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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
SILVIA MOREIRA TRUGILHO
O SER SENDO DIANTE DA MORTE: UM ESTUDO SOBRE A
EXPERIÊNCIA DE ENFRENTAMENTO DA MORTE POR
PROFISSIONAIS DE SAÚDE E SUAS APRENDIZAGENS
VITÓRIA2008
SILVIA MOREIRA TRUGILHO
O SER SENDO DIANTE DA MORTE: UM ESTUDO SOBRE A
EXPERIÊNCIA DE ENFRENTAMENTO DA MORTE POR
PROFISSIONAIS DE SAÚDE E SUAS APRENDIZAGENS
Tese apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Educação.Orientador: Prof. Dr. Hiran Pinel
VITÓRIA2008
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Trugilho, Silvia Moreira, 1964-T866s O ser sendo diante da morte : um estudo sobre a experiência
de enfrentamento da morte por profissionais de saúde e suas aprendizagens / Silvia Moreira Trugilho. – 2008.
185 f.
Orientador: Hiran Pinel.Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Educação.
1. Morte. 2. Aprendizagem. 3. Pessoal da área médica. I. Pinel, Hiran. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
SILVIA MOREIRA TRUGILHO
O SER SENDO DIANTE DA MORTE: UM ESTUDO SOBRE A
EXPERIÊNCIA DE ENFRENTAMENTO DA MORTE POR
PROFISSIONAIS DE SAÚDE E SUAS APRENDIZAGENS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Educação.
Vitória, 21 de outubro de 2008.
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________________ Prof. Dr. Hiran Pinel Universidade Federal do Espírito Santo Orientador
____________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço Universidade Federal do Espírito Santo
____________________________________________ Prof. Dr. César Cola Universidade Federal do Espírito Santo
____________________________________________ Prof. Dr. Valmin Ramos da Silva Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia
____________________________________________ Profª Drª Maria Alves de Toledo Bruns Universidade de São Paulo
AGRADECIMENTOS
Agradeço profundamente a todos aqueles que diretamente contribuíram para a realização
deste trabalho:
Ao meu orientador, Prof. Dr. Hiran Pinel, pelos momentos agradáveis que compartilhamos,
pelo carinho, pelo companheirismo e por investir seu tempo em me orientar; o que, segundo
ele, o fazia por compromisso, paixão pelo ato de orientar/ensinar, paixão pelo oficio
professor/pesquisador. Agradeço, pois nunca esquecerei, por mais que eu tente cerrar as
retinas, do pavor que eu produzia nele, ao levar o bico da caneta (com muita tinta) até a
preciosa tela de seu computador, revelando preferir mais o objeto (que de fato está associado
a mim). Obrigada pelo humanismo total.
Ao meu querido Dr. Valmim, que me estimulou e me ajudou a não desistir e a enfrentar meus
desafios, num momento de estresse e desespero. Como trabalhador da saúde no espaço em
que eu exerço o Serviço Social produzia sempre mais discussões impregnadas de
camaradagem e escuta, revelando talvez um fenomenólogo que ele mesmo pode
(des)conhecer.
Ao Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço, por permitir-se ser sendo de modo fenomenológico
existencial. Essa sua característica respeitosa às outras teorias conquistam-nos a todos os
discentes. Obrigada pela sua forma de ser sendo carinhoso em suas sugestões e opiniões
quanto ao trabalho.
Ao Prof. Dr. César Cola, pelo carinho e compreensão dos nossos limites (os discentes dizem
isso) e seu esforço de fazer-me empreender pelas estéticas da morte e do morrer, os modos de
suas éticas.
À Profª Drª Maria Alves de Toledo Bruns, por seu parecer escrito na Qualificação II que
muito veio a enriquecer meu estudo, especialmente na parte pedagógica e/ou educativa. Sua
presença compreensiva apareceu no seu texto e isso me aponta para o que meu colega Vitor
Gomes (que a teve na banca de Mestrado) disse: Trata-se de uma fenomenóloga indispensável
ao nosso crescimento.
Aos colaboradores da pesquisa realizada, que aceitaram, com muito carinho, participar do
estudo e sempre me receberam de modo espontâneo, demonstrando grande interesse em
participar e colaborar na realização do estudo.
Aos colegas do HINSG que, durante todo o tempo, apostaram na qualidade deste trabalho. A
motivação recebida me preencheu de ânimo e coragem. Um agradecimento especial à Jonilce
Motta e Motta, por sua contribuição com material bibliográfico para minha revisão de
literatura.
“A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A ‘reverência pela vida’ exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir.”
Rubem Alves
RESUMO
Trata da experiência de enfrentamento da morte pelos profissionais de saúde que
desenvolvem suas práticas sociais no cotidiano hospitalar, tendo em vista o interesse em
abordar descritiva e compreensivamente o(s) modo(s) como estes profissionais lidam com a
morte do outro em seus ofícios e as aprendizagens significativas daí decorrentes. Dirige a
atenção aos aspectos presentes no contexto hospitalar, enfocando a morte e o morrer enquanto
fato concreto e sentido do processo de trabalho dos profissionais de saúde e fenômeno
constitutivo da existência humana. Constituiu-se objetivo descrever a experiência
sentida/vivida dos diversos profissionais que atuam no espaço hospitalar, em sua convivência
com a morte do paciente, analisando hermenêutica e ontologicamente os modos de ser sendo e
as aprendizagens adquiridas na experiência de contato com a morte. Para tanto, utilizou-se o
método fenomenológico de investigação, aberto à pesquisa-ação existencial e à pesquisa
etnográfica de inspiração fenomenológico-existencial, todos voltados à descrição do
fenômeno em estudo, com vistas à obtenção de uma compreensão analítica do mesmo. Como
referencial teórico foi feita opção pela teoria fenomenológico-existencial de Martin Heidegger
e sua analítica ontológico-hermenêutica do ser. No interesse em desvelar como o profissional
de saúde lida com a morte e o morrer em seu ofício, no processo de uma aprendizagem
significativa, foi escolhido como local de realização da pesquisa um hospital pediátrico da
rede pública do estado do Espírito Santo, tendo como colaboradores do estudo pessoas
pertencentes a diferentes categorias profissionais. Para obtenção de dados utilizou-se
prioritariamente a coleta de depoimentos. Os resultados obtidos permitiram desvelar que, na
experiência de contato com a morte, os profissionais de saúde revelam modos de ser-com o
outro, constituídos a partir da ocupação e da preocupação; a morte se abre como possibilidade
de constituição de um projeto existencial autêntico, possibilita a aquisição de aprendizagens
significativas de conteúdo pessoal e profissional e favorece a apreensão de sentidos para a
vida. A morte constitui-se, portanto, referência para a vida e, neste sentido, contribui para a
constituição de uma Educação Social Especial a ser desenvolvida no contexto hospitalar, por
meio da invenção e efetivação de novas práticas educacionais e de novos espaços pedagógicos
de intervenção.
Palavras-chave: Morte e aprendizagem significativa. Educação Social, instituição – hospital.
Profissionais de saúde e morte. Educação, morte e Martin Heidegger.
ABSTRACT
The study is about the experience of facing death by the health professionals who have been
developing their social practices in the hospital daily life, having in mind the interest in
approaching descriptively and comprehensively the way such professionals deal with death of
others during work and the significant learning that comes with it. The study focuses on the
aspects present in the hospital context, standing out death and dying as concrete and felt fact
of the working process of the health professionals and constitutive phenomenon of the human
existence. It aims at describing the experience felt/lived of the several professionals who work
in the hospital space living with the death of patients, analyzing hermeneutically and
ontologically the ways of being and the learning acquired in the experience of contact with
death. To do so, it was used the phenomenological method of investigation, open to the
existential research-action and to ethnographic research of phenomenological-existential
inspiration, all aimed at the description of the phenomenon studied, taking into consideration
the obtainment of an analytical comprehension of it. As theoretical referential it was used the
phenomenological-existential theory of Martin Heidegger and his ontological-hermeneutic
analytic of being. Interested in unveiling how the health professional deals with death and
dying at work, in the process of a significant learning, as local to do the research a public
pediatric hospital in the state of Espírito Santo was chosen, having as collaborators for the
study people belonging to different professional categories. For data collection it was used
with priority some testimonials. Results permitted to unveil that in the experience of contact
with death, the health professionals reveal ways of being and dealing with each other
constituted through the occupation and preoccupation; death becomes a possibility of
constituting an existential authentic project, makes possible the acquisition of significant
learning of personal and professional content and favors the apprehension of meanings for
life. Therefore, death is reference for life and, in this way, it contributes for the constitution of
a Special Social Education to be developed in the hospital context, through the invention and
use of new educational practices and of new pedagogical spaces of intervention.
Keywords: Death and significant learning. Social education, institution – hospital. Health
professional and death. Education, death and Martin Heidegger.
RESUMEN
Trata de la experiencia de enfrentamiento a la muerte por parte de los profesionales del área
de salud que desarrollan sus prácticas sociales en el cotidiano hospitalario, teniendo en vista el
interés en abordar descriptiva y comprensivamente el(los) modo(s) como estos profesionales
conviven con la muerte del otro en sus oficios y los aprendizajes significativos decurrentes de
esto. Se dirige la atención a los aspectos presentes en el contexto hospitalario, enfocando la
muerte y el morir como hecho concreto y sentido del proceso de trabajo de los profesionales
de salud y fenómeno constitutivo de la existencia humana. Constituye un objetivo, describir la
experiencia sentida/vivida de los diversos profesionales que actúan en el espacio hospitalario,
en su convivencia con la muerte del paciente, analizando hermenéutica y ontológicamente los
modos de ser siendo y los aprendizajes adquiridos en la experiencia de contacto con la
muerte. Para ello, se utilizó el método fenomenológico de investigación, abierto a la
investigación acción existencial y a la investigación etnográfica de inspiración
fenomenológico-existencial, todos diseccionados para la descripción del fenómeno en estudio,
con vistas a la obtención de una comprensión analítica del mismo. Como referencial teórico se
opta por la teoría fenomenológico-existencial de Martin Heidegger y su analítica ontológico-
hermenéutica del ser. Con el interés de poner de manifiesto como el profesional del área de
salud convive con la muerte y el morir en su trabajo, en el proceso de un aprendizaje
significativo, se escoge como local de realización de investigación un hospital pediátrico de la
red pública del estado de Espírito Santo, tenido como colaboradores del estudio personas que
pertenecen a diferentes categorías profesionales. Para obtener los dados se utilizó
prioritariamente la recolección de declaraciones. Los resultados obtenidos permitieron
descubrir que, en la experiencia de contacto con la muerte, los profesionales de salud revelan
modos de ser con el otro, constituidos a partir de la ocupación y de la preocupación; la muerte
se abre como posibilidad de constitución de un proyecto existencial auténtico, posibilita la
adquisición de aprendizajes significativos de contenido personal y profesional y favorece la
aprehensión de sentidos para la vida. La muerte constituye, por lo tanto, referencia para la
vida y, en este sentido, contribuye para la constitución de una Educación Social Especial para
desarrollar en el contexto hospitalario, por medio de la invención y efectuación de nuevas
prácticas educacionales y de nuevos espacios pedagógicos de intervención.
Palabras-clave: Muerte y aprendizaje significativo. Educación Social, institución: hospital.
Profesionales de salud y muerte. Educación, muerte y Martin Heidegger.
LISTA DE SIGLAS
AIDS – Acquired Immune Deficiency Syndrome; sigla em inglês para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
CNS – Conselho Nacional de Saúde
CONEP – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
CTI – Centro de Terapia Intensiva, ou Centro de Tratamento Intensivo
GS – Guias de Sentido
HINSG – Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória
HIV – Human Immunodeficiency Virus; sigla em inglês para Vírus da ImunodeficiênciaHumana
MR – Médico Residente
RN – Recém-nascido
SESA – Secretaria de Estado da Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
TCE – Traumatismo crânio-encefálico
UTI – Unidade de Terapia Intensiva
PEQUENO GLOSSÁRIO DE TERMOS E NEOLOGISMOS EM
HEIDEGGER
ANGÚSTIA: angústia é um estado (de humor) em que alguém se encontra por ser-no-mundo.
Emerge diante de uma ameaça indefinida e faz com que a pre-sença sinta estranheza (falta de
familiaridade) com tudo e consigo mesma. A angústia difere do temor. Temor se refere a um
sentimento que emerge, quando a pre-sença está diante de um ente intramundano, sendo este
uma ameaça definida.
AUTENTICIDADE: autenticidade implica em algo que é próprio da pre-sença. Ser autêntico
é apropriar-se de si, é fazer sua própria coisa e não o que é esperado de si ou lhe é prescrito
por outrem. Na autenticidade a pre-sença faz escolhas decididas vislumbrando o futuro.
COTIDIANIDADE: o comum do dia-a-dia, habitual e indiferente. Relaciona-se ao que se faz
publicamente, na maioria de vezes, conforme se espera que seja feito. Está sujeita ao
impessoal e à inautenticidade.
CURA/CUIDADO: Cura em sentido ontológico deve ser concebida como cuidado e
dedicação. Cuidado é um modo de ser inerente à essência da pre-sença. Cuidado compõe uma
tríade Cuidado-Ocupação-Preocupação. Nesta tríade, cuidado pertence à essência da pre-
sença; ocupação pertence ao ser-no-mundo; preocupação pertence ao ser-com-o-outro.
ENTE: é tudo aquilo que tem manifestação no mundo. Está associado à aparência do
fenômeno. Aquilo que aparece, de maneira física ou metafísica.
DE-CADÊNCIA: declínio, queda da pre-sença no mundo cotidiano da ocupação, que é uma
fuga de si mesmo enquanto poder-ser próprio. Estar abstraído de si, perdido na publicidade do
impessoal e absorvido na ocupação, guiado pelo falatório, pela curiosidade e pela
ambigüidade. Enquanto queda é uma fuga de si mesmo.
ESTRANHEZA: é um modo de não se sentir em casa (familiarizado) consigo mesmo.
EXISTÊNCIA: modo de ser da pre-sença que implica em como ela é e não em o que ela é. O
existir do homem na sua relação com o ser, sendo.
EXISTENCIÁLIAS, EXISTENCIAIS: modos de ser da pre-sença, relacionados às múltiplas
possibilidades de abertura da pre-sença, bem como a compreensão e escolhas que a pre-sença
possui e faz destas possibilidades.
FALATÓRIO: mera repetição de um discurso não apropriado pelo ente. Envolve excesso,
superficialidade e descompromisso com o que se fala.
FINITUDE: Refere-se ao estar-no-tempo, possuindo uma temporalidade. Confere ao homem
uma finitude temporal, confirmada pela morte. É a finitude que marca a relação da pre-sença
com o seu ser e caracteriza a pre-sença como um ser-para-a-morte.
HOMEM: é um ser sendo numa existência historicizada e fatual.
IMPESSOAL: fenômeno que leva a pre-sença a se anular, abrindo mão de ser si própria, para
viver na tranqüilidade da medianidade, onde suas escolhas e decisões são influenciadas pela
medianidade e pela publicidade, passando a ser sempre do impessoal.
INAUTENTICIDADE: a inautenticidade está associada com o impessoal, com o abandonar o
seu ser-próprio e função dos outros, do que os outros esperam. Assim, o que a pre-sença faz e
como faz é determinado pelo outro e não por si próprio. Na inautenticidade, a pre-sença fica
presa ao presente, no que ele lhe traz de ocupações.
MODOS DE SER: São as diferentes maneiras de ser. Referem-se a o que se é e a como se é.
MUNDANIDADE DO MUNDO: mundanidade é um conceito ontológico que se refere à
determinação existencial da pre-sença. Mundo, compreendido em sentido ôntico, configura-se
como contexto.
OCUPAÇÃO: é o ser junto ao manual, às entidades manuais, às coisas.
ONTOLOGIA: estudo do ser sendo, em sua existência.
ÔNTICO: pertence ao ente. É o ser do ente no sentido de mostrar-se o que é. Aquilo que
existe; natureza do existente.
PODER-SER: existência autêntica, no sentido de ser si próprio, dono de suas escolhas e
decisões.
PREOCUPAÇÃO: é o ser como co-presença dos outros nos encontros dentro do mundo.
SER: é um modo de transcendência em relação ao ente. O ser é mais amplo que o ente. O ser
é sempre o ser de um ente. Ser está associado à essência do fenômeno.
SER-AÍ: dasein, pre-sença. É o homem, jogado no mundo, sem ter escolhido por isso. Aí, no
mundo, passa a ter que existir, numa existência histórica, situada e finita. Ser-aí é sempre
possibilidade, o que permite ao ser, em sua existência, poder ser próprio ou impróprio.
SER-COM: o ser se dá de modo dinâmico, por inter-relação e no exercício de convivência,
sempre num mundo compartilhado. Assim a pre-sença se constitui a partir do ser-com o outro.
Para Heidegger, mesmo isolado, na solidão, o ser mantém um modo de convivência e relação
com algum ente, portanto é sempre ser-com. Ser-com pressupõe não a ocupação, mas a
preocupação.
SER-JUNTO A: estar junto a outros seres e entes, simplesmente ocorrendo em conjunto, que
compreende um sentido de estar associado ao modo de ser na ocupação. Este modo de ser na
ocupação pode vir a constituir-se, contudo, no modo de impropriedade firmado na decadência
da cotidianidade.
SER-LANÇADO: a pre-sença é um ente lançado à sua própria sorte, em meio a entes, no
mundo. Ser-lançado está ainda associado à faticidade e ao ser entregue à responsabilidade.
