequação há um ajuste do corpo as condições materiais, às condições históricas, sociais, geográficas, climáticas e etc. E na inserção o que há é a tomada de decisão do sentido da intervenção no mundo. Por isso mesmo eu recuso qualquer posição fatalista diante da história e diante dos fatos. Eu não aceito, por exemplo: “É uma pena que haja

4 Paulo Freire concedeu esta última entrevista em abril de 1997, em casa, na cidade de São

Paulo, à jornalista Luciana Burlamaqui.

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tantos brasileiros e tantas brasileiras morrendo de fome, mas afinal a realidade é essa mesma”. Eu recuso como falsa e ideológica essa afirmação. Nenhuma realidade é assim mesmo! Toda realidade está ai submetida à possibilidade de nossa intervenção nela (FREIRE, 1997).

Nesta mesma entrevista, Freire faz referência à necessidade de nos

empenharmos nas marchas políticas que interpelam e pressionam a realidade

às mudanças. As marchas são pensadas por ele como movimentos que

reúnem coletivos em prol da democratização da sociedade e da emancipação

humana.

Afirma que, [...] morreria feliz se [...] visse o Brasil cheio em seu tempo histórico

de marchas. Marchas dos que não têm escola; marcha dos reprovados;

marcha dos que querem amar e não podem; marcha dos que se recusam a

uma obediência servil; marchas [...],

dos que se rebelam, marcha dos que querem ser e são proibidos de ser. [...] [Acredito] afinal de contas que as marchas são andarilhagens históricas pelo mundo [...]. E o meu apelo, o que eu desejo, o meu sonho é que outras marchas se instalem nesse país; como por exemplo, a marcha pela decência, a marcha pela superação da sem-vergonhice que se democratizou terrivelmente nesse país. Eu acho que são essas marchas que nos afirmam como gente como sociedade querendo democratizar-se (FREIRE, 1997b).

Consideramos, então, que as três experiências por mim relatada podem ser

compreendidas como travessias possíveis de se fazer na vida e que, na

perspectiva freireana, é um “pôr-se em marcha” subjetiva e objetivamente para

promover a transformação necessária na práxis, tanto como educadora, quanto

das relações estabelecidas com outros e outras. Estas reflexões encontram

ressonâncias em Oliveira ao pontuar,

Resulta daí que o tempo da transição é o tempo que obriga o indivíduo a fazer opções, ou seja, ficar preso aos velhos valores do passado ou partir rumo aos novos valores que se descortinam e se abrem para o futuro. Isso provoca a rachadura da sociedade entre conservadores (aqueles que ficam) e liberais ou progressistas (aqueles que partem) (1996, p. 40).

Inferimos que, conscientes ou não desta dinâmica de escolhas, o tempo todo

fazemos opções entre emancipar ou regular/conservar. Entre ficar/permanecer

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ou partir. Mais que um conceito ou categoria de pesquisa, a atitude

emancipadora define o ser que somos, atravessando (ou não) nossas práticas

cotidianas e profissionais, contando de nossas crenças, desvelando posturas

político – ideológicas e sinalizando a favor de quem e contra quem

trabalhamos.

Portanto, nas relações estabelecidas com o contexto escolar, que implicou na

busca por compreender as concepções que permeiam posturas e atividades

pedagógicas propostas pelos (as) educadores (as) aos educandos jovens e

adultos, fundamentando-me na compreensão que

Àqueles que se comprometem autenticamente com o povo é indispensável que se revejam constantemente. Esta adesão é de tal forma radical que não permite a quem a faz comportamentos ambíguos. [...]. Daí que esta passagem deva ter o sentido profundo de renascer. Os que passam têm de assumir uma forma nova de estar sendo; já não podem atuar como atuavam; já não podem permanecer como estavam sendo (FREIRE, 2005a, p.54).

Assim, assumindo esse desafio da criticidade, que implicou buscar as teorias a

partir da prática, este trabalho foi também se constituindo uma exposição

autobiográfica, já que vou compartilhando questões e lentes que me são

significativas, que subjazem minha fala e demarcam os lugares geográficos,

políticos e teórico-conceituais assumidos na dinâmica de ver, pensar e

trabalhar com o povo.

1.1 DO BOM ENCONTRO COM A EJA À DIRETRIZ DA PESQUISA

“Tenho 21 anos. Nasci na Bahia e moro aqui tem cinco anos. Voltei a estudar porque sou servente de pedreiro e quero aprender a colocar azulejos e pisos “de cabeça”, fazendo contas, sabe... estou construindo minha casa, meu sonho é ser mestre de obras” (André, aluno do ERNS – Ensino Regular Noturno Semestral). “Tenho 29 anos, sou casada e tenho um filho, estou há dez anos fora da escola. Me acomodei. Voltei a estudar porque até para varrer a rua a gente tem que ter estudo, quero oferecer um futuro melhor para meu filho” (Luciana, aluna do ERNS).

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“Tenho 47 anos e sou funcionário da “hort-frut”. Meu patrão disse que preciso ler para armazenar as caixas direito. Estou aprendendo a ler nas caixas de frutas. Minha professora disse que eu já posso ir para quinta série, mas eu não quero não, não me sinto preparado” (Antonio, aluno do ERNS).

Então, de maneira “encarnada”, posso afirmar que os educadores(as) de EJA

se constroem “vivendo” a experiência do cotidiano da escola e nas relações

com sujeitos tão diversos como os apontados na epígrafe, já que não há

processo de formação específico sobre o campo5.

A docência “acontece” e nos formamos na prática e na sensibilidade que vai

apontando leituras, encontros e escolhas. Esta dinâmica aponta que a

formação do(a) educador(a) de EJA é uma questão problemática que vem se

arrastando e um desafio que as universidades necessitam assumir. Isto será

determinante na reconstrução de perspectivas e, consequentemente, na

reinvenção política do ser educador e educadora da modalidade EJA.

No sentido deleuziano (DELEUZE; GUATARRI, 1992) esse nosso “encontro”

com a EJA foi um bom encontro, porque exigiu negociações quanto à forma de

ser e estar no mundo e na escola; no qual o pensamento, desafiado pela

configuração singular das salas de aula, necessitou fazer-se presente como

potência e atividade criadora, desterritorializando e forjando práticas coerentes

com as trajetórias de vida dos sujeitos. Perguntava, então, como considerar

tantas realidades históricas, políticas e culturais?

Defrontamo-nos com um campo híbrido e diaspórico (HALL, 2006), no qual se

agregam e intercambiam sonhos, desejos e lutas, ou seja, um mosaico de

5 O curso de pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) ofereceu, de 2001 a

2009, a Habilitação em Magistério da Educação de Jovens e Adultos, com carga horária de 480h. Porém, com as Novas Diretrizes Curriculares as habilitações foram suprimidas, colocando-se para a Universidade o desafio da formação em áreas específicas da EJA e da Educação Especial, embora algumas disciplinas tenham sido incluídas na grade curricular para o trato desses campos específicos de conhecimento na relação com os sujeitos.

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possibilidades identitárias. Na EJA encontramos adolescentes, jovens, adultos

e idosos com variados graus de autonomia social e possuidores de diferentes

modos de conceber e viver a vida.

Desta forma, tive que exercitar o chamado “pensamento da multiplicidade” e

tentar compreender este território privilegiado para onde se confluem o

múltiplo, o diverso e todas as possibilidades da diferença: etárias, de gênero,

culturais, étnicos-raciais, regionais, de classe, religiosas, de opção ideológica,

políticas, de orientação sexual, de profissionalização, de aprendizagem etc.

Assim, esse encontro com o múltiplo e o plural incomodou e deslocou,

tornando definitivamente nômades pensamentos, conceitos, fundamentos,

crenças e valores que moviam e movem o “ser e estar sendo” professora e

“gente” neste mundo.

Estas são premissas centrais no pensamento freireano, cujo substrato

atravessa todo este texto. Em sua obra Freire intitulava-se como um autor cujo

pensamento não se deixou cristalizar ao longo do tempo. Assim, constatamos

que ele permaneceu, durante toda sua vida, produzindo constantes

deslocamentos necessários à compreensão de realidades e subjetividades

cada vez mais complexas, como a dos jovens e adultos apresentados.

Como ferramentas para desvelamento dessas realidades e subjetividades,

Freire defendia uma práxis pedagógica sempre pautada na dialogização e cuja

finalidade fosse a emancipação de homens e mulheres. Afirmava:

Na perspectiva libertadora, não temos nada para dar, realmente. Damos alguma coisa aos alunos apenas quando intercambiamos alguma coisa com eles. Esta é a relação dialética, em vez de uma relação manipuladora (FREIRE, 1986, p. 204-205).

Para Freire educação é sinônimo de humanização, materializada nas relações

humanas de profundo respeito às diferenças e reconhecimento dos saberes do

outro, que se realiza sempre a partir do “outro” e da “outra” concretos, cujo

sentido é histórico, coletivo, social e político. Essa postura, que é

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essencialmente política, na EJA torna-se absolutamente necessária à

compreensão da dinâmica na qual nos movemos e nos enfrentamentos com a

realidade social complexa, na qual o pensamento necessita se deslocar,

constituindo-se ferramenta essencial a toda e qualquer pessoa nesse mundo,

para que possa se situar nele e enfrentar seus desafios conceituais e políticos.

Pois bem, sem sabê-lo na época, sei hoje que a diretriz deste trabalho

começou a ser formulada nestas relações vivenciadas na prática, com os

sujeitos e instituições. Instiguei-me a pensar sobre o sentido de uma escola

para jovens e adultos. Interpelei-me sobre as atividades que se realizavam nos

contextos escolares e de que forma poderiam contribuir para a constituição de

um sujeito crítico a respeito da realidade social em que vive.

A escola problematiza a realidade desses e para esses sujeitos, ou, a

apresenta inexorável e impermeável a mudanças? Quais significados os

sujeitos conferem a seu tempo escolar? Há o entrelaçamento das vivências dos

educandos com as/ nas atividades escolares? Estas viriam ser as inquietações

que desenhariam o curso deste trabalho e culminariam na pergunta diretriz e

nos objetivos de pesquisa, posteriormente detalhados no capítulo 6.

1.2 DA DISPOSIÇÃO DOS CAPÍTULOS

Ao longo da exposição deste trabalho desejo esboçar a rede de significações

que expressa a complexidade conferida ao campo, pois acreditamos que a EJA

vem se constituindo, historicamente, este lugar rizomático6, tanto é que na

concepção de alguns pesquisadores da área, vem sendo “convidada a

reavaliar sua identidade e tradição, reelaborando os objetivos e conteúdos de

formação política para a cidadania democrática que seus currículos sempre

souberam explicitar” (DI PIERRO et al, 2001, p.74).

6 Da botânica para a filosofia um conceito desenvolvido pelos filósofos franceses Gilles Deleuze

e Felix Guatarri.

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Compreendo, então, que caminhamos em um território no momento

privilegiado de sua (re)construção e atualização frente às demandas colocadas

pelas novas configurações sócio-histórico-educacionais. Assim, após esta

introdução, prossigo para a segunda parte, “Apresentando a rede de

significações que vem compondo a Educação de Jovens e Adultos (EJA)”, no

qual busco saber da atualização deste campo, situar-me no mapa e no foco do

estudo em pauta.

As questões pontuadas na terceira parte “Cariacica/ ES - a biografia da cidade

(in)visível que (des)afiou perguntas”, respondem às necessidades de

esclarecer as particularidades sócio-culturais, econômicas, políticas, e

educacionais do município onde se realizou a pesquisa. Tomamos como pano

de fundo o conceito utilizado por Calvino (1990) na obra Cidades Invisíveis,

onde a(s) cidade(s) se configuram como textos a serem lidos por seus

habitantes e viajantes.

Apresento, então, a construção histórica da pobreza e da marginalidade desta

cidade, caracterizada como o “espaço dos rejeitados”. O capítulo foi

desdobrado em “O panorama político”, “O panorama educacional” e “O

contexto da pesquisa”, o que implicou na necessidade de descrever “A

implantação da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) no município

de Cariacica/ES”.

Para clarificar a lógica de construção do objeto/problema bem como para a

orientação e definição das categorias de análise, aproximei-me e dialoguei com

a obra de alguns autores. Este marco teórico – conceitual é desenvolvido no

quarto capítulo: “Das escolhas teórico-conceituais: reunindo peças” e

“Construindo sentidos”.

Subsidiando-me na pesquisa rigorosa de Paiva (2009) e com apontamentos em

Di Pierro, Jóia e Ribeiro (2001), construí o quinto capítulo “O direito à Educação

para Jovens e Adultos: uma conquista entre as forças da regulação e da

emancipação”. O objetivo aqui é ter clareza da evolução do direito à educação

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para jovens e adultos, de modo que a poder entender como a instituição escola

compreende e participa da efetivação dessa conquista.

A metodologia que sustenta a atividade da pesquisa é abordada no sexto

capítulo, assim designado: “A proposta metodológica em pesquisa-ação: uma

opção pedagógica, política e poética”. Assumi a opção pela pesquisa-ação e

delineei as estratégias de abordagem e a pergunta-síntese que se constituiu

nosso “fio da meada”. Outros aspectos metodológicos explicitados neste

capítulo são as questões que dão suporte à investigação, à definição dos

objetivos do estudo, dos sujeitos incluídos, à organização dos tempos e

instrumentos de produção dos dados.

Fui, então, conduzida à sétima parte do trabalho “A Educação de Jovens e

Adultos (EJA) na escola: dimensões da prática”, onde relato sobre nossa

relação com o campo, da produção e do diálogo com os dados. Apresento a

escola pesquisada constituída além muros de concreto armado, como

instituição simbólica e arena social na luta para a democratização e

emancipação humana, produzindo relações em várias dimensões. Reconheço

a complexidade do cotidiano, cuja leitura não se mostra espontaneamente e

essas traduções possíveis estão compiladas em eixos temáticos de análise.

No oitavo capítulo finalizo o diálogo com os dados, buscando os entre-lugares

e as intersecções necessárias para a (con)vivência como potência na escola.

Evidencio alternativas, já que a trajetória da modalidade EJA nos contextos

escolares apenas está começando e estes necessitarão (re) configurar-se,

abandonando um lugar “de tradição” para o “da tradução”. Neste sentido, “Da

tradição escolar à escola da tradução: gerando possíveis para adolescentes,

jovens, adultos e idosos”, significa humanizar um direito que faz a diferença,

fazendo-o valer numa sociedade que persiste em criar, e de maneira cada vez

mais engenhosa, novas formas de exclusão social.

Como estratégia para perspectivar um futuro para a EJA na escola, finalizo

este trabalho em “Prosseguir ousando experimentar”. A expressão não é

minha, inspiro-me em Oliveira (2006, p. 229) quando se refere às experiências

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e ações no campo da EJA, dizendo que estas podem tornar-se notórias “não

porque exitosa pelos seus resultados, mas pelo seu potencial para agregar

pessoas com idéias e sonhos em comum e, também, pela insistência em

prosseguir ousando experimentar.”

Busco, em mais esta observação da nossa professora e orientadora sentidos

para a nossa produção, pois compreendo que foi esta articulação com pessoas

e sonhos, aliada à resistência e à ousadia, que me trouxe e sustentou até aqui.

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2 APRESENTANDO A REDE DE SIGNIFICAÇÕES QUE VEM

COMPONDO A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA)

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(João Cabral de Melo Neto, A Educação pela Pedra, 1966).

Que campo de estudo é este que nos desafia? Como se constituiu e vem se

estabelecendo o lócus da nossa pesquisa? Na contemporaneidade a educação

de jovens e adultos adquire novos sentidos como campo público de direito

atrelado à luta pela garantia dos demais direitos negados historicamente.

Quando jovens e adultos buscam a escola, são sujeitos e trajetórias de vida

concretas que retornam. O direito à educação está sempre entrelaçado no

movimento de recuperação de condições dignas de existência desde sempre

negadas. Nesta direção, a intenção inicial é compreender o lugar onde estamos

“pisando e transitando”, situando a EJA, desde sempre constituída na

complexidade.

Portanto, iniciamos com a ajuda do nosso poeta, na sua obra “Tecendo a

manhã”, uma metáfora que (re)inventa e faz pensar nos sentidos do coletivo e

do afeto, da comunidade e da política. Atentando para o ano em que esse

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poema foi escrito (1966), certamente nos lembraremos de tempos duros vividos

por nós, brasileiros(as), durante a década-auge dos anos de chumbo, em que

tivemos interditados direitos civis, políticos e o exercício da liberdade por 21

anos no país.

No turbilhão dos acontecimentos deste período muitas pessoas engajaram-se

em diferentes formas de resistência e luta, perspectivando o futuro e “a

tessitura da manhã” por meio da Cultura e da Educação Popular,

consequentemente, militando na Educação de Adultos, cuja origem enraíza-se

também naquelas manifestações, organizadas segundo Beisiegel por

Correntes ideológicas, organizações políticas, movimentos estudantis, associações, igrejas..., enfim, diferentes portadores de projetos alternativos de futuro para a sociedade disputavam o exercício de influência sobre a população. A educação, sobretudo a educação de jovens e adultos, com mais frequência passou a ser compreendida por esses atores como instrumento de formação de agentes de construção do futuro desejado (BEISIEGEL, 1997 p. 221).

Dentre os protagonistas que marcaram esta época e que continuam

subsidiando a história da educação, em especial lembro-me de Freire (1997, p.

154) ao reafirmar a importância da articulação engajada com outros(as),

quando diz “o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu

gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade,

como inconclusão em permanente movimento na história”. Freire anuncia para

além dos limites da pedagogia o que João Cabral expressa pela poesia, e

ambos seguem atuais frente à tradução dos tempos em que vivemos, nos

quais esquerda e direita se dissolveram em nuances, mas cuja realidade

continua exigindo a (re)invenção da política e da comunidade, dos espaços

públicos e a articulação de coletivos na opção ética por uma sociedade mais

justa (POCHMANN, 2004).

Neste esforço de compreender as articulações instauradas pela Educação de

Jovens e Adultos – EJA, optamos por esta forma prospectiva que sinaliza

sujeitos, concepções e um tempo político. Um necessário e simultâneo olhar

sobre os múltiplos sentidos e agentes que vêm tecendo significações e

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compondo o estado da arte no campo; este, indubitavelmente, vinculado a um

projeto de sociedade em favor das e com as classes populares urbanas e

rurais (FÁVERO, 2006).

Estamos falando de uma modalidade que escreveu uma “história da educação”

esquecida e ausente da História da Educação (FÁVERO apud PAIVA, 2009), e

este tipo de amnésia acontece mesmo e apesar desta concepção pedagógica

ter sido compreendida como instrumento de formação de agentes e de

construção do futuro desejado (BEISIEGEL, 1997, p. 221).

Portanto, estudar a EJA significa necessariamente levar em conta aspectos

(in)visíveis compostos por situações históricas pontuais, que desde sempre

enredaram o campo em movimentos políticos locais e globais, e que

remontam, no Brasil, à pouco duradoura constituição de 1934, e, no mundo,

aos acordos internacionais firmados desde 1949 na I Conferencia Internacional

de Educação de Adultos – Confintea, realizada em Elsinore, na Dinamarca,

entre os países membros da Organização das Nações Unidas, em

conferências promovidas pela Unesco (PAIVA, 2009) e na Declaração de

Educação Básica para Todos – crianças, jovens e adultos, de Jomtien, na

Tailândia, em 1990.

Historicamente o público atendido pela EJA foi e ainda é constituído nas

sequelas sociais deste país. Contudo, há outras questões a serem

consideradas. Pensar nestes sujeitos remete não só à diferença e à

desigualdade no recorte de classe e das consequências perversas daí

advindas, mas também remete à fabricação e convivência da diversidade sob

todas as suas formas e a interação dos profissionais com as perspectivas de

vida, trabalho e futuro concebidas por alunos e alunas; expectativas estas que

podem estar, ou não, representadas na formulação das políticas públicas, no

campo dos direitos, com os quais a EJA necessita dialogar, pressionando os

gestores públicos na criação de políticas para atendimento às necessidades

deste segmento.

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Outro dado são os fenômenos específicos que atravessam a modalidade.

Desde a década de 90, a presença de adolescentes e jovens nas salas de aula

de EJA já é marcante, um quantitativo que vem aumentando

consideravelmente, sendo que em muitas unidades escolares os adolescentes

e jovens já representam maioria nas salas de aula. Portanto, o assim chamado

“fenômeno da juvenilização” (Hamburgo, V CONFINTEA, 1997), modificou a

configuração das turmas, trazendo desafios a docentes e discentes quanto à

convivência no espaço escolar, a organização dos grupos, linguagens, culturas,

currículos, metodologias e estratégias didáticas. Dilemas emergentes e

urgentes que precisam ser abordados e negociados em cada escola.

Desta forma, dialogar com a Educação de Jovens e Adultos implica assumir a

complexidade destas questões historicamente construídas, que a atravessam e

configuram. Principalmente, saber a modalidade como problematizadora da

desigualdade estrutural inscrita na formação da nossa sociedade, que exclui a

maioria da população dos direitos sociais básicos. São para estas pessoas que

esta modalidade de educação emergiu e emerge com mais força ainda em

consequência dos novos mecanismos de desigualdade e exclusão. Ou seja, é

um campo que caminha entre os limites e as possibilidades de resgatar aquela

perspectiva emancipatória que um dia se propôs a ser (ARROYO, 2006).

Dialogar com a EJA implica ainda definir premissas e referenciais a partir dos

quais se fala e se escuta, pois a modalidade cada vez mais vem se

configurando por meio de práticas educativas plurais que podem ser

concretizadas em vários ambientes, por meio de diferentes protagonistas que

vieram chegando ao longo do tempo e a serviço dos mais variados objetivos,

tanto para regular, quanto para emancipar.

Então, temos ciência de que este diálogo pode ser estabelecido com, para e a

partir de cada uma das múltiplas instâncias que atuam no campo – o segmento

de alunos(as), educadores(as) populares, professores(as) das redes de ensino,

universidades, fóruns, gestores federais, estaduais e municipais, movimentos

sociais, ONGs, Sistema S, sistema prisional, mais atualmente a rede Ifes com o

Proeja, acadêmicos que atuam na área, a sociedade organizada, etc. – isso, só

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para citar alguns7. Como já foi pontuado, um diálogo que pode ser configurado

a partir de perspectivas que englobam determinadas concepções, interesses,

formação intelectual, inserção política, acadêmica e profissional, bem como

determinada sensibilidade.

Militando na área tenho constatado esta configuração “babélica”, que de forma

alguma pode ser desconsiderada nos estudos sobre a EJA atualmente. Babel é

a lenda/metáfora utilizada por alguns autores para explicar “esse presente

confuso e incompreensível” (LARROSA; SKLIAR, 2001), que traz temáticas,

tensões e políticas que atingem de modo especial esta modalidade já

atravessada pela desigualdade e diversidade.

Fato é que nos encontramos numa mudança de época, denominada por alguns

autores de “pós-modernidade”, quando espaço e tempos se cruzam para

produzir figuras ainda mais complexas. São as novas figurações sociais que se

aliam às demais minorias já com uma história mais longa de discriminação

(PIERUCCI, 1999), e exigem para si o reconhecimento e a garantia de velhos e

novos direitos (BOBBIO, 2004). Estes movimentos, consequentemente antigos

e atuais embates produzidos vêm integrar o estado da arte.

Assim a EJA vai se configurando como uma modalidade de fronteira, um entre-

lugar, um espaço intersticial (BHABHA, 2005), um lugar estratégico de

subversão, conformação e subversão e hoje é desafiada à mediação e

invenção das linguagens de tradução entre os dilemas da igualdade, da

diferença e das várias e novas identidades emergentes surgidas nas

sociedades ditas pós-modernas. Um movimento próprio de uma sociedade

que, cada vez mais, se fragmenta, sinalizando a revisão do conceito de

comunidade humana na qual os direitos da pessoa são cada vez mais

instituídos em espaços complexos de contestação e reivindicação

denominados entre-lugares que

7 No documento nacional preparatório a VI CONFINTEA (2009), encontramos uma relação

atualizada e ampliada das instâncias e dos protagonistas que discutem EJA no Brasil. No site da SECAD/MEC também é possível ter uma ideia dos campos possíveis da EJA

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[...] fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade (BHABHA, 2005, p. 167).

No entanto, se novas identidades são (re)conhecidas e conquistam espaço

conceitual e político, seria pertinente indagar: até que ponto essa dinâmica se

configura como junção de forças e ideologias? Há ciladas na igualdade e

também na diferença (PIERUCCI, 1999) e, sobretudo, há uma enorme

dificuldade em seguir até o fim a lógica do postulado da diferença sem reforçar

práticas discriminatórias.

Portanto, respondendo às demandas específicas deste tempo histórico que

ainda não sabemos como nomear, mas, que implica o estabelecimento de

objetivos comuns de reivindicação social, também face à abrangência cada vez

maior dos estudos para a população jovem e adulta privada da escolaridade, e,

sendo que esta população, por sua vez, é constituída por identidades cada vez

mais diferenciadas e que exigem políticas públicas específicas e a “ampliação

do acesso e o reconhecimento de novas práticas em que o sujeito ganha

centralidade nos processos educacionais” (PAIVA, 2009); assim, estes e outros

fatores, imbricados, levaram os agentes da EJA à criação do que pode ser

compreendido como (entre) lugares estratégicos de articulação político-

pedagógicos, a seguir relacionados.

Dentre estes espaços e iniciativas, os mais significativos são, no nosso Estado,

a implementação do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (Neja) do

Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a partir

de 1997. À semelhança de ações realizadas por outras Universidades, a

entrada da EJA na UFES acontece via extensão e em parceria com a

Secretaria de Educação do Estado por meio do projeto “Alfabetização de

adultos e adolescentes” populares. Os grupos, instituídos em comunidades da

periferia da Grande Vitória, eram denominados círculos de cultura e,

inicialmente, inspirados no legado das primeiras experiências de Paulo Freire

com a EJA.

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A constituição do Núcleo foi possível por meio de ações embrionárias que

envolviam a alfabetização de jovens e adultos populares. Esta experiência

inicial foi responsável pelo que, mais tarde, veio a se constituir como NEJA,

gerando pesquisas de mestrado desenvolvidas por Edna Oliveira (1988)8 e

Ângela Souza (1988)9. Estas atividades foram proposições para uma nova

etapa de ação extensionista, através do projeto “Alfabetização e Formação na

Prática de Educação de Jovens e Adultos”, coordenado pelo professor

Admardo Serafim de Oliveira, do Departamento de Filosofia, que traz como

contribuição para a área os estudos realizados na tese de doutoramento10.

Inspirado, também, nos pressupostos freireanos, posteriormente foram

incorporados outros referenciais teórico-conceituais. Desde então, o NEJA/

CE/ UFES vem expandindo sua atuação no esforço conjunto de

pesquisadores(as), alunos(as) e ex- monitores do Centro de Educação e de

outros centros.

De acordo com Oliveira, o núcleo vem estruturando-se em diversas frentes de

trabalho no campo da formação: políticas públicas, educação e linguagem,

movimentos sociais, educação popular, educação matemática e educação do

campo.

Essas frentes de trabalho têm se materializado em ações efetivas com educadores populares e educadores do campo e profissionais das redes públicas. De certa forma, essas ações têm transformado o espaço do NEJA em um espaço potencializador e um campo de experimentação de práticas pedagógicas na EJA, considerando a educação de jovens e adultos numa perspectiva ampla não restrita à alfabetização, nem subsumida à escolarização (2006, p. 228-229).

8 OLIVEIRA, Edna Castro de. A escrita de adultos e adolescentes: processo de aquisição e

leitura do mundo. Vitória: PPGE/CE/Ufes, 1988. Dissertação Mestrado

9 SOUZA, Ângela Maria Calazans. Educação matemática na alfabetização de adultos e

adolescentes segundo a proposta metodológica de Paulo Freire. Vitória: Ufes, 1988. Dissertação Mestrado.

10

OLIVEIRA, Admardo Serafim de. "Conscientização": theory and pratice of a libertarian education; a philosophical understanding of Paulo Freire's pedagogy. Ottawa, Department of Philosophy, School of Graduate Studies, University of Ottawa, Canadá, 1980. Tese de doutoramento

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O Neja, também, é responsável pela criação do Fórum EJA/ES, em 1989 –

sendo o terceiro fórum criado em nível nacional, inicialmente foi proposto como

projeto de Extensão intitulado “Fórum Permanente da Grande Vitória". Em

2001 passa a denominar-se fórum de EJA do Espírito Santo e prossegue,

então, apoiando o fórum como secretaria executiva e de articulação política.

Outros fóruns foram se estabelecendo em nível nacional, os fóruns EJA

regionais11, presentes agora em 26 Estados e no Distrito Federal.

Outras conquistas na produção desta rede merecem ser destacadas como

espaço de condução das políticas da EJA. A criação da Secretaria de

Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD/MEC em 2004; e

dos Seminários Nacionais de Formação – SNF, neste ano na 3ª edição que

será sediada no Rio Grande do Sul; também a criação do portal dos fóruns de

EJA (www.forumeja.org.br), constituindo-se espaços de discussões e reflexões

sobre o processo de formação em EJA no Brasil, no âmbito da formação inicial

e continuada, da pesquisa e da extensão. Assim, o reconhecimento do MEC da

ação política dos fóruns conduz ao chamamento de reuniões sistemáticas e à

representação na CNAEJA – Comissão Nacional de Educação de Jovens e

Adultos.

Paiva compreende este tempo histórico como o tempo da “reinvenção da

emancipação social”. Neste sentido, os fóruns de EJA, como atores coletivos

críticos da formulação de políticas públicas, vêm propondo ações e práticas

antagônicas e de compreensão ampliada em relação ao lugar que a EJA deve

ocupar oficialmente, interferindo e transformando concepções,

[...] como movimento da sociedade organizada, não como outorga do Estado, mas como movimento de resistência, de diálogo, levando a incorporação de direitos e, consequentemente, à perspectiva de inclusão de uma diversidade de sujeitos. A construção de uma

11

Estes fóruns se reúnem todos os anos no Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos – o Eneja. Este ano o XI Eneja será realizado em Belém, no Pará, mesmo Estado que sediará a VI Conferência Internacional de Educação de Adultos – VI Confintea, pela primeira vez realizada em território latino-americano.

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agenda pela EJA, sustentada pela mobilização de amplos setores da sociedade organizada, congrega movimentos sociais e sindicais, organizações não – governamentais, entidades de pesquisa e setores técnicos (2009, p. 214 e 215).

Quanto à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

(SECAD/ MEC), sua finalidade é dar visibilidade às políticas públicas

articuladas para as populações historicamente discriminadas e excluídas,

“capturar” a diferença e agregar a diversidade do trabalho com os sujeitos e

grupos da EJA. Nesta pasta estão reunidas as políticas de alfabetização e

educação de jovens e adultos, educação do campo, educação ambiental,

educação escolar indígena, pró-jovem, diversidade étnico-racial, antes

distribuídas em outras secretarias.

Tentando concluir esta parte, constato que, frente às discussões que

acompanho, tanto nas Secretarias de Educação, quanto nos fóruns e na

interação com os sujeitos nas escolas, a clareza “do que é que estamos

falando, quando falamos em EJA”, é condição para avançar neste campo

constituído cada vez mais por sujeitos e culturas híbridas marcadas pela

exclusão social.

A EJA dialoga com múltiplos recortes e, de dentro destes processos, vem

tentando traduzir o espírito do tempo, empenhando - se na articulação de

espaços e ações em defesa do direito de jovens e adultos terem cada vez

mais oportunidades de acesso a uma educação de qualidade social. Como

aponta Fávero,

São ações promissoras, mas há um longo caminho a percorrer, não só para reparar a enorme dívida social acumulada em centenas de anos, mas também para criar novos modos de realizar aquelas oportunidades, reinventando a escola e gerando novas formas educativas (apud PAIVA, 2009, p. 10).

Então, de qual perspectiva estamos falando, quando dialogamos sobre a EJA?

Conforme enfatizado, entrar neste campo exigiu a apropriação desta rede de

significados. Foi uma iniciativa necessária, já que na afirmação de Arroyo

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(2005, p. 19), além de ter uma longa história, “[...] a EJA é um campo ainda

não consolidado nas áreas de pesquisa, de políticas públicas e diretrizes

educacionais, da formação de educadores e intervenções pedagógicas” e que

vem se (re)configurando como campo específico de responsabilidade pública

do Estado, uma das frentes do momento presente.

Sabendo que esta reconfiguração não virá espontaneamente, mas que será

fruto do engajamento coletivo, esta pesquisa tentou apreender a dinâmica

descrita e, a partir desta, colocar-se no movimento. Portanto, embora ciente de

que os estudos e as concepções de EJA desde sempre englobaram

dimensões para além da escola, neste trabalho pauto-me pela perspectiva da

escolarização, mas a ela não estou subsumida.

Assumo, assim, o desafio de pensar a Educação de Jovens e Adultos a partir

dos processos de escolarização desenvolvidos nas redes municipais de

ensino, um movimento atualizado, principalmente, após a inclusão da EJA no

Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica – FUNDEB, ocorrido em

janeiro de 2007, e que legitimou o direito aos recursos públicos, embora de

forma não-isonômica perante os demais níveis e modalidades da educação

básica.

É importante esclarecer que busco pensar na EJA numa perspectiva ampla e

sistêmica e que, durante a pesquisa, também não cheguei despreparada na

escola, cheguei com alguns aportes teóricos que serão apontados

posteriormente. São referências que podem respaldar o trabalho com jovens e

adultos, pois, como já sinalizado, compreendemos que a EJA possui uma rica

história escrita de forma marginal, e, por isto mesmo, completamente

desconsiderada e ausente da história da educação no Brasil.

Contudo, apesar da EJA constituir-se, protagonizar de muitas formas e ser

herdeira deste legado histórico, fértil e significativo, ao adentrar no campo tinha

uma suspeita de que esta herança não é conhecida, muito menos assumida ou

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(re)elaborada nos ambientes escolares, nos quais esta modalidade é,

geralmente, ofertada para as classes populares, concebida como reposição

aligeirada e de menor qualidade da escolarização que foi perdida na idade

legal. Pergunto-me: esta hipótese corresponde ou não à realidade?

Assim, defendo que a EJA deve estar atrelada a um projeto de sociedade, que

possui uma memória potencializadora de uma outra relação com a escola que

não um modelo desprestigiado, menor e mal adaptado do ensino fundamental.

O desafio é tentar compreender em que medida há alternativas para a relação

tensa que vem sendo desenvolvida entre a modalidade EJA e a escola

(ARROYO, 2006).

Portanto, penso na EJA como modalidade que nasce nos movimentos de

cultura e na educação popular12, que se constituiu no legado destes

movimentos (Fávero, 1983; 2006; Beisiegel, 2008; Brandão, 2002; 2008), de

onde buscou e continua buscando inspiração para a construção de um projeto

epistemológico-político. Penso a partir destas dimensões, o que leva este

estudo ao contexto de uma escola tendo como referência a perspectiva

emancipatória da Educação de Adultos13 (FREIRE, 2005).

Parto da hipótese de que podem existir iniciativas de emancipação e autoria na

EJA realizada na escola. Mas será que a escola pensa nisso? Problematiza

essas questões? Discute um projeto de sociedade? Estaria este “projeto”

(in)visível e (des)considerado pelos protagonistas? Defendemos que a

“captura”, a leitura e a reflexão do cotidiano escolar é indispensável para que

se reescreva, de forma mais qualitativa, este novo capítulo que a EJA vem

inaugurando na história da educação no Brasil com a sua inclusão no

FUNDEB.

12

No capítulo 4 discorremos sobre a relação da Educação Popular com a EJA. 13

Com o fenômeno da Juvenilização, observado no Brasil e na América Latina, a partir da V

Confintea (1997), realizada em Hamburgo, na Alemanha, a nomenclatura jovem passa a integrar a Educação de Adultos, passando a denominar-se Educação de Jovens e Adultos (EJA) (PAIVA, 2009).

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Desta forma, tomando como referência às sinalizações apontadas e o olhar

sistêmico, busco identificar se os sujeitos da modalidade EJA realizam a

problematização da realidade que se apresenta a eles e a elas cotidianamente,

e se o fazem na perspectiva da cidadania e da emancipação social – o que deu

origem à formulação da temática, que assim ficou intitulada: “Entre processos

de democratização e emancipação social: a Educação de Jovens e Adultos

(EJA) nos contextos escolares do município de Cariacica/ES”.

Desfio a narrativa a partir da concepção de que a consciência das relações

estabelecidas numa sociedade como a nossa, fundada sobre a hegemonia da

desigualdade estrutural e dos modos precários de existência, pode propiciar

movimentos e possibilidades da mudança desejada; e, principalmente a

Educação de Jovens e Adultos, pode e deve ser o espaço onde esta realidade

deve ser problematizada, questionada, pensada, de modo que as pessoas, se

quiserem, podem coletivamente e subjetivamente encontrar “saídas” e

alternativas emancipadoras para a realidade na qual (con)vivem.

Concluindo, a EJA é um campo político, carregado de complexidades, de

discussões densas e para onde se confluem tensões. Trabalhar com a

modalidade em qualquer das posições pontuadas nesta rede exige, sobretudo,

posicionamento político e sensibilidade para com os processos de

humanização e desumanização vividos pelos sujeitos, um trabalho

comprometido com a superação das diferentes formas de exclusão e

discriminação existentes em nossa sociedade, tanto nos contextos escolares

quanto nos não escolares. São estes os significados que vêm em rede e que

não poderia deixar de reconhecer, assumir e compartilhar na exposição deste

trabalho de pesquisa.

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3 CARIACICA/ES – A BIOGRAFIA DA CIDADE (IN)VISÍVEL QUE

(DES)AFIOU PERGUNTAS

As cidades também acreditam ser obra do espírito ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas (Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, 1990).

De que lugar estamos falando? As cidades invisíveis (1990), de Ítalo Calvino

(1923 – 1985), escritor italiano nascido em Cuba, é uma espécie de mapa

literário para o entendimento das cidades e, consequentemente, de quem as

habita. Se desejarmos entender os discursos que explicam as cidades e as

diferentes formas de interpretação, este romance é esclarecedor.

São textos curtos e poéticos nos quais Marco Polo, o famoso viajante

veneziano, descreve as 55 cidades que havia visitado em suas missões

diplomáticas pelo império mongol. Em cada descrição é dito que podemos

percorrer as ruas como se estas fossem páginas escritas. O que procuramos

em cada cidade? O que cada uma teria a ensinar? São infinitas as

possibilidades de leitura e interessante também é perceber como uma cidade

ajuda a ler outra, pois há conexões entre os meios urbanos, por mais distantes

que estejam. É uma narrativa surrealista, sem sê-lo; e potencialmente factível

porque mostra como as cidades deixam de ser um conceito geográfico para se

tornar o símbolo complexo e inesgotável da existência humana.

Assim, neste contexto para além do geográfico, refletimos sobre a cidade foco

deste trabalho – o município de Cariacica/ES e seus impasses sociais,

políticos, econômicos e culturais que ao se perpetuarem conformaram

invisibilidade e naturalização a práticas afrontosas à democracia e a cidadania.

Nesta cidade “(in) visível” chega ao poder em 2004 a administração petista, ao

sair vitorioso nas eleições para prefeito o político, filósofo e professor da rede

municipal de ensino, Helder Inácio Salomão, cujo discurso, principalmente no

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que tange à educação, é recorrente em torno da ruptura com uma cultura

histórica de desmandos e a (re)invenção da cidadania e da emancipação

social, convocando a população à participação no governo da cidade e na

gestão da escola.

Compreendemos a cidade de Cariacica sob esta ótica de Calvino, como

espaço que necessita ser traduzido, que se dá a ler e que encerra textos,

subtextos, hipertextos e cujas páginas se abrem ao olhar que pergunta,

fornecendo possíveis respostas e roteiros. Deste modo, há que se realizar um

necessário olhar sobre este lugar, pois é nosso campo de trabalho e pesquisa

desde o concurso público que mencionamos anteriormente.

Portanto, falamos da perspectiva desta região que se tornou município

independente em 30 de dezembro de 1890, época em foi desmembrada

definitivamente de Vitória. Um dos mais importantes municípios integrantes da

região denominada Grande Vitória, principalmente em termos populacionais,

possui uma área de 279,975 km² (IBGE) correspondente a 0,60 % do território

Estadual, limitando-se ao norte com Santa Leopoldina, ao sul com Viana, a

leste com Vila Velha, Serra e Vitória e a oeste com Domingos Martins. A região

designada “Cariacica sede” fica a oito quilômetros da capital do Estado. Possui

uma população de 356.536 habitantes (IBGE, 2007). Embora situada na

Região Metropolitana da Grande Vitória, ainda conserva características

marcantes de uma cidade desenvolvida a partir de um contexto rural e da

migração de pessoas oriundas do interior do Estado e de outros Estados do

país, em busca de trabalho e de melhores condições de existência.

Historicamente, a população que se fixa no município é migrante assalariada e

a maioria ocupa vagas temporárias. Desta forma, pensar educação de jovens e

adultos, cultura e educação popular, cidadania e emancipação social em

Cariacica significa ter clareza das contradições e da posição econômica, social

e política que este município ocupou, e ainda ocupa, em relação aos demais

municípios que compõem a região da Grande Vitória.

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Portanto, a análise partiu das referências históricas que estão nas raízes da

fundação do município, na constituição da subjetividade e modo de

organização da população. Contextualizamos este panorama por entendermos

que nos fornecerá os subsídios necessários para compreendermos “por que” a

realidade se apresenta como é. Essa compreensão da constituição e formação

do lugar de onde estamos falando é fundamental para o entendimento de como

se produziu a lógica da exclusão social, política, econômica, cultural e

educacional. É, também, o que determinou a opção pelos referenciais teóricos

e categorias posteriormente apresentadas nesta dissertação.

Então, destacamos que, desde a formação do município, um único autor se

propôs a escrever sua história – Omyr Leal Bezerra, cujo livro é intitulado

Cariacica (Resumo Histórico), de 1951. Assim, embora em nossa pesquisa não

tenhamos encontrado variedade de registros e de fontes históricas ditas

“formais”, encontramos numerosos relatos orais e uma monografia de

graduação em História, desenvolvida na Universidade Federal do Espírito

Santo - Ufes (NASCIMENTO, 2001) 14.

Com base nestes registros, podemos afirmar que a partir da década de 1960, o

Espírito Santo, mais precisamente a Grande Vitória, passou por grandes

mudanças em diversos setores da economia. A mudança mais expressiva

aconteceu na indústria devido às vantagens de localização privilegiada. Assim,

o estado foi escolhido como sede de grandes projetos industriais, como:

Aracruz Celulose, Companhia Siderúrgica Tubarão, Porto e Pelotização da

CVRD, Samarco e expansão portuária ligada ao comércio de exportação.

Porém, dentre esses grandes projetos industriais, nenhum foi implantado em

Cariacica. Na década de 1960, o espaço urbano da cidade cresceu não como

consequência da implantação de grandes indústrias, mas sim, “como área de

concentração de reserva de mão-de-obra, principalmente daquelas voltadas

14

NASCIMENTO, Weydson Ferreira do. Cariacica no contexto da Grande Vitória: décadas de 1960 a 1990. 2001. Monografia (graduação em História) Universidade Federal do Espírito Santo: Vitória, 2001.

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para a construção civil. Neste sentido, a urbanização da Grande Vitória foi

modelada privilegiando alguns e segregando outros.” (NASCIMENTO, 2001, p.

02). Outra questão decisiva para o crescimento do espaço urbano foi o

processo de erradicação dos cafezais. Esse fato teve como consequência a

migração em massa dos trabalhadores e grande parte daqueles e daquelas

que fizeram o êxodo rural-urbano instalaram-se em bairros periféricos de

Cariacica.

A explosão populacional da região da grande Vitória e a especulação

imobiliária nas regiões centrais, assim como a ausência de acompanhamento

pelos órgãos governamentais responsáveis pela política habitacional,

provocaram a fixação dos trabalhadores na periferia dos centros urbanos –

única alternativa para sua sobrevivência na “cidade grande”. Desta forma,

Cariacica passa a fazer parte como subsistema caracterizado como “o espaço

dos rejeitados” de um sistema urbano com núcleo em Vitória. É destacado que

até a década de 1980 Cariacica não possuía um papel definido no contexto da

Grande Vitória,

[...] haja vista que, na Serra com a construção do CIVIT e principalmente da CST, ficou claro essa questão da Zona Industrial voltada para este município; Vitória como capital do Estado é considerada o centro financeiro e metropolitano, pois é neste município que estão localizados os escritórios das grandes empresas; Vila Velha enquanto que é considerado o centro turístico e de grande abertura à moradia de classe média; Cariacica manifesta, neste período, apenas uma tendência de ser entreposto comercial de cargas e serviços, além de dividir com Viana o papel de fornecedor de alimentos, principalmente os hortigranjeiros, e, também, o principal receptor da população migrante no Estado (NASCIMENTO, 2001)

Constatamos, assim, que a população que se fixa no município é migrante

assalariada. A maioria ocupa vagas temporárias, vindo instalar-se na região

motivada pelos grandes projetos industriais. É o que registram os jornais da

época:

Às 7 horas da manhã, os caminhões da Companhia Vale do Rio Doce estacionam no centro de Porto de Santana e recolhem os operários e peões que construíram o cais de Minério da Ponta do Tubarão. Instalados sem nenhum conforto, amontoados na carroceria, são transportados para Camburi, no outro extremo da cidade, onde permanecerão até às 18 horas cavando buracos, soldando e pregando,

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construindo enfim o progresso do Espírito Santo. (REVISTA CAPIXABA, 4 v. n.º 35, 1970, apud NASCIMENTO, 2001).

Na década de 1980, o município já contabilizava quase 190 mil habitantes,

número que vai aumentar, principalmente, com a construção do Centro

Siderúrgico Tubarão, em 1979. Com a construção dessa Companhia, houve

um grande número de migrações para a Grande Vitória. Todos que aqui

chegavam vinham com o intuito de ocupar as vagas na construção civil. Na

verdade, o que houve foi um grande número de empregos temporários.

Registros da época sinalizam:

Um bairro com sotaque mineiro, carioca, pernambucano e baiano. Assim é Flexal II, em Cariacica. O lugar começou a ser ocupado por volta de 1979, por pessoas que vieram do interior do estado, também. (...) sonhando em trabalhar na CST e CVRD. (A TRIBUNA, 1999, p.07, apud NASCIMENTO, 2001).

Não é exagero afirmar que Cariacica foi o maior receptor da população de

migrantes que tinham o objetivo de se fixar no Estado. Exemplo disso foram as

ocupações realizadas nas décadas de 1970 e 1980, divulgadas amplamente na

mídia como “invasões”, como nesse exemplo:

Invasão em Cariacica já tem mais de 4 mil barracos. No dia 06 de março começou a invasão em Rio Marinho e depois de um mês já é considerada a maior invasão em menor período da história do Estado do Espírito Santo (A Gazeta, 1980. p. 06).

Vale a pena registrar as notícias que foram divulgadas sobre uma das

principais ocupações e que culminaram na criação do bairro Nova Rosa da

Penha.

No dia 01 de maio de 1980 muitos migrantes sem ter para onde ir – pois, à medida que iam acabando os trabalhos temporários, essas pessoas não tinham suporte nenhum das empresas que os atraíram – foram para aqueles locais onde tinham a possibilidade de ocupar a terra, e um desses locais era o bairro Cruzeiro do Sul (Rosa da Penha). Como o número de invasores era muito elevado, as brigas e ocorrências policiais eram muito constantes, pois havia uma aversão por parte dos moradores originais aos migrantes que invadiram as terras. Assim esses migrantes foram parar em frente ao Palácio do Governo, ficando ali acampados durante dias, então, depois de muitas negociações o governo resolveu criar um bairro que foi denominado de “Nova Rosa da Penha”, transferindo assim, os

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moradores de Cruzeiro do Sul (Rosa da Penha), para esse novo bairro, o que marca o início da formação deste bairro em 1982, e em 07 anos já tinha uma população de cerca de 40 mil habitantes (NASCIMENTO, 2001, p. 04).

Desta forma, as fontes orais e escritas pesquisadas apontam três fatores como

os responsáveis pela formação do chamado “espaço dos rejeitados.” Primeiro,

a segregação populacional ocorrida na Grande Vitória, fazendo com que a

população de baixa renda se alojasse em Cariacica, e, segundo, a falta de

investimentos econômicos de grande porte – tanto oriundos da iniciativa

privada, quanto do poder público – e, a precariedade (ou ausência) dos

serviços sociais básicos oferecidos à população.

3.1 O PANORAMA POLÍTICO

Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, 1990)

A falta de investimentos no espaço público e no bem estar da população

produziu como consequências a proliferação da pobreza e da miséria. Isso foi

tão acentuado que acarretou uma “rejeição” até mesmo nos moradores, pois

muitas pessoas tinham – e muitos ainda hoje têm - vergonha de assumir que

moram no município.

No decorrer da História alguns governantes priorizaram investimentos públicos

apenas em instituições que não melhoraram diretamente as condições de vida

da população. Estamos nos referindo às seguintes instituições: o Hospital dos

Hansenianos, hoje Hospital Pedro Fontes, e o Educandário Alzira Bley, ambos

inaugurados na década de 1940 no governo de João Punaro Bley; o Hospital

Colônia Adauto Botelho inaugurado em 1954 no governo de Jones dos Santos

Neves, destinado para os doentes mentais; o presídio feminino de Tucum; e o

Iesben (hoje Unes), para a correção de menores infratores.

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O que se questiona não é a importância dessas obras, mas a grande

concentração do mesmo tipo de instituição em um único município. São

espaços, ainda, impregnados pelos preconceitos: lugar “dos anormais, dos

marginais, dos banidos da lei, da sociedade, dos direitos da cidadania”. Não

foram investimentos que fizeram com que a economia local se desenvolvesse.

Além do mais, nas décadas de 1970 e 1980, presenciamos o descaso total das

autoridades políticas com os migrantes que, privados de qualquer política

habitacional, eram “depositados” no meio do nada, como foi o caso do bairro de

Itanhenga. Para além da segregação histórica realizada pela política estadual,

as políticas públicas das administrações municipais também foram

determinantes para o atraso econômico deste município frente aos demais da

Grande Vitória. Os registros apontam que

[...] o único prefeito que concluiu o mandato do período de 1960 até

o fim da década de 90 foi Aloízio Santos na gestão de (92-96), assim, a política municipal é marcada por corrupção, por mortes, pelo desvio de verbas públicas e consequentemente falta de investimentos nos setores básicos da população, tais como: moradia, causando um déficit habitacional muito grande; saneamento básico, gerando doenças que são causadas com esgotos a céu aberto; somando-se a isto a falta de postos de saúde, não gerando uma medicina preventiva e corretiva para a população; além do sistema educacional deficitário, a começar pelos professores que em sua maioria são contratados por indicação política, e nem sempre são capacitados para exercerem os cargos (NASCIMENTO, 2001, p. 4-5).

A falta de gestão administrativa, tanto do executivo estadual quanto do

municipal, gerou toda sorte de discriminação. Isso se reflete historicamente na

representação, quase sempre negativa, do espaço geográfico, realizado pelas

mídias e a população em geral. Fruto dessa segregação histórica, os

problemas são de toda ordem: política, econômica e social. Ainda, essa falta de

investimentos fez proliferar historicamente a pobreza e a miséria, acentuando o

fenômeno denominado por Telles (1999) como “a banalização da pobreza”,

A pobreza é o tempo todo notada, registrada e documentada, é tema do debate público e alvo privilegiado do discurso político, mas nas formas de sua figuração é desrealizada como problema que diz respeito aos parâmetros que regem as relações sociais. Transformada em paisagem, a pobreza é trivializada e banalizada, dado com o qual se convive – com certo desconforto, é verdade -, mas que não interpela possibilidades individuais e coletivas. Como se

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sabe, a trivialização é sinal de uma incapacidade de discernimento e julgamento – é a isso que Hannah Arendt se refere quando fala da banalidade do mal (TELLES, 1999, p. 11 e 12 ).

Transformada em paisagem, a pobreza é revelada nas frágeis estruturas

econômicas e sociais e comprovada nas estatísticas. Os dados do Banco de

Desenvolvimento do Espírito Santo (BANDES) mostram os investimentos e os

empregos gerados por essa instituição na Grande Vitória. Os números

evidenciam a disparidade na aplicação dos recursos distribuídos entre os

municípios da região metropolitana.

Fonte: Instituto de Apoio à Pesquisa e ao Desenvolvimento Jones dos Santos Neves Grande Vitória em Dados - 1997. Vitória, 1997. Pág. 122

Portanto, esta é a breve radiografia histórica de Cariacica, um lugar que já foi

considerado o mais populoso do Espírito Santo, hoje possui 360 mil habitantes

ainda aglomerados em bairros com precária ou nenhuma infraestrutura e onde

as pessoas ainda estão concentradas em loteamentos e ocupações. Um

território cuja herança é o descaso político, crivado por práticas oligárquicas,

pelo abandono da administração pública, pela discriminação, a má distribuição

das riquezas e a desigualdade, cujas consequências ainda são o subemprego

e a miséria.

De acordo com depoimentos de alguns de seus moradores, um lugar que já foi

considerado „ingovernável‟, permeado por tragédias, mortes, cassação de

Participação dos Investimentos do Bandes na

Grande Vitória - 1996

Cariacica

2%

Serra

9%

Viana

1%

Vila Velha

41%

Vitória

47%

Participação dos Empregos Gerados pelos

Investimentos do Bandes na Grande Vitória -

1996

Cariacica

2%Serra

22%

Viana

1%

Vila Velha

24%

Vitória

51%

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prefeitos, escândalos e, pela ausência de planejamento e políticas públicas.

Outros moradores lembram os rótulos conferidos à cidade: “terra de ninguém” e

“terra sem lei”, o que é alarmante para uma cidade situada numa grande região

metropolitana.

Tentamos, desta forma, caracterizar o espaço geopolítico no qual a pesquisa

se desenvolveu - fronteiras, entrelugares atravessados por tensionamentos e

contradições que repercutiram na educação oferecida para a população que

freqüenta atualmente as salas de aula da EJA.

3.2 O PANORAMA EDUCACIONAL

Qual o motivo da cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o estampido da roda do uivo dos lobos? Jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve (Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, 1990).

Outra situação problemática foi a gestão da educação pública, na qual

aconteceram desvios afrontosos dos recursos do PDDE – Programa Dinheiro

Direto na Escola; a inexistência de mecanismos para participação democrática

das comunidades nas escolas; o loteamento das vagas existentes na educação

entre os vereadores como prática comum, em que cada vereador “recebia” um

quantitativo de escolas e tinha o poder de definir desde a pessoa que seria

responsável pela gestão da unidade de ensino ao quadro de professores.

Assim, a maioria dos profissionais era contratada e o vínculo trabalhista que

possuíam com a rede de ensino era pautado no coronelismo urbano. Em

entrevistas, profissionais de ensino que atuam há pelo menos 30 anos na rede

afirmam que mesmo o concurso público realizado no ano de 1991, dito

“democrático”, e que efetivou no total 527 profissionais, foi corrompido.

Diante do exposto acima, é evidente que o conhecimento veiculado no interior

dessas escolas não poderia contrariar os interesses dessas “lideranças”

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políticas. A maioria dos professores e professoras, provavelmente com medo

de perder seus postos de trabalho, eram coniventes com a situação. O que

salta aos olhos é que as ações relacionadas não foram isoladas e aconteceram

até bem pouco tempo atrás, no ano de 2003. Essas práticas foram marcadas

pela perenidade, naturalização e banalização, que gerou estigmas de toda

ordem e a descrença, sinalizada na voz de muitos profissionais entrevistados,

de que a realidade poderia ser diferente.

Contudo, entendemos que há duas formas de lidar com estas questões.

Podemos optar pela via da desmobilização e paralisia ou pela via da

indignação no “sentido freiriano”, que faz um chamamento ao engajamento e à

resistência e que começa pelo esforço teórico e conceitual em compreender e

conferir um significado comum e público para as práticas humanas, a política e

a educação.

A possibilidade de democratização da sociedade pressupõe a articulação de

movimentos contra-hegemônicos, o que implica na participação efetiva da

comunidade nos processos de decisão. Defendemos que a escola é, ainda, um

espaço de problematização do mundo vivido e construção de projetos na busca

por uma sociedade mais democrática e justa. Relacionados, estes aspectos

conduzem-nos ao contexto específico.

3.3 O CONTEXTO DA PESQUISA

“Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo15” (Foucault, 1970).

Escolhemos a Educação de Jovens e Adultos dessa rede municipal de ensino

como campo de investigação porque, como já pontuado, grande parte desta

população é excluída de direitos sociais básicos. Ao longo de décadas,

15

A Ordem do Discurso - aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro

de 1970.

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desmandos políticos de toda ordem, práticas autoritárias, oligárquicas e

coronelistas impossibilitaram aos cidadãos o exercício da cidadania e a

participação democrática. No sentido freiriano de educação, os acontecimentos

do meio popular, o cotidiano das comunidades e as urgências das periferias

estavam ausentes dos procedimentos pedagógicos (FREIRE, 2005).

Desta forma, as oligarquias políticas do município conseguiram produzir a

pobreza inconsciente, que segundo Demo, produz

[...] o pobre inconsciente, que não sabe que é pobre, pois não chegou a descobrir que é mantido pobre. O que revela, no reverso, a essência política do fenômeno. O pobre mais pobre é aquele que sequer sabe e é coibido de saber que é pobre (1994, p. 19).

Esta realidade colaborou para que os pobres tivessem que se conformar com

escolas pobres, enquanto alguns, os ricos, puderam manter o privilégio de

escolas ricas, simplesmente pelo fato de poderem pagá-las (GENTILI, 2001).

Ao longo dos anos, foi-se construindo e sedimentando uma lógica clientelista e

paternalista da gestão da educação pública, que além de gerar conformação

com a realidade produzida também excluiu as classes populares do

conhecimento e acesso a direitos, da língua escrita e de um universo de

saberes.

Os jovens e adultos das camadas populares tiveram o “Ensino Noturno” –

Ensino Regular Noturno Semestral (ERNS)16 – ofertado em alguns bairros, no

entanto, também esta modalidade se caracterizava pela sua condição

periférica. A escola noturna é marginalizada e a ela se estendem "as mazelas

do ensino diurno de modo mais agravado e cumprindo as funções de

seletividade e hierarquização social comumente identificada na escola"

(HADDAD, 1992).

É a última opção de trabalho dos(as) professores(as), que, inclusive, não

permite a constituição de uma identidade com a realidade da escola. A

16

Forma de oferta utilizada por muitos municípios como meio de se garantir os recursos do FUNDEF para este público.

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condição marginal pode ser observada, seja no interior da unidade escolar que

estigmatizada como o turno da evasão sobrevive com as sobras do ensino

regular, seja no interior da Secretaria de Educação pelo desconhecimento das

relações de saberes e fazeres de jovens e adultos trabalhadores, em condições

de trabalho precárias ou de desemprego.

Desta forma, a EJA configura-se como uma oferta inferior e desqualificada em

relação ao sistema regular, que reproduz os mesmos elementos denunciados

em outros níveis de ensino, isto é, a seletividade, a exclusão e o ensino

precário e centrado na subordinação do educando como objeto passivo do

conhecimento. Grande parte dos alunos continua a ser composta por pessoas

que já experimentaram o fracasso escolar e que já internalizam essa situação

de inferioridade considerando-se incapazes e fracassados.

A partir das eleições municipais de 2004, o resultado das urnas aponta para a

ruptura da tradição oligárquica deste município, quando é eleito prefeito o

candidato petista Helder Salomão. De acordo com depoimentos da Secretária

de Educação da atual gestão, dentro desta lógica de ruptura com antigas

práticas, é concebido e elaborado coletivamente o Plano de Melhoramento

para a Educação 2005-2008, uma espécie de “carta de intenções”, oficializada

em documentos institucionais após discutida com os coletivos escolares. Este

Plano de Melhoramento assinala que

A Secretaria de Educação (SEME) tem como finalidade construir coletivamente a “Educação Cidadã para todos”, onde, “o objetivo é a constituição de um sistema educacional democrático focado no desenvolvimento de competências e habilidades para um efetivo exercício da cidadania visando à emancipação social.” (SEME / PMC Plano de Melhoramento 2005-2008, p. 03).