SER-SIMPLESMENTE-DADO: é um dos modos de ser do que está à mão, disponível. É
usado para as coisas, não para as pessoas.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO DA AUTORA ...................................................................................... 15
1 O HORIZONTE HOSPITALAR .................................................................................... 24
1.1 O PROFISSIONAL DE SAÚDE: desafios e limites institucionais .................................. 28
2 O LUGAR DA MORTE NO MUNDO OCIDENTAL: a visão de diversos autores ... 35
2.1 REPRESENTAÇÃO DA MORTE NO SÉCULO XXI A PARTIR DA MÍDIA E DO CINEMA ................................................................................................................................. 42
2.2 A DIMENSÃO DA MORTE E DO MORRER NO UNIVERSO HOSPITALAR .................................................................................................................................................. 53
3 A ONTOLOGIA DA MORTE A PARTIR DA ANALÍTICA EXISTENCIAL DE HEIDEGGER ........................................................................................................................ 57
3.1 A TEMPORALIDE DE MARTIM HEIDEGGER ........................................................... 57
3.2 LEGADOS DE HEIDEGGER: a historicidade da pre-sença como ser-no-mundo .......... 60
3.3 O HOMEM COMO UM SER-PARA-A-MORTE ........................................................... 66
4 O ESPAÇO HOSPITALAR NA INTERFACE DE UMA EDUCAÇÃO SOCIAL: reinvenções de práticas educacionais no enfrentamento da morte e do morrer ........... 71
5 TRAJETÓRIA METODOLÓGICA ................................................................................ 79
5.1 O MÉTODO E SUA ESCOLHA ..................................................................................... 79
5.2 O LOCAL E OS COLABORADORES ........................................................................... 82
5.3 OS INSTRUMENTOS ESCOLHIDOS E SUA UTILIZAÇÃO ..................................... 83
5.4 MINHA PRE-SENÇA NA PESQUISA ........................................................................... 85
5.5 TRATAMENTO DOS DADOS CAPTURADOS ........................................................... 87
6 O PODER-SER DA PRE-SENÇA NA CONVIVÊNCIA COM A MORTE.................................................................................................................................................. 89
6.1 O SER SENDO DIANTE DA MORTE: depoimentos ..................................................... 89
6.2 A MORTE E O MORRER COMO SIGNIFICAÇÃO E APRENDZAGEM PARA OSPROFISSIONAIS DE SAÚDE ............................................................................................. 143
7 IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO EDUCADOR SOCIAL ATRAVÉS DE UMA PEDAGOGIA NARRATIVA .................................................................................. 158
8 PALAVRAS FINAIS ....................................................................................................... 166
9 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 170
APÊNDICES ........................................................................................................................ 175
ANEXOS .............................................................................................................................. 181
15
APRESENTAÇÃO DA AUTORA
O mistério envolto na morte produz no homem diversas maneiras de se comportar
diante dela, evocando respeito, temor, curiosidade, indiferença, fuga, etc. No meu caso
específico, a afecção pela morte possui uma marca de longa caminhada. Desde a infância
(ainda uma escolar freqüentando as séries iniciais da educação formal), a morte já se
constituía num tema de (pre)ocupação existencial para mim, sentida na forma de uma angústia
ante a possibilidade do fim. Ainda me recordo das noites a vagar, na insônia provocada pela
angústia ante a possibilidade irremediável de não mais existir um dia. Assim é que, por volta
dos oito, nove anos de idade, já me via às voltas com a angústia existencial da minha própria
finitude e inexistência. Não temia a morte representada por personagens de terror, como
fantasmas, tão freqüentemente temidos pelas crianças. Também não sentia temor pela
possibilidade da perda de um ente querido. Nem tampouco o receio da experiência encarnada
da morte. A angústia real instalada representava a minha própria finitude existencial, que se
apresentava como a temível sensação de simplesmente acabar, deixar de existir um dia.
Enquanto todos em casa dormiam, eu permanecia acordada, tendo no corpo e na mente a
tensão de como seria morrer e acabar, deixando de existir. Quando a angústia pela não
existência atingia o insuportável, recorria à minha avó, única pessoa que se mantinha
acordada até tarde diante da TV e pacientemente aceitava conversar comigo sobre a morte.
Hoje, tantos anos passados, a implicação com a morte faz novamente parte da minha
realidade. Já não é mais a criança angustiada em busca de respostas, muito embora a busca
continue. Trata-se agora de uma pessoa-profissional-pesquisadora, que enfrenta
cotidianamente a morte e o morrer como parte integrante do seu ofício de assistente social
atuante em sala de emergência, enfermarias e UTI de um hospital público pediátrico. No
desenvolvimento de minhas atividades sou freqüentemente posta no lugar/tempo de
acompanhar o sofrimento de familiares, de colegas de trabalho, incluindo o meu próprio, ante
a morte e o morrer de crianças e adolescentes hospitalizados.
Nesta realidade, o presente traz consigo algumas interrogações que me movem agora
no sentido de percorrer um outro caminho em busca de compreensão sobre o aspecto
existencial implícito na morte. Se na infância buscava o conhecimento em minha avó, no
presente busco percorrer a trilha do estudo e investigação científica como modo próprio de
enfrentamento da angústia existencial ante a morte. Busco assim uma forma de compreensão
16
e conhecimento da morte, embora saiba que somente poderei desvelar a morte em sua
essência quando ela irremissivelmente a mim se apresentar.
Podemos afirmar que sabemos da existência da morte por já termos vivenciado
experiências que envolvem a perda de alguém; por já termos ouvido falar sobre o falecimento
de algum conhecido ou mesmo de pessoas desconhecidas, mas cuja morte tornou-se pública.
A existência da morte torna-se assim nossa conhecida, ao mesmo tempo em que a experiência
da mesma permanece tão desconhecida e obscura, pois só podemos ver sua face quando ela
nos convoca para junto de si. Não sabemos como ela é, que sensações faz emergir no corpo no
instante em que se instala, se iremos acabar ou não quando ela chegar; não conhecemos com
certeza o que virá depois dela e nem como será. Tudo isto a torna um mistério profundo,
desafiador e instigante e, também, fruto de algumas especulações.
Temos consciência da realidade da morte e que ela virá para cada um de nós, porém
não sabemos quando, onde, nem como. Irremissível, a morte é algo que o homem não
consegue superar e dominar por completo. Por se apresentar de forma insuperável, sentimo-
nos inferiores a ela – o que em tempos de sociedade fálico-narcisista a torna uma grande
ameaça à nossa arrogância e sentimento de onipotência; denunciadora de nossos limites e
fraquezas. Assim, tendemos a viver uma constante desconsideração ou desvalorização de sua
existência, engajando-nos em atividades cotidianas, atitudes e modos de existência
favorecedores de sua negação, já que a morte desvela a fugacidade de nossa existência,
destruindo de vez o mito da imortalidade.
Neste estudo, a morte ocupa a cena principal do teatro da vida, pensada pela via das
teorias existenciais sob um olhar sentido e inspirado na fenomenologia existencial, aberta a
outros atravessamentos tais como o marxismo e alguns estudos pós-críticos. Por estar
interessada na interpretação e compreensão da experiência da morte no ser de profissionais da
saúde, considero que o pensamento de Martin Heidegger, a partir de sua analítica ontológico-
existencial do ser, contribui substancialmente para a abordagem da morte pretendida no
estudo, na medida em que colabora para a interpretação existencial do ser diante da morte.
Para este filósofo, a morte é fenômeno constituinte da existência humana e não um mero fato
natural e assim sendo, sua interpretação existencial precede qualquer investigação histórico-
biográfica e psico-etnológica.
17
Não sustento uma pretensão em abordar a morte de uma maneira total e geral. O
interesse no tema é aqui dirigido especificamente ao fenômeno da experiência de
enfrentamento da morte pelos profissionais de saúde que desenvolvem suas práticas no
cotidiano hospitalar, historicizado e inserido no cotidiano do mundo. Assumo, portanto, uma
opção clara e inequívoca pela abordagem de apenas um, dentre os múltiplos aspectos que
envolvem a morte em nossa realidade humana, por reconhecer a impossibilidade da
consideração de sua totalidade num único trabalho; porém, jamais me esquecendo de que um
fenômeno é/está sempre interconectado a outros fenômenos.
Também não procuro, com intenção direta e explícita, atentar para a morte na
experiência/vivência dos pacientes e/ou familiares, embora esta questão não possa ser alijada
do fenômeno em foco, por também constituí-lo e, assim, muito provavelmente poderá se
presentificar no desenvolvimento do estudo, compondo-o de certa forma. Reconhecendo a
complexidade do tema em questão, a delimitação feita se deve à intenção concreta em dirigir
a atenção do estudo para o enfrentamento da morte na experiência sentida/vivida dos diversos
profissionais inseridos na Unidade de Saúde Hospitalar, tendo em vista o interesse em
registrar e descrever compreensivamente o(s) modo(s) como estes sujeitos lidam com a morte
do outro em seus ofícios e identificar as aprendizagens significativas daí decorrentes,
analisando-as interpretativamente.
Em seu ofício, o profissional de saúde, especialmente aquele que atua em hospitais,
lida freqüentemente com a morte, embora sua formação acadêmica não dê conta de prepará-lo
para o enfrentamento da mesma. Diante da morte, face a face com ela, o profissional de saúde
tende a desviar-se subjetiva e existencialmente da mesma, focalizando a atenção nos aspectos
meramente orgânicos e objetivados na relação de cuidado com o paciente, de modo que sua
angústia, receios, insegurança não transpareçam demonstrando a perda do seu “controle
emocional”.
Há uma forte Representação Social de que o profissional de saúde foi constituído
apenas para salvar e não o fazendo ele se tornar um sujeito ferido; humilhado; impotente.
Diante disso, torna-se importante a busca de reflexão e análise educacional sobre a
possibilidade de construção de modos de atenção e cuidado ao paciente e ao profissional de
saúde que possibilitem, especialmente a estes últimos, reconhecer e rever seus conceitos e
atitudes ante a existência e finitude humanas.
18
A sociedade moderna, constituída a partir do paradigma da racionalidade científico-
tecnológica, criou a instituição social denominada hospital como um espaço destinado à
efetivação do tratamento da doença e do processo de cura dos doentes. É, portanto, neste
espaço que vai se dar a institucionalização da morte, dado que sócio-historicamente foi
estabelecida a rotina do envio de pessoas doentes e moribundas para tratamento no hospital,
afastando-as de casa. Com a evolução tecnológica e científica, que vem possibilitando a
efetivação de novos e muitas vezes sofisticados e complexos tratamentos, torna-se cada vez
menos possível a realização do tratamento domiciliar ao doente. A partir de então, temos visto
que, embora muitos doentes obtenham o restabelecimento de sua condição de saúde por meio
do tratamento médico-hospitalar, uma significativa parcela dos doentes hospitalizados não
obtém a cura almejada para suas doenças e acabam por perecer em conseqüência das mesmas.
Assim, a prática social estabelecida de tratamento hospitalar em saúde, acabou por reafirmar o
hospital como local de se morrer.
Embora outros modos de se pensar e agir na saúde venham se constituindo como meio
de superação ao modelo biomédico da saúde, este último ainda se mantém presente de
maneira dominante, o que contribui para a configuração da instituição hospitalar numa
dinâmica específica de funcionamento que inclui regras e rotinas que, em geral, tendem a
tornar seu espaço frio e impessoal. Aliado a isto, a formação de muitos profissionais da saúde
– firmada na lógica positivista de cunho racional, objetivo, fragmentado – tende a impor a
composição de uma relação entre o profissional de saúde e o paciente num formato distante,
objetivo e racionalizado, muito embora o aspecto subjetivo e as emoções humanas sejam
também partícipes das relações que se estabelecem neste espaço institucional e social.
Na ótica dual positivista, vida e morte são consideradas a partir de uma disjunção, uma
dicotomia, no processo de existência humana. E, neste aspecto, dada a fragmentação e
ruptura, morte e vida passam a ser compreendidas como aspectos dissociados e contraditórios
do existir. Há que se considerar, porém, que vida e morte compreendem aspectos
complementares constitutivos do existir dos seres vivos e que a existência humana pressupõe
a coexistência de elementos antagônicos, contraditórios, ambíguos, ambivalentes, onde
racionalidade, objetividade, subjetividade, afetos, emoções encontram-se presentificados na
constituição do humano. Assim, partindo de tal concepção, algumas indagações irrompem,
quais sejam: que modos de ser podemos identificar a partir do comportamento
(atitudes/estratégias de enfrentamento) de profissionais de saúde diante da morte e finitude
humana, presentes no cotidiano e agir profissional? Como estes modos se apresentam? Que
19
processos de conhecimento e/ou aprendizagens, podem decorrer e ser identificados na
experiência sentida/vivida da morte pelos profissionais da saúde? E, ainda, que compreensões
podemos obter a partir da análise existencial deste tema? Apresento estas interrogações
considerando-as como as principais questões que conduzem o meu ser neste estudo.
O fato concreto de me constituir profissional em exercício na área da saúde, cuja
prática se desenvolve no contexto hospitalar, coloca-me cotidianamente em contato com a
morte, presenciando a experiência do paciente, bem como a vivência dos familiares e dos
diversos funcionários do hospital em relação à evidência da mesma. Tal fato me instiga e me
direciona à busca pela compreensão do que é e como é experienciar/vivenciar a morte e o
morrer – a real finitude humana – na prática profissional, com os comportamentos,
movimentos, sentimentos, produção de conhecimentos, aprendizagens presentes na
experiência de ser, diante da morte.
Em minha experiência e vivência, enquanto assistente social atuante em hospital,
tenho visto que grande parte do efetivo de trabalhadores desta instituição social reage de
forma variada diante da morte, o que inclui desde a curiosidade pelo fato, até a não aceitação
do mesmo (seja pela característica pretensão onipotente – o que inclui a coisificação, a
racionalização da morte – seja pelo sofrimento que esta traz consigo), passando ainda pela
indiferença e resignação.
A morte no ambiente hospitalar não é algo restrito ao paciente e seus familiares. Sua
vivência, ao contrário, atravessa o espaço restrito, pessoal e íntimo destas pessoas, ressonando
para além do quarto, enfermaria, sala de emergência, UTI; atinge espaços e lugares
impensados e distantes e, por conseguinte, afeta os mais variados sujeitos que aí se
encontram. Trata-se, neste aspecto, de algo carregado de uma dimensão espaço-temporal não
demarcada. Não é raro ver que a morte de um determinado paciente atravessa as paredes e
percorre transversalmente os corredores do hospital, fazendo-se conhecida dos funcionários
cujas funções diretas sequer se dirigem ao paciente, como, por exemplo, os funcionários
administrativos, afastados que estão da rotina de cuidado direto à pessoa doente. Muitas vezes
tais profissionais nem mesmo conhecem o paciente, mas a morte deste, ao contrário, se torna
conhecida e sentida.
O interesse na realização deste estudo parte da crença de que, ao identificar a
experiência sentida/vivida pelo profissional de saúde diante da morte, possamos contribuir
20
para a reflexão dos contornos que toma este fenômeno, presente na prática cotidiana e coletiva
de diversos profissionais inseridos na área de saúde hospitalar, para, a partir daí, pensar-se a
construção de modos de cuidado humanizado1 na relação profissional-paciente-família em
atenção à saúde.
Acredito ainda que, desvelar a morte no ofício dos profissionais de saúde pode
contribuir para a efetivação de espaços (psico)pedagógicos no ambiente hospitalar, que
ofereçam recursos pedagógico-educacionais, e outros, para subsidiar o enfrentamento, o
debate e a vivência da morte neste espaço institucional e social. Por isso, mantenho uma firme
opinião de que este trabalho poderá se converter em uma contribuição para que o tema morte
saia da obscuridade em que é colocado, permitindo a constituição de novos modos de atenção
à saúde, em consideração à sua complexidade e à condição ontológico-existencial do homem.
As intenções que motivam a realização de um estudo sobre os modos de ser no
enfrentamento da morte podem obviamente ser diversas, a depender do enfoque político,
social, filosófico, histórico, psicológico, antropológico, etc. que embasa o estudo a ser
realizado. A considerar a complexidade das relações sociais e humanas estabelecidas no
cotidiano de uma instituição de saúde, como a hospitalar, marcada e atravessada por
elementos de ordem ideológica, política, histórica, educacional, cultural, econômica, dentre
outras, e, considerando ainda a existência dos mais diversos modos de ser engendrados na
vivência em questão, a proposta deste estudo caminha na busca de desvelar o fenômeno posto
em estudo, não perdendo de vista o fato de que o mesmo não pode ser tratado de maneira
descontextualizada, fragmentada, no expurgo de sua historicidade e complexidade implícita.
Tenho claro que todos os elementos acima considerados estarão de certa forma
presentes no processo do estudo em curso, embora o enfoque central do mesmo seja a vertente
fenomenológica existencial numa perspectiva filosófica e educacional. Isto, no meu entender
não anula a abertura da pesquisadora para os fatos e questões históricas, sociais, ideológicas,
políticas, culturais que compõem o cotidiano da prática dos profissionais de saúde.
Neste caso, o interesse aqui se desvela pela busca atenta da pesquisadora aos aspectos
presentes no ambiente e cotidiano hospitalar, enfocando como recorte a morte e o morrer
1 Cuidado se refere ao que descrevem Heidegger (2002-a) e Boff (1999), como sendo condição ontológica do homem enquanto atitude de ocupação e de responsabilidade com o outro. Humanizado é aqui entendido como a centralidade do homem e de sua subjetividade na atenção em saúde, em superação ao paradigma tradicional que coloca a doença no centro da atenção, desconsiderando fatores relevantes e inerentes ao homem enfermo, que compreendem sua subjetividade, cultura, e história de vida.
21
enquanto fenômeno constitutivo do desenvolvimento e aprendizagem humana que, a partir de
vivências/experiências compartilhadas, permita a criação de propostas de educação social no
atendimento em saúde. Procuro, assim, como objetivo deste trabalho, descrever a
experiência sentida/vivida dos diversos profissionais que atuam no espaço hospitalar, em sua
(com)vivência e enfretamento da situação de morte do paciente, analisando
hermeneuticamente os modos de ser presentes nesta experiência-processo de conhecimento e
desenvolvimento humano, de modo a compreender as aprendizagens, os significados e os
sentidos aí presentes.
Para empreender este trabalho, tornou-se indispensável adotar um método de
investigação científica capaz de possibilitar o alcance dos objetivos propostos e, neste caso,
aberto à proximidade, encontro e co-existência sujeito-objeto no decorrer do estudo; ao
reconhecimento da intersubjetividade; e à compreensão da experiência vivida. Por isso foi
feita a opção pelo método fenomenológico de pesquisa, aberto à pesquisa-ação existencial e
ao estudo etnográfico de inspiração fenomenológico-existencial, todos eles voltados à
descrição do fenômeno em estudo, de forma a possibilitar uma análise compreensiva do
mesmo. A opção metodológica é reforçada, fundamentada e complementada pela opção
teórica por Heidegger, em sua obra Ser e Tempo, tendo em vista a analítica ontológico-
existencial heideggeriana. Para Heidegger, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes que,
por assim ser, designa o ofício de interpretar. Como me interesso por uma analítica existencial
da morte, não poderia escolher outro método e nem tampouco outro teórico para subsidiar
minha empreitada neste trabalho.
É, então, a partir destas primeiras considerações, que o presente trabalho dirige
atenção aos aspectos presentes no ambiente e cotidiano hospitalar, enfocando como recorte o
fenômeno da morte enquanto partícipe do desenvolvimento, da aprendizagem e da existência
humana; em especial daqueles que, na prática do seu ofício, têm a morte como realidade
vivida/sentida. Passo agora a apresentar o trabalho na forma como o mesmo segue organizado
em sua estrutura.