Assim, teoricamente, tem início uma proposta político-pedagógica voltada aos

interesses e necessidades dos excluídos do acesso à educação básica e dos

espaços de participação democrática e cidadania. De acordo ainda com o

Plano de Melhoramento, seriam formuladas políticas e criados mecanismos

institucionais pelos quais a população pudesse efetivamente participar das

decisões de governo e gestão da educação no município. No que diz respeito à

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EJA, os representantes da SEME responsáveis pela assessoria da modalidade

pontuam que

[...] essa proposta considera o(a) aluno(a) como trabalhador(a), que busca na escola mediação para o mundo do trabalho e ampliação de suas práticas sociais cotidianas. Os conteúdos passam a ser referenciados na experiência e necessidades de vida do jovem e do adulto, considerados produtores de conhecimento. O objetivo da metodologia é dialogar com este saber, o acesso a outras informações e a (re) elaboração e (re) criação destes conhecimentos. (Informação Verbal)

17.

Entendemos que, ao menos em tese, esta proposta encontra apoio em Freire

quando afirmava que, para adultos, o motor da aprendizagem é a superação de

desafios, a resolução de problemas e a construção do conhecimento novo é

feita tomando por base os conhecimentos e experiências prévias.

Portanto, teoricamente, é uma administração que se intitula “popular” e

apresenta uma proposta pedagógica pautada no diálogo e no respeito aos

saberes dos alunos, ou seja, pretende-se fazer uma educação com e para o

povo, priorizando

A criação de uma nova epistemologia baseada no profundo respeito pelo senso comum que trazem os setores populares em sua prática cotidiana, problematizando esse senso comum, tratando de descobrir a teoria presente na prática popular, teoria ainda não conhecida pelo povo, problematizando-a, incorporando-lhe um raciocínio mais rigoroso, científico e unitário (GADOTTI, 1998, p.33).

Mas até que ponto esse discurso se concretiza no interior de uma instituição

escolar? Qual seria a medida desta postura mais progressista? Pois, como

consequência desta visão, deve-se priorizar na rede de ensino, no caso

específico na EJA, procedimentos e metodologias que possibilitem o

conhecimento das expectativas e necessidades dos(as) alunos(as) na sua

relação com o mundo, para erguer uma práxis pedagógica mediadora do ato de

refletir a realidade e nela agir politicamente.

Portanto, para compreender em que medida esses discursos são efetivados,

alguns autores vão direcionar o olhar. Eles constituem o marco teórico-

17

Informação fornecida por um representante da SEME em 17 de agosto de 2008.

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referencial de suporte à tradução da dinâmica destes espaços geo-políticos, já

que temos clareza que uma cidade, [ou uma escola],

[...] é igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam obscuras, as duas coisas escondem uma outra. (CALVINO, 1990, p.44).

Abaixo, o mapa da cidade com a localização atualizada (ano 2008) das 25

Escolas Municipais de Ensino Fundamental – EMEF‟s, que, neste ano,

ofertavam o Ensino Regular Noturno Semestral – ERNS, nas quais a partir do

ano de 2007 vem sendo implantada gradativamente a modalidade EJA.

EMEF João Pedro da Silva

EMEF Martim Lutero

EMEF Presidente Costa e SilvaEMEF Laurinda P. Nascimento

EMEF Maria Guilherina de Castro

EMEF Vienna R. Guterres

EMEF Terfina Rocha Ferreira

EMEF Álvaro Armeloni

EMEF Ferdinando Santório

EMEF Maria Paiva

EMEF Marília de R. Coutinho

EMEF Nilton Gomes

EMEF Stélida Dias

EMEF Talma S. Miranda

EMEF

Oliveira

Castro

EMEF J. Botânico

EMEF S. Jorge

EMEF Joana Maria

EMEF Ângelo Zani

EMEF Deocleciano F. Vitória

EMEF Luzbel Pretti

EMEF

Renascer

EMEF Sta

IzabelEMEF Tancredo do A. Neves

EMEF Vila Rica

CARIACICA / ES

ESCOLAS QUE OFERECEM EJA/ERNS

MAPA DE CARIACICA COM A LOCALIZAÇÃO DAS ESCOLAS QUE OFERTAM EJA / ERNS

FONTE: SEME - ANO 2008 / PROGRAMA ESCOLA EM AÇÃO / PEA

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50

3.3.1 A IMPLANTAÇÃO DA MODALIDADE EDUCAÇÃO DE JOVENS E

ADULTOS (EJA) NO MUNICÍPIO DE CARIACICA/ ES

Como consequência desta política de ocupação e de urbanização, agravou-se

o analfabetismo no município. Então, a SEME criou um departamento

designado de Divisão de Ensino Não-Formal (DENF), cujo objetivo era

fomentar iniciativas junto à sociedade civil organizada e coordenar programas

dirigidos a jovens e adultos analfabetos. Desta forma, no período que vai de

1991 a 2000 é ofertado às comunidades um projeto de alfabetização no

formato “educação não-formal”, ou seja, livre do controle e formalidades

escolares.

Eram salas de aula organizadas nas igrejas, nas associações de moradores,

terraços, galpões, garagens, salões, no presídio feminino de Tucum e até em

espaços cedidos pelas escolas. Assim, o “Saber é Preciso” foi um amplo

projeto com abrangência em 50 bairros, a maioria periféricos, oferecendo a

princípio apenas a alfabetização e, a partir de 1996, com a reestruturação do

programa, passando a oferecer também as quatro primeiras séries do ensino

fundamental.

Sobre este projeto, algumas questões vêem à tona, apenas as sinalizaremos:

de que forma um trabalho realizado com o povo relacionava-se com a realidade

da gestão municipal? Como este trabalho poderia se sustentar

conceitualmente, com profissionais, salvo exceções, sem nenhuma formação?

Qual jogo de forças estava presente entre os movimentos sociais organizados

e a SEME? Estes são alguns dos paradoxos inscritos, que não focaremos

neste momento.

Analisando arquivos e documentos da SEME e conversando com a população

e profissionais mais antigos, compreendemos que a maioria destes espaços

nasceu por meio de lutas da sociedade civil organizada, do empenho de

algumas lideranças religiosas e dos próprios moradores que reivindicavam

direitos e pressionavam a administração municipal. Tem-se nesta época uma

configuração etária bem definida nas turmas e a confluência comum de

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objetivos que levavam jovens e adultos a buscarem este espaço de

aprendizagem: a aquisição das habilidades básicas de leitura e escrita.

Em 2001 encerram-se as últimas turmas deste projeto de alfabetização, e os

arquivos da Secretaria indicam a pressão popular sobre o órgão central, ao

afirmar que “[...] este projeto passou por um processo de reestruturação, com o

objetivo de contribuir para a diminuição das inquietações e insatisfações que

são manifestadas pelos alunos e lideranças comunitárias que sempre

reivindicaram uma educação continuada para os educandos” (PROPOSTA

PEDAGÓGICA – ERNS, 2003).

Frente a essa necessidade e conforme entendimento da LDB, que traduz a educação de EJA como modalidade da Educação Básica, foi que buscou-se reestruturar o Projeto de Alfabetização e Pós Alfabetização de Jovens e Adultos – Saber é Preciso – desenvolvido pela Prefeitura Municipal de Cariacica, aprovado pela Lei Municipal nº 2.119/91, parecer 15/93 e Res. CEE 06/93.

Portanto, a SEME, que ainda não havia constituído um sistema de ensino no

município, obedecendo também às determinações do Conselho Estadual de

Educação (CEE), começa o movimento de oferta da escolarização; aquelas

turmas criadas nos espaços alternativos são conduzidas para as escolas da

rede. Isto significa dizer que muitas pessoas ficaram sem o atendimento, já que

residiam em bairros onde não havia escolas da municipalidade funcionando.

Desta forma, o Ensino Regular Noturno Semestral nasce em 2003, em

consequência da extinção do projeto “Saber é Preciso”, por pressão da

sociedade civil organizada, que reivindicava continuidade de estudos, por

determinação legal do CEE, e pelos altos índices de evasão do ensino regular.

Analisando documentos e a proposta pedagógica elaborada para aquele

momento, compreendemos que o ensino fundamental noturno, destinado a

alunos(as) a partir de 15 anos e organizado em semestres, chega para tentar

resolver “o problema” do ensino regular. Documentos pesquisados na SEME

apontam que a gestão assume e reconhece a situação ao afirmar que

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Permanecer no ensino regular e cumprir todas as suas etapas ainda é um privilégio a que muitos segmentos sociais não têm acesso. O que ainda se observa é que há um grande número de jovens que se vêem na contingência de parar os estudos para buscar no mercado de trabalho meios para a própria subsistência ou para engrossar a limitada renda familiar. Tal realidade se complexifica com o chamado êxodo rural, que provoca o inchaço urbano. Daí se verificar a massa de não escolarizados ou mesmo de incipientemente escolarizados. Há lacunas a preencher e essas vão da alfabetização ao ensino médio. É preciso absorver essas pessoas. É necessário regularizar-

lhes a situação escolar (SEME/ ARQUIVOS).

Portanto, esta “reestruturação” veio configurar o chamado “ensino noturno”,

para atender, principalmente, aos jovens e adolescentes excluídos do regular.

Desta forma, em 2003 o Conselho Estadual de Educação (CEE) regulamenta a

implantação do Ensino Regular Noturno Semestral (ERNS) nas escolas,

previsto no decreto municipal nº 136/2003 que em seu Art. 1º, considera:

IV – A exclusão social que atinge os jovens que se encontram em atraso no percurso escolar resultante da repetência e da evasão; V – O alto índice de evasão escolar, registrado no ano de 1998 (MEC/INEP/SEEC/ e IBGE), conforme informações contidas no Plano Nacional de Educação, provocam custos adicionais aos cofres públicos e aos sistemas de ensino, mantendo os jovens por período excessivamente longo no ensino fundamental.

Observo, então, que a elaboração das políticas públicas do período é

subsidiada por iniciativas pautadas principalmente na correção da distorção

idade/série e pensadas para o atendimento de uma população de EJA

constituída prioritariamente por jovens que, ao completarem 15 anos, são

encaminhados ao “ensino noturno”, como exposto no Art. 3º do mesmo

decreto:

A Proposta Pedagógica deve ser elaborada de forma a atender aos jovens dessa faixa etária, criando condições de aprendizagem adequadas à sua maneira de usar o tempo, o espaço, os recursos didáticos e às formas peculiares com que a juventude tem de conviver, ampliando democraticamente as oportunidades de aprendizagem.

A configuração da oferta nestes moldes segue até 2006. Neste ano, Cariacica

constitui Sistema Municipal de Ensino por meio da lei nº 4373/ 2006, aprovada

na Câmara e publicada no Diário Oficial no dia 11 de janeiro de 2006. A SEME

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adquire, assim, autonomia administrativa e pedagógica na gestão da educação

do município.

Neste mesmo ano, o Conselho Municipal de Educação de Cariacica (COMEC)

e a equipe de assessoria à modalidade convocam ampla discussão com os

vários segmentos representantes do magistério na EJA e sociedade civil

organizada. Após ampla discussão entre os segmentos, é aprovada a

Resolução nº 002/2006, atualmente incorporada pela Resolução nº 031/ 2009.

Neste documento, pela primeira vez, a EJA é assumida como modalidade da

Educação Básica, como destacado no Art. 1º da Resolução Municipal, quando

diz “[...] a presente Resolução abrange os processos formativos da Educação

de Jovens e Adultos como modalidade da Educação Básica da etapa do ensino

fundamental no Sistema Municipal de Ensino de Cariacica.” O Parágrafo único,

que aponta para construção de uma proposta educacional coerente com a

modalidade, afirma:

Como modalidade da educação básica, as especificidades da EJA considerará as situações, os perfis dos estudantes, a faixa etária e se pautará pelos princípios da equidade, da diferença e proporcionalidade da sociedade civil.

A Resolução entra em vigor a partir de 2007, ampliando o conceito de EJA para

além da alfabetização e assumindo o direito à continuidade de estudos. Outro

avanço é quanto à concepção da oferta de escolarização para jovens e adultos,

A resolução aponta para a superação da ideia do Ensino Fundamental Regular

Semestral estruturado para oferecer o ensino de 1ª a 8ª séries em quatro anos,

com organização curricular semestral e destinada aos alunos com defasagem

idade/série, que estudem à noite. Estas assertivas podem ser observadas nos

Capítulos I, II, III e IV da referida Resolução.

Quanto à caracterização da EJA na atualidade, conforme as tabelas

verificamos:

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54

na Tabela I a variação do quantitativo do número de alunos

matriculados na modalidade nos anos de 2005 a 2008 e a matrícula

inicial no ano letivo de 2009;

na Tabela II, a variação deste quantitativo;

na Tabela III os índices de distribuição por sexo e idade, sinalizando

também que a evasão registrada foi de 21, 4%; e,

na Tabela IV, a evolução dos alunos matriculados até o primeiro

semestre de 2009.

TABELA I

Variação do Número de alunos da EJA/ERNS 2005 a 2009

2578

36023816

4007 3871

2053

30853416

3142

0

500

1000

1500

2000

2500

3000

3500

4000

4500

2005 2006 2007 2008 2009

de

Alu

no

s

1º Semestre 2º Semestre

FONTE: SEME – PROGRAMA ESCOLA EM AÇÃO/ PEA

TABELA II

Variação do número de alunos da EJA/ERNS de 2005 a 2009

0

500

1000

1500

2000

2500

3000

3500

4000

4500

1º Sem

2005

2º Sem

2005

1º Sem

2006

2º Sem

2006

1º Sem

2007

2º Sem

2007

1º Sem

2008

2º Sem

2008

1º Sem

2009

2º Sem

2009

2005 2006 2007 2008 2009

de

Alu

no

a

FONTE: SEME – PROGRAMA ESCOLA EM AÇÃO/ PEA

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55

TABELA III

FONTE: SEME – PROGRAMA ESCOLA EM AÇÃO/ PEA

TABELA IV

EVOLUÇÃO DE ALUNOS MATRICULADOS NA EJA 2005 A 2009

0

500

1000

1500

2000

2500

3000

3500

4000

4500

1º Sem

2005

2º Sem

2005

1º Sem

2006

2º Sem

2006

1º Sem

2007

2º Sem

2007

1º Sem

2008

2º Sem

2008

1º Sem

2009

FONTE: SEME – PROGRAMA ESCOLA EM AÇÃO/ PEA

De acordo com as diretrizes apontadas, a partir do ano de 2007 a modalidade

EJA começa, gradativamente, estruturar-se por ciclos com duração de um ano

cada ciclo, superando assim, até o ano de 2010, a estrutura seriada do Ensino

Fundamental Regular Noturno Semestral, conforme indicado:

Nº de alun@s Sexo Faixa Etária

4399 3460 F M 15-18 19-25 26-40 40+

Taxa de evasão de

21,4%

51,7% 48,3% 31% 21% 28% 19%

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56

TABELA V

ANOS *CICLOS SÉRIES / ERNS

2007 1º 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª

2008 1º, 2º 5ª, 6ª, 7ª, 8ª

2009 1º, 2º, 3º 7ª, 8ª

2010 1º, 2º, 3º, 4º Modalidade EJA

*Implantação gradativa dos ciclos da Modalidade EJA. .

De acordo com os técnicos da SEME, o projeto implica políticas indutivas e

encerra muito mais que uma mera questão de organização de tempo, que

supõe que basta transformar uma proposta semestral para anual e, então, está

implantada a modalidade.

Defendendo uma concepção ampla e sistêmica de Educação de Jovens e

Adultos, constato que o maior desafio deste município, neste momento, é

conceber e efetivar uma proposta de formação que contribua para a

transformação de concepções restritivas de EJA, pois, conforme sinalizado nas

diretrizes nacionais, [...] “a EJA necessita ser pensada como um modelo

pedagógico próprio a fim de criar situações pedagógicas e satisfazer

necessidades de aprendizagem de jovens e adultos” (CURY, Parecer CEB

011/00).

Nesta direção, de acordo com depoimentos, são realizados seminários e

formações continuadas e em serviço, cujas temáticas se voltam para a

construção de sensibilidades, currículos e práticas pedagógicas coerentes com

a modalidade. O foco no direito, desdobrado nas funções reparadora,

equalizadora e qualificadora (Parecer 011/00), juntamente com o

reconhecimento da diversidade dos sujeitos da EJA, adquire centralidade nos

processos de formação e na reflexão das práticas para pensar a escola para

jovens e adultos.

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57

4 DAS ESCOLHAS TEÓRICO-CONCEITUAIS: REUNINDO PEÇAS

As teorias somos nós a passar no espelho da nossa prática científica dentro do espelho maior da nossa prática de cidadãos18. (SANTOS, 2001)

Compreender e capturar a dinâmica de constituição da Educação de Jovens e

Adultos - EJA numa cidade e no Sistema de Ensino com as características

dadas, é uma tarefa complexa. Para a compreensão deste jogo de fatores,

elegi alguns autores e conceitos com os quais busco dialogar.

Estes referenciais emergem como constitutivos do aporte teórico e dos

possíveis elementos que irão compor as categorias de análise que

contextualizam o problema. Como lembra Minayo (2004) acerca das fontes que

recorremos para compreensão do objeto,

O conhecimento se faz a custo de muitas tentativas e da incidência de muitos feixes de luz, multiplicando os pontos de vista diferentes. A incidência de um único feixe de luz não é suficiente para iluminar um objeto. O resultado dessa experiência só pode ser incompleto e imperfeito, dependendo da perspectiva em que a luz é irradiada e da sua intensidade. A incidência a partir de outros pontos de vista e de outras intensidades luminosas vai dando formas mais definidas ao objeto, vai construindo um objeto que lhe é próprio. A utilização de outras fontes luminosas poderá formar um objeto inteiramente diverso, ou indicar dimensão inteiramente novas ao objeto (MINAYO, 2004, p.89).

Buscando encontrar as dimensões teóricas e conceituais para balizamento do

que se pretende nesta investigação, trabalhamos com os conceitos de espaço

público, democracia e cidadania; educação popular e emancipação social;

ecologia de saberes e o trabalho da tradução desenvolvidos em especial na

obra de Arendt (1968; 2006; 2008; 2009a; 2009b), Bauman (2000), Santos

(1996; 2006a; 2006b; 2007), Fávero (1983; 2006), Freire – em diferentes

momentos de sua obra e Frigotto (2008).

18

Revista Portuguesa de Educação, 2001, vol. 14, nº. 002.

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Observamos que a inserção no campo exigiu que agregássemos outros

referenciais além destes previstos inicialmente. Assim, na parte em que

analisamos os dados, capítulo 7, houve a necessidade de nos apropriamos da

produção de alguns interlocutores específicos da EJA: Andrade (2004), Arroyo

(2005; 2006;), Carrano (2008), Machado (2008) e Paiva (2009). E, para

compreender os processos de democratização praticados na escola,

trouxemos Paro (1997), pois ele realiza uma discussão mais específica sobre

este aspecto da gestão da escola.

4.1 CONSTRUINDO SENTIDOS

O questionamento sobre a ressignificação da escola pública como espaço

verdadeiramente público e a atitude de resgatar, neste espaço, os processos

de democratização e os sentidos da cidadania, nos remetem à busca pela

“ágora” moderna (BAUMAN, 2000) e por uma educação que promova

significados comuns e públicos para as práticas humanas.

Esta dinâmica encontra no pensamento de Hannah Arendt (2008) valiosas

contribuições. Acerca da contradição e diluição das esferas público-privadas,

pontua que,

Estar vivo significa viver em um mundo que precedeu à própria chegada e que sobreviverá à partida. [...] Contudo, somos do mundo, e não apenas estamos nele; também somos aparências, pela circunstância de que chegamos e partimos, aparecemos e desaparecemos; e embora vindos de lugar nenhum, chegamos bem equipados para lidar com o que nos apareça e para tomar parte no jogo do mundo (p. 37 e 39).

Em textos publicados na coletânea Homens em Tempos Sombrios (1968), a

autora (re) afirma o jogo social em que nos inserimos e os retratos biográficos

narram histórias de homens e mulheres que participaram intensamente dos

dilemas, angústias e alegrias de seu tempo, um mundo que, de todo modo,

ainda é o nosso e exige nossa implicação na teia de relações produzidas

diariamente nos mais variados espaços sociais, como por exemplo, a escola.

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Arendt foi, ao longo de sua vida, uma estudiosa da existência humana. Política,

liberdade e amor foram alguns dos aspectos sobre os quais refletiu para

entender nossa trajetória como coletivos históricos. Segundo ela,

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam a seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens (2009a p. 62).

Ela refletia sobre como as pessoas viveram suas vidas, as escolhas que

fizeram, como se relacionaram e se moveram, e como esse mundo determinou

suas existências. Podemos supor que a filósofa alemã relatava sobre vidas que

deixaram suas marcas no mundo, seja porque contribuíram para sua

transformação, seja porque foram capazes de compreender essa

transformação.

Podemos pensar, também, que suas idéias ajudam-nos a compreender que,

inseridos no mundo, podemos optar entre participar dos mecanismos que

reforçam a regulação ou daqueles que promovem a emancipação humana.

Enfatizou que o “mundo compartilhado” é nosso espaço simbólico de luta e

ação social, por isso nossas lutas só fazem sentido no compartilhamento do

espaço público e por meio da participação de todos (ARENDT, 2009a).

A práxis, as negociações e o labor humano são constructos políticos em que a

igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um

construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público e à

política, já que

A política baseia-se na pluralidade dos homens. [...] A política trata da convivência entre os diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças. [...] A política surge no intra – espaço e se estabelece como relação (2006, p. 21 e 23).

Essa concepção acerca do espaço público requer clareza e cuidado com as

opções teóricas, conceituais, políticas e de militância a respeito da nossa

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participação na construção coletiva de projetos comuns. Exige, ainda,

assumirmos a democracia e a cidadania como valores constantemente

buscados, embora saibamos que são banalizados por inúmeros discursos

recorrentes e ações vazias. Sobre o crescente esvaziamento que estes

conceitos veem adquirindo, Carvalho adverte,

[...] políticos, jornalistas, intelectuais, líderes sindicais, dirigentes de associações, simples cidadãos, todos a adotaram. A cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Mais ainda, ela substituiu o próprio povo na retórica política. Não se diz mais “o povo quer isso ou aquilo”, diz-se “a cidadania quer”. Cidadania virou gente (2007, p. 7).

Então, para além de conceitos exaustivamente proclamados, devem ser

valores incorporados às práticas cotidianas, de modo que sejam vistos e

percebidos. O sociólogo Zygmund Bauman (2000) afirma o desafio e diz que

vivemos em uma sociedade que se esqueceu do(a) outro(a) e das relações

humanas estabelecidas coletivamente. Pontua a necessidade de superarmos o

individualismo, exercitar as habilidades de comunicação com os outros e

transformar dilemas pessoais em projetos compartilhados, pois,

À falta de pontes firmes e permanentes e com as habilidades de tradução não praticadas ou completamente esquecidas, os problemas e agruras pessoais não se transformam e dificilmente se condensam em causas comuns (2000, p.11).

O autor também questiona: o que nas circunstâncias atuais poderia unir as

pessoas? Qual seria a chave para a revitalização de discursos já tão

desgastados e desacreditados entre nós, como são democracia e cidadania?

Ele mesmo responde, na transcrição abaixo:

A chance para mudar isso depende da ágora – esse espaço nem privado nem público, porém mais precisamente público e privado ao mesmo tempo. Espaço onde os problemas particulares se encontram de modo significativo – isto é, não apenas para extrair prazeres narcisísticos ou buscar alguma terapia através da exibição pública, mas para procurar coletivamente alavancas controladas e poderosas o bastante para tirar os indivíduos da miséria sofrida em particular; espaço em que as ideias podem nascer e tomar forma como “bem público”, “sociedade justa” ou “valores partilhados”. O problema, no entanto, é que restou hoje pouco dos espaços públicos/ privados à moda antiga, ao passo que não se vêem em lugar algum novos espaços capazes de substituí-los. As velhas ágoras foram ocupadas por empreiteiras e recicladas como parques temáticos, enquanto

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poderosas forças conspiram com a apatia política para recusar alvarás de construção para novos espaços (BAUMAN, 2000, p. 11-12).

Reconhecemos com Freire (1997, p. 32) que a escola e a educação “[...]

enquanto prática desveladora, gnosiológica, [...] sozinha não faz a

transformação do mundo, mas esta a implica”, por que:

[...] não há utopia verdadeira fora da tensão, da denúncia de um presente cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens. A utopia implica essa denúncia e esse anúncio, mas não deixa esgotar-se a tensão entre ambos quando da produção do futuro antes anunciado e agora um novo presente. A nova experiência de sonho se instaura, na medida mesma em que a história não se imobiliza, não morre. Pelo contrário, continua (FREIRE, 1997, p. 91-92).

Se há limites claros postos à educação, contudo, apostamos no engajamento

comprometido no diálogo com o mundo. A resistência e a crença em “um outro

mundo possível” encontram caminhos de materialização em cada ser humano

e nas escolas que, a despeito de todas as contradições, ainda são projetos de

utopia compartilhada.

Portanto, se a vida política tem se reduzido, cada vez mais, ao exercício do

voto e ninguém mais tem clareza sobre sua responsabilidade pelos rumos

tomados pelo mundo comum; se vivemos em tempos nos quais cada um se

ocupa com sua individualidade, com a esfera privada, da família, do consumo e

dos assuntos particulares; e, se perdemos o sentido originário e autêntico de

vida política, de “mundo comum a todos”; sem exageros, podemos afirmar que

a escola ainda é um dos últimos suspiros de vida política autêntica, onde

podemos resgatar a própria dimensão coletiva da vida humana, a partilha de

palavras e ações, a construção de projetos coletivos e de lutas conjuntas.

De acordo com Frigoto (2008) 19 vivemos em um país e numa sociedade cuja

história é de pouca participação e esta tradição pode ser observada a partir de

três experiências. Primeiramente, fomos colônia de quatro nações: francesa,

19

Em palestra proferida aos membros dos conselhos de escola e demais trabalhadores da educação no município de Cariacica, em maio de 2008, por ocasião das discussões a respeito dos processos de democratização da escola.

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inglesa, holandesa e portuguesa. E o que significa ser colono? Colono é aquele

que cultiva a terra do outro e colonizado é aquele que pensa com a cabeça do

outro. Assim, colonizado é aquele que não é cidadão. A propósito, nossa

sociedade e nosso Estado ainda possuem a marca forte da colonização, da

subordinação, do clientelismo, da espoliação dos países que vieram aqui

apenas para extrair nossas riquezas.

Além disso, o país viveu durante quatrocentos anos a experiência da

escravatura, que reduzia um contingente imenso de pessoas a meros objetos.

Ser escravo era ser “não sujeito”. O escravo trazia a marca do dono e esta

experiência - a escravização – trouxe como herança, ainda para os dias de

hoje, a marca da não participação, da não democracia e da não cidadania.

Chauí (2000, p. 89) argumenta que conservamos as marcas da sociedade

colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como “cultura

senhorial”. A autora pontua que a sociedade brasileira ainda é fortemente

verticalizada em todos os aspectos; as relações acontecem entre um superior,

que manda, e um inferior, que obedece.

Por fim, outra tradição nossa é que nos tornamos parcialmente república.

Observa Frigotto que só no século XX vivemos praticamente quarenta anos

sob ditaduras. E o que foram as ditaduras? Foram a completa falta de

participação, onde o que valia era a força da lei e a força do arbítrio. Com as

algemas da ditadura era proibido ler determinadas obras, não se tinha direito a

opinar e participar do governo da sociedade. Na constituição da sociedade, a

experiência de 21 anos de ditadura deixou seqüelas difíceis de serem

superadas.

Mediante as questões expostas, compreendemos que podemos e devemos

desnaturalizar esta realidade que, salvo algumas exceções, já está

naturalizada entre nós. Acreditamos que só poderá existir, de fato, cidadania e

democracia, quando cada pessoa, de acordo com sua idade e

responsabilidade, seja um sujeito de direitos, um sujeito onde “sua voz” seja

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“uma voz que vale” e onde sua palavra possa ser pronunciada. A verdade e “a

voz” não podem ser monopólios de uma minoria.

Outra questão, é a exclusão social que divide o país em várias nações. No

Brasil, as estatísticas apontam que milhares de pessoas, principalmente os

jovens, se interrogam sobre seu futuro de expectativas ausentes (IBGE, 2007).

No Brasil existem 40 milhões de pessoas inscritas no programa Fome Zero, 30

milhões de pessoas que não têm garantidos seus documentos pessoais, outros

30 milhares de trabalhadores que tiveram acesso a apenas quatro anos de

escolaridade, e, de acordo com a Secretaria de Reforma Agrária, temos

milhares de assentamentos em que a escola chega tardiamente.

O secretário Eliezer Pacheco (SETEC/ MEC 2008), observa que a relação

entre escolarização e profissionalização é emblemática, em um contexto social

no qual cerca de 60 milhões de pessoas com 18 anos ou mais não concluíram

a educação básica, constituindo milhares de mulheres e homens deixados à

margem da sociedade brasileira, seja no que tange à escolaridade, seja na

perspectiva do trabalho.

Mediante os dados, seria pertinente nos interrogarmos por quais formas e

meios este país poderá, um dia, se tornar uma nação. Como poderá se tornar

verdadeiramente uma nação de cidadãos e não de subjugados, silenciados,

oprimidos e submissos? Como construir a esfera pública democrática numa

cultura colonial e de silenciamento que se reinventa entre nós?

Acreditamos que não haverá cidadania enquanto se tenha tanta exclusão, pela

qual milhares de pessoas ainda buscam acesso à terra e à moradia e não

possuem a qualificação exigida por um mercado de trabalho cada vez mais

complexo, exigente e ditatorial, em que um contingente imenso de pessoas

segue desempregado ou sobrevivendo do trabalho precário, do subemprego ou

escravizado. Um país onde a maioria da população sobrevive às margens não

é uma nação.

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As estatísticas nos levam a relacionar educação popular à educação de jovens

e adultos, e quando adentramos na temática da Educação de Jovens e

Adultos. Consequentemente somos levados a refletir sobre a elitização do

saber que persiste na história da educação brasileira para as crianças de

classes populares e que prossegue e se revela de forma ainda mais perversa

para os jovens e adultos da EJA.