A APRESENTAÇÃO DA AUTORA traz uma consideração inicial sobre o tema e o
estudo realizado, informando ao leitor o objeto e objetivos do mesmo, suas possíveis
contribuições esperadas, a justificativa da escolha do tema e como o este se apresenta como
problema de estudo, bem como o referencial teórico e o método de investigação adotados.
22
O primeiro capítulo: O HORIZONTE HOSPITALAR apresenta uma discussão sobre o
hospital, enquanto instituição social e espaço de prática de diversos profissionais, nas
possibilidades de ser e cuidar.
No segundo capítulo: O LUGAR DA MORTE NO MUNDO OCIDENTAL: a visão
de diversos autores, faço uma revisão de literatura, enfocando a morte e o morrer no
desenvolvimento humano e na cultura ocidental, resgatando um pouco do que a literatura
especializada sobre o assunto traz como contribuições para o primeiro entendimento a
respeito da morte.
O terceiro capítulo: A ONTOLOGIA DA MORTE A PARTIR DA ANALÍTICA
EXISTENCIAL DE HEIDEGGER aborda o referencial teórico do estudo, ou seja, a
fenomenologia heideggeriana em sua analítica ontológico-existencial do ser, especialmente
sua concepção a respeito da morte, a partir da obra Ser e Tempo.
No quarto capítulo: O ESPAÇO HOSPITALAR NA INTERFACE DE UMA
EDUCAÇÃO SOCIAL: reinvenções de práticas educacionais no enfrentamento da morte e do
morrer, trato da consideração da educação social no contexto hospitalar como partícipe do
processo de formação e desenvolvimento humano, relacionada aos modos de ser dos
profissionais de saúde no enfrentamento da morte. Uma forma de pensar a morte imbricada no
ofício do profissional de saúde possibilitando a invenção de modos psico-pedagógicos no
espaço hospitalar.
O quinto capítulo: TRAJETÓRIA METODOLÓGICA descreve os modos de ser da
pre-sença da pesquisadora no estudo, suas escolhas quanto à definição metodológica,
instrumentos e técnicas utilizadas para o desenvolvimento da pesquisa, inerente à realização
do trabalho.
No sexto capítulo: O PODER-SER DA PRE-SENÇA NA CONVIVÊNCIA COM A
MORTE, apresento e analiso interpretativamente os dados encontrados na pesquisa realizada,
buscando desvelar a determinação existencial da pre-sença para a convivência com a morte e
o morrer, no ofício do trabalhador da saúde.
O sétimo capítulo: IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO EDUCADOR
SOCIAL A PARTIR DE UMA PEDAGOGIA NARRATIVA apresenta uma abordagem
sobre a possibilidade de efetivação de uma prática pedagógica social no contexto hospitalar,
23
dirigida à escuta dos profissionais de saúde em suas narrativas de sentido a respeito do
enfrentamento da morte em seus ofícios.
O oitavo capítulo, intitulado PALAVRAS FINAIS, é dedicado às últimas
considerações sobre o trabalho realizado e suas implicações no ser da autora, bem como a
consideração das contribuições científicas possibilitadas pelo estudo e seus desdobramentos.
24
1 O HORIZONTE HOSPITALAR
No mundo contemporâneo, transformado em “balcão de negócios” sob a égide do
capitalismo financeiro e de mercado, a quebra da identidade (pessoal, grupal, social), a
ruptura dos vínculos sociais e afetivos, o consumismo desenfreado, a competitividade
exagerada, o desemprego real (ou como constante ameaça), a desigualdade e a intolerância
dão a marca de nossa realidade humana e social. Tudo isso se projeta sobre o contexto
hospitalar, afetando de forma significativa as relações humanas que ali se estabelecem. Os
valores disseminados pela ideologia e cultura neoliberais, associados aos apelos da
cientificidade racional positivista que impregna o pensamento de grande parte dos
profissionais de saúde, acabam por formatar, nestes, um estilo, muitas vezes impessoal, de se
posicionar diante dos dramas presentes no cotidiano de sua prática. Não podemos
desconsiderar ainda as recentes transformações ocorridas no mundo, que tanto têm afetado os
trabalhadores, especialmente pelas formas denominadas flexíveis (entenda-se espoliantes) de
organização e de relações de trabalho.
No debate sobre a humanização do atendimento em saúde subsidiado pelo Ministério
da Saúde2, evidencia-se a necessidade da efetivação de práticas voltadas para o resgate de
encontros que possibilitem o exercício humano de reconhecimentos, cuidado, compreensão e
acolhimento do outro em si. O atendimento humanizado coloca em xeque a postura
tradicionalmente aplicada às práticas em saúde, abrindo espaço para a criação de novos
modos de agir, de se relacionar e de cuidar. Neste aspecto, práticas humanizadas, além de
constituírem práticas solidárias, podem ainda representar uma forma de resistência à
tendência do poder centrado na hierarquização autoritária.
Assim como na sociedade mais ampla verificamos diversas formas de resistências à
ordem econômica, ideológica e política de cunho globalizador que nos vem sendo imposta,
também no hospital é possível identificar modos de efetivação de prática pessoal, profissional,
social, constituídos por aqueles que convivem no seu cotidiano, que podem se apresentar
como resistência à manutenção da postura e conduta tecnicista, reforçadoras da regulação
social. As características do ambiente e funcionamento hospitalar não se apresentam de uma
maneira ordenada e homogênea, pois comportam vários e diferentes modos de prática social
(incluindo a educação), muitas vezes antagônicos, presentes num mesmo espaço.
2 Política Nacional de Humanização, instituída pelo Ministério da Saúde em 2003, também denominada HumanizaSUS.
25
Se analisarmos a estrutura funcional e as relações que se estabelecem no interior de
um hospital, podemos, num primeiro plano, ou seja, nas primeiras evidências, encontrar a
presença de vários pressupostos da lógica racional científica, tendendo a considerar esta
instituição social um espaço meramente frio, impessoal, excessivamente ordenado e asséptico.
Porém, quando analisamos com maior proximidade e profundidade, podemos perceber as
ambigüidades presentes no seu cotidiano e ambiente, formatadas nas interações estabelecidas
em seu interior e pelo atravessamento de diferentes culturas e ideologias.
Tendo um hospital como cenário e tomando para análise suas enfermarias, cada uma
delas diferenciada das demais, isolada e identificada pelo tipo específico de doença que se
pretende nela tratar por meio das especialidades médicas, encontramos a tendência à
compartimentalização (o hospital é dividido em partes, assim como o tratamento do paciente e
este próprio). Tem-se aí visível a fragmentação do todo, na tentativa de pulverização de sua
complexidade, e a presença marcante da disciplinaridade, constituída na divisão disciplinar do
conhecimento em especialidades distintas e muitas vezes incomunicáveis entre si.
Na ótica guiada pelos pressupostos cartesianos e positivistas, a pessoa doente, que
passa a ser denominada paciente, é retirada do seu ambiente, realidade e cultura para ser
tratada no hospital (loco adaptado para tal finalidade), onde muitos profissionais, valendo-se
principalmente de uma excessiva objetividade e uma pretensa neutralidade nas relações aí
instituídas, definem as formas de tratamento adequadas ao “caso”. A adoção do modelo
biomédico pressupõe o estabelecimento de uma prática dirigida aos aspectos clínicos de
recuperação do corpo biológico e eliminação do agente etiológico da doença. Neste modelo, a
relação estabelecida pelo profissional de saúde, firmada no distanciamento entre ele e o
doente, mantém um padrão de contato onde se pretende que um não seja afetado pelo outro
(especialmente no aspecto emocional), para não prejudicar o tratamento em curso; também
contribui para uma diferenciação entre sujeito (o profissional) e objeto (o doente), que tende a
superestimar o profissional e seu conhecimento e despersonalizar o doente, relegando-o à
condição de mero objeto, coisificando-o.
Assim, fundamentados em pressupostos cartesianos e positivistas, alguns profissionais
tendem a construir e reforçar um modelo de conduta que se configura de modo racional e
objetivo diante da doença (conhecer para controlar), comportando-se de forma a
desconsiderar os aspectos complexos e subjetivos que acompanham o processo de
adoecimento. Ao adotarem uma postura de distanciamento do paciente, em nome de um “não
26
envolvimento emocional”, ou, quando muito, de um “envolvimento emocional controlado”,
buscam a manutenção de um pretenso controle objetivo e racional como guia dos seus atos.
Novos paradigmas em saúde, dentre os quais situam-se a abordagem holística e a
teoria sistêmica, têm contribuído para uma revisão desta postura e construção de novas
práticas, que rompem com a assepsia emocional. A proposta do Sistema Único de Saúde
(SUS), enquanto política pública e modelo oficial público de atenção à saúde, prima pela
constituição de práticas interdisciplinares e coletivas, favorecedoras da valorização dos
diferentes sujeitos implicados no processo de produção da saúde; o que não se faz dissociado
da educação.
O ambiente asséptico, estabelecido em nome de um controle de infecções, muitas
vezes expande-se para além do espaço físico e atravessa as formas adotadas de
relacionamento, remetendo a uma frieza de comunicação e contatos entre o profissional e o
doente. Neste enfoque, o tratamento adotado segue fórmulas e métodos precisos (denominado
de terapêutica médica), que são utilizados com o objetivo de controlar a doença. Quando não
conseguem evitar a morte de um paciente, alguns profissionais experimentam a sensação de
impotência (ficando desmascarada a pretensa onipotência, firmada em um saber supostamente
absoluto). Há os que aparentam uma distância emocional diante da situação do paciente e seus
dramas, mas há também aqueles que demonstram emoção e comoção ante as alegrias e os
sofrimentos presenciados e a perda de um paciente, com o qual estabelecem uma relação
próxima de convivência.
Apesar do atendimento hospitalar não se compor apenas de médicos e enfermeiros,
configurando-se o mesmo por uma diversidade de profissionais que atuam em seu cotidiano e
espaço, tendeu-se social e historicamente a reconhecer o médico como um profissional “mais
importante” que os demais, conferindo-lhe um lugar privilegiado no tratamento do paciente,
já que sua ação incide diretamente sobre o mesmo e sua possibilidade de cura. É como se o
médico não precisasse do porteiro, do pessoal da limpeza, dos auxiliares de enfermagem, e
outros, no desempenho de suas funções e, como se as ações destes não influenciassem e
afetassem o tratamento da pessoa hospitalizada. Muito embora isto aconteça, a convivência
entre os diversos profissionais oferece uma importante contribuição para a instalação de um
diálogo interdisciplinar e para o reconhecimento das diferentes práticas sociais. Diversos
profissionais, em especial aqueles com formação nas ciências humanas e sociais, contribuem
para a veiculação de um discurso que leva em consideração as dimensões sociais, culturais e
27
subjetivas do processo saúde-doença e, por conseguinte, para a implantação de uma
assistência integral ao doente na qual se inclui a Educação Especial3.
A dicotomia estabelecida entre o conhecimento apresentado pelo profissional médico e
os demais permite que o primeiro conjugue um saber falsamente soberano em relação aos
últimos, apoiado em questões que, de maneira epistemológica, social e historicamente foram
se tecendo. O que se percebe aí implícito é a rigidez da disciplinaridade em detrimento do
diálogo e prática flexível da transdisciplinaridade. É como se os conhecimentos não se
interpenetrassem e se complementassem. A proposta do SUS, enquanto política pública e
modelo oficial público de atenção à saúde, no entanto, prima pela constituição de práticas
interdisciplinares e coletivas, favorecedoras de valorização dos diferentes sujeitos implicados
no processo de produção da saúde.
Importa considerar, ainda, que a tendência do comportamento médico passa a imperar
como o modelo a ser seguido pelos demais profissionais, na maioria das instituições de saúde.
No sentido pedagógico, ele parece se ligar a uma abordagem tradicional de ensino
(MIZUKAMI, 1986). Neste caso, entendo que somente a possibilidade da adoção de uma
postura aberta à consideração da complexidade e da subjetividade dos fenômenos humanos e
à concepção do hospital como espaço coletivo de efetivação de práticas sociais e humanas,
poderá contribuir para a construção de uma dialógica diferente, permissível à emersão de
protagonismos no contexto e na conduta do profissional da área da saúde.
O SUS se fundamenta numa nova visão da ciência que valoriza os estudos
humanísticos; rompe com a disciplinaridade limitada e assegurada dentro de uma fronteira
rigidamente estabelecida e, assim, reconhece a possibilidade do estabelecimento de um
diálogo flexível entre os diferentes tipos de conhecimento, tomando como princípio a
transdisciplinaridade; valoriza a interconectividade das ações em redes e defende a idéia de
uma visão holística, onde os fenômenos biológicos, psicológicos, ambientais e sociais
encontram-se inter-relacionados de maneira sistêmica. Nesta concepção científica e
paradigmática, o homem é concebido como um sistema aberto em constante interação com o
seu meio e só pode ser compreendido na consideração de suas relações com o meio em que
vive. Para Boff (2004), importa recuperar uma visão onde o homem não pode ser visto
3 Um bom exemplo de Educação especial em ambiente hospitalar nos é dado pelas Classes Hospitalares, que marcam uma modalidade de atendimento educacional especializado destinado a alunos impossibilitados de freqüentar a escola regular, em virtude de encontrarem-se sob tratamento de saúde que implique em internação hospitalar, conforme a Resolução CNE/CEB nº 02, de 11/09/2001 (FONSECA, 2003).
28
isoladamente, mas em relação ao conjunto das condições que o constituem e pelas
interconexões que estabelece e mantém sua existência.
Na compreensão fenomenológica, o homem se constitui a partir das relações que
estabelece no mundo, na vivência cotidiana das mais variadas experiências e dos efeitos
ressonantes destas em seu ser. Desta forma, no hospital, sujeitos se imbricam, se tocam e se
afetam no movimento interativo estabelecido entre estes, por ocasião de seus contatos. Nesta
perspectiva, não dá para concebê-los como se fossem elementos totalmente distintos e
isolados e incomunicáveis.
Desta forma, o trabalhador da saúde inserido no cotidiano hospitalar vivencia
inúmeras experiências que vão dando a marca de sua existência. Na interação com o(s)
outro(s), subjetividades se encontram e se afetam, constituindo assim intersubjetividades e,
deste modo, significando vivências e processos de encontro com o mundo e com o outro, no
modo de coexistência possibilitado nas “interexperiências” descritas por Laing (1978). Os
diferentes sujeitos no ambiente hospitalar vão, assim, se reconhecendo e se revelando, tecendo
significações para seus encontros, existindo para si e para o mundo.
1.1 O PROFISSIONAL DE SAÚDE: desafios e limite institucionais
A realidade manifesta do cotidiano hospitalar, com seus dramas e vivências instaladas,
os conflitos, bem como as práticas sociais e humanas que aí se estabelecem, representa para o
trabalhador da saúde oportunidades e desafios. A considerar a natureza do trabalho
desenvolvido nesta instituição social e a especificidade da atenção ao cuidado para com o
paciente, a prática desenvolvida no hospital coloca a pessoa/profissional de saúde em contato
permanente e próximo com o fracasso, o sucesso, a dor, a alegria, histórias de vida e dramas
íntimos de pessoas muitas vezes desconhecidas. Isso se conforma num mosaico de narrativas-
de-sentido, que favorece a produção de conhecimentos. O profissional de saúde, assim,
adquire aprendizagens com aqueles com os quais compartilha seu ofício. Daí, neste híbrido
contexto, encontros são estabelecidos, múltiplas experiências e interexperiências se instalam,
desencadeando diversas afetações.
Para Espinosa (apud GLEIZER, 2005), o homem é composto por vários corpos, o que
lhe confere uma complexidade que, por sua vez, o torna apto a afetar e ser afetado de diversas
maneiras e a reter as afecções causadas pelas interações e contatos de que participa. Por estar
29
no mundo, o homem interage o tempo todo, em intensidade e formas variadas, com as coisas e
pessoas que encontra. A conseqüência das afetações geradas nos encontros leva o homem a se
expressar, transforma o afeto em expressão.
No caso da morte, as afecções por ela provocadas são diversas, assim como os modos
revelados de lidar com sua existência real e concreta em nosso meio. O contato com a morte
afeta e marca nosso ser pessoal (individual) e social (coletivo). Se em nossa vivência pessoal
a morte marca a dor da existência humana, no aspecto do ofício ela não se apresenta de
maneira diversa. Embora muitos trabalhadores tragam no seu ofício a marca da morte e a
convivência com as múltiplas expressões desta, ela não deixa de ser considerada como um
tabu, uma experiência que precisa ser controlada objetivamente para “impossibilitar” a
emersão da dor existencial.
Em sua prática profissional, o trabalhador da saúde, que também se constitui um
educador, desenvolve diversas ações (inclusive educacionais) reveladoras de inúmeros modos
de enfrentar e lidar com a morte; alguns deles marcando uma resistência ao real contato com
ela, na busca da constituição de defesa à(s) dor(es) que ela evoca. Considerar morte e vida
como aspectos da existência humana, contraditórios e dissociados, pode ser uma destas
estratégias de que as pessoas se valem para fugir dos seus assombros ante a morte. A morte do
outro pode evocar a minha própria morte, que acontecerá um dia, de alguma maneira; ou pode
contribuir para a focalização da morte como algo pertence ao outro, não a mim. Além disso,
tememos perder o que amamos e sofrer com estas perdas. A morte presenciada e assistida
pode fazer emergir as perdas já vividas em nossa existência e nos atentar para aquelas que
poderemos ainda vivenciar, provocando uma “aprendizagem de angústia em nosso ser sendo”.
Ignorar a morte (esse evento educativo) como algo partícipe da existência humana pode
significar uma maneira de tentar se proteger das vicissitudes da vida (que atuam no mundo da
vida como “ensinantes” em nosso processo de desenvolvimento humano). Em contrapartida,
encará-la como evento existencial do ser pode contribuir para a efetivação de novos modos de
posicionamento no mundo, capazes de subverter diversos processos de vida pessoal e social
de ser-no-mundo.
Nas diversas possibilidades de relações e práticas que se efetivam entre os múltiplos
sujeitos que compõem o cotidiano hospitalar, o profissional de saúde carrega um conjunto de
impressões singulares e subjetivas ante o adoecimento e a finitude, constituídas a partir dos
modos de encontro com o outro e com o mundo, que ora aproximam/convergem, ora
30
afastam/contrastam com as da pessoa doente e seu familiares, em meio aos dramas e
sofrimentos aí presentes.