Fávero (1983) condensa em significativa obra as memórias de um tempo em

que já se denunciava esta elitização do saber e a manipulação populista das

classes populares. De acordo com o pesquisador, estes anos foram

[...] particularmente críticos e criativos em quase tudo. Questionaram-se todos os modos de ser brasileiro, de viver um momento da história desse país, de participar de sua cultura. Pretendeu-se um projeto político que possibilitasse superar a dominação do capital sobre o trabalho e, em decorrência, reformular tudo o que dessa dominação decorre. Tudo isso – e muito mais – foi repensado e discutido em círculos cada vez mais amplos, das ligas camponesas às universidades. (FAVERO, 1983, p. 9).

O autor descortina com admirável clareza uma gama de experiências que

surgiram e que conseguiram se fortalecer em tempos também dito “sombrios” –

1960-1964. Estes foram anos difíceis e conturbados, porém férteis, que

atravessam e constituem a história do Brasil, da Educação, e, dentro desta, a

Educação Popular e a Educação de Adultos; tempos que possibilitaram,

[...] a crítica não apenas da maneira de como se pensava “fólclórica” e “ingênua” a cultura do povo brasileiro, mas também e principalmente os usos políticos de dominação e alienação da consciência das classes populares, através de símbolos e dos aparelhos de produção e reprodução de uma “cultura brasileira”, ela mesma colonizada, depois internamente colonialista. (p. 8)

Dentre estas práticas, pontua Fávero, “uma delas se chamou cultura popular; e

ela subordinava outra: a educação popular” (p.9). A educação popular teve no

trabalho de Freire um dos seus mais importantes idealizadores, com sua

iniciativa e metodologia pioneiras de trabalho com o povo, até hoje

amplamente estudadas e utilizadas em várias partes do mundo (e por vezes

esquecida no Brasil). Esta experiências pretendiam

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transformar a ordem das relações de poder e a própria vida do país. Os instrumentos? Círculos de cultura, centros de cultura, praças de cultura, teatro popular, rádio, cinema, música, literatura, televisão... sindicatos, ligas... com/ para/ sobre o povo. Instrumentos que se convertiam em movimentos. Às vezes, os mesmos que vinham dos anos 50, como os clubes e as escolas radiofônicas, mas redefinidos, reorientados, vistos em novos horizontes, projetados em outra dimensão (p. 9).

Temos clareza de que estamos falando de uma época e que, atualmente, as

divisões do mundo hoje são outras (tudo mudou?). Será que mudou mesmo?

Os números apresentados indicam que um outro Brasil ainda luta para sair de

dentro daquele antigo, como no processo interrompido em 1964, o parto mais

longo da história.

Portanto, até que ponto as memórias dos anos 1960 reunidas por Fávero

(1983; 2006) não poderiam continuar sendo “matéria prima”, instrumentos,

inspiração, ferramentas nas mãos daqueles que têm como tarefa a Educação

de Jovens e Adultos na atualidade?

Santos (2007, p. 17) afirma que a despeito de alguns proclamarem “que não

tem sentido falar de emancipação social: chegamos ao „fim da história‟ e o que

nos resta é festejá-lo. Nós, ao contrário, pensamos que é preciso continuar

buscando a idéia da emancipação social [..]”. Observa que emancipação social

pode e deve ser pensada nos aspectos teóricos e políticos (p. 16), e que a

sociedade,

[...] pela primeira vez cria essa tensão entre as experiências correntes do povo, que às vezes são ruins, infelizes, desiguais, opressoras, e a expectativa de uma vida melhor, de uma sociedade melhor. Isso é novo, já que nas sociedade antigas as experiências coincidiam com as expectativas: quem nascia pobre, morria pobre; quem nascia iletrado morria iletrado. Agora não: quem nasce pobre pode morrer rico, e quem nasce numa família de iletrados pode morrer como médico ou doutor.

Desta forma, na necessidade de trazer a perspectiva metodológica de trabalho

da educação popular para a EJA, somos instigados(as) a dialogar com os

diferentes saberes da população que vem, cada vez mais, interpelando

poderes estabelecidos historicamente, reivindicando direitos e legitimidade de

expressão, culturais, de participação e decisão nas esferas da vida publica.

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Assim, as diferentes culturas necessitam dialogar e isto pode ser possível por

meio do trabalho da tradução, compreendido como um trabalho pedagógico,

político e emocional. A tradução é estrategia e ferramenta que visa “criar

inteligibilidade, coerência e articulação num mundo enriquecido por uma tal

multiplicidade e diversidade” (SANTOS, 2006b, p. 807).

A tradução de e entre saberes é prática fundamental que viabiliza a

participação popular. Historicamente, o tema participação se desenvolveu nos

movimentos de mobilização social que lutavam pela democratização da

sociedade cuja característica é a exclusão. Assim, discussões e publicações

sobre a qualificação dos processos de participação popular nos campos

políticos, da educação e cultura, passaram a ser recorrentes a partir da década

de 1970, no desafio assumido no trabalho com a população. Em Freire

encontramos a concepção de participação condizente com nosso estudo

Para nós, a participação não pode ser reduzida a uma pura colaboração que setores populacionais devessem e pudessem dar à administração pública [...] Implica, por parte das classes populares, um “estar presente na história e não simplesmente nela estar representadas”. Implica a participação política das classes populares através de suas representações ao nível das opções, das decisões e não só do fazer o já programado. [...] Participação popular para nós não é um slogan, mas a expressão e, ao mesmo tempo, o caminho de realização democrática da cidade. (2006, p. 75).

Esta concepção de participação pressupõe opção política clara pela voz e

escuta das necessidades daqueles que sempre estiveram às margens das

instâncias de poder e tomada de decisões. É um posicionamento político.

Compreende que, por meio da participação popular, há possibilidades de

ruptura e a instauração de realidades menos elitistas e excludentes.

A questão que se coloca, no entanto, é: como trabalhar com grupos

historicamente marginalizados e silenciados? “Dar a palavra” a estes

segmentos seria suficiente? Por que as classes populares se calam quando a

elas têm oportunidades de fala? Como gestar o silêncio que reina na maioria

das atividades propostas no interior de nossas escolas? É o que também

interroga Bordenave:

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Como se explica que, sendo a participação uma necessidade básica do homem, tão poucas pessoas participem real e plenamente das decisões importantes de nossa sociedade? Que fatores condicionam a participação, isto é, a facilitam ou obstaculizam? (1994, p. 36).

Temos em Freire, em diversos aspectos de sua obra, observações e críticas

contundentes a respeito de como a escola trabalha com a categoria saber: o

saber erudito, o saber científico, o saber popular, o saber de experiência feito.

Na concepção dialógica proposta por ele existem diferentes tipos de saber e

estes saberes não podem ser hierarquizados ou classificados como válidos ou

inválidos. É justamente a diversidade destes saberes o ponto de partida para a

ação educativa problematizadora da realidade. Segundo Fischer e Lousada:

Respeitar o saber do senso comum não é e limitar o ato educativo a ele. [...] mas dialogar com ele, problematizá-lo tendo em vista a elaboração de um saber relacional, como síntese articuladora entre os saberes aprendidos na escola da vida com os apregoados na vida da escola. (2008, p. 377-378).

Santos (2006a, 2006b, 2007) argumenta sobre diversidade epistemólogica do

mundo e a existência de uma ecologia de saberes, não de um único saber. Faz

a crítica à desvinculação do saber científico com a vida diária das pessoas,

defende a articulação entre os saberes e assinala o trabalho de valorização do

saber do senso comum.

O trabalho da tradução proposto aborda a multiplicação e diversificação das

experiências disponíveis e possíveis. Santos pergunta sobre como poderiam

dialogar os diferentes saberes, de modo a conferir sentido à transformação

social.

A tradução é, simultaneamente, um trabalho intelectual e um trabalho político. E é também um trabalho emocional porque pressupõe o inconformismo perante uma carência decorrente do caráter incompleto ou deficiente de um dado conhecimento ou de uma dada prática (p. 808).

É um trabalho transgressivo, “é o procedimento que nos resta para dar sentido

ao mundo depois de ele ter perdido o sentido e a direção automáticos que a

modernidade ocidental pretendeu conferir-lhes ao planificar a história, a

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sociedade e a natureza.” (p.813). Assenta-se, ainda, na ideia de que

precisamos criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo,

todas incompletas, e sobre o qual deve ser criado consenso transcultural que

pressupõe a impossibilidade de uma teoria geral.

Esta categoria, tradução, tem especialmente relevância na ação político-

pedagógica das práticas escolares, já que aponta, de acordo com Santos, para

possibilidades de trabalho e de interação entre sujeitos representantes de

diferentes culturas, valores, classes sociais, etc. Desta forma, a escola seria o

espaço privilegiado para o exercício dos diferentes modos de ser e estar sendo

no mundo, um campo especialmente fértil para a prática da tradução dos

diferentes saberes.

É o trabalho de tradução que cria as condições para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício da experiência. [...] O tipo de transformação social que a partir dele pode construir-se exige que as constelações de sentido criadas pelo trabalho de tradução se transformem em práticas transformadoras (2006b, p. 814-815).

É importante considerar as contribuições e proximidades entre o pensamento

de Freire e Santos a respeito das muitas formas de “epistemicídios,

aniquilamento, marginalização e subalternização „dos outros‟ existentes no

mundo”. De acordo com estes autores, é a instauração das práticas de

tradução que permitiria superar a verticalidade, a hierarquia e relações de

poder, hoje predominante nas relações entre os diferentes conhecimentos.

Portanto, as práticas de tradução exercitadas coletivamente criariam condições

para o diálogo entre diferentes atores e culturas, e isto é condição fundamental

para o exercício da cidadania, que pressupõe a participação de todos na

dinâmica da sociedade.

Concluindo, são estes alguns dos instrumentais teóricos que extraímos da

produção dos autores e autoras assinalados(as), são as ferramentas que

utilizamos para a entrada no campo, além da produção dos demais autores, já

assinalados e somados a estes, quando da análise dos dados.

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Ainda, uma última questão se coloca.: (re)contar o percurso histórico do direito

à educação para jovens e adultos no Brasil. Esta “necessidade” emergiu

quando estivemos mais diretamente na escola, e, para melhor compreensão do

campo e dos dados, é o capítulo que apresentamos a seguir.

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5 O DIREITO À EDUCAÇÃO PARA JOVENS E ADULTOS NO BRASIL:

UMA CONQUISTA ENTRE AS FORÇAS DA REGULAÇÃO E DA

EMANCIPAÇÃO

Como agir sobre uma realidade sem conhecê-la? E como conhecê-la sem

estudá-la? A EJA que se realiza atualmente, nos contextos escolares, precisa

saber “da outra EJA”, esta que veio desenhando o histórico de lutas e a

conquista de direitos. Assim, pensamos que conhecer esta história que a EJA

vem escrevendo dentro da História da Educação é saber de um direito

postergado e legalmente reconhecido há pouco tempo. O que é, na prática, um

direito ainda frágil.

Neste sentido, Paiva (2009) explora um conjunto de reflexões sobre a

perspectiva histórica deste direito à educação para jovens e adultos, tomando

como referência os acordos internacionais que desde 1949, na Dinamarca,

vêm sendo firmados com os países membros da ONU e em conferências

promovidas pela Unesco. Assim, a autora nos dá elementos para percorrer

este tempo histórico, tanto no contexto dos pronunciamentos internacionais,

quanto a partir da formulação das políticas públicas.

Portanto, estamos cientes de que os percursos nacionais se interligam com os

internacionais de muitas formas. Contudo, para os objetivos do nosso trabalho,

nos ocuparemos de compreender os caminhos como esse direito à educação

vem se fazendo no Brasil e consolidando o princípio da cidadania e da

democracia. Assim, o direito à educação para jovens e adultos é uma conquista

garantida por meio do texto constitucional de 1988, mas isso ainda não foi

suficiente para superar os persistentes mecanismos de interdição ao direito à

educação destes milhares de jovens e adultos privados de escolaridade

(PAIVA, 2009).

Assim, a referência nacional é a Constituição de 1934, quando se reconhece,

pela primeira vez, a educação como direito de todos(as) e onde se faz (apenas)

a menção à necessidade de oferecer educação aos adultos. Na década de

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1940 é que começa a tomar corpo, em iniciativas concretas, a preocupação de

oferecer os benefícios da escolarização a amplas camadas da população até

então excluídas da escola. Então, nesta década, a educação de adultos se

constitui como tema de política educacional, promovendo uma série de ações e

programas governamentais20.

Dentre estas iniciativas destacamos a Campanha Nacional de Educação de

Adolescentes e Adultos, que se constituiu como política governamental

de enfrentamento direto do problema do analfabetismo adulto, onde havia o

entendimento da educação de adultos como fator fundamental na elevação dos

níveis educacionais da população em seu conjunto21. A União assume, então,

papel indutor, provocando a iniciativa das unidades federadas por meio da

regulamentação da distribuição de fundos públicos e contemplando percentuais

destinados à estruturação de serviços de educação primária para os jovens e

adultos. Essa orientação política viabilizou a criação e permanência do ensino

supletivo integrado às estruturas dos sistemas estaduais de ensino. Em São

Paulo, por exemplo, o Serviço de Educação de Adultos funcionou regularmente

até os anos 70, quando entraria em ação o Mobral.

A Campanha de 1947 deu lugar à instauração de um campo de reflexão

pedagógica em torno do analfabetismo e suas conseqüências, e nos anos de

1960, por meio de uma série de iniciativas, dentre elas, o trabalho de Paulo

Freire, passaram a direcionar diversas experiências de educação de adultos

organizadas por distintos atores e com graus variados de ligação com o

aparato governamental22.

20 1942: criação do Fundo Nacional de Ensino Primário; 1947: o Serviço de Educação de Adultos e da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos; 1952: a Campanha de Educação Rural; 1958: Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo. 21

Lourenço Filho destacava os efeitos positivos da educação dos adultos sobre a educação

das crianças, ambas componentes indissociáveis de um mesmo projeto de elevação cultural dos cidadãos. 22

Dentre estas ações, destacam-se os programas do Movimento de Educação de Base (MEB), o Movimento de Cultura Popular do Recife, os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, a campanha de Educação Popular da Paraíba, a iniciativa da prefeitura de Natal (RN) com a Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”.

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Foi uma época marcada pela efervescência política e cultural, pela evolução

dessas experiências e organização de grupos populares articulados a

sindicatos e movimentos sociais. Professava-se a necessidade de realizar uma

educação de adultos crítica e voltada à transformação social.

Esta necessidade estava vinculada ao processo de industrialização do Brasil e

tendo como questionamento a adaptação da população a processos de

modernização conduzidos por agentes externos. O paradigma pedagógico

gestado por estes movimentos preconizava o diálogo como princípio educativo

e a assunção, por parte dos educandos adultos, de seu papel de sujeitos de

aprendizagem, de produção de cultura e de transformação do mundo.

Em 1963, o Ministério da Educação organiza o Programa Nacional de

Alfabetização de Adultos, cujo planejamento incorporou largamente as

orientações de Paulo Freire. Essa e outras experiências acabaram por

desaparecer ou desestruturar-se sob a violenta repressão do governo militar,

mas o exílio não impediria que Paulo Freire continuasse a desenvolver no

exterior sua proposta de alfabetização de adultos conscientizadora. Utilizava

palavras geradoras que, antes de serem analisadas do ponto de vista gráfico e

fonético, serviam para sugerir a reflexão sobre o contexto existencial dos

jovens e adultos analfabetos, sobre as causas de seus problemas e as vias

para sua superação (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001).

Os “anos de chumbo” não impediram que sobrevivessem ou emergissem

ações educativas voltadas à alfabetização e pós-alfabetização inspiradas pelo

paradigma freireano. Funcionando em igrejas, associações de moradores,

organizações de base local e outros espaços comunitários, essas iniciativas

experimentaram propostas de alfabetização e pós-alfabetização de adultos que

se nutriram no paradigma da educação popular. O paradigma da EP buscava

proposta metodológica apropriada, fazendo dialogar os conteúdos às

características etárias e de classe dos educandos. Foi uma proposta

desenvolvida na América Latina e que se tornou referência para o mundo.

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Sob o controle dos militares, em 1969 o governo federal criou o Mobral - uma

organização de âmbito nacional e autônoma, com o objetivo de oferecer

alfabetização para adultos analfabetos nas mais variadas localidades. Com

investimento significativo de recursos, caracterizava-se:

pelo controle rígido e centralizado de todas as atividades, inclusive a

produção de materiais didáticos;

concebido como ação que se extinguiria depois de resolvido o problema

do analfabetismo;

contribuiu para legitimar a nova ordem política implantada;

também visava responder a orientações emanadas de agências

internacionais ligadas à Organização das Nações Unidas, em especial a

Unesco, que desde o final da Segunda Guerra vinham propugnando o

valor do combate ao analfabetismo e da universalização de uma

educação elementar comum como estratégia de desenvolvimento

socioeconômico e manutenção da paz.

Como estratégia de sobrevivência, ao longo dos anos 1970 o Mobral

diversificou sua atuação e um dos desdobramentos mais importantes foi a

criação de um programa que correspondia à condensação do antigo curso

primário, assentando, assim, as bases para a reorganização de iniciativas mais

sistêmicas que viabilizassem a continuidade da alfabetização em programas de

educação básica para jovens e adultos. Este programa recebeu críticas

contundentes em relação à falácia dos números que apresentava como

resultado ou à insuficiência do domínio rudimentar da escrita que era capaz de

promover. Desta forma, desacreditado nos meios políticos e educacionais, o

Mobral foi extinto em 1985, quando o processo de abertura política já estava

relativamente avançado.

A estrutura do Mobral foi assimilada pela então criada Fundação Educar, que

passou a apoiar técnica e financeiramente iniciativas de governos estaduais e

municipais e entidades civis, abrindo mão do controle político pedagógico que

caracterizara até então sua ação. Nesse período, muitos programas

governamentais acolheram educadores ligados a experiências de educação

popular, possibilitando a confluência do ideário da educação popular até então

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desenvolvido prioritariamente em experiências de educação não formal, com a

promoção da escolarização de jovens e adultos por meio de programas mais

extensivos de educação básica (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001).

Os impasses pelo direito atravessam a Lei nº 5692 / 71, onde a educação

voltada a esse segmento mereceu, pela primeira vez, um capítulo específico na

legislação educacional, que distinguiu suas três funções:

a suplência: relativa à reposição de escolaridade;

o suprimento: relativa ao aperfeiçoamento ou atualização;

a aprendizagem e a qualificação: referentes à formação para o trabalho

e profissionalização.

A relevância desta lei justifica-se pela possibilidade de organização do ensino

em várias modalidades: cursos supletivos, centros de estudo e ensino a

distância, entre outras23. Além dessas formas de oferta, a Lei nº 5692 manteve

os exames supletivos, como mecanismo de certificação, atualizando exames

de madureza já existentes. Os candidatos, aqueles preparados por meio do

ensino a distância, ou cursos livres, ou, ainda, aqueles sem preparação

específica que desejavam atestar seus conhecimentos, se submetiam

periodicamente a exames finais organizados pelos estados, por disciplina e

sem nenhuma exigência de matrícula ou frequência à sala de aula.

O direito à Educação Básica só seria estendido aos jovens e adultos na

Constituição Federal de 1988. Na época da promulgação do texto

constitucional o ensino supletivo já havia se implantado efetivamente em todo o

território nacional, embora de modo heterogêneo. Os programas

correspondentes às séries iniciais - denominados Suplência I, deram

23

Nestes cursos frequentemente vigoravam a seriação, a presença obrigatória e a avaliação no processo; sua característica diferencial era a aceleração, pois o tempo estipulado para a conclusão de um grau de ensino era, no mínimo, a metade do previsto para o sistema regular. Estes centros de estudo ofereciam aos alunos adultos material didático em módulos e sessões de estudos para as quais a frequência era livre. A avaliação era feita periodicamente, por disciplina e módulo. As iniciativas de educação a distância são as que se realizariam por televisão, em regime de livre recepção ou (muito raramente) recepção organizada, em telepostos que combinam reprodução de programas em vídeo, uso de materiais didáticos impressos e acompanhamento de monitor.

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continuidade a experiências de alfabetização que, em grande medida graças à

influência das propostas de Paulo Freire, conferiram alguma identidade

pedagógica ao campo. Funcionavam em escolas, igrejas, sindicatos e centros

comunitários. Os cursos de Suplência II tiveram de se submeter a

regulamentações mais rígidas por parte dos conselhos de educação.

A entrada precoce no mercado de trabalho e o aumento das exigências de

instrução e domínio de habilidades no mundo do trabalho constituem fatores

principais a direcionar os adolescentes e jovens para os cursos de suplência.

O que representa o legado da suplência para a EJA? Sobre este aspecto, por

demandar maior aprofundamento, tratarei mais adiante.

Quando se analisam os currículos desses programas o que se constata é uma

grande homogeneidade na reprodução dos conteúdos do ensino regular, sua

organização nas disciplinas e sequenciação. São poucas as experiências que

inovaram nesse sentido, experimentando novos eixos curriculares e novas

formas de organizar os tempos e espaços de aprendizagem. Este legado ainda

se perpetua, colaborando para reduzir a EJA a um modelo menor do Ensino

Fundamental.

O fenômeno da Juvenilização24 torna complexa a construção de uma

identidade pedagógica do ensino supletivo e de sua adequação às

características específicas da população a que se destina. O que ocasionou e

ainda ocasiona um problema, pois o paradigma da educação popular de

inspiração freireana, que serviu como referência para os educadores

interessados em qualificar o ensino supletivo e aproximá-lo das necessidades

educativas de seu alunado, havia predominantemente tomado em

consideração os educandos adultos desescolarizados, trabalhadores que,

mesmo morando nas grandes cidades, mantinham grandes vínculos com uma

cultura rural (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001).

24

Fenômeno observado em todas as regiões do país, assim como em outros países da América Latina de juvenilização da clientela e que provocou mudança de nomenclatura, já referida no capítulo 2. A Educação de Adultos passa ser denominada EJA – Educação de Jovens e Adultos.

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O que ocorre, entretanto, é que a clientela dos cursos supletivos tornava-se

crescentemente mais jovem e urbana em função da dinâmica escolar brasileira

e das pressões oriundas do mundo do trabalho. Nesse sentido, mais do que

uma "nova escola", voltada a um novo público, antes não atendido pela escola

básica insuficiente, a educação supletiva converteu-se também em mecanismo

de "aceleração de estudos" para adolescentes e jovens com baixo

desempenho na escola regular.

.

De acordo com Di Pierro et al (2001), a demanda potencial e as garantias

constitucionais sobre direitos educativos com que se chegou ao final dos anos

80 fizeram supor que os anos 90 seriam de ampliação significativa do

atendimento e multiplicação de iniciativas visando fazer frente aos enormes

desafios pedagógicos colocados para a educação de jovens e adultos no

contexto de consolidação da democracia, concomitantemente ao crescente

agravamento da situação econômica do país. No entanto, não seria isso

exatamente o que veríamos acontecer nesta década.

Desta forma, uma das políticas que marcaram os anos 90 foi a extinção da

Fundação Educar. Personalidades influentes do cenário político, como o

falecido Senador Darcy Ribeiro, declararam publicamente opor-se que os

governos investissem na educação de adultos, argumentando que os adultos

analfabetos já estariam adaptados à sua condição e que o atraso educativo do

país poderia ser saldado com a focalização dos recursos no ensino primário

das crianças (BEISIEGEL, 1997).

Esta falta de incentivo político e financeiro por parte do governo federal levou

os programas estaduais responsáveis pela maior parte do atendimento à

educação de jovens e adultos uma situação de estagnação ou declínio. Muitos

municípios herdeiros de programas anteriormente realizados em convênio com

a Fundação Educar foram obrigados a assumi-los com recursos próprios,

muitas vezes sem o necessário preparo gerencial e técnico. Assim, a tendência

de municipalização do atendimento aos jovens e adultos estaria resultando

mais da omissão das esferas federal e estadual do que de uma política

coordenada de descentralização.

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No quadro legal, este retrocesso no plano das políticas concretiza-se por meio

de duas medidas restritivas tomadas durante o governo de Fernando Henrique

Cardoso. Em 1996, uma emenda à Constituição, emenda 14, suprimiu a

obrigatoriedade do ensino fundamental aos jovens e adultos, mantendo apenas

a garantia de sua oferta gratuita. Essa formulação desobriga o Estado de uma

ação convocatória e mobilizadora no campo da educação de adultos e também

o dispensa de aplicar verbas reservadas ao ensino fundamental no

atendimento dos jovens e adultos. De fato, ao criar o Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério

(FUNDEF), o governo excluiu as matrículas no Ensino Supletivo do cômputo do

alunado do Ensino Fundamental, desestimulando a ampliação de vagas.

A nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), promulgada em 1996, diluiu as funções

do ensino supletivo nos objetivos e formas de atendimento do ensino regular

para crianças, adolescentes e jovens. Também para driblar a restrição do

FUNDEF quanto à consideração dos alunos dos cursos supletivos entre os

atendidos no ensino fundamental, muitos municípios, inclusive Cariacica,

converteram esses cursos em programas regulares acelerados, o que também

contribuiu para aproximar a educação de jovens e adultos do ensino regular

acelerado, além de confundir as estatísticas educacionais.

Com um passo à frente, dois atrás, havíamos chegado à Constituição Federal

de 1988 que, segundo Paiva (2009, p.133), recupera o direito e o conceito de

educação como direito público subjetivo, abandonado desde a década de 1930,

cuidando para que a proteção do direito fosse assegurada para todos os

brasileiros e brasileiras, inaugurando para jovens e adultos uma nova história

na educação.

Após muita pressão, finalmente em 2007 é aprovado o FUNDEB que, pela

primeira vez no país, vai garantir uma fonte estável de recursos para a EJA.

Constatamos, assim, que mudaram alguns discursos, mas será que alteramos

as práticas? Segundo Paiva (2009), há ainda inúmeros desafios do ponto de

vista de metodologias e das intervenções pedagógicas, obrigando os

educadores a refletirem sobre os sentidos das juventudes, seus direitos e os

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direitos que permeiam as classes de EJA, como também a reflexão para o que

caberia à escola fazer além do ensinar e a escrever. Esta autora diz que,

Indicadores educacionais [...] ganham vida quando se circula nos diferentes espaços da EJA [...] constatando-se que atrás dos números há milhões de pessoas que convivem cotidianamente com condições de oferta e permanência precárias; com má qualidade de ensino e com uma modalidade educacional desvalorizada socialmente. A ausência de oportunidades concretas para vivenciar trajetórias de sucesso no sistema educacional acaba por culpabilizar a vítima, ou seja, cada sujeito, por mais uma história de fracasso. Frente aos descaminhos da EJA, torna-se imperativo assumir uma postura vigilante contra todas as práticas de desumanização (PAIVA, 2009, p. 145).

Atualmente, a pergunta que se coloca, então, é: como contemplar com

equidade um direito básico da cidadania, e sob um parâmetro comum de

qualidade, necessidades formativas tão complexas e diversas?

Na perspectiva de que esta história prossiga garantindo aos adolescentes,

jovens, adultos e idosos da EJA – que ficaram tanto tempo excluídos deste

direito – usufruí-lo de forma ampla e qualitativa, somos instigados(as) a refletir

sobre o inevitável sentido político das opções tomadas nesse campo educativo,

cujo objetivo principal é o de reverter a enorme dívida social gerada por um

modelo de desenvolvimento que não promove justiça social.

Estas discussões necessitam, cada vez mais, tomar os espaços públicos,

produzindo alternativas, metodologias apropriadas e políticas públicas

coerentes.

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6 A PROPOSTA METODOLÓGICA EM PESQUISA-AÇÃO: UMA OPÇÃO

PEDAGÓGICA, POLÍTICA E POÉTICA

Toda pesquisa-ação é singular e define – se por uma situação precisa concernente a um lugar, a pessoas, a um tempo, a práticas e a valores sociais e à esperança de uma mudança possível. Por trás de toda pesquisa-ação, encontramos uma sociologia da esperança [...] que se contrapõe a todo pensamento cínico ou fatalista. [...] Procede-se à análise da demanda, ficando à escuta do que se diz, sem procurar desde o início interpretar e menos ainda julgar [...] “Onde foram parar os excluídos?” - os que nunca falam – deve ser o estribilho de sua intervenção. (BARBIER, 2007, p. 120)

Em função da natureza e contexto da pesquisa a ser realizada na contundente

realidade do município apresentado, bem como, na potencialização da escola

como espaço público, nosso cuidado incidiu em optar por uma metodologia

coerente com a proposta. Assim, como integrante da equipe da SEME de

Cariacica, que realiza há algum tempo o trabalho de assessoria pedagógica e a

formação em serviço das escolas que ofertam a modalidade EJA, optamos pela

abordagem qualitativa e pela pesquisa-ação como estratégia metodológica

apropriada.

A citação escolhida para a epígrafe ao iniciar este capítulo justifica também a

opção pela pesquisa-ação, pois optamos por pesquisar uma modalidade

historicamente composta pelos excluídos deste país. Barbier (2007, p.14)

defende que esta forma de pesquisa obriga o pesquisador a implicar-se. Ele (o

pesquisador) percebe como está implicado pela estrutura social na qual está

inserido e pelo jogo de desejos e interesses de outros e compreende que as

ciências humanas, são, essencialmente, ciências de interações entre sujeito e

objeto de pesquisa. No contexto da pesquisa-ação o pesquisador não trabalha

sobre os outros, mas sempre com os outros.

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Desta forma, pensamos ser a pesquisa-ação o instrumento mais adequado

para analisar os contextos escolares e as práticas desenvolvidas como

ferramentas de conformação ou de emancipação dos alunos, bem como o

desenvolvimento da capacidade de ler o mundo, atividade esta um quesito

fundamental para a participação nos mecanismos sociais instituídos. Somente

esta inserção no campo com os sujeitos permitirá também analisar o “saber de

experiência feito” como produtor e/ou reprodutor de conhecimentos e as

experiências pedagógicas como meios que podem ou não possibilitar aos

alunos condições de problematizarem suas realidades tendo como finalidade

uma “atitude cidadã”.

Devido a este caráter crítico, Barbier (2007) pontua a pesquisa - acão como

prática social, eminentemente pedagógica e política, pois nela é possível ao

pesquisador desempenhar suas atribuições numa dialética que articula a

implicação e o distanciamento, a afetividade e a racionalidade, o simbólico e o

imaginário, a mediação e o desafio. Este autor observa que durante muito

tempo o papel da ciência foi descrever, explicar e prever os fenômenos,

impondo ao pesquisador o papel de observador neutro e objetivo. No entanto,

com a pesquisa-ação o pesquisador adota uma postura que é a de servir de

instrumento à mudança social. Assim, se numa pesquisa clássica, a mudança,

quando ocorre, é um processo concebido de cima para baixo e os resultados

não são comunicados aos sujeitos, na pesquisa-ação postula-se que não se

pode dissociar a produção de conhecimento dos esforços empreendidos para

conduzir à mudança.

Desde sua origem (BARBIER, 2007) a pesquisa-ação assume uma postura

diferenciada diante do conhecimento, por isso optamos por este tipo de

pesquisa, já que nos permite, ao mesmo tempo, conhecer e intervir na

realidade que pesquisamos. No nosso caso, essa imbricação entre o universo

pesquisado e a ação, inevitavelmente já acontecia, pois já estava envolvida

com a formação continuada e em serviço das professoras de 1º e 2º ciclo e

havia visitado as escolas e salas de aula.

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Portanto, como permanecer “neutra e indiferente” à realidade estudada? De

uma forma ou outra estava defendendo um projeto político. No entanto,

também acreditamos que esta vivência não anula a rigorosidade e o controle

das circunstâncias de pesquisa.

Assim, entendemos que a pesquisa-ação pode funcionar como uma

metodologia de pesquisa, pedagogicamente estruturada, possibilitando tanto a

produção de conhecimentos novos para a área da educação, como também

formando sujeitos pesquisadores mais críticos e reflexivos. A ênfase no caráter

formativo desta modalidade de pesquisa justifica-se na medida em que

considera a escuta do sujeito, suas perspectivas, seus sentidos, mas não

apenas para registro e posterior interpretação do pesquisador. A escuta do

sujeito faz mesmo parte da tessitura desta metodologia de investigação. Nesse

caso, o processo de investigação se organizou a partir de situações relevantes

que emergiram na dinâmica do processo.

Desta forma, é um tipo de pesquisa social que vai se configurando como

possibilidades, o que segundo Thiollent (2007) assume caráter emancipatório

que deve ser utilizado para orientar ações emancipatórias com grupos sociais

das classes populares. É uma forma de engajamento sócio-político a serviço

desses grupos.

Trazemos a pesquisa ação na perspectiva posta por Barbier para o diálogo

com a teoria da complexidade proposta por Morin (2008), já que concordamos

que uma teoria não é o conhecimento, mas permite o conhecimento. Uma

teoria não é uma chegada, é a possibilidade de uma partida. Uma teoria não é

uma solução, mas uma das maneiras de tratar um problema. Portanto, a

pesquisa-ação se contrapõe ao paradigma clássico da simplificação que

produz uma concepção simplificadora do universo, enquanto que o paradigma

da complexidade incita a distinguir e fazer comunicar em vez de isolar e

fragmentar, e também retoma o caráter multidimensional de toda a realidade.

Desta forma, nesta ideia da complexidade tão necessária à compreensão dos

fenômenos sociais, a pesquisa-ação desenvolve também a teoria da escuta –

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ação dos sujeitos (BARBIER, 2007) nos planos pedagógico, político, e,

consequentemente acreditamos, também no plano poético, que resgata a

dimensão da beleza da pesquisa – a forma mais coerente com a natureza e

propósito do estudo em foco.

Como já pontuado, dado o contexto histórico, social e cultural dos alunos e

alunas da EJA, consideramos esta a estratégia metodológica mais apropriada,

já que o pesquisador, ao realizá-la com outros e outras, é um participante

engajado e que aprende durante a pesquisa, que milita em vez de procurar

uma atitude de indiferença.

6.1 A PERGUNTA SÍNTESE

Uma questão em si, não caracteriza o problema [...]; mas uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer, eis aí um problema. Algo que eu não sei não é um problema; mas quando eu ignoro uma coisa que eu preciso saber, eis- me então diante de um problema. Da mesma forma, um obstáculo que é necessário transpor, uma dificuldade que necessita ser superada, uma dúvida que não pode deixar de ser dissipada são situações que se nos configuram como verdadeiramente problemáticas. (SAVIANI, 1996, p.14)

Como observa Saviani, a realidade não se apresenta espontaneamente à

nossa experiência, somos nós que nos posicionamos frente aos

acontecimentos e os problematizamos. Portanto, conforme sinalizado, a

realidade investigada foi a Educação de Jovens e Adultos realizada no

município de Cariacica, o que aconteceu a partir do trabalho como educadora,

em sala de aula, e, posteriormente, como assessora da SEME no

acompanhamento das concepções e práticas pedagógicas que vêm sendo

trabalhadas nas Unidades de Ensino.

Desta forma, neste percurso pelo cotidiano das práticas e contextos escolares,

algumas inquietações nos instigaram e muitas foram as questões que fluíram.

Assim, a questão que representa a síntese do nosso caminho, se expressa na

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pergunta: De que maneira as práticas pedagógicas desenvolvidas na

modalidade EJA, no contexto de uma escola, têm proporcionado aos alunos e

alunas condições para problematizarem suas realidades na perspectiva da

cidadania e da emancipação social?

6. 1.1 AS QUESTÕES QUE DÃO SUPORTE À INVESTIGAÇÃO:

Ao nos imbricarmos no processo de acompanhamento das práticas educativas

exercidas numa realidade, como a do município de Cariacica, historicamente

marcada pelo populismo e clientelismo, algumas questões foram levantadas

para suporte à investigação:

As práticas exercidas na escola com jovens e adultos promovem o

exercício do pensamento crítico?

A escola é um espaço onde a realidade é problematizada ou é apenas

uma instituição de conformação?

De que maneira as experiências pedagógicas têm trabalhado o

conhecimento das classes populares, como conhecimento “menor”,

reprodutor, ou como produtor de conhecimentos?

Há espaço na escola para este conhecimento espontâneo, designado

também de “o saber de experiência feito?” (FREIRE, 1993)

Como estes conhecimentos são valorizados e considerados na

organização das práticas escolares?

Estas questões levaram à elaboração do objetivo geral e dos objetivos

específicos.

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6. 1. 2 O OBJETIVO GERAL E ESPECÍFICOS

Objetivo Geral:

Compreender em que medida as práticas pedagógicas desenvolvidas no

cotidiano dos contextos escolares de uma escola da rede municipal de ensino

de Cariacica, na Educação de Jovens e Adultos (EJA), têm proporcionado aos

alunos(as) condições para problematizarem suas realidades na perspectiva da

cidadania e da emancipação social.

Objetivos Específicos:

Identificar as práticas pedagógicas exercidas na escola, de modo a

compreender de que maneira vem respondendo as especificidades e

necessidades dos sujeitos da EJA.

Compreender como a escola interage e dialoga com a ecologia dos

saberes dos alunos e alunas.

Identificar nas práticas desenvolvidas a apropriação (ou não) dos

pressupostos da Educação Popular.

6.2 OS SUJEITOS INCLUÍDOS NA PESQUISA

A pesquisa social trabalha com gente e suas realizações, compreendendo-os como atores sociais em relação, grupos específicos ou perspectivas, produtos e exposição de ações, no caso de documentos (MINAYO, 2007, p. 62).

Na definição dos sujeitos desta pesquisa, algumas questões foram

consideradas: por exemplo, nosso trânsito nas escolas, entre alunos e

educadores, já era uma prática, pois há mais de dois anos já trabalhávamos

com estes sujeitos na formação continuada e em serviço, bem como nos

seminários propostos pela SEME.

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Fizemos a proposta desta pesquisa para algumas escolas, muitas sinalizaram

de forma positiva, então, fizemos a opção por uma escola que oferece a EJA

do 1º ao 4º ciclo, ou seja, que corresponde de 1ª a 8ª séries, no regime seriado

do Ensino Fundamental, e que possuía uma turma de cada ciclo.

Pelo fato de pertencer “ao sistema”, atuando na SEME, nossa escolha também

incidiu sobre uma escola cujos profissionais interagiam e participavam durante

os encontros realizados pela secretaria, ou seja, profissionais que,

teoricamente, se posicionariam de forma mais afirmativa e com mais

espontaneidade na presença mais direta de uma pessoa “da Secretaria de

Educação” durante um semestre na escola. Este coletivo foi, então, consultado

e nossa presença pôde se dar, assim, na escola.

Portanto, a entrada e permanência na instituição ocorreu de forma tranquila, no

qual estivemos envolvidas, de forma intencional, com dezesseis

professores(as): 10 da própria instituição e 6 das rodas de conversa realizadas

por ocasião da pesquisa, bem como, quarenta alunos e alunas do 1º ao 4º

ciclo. O quantitativo de alunos foi sendo estabelecido de acordo com a

assiduidade, e, sem estar previsto inicialmente, acabamos por incluir, também,

dois componentes da associação de moradores do bairro onde a escola está

localizada.

6.3 A ORGANIZAÇÃO DOS TEMPOS E OS INSTRUMENTOS DE

PRODUÇÃO DOS DADOS

Uma vez mais enfatizamos que, neste quadro, a pesquisa-ação é pertinente,

pois gera processos de aprendizado cujos frutos são as mudanças reais e

materiais naquilo que as pessoas fazem, na forma como interagem com o

mundo e com os outros, nas suas intenções, naquilo que valorizam e nos

discursos através dos quais entendem e interpretam o mundo.

Nesta perspectiva, é importante sinalizar que a organização dos tempos de

atuação em campo ocorreram de forma integrada ao trabalho de

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assessoramento que venho desenvolvendo na SEME. Portanto, nesta proposta

optamos por delimitar o tempo de atuação na escola em um semestre, sendo

que este tempo envolveu nossa participação na dinâmica da sala de aula, da

escola em geral e o acompanhamento da forma como alunos e alunas

interagem com as práticas pedagógicas propostas e das relações

estabelecidas, também, com o coletivo de educadores(as) .

Em função da dinâmica de atuação no trabalho de campo, algumas

ferramentas que consideramos mais adequadas foram utilizadas: a observação

sistemática e participante, o diário de campo, os relatos de vida, entrevistas

individuais e coletivas e questionários. Outra atividade foi a proposta de

círculos de debates, círculos de leitura e de discussão de temáticas

específicas.

Para dar conta da organização e análise dos dados de forma mais consistente,

utilizamos algumas categorias de análise, que já foram exploradas no capítulo

4 e serão utilizadas no diálogo com o campo da pesquisa:

espaço público, democracia e cidadania;

educação popular e emancipação social;

ecologia de saberes e o trabalho da tradução.

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7 A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) NA ESCOLA: DIMENSÕES

DA PRÁTICA

A modalidade de educação oferecida a jovens e adultos é, portanto, herdeira

de uma história complexa e está inserida no berço de movimentos

contestadores da ordem estabelecida. Assim, neste exercício de compreender

o campo de forma prospectiva e sistêmica, chegamos à escola. Acreditamos

que reflexões sobre a EJA precisam ser empreendidas no atravessamento com

esta multiplicidade de fatores, tanto na perspectiva do macro quanto do

microespaço político, que envolve a dimensão do bairro, da rua, da escola, da

sala de aula, dos sujeitos e das relações estabelecidas entre as pessoas.

O campo problemático que vem se colocando neste estudo é saber das

práticas pedagógicas estabelecidas, dos processos de (con)vivência no espaço

público da escola e de como esta dinâmica promove a problematização da

realidade para e com o coletivo de alunos(as) e educadores(as). Ou seja,

saber das consequências micropolíticas de determinadas práticas,

considerando a possibilidade de proporcionarem experiências de reconstituição

do sentido do coletivo e a (re)invenção dos significados de cidadania e

emancipação social.

Como já abordado, atualmente estes conceitos estão significativamente

fragilizados, porque, embora largamente proclamados, banalizaram-se na

história de um país de cultura elitista e onde persiste o imperativo da

desigualdade. Contudo, à revelia deste paradoxo, cidadania e emancipação

social ainda são ideais colocados como objetivos a serem alcançados em todas

as esferas de vida comum e pública.

A escola é uma instituição para onde se convergem expectativas no sentido de

levar alunos e alunas à problematização da realidade, inserindo-os nos

mecanismos de participação na sociedade e capacitando-os a intervir na

dinâmica social. No entanto, consideramos que, principalmente para a

população excluída dos processos de participação e decisão,

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[...] os projetos políticos só ganham plenamente sentido quando se atualizam no plano da micropolítica, que é onde se realizam as formas de vida concreta das pessoas, aquele em que se forjam suas expectativas e seus valores, os quais, em última instância, conformam suas escolhas e adesões voluntárias a projetos políticos (CARVALHO, 2009, p. 36).

Para os sujeitos da EJA, estas dimensões, saberes e fazeres, que estamos

designando de “micro” e que constituem o cotidiano, devem ser o ponto de

partida para a compreensão do tecido social mais amplo. De que forma, então,

as práticas escolares mediam a relação destes alunos e alunas com a

realidade? Neste sentido, no contexto da pesquisa, a produção dos dados se

deu na interação com a escola em uma gama de atividades, constitutivas do

currículo desta Unidade Escolar:

nos espaços de formação em serviço e planejamento na escola;

nas assembleias realizadas com os(as) alunos(as), tanto na escola

como na SEME;

nos espaços da escola: pátio, refeitório, biblioteca, laboratório de

informática, sala do pedagogo e do coordenador, auditório, corredores,

sala de aula e sala dos professores;

no interior dos ônibus durante os passeios que realizamos pelas cidades

históricas da região das nossas montanhas e nos passeios

intermunicipais da região circunscrita à Grande Vitória;

nos museus e outros espaços culturais que visitamos;

no encontro da representação de alunos(as) da modalidade com

autoridades políticas municipais;

no espaço cultural da Tenda Divertida da Leitura e da Escrita (TDLE),

evento organizado pela SEME para a rede de escolas, cujo objetivo é a

promoção e estímulo da leitura;

nas “rodas de conversas” estabelecidas por iniciativa da SEME com a

comunidade escolar, dentro desta, com a associação de moradores;

nas reuniões do Orçamento Participativo, realizado no espaço da escola

(Estas reuniões aconteciam no horário de aula da EJA, por esta razão

os alunos eram convocados a participar.).

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Portanto, quando falamos no trabalho com o contexto escolar, pensamos

nestes múltiplos espaços que dialogam e interagem com a escola, produzindo

um modo político-pedagógico de fazer a EJA. Na dinâmica estabelecida por

nós com estes grupos e nestes espaços, nosso cuidado incidiu em desarmar

nossos esquemas prévios de compreensão, nossos (pré)conceitos e

julgamentos, de modo que este cotidiano fosse se desenhando da forma como

é, sem maquiagens.

Sabíamos que este cuidado era necessário, pois, como já pontuado, fazíamos

parte, de uma forma ou outra, daquele cotidiano de trabalho. Então, há que se

ter clareza, como alerta Larossa: “[...] como fazer para que a leitura vá mais

além dessa compreensão problemática, demasiado tranquila, na qual só lemos

o que já sabemos ler? (2001, p.16-17)”.

Desta forma, a leitura dos dados implica em “pensar de outro modo no mesmo

movimento em que se dá a ler de outro modo. Dar a ler (o que ainda não

sabemos ler): dar a pensar (o que ainda não pensamos) (LAROSSA, 2006 p.

18)”. Ainda,

[...] para dar a ler é preciso esse gesto às vezes violento de problematizar o evidente, de converter em desconhecido o demasiado conhecido, de devolver certa obscuridade ao que parece claro, de abrir uma certa ilegibilidade no que é demasiado legível (LAROSSA, 2001, p.16).

De acordo com Minayo, a experiência do campo apresentou

[...] uma porta de entrada para o novo, sem, contudo, apresentar-nos essa novidade claramente. São as perguntas que fazemos para a realidade, a partir da teoria que apresentamos e dos conceitos transformados em tópicos de pesquisa que nos fornecerão a grade ou a perspectiva de observação e de compreensão (MINAYO, 2007, p. 76).

Tendo em vista que a metodologia de trabalho foi a pesquisa-ação, as estadias

na escola foram se prolongando e qualificando à medida que o próprio coletivo

de educadores solicitava e face às demandas que o cotidiano produzia; assim,

passei um semestre letivo na escola num movimento de vai e vem entre as

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várias esferas já citadas que compõem este universo: fui, assim, incorporando-

me “ao corpo da escola”. “Vivi encarnadamente” este(s) universo(s), (con)vivi

suas formas, histórias e linhas de fuga, emocionei-me e me indignei, confrontei

e fui confrontada, calei-me e falei, surpreendi-me, fui propositiva e resignada.

As relações estabelecidas produziram um mosaico amplo. Neste instrumento

fizemos uma síntese e organizamos 4 eixos temáticos de análise, da seguinte

forma:

1- Quanto aos processos de democratização da gestão da escola;

2- Quanto à modalidade EJA, constituída parte e todo de uma escola;

3- Da perspectiva dos(as) educadores(as) na relação com os saberes dos

educandos na escola e os sentidos da formação de educadores(as)

para a modalidade EJA; e

4- Da perspectiva dos educandos e das educandas, cujas trajetórias de

resistência, autoria e emancipação social acontecem “aqui e agora”.

Como consequência da complexidade descortinada pelo campo da EJA, dos

desdobramentos ocasionados e questões evidenciadas com a inserção na

escola, houve necessidade de agregarmos outros referenciais teóricos, além

daqueles pensados e explorados inicialmente. Trouxemos, então, alguns

interlocutores da EJA para, também, nos auxiliar a pensar estes eixos e demais

dados que foram emergindo na dinâmica de pesquisa. Portanto, tivemos que

lançar mão e nos apropriarmos das contribuições de: Andrade (2004), Arroyo

(2005; 2006; 2007), Carrano (2008), Machado (2008) e Paro (1997).

Nos capítulos 8 e 9 buscamos entrelaçar as idéias e incorporar os “achados” da

pesquisa numa síntese necessária e reconhecidamente provisória, pois

entendemos que, longe de “concluir”, o trabalho com a modalidade EJA, na

perspectiva da escolarização, apenas está começando.

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7.1 QUANTO AOS PROCESSOS DE DEMOCRATIZAÇÃO DA GESTÃO DA

ESCOLA FRAÇÃO/INTEIRO DE UM SISTEMA DE ENSINO

A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado (Freire, 2002, p.47).

A escola pesquisada está inserida no sistema de ensino do município de

Cariacica e as questões já problematizadas desta realidade determinaram este

tipo de abordagem e eixo de análise, pois, por ocasião da pesquisa, o coletivo

desta escola, juntamente à SEME, ocupava-se em debater os processos de

democratização de gestão da escola, ao mesmo tempo em que também

discutia a implantação da modalidade EJA, conforme relatado no subcapítulo

3.3.1.

Assim, não pudemos ignorar este processo, amplamente vivenciado por todos

e, de modo especial, pelos jovens e adultos, já que os convocava a

mecanismos de participação na realidade imediatamente por eles e elas

“experimentada”. Além do mais, a escola é uma unidade de ensino com

autonomia legal, no entanto, não está desvinculada do sistema de ensino

municipal, e, em relação ao que se trata nesta investigação, considerar este

jogo é fundamental e busca romper com a ideia, constatada em campo por nós

e, infelizmente, compartilhada por muitos profissionais, de escola como ilha,

desconectada da cultura e das políticas públicas instituídas e instituintes.

Em contrapartida verificamos, também, outras formas de pensar. É o que

sinalizou a entrevista com esta moradora, militante de movimento social da

região, ex-diretora e professora de longa data na rede ensino e na modalidade

EJA. Num excerto de conversa que tivemos, foi pontuado, a partir da pergunta:

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De que forma você avalia a ruptura com antigas práticas

coronelistas? A comunidade escolar vem participando da gestão da

escola? De que forma a escola vem problematizando o movimento?

Como você avalia que isso tem acontecido “na prática” dentro da

escola?

RESPOSTA: A mudança em Cariacica não é sutil, é nítida e clara, pois os profissionais das escolas não tinham vínculos com a SEME, tinham vínculo com o político que os haviam colocado dentro da escola. Era o político [overerador] que tinha vínculo com a SEME, portanto o rompimento com estas práticas é nítido. Mas, muitas pessoas, ainda acostumadas com estas práticas, procuram para pedir: “você pede para me indicar?”. Os “currais” eleitorais em Cariacica eram gritantes, o político era dono total do corpo docente e discente da escola. Os alunos desde a educação infantil iam se formando naquela mentalidade e na ideia do apadrinhamento desde pequeno. Por exemplo, quando era aniversário do vereador, a escola toda parava... o aniversário do cara era uma festa comemorada dentro da escola. Em época de eleições, até mesmo nestas últimas eleições (2008), eles diziam aos funcionários da escola que da casa deles tinham que vir X votos para ele. Agora há um direcionamento, uma política pública instaurada: atender ao público e aos interesses das pessoas da comunidade (Entrevistada A, Cariacica, setembro de 2008)

25.

Em seguida, perguntamos: e os movimentos de resistência, não existiam

antes? Não é uma contradição? Como uma cidade considerada o “berço”

destes movimentos se permite subjugar assim?

RESPOSTA: Cariacica foi o berço de muitos movimentos populares, as CEBS, as associações de moradores das décadas de 80. A subjugação não era “permitida”, tanto que muitas pessoas morreram por acreditarem em outra forma de administração do bem público, por exemplo, o Padre Gabriel, que virou nome do Bairro. As associações lutavam contra o monopólio do Estado que era representado pela máquina pública municipal, e esse jogo de forças é injusto. As lutas eram constantes e muitos foram jurados de morte. Também foram muitos os prefeitos assassinados. Essa realidade era assim até 2003 / 2004 – submissão total à figura da pessoa do vereador e prefeito. Cariacica historicamente foi palco de disputa desleais e violentas e esta administração representa a consolidação de muitas lutas. Atualmente não existe mais a figura do “político”, a pessoa, o foco agora é a política, saiu a “politicagem” e entrou a gestão do espaço público que se configura com a participação da comunidade. No entanto, isso é uma aprendizagem, muitas escolas negam a autonomia conquistada, por exemplo, agora com o PDDE

26 –

25

Informação concedida pela entrevistada em setembro de 2008, no município de Cariacica.

26 Criado em 1995, o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) tem por finalidade prestar

assistência financeira, em caráter suplementar, às escolas públicas da educação básica das

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Programa Dinheiro Direto na Escola. Percebe-se que as relações mudaram, mas as unidades escolares ainda não sabem como agir, pois esta autonomia é uma coisa muito recente, até o OP (orçamento participativo)

27 é uma novidade.

Você poderia esclarecer, de que forma o coletivo de professores

esta reagindo a este contexto?

RESPOSTA: O universo de professores que entraram por meio do último concurso realizado democraticamente desconhece esta realidade do município e não compreendem as relações que se travam nas comunidades. Antes os(as) professoras eram “comadres”, “compadres” e cabos eleitorais dos vereadores, agora entram na rede por meio de ferramenta democrática, o concurso, e têm formação, a graduação e pós - graduação até. Mas, não basta ter só formação, é preciso trabalhar o sentimento de pertencimento ao lugar e compreender as relações na comunidade onde a escola está inserida, que reflete a história do município. Nem todos os(as) professores(as) têm esta visão. A maioria chega, quer dar aula e pronto, desconhece o contexto. Isso não é tudo, as pessoas querem ser vistas e querem que sua história seja ouvida, não querem ser só um número na pauta. Mas a escola não dialoga com ela mesma, cumpre horários, rotinas, rituais, dificilmente conversa sobre os projetos e os dilemas da comunidade (Informação verbal)

28.

As questões observadas exemplificam a prática corriqueira em nosso país de

privatização dos espaços públicos e dos recursos financeiros que deveriam ser

utilizados de forma a contribuir para o bem-estar comum. A posse da máquina

pública em prol de interesses particulares e populistas é prática que,

redes estaduais, municipais e do Distrito Federal e às escolas privadas de educação especial mantidas por entidades sem fins lucrativos, registradas no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) como beneficentes de assistência social, ou outras similares de atendimento direto e gratuito ao público. O programa engloba várias ações e objetiva a melhora da infraestrutura física e pedagógica das escolas e o reforço da autogestão escolar nos planos financeiro, administrativo e didático, contribuindo para elevar os índices de desempenho da educação básica. Os recursos são transferidos independentemente da celebração de convênio ou instrumento congênere, de acordo com o número de alunos extraído do Censo Escolar do ano anterior ao do repasse. Até 2008, o programa contemplava apenas as escolas públicas de ensino fundamental. Em 2009, com a edição da Medida Provisória nº 455, de 28 de janeiro (transformada posteriormente na Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009), foi ampliado para toda a educação básica, passando a abranger as escolas de ensino médio e da educação infantil (FNDE/ MEC).

27 O Orçamento Participativo (OP) é um instrumento organizado e popular pelo qual a

população escolhe as obras mais importantes e necessárias com base no orçamento público municipal. Essa construção precisa do envolvimento e participação de todos os moradores do município de Cariacica com o objetivo de torná-lo mais transparente e justo. É através das Plenárias Regionais do OP que os moradores indicam suas obras prioritárias e elegem seus representantes (extraído do site http://www.cariacica.es.gov.br/, com acesso em 20 de julho de 2009).

28 Informação concedida pela entrevistada em setembro de 2008, no município de Cariacia.

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historicamente, ainda persiste na nossa cultura de raízes coloniais, opressora e

profundamente autoritárias.

Em Arendt (2009a), encontramos subsídios para pensar e propor alternativas

para esta realidade, quando afirma que é pela educação que se dá a

aprendizagem da fruição do mundo, a apreciação da cultura que forma nossa

herança simbólica e comum, bem como a atribuição de um significado comum

e público para as atividades humanas.

[...] o mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado como no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isso o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós. (ARENDT, 2009 p. 67).

Assim, as ponderações da professora abrem canais e possibilidades de

interlocuções variadas. Certamente, temos clareza de que atualmente nossas

barbáries políticas são diferentes daquelas vividas no contexto do pós- guerra;

contudo, as perguntas ainda são as mesmas: como educar numa ordem social

no qual o que há em comum são os interesses particulares em conflito? Qual o

papel da Educação e da Educação de Jovens e Adultos no esvaziamento do

mundo comum e público e na crescente diluição das fronteiras entre as esferas

pública e privada?

Dessa forma, a filosofia de Hannah Arendt volta-se para a compreensão das

condições que imprimem um significado público para a educação. Para ela, o

sentido para estar e atuar no mundo tem como objetivo a construção de

espaços e de um mundo que possa ser compartilhado.

Sobre essa determinação ela afirma que, ao separar-se do espaço público e da

companhia de outras pessoas, homens e mulheres não podem mais se revelar

e confirmar suas identidades. O mundo público e compartilhado por projetos

comuns é a premissa que sustenta qualquer formulação de políticas.

Concordamos, pois, com a filósofa alemã também na crítica contundente ao

individualismo e quando afirma as ações de cidadania como sendo a via de

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acesso ao espaço público: ela diz que a vivência dessa cidadania só é possível

na convivência com outros e outras, no compartilhamento e na superação da

lógica da solidão pela lógica da solidariedade.

Assim, entendemos que esta luta não é nova, mas se renova e se faz diferente

em cada escola. Parece haver “um esquecimento” de que a escola pública

constitui e integra o espaço público e que a Constituição Federal, promulgada

em 1988, já estabelecia como um dos princípios do ensino público brasileiro,

em todos os níveis, a participação popular na gestão da escola e que, a partir

de então, as questões de descentralização do ensino, sua democratização e a

autonomia da gestão escolar estão postas em contínuo debate.

Situações como as apontadas pela professora entrevistada indicam que na

escola persiste, ainda, a reprodução de determinados interesses em detrimento

do interesse público da maioria, ao mesmo tempo, também reconhecemos na

sua fala forças progressistas, representadas pelos movimentos sociais, que

têm de forma cada vez mais crescente pressionado essas instâncias de poder,

conquistando alguns caminhos na democratização do ensino público no

município.

Contudo, a efetiva consolidação deste princípio educacional passa pela

participação direta da comunidade escolar e do envolvimento do coletivo de

profissionais nos diversos contextos que compõem o universo da escola.

Conforme assinalamos no tópico 3.3.1, foram essas lutas populares que

possibilitaram a oferta do projeto de Alfabetização para Jovens e Adultos

(“Saber é Preciso”) e posteriormente a continuidade de estudos, por meio da

oferta do Ensino Regular Noturno Semestral nas escolas.

De acordo com a Entrevistada B, no ano de 2008 técnicos da secretaria de

educação foram convocados a chamar as comunidades escolares para

dialogar sobre a educação oferecida na escola, com o objetivo

RESPOSTA: [...] de estabelecer uma gestão mais participativa. A Secretaria Municipal de Educação de Cariacica, por intermédio de seus vários programas, vem desenvolvendo ações nas três principais

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áreas de gestão (pedagógico-didáticas, funcional e administrativo-financeira), no sentido de fomentar as práticas democráticas no ambiente escolar dentro dos pressupostos da teoria da Gestão Democrática. O objetivo é promover no município práticas educacionais comprometidas com o efetivo exercício da Cidadania e da Emancipação Social (Entrevistada B, Cariacica, setembro de 2008)

29.

Visando ampliar os canais de comunicação foram organizados encontros que

se convencionou chamar de “rodas de conversa”, nos quais a comunidade e os

vários segmentos que compõem o universo escolar puderam dialogar sobre o

que pensam a respeito da educação que se realizava na escola, acompanhado

de proposições visando resolver problemas e apontar elementos de

positividade, bem como mecanismos para mantê-los e difundi-los para o

conjunto da rede. Com esse intuito foram organizadas 29 “rodas de conversa”,

envolvendo a participação de todas as regiões e unidades de ensino em seus

níveis e modalidades.

No caso específico da modalidade EJA, foram organizadas cinco “rodas de

conversa”, com a participação de cerca de trinta a quarenta pessoas por roda,

representando todos os segmentos existentes na EJA da instituição.

Avaliamos que a atitude em si, de se dirigir até às Unidades Escolares no

sentido de envolvê-las na construção de dispositivos e documentos ligados

diretamente aos seus interesses, já aponta uma diretriz e vontade política de

efetivar a cidadania, que pressupõe a participação como valor.

Nas assim chamadas “rodas de conversa”, foram encaminhadas diversas

indagações tais como: que significados concretos assumem o valor da

participação no dia a dia da escola? De que forma a participação é

compreendida e vivenciada na dinâmica do cotidiano? Você participa da vida e

das decisões tomadas na escola? Essas e outras perguntas foram

encaminhadas de modo a compreender de que maneira os conceitos de

cidadania e emancipação social se perspectivam e corporificam, gerando

práticas coerentes.