A morte de um menino de dez anos ocorrida em junho de 2007 serve para ilustrar
como alguns profissionais se conduzem diante da morte no exercício de seus ofícios. Era um
menino saudável, alegre, com muitos amigos e muito querido de todos: pais, vizinhos,
professores, colegas de escola. Foi atropelado, junto com seu melhor amigo, diante da sua
mãe, tendo o motorista fugido do local sem prestar socorro. O amigo morreu ao dar entrada
no hospital e, ele, dois dias depois. Já chegou grave, evoluindo para morte encefálica no dia
seguinte à internação. Os pais eram pessoas socialmente humildes, mas de uma grandiosidade
de alma e uma capacidade de conduzirem-se com dignidade diante do sofrimento intenso por
que passaram. Jamais demonstraram revolta, ou auto-piedade, por estarem perdendo o único
filho. O sofrimento destes pais afetou toda a equipe do CTI, fazendo emergir em todos uma
intensidade de sentimentos voltados à proteção, carinho e compaixão para com os pais.
Houve uma grande vinculação de todos os profissionais com os pais e o menino. A
médica que cuidava do menino, apesar de ciente da gravidade do caso, mantinha firme uma
conduta de esperança na recuperação do seu paciente, com grande investimento profissional
neste sentido e uma dificuldade para aceitar o grande e certo desfecho de óbito, certificado
pela evolução clínica para o quadro de morte encefálica. A enfermeira, comovida pela
situação, assegurava a permissão de visita aberta para todos os familiares, de modo a permitir
que estes pudessem se despedir do menino. A assistente social e a profissional de saúde
mental tentavam se manter firmes para oferecer suporte aos pais, mas era impossível não se
comover diante destes. Os técnicos de enfermagem expressavam sua tristeza diante da
situação de ter que efetivar os cuidados ao paciente; não aceitavam bem a triste realidade de
ver um menino saudável, bonito e tão querido perder a vida. No momento da abordagem aos
pais para a doação de órgãos do filho, todos os presentes (assistente social da equipe de
captação, assistente social, enfermeira e médica do CTI) se comoveram diante dos pais.
Apenas o profissional de neurocirurgia mantinha uma conduta fria e aparentemente insensível
diante de tão trágica situação. Isto causou revolta nos profissionais do CTI, que passaram a
não aceitar mais sua presença neste caso, recorrendo a outro neurocirurgião.
Todo o atendimento a este menino e aos seus pais foi marcado pela intensidade dos
sentimentos e afetos presentes nas diversas situações vivenciadas. Diante disto, a equipe do
CTI sempre procedeu tentando proteger os pais de sofrimento. Até mesmo a situação de
31
captação dos órgãos para doação foi conduzida de maneira a facilitar a liberação do corpo,
evitando sofrimentos adicionais para a família. Ninguém conhecia os pais e tampouco eram
estes pessoas de alguma influência social ou política. Foi a simplicidade e a dignidade deles
que (co)moveu a equipe do CTI e fez com que os profissionais buscassem o tempo todo
cuidar destes pais e tentar preservá-los do sofrimento. Assim se conduzindo, os profissionais
estariam também tentando proteger a si próprios dos dissabores que acompanham tal situação.
O relato desta observação evidencia a existência de uma tensão emocional vivida pelo
profissional de saúde no exercício e suas funções. Concordo com Campos (2005), quando
este afirma que o profissional de saúde é um cuidador sob constante tensão, tendo em vista
que “O ser humano doente oferece ao profissional de saúde um desafio quase intransponível
em muitas situações [...]” (p. 33). No caso da morte, em especial, esta, muitas vezes, se
apresenta de maneira sentida/vivida pelo profissional de saúde como uma ameaça à sua
integridade emocional e às funções de cuidado e cura, socialmente estabelecidas em seu
ofício.
Os avanços tecnológicos e as descobertas científicas na área da saúde vêm
contribuindo para uma sobrevida maior das pessoas com doenças crônicas, como também
para uma diminuição da freqüência e do tempo de internação hospitalar. Com isso, muitos
doentes crônicos passam ter sua situação de saúde e cuidados acompanhados em ambiente
domiciliar, proporcionado não apenas por profissionais de saúde, mas também por pessoas de
seu convívio mais próximo.
Recentemente o termo cuidador tem sido muito utilizado na área da saúde em
referência, tanto ao profissional, quanto ao leigo (familiar ou uma pessoa próxima ao doente),
que se dedica à pessoa enferma, ou àquela que, por algum motivo, demanda cuidados
específicos em relação à sua saúde e/ou ajuda para as realizações de suas atividades diárias,
por encontrar-se impossibilitada de fazê-los por si própria. Assim, cuidador é uma pessoa que
se ocupa e preocupa em prover as necessidades físicas e emocionais da pessoa doente, ou de
alguma maneira desabilitada. Isso requer treino e conhecimento. No caso do profissional de
saúde, este dispõe de uma formação acadêmica, composta por conhecimento teórico
especializado e treinamento técnico, que o habilita a desenvolver os cuidados em saúde. Já no
caso do cuidador leigo, este é, em geral, treinado por profissionais de saúde, para exercer os
cuidados domiciliares. Muitas vezes, o cuidador leigo apreende tão bem as técnicas de manejo
com o doente, que mais parece um verdadeiro expert.
32
A meu ver, vários são os motivos que podem levar alguém a se constituir cuidador:
necessidade de sentir-se útil socialmente, vontade de compartilhar experiências, vontade de
ajudar para ser ajudado, pretensa arrogância de ver apenas no outro a necessidade de ser
cuidado e, com isso, alijar-se de suas próprias necessidades, etc. Contudo, para que alguém se
torne cuidador é indispensável que apresente algumas características pessoais como, por
exemplo, disposição para ajudar o outro, capacidade de realizar empatia, disposição para
realizar a escuta, o diálogo e o acolhimento. Cuidar requer, pois, atenção e solicitude com o
outro e se faz por meio de uma inter-relação.
Ao adentrar nesta discussão, relevante se faz esclarecer a noção de cuidado e a de
cuidador, que passam a ser aqui utilizadas. Quanto ao conceito de cuidado, remeto-me
inicialmente a Boff (1999), que muito contribui com sua consideração de que o cuidado,
muito mais do que um mero ato, é uma atitude que se manifesta na forma de ocupação,
preocupação, responsabilidade e envolvimento afetivo com o outro.
A noção de cuidado em Boff encontra-se subsidiada pela teoria existencialista de
Heidegger e, para este último, o cuidado é tido como condição ontológica do homem,
configurado como um ser-no-mundo que comporta um ser-em e um ser-junto a. Cuidado,
juntamente com a dedicação, deriva de cura. O cuidado, para Heidegger, comporta duas
dimensões, que são a ocupação (ser-junto a) e a preocupação (ser-com). Trata-se de um
ocupar-se do outro, mas também preocupar-se com este outro. De Heidegger, temos ainda que
“A preocupação se comprova, pois, como uma constituição ontológica da pre-sença que,
segundo suas diferentes possibilidades, está imbricada tanto com o seu ser para o mundo da
ocupação quanto com o ser para consigo mesmo [...]” (HEIDEGGER, 2002a, p. 174).
Neste sentido podemos pensar no cuidador como aquela pessoa que se coloca na
relação com o outro, de modo a ser-em (situação) e ser-junto a (atitude) alguém que dele
(cuidador) demanda específico cuidado. Assim, cuidador passa a ser aquela pessoa que se
abre para o outro em ocupação e preocupação.
A despeito dos avanços tecnológicos e da evolução dos conhecimentos em biologia,
medicina, farmacologia e outras áreas, que possibilitam avanços no tratamento e cura de
doenças, estar e atuar no hospital, este lugar-tempo de perdas concretas, pode remeter a
sentimentos de impropriedade, de impotência, de fracasso, ante a morte de um paciente. O
profissional de saúde, no cotidiano da prática hospitalar, encontra-se submetido e partícipe de
33
uma série de conflitos, angústias, falta de condições dignas de trabalho e outros fatores,
incluindo aí as expectativas e exigências que emergem nos encontros e desencontros com
cada pessoa com a qual se defronta na prática.
Ser cuidador implica em lidar com o sofrimento seu e do outro em intensidades nem
muitas vezes suportável. Implica viver e reviver momentos de sofrimentos solitários ou
compartilhados. Assim, os modos de cuidar e de receber cuidado se atravessam e provocam
diversas afecções nas experiências e modos de cuidado estabelecidos.
[...] mesmo naqueles que só indiretamente são responsáveis pelos pacientes [...] O ambiente vivenciado, o clima, o envolvimento de grupo é o mesmo. Todos têm como objetivo de trabalho o ser humano doente. Todos são obrigados, de algum modo, a conviver com a doença e suas conseqüências. Todos são obrigados a conviver com emoções, sentimentos e conflitos intensos presentes nos pacientes, nos familiares e nos próprios profissionais. Todos são desafiados na sua auto-estima frente à expectativa de onipotência que não têm. Todos são obrigados a conviver com a frustração e a onipotência [...] Todos são obrigados a se confrontar com a realidade da doença e da morte, apontando-lhes a temida mas inarredável finitude (CAMPOS, 2005 p. 36).
Ronald Laing, psiquiatra existencialista, por quem caminhei em minha revisão de
literatura neste estudo, fornece uma concepção de experiência que me auxilia a compreender a
experiência em Heidegger. Para ele, tanto quanto para Heidegger, a experiência do outro me é
interdita, dado que não posso fazê-la na concretude do modo como o outro a faz. Assim, a
experiência do outro me é invisível, pois não posso vivenciá-la da exata maneira como o outro
a vivencia (o mesmo se aplica no inverso).
Tendo por concepção que a experiência do outro me é impossível, pois não posso
experienciar a concretude de sua experiência, neste caso, a experiência do outro me é sempre
relativa e mediada pelo comportamento deste. Minha experiência do outro é o outro-
conforme-eu-o-experiencio. Portanto, experiencio o outro como experienciando, ou seja, no
seu movimento/comportamento de experienciar.
Ao abordar a questão da experiência como algo presente nas relações que se
estabelecem no contexto hospitalar, marcadoras da realidade humana e social do homem
como ser-no-mundo, reporto-me à fenomenologia ontológico-hermenêutica de Heidegger. Em
suas idéias, Heidegger (apud INWOOD, 2002)4, concebe que a experiência tem ocorrência
passiva e ativa. Na primeira, constitui-se de algo que vem até nós, sem que o procuremos; na
4 Faço aqui referência ao Dicionário dos termos e conceitos de Heidegger (Dicionários de filósofos). Utilizo a versão traduzida no Brasil e publicada por Jorge Zahar Editor.
34
segunda, apresenta um modo ativo que se configura pela ação de irmos à procura de algo.
Ainda, segundo ele, quando partimos em busca algo, vamos ao encontro de... no aguardo de
que novas condições sejam produzidas ou produzindo-as.
Experiência envolve contatos, relações, processos e implica nos modos como lidamos
e enfrentamos as situações em nossa vida e delas apreendemos, ou não, significações.
Experiência vem a ser, portanto, um movimento, acontecimento, ativo ou passivo, de contato
com algo (os entes), no mundo circundante, que se desdobra em contato com a vida e produz
apreensão de sentidos de ser. Para Heidegger, importa a maneira como o homem suporta o
estar lançado no mundo e como ele é no mundo, aberto ou não aos entes presentes no mundo
circundante.
Nas interexperiências desencadeadas pelas diversas interações que se dão no contexto
hospitalar entre aquele que se designa cuidador e o outro denominado paciente (demandatário
de cuidado), as circunstâncias de vida, os valores, a cultura, a ideologia, as crenças de cada
um influenciarão significativamente o encontro e a vivência destes dois sujeitos.
A experiência no contexto hospitalar, aqui pensado também enquanto mundanidade do
mundo, caminha com as vivências aí instaladas, que podem se tratar de eventos isolados,
temporais, individuais, passivos, ao mesmo tempo em que se configuram como
acontecimentos externos e internos, coletivos, produtores. O profissional de saúde, enquanto
homem e ser-no-mundo pode ser perpassado por suas vivências ou manter-se inalterado
diante delas. Assim pensando, o profissional de saúde como cuidador, nos modos de ser,
interexperienciando, inter-relacionando em sua angústia diante do sofrimento e da morte, em
suas alegrias e realizações, segue em vida compondo sua existência encarnada e seu sentido
de ser.
35
2 O LUGAR DA MORTE NO MUNDO OCIDENTAL: a visão de diversos
autores
“Havendo o nascimento, haverá o morrer – o viver alegre e sofrido, o envelhecer, o gozo... Mas morrer e nascer carece de compreensão”.
Hiran Pinel
Esta seção se destina a resgatar o que a literatura especializada e alguns teóricos
oferecem como contribuição para o entendimento da morte, procurando trazer à tona trabalhos
publicados em periódicos, dissertações, teses e livros que fornecem uma compreensão do
estado da arte a respeito da morte e da morte no oficio de profissionais de saúde.
Heidegger, em sua obra Ser e Tempo, faz uma diferenciação entre as palavras ôntico e
ontológico. Reconhece o ôntico como estrutura e essência própria de um ente, que o difere
dos demais; suas características próprias, o que lhe confere a identidade. Ôntico, portanto,
vem a ser o ser do ente. Sobre ontológico, Heidegger fala de uma ontologia fundamental que
se refere ao ser, interrogado no seu ser sendo. Ontologia, para ele, compreende o ser sendo,
em sua existência. Com base nesta consideração heideggeriana, procedi a uma abordagem da
morte pela revisão de literatura, à qual denomino de ôntica, reservando para o capítulo de
referencial teórico (por mim tomado como pensamentos fundamentais), uma abordagem
ontológica sobre a morte.
A morte é um dos temas a que se dedicam os teóricos do Existencialismo, tendo em
vista a profunda angústia que esta evoca no homem. Entretanto, também outros estudiosos,
nem sempre ligados especificamente ao Existencialismo, dirigiram suas atenções para este
assunto buscando desenvolver conhecimentos que oferecessem contribuições possíveis para a
consideração da morte e do morrer em nossa vivência pessoal e profissional. A intenção
central desta seção é realizar uma inicial e breve revisão de literatura que nos ajude a
compreender, na medida do possível, a morte como fenômeno integrante do desenvolvimento
humano e as estratégias estabelecidas sócio-historicamente no ocidente para seu
enfrentamento.
Reconhecendo a existência de uma literatura mais vasta, os trabalhos aqui
referenciados constituem apenas o ponto de partida para a aventura em busca de um
conhecimento e uma ontologia profunda do tema escolhido para meu estudo, que, acredito se
36
dará a partir das contribuições de Heidegger. O material selecionado e apresentado não
configura a totalidade do que existe publicado sobre o tema deste estudo, mas o que foi
possível acessar da produção científica existente sobre a morte em geral e a morte na vivência
dos profissionais de saúde, enquanto parte constitutiva de seu ofício.
Em referência ao modo como as estratégias de enfrentamento da morte e do morrer
foram se constituindo no ocidente ao longo dos séculos, importantes contribuições nos são
fornecidas por intermédio dos estudos de Ariès (1977a, 1977b), também presentes em Torres
(1983) e, de forma bem sucinta, em Cruz et al. (1984). Ainda sobre o entendimento da morte e
as formas possíveis de seu enfrentamento, podemos destacar as valiosas contribuições de
Kübler-Ross (2005), Bromberg et al. (1996), Boemer (1986), Kovács (1992), Pitta (1994),
Keleman (1997), dentre outros.
Quando a atenção sobre a morte se volta aos aspectos econômicos e sociais,
encontramos em Ziegler (1977) uma análise sócio-cultural sobre a morte no ocidente, que
inclui os aspectos econômico-sociais afetos à questão da mesma, na especificidade da
sociedade atual. Certeau (2005) também oferece significativa contribuição para a discussão da
morte em nossa cultura, na sua discussão sobre o cotidiano (que se configura em sentido
diferente da concepção de cotidiano de Heidegger).
Quanto à questão do desenvolvimento humano, Kovács (1996) afirma que a morte
pode ser constelada em cada fase do desenvolvimento humano e faz, ainda, referência às
mortes simbólicas, entendidas como escolhas realizadas em vida que implicam em perdas.
Assim, no percurso de nossa vida e desenvolvimento humano lidamos com várias mortes e
continuamos a viver com os significados que vamos adquirindo nestas experiências de perdas
sentidas. E, é ainda em Kovács (1992) que se encontra uma referência aos modos como, desde
a infância até a velhice a morte vai sendo compreendida, sentida e enfrentada.
Realizando uma incursão à consideração da morte e do morrer em nossa civilização
ocidental, podemos compreender que as sociedades constituídas ao longo de nossa evolução
sócio-histórica nem sempre mantiveram as mesmas posições diante deste fenômeno. Cada
época específica marca um modo constituído pelo homem de se relacionar com a morte e
vivenciar o seu morrer. Entretanto é importante considerar que não somente o momento
histórico constrói modos distintos de lidar com a morte, mas a etnicidade é também fator de
constituição destes.
37
Encontro pronunciamento a este respeito nas idéias de Brown (1995). Segundo ela,
alguns grupos étnicos aparentam um melhor preparo para lidar com a morte do que outros.
Sua análise tece uma comparação entre as formas distintas de lidar com a perda e a morte,
constituídas e demonstradas pelo grupo étnico anglo-saxão protestante e pelos judeus. Para
ela, existe, no primeiro grupo, uma dificuldade para lidar com a morte, geralmente expressa
por uma contenção da expressão emocional verbal e não-verbal. A autora toma isto como um
despreparo para lidar com os sentimentos. Já os judeus, segundo ela, constituem-se como
grupo étnico, cuja tradição histórica de sofrimento compartilhado colabora para que eles se
apresentem mais expressivos de seus sentimentos, mais abertos e preparados para lidar com
os sofrimentos existenciais, incluindo a morte. Ela também compartilha e defende a idéia de
que existe uma negação da morte em nossa sociedade, ao que denomina “negação societal da
morte” (p. 393), que serve para nos manter inconscientes de seus efeitos.
Também o estudo de Ziegler (1977) corrobora a consideração da questão étnica na
concepção da morte e do morrer. Este autor concebe a morte como um acontecimento natural,
social e cultural. Um acontecimento que chega para todos os homens, de todas as classes e
nações, porém em situações sociais específicas, dadas as desigualdades de condições de vida e
de oportunidades. Seu estudo traz uma análise do espaço que diferentes culturas concedem à
morte, reportando-se comparativamente aos aspectos culturais dos negros brasileiros no culto
do candomblé e à cultura industrial do ocidente.
A obra de Cruz et al. (1984) traz uma boa contribuição para o entendimento de como a
morte foi e vem sendo tratada em diferentes culturas e épocas históricas. Também ressalta as
diferentes formas de assistência religiosa em variados credos existentes (judaísmo, budismo,
catolicismo, xintoísmo, protestantismo, espiritismo, cultos afro-brasileiros). Traz ainda uma
preocupação quanto ao conceito de morte, apresentado em referência ao aspecto biológico da
existência humana, ligada ao fim do funcionamento das atividades cerebrais e, por
conseqüência, às demais funções orgânicas. Defende a idéia de que o profissional de saúde
proporcione condições para a efetivação de uma assistência religiosa ao doente e seus
familiares, durante a hospitalização ou no acompanhamento domiciliar e que isto se faça por
meio de uma atenção do profissional no sentido de assistir psicorreligiosamente a unidade
familiar.
Em relação à evolução histórica, o trabalho de Ariès (1977a) faz um resgate, por meio
de uma análise iconográfica, das diferentes formas de lidar com a morte na história e cultura
38
do homem ocidental. Segundo ele, na Idade Média, o homem europeu considerava a morte
como um acontecimento que marcava o encerramento da vida terrestre, sendo esta, ainda,
encarada como um portal que possibilitaria a passagem para a vida celestial. Em geral morria-
se de doenças ou nas guerras. O homem era conhecedor de sua morte por uma convicção
interna, adquirida a partir de signos aparentemente reveladores de sua morte. Em geral, o lidar
com a morte não carregava a angústia que nos dias de hoje é tão comum ante a questão da
finitude humana. O século XIX deu vez à morte romantizada: morrer de amor; representando
a possibilidade de re-encontro com as pessoas amadas no além, na eternidade. A angústia ante
a morte vai se fazer presente, sobretudo, a partir da instalação da sociedade moderna, de
produção e consumo capitalista, que trouxe profundas mudanças nos modos de vida e nos
valores humanos até então existentes. No século XX, a morte passa a representar o fracasso e
a fraqueza humana e por isso deve ser ocultada. A sociedade passa a não suportar os sinais
reais e concretos da morte, que acaba por se converter num tabu.
Maranhão (1998), a partir do trabalho de Ariès, faz referência aos ritos de morte e
funeral que ocorreram por séculos em nossa história. A cena da morte desvela o moribundo
em seu leito e quarto, organizando e presidindo solenemente sua morte, o que ocorria em
cerimônia pública, marcado pela simplicidade e ausência de dramaticidade ou gestos
excessivos de expressão emocional. O funeral durava de dois a três dias. O corpo após
banhado e vestido, era coberto por uma mortalha e exposto sobre uma mesa, para que, durante
este período, seus parentes e amigos pudessem dele se despedir. As manifestações de luto e
pesar eram respeitadas pelos familiares por tempo necessário à superação da dor da perda,
somente após a qual se dava o retorno à vida social. As pessoas morriam sabendo da sua
morte. Tinham consciência do seu fim próximo, que não lhes era negado. “[...] A morte
súbita, repentina, era considerada desonrante, uma verdadeira maldição, não só porque
impedia o ato de arrependimento, como também privava o homem de organizar e presidir
solenemente a sua morte [...]” (MARANHÃO, 1998, p.12).
Para Torres (1983), os modos de organização da sociedade (industrial produtiva),
postos a partir da segunda metade do século XIX, contribuem para desencadear a crise do
homem ante a morte. Para ela, ainda, a morte é um sujeito ausente no discurso no século XX.
[...] A linguagem manifesta, que nasce das descobertas e das novas relações de produção, consecutiva ao lento surgimento do capital como força principal de produção, diz exatamente o contrário do que se afirmava na Idade Média. Nesta, a promessa da vida eterna recolhia, prolongava, ampliava o destino humano. Já para a sociedade moderna, vivo, o homem pode quase tudo; morto nada mais é [...]. A
39
linguagem tende, pouco a pouco, a hipertrofiar-se em relação ao homem que vive; vai progressivamente calar-se sobre o homem que morre, chegando-se assim a esta sociedade atual, que envolve em proibição, tabu e silêncio, todo o debate sobre o evento tanático [...] (TORRES, 1983, p.10).
A este respeito também se pronuncia Certeau (2005), em seu trabalho de análise do
cotidiano, ao afirmar que o moribundo constitui-se no lapso do discurso da razão capitalista,
tendo em vista que, por sua condição, não produz, não acumula, não consome. Como já
mencionado acima, Ariès (1977a), denuncia a forma como a morte na sociedade capitalista
contemporânea é marcada pela interdição, pela camuflagem, que desvia o homem do contato
com a sua finitude. Maranhão (1998) compartilha da idéia de que há uma interdição a respeito
da morte na sociedade contemporânea e, ainda, faz uma curiosa comparação entre a
consideração da morte e da sexualidade em nossa cultura ocidental atual, desvelando que,
“[...] à medida que a interdição em torno do sexo foi se relaxando, a morte foi se tornando um
tema proibido [...]” (p. 9).
Ainda, em Ziegler (1977) e Maranhão (1998) encontram-se a afirmação de que o tabu
sobre a morte, instituído na sociedade capitalista, vem a ser uma estratégia de ocultamento das
desigualdades sociais, pois, apesar de um discurso de que todos se igualam pela morte, há
diferenças significativas entre a morte e o morrer nas diferentes classes sociais,
principalmente em relação ao de que e como se morre. Disto temos conhecimento empírico
suficiente em nossa realidade brasileira com suas desigualdades sociais, pois apesar de a
morte ser o destino, tanto da pessoa rica como da pobre, temos visto que o pobre ainda morre
por conseqüência de suas condições precárias e insalubres de moradia, de trabalho e de
exclusão social. A este respeito Torres (1983) afirma que “[...] a morte é um acontecimento
que atinge todos os homens, de todas as classes, mas ocorrerá em situações sociais
específicas, determinada para cada um, por sua classe, família, raça, cultura, religião” (p. 9-
10).
A respeito da situação da pessoa com doença terminal e suas formas de enfrentamento
da morte, o trabalho de Kübler-Ross (2005) constitui-se em obra pioneira para a discussão da
atenção e cuidados a estas pessoas, visando facilitar-lhes o momento da morte. Seus estudos
produziram um movimento em defesa da assistência humanizada ao processo de morrer, que
vem se potencializando nas últimas décadas, especialmente com o desenvolvimento da prática
40
de cuidados paliativos5 aos pacientes terminais. Brown (1995) aponta que tem havido uma
inflexão nos modos de atendimento e cuidados à pessoa terminalmente enferma, decorrente da
mudança na filosofia dos serviços de saúde, passando a haver uma transposição do cuidado
centrado no hospital e no especialista para a co-responsabilidade partilhada ente o
profissional, o doente e a família deste. Torres (1983) aponta que as ciências humanas
ofereceram significativa importância e contribuição para tirar da obscuridade o debate sobre a
morte. Tudo isto evoluiu graças ao trabalho pioneiro de Kübler-Ross. Os cinco estágios6 de
enfrentamento da morte pelo doente, descritos por esta autora, quando compreendidos pelos
profissionais de saúde, favorecem nestes a constituição de uma postura que os auxiliam a lidar
com a morte do paciente.
A este assunto é imprescindível que se associe a questão do posicionamento do
profissional de saúde diante da morte. Embora nossa sociedade seja negadora da morte,
alguns estudiosos procuram envolver-se na área de tanatologia7, produzindo estudos que, de
alguma maneira, abordam a questão dos profissionais de saúde diante da morte, ou
contribuem para esta discussão. Dentre eles estão os trabalhos de Kovács (1992), Certeau
(2005), Maranhão (1998), Ziegler (1977), Stedeford (1986), Pitta (1994), Machado e Leite
(2004) e artigos como os de Costa e Lima (2005), Siqueira Junior; Ulian e Queiroz (2004),
Hoffmann (1993), Vianna e Piccelli (1998), Moreira e Biehl (2004), Garros (2003),
Starzewski Junior; Rolim e Morrone (2005).
5 Cuidados paliativos constituem-se em forma de atenção surgida na atualidade, pautada na ocupação do profissional de saúde com a pessoa terminalmente enferma (fora de possibilidades de cura), procurando dispensar e garantir, a esta, a efetivação dos cuidados com sua higiene, alimentação, atividades de lazer e outros, que lhe propiciem uma maior qualidade de vida durante o tempo que resta para ser vivido.
6 Os cinco estágios de enfrentamento da morte pela pessoa doente terminal são descritos por Kübler-Ross como sendo: 1- negação: reação inicial do paciente ao conhecimento de sua situação terminal, que vem a ser uma defesa temporária, causada pelo choque inicial; 2- raiva: reação de revolta com sua condição e ressentimento por ser ele a estar nesta situação, caracterizada pela emersão do sentimento de mágoa e raiva que se projeta em diversas direções; 3- barganha: tentativas, geralmente silenciosa, de negociar e realizar alguns acordos (principalmente com Deus), que possam adiar o inevitável desfecho; 4- depressão: A visibilidade de sua condição física evidencia ao doente a sua dura realidade, fazendo com que este não mais consiga esquivar-se e negar a sua doença, o que faz com que a revolta dê lugar ao sentimento de perda e pesar; 5 – aceitação:aceitação incondicional do inevitável desfecho.
7 O termo Tanatologia faz referência ao estudo e teorias da morte, bem como a parte da medicina que se ocupa de dirigir atenção aos aspectos relacionados à morte e ao morrer.
41
No trato da questão acima mencionada, os trabalhos revelam certa unicidade ao
considerar os profissionais de saúde como tanatocratas8 que, apesar de ter a morte como parte
de seu cotidiano de trabalho, apresentam comportamento de negação da mesma, geralmente
expresso na atitude onipotente em busca de controle e domínio sobre esta, o que vem a
significar dificuldade em suportar a dor, a angústia, o medo, o desespero, a frustração, a
ansiedade, o estresse e a tensão que a morte evoca.
Assim, no hospital tanto quanto nos demais espaços sociais modernos, a morte é
deslocada para o outro lugar. E, neste sentido a morte é a morte do outro, não a nossa própria.
“A morte é um fenômeno do cotidiano. Vivemos sempre a morte como a morte do outro. Os
outros morrem e eu ainda não. A minha morte eu penso amanhã. Nós nos esquivamos da
possibilidade da singularização da morte” (ROTHSCHILD; CALAZANS, 1992, p. 144).
O morrer no hospital tende, em geral, a ser tratado como algo impessoal e o
moribundo coisificado, na estratégia dissimuladora da real finitude humana, que envolve o
despreparo dos profissionais de saúde na lida com o paciente sem possibilidades de cura e
suas atitudes de defesa ao sofrimento e à angústia da morte. A este respeito, Stedeford (1986),
refere que há uma tendência geral presente em médicos e enfermeiros de proceder à
identificação do doente com seus familiares. Quando isso ocorre, pode provocar um
envolvimento exacerbado que se torna prejudicial, especialmente para o profissional de saúde.
O autor assinala ser importante que profissional de saúde dirija suas atenções também para
interesses separados da sua profissão e trabalho. Também aponta a tendência à adoção de uma
postura intelectualizada e distante, pelo profissional, que serve para disfarçar sua ansiedade e
perturbação diante do sofrimento do doente. Segundo o autor, esta postura de fuga pode ser
utilizada por profissionais não médicos como os assistentes sociais, que muitas vezes acabam
se empenhando na condução de atividades mais práticas.
Sobre a dificuldade dos profissionais de saúde em lidar com a morte, Kovács (1992),
Saloum e Boemer (1999), bem como Campos (2005) trazem contribuições para a reflexão de
que o trabalho junto a pacientes terminais implica na necessidade de que os profissionais de
saúde também se trabalhem quanto a morte e os sentimentos que derivam do contato com ela.
Cruz et al. (1984) e Torres (1983) propõem a capacitação dos profissionais, sugerindo que a
mesma deva conter, desde sua formação acadêmica inicial, disciplinas e meios destinados a
8 O termo tanatocrata é utilizado por vários teóricos para designar uma habilidade técnica em lidar com a morte, demonstrada por profissionais de saúde, em negação a um contato existencial com a mesma.
42
debater a questão da morte e os cuidados com o paciente terminal, superando aquela formação
exclusivamente voltada para a cura da doença em si. Ainda, o trabalho de Kovács (2003)
oferece uma importante contribuição para a discussão da formação do profissional de saúde e
o da educação para a lida com a morte em seu ofício.
Também Moreira e Biehl (2004), Vianna e Piccelli (1998), Garros (2003) debatem em
seus artigos as posturas e condutas utilizadas no enfrentamento da situação de pacientes fora
de possibilidades terapêuticas, que implicam na adoção de condutas normativas de bioética e
apontam para a necessidade do estabelecimento de uma forma de educação para o
enfrentamento da morte na rotina do profissional de saúde.
Os trabalhos referenciados nesta seção apontam que existe certa ambigüidade presente
e constitutiva do século XX em relação à morte e ao morrer. Esta ambigüidade é representada
pela tentativa de interdição, camuflagem e fuga da consideração da morte, na convivência
simultânea com a existência de uma preocupação em trazê-la para a centralidade dos debates
em saúde. Também aparece na forma presente de práticas profissionais (e pessoais),
identificadas como intelectualizadas, tecnicistas e impessoais, existindo ao mesmo tempo em
que se revela uma preocupação atenta e ativa na efetivação de práticas mais acolhedoras e
humanizadas em atenção ao doente terminal.
2.1 REPRESENTAÇÃO DA MORTE NO SÉCULO XXI A PARTIR DA
MÍDIA E DO CINEMA
Se no século XX a morte se caracteriza como morte negada, no início do século XXI
ela continua a manter uma tendência neste sentido, embora acrescida das formas de
banalização e naturalização. É uma naturalização que se dá, não no sentido de reconhecer a
morte como algo partícipe de nossa existência humana, destino certo e irremissível de todos e
que, neste sentido, pode se constituir referência para a vida e favorecer a realização de nosso
projeto existencial. A naturalização da morte que vem tomando curso em nossa sociedade
atual se dá da seguinte maneira: passamos a nos acostumar com a situação e forma com que
morrem inúmeras pessoas cotidianamente, vitimadas pelas mais variadas forma de exclusão,
injustiça e desigualdade social e a isto reagimos sem a expressão de sentimentos de pesar e de
comoção.
43
Vivemos numa sociedade que, embora não totalmente negadora9 da morte, tende a
privar-nos da consciência de nosso morrer, ou seja, da angústia existencial com a nossa
própria morte. Em tal sociedade, tratar a morte como algo publicamente impessoal contribui
para alienar o homem e adaptá-lo aos papéis sociais que dele se espera. Contribui ainda para
desviar a atenção do homem ante ao fenômeno de sua própria morte, tendo em vista que a
consciência existencial da finitude humana pode se constituir numa ameaça subversiva aos
padrões sociais hegemonicamente estabelecidos.
A banalização da vida e da morte se faz presente e representada cotidianamente em
nossa sociedade pelos modos de desrespeito das pessoas às diversas formas de vida existentes,
especialmente à vida humana e pela perda da capacidade de se indignar diante da barbárie e
da injustiça social. Isto pode ser constatado a partir das situações de violência e intolerância
que presenciamos e tomamos conhecimento, constitutivas das formas de relações humanas
atuais que vêm sendo desenvolvidas principalmente nos grandes centros urbanos.
Nas áreas habitacionais periféricas das grandes cidades, onde reside um considerável
contingente humano em condição de espoliação urbana (KOWARICK, 1979) e exclusão
social, é comum pessoas transitarem diariamente entre cadáveres expostos a céu aberto nos
espaços de circulação dos moradores. Assim, crianças, jovens, adultos e idosos convivem
cotidianamente com o descaso social a que estão submetidos, caracterizado pelo desrespeito à
vida e à morte. Falar em desrespeito, dessacralização e banalização da morte significa dizer
que se adota uma postura de indiferença e de falta de sentimento diante da ocorrência da
mesma; já o desrespeito em relação à vida significa que a mesma passa a ser desprovida de
valor ou sentido existencial.
Assim, o mundo contemporâneo, caracterizado pelo culto a modelos padronizados e
massificados de conduta, de tendência alienante e homogeneizante, com seus imediatismos e
apelo ao consumismo premente, tende, nos diálogos e fatos cotidianos, a colocar a morte
9 Apenas a título de ilustração quanto ao que escrevo acima, faço aqui um pequeno parêntese para comentar minha recente experiência. Senti a negação da morte pelas pessoas em geral quando comentava com as mesmas o tema de meu estudo. Em geral as pessoas reagiam tecendo comentários sobre o que consideram como escolha um tanto mórbida, sugerindo que ao invés de morte eu poderia ter escolhido falar sobre a vida (como se a morte não fizesse parte da mesma!). Outro aspecto, no mínimo curioso, é que na busca por livros sobre o tema, estivepercorrendo livrarias e sebos diversos. Nas primeiras, encontrei vários títulos que constavam nas relações do acervo, porém sem um exemplar sequer disponível na loja ou nos estoques (não acredito que seja pelo alto índice de vendas). Nos sebos foi ainda pior, pois os livros sequer existiam nas relações de obras disponíveis para a venda, muito embora as manchetes diárias em jornais e telejornais veiculem diariamente matérias que se referem à morte (geralmente em tom sensacionalista), compondo a nossa realidade social.
44
como algo presente, porém distante; banalizada e dessacralizada. Para isto contribui a mídia
sensacionalista, que enfoca a morte geralmente pelo fator trágico, reforçando o pensar a morte
como uma fatalidade impessoal (pertence ao outro, mas não a mim); especialmente quando se
trata da morte de pessoas pertencentes às camadas mais empobrecidas de nossa sociedade.
Quando, porém, se trata da morte de alguém das camadas de melhor poder aquisitivo, a mídia
contribui para criar um movimento de apelo e comoção nacional.
A mídia contemporânea, interessada na comercialização de notícias e informações,
vem perdendo a sensatez no que se refere aos quesitos responsabilidade social e formação de
opinião crítica e inteligente. As técnicas sensacionalistas adotadas pela imprensa, subsidiadas
na linguagem e imagens utilizadas, buscam explorar as emoções do público, contribuindo em
grande escala para a manipulação da opinião pública e para o baixo nível de análise crítica a
respeito das matérias veiculadas.
É comum verificarmos nos jornais, especialmente aqueles direcionados aos extratos
sociais menos favorecidos econômica e educacionalmente, a veiculação de notícias que
contribuem para o reforço de uma conduta de naturalização da violência e de dessacralização
da morte. A morte do pobre só ganha destaque quando o apelo sensacionalista a transforma
em notícia vendável. As coberturas jornalísticas direcionam reportagens de acordo com o
público, porém um maior destaque sensacionalista e de baixo nível crítico é dirigido à grande
massa populacional.