29

Informação concedida pela entrevistada em setembro de 2008, no município de Cariacica.

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Segundo a Entrevistada C, a comunidade escolar elencou aspectos positivos

nas seguintes questões:

Resposta: a descentralização das ações e decisões no interior das escolas com a criação dos Conselhos de Escola e a promoção de uma série de reuniões com a comunidade para discutir os rumos da escola; a autonomia financeira e descentralização de recursos com a implantação dos Caixas Escolares e a obrigação dos diretores de deixar público relatórios mensais com resumo/ prestação das contas e dos gastos;a realização de concurso público para docentes; a implantação da comissão para elaboração da minuta de lei de gestão democrática, ou seja, a “lei que normatiza a eleição de diretores(as)”, e que após inúmeros ajustes e de ser boicotada na câmara de vereadores, foi, finalmente, aprovada no início do ano de 2009 e em curso, hoje, o primeiro processo de eleição democrática para diretores(as) no município de Cariacica (Entrevistada C, Cariacica, outubro de 2008)

30.

São falas que fluem na direção da necessidade de superação da estrutura

hierarquizante e autoritária da escola pública, de modo difundir relações

humanas horizontais, de solidariedade e cooperação entre as pessoas. O que

não pode prescindir, de acordo com os Entrevistados B e C, de garantir um

currículo escolar com maior sentido de realidade e atualidade; combater o

isolamento físico, administrativo e profissional dos diretores e professores;

motivar o apoio da comunidade às escolas; promover a escola a partir da

cultura da comunidade; desenvolver objetivos comuns na comunidade escolar.

Segundo os entrevistados da escola, da SEME e da comunidade as questões

colocadas acima necessitam de melhorias. São elas:

o aprimoramento dos próprios mecanismos da gestão democrática na

relação SEME – Escola e Escola – Coletivos;

a necessidade de trabalhar o “sentimento” de pertencimento à

comunidade em alunos e profissionais da escola;

o fortalecimento dos Conselhos de Escola;

a reestruturação e ressignificação da escola enquanto instituição

pública;

30

Informação concedida pela entrevistada em outubro de 2008, no município de Cariacia.

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a qualificação da burocracia diminuindo a morosidade da SEME, e, ao

mesmo tempo, o aprimoramento da comunicação SEME e rede de

escolas e a ampliação das parcerias;

a oferta de merenda e material didáticos adequados à EJA;

o fornecimento de uniformes para a EJA;

um currículo específico e com metodologia adequada, construído com e

para a EJA.

Percebemos nas comunidades, diz a Técnica da SEME (entrevistada D),

Resposta: [...] sementes da compreensão de que educação de qualidade social não pode ser considerada esmola que a administração política distribui como bem entende e de acordo com as relações e interesses pessoais. Nosso trabalho vem sendo combater o amadorismo e o jeito descompromissado de fazer a política educacional, acabar com as improvisações e “alternativas” vergonhosas desde a oferta de um espaço físico inadequado e desumano, é fazer cumprir o direito à educação. A comunidade já sabe que educação é formação, é um direito e bem comum, e já se deu conta, sabe que a escola é ponte para emancipação social, trazendo outra ferramenta, instrumento de cidadania: a leitura (Entrevistada D, Cariacica, outubro de 2008)

31.

A partir da realidade observada, constatamos que os processos de

democratização e participação dos coletivos nas instâncias de decisão estão

sendo problematizados e tentando consolidar-se no movimento pretendido de

ruptura com a cultura autoritária e coronelista. Contudo, os discursos

produzidos não conseguem encobrir que

[...] se a participação depende de alguém que dá abertura ou que permite sua manifestação, então a prática em que tem lugar essa participação não pode ser considerada democrática, pois democracia não se concede, se realiza [...]. Se quisermos caminhar para essa democratização, precisamos superar a atual situação que faz a democracia depender de concessões e criar mecanismos que construam um processo inerentemente democrático na escola. Embora esta não seja uma tarefa fácil, parece-me que o primeiro passo na direção de concretiza-la deve consistir na busca de um conhecimento crítico da realidade, procurando identificar os determinantes da situação tal como ela hoje se apresenta (PARO, 1997, p. 17).

31

Informação concedida pela entrevistada em outubro de 2008, no município de Cariacica.

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99

Como veremos nos próximos eixos, o processo de efetiva conquista da escola

pelas camadas trabalhadoras passa principalmente pela problematização da

função desempenhada pela instituição escolar na sociedade de hoje. De nada

adianta continuarmos falando de escola como algo que possa contribuir para a

emancipação social se, definitivamente, não assumirmos que nos sistemas de

ensino há a constante disputa pelo poder político e cultural.

Portanto, uma coisa é falar das potencialidades da escola, seu vir a ser, e

expressar a crença de que possa levar as camadas populares a se apropriarem

de um saber historicamente acumulado e desenvolver a consciência crítica,

outra coisa é considerar em que medida a escola que aí está já esteja

cumprindo esta função, como bem posto por nossa Entrevistada A no início

deste tópico. O que é corroborado por Paro:

Infelizmente essa escola é sim reprodutora de certa ideologia dominante... é sim negadora dos valores dominados e mera chanceladora da injustiça social, na medida em que recoloca as pessoas nos lugares reservados pelas relações que se dão no âmbito da estrutura econômica. Se queremos uma escola transformadora, precisamos transformar a escola que temos aí. E a transformação dessa escola passa necessariamente por sua apropriação por parte das camadas trabalhadoras. É nesse sentido que precisam ser transformados o sistema de autoridade e a distribuição do próprio trabalho no interior da escola (1997, p. 10 e 19).

A epígrafe em Freire (1992) alerta que a construção da sociedade menos feia e

arestosa tem na formação democrática uma prática de real importância.

Contudo, segundo ele, “[...] a aprendizagem da assunção do sujeito é

incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos

que se pensam donos da verdade e do saber articulado” (Freire, 2002), dizia:

Um dos grandes problemas da nossa educação atual, cada vez mais devendo endereçar-se no sentido da democratização, é, por isso, o de superar esta quase exclusiva centralização na palavra, no verbo, nos programas, no discurso. [...] Interessou-nos sempre, e desde logo, a experiência democrática através da educação. Educação da criança e do adulto. Educação democrática que fosse, portanto, um trabalho do homem com o homem, e nunca um trabalho verticalmente do homem sobre o homem ou assistencialistamente do homem para o homem, sem ele (2002, p.14).

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Assim, acreditamos que processos de democratização alavancados a partir

deste sistema de ensino são imprescindíveis, mas consequentemente devem

caminhar com a firme decisão da escola de, verdadeiramente, deslocar as

posições do poder por meio de ações condizentes, transferindo-o para a

comunidade, que é quem mais necessita dele para, de fato, superar o medo

historicamente instaurado pelas elites na população mais empobrecida.

Incide daí o cuidado já observado por Freire, em analisar nossas próprias

práticas e discursos daqueles que também se (auto)proclamam

“emancipatórios”, que podem facilmente constituir-se também em dominação e

hegemonia ao querer impor planos de controle sobre as demais classes

sociais. Este cuidado deve incidir sempre e mesmo quando estes discursos são

realizados por um partido, igrejas, movimentos sociais, associações etc., pois

“[...] o que poderia parecer um diálogo destas com as massas [...] sejam meros

comunicados, meros depósitos de conteúdos domesticadores (1996, p. 128)”.

7.2 QUANTO À MODALIDADE EJA FRAÇÃO/INTEIRO DE UMA ESCOLA

O diálogo fenominiza e historiciza a essencial intersubjetividade humana; ele é relacional e, nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes “admiram” um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele coincidem; nele põem-se e opõem-se [...]. O diálogo não é produto histórico, é a própria história (FIORI in FREIRE, 2005, p. 16).

A partir da dialogização apontada em Freire, pensamos na modalidade EJA

inserida na escola nesta dinâmica contra-hegemônica de consolidação de

processos de democratização. De que forma, além de algumas falas

evidenciadas no tópico anterior, a EJA engaja-se (será que se engaja?) neste

movimento colocado em “marcha” no município de Cariacica? Pois a luta na

EJA sempre foi política e “popular” e pensamos que uma EJA “escolarizada”,

em sintonia com a comunidade e na perspectiva da cidadania e emancipação

social não poderá estar subsumida a “só escolarização”. Portanto, como a

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escola vem se colocando nesta discussão denominada pelos gestores de

“emancipatória”?

Nesta direção procuramos escutar as “rodas de conversas” protagonizadas

entre os profissionais da modalidade EJA, da SEME, da comunidade escolar e

extraescolar. Cada “roda” contou com a participação de cinco escolas,

trazendo, em cada, o mínimo de trinta e o máximo de quarenta pessoas. Cada

encontro durou, em média, quatro horas. Registramos o conteúdo de uma

delas, categorizado abaixo por aproximações nas abordagens.

Os recortes apontam para questões essenciais e que se inter-relacionam, são

as questões problematizadoras do campo atualmente. São falas que avaliam,

desvelam, refletem e denunciam ao mesmo tempo em que sinalizam caminhos

já realizados e os ainda a realizar para o salto qualitativo que necessitamos dar

se quisermos uma oferta EJA verdadeiramente democrática, de qualidade

social e de compromisso político, aspecto impossível de negar, exceto

intencionalmente ou por inocência (FREIRE, 2005, p. 70).

Assim, a escola, a educação e, portanto, a Educação de Jovens e Adultos não

são “neutras”, e a “roda de conversa” constituiu espaço privilegiado para

desvelamentos e embates políticos, ideológicos e pedagógicos. Defendendo a

riqueza de questões assinaladas, e, no esforço da síntese, trazemos parte

deste material. Assim, foram problematizadas as questões a seguir.

1- Quanto aos fatores condicionantes à participação de todos(as) na gestão da

escola, a necessidade de qualificar a participação, de a escola falar a “mesma

linguagem” da comunidade e da apropriação de códigos comuns de

comunicação e a carência de tempo disponível para a fala/escuta dentro da

escola envolvida com múltiplas tarefas, foi dito o seguinte:

Diretor A: Eu vejo que cada dia mais a escola tem maior autonomia e tem crescido a participação da comunidade. No entanto, ainda falamos de coisas que muitas pessoas não entendem e é preciso esclarecer de “quê” estamos falando. Será que a comunidade sabe o que é uma prestação de contas e o que é e para que serve um conselho de escola? A comunidade precisa ser mais esclarecida.

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Precisamos incentivar a comunidade a crescer. O desenvolvimento da escola passa também pelo processo de participação dos alunos da EJA, os maiores, os adultos e com mais condições de se fazer presente, muitas vezes preferem ficar calados (Informação verbal)

32.

[...] está sendo “dada” autonomia, mas a comunidade precisa participar, precisa aprender a falar”. [...] estou participando pela primeira vez de uma reunião como essa, e eu preciso saber de tudo isso para poder participar, preciso que alguém explique como são as coisas dentro da escola, para a gente não dar opinião fora. Preciso saber dessa linguagem que vocês usam e que muitas vezes eu não entendo, se eu não saber, como posso dar opinião? (Informação verbal)

33.

[...] a SEME dialoga com a escola, a escola dialoga com a comunidade, mas, e a escola dialoga com ela mesma? A escola precisa de tempo para dialogar com ela mesma, principalmente na EJA, com nossos tempos já encurtados e um turno onde já chegamos exaustos. Não temos horário de planejamento como o diurno tem (Informação verbal)

34.

2- Quanto à preocupação com a evasão, o cuidado com o currículo apropriado

à EJA, o foco na cultura do aluno e no processo de ensino e aprendizagem é

possível de ser observado nas pontuações a seguir:

A implantação do Caixa Escolar, os Conselhos de Escola, o Programa de Dinheiro Direto na Escola – PDDE, a qualidade da merenda para a EJA a descentralização da figura do diretor são uma conquista. Agora precisamos ficar atentos ao processo ensino-aprendizagem, como estes alunos da EJA aprendem? Não sabemos (Informação verbal)

35.

Outro dia um aluno me perguntou o que significava a palavra exuberante que ele leu no livro. Eu expliquei que era „belo‟, e ele me disse „nossa professora! E eu ia passar o resto da vida só falando „bonito‟ porque nem belo eu usava, agora posso usar o exuberante que eu aprendi e é muito mais „chique!‟ Fico pensando que a gente não sabe nada destes alunos e do que eles precisam para a vida e a gente se surpreende quando para conversar com eles (Informação verba)l

36.

32

Informação concedida pelo entrevistado em agosto de 2008, no município de Cariacica. 33

Informação concedida por Pedro, pai de aluno do turno vespertino e também aluno da EJA,

de 49 anos, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 34

Informação concedida por Carlos, professor do 3º e 4º ciclo, em agosto de 2008, no

município de Cariacica. 35

Informação concedida por uma professora e pedagoga, em agosto de 2008, no município de

Cariacica. 36

Informação concedida por uma professora do 1º ciclo, em agosto de 2008, no município de

Cariacica.

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Sem alunos não existe escola. O que fazer com a evasão? Hoje a escola busca resgatar a questão da leitura escrita e o cálculo matemático. Transformar o aluno em um ser crítico. Mas tem que ter um currículo adaptado a sua realidade. As turmas são extremamente heterogêneas. O trabalho tem que ser efetivado entre o aluno e o professor. A escola tem que transformar o aluno para ser capaz de absorver as novas realidades tecnológicas, sociais, econômicas e políticas. Afirma que um ponto positivo foi à formação do grêmio estudantil para a formação política do aluno, mas também para acabar com a existência de um currículo escrito e um vivenciado pela escola. Temos que fazer o aluno vivenciar o seu dia-a-dia, envolve-lo no seu mundo, nas suas aptidões (Informação verbal)

37.

Venho fazendo um projeto de ajuda aos alunos em matemática. Alfabetizar os alunos é uma responsabilidade de todo o grupo, toda equipe. Devemos fazer um trabalho que valorize a própria realidade do nosso aluno. Quanto a prática pedagógica, o professor tem que ter muita paciência com os alunos, que ter um grande “jogo de cintura”. Acredita que o professor da EJA tem que ter um perfil diferenciado para trabalhar com as turmas da EJA. A escola tem que promover uma maior integração – escola – comunidade – pais. Tem que haver um processo de pertencimento (Informação verbal)

38.

Deveríamos parar as aulas para fazer um debate com os alunos para ver o que eles pensam. Ouvir e trocar ideias, decidir com eles (Informação verbal)

39.

Os alunos, principalmente os mais novos, exigem que o professor vá para frente da sala e de aula, passe conteúdos, muitos „deveres‟. Acham que diálogo e atividade extra classe não é aula (Informação verbal)

40.

3- Acerca da relação entre o exercício da cidadania, os processos de

humanização e articulação da escola, disseram:

Todos são profissionais capacitados, mas com o foco no aluno, o principal problema é o desinteresse do mesmo. O que fazer para melhorar essa questão? A necessidade, dentro da Política de Educação Cidadã, é humanizar a escola, e precisamos fazer um trabalho de sensibilização dos alunos com o apoio da SEME (Informação verbal)

41.

Estou no movimento comunitário desde 1989 e acho estranho o movimento, a escola e nem a igreja nunca articularem-se para

37

Informação concedida por uma diretora, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 38

Informação concedida por um professor do 3º e 4º ciclo, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 39

Informação concedida por um diretor, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 40

Informação concedida por uma professora, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 41

Informação concedida por uma professora do 3º e 4º ciclo, em agosto de 2008, no município

de Cariacica.

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debater sobre o bairro e como trazer melhoria para a comunidade. Diz que é a primeira vez que isso ocorre e está achando uma mudança, um avanço (Informação verbal)

42.

4- A respeito da necessidade da escola promover atividades extras sala de

aula mencionaram que

Um fato positivo é a banda da escola, que vem promovendo a formação de músicos para o mercado profissional. A banda vem valorizando a cultura e criando novos talentos, novos cidadãos, e que o rendimento em sala de aula vem melhorando e o maestro verifica e acompanha a vida escolar do aluno (Informação verbal)

43.

O laboratório de informática é importante e vem sendo utilizado para a melhoria de aprendizado dos alunos. Os professores passam os conteúdos e eu desenvolvo as aulas junto com estes professores. Ocorre um melhor relacionamento aluno-professor, pois o aluno encontra-se em um novo ambiente (Informação verbal)

44.

Outro professor, de matemática, endossa esta última opinião e lembra os

objetivos da matemática e na sua capacidade de transformação do cidadão e

que a informática vem em auxílio aos seus objetivos, pois as aulas ficam

diferenciadas e mais atrativas.

5- Sobre a inadequação dos espaços físicos escolares, diretora, coordenadora

e alunos afirmam que a falta de espaço físico compromete as aulas de

educação física. Solicitam um professor de apoio para os alunos com

necessidades educativas especiais. Reclamam da falta de uma biblioteca bem

estruturada para que os alunos possam usufruir. Um professor de língua

portuguesa reforça, afirmando que a Universidade não prepara o professor

para trabalhar com alunos da EJA e nem com aqueles que apresentam

necessidades educacionais especiais e que o professor tem que aprender na

prática.

42

Informação concedida por um membro da associação de moradores, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 43

Informação concedida por uma aluna do EJA, de 18 anos, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 44

Informação concedida pela mediadora do laboratório de informática, em agosto de 2008, no município de Cariacica.

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6- Já sobre o compromisso das profissionais da EJA “com a EJA”; sobre a

merenda inadequada; sobre a vontade de desistência por causa das

dificuldades de convivência com os adolescentes da EJA, foi dito que

Tenho muitas dificuldades em sala, principalmente por causa dos alunos mais novos que não levam os estudos a sério. Em quase todas as aulas tem o problema de conversa, tumulto e por isso não consigo aprender direito (Informação verbal)

45.

7- Outros alunos comentam que gostariam que a merenda melhorasse. Muitos

trabalham e chegam à escola com fome. Dizem estar cansados do trabalho e

que muitos alunos vêm para fazer “anarquia”, não só no recreio, mas dentro da

sala de aula; que uns vêm para estudar, outros para fazer bagunça, isso

atrapalha a aula e o aprendizado; que eles (os que fazem bagunça) deveriam

ficar em casa e que todos devem respeitar para serem respeitados. Dizem,

Não somos mais crianças e temos muitas dificuldades para aprender e acompanhar a matéria, escrever corretamente é difícil e temos medo de errar, é importante o professor conversar com a gente, perguntar qual é nossa dificuldade (Informação verbal).

Apontam que uma professora fez isso e as dificuldades foram trabalhadas

durante o ano. Dessa forma todos cresceram e aprenderam mais e melhor.

Ainda há um aluno que diz estar pensando em desistir, pois o conteúdo está

prejudicado e não está aprendendo nada, e outro que releva que não consegue

aprender e prestar atenção com o barulho dos mais jovens.

Um professor, dirigindo-se à aluna Dona Nair, questiona se o professor em sala

de aula vem tentando manter um perfil capaz de atender a turma na questão de

aprendizagem. A aluna responde que eles tentam, mas que geralmente não

conseguem devido à indisciplina de alguns alunos mais novos.

Outra professora diz que os alunos mais novos vêm para a escola não para

estudar, mas sim para atrapalhar e que não têm comprometimento com a

45

Informação concedida por “Dona Nair”, de 55 anos, que integra o conselho de escola e é aluna da EJA, em agosto de 2008, no município de Cariacica.

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escola, que a dinâmicas das aulas têm que ser revistas, os professores têm

que trazer coisas mais atraentes para as aulas e que retratem a realidade dos

alunos. Ela afirma que as escolas continuam do mesmo jeito, não evoluíram.

As apostilas não atendem ao grupo de alunos da EJA.

Em seguida, o diretor pergunta para a professora: “O grupo de professores

realmente quer mudar?”. Em resposta ela conta que fez um projeto sobre o

folclore, que tinha que elaborar um cardápio com comidas típicas e que a

nutricionista barrou o projeto e que só um professor assumiu. A professora está

desanimada, pois os colegas não participam, não dão importância ao trabalho

dos outros. E afirma, ainda, que os alunos têm que ser motivados a participar.

No momento seguinte, um técnico da SEME pede aos alunos que enumerem

as características de professores comprometidos e que, na opinião deles,

fazem um bom trabalho. Pergunta a importância da escola para a comunidade.

Fala que a escola virou um ponto de encontro das pessoas na comunidade e

que isso é positivo, mas gera “um certo” tumulto. A escola tem que ser olhada

com mais carinho. Cita que devemos estar atentos para não excluir os alunos e

que a comunidade tem que participar deste espaço.

Por fim, sobre essa questão, uma professora fala que na sua escola eles

recebem os alunos com muito carinho, montam sempre um ambiente

agradável. Cita que alguns alunos estão na escola com a finalidade básica de

merendar, mas há aqueles que querem aprender e outros que preferem agitar.

Afirma, também, que o professor tem que ser um artista para atrair os alunos

com idades e interesses tão diferentes.

7- Sobre o perfil desejado/necessário para o(a) educador(a) de EJA e sobre a

formação do profissional que atua na modalidade EJA, um professor diz que

desenvolve um projeto em sala de aula com os alunos da EJA, com poesia e

usando a linguagem matemática e pergunta se isso está de acordo com o

„perfil‟ de professor da EJA? Com esta observação, percebo que ele tenta

definir o perfil do professor que trabalha nas salas de aula da EJA. Desta

dinâmica, trataremos adiante.

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Uma aluna responde ao professor afirmando que o bom professor tem que

fazer um trabalho diferente, dar uma aula diferente, sair da sala, da escola, ter

aula extraclasse. Tem que incentivar mais os alunos.

8- Por último, acerca da escola como mecanismo de superação das condições

materiais de existência e como instância que promove de emancipação, os

comentários são os seguintes:

[...] os problemas são gigantescos, que se alguém descobrisse a solução ficaria famoso. A nossa escola, com todas as questões, ainda é uma escola boa, pois as pessoas querem vir para cá, todos os dias a comunidade vem bater na porta secretaria procurando vaga. Muita gente que precisa arranjar trabalho e não consegue e outros porque a empresa exige (Informação verbal)

46.

Os problemas parece que na EJA, no noturno, são bem mais, e que é um grande desafio tentar resolvê-los. A SEME e a Secretaria de Segurança tem que estar juntas. Temos que resolver os problemas existentes entre os alunos jovens e os de mais idade sem que haja uma exclusão. A escola tem melhorado muito, pois muitos alunos querem estudar nela. (Ele também agradece a presença da SEME na escola e que isso significa um processo de mudança). (Informação verbal)

47.

É a primeira reunião que participo e que estou gostando muito, quero saber se o trabalho que vem sendo desenvolvido vai continuar e se a conversa que estamos tendo vai ser efetivada, vai ter resultados, continuidade? (Informação verbal)

48.

O objetivo da reunião é discutir com todos os segmentos da EJA as possibilidades, as mudanças e as permanências e os resultados vão depender e ser decidido pela coletividade (Informação verbal)

49.

As falas relacionadas sinalizam um imbricado e rico contexto de reflexão sobre

a práxis realizada na escola. Os profissionais envolvidos interpelam-se sobre

46

Informação concedida por Marcos, presidente da associação de moradores, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 47

Informação concedida por Marcos, presidente da associação e membro do conselho da escola, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 48

Informação concedida por um pai de aluno e aluno da EJA, em agosto de 2008, no município de Cariacica. 49

Informação concedida por um técnico da SEME, em agosto de 2008, no município de Cariacica.

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os desafios e as contradições que permeiam suas práticas no contexto da

modalidade.

Neste sentido, Freire (2005b, p. 45) diz que precisamos aprender a ler esta

realidade. E ler não significa juntar as letras, é mais que isso, ler é interpretar e

analisar, “ler é reler” qual a direção em que caminha minha comunidade, minha

cidade, meu estado. Paulo Freire (2005b) estabeleceu relações diretas entre

política e educação, práticas escolares e cidadania. Para ele, educação, em

sentido amplo, sempre foi ato político. É necessariamente esta concepção

política de conhecimento que pode conduzir à cidadania.

Assim, a Educação de Jovens e Adultos, mais que qualquer outra modalidade

de ensino, está além do ensinar as letras. No contexto complexo explicitado –

das relações desenvolvidas na escola – precisa ser um espaço onde se possa

realizar essa “leitura do mundo”, para que, de fato, se desenvolvam iniciativas

que possam conduzir à superação dos desafios postos; o grupo, no exercício

do diálogo, já se interroga e constrói as saídas e negociações.

Portanto, defendemos que o futuro das práticas pedagógicas em EJA depende

do reconhecimento de que é herdeira e do rico legado da Educação Popular,

legado este que necessita ser reinventado na escola. Embora estejamos

vivendo um outro momento histórico, os dados coletados confirmam que, para

grande parte dos profissionais, a EJA continua sendo um ensino de segunda

mão, um ensino menor e destinado às camadas mais pobres da população.

Desta forma, a luta por uma escola efetivamente popular e democrática,

continua sendo o horizonte a ser alcançado.

A seguir, continuamos dialogando com as questões emergidas na fala dos

educadores de EJA, agora na relação direta com alunos e alunas na escola.

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7.3 DA PERSPECTIVA DOS(AS) EDUCADORES(AS) NA RELAÇÃO COM

OS SABERES DOS EDUCANDOS E DOS SENTIDOS DA FORMAÇÃO DE

EDUCADORES(AS) PARA A MODALIDADE EJA

No tópico anterior foram feitos registros das discussões realizadas no contexto

da “roda de conversa”, ou seja, num espaço de distanciamento das relações

produzidas na escola. Acreditamos que este distanciamento e a dinâmica

promovida proporcionavam às pessoas envolvidas condições para

problematizarem e refletirem sobre sua prática imersa no cotidiano da escola.

Neste contexto mais específico, os recortes de situações vividas na escola

apontam para um paradoxo, pois, enquanto coletivos, de forma distanciada,

refletem sobre suas práticas, os profissionais antevêem questões, pensam

sobre as situações do cotidiano e projetam saídas. Contudo, esta mesma

dinâmica se mostra diferente no contexto escolar e nas interações com os

sujeitos alunos e alunas in loco. Na sequência, os acontecimentos que nos

fazem pensar desta maneira.

Agora, nesta parte, o objetivo foi “capturar” as relações estabelecidas in loco,

procurando saber como os(as) educadores(as) lidam com os saberes e

conhecimentos dos(as) alunos(as) da EJA no dia a dia e na dinâmica das

atividades escolares.

Percebemos nas falas dos professores um incômodo com o silenciamento dos

alunos. De acordo com eles(as), este silencio é recorrente e constitui desafio

em sala de aula. Por isso, insisti em problematizar mais este aspecto, como se

vê a seguir, por meio de alguns excertos de entrevistas.

1ª) ENTREVISTA 50

PERGUNTA: O que fazer com o silêncio observado em nossas turmas? Não

deveríamos mudar o jeito e forma de perguntar? E se partíssemos da

50

Entrevista concedida por uma professora do EJA, em setembro de 2008, no município de Cariacica.

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perspectiva e da realidade do aluno? Ou seja, formular a pergunta a partir do

contexto do aluno e depois ampliar a perspectiva?

Resposta: Há uma concepção cristalizada entre nossos alunos do que seja uma sala de aula: um espaço apenas de receber conteúdos. Observo isso na postura dos alunos de apenas “receptores de conteúdos”. Eles têm esta concepção não só do conteúdo, mas da escola como todo. Qual a experiência de vida deles? A padaria, o quintal de casa. Talvez eles queiram uma aula diferente, um professor animador cultural, mas o mercado de trabalho não dará a eles esta flexibilidade de escolha. Há uma falta de perspectiva do nosso público que é reforçada pela escola quando trabalha a partir da realidade dos nossos alunos, ou seja, a realidade de mais pobreza, do mangue... sobre esta realidade eles já dão aula até para biólogo, a escola está enclausurando os alunos no próprio ambiente deles. Por exemplo, levei para a praia de Camburi alguns alunos, tínhamos alunos de 16, 17 e 18 anos que não conheciam praia. Aquele ambiente impactou alguns alunos, eles ficaram impressionados observando, Penso que é isso o que a escola deveria fazer: mostrar outras realidades, para criar no aluno o desejo de “sair” de sua realidade, o desejo de superação.

2ª) ENTREVISTA 51

O professor pontua que é a primeira vez que está trabalhando com a EJA e

relata:

Resposta: Combinamos de trabalhar em sala de aula a “cartilha/manual dos trabalhadores” e fazer deste trabalho um projeto. No entanto, apenas iniciei as discussões na sala de aula, pois os alunos não participaram da forma como imaginei, ficaram calados, olhando para mim [...]. .

PERGUNTA: Você já pensou sobre isso? O que poderia provocar esta atitude,

numa temática que é tão próxima do universo do nosso aluno? Já se perguntou

sobre os aspectos que podem causar este silenciamento?

Resposta: Eu até criei uma imagem para conseguir entender isso. Eles são espigas de milho porque a gente descasca, descasca... e quando acha que está chegando no caroço (o conhecimento) tem mais e mais cascas [...].

51

Entrevista concedida por um professor do EJA, em setembro de 2008, no município de

Cariacica.

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PERGUNTA: E qual seria a sua função e da escola neste processo?

Resposta: A escola teria que se constituir um espaço para dinâmicas entre os alunos, um espaço de discussão que configura a própria EJA. O espaço que o professor ocupa é muito pouco e curto e isso seria função do pedagogo. O professor é o responsável pela “técnica”, os conteúdos, não dá para parar a aula e fazer dinâmica, nós não temos tempo para isso.

3ª) ENTREVISTA 52

Ainda sobre o silenciamento das turmas quanto aos conhecimentos e temáticas

abordadas, um professor diz:

A ansiedade com os conteúdos não seria só nossa? Percebo que a informação que trabalhamos em sala só é elaborada depois. Eles não falam porque têm medo de falar coisa errada, medo do ridículo. Nós, como representantes da burguesia, estamos impregnados dos nossos valores e os nossos valores são os socialmente valorizados. Eles vêem para a escola porque ainda existe a ideia que o conhecimento escolar faz “subir na vida”. Então, estar na escola é um ritual que eles já entenderam que é precisam para assimilar os conteúdos, mas, na verdade eles não querem saber dos conteúdos porque não se ganha dinheiro com isso. Isso é valor da burguesia branca, nós passamos por este ritual, somos este ritual.Ficar em silêncio ou não ficar em silêncio é simplesmente uma forma de lidar com o ritual.

Refletindo sobre a questão, uma professora que acompanha a entrevista

revela: “Comigo, eles [os alunos] não ficam silenciosos. Trabalho o assunto:

água, alimentação, DST... Eu é quem tenho dificuldade em falar...” (Informação

verbal)53.

Tentando dialogar com essas situações, defendemos que a formação política é

um constante desafio para quem se propõe ser educador, seja esse desafio

formal ou popular. O aspecto político é colocado como elemento de formação

que caracteriza o sujeito como agente da sua história. Dessa forma,

52

Entrevista concedida por um professor do EJA, em setembro de 2008, no município de Cariacica. 53

Informação concedida por uma professora do EJA, em setembro de 2008, no município de Cariacica.

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percebemos que a mesma escola e os mesmos profissionais que sustentam

uma discussão política e de viés emancipatório têm dificuldades para fazê-lo

quando esta se realiza com foco na própria prática.

Na escola, os espaços coletivos tendem a ser preenchidos com práticas

individualizadas, o que vai desenhando a docência no dia a dia como

protagonização de um personagem criado para sobreviver às tensões de “mais

um dia”, aos dilemas e desafios impostos pelas práticas e relações no contexto

da escola, que, de fato, vem sendo chamada a exercer inúmeros papéis que

não apenas o de ensinar.

Paralelo a isso, o campo da EJA passa por um momento de (re)configuração, o

que acentua a necessidade por formação. Ao mesmo tempo constata-se oferta

insuficiente desta formação, seja a realizada na universidade ou a oferecida

pela via da formação continuada e em serviço na SEME. Esta, mesmo

acontecendo com regularidade no município apontado, agrega um número alto

de participantes, o que vem inviabilizando trocas mais consistentes como a que

aconteceu na “roda de conversa”. As rodas, com um número mais reduzido de

pessoas, possibilitaram mais trocas entre os participantes.

Portanto, a experiência da “roda de conversa”, e a (con)vivência na escola

sinalizam questões que apontam o tamanho das contradições que enredam os

profissionais da EJA em sua prática cotidiana, estejamos nós na SEME ou nas

escolas. Há um tipo de saber e de intenção que a fala expressa e outro que a

ação encarna. Essa dicotomia está instaurada nas ações pedagógicas e no

movimento desenhado pela EJA no sistema e na escola gerando conflitos de

várias naturezas, mas também apontando a necessidade de superação.

7.3.1 PARA AVANÇAR O DEBATE É NECESSÁRIO TRANSFORMAR O

OLHAR

A possibilidade de ampliar o diálogo passa por um novo olhar que necessita ser

(re)construído e que (re)conheça jovens e adultos em tempos e percursos de

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jovens e adultos. Desta forma, uma vez problematizados “quem são”, “o que

querem”, “quais suas expectativas” com a escola e o que representam,

enquanto coletivos, estas pessoas que compõem nossas turmas de EJA, uma

prerrogativa é esta transformação do olhar.

As discussões realizadas nas rodas de conversa indicaram que a escola vem

sentindo necessidade de se colocar neste movimento. Contudo, imersos na

prática e nas situações concretas, os(as) educadores(as) distanciam – se

daquela perspectiva mais crítica adotada.

As pessoas que frequentam a escola na EJA precisam ser vistas como sujeitos

sociais e não simplesmente como “alunos” ou qualquer outra categoria

generalizante. A escola e os profissionais que desejam realmente estabelecer o

diálogo e fazer educação de jovens e adultos necessitam dar-se conta disso,

ou perpetuarão o muro das lamentações em que veem se constituindo nossas

escolas por dentro das práticas.

É preciso vê-los, a alunos, alunas e a EJA, para além das carências e lacunas

sociais e do percurso escolar, não como continuidade da escolarização perdida

na idade própria. A EJA não pode se restringir a uma segunda oportunidade de

escolarização. Arroyo defende que

Essa mudança de olhar sobre os jovens e adultos será uma pré-condição para sairmos de uma lógica que perdura no equacionamento da EJA. Urge ver mais do que alunos ou ex-alunos em trajetórias escolares. Vê-los jovens – adultos em trajetórias humanas. Superar a dificuldade em reconhecer que, além de alunos ou jovens evadidos ou excluídos da escola, antes do que portadores de trajetórias escolares truncadas, eles e elas carregam trajetórias perversas de exclusão social, vivenciam trajetórias de negação dos direitos mais básicos à vida, ao afeto, à alimentação, à moradia, ao trabalho e à sobrevivência (2005, p. 24).

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Mas todas estas questões implicadas na transformação do olhar se deparam

com um dado marcante na nossa sociedade: o olhar negativo sobre as classes

populares, “um traço da nossa cultura elitista”. Traço este presente nas nossas

escolas, representado nas falas dos professores entrevistados e que se faz

necessário superar, caso se queira avançar no debate exigido pela modalidade

EJA atualmente.

7.3.2 A TRANSFORMAÇÃO DO OLHAR POLITIZA A EDUCAÇÃO E OS

EDUCADORES DA EJA

A reflexão é uma prática necessária ao professor, especialmente quando aceita

uma maneira de busca, de pesquisa, de avaliação e de aprimoramento

permanente. A transformação do olhar que discutimos insere-se nesta

dinâmica política e pedagógica de entender a EJA de forma mais totalizante e

positiva, reconhecendo a importância das classes populares, como detalhado

nas entrevistas com alunos e alunas, em que cada percurso registrado é um

percurso emancipatório.

O olhar politizado acredita na potencialidade das populações empobrecidas.

Segundo Freire, “não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o

desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o

diálogo com ele, de que resulta o saber crescente de ambos” (2005, p. 28). “E

crer no povo é a condição prévia, indispensável à mudança revolucionária. Um

revolucionário se reconhece mais por esta crença no povo, que o engaja, do

que por mil ações sem ela” (p.53).

Freire observa (2005, p. 78) que esta politização é possível por meio da ação

de problematizar a realidade. Pontua que problematizar um pensamento é

pensa-lo para além dele mesmo e que a educação problematizadora rompe

com os esquemas verticais característicos da educação bancária, diz que o ato

de problematizar não seria possível fora do diálogo.

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Então, não seriam este olhar e prática problematizadora determinantes à

(nova) reconfiguração do campo da EJA? Isso demanda escolha e clareza,

com a qual os educadores devem se perguntar para quem e em benefício de

quem estão trabalhando, quando a suposta neutralidade é uma alternativa

conveniente para se dizer que se está do lado das camadas historicamente já

beneficiadas.

Ao longo de toda sua obra, Freire argumenta sobre a impossibilidade de

práticas educativas neutras. Talvez seja essa uma de suas ideias mais

preciosas: a desconstrução da supremacia do saber escolar, ao mesmo tempo

em que realiza um chamamento aos educadores e educandos ao engajamento,

à militância comprometida com o diálogo no mundo e com o mundo.

Portanto, o que significa ser educador de jovens e adultos do ponto de vista da

politização? Miguel Arroyo confirma que esse educador deve

[...] incorporar a “herança acumulada” da modalidade nas lutas pela emancipação dos sujeitos, e que, historicamente, [...] esse educador era militante, ensinava a ler, ensinava a escrever, mas ia além do somente alfabetizar, ele não cabia no esquema escolar de alfabetizador (2006, p.20).

Pertinente é a reflexão oportunizada por Gallo ao citar Antonio Negri, quando

este afirma que já não vivemos um tempo de profetas, mas, sim um tempo de

militantes. Segundo o filósofo,

[...] hoje, mais importante do que anunciar o futuro, parece ser produzir cotidianamente o presente para possibilitar o futuro [...] deveríamos estar nos movendo como uma espécie de professor – militante, que, de seu próprio deserto, de seu próprio terceiro mundo, opera ações de transformação, por mínimas que sejam (2003, p. 71-72).

Desta forma, utilizando das ideias de Gallo e Negri, podemos pensar nas

biografias necessárias, reinvindicadas e coerentes com a trajetória da EJA.

Nesse sentido,

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O professor seria aquele que procura viver a miséria do mundo, e procura viver a miséria de seus alunos, seja ela qual miséria for, porque necessariamente miséria não é apenas uma miséria econômica; temos uma miséria social, temos miséria cultural, temos miséria ética, miséria de valores. [...] O professor militante seria aquele que, vivendo com os alunos o nível de miséria que esses alunos vivem, poderia, de dentro desse nível de miséria, de dentro dessas possibilidades, buscar construir coletivamente (GALLO, 2003, p. 73).

Em toda sua produção, Freire também referia-se à militância na educação.

Dizia sempre que “educação é um ato político”, e, portanto, não se trava

individualmente. O que não devemos confundir com a imposição, porque, “o

educador dialógico não tem é o direito de impor aos outros sua posição. Mas

[...] nunca pode se calar a respeito das questões sociais, não pode lavar as

mãos em relação a esses problemas (207). Referia-se ainda que os

educadores não têm “o direito de impor aos outros a sua posição”:

[...] a ideologia dominante marca sua presença na sala de aula, em parte tentando convencer o professor de que ele deve ser neutro, a fim de respeitar os alunos. Esse tipo de neutralidade é um falso respeito pelos estudantes. Ao contrário, quanto mais me calo sobre concordar ou não concordar, em respeito aos outros, mais estou deixando a ideologia dominante em paz (1986, p. 206 e 207)

Portanto, militância também pressupõe “postura vigilante contra todas as

práticas de desumanização”. Pressupõe escolha, valores, opções,

engajamento, sonho e ação coletiva que pode e deve ser realizada nas

diferentes frentes do cotidiano. Desta forma, o trabalho de formação da

“consciência militante” tem na Educação de Jovens e Adultos condições

históricas e políticas favoráveis porque a EJA é um campo de luta pela

conquista de direitos negados. Assim, retomamos a ideia de que

[...] quando falamos de jovens e adultos populares, o direito à educação está sempre entrelaçado nos outros direitos. Os jovens e adultos sempre que voltam para a escola, voltam pensando em outros direitos: o direito ao trabalho, o direito à dignidade, o direito a um futuro um pouco mais amplo, o direito a terra, o direito à sua identidade negra ou indígena. Esse traço é muito importante, a educação de jovens e adultos nunca aparece como direito isolado, sempre vem acompanhada de lutas por outros direitos (ARROYO, 2006, p. 29).

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É neste sentido que a militância e a formação de militantes da EJA é assumida,

a despeito das polêmicas produzidas por aqueles e aquelas partidárias de uma

“educação neutra”, que veementemente negamos. É nessa perspectiva de

militância que acreditamos: aberta e inconclusa, porém sempre

problematizadora da realidade e das possibilidades de intervenção política,

propulsora de aprendizagem contínua na construção das possibilidades de

emancipação e que necessita ser travada em diversos espaços – materiais,

simbólicos e conceituais.

7.4 NA PERSPECTIVA DOS EDUCANDOS E DAS EDUCANDAS:

RESISTÊNCIA, AUTORIA E EMANCIPAÇÃO AQUI E AGORA

Concluiremos a apresentação dos dados pela escuta da voz dos sujeitos

alunos e alunas da EJA. A interação com os alunos na escola permitiu que

conhecêssemos várias biografias. E foram muitas! Como critério para registro,

destacamos a diversidade etária/ de gênero e trazemos alunos nascidos nas

décadas de 1950 (um aluno), 1960 (um aluno), 1970 (um aluno e uma aluna),

1980 (uma aluna), 1990 (um aluno).

Quanto aos alunos e alunas mais novos(as), ou seja, geralmente aqueles e

aquelas com idade de 15 a 24 anos, observamos a enorme dificuldade da

escola em transitar pela cultura juvenil, e a dificuldade também dos alunos em

dialogar com as atividades realizadas na escola, que nem sempre levam em

consideração as características típicas deste tempo de vida. Então, com estes

optamos por oficinas coletivas e encontros para discussão de temáticas atuais,

que fossem de seu interesse e mais próximo de seu universo cultural, material

que será discutido ao longo deste texto.

Daniel Pereira Data de Nascimento: 25/10/1954 (55 anos) Profissão: pedreiro Eu era do interior da Bahia, morava na roça e não tinha condições de estudar. Nunca fui à escola, no interior era difícil chegar até a escola que ficava muito longe da casa da gente. E a pessoa tem que ter estudo, tem que pelo menos saber assinar o nome, porque colocar o dedo na tinta é muito ruim. Eu não precisei da escola para arrumar emprego e criar minha família, tenho emprego e ganho bem, mas é

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necessário a pessoa saber ler, escrever. A escola é importante para a gente. Aqui eu faço amizade e a coligação com as pessoas é muito importante (Informação verbal)

54.

Odilon Silva Data de Nascimento: 28/07/1964 (45 anos) Profissão: motorista instrutor Procurei a escola porque a empresa fez pressão. Tenho até a 4ª série e eu e quem mais que não tem o 2º grau tá correndo o risco de ser mandado embora. Já tenho 16 anos de firma e disse para eles que eu tô correndo atrás, mas tem que ter paciência. Eu uso muito a escrita no meu trabalho, faço a seleção dos motoristas candidatos, escrevo nas fichas que vão para o RH. Hoje mesmo vi um erro de escrita que tinha cometido na semana passada e corrigi, a escola está me ajudando, antes eu não conseguia ver estes erros, não percebia (Informação verbal)

55.

Maristela Almeida (38 anos) Data de nascimento: 14/07/1971 Profissão: doméstica Eu vim procurar na escola muito português e matemática, porque para ser uma doméstica é o que eles mais exigem. Arte é para criança e adolescente. Ciências e geografia e o restante a gente aprende fora. Se quiser ir para frente a gente tem que fazer esforço. A gente aprende tudo na prática. Nos cursos aí fora não é assim? No curso de autoescola e enfermagem eles passam o básico, o técnico aprende o básico e depois corre atrás do resto. Eu quero aprender português e matemática, tenho que aprender porque eles me passaram quando era nova para a quinta série sem eu saber ler. A gente não aprende tudo na escola, quem fala que aprende tudo na escola tá mentindo. Você aprende é por você mesmo, se você tiver interesse. É um pensamento meu. Voltei para a escola por vergonha, porque minha patroa assinou um cheque e deu para mim preencher, não sei preencher cheque e tive que chamar os filhos dela. Então pensei: “eu quero ser dependente de mim mesma para qualquer coisa”. A gente só tem a gente neste mundo. Quero ir para a auto escola tirar carteira. Sem estudar como vou conseguir comprar meu carro? Estou lutando sozinha. Mas se eu consegui construir minha casa sozinha e Deus, mesmo sendo enganada pelos pedreiros que acham que só porque sou mulher não entendo de obra, se eu consegui construir minha casa, o quê mais não consigo nesta vida? (Informação verbal)

56.

João Batista Alves da Silva Data de Nascimento: 18/03/1972 (37 anos) Profissão: gari Estudei no interior, na roça, quando completei 12 anos comi uma banana marmelo, chamada 3 quina junto com mamão maduro do sol que me fez mal, me causou um problema, que se não fosse o chá margoso de macaé que minha mãe me deu eu tinha morrido. Parei de estudar porque a partir daí não aprendi mais nada. A escola era difícil e longe de casa, ia a pé ou em condução num carro muito ruim para carregar a gente.Também tinha a colheita de café e eu tinha

54

Informação concedida em outubro de 2008, em Cariacica. 55

Informação concedida em outubro de 2008, em Cariacica. 56

Informação concedida em novembro de 2008, em Cariacica.

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que ajudar meu pai na roça com o serviço. Meu pai reclamava muito e eu ficava com dó dele. Hoje, depois de pelejar muito com alguns patrões, consegui um chefe que fez um horário para eu conseguir chegar no horário na escola. E hoje estou aqui. Estou empregado, mas quanto mais estudo tiver melhor. A escola vai oferecer um futuro melhor deste que eu tenho. Se eu entrasse na firma que eu trabalho nos dias de hoje eu não ia conseguir, porque hoje eles estão fichando a partir do 1º grau. Hoje fui eleito delegado do orçamento participativo no meu bairro, se for preciso ir para a reunião eu vou porque aqui na escola eu tenho ajuda para me desenvolver. Como delegado do orçamento eu tenho que falar, dar opinião, acompanhar as obras e o andamento do serviço, se eu não tenho estudo como vou conseguir falar e conversar com as empreiteras e o pessoal da prefeitura? Emprego é só pelo estudo, sem estudo a pessoa fica isolado, não tem como correr atrás de nada. Tudo que a gente faz na escola ajuda a gente. Quando não estava estudando não sabia de nada disso, nem para a igreja tinha vontade de ir, achava tudo difícil, era dormir. E hoje, graças a Deus, sobra tempo para tudo. Agora ta tudo bom, trabalho, venho para a escola, vou à igreja (Informação verbal)

57.

Joana Silva (23 anos) Data de nascimento: 08/ 10/1985 Profissão: balconista Morava no nordeste, no interior da Paraíba, a escola ficava longe. A gente tinha que sair de casa às 10 horas da manhã, andar 9 quilômetros até o lugar onde o ônibus passava para pegar a gente e depois o ônibus ainda rodava mais 10 quilômetros até chegar na escola. Isso todo dia, faça sol ou chuva... Às vezes o ônibus quebrava e a gente tinha que fazer todo o caminho a pé... E era muita, mas muita poeira mesmo, e eu tinha um problema respiratório, e com toda aquela poeira e sol foi só se agravando e não pude mais andar para pegar o ônibus. O jeito foi largar a escola. Agora morando aqui na cidade, a facilidade é imensa e não deixo de estudar de jeito nenhum, ano que vem já termino a 8ª série e, se Deus quiser, vou fazer o ensino médio e vou até a faculdade. Os meninos e essas meninas também, que sempre moraram perto de tudo, não sabem o que é dificuldade, por isso não dão valor e fazem toda essa bagunça. A gente fica até meio desanimada, mas não vou desistir não (Informação verbal)

58.

Evaristo do Nascimento (26 anos) Data de nascimento: 20/04/ 1993 Profissão: gari Acordo todos os dias 4 e meia da manhã, me arrumo e fico esperando o caminhão de lixo. Corro atrás do caminhão 40 quilômetros por dia atirando os sacos de lixo, já me acostumei com o mal cheiro mas estou correndo atrás de uma coisa melhor. Trabalho até 2 e meia no caminhão, depois vou para a auto escola, estou tirando carteira de moto e carro e quero fazer o curso de vigilante. A escola está me ajudando nos meus objetivos e mesmo cansado

57

Informação concedida em novembro de 2008, em Cariacica. 58

Informação concedida em novembro de 2008, em Cariacica.

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venho. Tem dia que dá 9 horas e estou dormindo na sala em cima do caderno mas penso no meu objetivo, lavo o rosto e acordo. Essa meninada nova que tá aí não sabe o tempo que tá perdendo, vão descobrir depois (Informação verbal)

59.

Os relatos destes alunos e alunas mostram que ler e conversar sobre

educação de adultos não é suficiente. É preciso entender, conhecer

profundamente, pelo contato direto, a lógica do conhecimento popular, sua

estrutura de pensamento em função da qual a alfabetização ou a aquisição de

novos conhecimentos tem sentido.

Estes são sujeitos que estiveram fora da regularidade do ensino, mas que

possuem conhecimentos, experiências educativas e aprendizagens que devem

servir como pontos de partida para novas aprendizagens quando estes

retornam à escola. Aspectos que, na prática, os profissionais da EJA parecem

esquecer. O desejo de superação e as maneiras de concretizar projetos de

vida estão registrados nas falas que contam da caminhada e conquista da

emancipação pretendida por alunos e alunas.

Portanto, de todo o material produzido, recortado e exposto até aqui podemos

extrair mais alguns elementos para alimentar a reflexão necessária para a atual

(re)configuração da EJA no contexto escolar. Assim, constatamos que a

maioria dos alunos, mesmo os mais jovens, estão engajados em dinâmicas

emancipatórias e buscando ampliação do exercício da cidadania, a própria

atitude de retornar a escola significa, na fala de muitos, um passo a mais na

decisão que tomaram de tornarem-se, cada vez mais, sujeitos da própria vida.

Este dado contrapõe-se com a atitude e fala de alguns educadores, nas falas

anteriormente descritas. Ainda, uma outra questão se fez ver quanto aos

alunos mais jovens. De fato, são muitos os adolescentes na escola, mas

aqueles que se colocavam às margens das atividades propostas, pressionando

a escola por alternativas metodológicas e curriculares, representavam

59

Informação concedida em novembro de 2008, em Cariacica.

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aproximadamente 10% do público que freqüenta a escola com regularidade.

São fatos que interpelam o coletivo, desde que estes queiram ouvir.

7.4.1 A PLATAFORMA DO DIÁLOGO: QUEM SÃO ESTES ALUNOS E

ALUNAS

Para conhecer os(as) alunos(as) é necessário interessar-se, perguntar,

dialogar com cada educando e educanda, sob o risco de falarmos de histórias

e sujeitos abstratos. Quando conversamos com estes alunos(as) e os

escutamos foi impossível não se permitir sensibilizar por suas trajetórias e

aprender sobre ser mais gente e educador(a), consequentemente repensar

didáticas e metodologias das aulas a partir das vicissitudes experienciadas por

estes alunos(as). A partir destas experiências temos a chance de desconstruir

ideias pré-concebidas a respeito de jovens e adultos populares.

O ponto de partida da pergunta – como dispositivo – sobre quem são esses

jovens e adultos, se faz uma das estratégias. São alunos em diferentes faixas

etárias e distintos níveis de conhecimento e maturidade, que foram

historicamente excluídos da educação formal, mas que trazem consigo a

experiência da vida e que veem na escola a possibilidade de reconstruir e

validar seus conhecimentos.

Reconhecer as diferenças e olhar para a diversidade presente nas salas de

EJA é o primeiro passo no sentido da reparação da dívida social com aqueles

que têm direito à educação oficial pensada enquanto direito de todos, mas que,

por diversos fatores, lhes foi negado (PARECER CEB 11/2000).

O “estar sendo” dos alunos e alunas da EJA foi e é conformado dentro da

lógica histórica da desigualdade estrutural deste país de quem as camadas

populares são vítimas. Na EJA está o povo, classe desde sempre submetida

aos ditames históricos de um país forjado entre os interesses das elites

agrárias e da burguesia nacional, uma sociedade cuja sorte tem sido guiada

por interesses coloniais e neocoloniais.

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Desta forma, não é novidade que a conformação de nossa sociedade e o que

denominamos genericamente povo são as pessoas que ocupam nossas salas

de aula na Educação de Jovens e Adultos – historicamente um povo

atomizado, despersonalizado, anônimo, subtraído, cujas iniciativas de

resistência às elites do país insistem em manter no esquecimento.

Arroyo afirma que a EJA se constitui no povo e para o povo. Portanto, se a EJA

nomeia jovens e adultos pela sua realidade social – oprimidos, pobres, sem

terra, sem teto, sem horizonte, repetentes, defasados, aceleráveis,

analfabetos, subcidadãos, desclassificados, candidatos à suplência,

discriminados, marginalizados, evadidos ou com problemas de frequência e

aprendizagem – ela deixa de fora dimensões de sua condição humana que são

fundamentais para experiências de educação.

Como (re)nomear os educandos populares? Compreender que a exclusão tem

rosto, digital, endereço e biografia é fundamental para compreender que a

biografia dos sujeitos deve atrelar-se a um projeto de sociedade nem sempre

discutido/ assimilado pelos processos de escolarização na EJA “normatizada”.

Esta é a questão primeira, o foco central de qualquer proposta pedagógica

para se pensar a EJA, do contrário a diluiremos nas modalidades

escolarizadas de ensino fundamental concebido como referência e ideal.

A maioria marginalizada constitui coletivos de adolescentes, jovens, adultos e

idosos marcados pela exclusão. Mas quem são estas identidades coletivas

formadas por pessoas com biografias específicas, como as que relatamos

anteriormente? Estes jovens e adultos repetem histórias de negação dos

direitos, as mesmas de seus pais, avós, de sua raça, gênero, etnia e classe

social. Será que a escola as (re)conhece?

Uma das ações para a (re)configuração da EJA virá deste reconhecimento das

especificidades de seus sujeitos coletivos, pois “quando se perde essa

identidade coletiva, racial, social, popular dessas trajetórias humanas e

escolares, perde-se a identidade da EJA, que passa a ser encarada como

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mera oferta individual de oportunidades pessoais perdidas” (ARROYO, 2005,

p. 30). A dimensão da modalidade como coletivo histórico não pode se perder.

Portanto, não basta a conquista do sistema escolar, com a inclusão da EJA no

FUNDEB. Será necessário que a escola faça uma escolha e se disponha a

conhecer quem são estes sujeitos, suas trajetórias de vida e sua herança de

direitos negados. Só assim poderá viabilizar uma articulação com as

trajetórias escolares e tornar mais prazerosos estar na EJA e os momentos

vividos à noite na escola. E isto, indubitavelmente, é uma decisão a ser feita na

perspectiva de cada unidade de ensino.

7.4.2 DE ONVE VEM A (IN)VISIBILIDADE DOS ADOLESCENTES E JOVENS

DA EJA?

Na EJA, mais que nos outros níveis de ensino, o coletivo se auto-organiza

facilmente. Na escola, a observação da forma como os alunos estabelecem

suas relações, como se organizam e se agregam já traz embutida a direção

que o trabalho pode e deve tomar, principalmente com os mais jovens –sujeitos

que se confrontam de forma mais aberta com as estruturas existentes de poder

e não se conformam às regras escolares.

Portanto, tentar compreender “quem são estes alunos” interpela sobre as

trajetórias de adolescentes e jovens que na escola pesquisada já representam

maioria nas salas de aula de 3º e 4º ciclo. Curioso é que estes alunos

constituem “o grupo”, dentro do coletivo de alunos da EJA, que mais faz

barulho e movimenta a escola porque também desafiam as regras

estabelecidas – sendo assim, neste aspecto são visíveis. Contudo, também

são as pessoas que mais a escola “faz de conta” que não vê, são, portanto, os

invisíveis, sua visibilidade vem como “o problema a administrar e a tolerar” e as

dimensões culturais típicas de um tempo de vida e um modo de ser

adolescente e jovem raramente são considerados nos espaços tempos

escolares.

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Durante muito tempo a juventude foi vista como um tempo de preparação para

a vida adulta. Nas últimas décadas, vem se revelando como tempo humano,

cultural, social, cultural, identitário e que se faz presente nos diversos espaços

da sociedade, um tempo que traz suas marcas de socialização e sociabilidade,

de formação e intervenção. Estado e sociedade, pressionados pelas

estatísticas que apontam os altos índices de violência onde as principais

vítimas são os jovens, vêm reconhecendo a juventude como um tempo de

direitos humanos e “a urgência de elaborar e implementar políticas públicas da

juventude dirigidas à garantia da pluralidade de seus direitos e ao

reconhecimento de seu protagonismo na construção de projetos de sociedade,

de campo ou de cidade” (ARROYO, 2005, p. 21).

Pensar a EJA na perspectiva emancipatória para todos os sujeitos implica

pensar a confluência dessas políticas da juventude e o reconhecimento da

especificidade humana, social e cultural desses tempos da vida como tempo de

direitos. A EJA precisará se aproximar das perspectivas pretendidas pelas

políticas de juventude. A finalidade não poderá suprir carências de

escolarização, mas garantir direitos específicos de um tempo de vida

vivenciado no agora.

A presença marcante destes alunos nas salas de aula no período noturno tem

desafiado educadores e gestores. A convivência, como já pontuado pelos

alunos mais maduros e por professores(as) não está fácil, nem para os jovens

e nem para os demais. Andrade pondera:

[...] o que incomoda o sistema educacional é o fato de que, apesar desses jovens terem todos os motivos compreensíveis para não voltar à escola, a ela retornam, mesmo sabendo dos limites e das dificuldades que lhes são colocados para construir uma trajetória escolar bem sucedida (2004, p. 50).

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Nas oficinas, entrevistas e na convivência com estes jovens, constatamos que

este retorno à escola é marcado mais por iniciativas individuais e solitárias, ou

seja,

[...] é muito mais produto de esforço e mobilização individual do que de um efetivo investimento familiar ou de grupo ou, menos ainda, do próprio sistema educacional, que impõe uma série de barreiras para esse retorno, desde as próprias condições limitadas de acesso até a inadequação de currículos, conteúdos, métodos e materiais didáticos, que, geralmente, reproduzem de forma empobrecida os modelos voltados à educação infanto-juvenil (2004, p. 50).

Na constatação feita por Andrade, existimos pela legitimação do olhar do outro,

e, quando o sistema educacional olha para os jovens com algum respeito, está

dando-lhes a convicção de que têm algum valor. Talvez, aí encerre o início de

um trabalho com este grupo cultural, que tem o direito de retornar e

permanecer na modalidade.

Portanto, frente às estatísticas que apontam a quase totalidade do adolescente

e jovem nas salas de aula de EJA, segundo Carrano é preciso abandonar toda

pretensão de elaboração de conteúdos únicos e arquiteturas curriculares

rigidamente estabelecidas, a aposta e o risco estaria na realização do

inventário permanente das trajetórias de vida, assumindo “toda a radicalidade

da noção de diálogo da qual nos fala Paulo Freire” (2008).

Um jogo que, certamente, envolve a superação da postura da escola, que,

como estratégia de dominação, desqualifica aquilo que a ameaça. Como

exemplo, há a desqualificação das culturas juvenis urbanas: o funk, o rap, as

tatuagens, o grafite, a música alta, a dança de rua, os piercings etc. Estas

manifestações culturais, quando originadas nas classes populares,

amedrontam os profissionais da escola, como se apenas uma determinada

classe, a elite, tivesse direito às manifestações típicas de um tempo da vida.

Assim, a juventude da EJA segue ocupando a escola de forma plural e

extramente desigual, e, apesar das precárias condições de acesso e de

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permanência oferecidas, eles e elas estão construindo formas de aparecer no

mundo, mesmo que por atalhos “espetacularizados” ou por caminhos ditos

“desviantes” (ANDRADE, 2004, p. 53). Está mais que na hora deste público ser

reconhecido nas esferas de poder dentro da escola, que, pressionada, não

pode mais “fazer de conta” de que ele não existe. É tempo de o sistema

educacional enxergá-los e, coletivamente, pensar e propor ações mais

afirmativas e de frente também nos contextos escolares.

Freire (2005, p. 87) dizia que nenhuma “ordem” opressora suportaria que os

oprimidos todos passassem a dizer: “Por quê?”. E os adolescentes e jovens da

EJA estão a nos interpelar o tempo todo com “por quê?”, numa expressão

típica e pertinente deste tempo de vida, mas que vai, infelizmente, sendo

desbotada nas mordaças da conformação, também por meio do aparelho

escolar, principalmente para os jovens mais pobres.