Ainda a respeito da banalização da vida e da morte, no modo como a violência é
retratada pela imprensa, o jornal A Tribuna do dia 30 de abril de 2008 traz estampada na capa
a seguinte notícia: “Justiceiro da Praia do Canto mata assaltante” (ANEXO B). Tal notícia é
depois detalhada na página de número 18 do jornal e nos dá conta de que, em uma avenida
movimentada de um bairro nobre de Vitória, num fim de tarde, um assaltante foi fria e
sumariamente executado por outro homem. A leitura da matéria publicada tende a naturalizar
a idéia de que o destino de um assaltante que rouba carteiras deve ser a morte sem direito à
defesa. Isto contribui para o crescimento da tolerância em relação à prática de justiceiros em
nossa sociedade, sob a alegação de que a polícia não consegue mais controlar o crime e a
violência em nosso meio.
O mesmo jornal, na mesma edição, traz também noticiado, na página 19, a morte de
um adolescente de 13 anos vítima de execução por arma de fogo (ANEXO C), aparentemente
45
por ter sido confundido com um assassino. A respeito desta morte, que não ocorreu no local
onde se deu a violência contra o adolescente, mas dois dias após, no hospital em que foi
desenvolvido o presente estudo, faço a seguir uma descrição da observação realizada por mim
como parte constitutiva da minha pesquisa.
O menino era estudante, tinha pai e mãe trabalhadores, uma irmã e residia com a
família em um bairro de periferia da região metropolitana de Vitória. Não tinha envolvimento
com crime ou drogas. Num domingo à noite deu entrada no Pronto Socorro do hospital,
baleado na cabeça e nas pernas, em estado grave. Após cirurgia para retirada dos projéteis
alojados na cabeça, foi internado na enfermaria. A mãe permaneceu acompanhando o filho,
mostrando-se bem vinculada, extremamente afetiva com o menino e bastante sofrida com a
situação do mesmo. O pai não conseguiu reunir forças para visitar o filho no hospital, por
apresentar-se emocionalmente abalado. Os pais foram amparados por familiares e colegas de
trabalho durante todo o período em que se deu a estada do menino no hospital e, também, no
momento de sua morte. Os profissionais da enfermaria permitiram que a mãe fosse
acompanhada por uma de suas irmãs, para suporte emocional à mesma. Também foi
permitido que mãe e filho recebessem assistência religiosa (família evangélica) no hospital.
Infelizmente tem sido comum o atendimento a crianças vítimas de disparo de arma de
fogo no hospital onde se deu este estudo. A violência que tem levado grande número de
crianças ao hospital acabou por mobilizar alguns profissionais para a participação em um
curso de aperfeiçoamento sobre os impactos da violência na saúde. No caso específico deste
menino, os profissionais demonstraram um misto de comoção e curiosidade em relação à
condição social e história do episódio que envolveu a violência sofrida pelo garoto. Mas
apesar da curiosidade, mantiveram-se acolhedores, sem atitudes preconceituosas ou pré-
julgadoras.
No momento do óbito (que ocorreu dois dias depois da internação do menino), a mãe
havia saído de perto do filho para ir ao sanitário, localizado fora da enfermaria. Quando
retornou e recebeu do médico a notícia de que seu filho havia acabado de falecer, entrou em
desespero e se retirou aos prantos, correndo pelo corredor até a recepção central do hospital.
A mãe já havia sido informada no dia anterior do estado de morte cerebral do menino, mas
mesmo ciente do desfecho esperado para o filho, não suportou a notícia da morte. A equipe da
enfermaria acionou o Serviço Social para atendimento a ela. A mãe foi encontrada pela
assistente social na recepção central do hospital, amparada pela irmã e outra familiar. Estava
46
inconformada com a morte do filho, pela condição violenta em que a mesma se deu,
mostrando sofrimento intenso com a perda de um filho muito querido. Usuários e
funcionários que presenciaram o sofrimento da mãe mostraram-se sensibilizados diante da
cena. Ao final a mãe foi levada para a casa, inconformada de que o corpo do filho seguiria
para o Departamento Médico Legal. Familiares e colegas de trabalho dos pais iriam ajudar na
realização do funeral e sepultamento.
A oportunidade de lidar com casos como este e de conhecer de perto a história de
pessoas vítimas da violência permite ao profissional de saúde refletir sobre o sofrimento
humano e as injustiças sociais presentes em nossa sociedade, de forma que o mesmo
mantenha consigo o respeito pela vida humana.
A violência, a vida e a morte têm sido retratadas no cinema, de maneira geral, com o
mesmo apelo sensacionalista e banaliza(dor) utilizado pela mídia. E isto não é privilégio
exclusivo das grandes produções hollywoodianas. Alguns filmes brasileiros e de outros
países, considerados alternativos aos padrões de Hollywood, acabam por também apelar para
a retratação da violência de maneira exacerbada e para a dessacralização da morte.
O filme Tropa de Elite (Zazen Produções, Brasil; 2007) é uma película que, com suas
cenas de violência, causa significativo impacto nos expectadores, ao mesmo tempo em que
retrata a banalização da morte. O treinamento de policiais, na forma como é retratada pelo
filme, opera pelo reforço da desumanização e insensibilidade dos mesmos para a atuação no
que deveria ser função de proteção dos cidadãos, acarretando a sensação de que o policial é
livre para matar e, desta forma, a tortura e o extermínio sumário de pessoas passam a ser a
práticas naturais e justas da polícia na proteção da sociedade.
Outra produção cinematográfica impactante neste sentido é a película Nossa Senhora
dos assassinos (La Virgen de los Sicários; La Vierge des Assassins;
Colômbia/França/Espanha; 2000; direção de Barbet Schroeder), um filme que deixa vir à tona
a situação de uma Colômbia tutelada pelo tráfico de drogas do Cartel de Medellín e mostra
cenas chocantes reveladoras de que viver ou morrer para alguns jovens é algo destituído de
valor e sentido.
Cidade de Deus (Walter Salles, Brasil; 2002; direção de Fernando Meirelles) é mais
uma produção que retrata a violência freqüente no cotidiano da população de uma grande
cidade, com o enfoque para a violência existente no interior de uma favela curiosamente
47
denominada Cidade de Deus. O filme mostra, sem qualquer proteção ou rodeio, a acidez
violenta de crianças e jovens envolvidos na bandidagem e na operacionalização do tráfico de
drogas.
Há ainda o documentário intitulado Falcão – meninos do tráfico realizado pelo rapper
carioca MV Bill e seu empresário Celso Athayde, que registra a participação de meninos no
tráfico de drogas. No documentário, cenas mostram crianças munidas de armamento pesado,
como depoentes que se revelam adeptos de uma postura de desvalorização da vida. Para esses
garotos a existência é esvaziada de sentido e, assim, viver ou morrer é algo indiferente.
Tendo em vista que o interesse neste trabalho visa enfocar a morte na perspectiva dos
profissionais de saúde, fiz opção pela abordagem e consideração analítica de um filme atual
que enfoca a relação de um profissional de saúde com a morte em seu ofício. Abandono agora
o enfoque da banalização da vida e da morte pelo cinema, para dirigir atenção a uma
representação dos modos de ser de um profissional de saúde diante da morte, numa intenção
de capturar o que a ficção oferece como contribuição para a realização de estudos científicos.
Pretendo aqui, fundamentada em Pinel (2006b), desenvolver uma pequena sinopse
psicossocial e analítica do filme Fale com Ela (Pedro Almodóvar, Espanha; 2002),
descrevendo compreensivamente os modos de ser de um profissional de saúde diante da
morte, capturados a partir das imagéticas desta película cinematográfica. Por isso a atenção
se centra no personagem denominado Benigno e suas relações constituídas. Trata-se de uma
análise fenomenológico-existencial, utilizando o cinema como suporte analítico, numa
concepção de que a ficção e a realidade podem estar imbricadas e, em alguns momentos,
representar-se mutuamente.
Fale com ela é um filme que aborda modos de ser de dois homens, constituídos a
partir da convivência com a possibilidade da morte de duas mulheres enfermas. Trata-se de
dois homens com histórias de vida bastante diferentes, porém semelhantemente sensíveis.
Um dos homens é um enfermeiro, na faixa de trinta anos de idade, que cuida de uma jovem
paciente vítima de atropelamento, por quem ele já nutria especial sentimento. O outro é um
homem na faixa dos quarenta anos, cuja namorada – uma toureira – foi ferida numa tourada.
As duas mulheres foram internadas na mesma clínica, o que acabou por aproximar os dois
homens. Ambos vivenciam situação semelhante: as mulheres que amam estão em coma
profundo. A partir desta realidade, a amizade entre os dois se inicia e intensifica.
48
Com uma abordagem relativamente lírica, partindo da relação da vida com a morte,
o filme trata muito sensivelmente de diversos temas de nossa existência humana, tais como:
a amizade entre dois homens, firmada a partir de uma relação de cuidado, preocupação e
amparo mútuos; a solidão; a dor resultante das paixões; a existência humana e suas
vicissitudes; a enfermidade e a morte. Destes temas alguns outros se abrem num leque de
abordagens, possibilitando vislumbrarmos a complexidade e a ambigüidade pertencentes à
condição da existência humana. Todos eles se juntam, compondo uma história que sinaliza,
inclusive, o monólogo como possibilidade de comunicação dialógica. A chamada em
destaque do filme aponta os diálogos resultantes da situação onde alguém fala a outrem que,
inerte e silenciosamente, escuta, demonstrando assim uma possibilidade de expressão de
diferentes subjetividades.
A história se inicia com os dois personagens centrais, Benigno Martin e Marco
Zuloaga assistindo a uma peça de teatro, neste momento ainda dois estranhos entre si,
coincidentemente sentados lado a lado. Diante da cena teatral que lhe reacende comovidas
lembranças, o segundo homem se emociona e permite, sem tolos receios, que de seus olhos
escapem algumas lágrimas. Benigno, com sua atenta sensibilidade, é o único a perceber a
emoção expressa do homem ao seu lado. Mais tarde, em outra ocasião, os dois se encontram
e Benigno o reconhece como o homem que se comoveu no teatro.
No desenrolar da história os dois homens se desvelam cuidadores, no significado
ontológico do termo, cada um a seu modo. Benigno em sua capacidade de cuidar de pessoas
enfermas e a elas se dedicar integralmente; Marco, expressando dificuldades para o
exercício deste tipo de papel, mas revelando-se capaz de cuidar da fragilidade das pessoas
que lhe são queridas (a fobia de suas mulheres e a sensibilidade sincera de Benigno).
Benigno trabalha como enfermeiro em uma clínica, onde há quatro anos cuida
exclusiva e integralmente de uma estudante de balé, de nome Alicia, por quem nutre e
demonstra um afeto especial, unidirecionado (de si para ela, impossibilitada de lhe
corresponder). Dedica sua existência e sentidos de ser a cuidar desta jovem mulher em
coma, como fizera antes com sua mãe enferma. Sua dedicação é extrema, ao ponto de viver
exclusivamente esse papel – o de cuidador. Assim, sua vida é vivida ao redor de um leito
sobre o qual se encontra uma mulher gravemente enferma, à qual se dedica e cuida dia e
noite.
49
Sem vida própria, durante vinte anos Benigno dedicou tempo integral aos cuidados
de sua mãe. Era ele quem a banhava, vestia, maquiava, penteava e cuidava de suas unhas.
Só se afastava dela para freqüentar o curso de enfermagem. Benigno não vivia para si, mas
para as mulheres que amava, passando inclusive a adotar os mesmos gostos e interesses que
estas. Sua dedicação e sensibilidade eram tais que era freqüentemente interpretado como
gay pelas pessoas ao seu redor.
Assim como cuidava da mãe com dedicação e zelo, Benigno passou a cuidar de
Alicia. Foi escolhido para desempenhar essa tarefa pelo pai da moça, um médico psiquiatra,
devido o bom conceito que gozava na clínica, enquanto profissional. Ele e outra colega se
revezavam 24 horas por dia no cuidado à jovem enferma. Muitas vezes, porém, Benigno
cumpria, ainda, o plantão da colega, quando ela, por motivos pessoais não podia cumprir o
trabalho.
Marco é um jornalista e escritor de guias turísticos. Um dia, ao assistir um programa
de TV, viu a toureira Lydia ser entrevistada e ter sua vida íntima exposta pela apresentadora
do programa. Sentindo-se co-movido pela situação, decide entrevistar a toureira e escrever
uma matéria sobre ela para o jornal para o qual trabalhava. No contato com Lydia, vivencia
um episódio onde esta expressa sua fobia por cobras. Ao matar a cobra que estava na casa
da toureira, ela lhe fica agradecida. A partir daí a situação entre os dois caminha para um
envolvimento emocional. Quando a toureira é gravemente ferida por um touro, é internada
na clínica onde Benigno trabalha e onde também se encontra internada Alicia. É neste local
que se dá o encontro entre Marco e Benigno e que desencadeia a amizade entre os dois
homens.
Em sua relação de cuidados dirigidos a Alicia, Benigno conversa com ela sobre a
realidade que ele vivencia e lhe conta tudo, como se a moça, a despeito de sua condição
vegetativa, pudesse lhe ouvir e lhe responder. O filme mostra um modo peculiar de
Benigno de lidar com a situação de coma da jovem, que aparenta ser um modo tranqüilo e
preenchido de sentido para sua existência. Já Marco refere ter dificuldades em lidar com a
situação de coma de sua amada. Ele sabe cuidar da pessoa em sua fragilidade expressa em
ações da vida, mas não consegue lidar com a fragilidade inerente à condição de estado
vegetativo.
50
Enquanto personagens centrais do filme, Marco e Benigno são mostrados como
figuras masculinas permeadas por componentes socialmente definidos como femininos, em
especial a sensibilidade, a delicadeza e a relativa fragilidade. Marco não se incomoda em
expor suas lágrimas e expressar, em público seu sentimento de profunda tristeza. Tampouco
se incomoda em manter uma amizade sincera com Benigno, apesar das muitas suspeitas
recaídas sobre este em relação à sua orientação sexual.
Num diálogo entre os dois homens, Benigno revela que os quatro anos de estada de
Alicia em coma naquele hospital, foram os melhores anos de sua vida, pois esteve cuidando
dela e fazendo por ela as coisas que ela gostava de fazer, como assistir filmes no cinema e a
espetáculos de balé. Já Marco revela ao enfermeiro suas dificuldades na experiência com
Lydia em coma. Diz sentir-se desprezível por não suportar tocá-la, sequer para auxiliar as
enfermeiras a movê-la na cama. Diante da dor do jornalista, Benigno recomenda: “Fale
com ela”. Ele orienta o amigo para que converse com Lydia, que revele a ela suas limitações
e sentimentos, mas Marco retruca afirmando que ela não pode ouvi-lo. Marco se fragiliza
diante do seu sofrimento em ver a namorada à beira da morte e impossibilitada de se
relacionar e interagir com ele. Benigno não. Benigno não sofre por si, não sofre pelo fato de
não poder ser correspondido pela mulher que ama e se satisfaz mantendo uma relação
unilateral.
Benigno afirma que cérebro de mulher é um mistério, especialmente na condição do
coma. Para ele, as mulheres demandam atenção e por isso se deve falar com elas, pensar nos
mínimos detalhes, dar carinho sempre, lembrar que elas existem e que são importantes para
os homens. Apesar de sua experiência com mulheres se limitar à vivência com a mãe e com
Alicia em coma, Benigno demonstra sensibilidade e ternura para com a condição feminina.
A inexperiência amorosa com mulheres não o priva de se revelar um homem conhecedor
das mais profundas necessidades e sentimentos femininos.
Ao lidar com a morte, Benigno, a seu modo, reverencia a vida nas possibilidades de
existir e de se relacionar. Já Marco se sente imobilizado e demonstra fragilidade diante da
possibilidade de morte iminente da sua namorada. Ele não consegue vislumbrar qualquer
possibilidade de vida emanando daquele contexto de morte. O enfermeiro ama
incondicionalmente, assim como se empenha em cuidar da mulher que ama. A morte
potencializa em Benigno um modo de ocupação cotidiana firmada na expressão de afeto, de
atenção, de sentido de vida.
51
Benigno não se ocupa de si, tampouco se preocupa consigo mesmo, exibindo um
modo de negligenciar o cuidar de si próprio, numa alteridade relativamente exacerbada. Seu
movimento de ocupação e de preocupação se dirige àqueles a quem ama, a ponto de não ter
vida própria para além da relação de cuidado constituída para com as duas mulheres
marcantes de sua vida (a mãe e a amada Alicia).
Benigno acabou sendo preso, acusado de abusar sexualmente de Alicia, após a
descoberta realizada por outros profissionais da clínica, de que a paciente cuidada por ele
estava grávida. Contudo, apesar de preso e sem receber atenção por parte de seu advogado,
Benigno não demonstrou preocupação consigo mesmo diante da condição em que se
encontrava. Na única visita que aceitou receber, realizada por Marco, manteve sua atenção
voltada para a situação de Alicia, desejando avidamente informações sobre ela. Também
demonstrou preocupação, atenção e zelo com a saúde do amigo, que aparentava ter
adquirido um resfriado. Numa atitude sincera e cuidadora, orientou o amigo como tratar de
sua gripe.
Alicia acabou desenvolvendo uma gravidez que não chegou ao final, mas que
resultou em sua melhora clínica e o restabelecimento de sua saúde. Por decisão de seu pai,
Alicia foi transferida de clínica, o que resultou impossibilidade de acesso à mesma. Assim,
Marco não mais conseguiu obter informações sobre ela para manter o amigo informado.
Sem notícias de Alicia e impedido de cuidar dela, Benigno não viu uma saída real para o seu
drama. Importante considerar que para Benigno o drama não era estar na cadeia e sim
distante de Alicia e impossibilitado de dirigir seus cuidados a ela.
Na condição de impossibilitado de obter notícias de Alicia e imaginando que ela
jamais sobreviveria sem seus cuidados, Benigno buscou seu próprio coma e morte, como
meio de encontrá-la em um outro lugar, já que na realidade da vida encarnada já não mais
poderia fazê-lo. Benigno revela, assim, um modo de cuidado e de alteridade exacerbados,
que representa uma maneira muito singular de amar e de cuidar. Também revela uma
concepção de morte romantizada: morrer de amor e reencontrar a pessoa amada na
eternidade; tornar-se um eterno cuidador de sua amada.
Não se percebe em Benigno despreparo para o trato com o paciente em processo de
morte. Ao contrário, ele se desvela aos nossos olhos um profissional de saúde que sabe
realizar bem as técnicas, procedimentos e fundamentos de sua profissão. Não desenvolve
52
suas atividades de maneira despersonalizada, tecnicista, mecânica e indiferente. Sua ação se
caracteriza pela atenção e assistência clínica dirigidas ao paciente em coma, voltadas aos
cuidados indispensáveis ao seu bem estar. Também não se mostra angustiado, fragilizado e
vulnerável em conseqüência do contato com a morte. Ele nos mostra que a possibilidade
iminente da morte não inviabiliza um investimento na vida.