Isso contribui para a morte do espanto e da indignação, e, esta, para a morte

do inconformismo e da rebeldia (SANTOS, 1996 p. 16 e 17) – uma dinâmica

produtora de subjetividades adultas “vencidas”, que mal falam, mal escutam,

mal leem, mal participam, mal (sobre) vivem.

Sobre a multiplicação dos conflitos intraescolares e nas relações escola e

sociedade, Candau diz que vivemos “uma certa sensação de inadequação”,

que vem se acentuando, onde

É possível afirmar que são indicadores de que se está esgotando um determinado paradigma de se conceber e realizar a escolarização. A necessidade de reinventar a escola surge como desejo, projeto e caminho a ser construído (2008, p. 9-10).

Deste modo, de acordo com Santos (1996, p. 17), o objetivo principal do

projeto emancipatório consistiria em recuperar a capacidade de espanto e da

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indignação e orientá-la para a formação de subjetividades inconformistas e

rebeldes. Perguntamo-nos: como a escola se posiciona frente a isso? A

convivência com a escola apontou que o coletivo vem percebendo e tentando

mobilizar-se nesta que é uma tarefa, sobretudo, complexa. Neste sentido, uma

saída seria o trabalho da tradução.

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8 DA TRADIÇÃO ESCOLAR À ESCOLA DA TRADUÇÃO: GERANDO

“INÉDITOS VIÁVEIS” PARA ADOLESCENTES, JOVENS, ADULTOS E

IDOSOS

Uma coisa é um país outra um ajuntamento. Uma coisa é um país, outra um regimento. Uma coisa é um país, outra o confinamento. Uma coisa é um país, outra um fingimento. outra um monumento. outra o aviltamento. Há 500 anos caçamos índios e operários, Há 500 anos queimamos árvores e hereges, Há 500 anos estupramos livros e mulheres, Há 500 anos sugamos negras e aluguéis. Este é um país de síndicos em geral, Este é um país de cínicos em geral, Este é um país de civis e generais. Povo também são os falsários e não apenas os operários, Povo também são os sifilíticos não só atletas e políticos, Povo são as bichas, putas e artistas e não só os escoteiros e heróis de falsas lutas, são as costureiras e dondocas e os carcereiros e os que estão nos eitos e docas. Uma coisa é o povo, outra a fome. Povo não pode ser sempre o coletivo de fome. Povo não pode ser um séquito sem nome. Povo não pode ser o diminutivo de homem. O povo, aliás, deve estar cansado desse nome, embora seu instinto o leve à agressão e embora o aumentativo de fome possa ser revolução. (SANT’ANNA, 1980)

A escola que acolhe, ou deveria, acolher as classes populares foi constituída

nesta sociedade cujas características o poeta mineiro Affonso Romano de

Sant‟Anna descreve, na tentativa de responder à pergunta e ao espanto que a

si mesmo coloca – “Que país é este?”.

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A instituição escolar constituída neste substrato histórico cuja marca é a

desigualdade vem sendo provocada a (re) ver-se, de modo a tornar-se:

[...] nos próximos anos, mais do que um lócus de apropriação do conhecimento socialmente relevante, o científico, um espaço de diálogo entre diferentes saberes – científico, social, escolar, etc. – e linguagens. De análise crítica, estímulo ao exercício da capacidade reflexiva e de uma visão plural e histórica do conhecimento, da ciência, da tecnologia e das diferentes linguagens. É no cruzamento, na interação, no reconhecimento da dimensão histórica e social do conhecimento que a escola está chamada a se situar. Neste sentido, toda a rigidez de que se reveste em geral a organização e a dinâmica pedagógica escolares, assim como o caráter monocultural da cultura escolar precisam ser fortemente questionados. Devem ser enfatizadas a dinamicidade, a flexibilidade, a diversificação, as diferentes leituras de um mesmo fenômeno, as diversas formas de expressão, o debate e a construção de uma perspectiva crítica plural (CANDAU, 2008, p.14).

A afirmação remete-nos aos desafios que se colocam para a reinvenção da

escola e hoje se relacionam de forma mais contundente às articulações entre

igualdade e diferença, entre o currículo prescritivo e as necessidades de

aprendizagem de grupos sociais específicos. Na EJA estas “especificidades”

configuram a modalidade e determinam (ou deveriam determinar) a dinâmica

do trabalho pedagógico.

Durante o processo de pesquisa da Gestão da Educação do município e nas

inserções, tanto na SEME quanto na escola, constatamos que algumas

transformações foram efetivadas. A EJA realizada nos contextos escolares de

Cariacica está inserida nesta dinâmica “entre processos de democratização e

emancipação social” – onde os desafios são multifacetados e algumas

possibilidades viáveis, dentre estas:

A eleição de diretores em outubro de 2010, cumpriu a Legislação

Municipal (Lei de Gestão Democrática nas Escolas) e consolidou a

concepção de democratização e autonomia nas Unidades de Ensino;

Verificamos a ampliação do acesso e da oferta para todos os níveis e

modalidades;

Observamos a ampliação do quantitativo de escolas para a modalidade

EJA;

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Oferta de merenda e uniformes para esta modalidade;

Aquisição de material didático específico;

Foco na realização de seminários e formação específica para os

educadores da EJA;

Ampliação dos espaços de discussão e avaliação, com a implantação da

modalidade EJA por ciclos, no esforço de superar a concepção de

Ensino Regular Noturno Semestral – ERNS, que traz em seu bojo o

legado da suplência.

Contudo, de acordo com os registros das “rodas de conversa”, e na fala

recorrente de educadores, diretores e pedagogos, são apontados que a

apropriação do conhecimento pelas classes populares e as possibilidades

emancipatórias que esta dinâmica poderia gerar ainda é um desafio a ser

superado.

Na EJA, por sua configuração desenhada na lógica da diversidade de sujeitos,

e em biografias cujas especificidades pressionam o coletivo escolar a

outras/novas propostas de trabalho, estas questões têm se tornado cada vez

mais contundentes e acirradas, gerando conflitos de toda natureza, com

recortes singulares e comuns em cada escola.

Os desafios dos técnicos da SEME, dos gestores e educadores que atuam

diariamente na escola não são poucos e não estão constituídos de forma

isolada. Gallo (2008) confirma esta impressão dizendo que

Vivemos hoje, nós que nos dedicamos à educação, qual Édipos diante da Esfinge. Ou deciframos o enigma que o monstro nos coloca ou somos devorados por ele. No processo educativo, ser devorado pela Esfinge é passar a fazer parte do sistema educacional vigente, tornar-se mais uma engrenagem dessa máquina social, reproduzindo-a a todo instante em nossos fazeres cotidianos. A condição de não ser mais uma engrenagem é sermos capazes de decifrar os enigmas que a crise na educação nos apresenta, conseguindo superar este momento de rupturas (2008, p. 15).

Um dos aspectos diz respeito ao próprio conceito de educação e a como a

escola se organiza para materializá-lo. Neste sentido, surge uma antiga

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discussão, ainda não equacionada: qual seria a função da escola na

modalidade EJA? Instruir e transmitir conhecimentos prescritos, ditos “oficiais”,

e que na concepção dos educadores “prepararia” o aluno para cursos,

concursos e o competitivo mercado do trabalho, ou, trabalhar o currículo que

emerge das necessidades formativas destes alunos?

Nossos esforços em pensar nas possibilidades emancipatórias para a EJA

implicam reconhecer o caráter histórico de nossa tradição escolar, que sempre

foi excludente e elitista, discriminando os pobres e seus filhos. As classes

populares sempre encontraram nesta escola que aí está um saber elitizado e

colonizado, que depois se transformou, ele mesmo, e internamente, em saber

colonialista (FÁVERO, 2003).

Com a democratização e universalização do ensino publico, a escola pública se

tornou o lugar da educação oferecida para os subalternos e marginalizados. Os

ricos, migrando para escola particulares, perpetuam sua condição de classe

dominante, de mando e comando ao pagar por serviços educacionais que lhe

conferem e dão condições e ferramentas de ainda mais dominação.

No entanto, enquanto a elite se entrincheira nos condomínios de luxo e gasta

fortunas com segurança, as classes populares e os jovens e adultos da EJA já

perceberam, e faz tempo, um mundo no qual a escola não é o único lugar de

educação. Estas pessoas vêm se socializando e se empoderando nas

centenas de periferias que, quando conhecemos, é só de passagem.

No entanto são estes lugares que vêm educando: são as praças, as igrejas, os

bailes funk, as associações de moradores, os outros movimentos da sociedade

civil e até mesmo o tráfico, que representa hoje, para milhares, a possibilidade

de viver a cidadania negada, nem que seja nas brechas do sistema.

De forma legalizada, ou não, por caminhos “retos”, ou “desviantes”, os

explorados começam a reagir e essa reação apavora as elites, que vêm como

um problema as reivindicações por mudanças. A mudança não interessa às

camadas favorecidas, daí as maquiagens e slogans que não promovem

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mudanças estruturais, é mudar para que “tudo continue como está”. Nesta

direção, cada vez mais, o coletivo escolar vem sendo chamado para refletir

sobre o sentido político de seu trabalho.

Santos diz que a burguesia internacional produz seus discursos e verdades

“dos vencedores”, nos quais o presente é uma eterna repetição: “A ideia da

repetição é o que permite ao presente alastrar ao passado e ao futuro,

canibalizando-os” (1996), ou seja, colaborando para que as coisas

permaneçam como são.

É neste quadro que se arrasta e consigo uma escola pública cuja tradição é ser

improdutiva, mas produtiva para o sistema econômico-social vigente

(FRIGOTTO, 2001), que a transformação e a emancipação social necessitam

ser pensadas. Porque de forma lenta, porém contínua, nas periferias de nossas

cidades um vulcão social está em atividade. Portanto, a modalidade EJA

oferecida na escola pública precisa (re) inventar-se, não como escola da

tradição, da repetição, da reprodução, mas como escola da tradução das

culturas que nela transitam.

A EJA desde sempre foi o campo onde as desigualdades sociais estão mais

concentradas e foi sempre chamada a se constituir nesta “escola da tradução”

devido às especificidades de seus sujeitos – o que já foi um dia, com a

Educação Popular, e pode voltar a sê-lo na reinvenção deste legado que

contém um olhar e uma metodologia de fazer educação com as classes

populares.

Penso que um passo inicial seria gestores e educadores termos a clareza de

onde vem o viés daquilo que pretendemos e realizamos na modalidade. Ou

seja, nas nossas escolas buscamos fazer Educação Popular, de inspiração

freiriana e emancipatória, ou, ainda reproduzimos a lógica do Ensino Supletivo,

instituído no Brasil por meio da Lei nº 5692/71, a partir da década de 1970?

Sabe-se que o Governo Militar reprimiu direta e violentamente pessoas e

grupos que atuavam nos movimentos de Educação Popular. A recomposição

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deste movimento somente aconteceria posteriormente, de forma gradativa e

fora do aparelho do Estado.

Desta forma, o Ensino Supletivo foi instituído pelo Estado autoritário no período

pós 1964 e organizado, de acordo, com Haddad (1987, p15), para suprir as

necessidades do modelo capitalista gestado. A nova composição de forças no

poder produziu mudanças no campo das políticas sociais e, em especial, no

campo da educação de adultos, já que seria incompatível a proposta de um

grande país com baixos índices de escolaridade.

Portanto, Segundo Haddad (p 20), o Ensino Supletivo “atende ao objetivo

prioritário de formação de recursos humanos para o trabalho” e viria cumprir as

funções de suplência, que objetivava “suprir escolarização” e a aprendizagem e

formação metódica no trabalho, sem a preocupação com a formação geral.

Este aspecto dual ainda permeia as práticas na EJA e a pesquisa sinaliza a

necessidade dos coletivos escolares discutirem sobre qual desses legados

estariam impulsionando o trabalho realizado – o legado da Educação Popular

ou do Ensino Supletivo? O que está sendo tomado como referencia nas

práticas cotidianas?

Como equacionar esta tensão no âmbito da prática pedagógica efetiva nas

escolas? Na elaboração de um projeto político pedagógico? Nos objetivos,

conteúdos e metodologia de ensino selecionados? Na política de formação de

educadores (as) de EJA? Nas relações estabelecidas com alunos e alunas?

Avançar na política de EJA no município pesquisado implica considerar estes

aspectos às necessidades dos sujeitos adolescentes, jovens, adultos e idosos

que ocupam a escola e no aproveitamento da experiência de vida de cada

aluno e aluna.

A efetivação desta proposta pedagógica e política não pode ser creditada a

apenas um protagonista, é de responsabilidade coletiva: gestores e técnicos da

SEME, gestores e educadores que atuam mais diretamente na escola,

lideranças comunitárias, comunidade, alunos e alunas, universidades,

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pesquisadores, e trato adequado à formulação de políticas de formação de

educadores (as) de EJA.

É uma tarefa complexa. A escola “da tradição”, representada pelos parâmetros

do Ensino Fundamental, ainda é o referencial para a maioria dos educadores

da EJA do município de Cariacica. Nesta pesquisa contraponho esta realidade

com a possibilidade do “trabalho da tradução”. Sobre o trabalho da tradução,

Bauman (2000) considera que

Longe de ser um passatempo específico de um grupelho de especialistas, a “tradução” está entrelaçada à vida cotidiana e é praticada por todos diariamente, a todo o momento. [...] A tradução está presente em cada encontro comunicativo, em cada diálogo. E deve ser assim porque a polifonia não pode ser eliminada do modo como existimos, o que equivale a dizer que as fronteiras que estabelecem sentidos continuam a ser traçadas de forma dispersa e descoordenada, à falta de um departamento cartográfico central e de uma versão oficialmente impositiva dos mapas de reconhecimento militar (2000, p. 203).

Nos conceitos freirianos de humanização, comunhão, descodificação,

incompletude de culturas e radicalidade dialógica (FREIRE, 2005) já estavam

inseridos as dimensões da tradução. Desta forma, defendo a didática da

tradução naquela potencialidade política e ideológica desenvolvidas por Freire

e não como “nova linguagem pedagógica” típica de um tempo e forjada como

mais um mecanismo de escamoteamento e manipulação.

A EJA deve assumir sujeitos, culturas e coletivos com longos e novos históricos

de exclusão, gerando novas formas educativas a partir de práticas pedagógicas

desenvolvidas como ferramentas de tradução. Na tradução o mundo é

desmontado, analisado. A(s) linguagem(ns) são o meio com o qual se realiza a

mediação com as coisas e a realidade.

Então, lembrando que a EJA também nasce na Educação Popular, e que esta

forma de educação pode inspirar nossas práticas na escola, já que constitui-se

num dos movimentos mais questionadores do pensamento pedagógico, e que,

segundo Arroyo, tem uma história muito mais tensa do que a história da

educação básica e que “nesta história nas últimas quatro décadas se cruzam,

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nos chamando ao presente, os jovens trabalhadores, pobres, negros,

subempregados, oprimidos, excluídos”, então a didática da tradução seria

estabelecida entre estes coletivos, entre os campos da EJA e da Educação

Popular, nos tempos lugares escolares.

O trabalho da tradução conduz a uma pergunta: quem traduz? Santos (2006b,

p. 811) diz que o trabalho de tradução, como trabalho argumentativo, exige

capacidade intelectual e os tradutores podem encontrar-se tanto entre os

dirigentes de movimentos sociais como entre os ativistas das bases, diz que no

futuro próximo, a decisão sobre quem traduz irá, provavelmente, tornar-se uma

das mais decisivas deliberações democráticas na construção da globalização

contra-hegemônica.

Quanto ao quê traduzir? Santos pontua os conhecimentos que se situam nas

zonas de contacto. Zonas de contacto são campos sociais onde diferentes

mundos da vida normativos, práticas e conhecimentos se encontram, chocam

e interagem. São as intersecções criadas na convivência com e entre os

“diferentes”, os objetivos comuns estabelecidos no compartilhamento do

mundo comum e público.

Então, pensando a sala de aula da EJA como um espaço de vida, onde

educadores e alunos sejam os tradutores, caracteriza-se por um espaço

dinâmico, em movimento; que engloba as atividades ensinantes, as de caráter

socializante e a construção subjetiva e intersubjetiva dos homens e mulheres

que a transformam em espaço vivo.

As pessoas que dele fazem parte estão em inter-relações constantes e

complexas. Constantes porque, apesar de acontecerem naquele espaço, não

iniciam e nem terminam ali, pois enquanto seres inacabados, os homens e

mulheres trazem para as suas relações o que foram, o que estão sendo e o

que poderão vir a ser. E são relações complexas porque o que somos e como

nos relacionamos com os outros é o resultado de muitos encontros, com outras

pessoas, outros saberes, outros espaços.

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O encontro em sala de aula envolve uma rede de relações que se intercruzam

numa dinâmica de vida na qual são inevitáveis os embates e as ambivalências.

O trabalho da pedagogia não é nivelar as diferenças, mas possibilitar

instrumentos para que os diferentes se confrontem de maneira menos

destrutiva; e, para isso, é preciso explorar o caráter do espaço que separa os

diferentes, a lacuna, o entre-lugar. Assim, a sala de aula caracteriza-se como

um espaço de fronteira dotado de entre-lugares, de espaços simbólicos que

guardam as ambivalências, onde permanecem os aspectos diferentes, opostos

e contraditórios.

Acreditamos que, desde que os coletivos escolares façam a opção política e se

empenhem nesta direção, é possível o trabalho da tradução, por meio da

articulação dos saberes que cada coletivo escolar é chamado hoje a fazer na

EJA. Acreditamos que aí está a criação do inédito viável.

Freire (1992) defende que o “inédito viável” nasce da esperança histórica,

aquilo que ainda não foi ensaiado e é inédito, mas que pode, pela ação

articulada dos sujeitos históricos, vir a ser realidade. Em Pedagogia da

Esperança – um reencontro com a pedagogia do oprimido, é pontuado que o

inédito viável é uma das categorias mais importantes, porém pouco comentada

e até estudada: “[...] essa categoria encerra nela toda uma crença no sonho

possível e na utopia que virá, desde que os que fazem a sua história assim

queiram” (1997, p. 205).

Portanto, retomando os dados explicitados no capítulo 7, o(s) coletivos(s)

escolares da EJA bem problematizaram e pontuaram as “situações-limite”

vividas. Estes coletivos perceberam criticamente e epistemologicamente,

tomaram distância destas situações limites, como algo percebido e destacado

da vida cotidiana – “o percebido destacado, que não podendo e não devendo

permanecer como tal passa a ser um tema/problema que deve e precisa ser

enfrentado, portanto, deve e precisa ser discutido e superado” (FREIRE, 1997,

p. 206). São agora desafiados ao trabalho da tradução, a transpor e a romper

na criação do que ainda não existe,

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O “inédito – viável” é na realidade uma coisa inédita , ainda não conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um “percebido destacado” pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade (1997, p. 206).

A EJA, no município apontado, encontra-se num processo de tomada de

decisões. Já tomou distância, verbalizou, destacou, sabe dos paradoxos, das

contradições e dos desafios. Os coletivos sabem que, na dimensão escolar,

participam deste momento privilegiado de construção histórica da modalidade.

Estes coletivos precisam agora decidir que rumo dar às práticas: continuar

fazendo Ensino Regular Noturno Semestral, com seus rígidos espaços e

tempos de organização, ou, fazer emergir nas práticas a modalidade EJA?

Implica assumir a dimensão do diálogo e a “ousadia da experimentação”, com

destaque para a necessidade de uma formação específica dos educadores,

para que possam lidar com todas as especificidades, a igualdade e a diferença

que permeiam e configuram esta modalidade.

A oferta dessa formação necessária e que possa contemplar as dimensões

políticas e técnicas é, ainda, precária e distante das reflexões freirianas. Ao

mesmo tempo, o campo atualmente encontra-se num movimento profícuo, no

qual se estreitam os diálogos na busca de soluções e superação para os

desafios e paradoxos apresentados.

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9 PROSSEGUIR OUSANDO EXPERIMENTAR

Há um sinal dos tempos, entre outros, que me assusta: a insistência com que, em nome da democracia, da liberdade e da eficácia se vem asfixiando a própria liberdade, e, por extensão a criatividade e o gosto da aventura do espírito. A liberdade de mover-nos, de arriscar-nos vem sendo submetida a uma certa padronização de fórmulas, de maneiras de ser, em relação às quais somos avaliados. É claro que já não se trata da asfixia truculentamente realizada pelo rei despótico sobre seus súditos, pelo senhor feudal sobre seus vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados, pelo dono da fábrica sobre seus operários, pelo Estado autoritário sobre os cidadãos, mas pelo poder invisível da domesticação alienante que alcança a eficiência extraordinária no que venho chamando “burocratização da mente”. Um estado refinado de estranheza, de “autodemissão” da mente, do corpo consciente, de conformismo do indivíduo, de acomodação diante de situações consideradas fatalistamente como imutáveis (FREIRE, 1996, p. 128, 129).

A esta altura, perguntamo-nos se respondemos ao problema posto e aos

objetivos definidos para este trabalho. Pensamos que sim, na medida em que

constatamos que, embora muitas vezes (in)visíveis, as biografias

emancipatórias estão na EJA, inscritas nas histórias de superação de alunos e

alunas. O fato por vezes considerado “corriqueiro” de adolescentes, jovens,

adultos e idosos procurarem a escola já representa um ato de emancipação,

principalmente se levarmos em conta que o coletivo da escola ainda não

decidiu o que fazer com os rumos das práticas pedagógicas em EJA e as

ações realizadas, muitas vezes, estão distantes dos significados a elas

atribuídos por alunos e alunas.

Uma lacuna ficou na nossa procura por processos de emancipação articulados

coletivamente. Neste sentido, enquanto os movimentos sociais do município

possuem história e a associação de moradores algumas vezes visite a escola,

os sujeitos da EJA pesquisados produzem muito mais histórias individuais e

solitárias de superação; e isso se contrapõe à ideia da cidadania numa

perspectiva ampla, onde ser cidadão não é apenas conhecer direitos e

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deveres, como o liberalismo nos quer fazer acreditar. Ser cidadão é acreditar

na deliberação da sociedade. Cidadania é, diria Hannah Arendt (2009), abdicar

da força em nome do diálogo.

O consentimento implica o reconhecimento de que nenhum homem pode agir sozinho, o reconhecimento de que os homens, se querem realizar algo no mundo, devem agir de comum acordo, o que seria trivial se não houvesse sempre alguns membros da comunidade determinados a desrespeitar o acordo e tentar, por arrogância ou desespero, agir sozinhos (2009b, p. 148)

Não é por decreto que as pessoas se transformam em cidadãs. É preciso que

tenham interiorizado o valor democrático, que tenham descoberto a força

instituinte do poder criador coletivo. Assim, outra constatação é que os

processos de democratização estão em marcha em Cariacica. Contudo,

necessário é atentar-se para o fato de não se repetir velhas práticas sob novos

rótulos e com mecanismos pseudo-democráticos e sofisticados, em que a

cidadania performática substitui o exercício da prática participativa.

As pessoas não nascem sabendo participar. A participação é uma habilidade

que se aprende e se aperfeiçoa. Assim, a qualificação da participação é fator

preponderante e decisivo. Mas como podemos ampliar os espaços e as formas

de participação? Quais ferramentas são mais adequadas? Sobretudo, como

“qualificar” a participação?

Só se aprende participar por meio do diálogo e na abertura dos portões da

escola e dos internos e subjetivos em cada pessoa, das barreiras simbólicas e

reais, na elaboração de uma proposta pedagógica fundamentada numa

linguagem que possa ser compreendida por todos e todas. Se não estivermos

dispostos a investir nessas mudanças, processos de democratização,

cidadania e emancipação social serão expressões esvaziadas de qualquer

significado substantivo.

Tentando exercitar o pensamento, como nos provoca Freire na epígrafe que

escolhemos para concluir este trabalho, compreendemos que a escola

manifesta o desejo em responder às especificidades e interagir com a ecologia

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dos saberes dos alunos e alunas. Contudo, lembrando-me da fala de um

professor nas “rodas de conversa”,

Eu tenho o verbo, mas não tenho a alma. Temos o conceito, mas como fazer para que este conceito se transforme em prática? Verbalizamos sim, conceituamos sim. Mas não conseguimos fazer com que este corpo ande dentro dos ditames desta alma. Estamos desconectados – teoria e ação (Informação verbal)

60.

Como aponta o professor, até quando haveremos de suportar esta desconexão

entre teoria e prática, verbo e alma, conceito e ação? Até quando seremos

profissionais cindidos? Qual o sentido de nossa práxis?

Quanto à identificação, nas práticas desenvolvidas, da apropriação (ou não)

dos pressupostos da Educação Popular, a partir das experiências vividas na

escola, creio que elas existem timidamente e sua ampliação constitui-se no

entendimento, pelos docentes, da sua necessidade. Mas haverá saída para as

práticas em EJA a não ser pela apropriação e (re)criação dos pressupostos da

Educação Popular?

Assim a EJA, mais que tudo, é uma modalidade de convivência. Ou imprime

energia, ousando experimentar e desenvolvendo as habilidades de tradução

entre os saberes, ou não haverá como prosseguir e nos inscreveremos naquilo

que Freire lamenta – a asfixia da própria liberdade, e, por extensão da

criatividade e do gosto da aventura do espírito. À EJA restará a padronização

de fórmulas e de maneiras de ser previsíveis nos mecanismos já

burocratizados pela instituição escolar. Isso, sem dúvida representa a

“autodemissão” da mente, do corpo consciente.

Partimos do pressuposto de que a EJA constitui-se, ou deveria constituir-se,

em um campo de dialogização e de práticas educativas plurais que vão além

dos muros da escola e que, histórica e teoricamente, trabalhando às margens

do sistema educacional, a EJA está vinculada às práticas que visam à

emancipação dos sujeitos. Ou seja, a biografia da modalidade também foi e

60

Informação concedida pelo professor em outubro de 2008.

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está sendo construída dentro da perspectiva da militância. Buscamos em

Arroyo fragmentos dessa memória quando diz que

[...] a EJA nunca foi algo exclusivamente do governo ou do sistema educacional, pelo contrário, sempre se espalhou pela sociedade. A educação de jovens e adultos sempre fez parte da dinâmica da sociedade, da dinâmica mais emancipadora [...] e se vincula muito mais aos processos de emancipação do que aos de regulação [...] que o governo e o sistema escolar somem e legitimem politicamente essa dinâmica emancipatória que vem da tradição da EJA (2006, p.19).

Portanto, se a EJA resiste às tentativas de regulação e está inserida em uma

dinâmica libertadora mais ampla, exigiria, então, educadores cujos valores e

atitudes são coerentes com esses princípios. Ou seja, educadores e

educadoras cuja opção seja a favor daqueles que sempre foram colocados às

margens, nos lugares sociais a eles reservados – marginais, oprimidos,

excluídos, empregáveis, miseráveis etc. Entretanto, este mesmo lugar social,

político e cultural,

tem inspirado concepções e práticas de educação de jovens e adultos extremamente avançadas, criativas e promissoras nas últimas quatro décadas. Essa história faz parte também da memória da EJA. É outra história na contramão da história oficial, com concepções e praticas por vezes paralela e até frequentemente incorporada por administrações públicas voltadas para os interesses populares (ARROYO, 2003, p.19).

Atualmente a questão central que se coloca para o campo da EJA é saber

como incorporar esta herança popular, que tem sido mais marcante do que a

herança das políticas oficiais. Não é nem será tarefa fácil preservar esse rico

legado popular em qualquer tentativa de inserir a EJA no corpo legal e tratá-la

como um modo de ser ensino fundamental. Ou o Sistema de Ensino se

redefine ou esse legado popular perde sua força constituída historicamente.

É necessário prosseguir ousando experimentar, tentando não repetir fórmulas

desgastadas. Produzir o inédito viável significa exercitar as habilidades de

tradução e recuperar o sentido amoroso intrínseco ao ato educativo; pensar

nas possibilidades de saída para os dilemas que a prática produz. Neste

fragmento Lispector lembra:

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Entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem. Além do mais, exige-se muito de quem nos assiste a pensar: que tenha um coração grande, amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar (1994, p.23).

Esta “química instituinte” permea a modalidade nestes tempos de

(re)configuração em que os profissionais da EJA são conclamados a rever

também as relações que estabelecem com os sujeitos da EJA. Entregar-se a

pensar e produzir inéditos viáveis é correr risco. Bauman, citando Ernest

Becker, diz que a sociedade é “um mito vivo do significado da vida humana,

uma desafiadora criação de significados” e que “loucos”, “são apenas os

significados não compartilhados. A loucura não é loucura quando

compartilhada” (2000, p. 8).

Então, tomando Cariacica como nosso exemplo, se o mundo comum e público

corre o risco de “extinção”, beneficiando uma minoria já historicamente

privilegiada, a política deveria ser reinventada e as comunidades escolares

poderiam e deveriam ser o local dessa reinvenção, pois a política é a esfera em

que se dá o encontro das pessoas e designa tudo o que se relaciona ao

sentido coletivo da existência humana.

Podemos conceber, assim, a escola como um espaço de possibilidades para a

nossa “ágora” moderna, o campo privilegiado dos embates, do diálogo e da

possibilidade da (re)invenção da cidadania e da emancipação social, contudo,

muitas vezes esta instituição parece resignar-se e envergonhar-se de assumir

uma postura de resistência ideológica e de transformação social. Freire já

alertava para esta postura ao questionar,

Como, porém, aprender a discutir e a debater numa escola que não nos habitua a discutir, porque impõe? Ditamos idéias. Não trocamos idéias. Discursamos aulas. Não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomo-lhe uma ordem a que ele não se ajusta concordante ou discordantemente, mas se acomoda. Não lhe ensinamos a pensar, porque recebendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente “as guarda”. Não as incorpora, porque a incorporação é o resultado da

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busca de algo, que exige, de quem o tenta esforço de realização e de procura. Exige reinvenção (2002, p. 91 e 92).

Defendemos neste trabalho que a escola, principalmente na EJA, continua

sendo um espaço com grande potencial de reflexão crítica da realidade, que

atravessa e pode dialogar com a cultura das pessoas e que as práticas

desenvolvidas podem contribuir na cumulação subjetiva de forças, apesar da

exclusão.

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