Não obstante a condição do coma profundo de Alicia e a não previsão de reversão
deste seu estado clínico, em uma conversa com Marco, ainda na clínica, Benigno refere ao
amigo o desejo em casar-se com Alicia, a mulher que amava. Neste ponto, o filme faz
emergir o debate entre a sanidade e a insanidade mental, marcado pelo diálogo entre os dois
personagens e pela contestação veemente de Marco, que alega para o amigo a
impossibilidade de Alicia manifestar seu desejo a este respeito e que a relação entre os dois
não passava de um monólogo e uma loucura. Sobre este tema podemos pensar que o limite
entre a sanidade e a insanidade mental se configura como uma linha tênue, sendo que o
limiar de uma e de outra revelam-se, muitas vezes, fronteiras de difícil delimitação,
enquanto partes constituintes de nossa condição humana. Este é mais um dos ingredientes
utilizados por Almodóvar para fazer emergir a polêmica em torno da condição humana de
sociabilidade e existência. Como se sabe, a polêmica é uma característica marcante de suas
obras.
O filme nos leva a pensar na insanidade mental de Benigno, considerado um
psicopata após abusar da moça em coma. Por este ângulo, o filme pode suscitar a fantasia de
desrespeito e violação do outro (o doente impossibilitado de se defender) pelo profissional
de saúde, cuidador em unidades de terapia intensiva. Neste ponto evidencia a reflexão a
respeito da questão dos princípios éticos que devem guiar a ação do profissional de saúde,
na realização de seu ofício. Também provoca uma reflexão sobre a atitude profissional
firmada em estereotipias, como a do advogado, que em seu pré-julgamento sobre seu cliente
o “condenou” à condição de pessoa indigna de atenção e cuidado.
A respeito dos modos de ser de um profissional de saúde diante da morte, podemos
ainda evidenciar em Benigno a capacidade de extrair da ficção e da arte um suporte para sua
existência, vivida sempre ao redor de uma cama, marcada na singeleza de uma vida
conformada pela extrema dedicação às duas pessoas marcadamente importantes e
significativas em sua vida, existindo sempre a partir delas e de suas enfermidades.
53
Fale com ela é um filme que caminha na abordagem de diversas questões complexas
e polêmicas. Não se constituiu objetivo desta sinopse centrar atenção na análise das
polêmicas suscitadas pela película, nem tampouco aprofundar na consideração do filme por
completo, no exame e reflexão de todas as suas questões abordadas. Sem entrar na discussão
das polêmicas suscitadas pela película, interessou-me destacar o modo demonstrado por
Benigno de ser-com e de ser cuidador em sua prática profissional. A pretensão defendida na
análise fílmica aqui realizada restringiu-se à abordagem de alguns aspectos presentes nesta
obra de ficção, a partir dos quais nos fosse possível apreender conteúdos relacionados aos
modos de ser profissional de saúde diante da morte e compreendê-los como guias do ser
sendo em meio à existência e faticidade humanas.
2.2 A DIMENSÃO DA MORTE E DO MORRER NO UNIVERSO
HOSPITALAR
O processo de desenvolvimento humano é construído a partir de relações múltiplas
que se estabelecem entre os diversos sujeitos nele envolvidos e se tece por meio de redes de
cooperação, de competição, de conflito, de motivação, de pressões externas, além de redes
de afetos, de emoções e sentimentos. Ferreira et al. (2004) nos traz a noção de redes de
significações presentes no desenvolvimento humano, enquanto processo dinâmico composto
por elementos de macro e micro dimensões. Neste aspecto, define-se redes de significação
como aquelas:
[...] compostas por elementos de ordem pessoal, relacional e contextual, atravessados pela cultura, pela ideologia e pelas relações de poder, isto é, pelo que denominamos de matriz sócio-histórica de natureza semiótica e polissêmica, a qual tem concretude e se atualiza continuamente no aqui e agora da situação, no nível dialógico das relações (FERREIRA et al., 2004, p. 17).
Há ainda a considerar que, no reconhecimento interpessoal, o outro se torna
componente de si pela alteridade. Para Augras (1981), o outro fornece modelo para a
construção da imagem de si e a imagem de si comporta uma parte igual de alteridade. Assim
o modo de coexistência permite o conhecimento do outro e a compreensão de si mesmo,
ponto de partida para o conhecimento do outro. O desenvolvimento humano ocorre, então,
imerso em processos complexos, que se estabelecem durante toda a existência do homem,
configurando seu ser e, neste ínterim, sua forma de ser-no-mundo, de ser-em e de ser-junto
54
a; o que também se refere aos “modos de ser sendo si mesmo no cotidiano do mundo”
(PINEL, 2006b; 2007).
A morte no hospital insere-se, portanto, numa rede de significações e de constituição
dos sujeitos, instituída a partir dos encontros e intersubjetividades aí estabelecidas. Neste
espaço, diante de um feixe de interações e tensões, acontece a aprendizagem, constituída
pelos modos de (com)vivência entre os múltiplos sujeitos que compõem o cotidiano
hospitalar.
A aprendizagem que aqui se destaca encontra-se relacionada à experiência da morte
e do morrer10 no contexto hospitalar. Diante da real finitude humana, aqui entendida como
parte integrante do processo de existência do homem e produtora de educação, uma
multiplicidade de sentimentos, ações, valores e sentidos de vida emergem,
marcando/atravessando o ser – tanto o doente quanto o profissional que o atende. Numa
dinâmica pedagógica de sentido, tanto o doente, quanto o profissional que o atende
emergem como sujeitos da aprendizagem, inseridos num processo de produção de
conhecimentos que irrompe no cotidiano da instituição.
O hospital tendeu historicamente a institucionalizar um tipo de atenção ao doente
que, ao invés de voltar-se para o sofrimento humano, dirige-se para a doença em si. Esta
forma de saber racionalizado, sustentáculo de uma relação de poder, ignora a subjetividade
humana presente na relação instituída entre a pessoa hospitalizada e o seu cuida(dor) (o
profissional de saúde). Contudo, por mais que se tente neste espaço institucional reduzir a
experiência humana a aspectos racionalizáveis e objetificáveis, a experiência humana de
adoecimento e morte, mesmo dentro do hospital, insiste em fazer emergir os aspectos
subjetivos que a compõem. E, a estes, por mais que se tente, é impossível desconsiderar por
completo.
É relevante considerar ainda que a morte e o morrer institucionalizados atravessam o
tempo e o espaço institucional objetificados pela razão moderna. Na questão tempo, a
situação de contato com a morte rompe o estabelecimento de uma temporalidade
cronológica, projetando-se para além da realidade imediata do fato. A experiência contida
na situação de contato com a morte fica marcada, nos familiares bem como nos profissionais
de saúde, em termos de sua temporalidade pessoal, que é dada pela intensidade da
experiência da morte do outro em si. A vivência da morte do outro é, ainda, em muitos
10 No presente estudo morte refere-se ao fato em si, enquanto que morrer faz referência ao processo em curso.
55
casos, transposta para relações que se estabelecem fora dos muros que delimitam o espaço
hospitalar. Isto vai ocorrer apesar da crença (racionalizada) do profissional de que é capaz
de deixar dentro dos limites hospitalares a experiência vivida/sentida da morte do outro.
Entretanto, por mais que não consiga reconhecer, a vivência segue com ele, corporificada
pela experiência relacional estabelecida.
Keleman, ao abordar a questão da morte, refere que: “[...] O acontecimento do
morrer pode ser marcado como uma experiência de sensações, humores, sentimentos,
pulsação, vibrações e outras percepções que não fazem parte da percepção rotineira”
(KELEMAN, 1997, p. 88). Apesar de referir-se à experiência de morrer do indivíduo ante a
morte, a concepção do autor pode ser transposta para a situação relacional intersubjetiva do
morrer no contexto hospitalar, uma vez que a morte no hospital, apesar de ser uma
experiência individual, é uma vivência coletiva, que envolve um elenco de pessoas e
possibilita uma diversidade de aprendizagens.
No hospital, as aprendizagens decorrentes do processo de contato com a morte
podem incluir a aquisição de conteúdos que se referem tanto aos aspectos intelectivos,
quanto aos afetivo-emocionais e se inscrevem, por um lado, na forma de conhecimento
técnico-científico e, por outro, num conhecimento preenchido de sentido existencial.
Neste aspecto a necropsia realizada no corpo inerte, sem vida (o cadáver) poderá
favorecer a aquisição de conhecimentos sobre o modo de desenvolvimento da doença no
organismo humano, assim como a conclusão diagnóstica da causa da morte, que quando
levada às sessões de discussão de casos clínicos, favorecerá a aprendizagem de conteúdo
teórico, científico e técnico-profissional. Mas o contato com a morte pela via da necropsia
poderá possibilitar também, a apreensão de conhecimentos pessoais para o questionamento
do ser e da existência humana.
Estar diante da morte do outro pode evocar a morte de si, mesmo que a defesa contra
o sofrimento se presentifique no artifício utilizado pela consciência em tentar bloquear, pela
via da razão, a percepção/sensação do sofrimento dado pela situação em questão. O
enfrentamento da morte no cotidiano do profissional de saúde torna-se então uma
experiência de aprendizagem sentida/vivida que contribui para a formação da sua
subjetividade.
Na experiência, muitas vezes diária, de contato com a morte enquanto
“companheira” de trabalho, diversas expectativas e sentimentos emergem, podendo, ou não,
56
despertar o profissional da saúde para o significado das suas vivências que, ainda que
sentidas em forma de dor, limite e perda, e expressadas como fuga, defesa e resistência a
estes sentimentos, ajudam a crescer.
Deste modo, a experiência sentida/vivida no enfrentamento da morte possibilita,
portanto, a produção de conhecimentos e a aquisição de diversos conteúdos de
aprendizagem, constituídos na (com)vivência dos sujeitos a partir das múltiplas experiências
e relações estabelecidas no cotidiano hospitalar. Apesar de marcar um espaço da
modernidade, o hospital possui, em seu interior, diferentes sujeitos que se inter-relacionam,
compondo uma prática social coletivamente vivenciada que (se) produz e (se) transforma. E,
nesta perspectiva, produz e transforma o conhecimento humano.
57
3 A ONTOLOGIA DA MORTE A PARTIR DA ANALÍTICA
EXISTENCIAL DE HEIDEGGER
Minha busca neste trabalho consiste em compreender como os profissionais de saúde
vivenciam a experiência de enfrentamento da morte no cotidiano do seu ofício, em seus
modos de ser-no-mundo. Neste sentido, elegi o filósofo alemão Martin Heidegger como guia
teórico do meu percurso, tendo em vista sua analítica existencial do ser, que ultrapassa a
abordagem estritamente conceitual do homem, para ele considerada uma filosofia
antropológica e não uma ontologia fundamental, como a ontologia por ele defendida.
Neste capítulo, partindo da obra Ser e Tempo, tento apresentar as idéias de Heidegger
que me fornecem subsídio importante para a compreensão do fenômeno tomado para estudo,
em especial sua concepção sobre a morte. Também apresento um pouco da história deste
homem, já plenamente cônscia de que o homem é um ser em sua historicidade, conforme
afirma Heidegger. O texto que aqui apresento não tratará Heidegger e sua filosofia com
profundidade e completude. Proponho-me apenas a apresentar minha leitura e compreensão
de suas idéias expostas na obra Ser e Tempo, demonstrando como as mesmas me tocam neste
estudo.
3.1 A TEMPORALIDADE DE MARTIN HEIDEGGER
Faço aqui uma breve apresentação de Martin Heidegger em sua história de vida,
procurando situar o leitor na trajetória e contexto histórico de emersão das idéias e
concepções heideggerianas. Não me aventuro a trazer à tona todos os detalhes de sua
existência encarnada, mas apenas alguns fragmentos de seus modos de ser-no-mundo.
Martin Heidegger, considerado um dos grandes pensadores do século XX, nasceu
Messkirch, sul da Alemanha, em 26 de setembro de 1889. O ano de seu nascimento coincide
com uma data histórica importante para nós brasileiros, que foi o ano de nossa Proclamação
da República, no ano seguinte ao da abolição da escravatura em no Brasil. Heidegger tem uma
procedência humilde, uma vez que nasceu filho de um sacristão católico e sua mãe também
era pessoa simples, mas amiga de juventude do arcebispo de Friburgo.
58
Graças à obtenção de uma bolsa de estudos da Igreja Católica, uma bolsa eclesiástica,
conseguiu completar sua formação primária e, mais tarde, se iniciar na formação universitária.
Após os estudos básicos, entrou para a Ordem dos Jesuítas. Como noviço, ingressou na
Universidade de Friburgo, estudando a Escolástica e a teologia de Santo Tomás de Aquino
(Tomismo), que nesta época era uma teoria fortemente retomada pela Igreja Católica para o
desenvolvimento de sua ação social.
Em 1909 ingressou na Universidade de Friburgo, iniciando seus estudos em Teologia;
nesta época, influenciado pela leitura de Franz Brentano, filósofo que iniciou a
Fenomenologia, depois melhor elaborada por Edmund Husserl. Entre 1910 e 1914 entrou em
contato com as obras de Nietzsche, Kierkegaard, Dostoeiviski, Dilthey. Abandonou Teologia
e passou a se dedicar à Filosofia. Foi um admirador de Nietzsche, sobre quem fez diversas
conferências e cursos e publicou um livro em dois volumes, onde abordou o conceito
nietzschiano de vontade de potência11.
Começou a lecionar na Faculdade de Friburgo em 1915. Em 1919 passou à assistente
de Husserl, com quem aprendeu o método fenomenológico e de quem se tornou discípulo e
colega. Entretanto, romperá mais tarde com Husserl e suas idéias, seguindo caminho próprio.
Já em 1923, assumiu uma cadeira como professor de filosofia na Universidade de Marburg,
onde lecionou por diversos anos. No ano de 1927 publicou sua mais importante obra “Ser e
Tempo”, que o projetou como intelectual.
Na época da publicação de Ser e Tempo, a Europa já vivia marcantes questões de
ordem política, intelectual, cultural, científica. Era época de emersão de regimes totalitários
socialistas, nazistas e facistas. No meio intelectual, destaque pode ser dado à existência do
Círculo de Viena12 e da Escola de Frankfurt13. Nas artes, a Europa já havia sido afetada e
11Em Nietzsche, o conceito de vontade de potência refere-se ao impulso de realizar, que é plural e criador de tudo o que existe, configurando-se, assim, como um agir sobre. A vontade de potência não á algo específico do homem, pois a natureza inteira é, segundo a concepção nietzschiana, vontade de potência. Vontade de potência de Nietzsche e modos de ser de Heidegger constituem-se conceitos distintos entre si que, porém, apresentam certa analogia; carregam certo sentido comum, na medida em que se referem à possibilidade de possibilidades.
12 O Círculo de Viena foi um movimento intelectual surgido em Viena (Áustria), como reação ao Idealismo –corrente filosófica então dominante nas universidades alemãs. Constituiu-se numa corrente de inspiração positivista, compondo assim o Neopositivismo, que defendia o empirismo lógico, ou seja, a idéia de que o conhecimento resulta da observação e da experimentação e não de proposições a priori.
13 A Escola de Frankfurt foi um movimento formado por um grupo de intelectuais neomarxistas, que desenvolveu um trabalho teórico crítico de análise do capitalismo e suas formas de dominação, especialmente em relação à questão da cultura. Fazia também críticas ao Positivismo. Fundada oficialmente na Universidade de Frankfurt (Alemanha), em fevereiro de 1923. Em 1933, ameaçada pelos nazistas, já que a maioria de seus
59
abalada pelo Movimento Modernista14 e, na ciência, as descobertas da nova física15
contribuíam para a emersão de novos paradigmas.
Heidegger casou-se com uma de suas alunas, chamada Elfriede Petri, luterana, filha de
um oficial do exército alemão. Sua esposa mostrou-se sempre dedicada e empenhada em
ajudá-lo em seu trabalho. Teve com ela dois filhos. Em 1925 envolveu-se com outra aluna;
esta mais destacada no mundo intelectual: Hannah Arendt16. Ela era de família judia, mas não
recebeu educação religiosa tradicional judaica. À época de emersão do nazismo na Alemanha
Hannah Arendt conseguiu fugir para a França e depois para os Estados Unidos da América.
Mesmo separados mantiveram correspondência entre si, durante certo tempo.
Em 1928 retornou para a Universidade de Friburgo, onde substituiu Husserl. Cinco
anos depois acabou assumindo o cargo de reitor desta universidade. Na sua posse pronunciou
um discurso controverso que se tornou marcante, identificado por muitos como a divulgação
de seu posicionamento favorável à política nazista, porém negado por seus admiradores.
Nesta época afastou-se de Husserl, que era judeu. Em 1934 renunciou à reitoria.
É importante, contudo, salientar que no início de sua política, entre os anos de 1934 a
1939, o partido de Hitler, o Nacional Socialismo, apresentava promessas promissoras de
desenvolvimento, um forte nacionalismo e uma estratégia de diminuição do desemprego,
conseguindo obter a adesão de significativa parcela da população alemã, incluindo alguns de
seus intelectuais. Segundo Adler (2007), Heidegger, assim como muitos de seus colegas, caiu
na armadilha nacionalista e anti-semita de Hitler. Nunca se arrependeu e sempre se recusou a
pedir desculpas publicamente. Contudo, isso não nos impede de reconhecer a importância de
sua obra.
membros era de origem judia, a Escola de Frankfurt mudou-se para Genebra (Suíça) e, posteriormente para Nova Iorque (EUA).
14 O Movimento Modernista foi um movimento cultural artístico, representado pelo dadaísmo, cubismo, surrealismo, abstracionismo, futurismo, ocorrido na Europa entre os anos de 1909-1914. Caracterizava-se por um repúdio à estética clássica tradicional e por uma vanguarda que se manifestava por meio de novas concepções de arte, conseqüentemente de vida, e propunha inovações estéticas.
15 De acordo com Hobsbawm (2005), dentre outras descobertas científicas que marcaram o início do século XX, entre 1924-1927 se deu a constituição da física quântica, que muito contribuiu para por de lado o dualismo, o reducionismo e a busca pela verdade absoluta na ciência.16 A relação afetiva que existiu entre Martin Heidegger e Hanna Arendt é citada por Adler (2007) ao tratar da biografia desta importante teórica.
60
Em novembro de 1945, com a derrota do nazismo para as Forças Aliadas, Heidegger
acabou sendo proibido de lecionar nas universidades alemãs, devido sua adesão às idéias
nazistas. Mas mesmo assim não permaneceu no ostracismo. Entre os anos de 1951-1958,
sendo ainda reconhecido como um importante intelectual pronunciou regulares conferências.
Até seu falecimento em 1976, continuou a compor o movimento fenomenológico como um
nome de peso, o que ainda persiste até hoje.
De Heidegger ficam algumas características marcantes que podem aqui ser destacadas:
A partir dele a corrente do pensamento filosófico fundado por Kierkegaard passou a ser
designada por Existencialismo; criou uma série de neologismos, que tornam difícil a leitura de
sua obra e apreensão do seu pensamento; foi um crítico da sociedade tecnológica do século
XX, para ele favorecedora de alienação; influenciou fortemente Jean-Paul Sartre e outros
intelectuais existencialistas franceses, embora não tenha tido a mesma influência e aceitação
entre os ingleses.
3.2 LEGADOS DE HEIDEGGER: a historicidade da pre-sença como ser-no-
mundo
Em Ser e Tempo, Heidegger se ocupa em analisar a questão do ser do ente, enquanto
análise filosófica. Na sua concepção, o objetivo da filosofia deve ser a busca do significado do
ser. Por isso sua atenção se dirige para a busca de compreender não o que é o ser, que para ele
resulta em mera conceituação, mas qual o sentido (significado) do ser. Ao se ocupar com a
questão do sentido do ser, analisa o ser sendo com o mundo circundante, o ser na sua
existência. Por isso sua filosofia é uma analítica existencial, ou seja, uma análise da condição
existencial do homem, em torno da compreensão da questão (ontológica) do sentido do ser.
A Fenomenologia em Heidegger é ontologia e hermenêutica. Ontologia, por ser a
ciência do ser dos entes, afeta à questão do sentido do ser. Hermenêutica, pois, para ele, a
descrição fenomenológica é interpretativa (imbui o ofício de interpretar), mas é “[...] uma
hermenêutica que elabora ontologicamente a historicidade da pre-sença como condição ôntica
de possibilidade da história fatual [...]” (HEIDEGGER, 2002a, p. 69).
Seu trabalho realiza uma analítica existencial do ser do homem, buscando interpretá-lo
e compreendê-lo a partir de sua existência ativa, ou seja, na relação do homem com o ser. Em
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sua concepção, o homem é um ente determinado e finito, um ser lançado de maneira
irrevogável no mundo, sem ter escolhido e pedido por isso, e aí se encontra. Desta maneira o
homem é um ser-aí, também denominado por Dasein ou pre-sença. Mas este ser-aí é um estar
aí, que é fatual e histórico. Assim sendo, a analítica existencial é usada por Heidegger para
desvelar a estrutura da pre-sença como ser-no-mundo.
Para Heidegger o ser é sempre sendo. Ser e sendo são, portanto indissociáveis. O
homem não é algo dado assim como um objeto, nem um sujeito isolado do mundo, mas
realiza sua existência como ser-no-mundo. Não numa relação de justaposição de dois entes
simplesmente dados, mas numa co-pre-sença, numa relação com os demais entes
intramundanos. O homem, enquanto ser, é um projeto existencial que engloba uma gama de
possibilidades e, assim, é um modo de ser em possibilidades. O ser é ser-no-mundo, em
possibilidades de ser de diferentes atitudes e movimentos, o que lhe configura uma
diversidade de modos de ser junto ao ente intramundano.
O homem é um sendo acontecendo, em uma temporalidade. É esta qualidade que
permite que ele se constitua com ser histórico e, enquanto histórico, capaz de construir uma
historiografia. O homem é, portanto, um ser sendo numa existência historicizada, a partir da
qual ganha sentido. Por seu caráter temporal, o que se mostra sempre é o ser do homem, tendo
em vista que os diversos modos do ser são compreensíveis em suas manifestações, mediante
suas modificações e derivações na perspectiva do tempo.
A essência da pre-sença é a sua existência, o que lhe confere uma característica não
ôntica, mas ontológica. O que caracteriza constitutivamente a pre-sença são seus modos de
ser, sendo que o modo de ser da pre-sença não é um modo de ser do que simplesmente é dado,
mas um ser-em existencial, um ser-com os outros existencialmente. Existência é modo de ser
da pre-sença. Em Heidegger, existência significa o ser si mesmo do homem (autêntico) na
relação com o ser. Existência vem a ser um poder-ser e um poder-ser próprio, que Heidegger
reconhece como autenticidade. Poder-ser próprio é ser livre para as possibilidades
existenciais. Mas poder-ser próprio implica em querer-ter-consciência (de si).
A se considerar que a constituição essencial da pre-sença é ser-no-mundo, o ser-em é a
expressão do ser da pre-sença e o ser-com é um modo de convivência que a determina
existencialmente. Mesmo o estar-só da pre-sença é um modo de ser-com no mundo, embora
um modo deficiente de ser-com, uma vez que “[...] O mundo da pre-sença é mundo
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compartilhado [...]” (HEIDEGGER, 2002a, p.170). A pre-sença tende a compreender seu
próprio ser a partir do ente com quem se relaciona e se comporta no mundo.
Para poder-ser, a pre-sença necessita se abrir aos fenômenos que se manifestam no
mundo circundante. Por isso, se constitui na abertura, o que vem a ser uma disposição para as
coisas. Mas é também uma disposição para a compreensão do seu ser e dos níveis mais
profundos da existência. Sendo que o modo de ser da pre-sença pode se dar de diferentes
aspectos, de acordo com seu estado de abertura, sua existência irá refletir um modo de ser de
autenticidade ou de inautenticidade no mundo.
Autenticidade designa uma solidez, um ser si mesmo nas realizações de suas
possibilidades no cotidiano do mundo. A inautenticidade reflete um abandono de si mesmo
para um modo de ser o que os outros esperam, perdendo-se nas ocupações cotidianas. É
importante, porém deixar claro que autenticidade e inautenticidade não são categorias
estanques que compõem o modo de existir da pre-sença; ao contrário, participam
dinamicamente da constituição do homem no mundo.
Heidegger aponta três existenciais que constituem a abertura do ser-no-mundo. São
eles: disposição, linguagem e compreensão. A disposição é representada pelo estado de
ânimo. A compreensão tem em si a possibilidade de apropriação e apreensão do que se
compreende. Por ser compreensiva em sua essência, a pre-sença está junto ao que ela
compreende. Compreensão, por sua vez, se compõe de discurso e escuta.
O discurso é pronunciado pela linguagem, sendo que esta reflete a constituição
existencial da abertura da pre-sença enquanto ser-no-mundo. A linguagem, representada pela
fala denuncia um modo de ser na autenticidade ou na inautenticidade. Uma fala considerada
autêntica é aquela em que o discurso é apropriado, apreendido em seu conteúdo, pelo homem;
já a fala inautêntica se caracteriza por um modo de repetição do discurso sem a sua real
apreensão.
A compreensibilidade do discurso depende da linguagem, mas, sobretudo, da escuta.
Assim, o discurso irá se constituir da linguagem e da escuta. Portanto, a escuta, assim como a
fala demonstra um modo de abertura existencial da pre-sença, enquanto ser-com os outros. O
escutar recíproco elabora o ser-com e agrega os modos de não ouvir, de resistir, de se
defender, de reagir. Por exemplo, podemos nos recusar a ouvir tolices e passá-las adiante,
filtrando assim o discurso e retendo-o apenas no que nos faz sentido. Mas existe ainda o ouvir
63
por aí, que vem a ser uma privação da compreensão. Ouvir aí implica em escutar e passar
adiante um discurso sem sentido.
Para o homem, a existência se dá no seu cotidiano, nos aspectos comuns e corriqueiros
da cotidianidade. Porém, é na cotidianidade, no mundo do dia-a-dia que a pre-sença se afasta
do seu ser. Entregando-se às ocupações diárias, num encontro com o ente de que se ocupa, a
pre-sença se esquece de questionar sobre o seu ser e se distrai de seu sentido próprio. Ocorre
um fechamento para o seu ser próprio (pessoal, singular) e uma abertura para um modo
impessoal, impróprio e alienado de existir.
Desse modo, a cotidianidade vem a ser uma fuga da dimensão profunda existencial.
Ao perder-se na ocupação cotidiana e na impessoalidade, o homem faz um movimento para
evitar a angústia que o revela como ser-para-a-morte. A cotidianidade, assim, se traduz num
modo mediano de convivência que revela o modo impróprio de pre-sença, voltada para conter
a angústia e a estranheza de ser-no-mundo, perdendo-se na publicidade e na impessoalidade,
que vem a constituir o que Heidegger denomina por de-cadência.
Na concepção heideggeriana, de-cair no mundo implica uma disposição e empenho
num modo de convivência caracterizado pelo falatório, curiosidade e ambigüidade. Na de-
cadência, a pre-sença não foge de um ente intramundano, mas para este ente, a fim de que a
ocupação perdida no impessoal e na publicidade possa proporcionar uma familiaridade
tranqüila. Ocorre, porém, que é exatamente isto que fará com que a pre-sença se prive de sua
autenticidade (seu poder-ser próprio), de sua escolha e de seu questionamento. O ser-no-
mundo no modo da de-cadência é tentador e tranqüilizante, mas é também alienante.
Na de-cadência a pre-sença foge de si mesma, pois o ser próprio é sentido como
ameaça. Fugir de si mesmo é cair no impessoal e no mundo das ocupações cotidianas.
Entretanto, nem todo fugir ou desviar-se de se caracteriza numa fuga de si mesmo. Mas no
desviar-se de, que constitui a de-cadência, não se experiencia e nem se apreende aquilo de que
se foge. Assim, na alienação e na tranqüilidade da de-cadência, a pre-sença perde sua solidez
e se anula em uma cotidianidade imprópria.
Na cotidianidade mediana, a pre-sença como ser-no-mundo, aberta à de-cadência em
seu ser junto ao mundo e em seu ser-com os outros na impessoalidade, coloca em jogo seu ser
de projeto e seu ser mais próprio. A falta de solidez do ser impróprio na impessoalidade e na
publicidade da de-cadência cotidiana desvia a pre-sença da possibilidade de compreensão de
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seu projeto de possibilidades próprias, lançando-a na tranqüilizadora pretensão de já possuir
tudo. Desta forma, “[...] A fuga de-cadente para o sentir-se em casa da public-idade foge de
não se sentir em casa, isto é, da estranheza inerente à presença enquanto ser-no-mundo
lançado para si mesmo em seu ser [...]” (HEIDEGGER, 2002a, p. 253).
Sendo-no-mundo a pre-sença se estranha consigo mesmo e essa estranheza a persegue
e a ameaça, levando-a a uma indeterminação e uma sensação de não se sentir em casa, de não
se sentir familiarizado com o seu ser. Assim sendo, ela foge de si para empenhar-se na
ocupação cotidiana, buscando com isso a tranqüila sensação de familiaridade com as coisas
intramundanas. Na cotidianidade mediana do impessoal, a pre-sença se sente familiarizada,
em casa. A angústia instala a estranheza levando a pre-sença a não mais se sentir em casa.
Assim, a pre-sença se desvia para a de-cadência da publicidade impessoal para fugir de se
sentir estranha consigo mesma.
Na vida da ocupação cotidiana a pre-sença, no modo de de-cadência, foge de si e do
questionamento do seu ser por meio do falatório, da curiosidade e da ambigüidade. Esse três
modos oferecem à pre-sença uma suposta “vida autêntica”, marcada por um ser-com sem
solidez, uma pretensa compreensão de si e do mundo, e a manutenção de um modo de fuga de
si mesmo.
No falatório se dá uma fala que apenas repete e passa adiante o discurso, de maneira
tal que exprime uma falta de solidez, onde não se comunica no modo de uma apreensão e
apropriação originária do discurso, mas apenas passando adiante a fala. Cria-se, assim, a
possibilidade e a impressão de compreender tudo sem ter previamente se apropriado do
conteúdo. Com isso se previne do fracasso na apropriação. E assim, o falatório elimina a
possibilidade da compreensão autêntica.
Quanto à curiosidade, esta se ocupa em ver, não com interesse em compreender o que
vê, mas apenas para ver. Busca um conhecimento, não para obter compreensão e apropriação,
mas apenas tomar conhecimento. Permite que o ser-em esteja em toda parte e em parte
alguma. Na curiosidade a pre-sença passa de uma novidade para outra, buscando a novidade
como forma de se sentir renovada.
A ambigüidade se configura num modo de interpretação pública que não esconde
nada; abrange algo que é acessível a todos e ainda o fato de que se pode dizer qualquer coisa
de algo. Cria a falsa impressão de que tudo foi discutido e compreendido por todos de modo
65
autêntico, quando na verdade não o foi. Há uma impressão de que todo mundo conhece e
discute o que ocorre e, por isso, pode fazer preleções a seu respeito. Também é comum da
ambigüidade que aquilo que se apresente não chegue a se tornar fato concreto, pela imediata
perda do interesse em ver realizado o que se pressentiu. Sendo um modo impessoal e de
abertura à publicidade na convivência cotidiana, no falatório e na curiosidade, a ambigüidade
impede que a pre-sença adquira compreensão de si e do seu projeto existencial em seu poder-
ser próprio.
O que possibilita o despertar do homem deste estado de impessoalidade,
impropriedade e alienação, é a angústia. É pela angústia que a pre-sença retoma a questão do
seu ser e, assim, realiza um processo inverso ao realizado na impessoalidade da cotidianidade.
Cabe ressaltar que angústia em Heidegger não é o mesmo que a angústia patológica da
psicologia, mas um estado de ânimo que coloca a pre-sença diante de si mesma, em
questionamento do seu ser. É uma disposição que empreende uma abertura existencial. Trata-
se de um sentimento profundo capaz de despertar o homem de sua existência inautêntica, pois
conduz o homem ao encontro de si mesmo e do seu poder-ser mais próprio.
A angústia revela a impessoalidade imersa na ocupação cotidiana e na publicidade e é
por meio dela que a presença constrói possibilidades de um existir próprio e revela o ser-livre
para a liberdade de assumir e escolher ser si mesmo, entregando-se à responsabilidade desse
ser. A angústia é um modo de ser-no-mundo que se angustia com o ser lançado e pelo ser-no-
mundo. É ela que singulariza a pre-sença em seu próprio ser-no-mundo, na compreensão de
suas possibilidades. Nesta concepção, a angústia é potencializadora e libertadora, pois
funciona de modo a contribuir para liberar a autenticidade do homem, permitindo que este
possa governar a si mesmo.
De acordo com Heidegger, a angústia pode surgir das situações mais inofensivas; ela
aparece do nada e de lugar algum, estabelecendo por isso uma conjuntura ameaçadora. “[...]
Está tão próximo que sufoca a respiração, e, no entanto, em lugar algum” (HEIDEGGER,
2002a, p. 250). Neste caso, a angústia é uma angústia com o mundo como tal, revelada a
partir da impertinência do nada e do em parte alguma. Mas não é a angústia que compreende a
estranheza do ser-no-mundo, dado que ela é disposição própria da pre-sença e é ela que pode
conduzir ao poder-ser-si-próprio-no-mundo. O modo de estranheza da pre-sença é estranhar-
se consigo mesma, o que a leva a entregar-se e perder-se no mundo tranqüilizado e
familiarizado da cotidianidade no modo impessoal da de-cadência.
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Por ser temporal e finita, e disto ter consciência, a pre-sença se desvia de modo a
empenhar-se vida dos afazeres cotidianos, ocupando-se para escapar da reflexão desta sua
existência, tendo em vista que a morte, que marca a sua finitude, é sentida como algo
amedrontador. Assim, o homem moderno segue sua vida evitando pensar na morte. E se o
pensamento sobre ela, de alguma maneira irrompe repentinamente, ele desvia o pensamento
para uma outra coisa. É a angústia, como disposição, que possibilita uma compreensão da
morte, pois é ela que revela para a pre-sença o sentido de sua existência como ser-para-a-
morte. E o estar-lançado na morte permite à pre-sença assumir um modo mais originário e se
apropriar de sua existência.
3.3 O HOMEM COMO UM SER-PARA-A-MORTE
Em Heidegger a morte é abordada não como um mero fato natural, mas como
fenômeno da existência humana, encarnada na existência pessoal da pre-sença e, por isso,
deve ser enfocada a partir da vida, numa analítica existencial. A morte se encontra
ontologicamente imbricada na existência. Heidegger não se ocupa com o que há depois da
morte, pois para ele a interpretação ontológica da morte deve estar vinculada ao mundo da
vida, onde a pre-sença é. Qualquer tentativa de discussão metafísica da morte, para ele, não
passa de especulação ôntica que extrapola a analítica existencial da morte.
Lançado no mundo, desde o momento em que se dá o seu nascimento, o homem está
entregue à sua morte. O homem é, assim, um ser lançado num mundo de possibilidades, das
quais a morte se configura como a mais própria, irremissível e insuperável e constitui-se como
um não-mais-estar-pre-sente e não-mais-ser-no-mundo. Trata-se ainda da possibilidade da
impossibilidade absoluta, tendo em vista que, na morte, nada mais é possível à pre-sença
enquanto ser-no-mundo. A impossibilidade, então, se refere à impossibilidade de existir.
A pre-sença possui, em si, sempre uma pendência, algo ainda não realizado enquanto
poder-ser, o que lhe confere uma essência caracterizada por uma constante inconclusão.
Quando não houver mais algo pendente no ser da pre-sença, então ela também não mais estará
presente, havendo o fim da pre-sença, que é a morte. Logo, a pre-sença carrega uma
pendência contínua, cujo fim se dá com a morte. Somente com a morte a pre-sença é
impendente em seu poder-ser mais próprio.
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Enquanto possibilidade da impossibilidade absoluta da pre-sença, a morte é ainda a
sua possibilidade mais própria, pois confere singularidade a pre-sença, uma vez que cada um
faz sozinho o seu próprio morrer, não sendo absolutamente possível ao homem realizar a
morte do outro; ou seja, ninguém pode fazer a experiência da morte dos outros. A morte
carrega um modo de ser pertencente a cada pre-sença, que é absolutamente insubstituível por
outra e que se dá na solidão pessoal. Cada um tem que experienciar por si próprio o seu
morrer e a sua morte, não sendo possível que outrem o faça em seu lugar. A experiência da
morte é, portanto, algo sempre insubstituível, ainda que compartilhada na mundanidade do
mundo.
Uma vez que a pre-sença não pode se colocar existencialmente no lugar de qualquer
outra, também não pode tomar a experiência da morte de outra como possibilidade de análise
do fim da pre-sença. A morte se configura como uma perda experimentada pelos que ficam,
mas não fornece acesso à perda ontológica própria de quem morre. Como já referido, nos é
impossível realizar a experiência da morte do outro. Podemos apenas estar próximo, junto ao
outro, em sua experiência de morte. Por mais que se esteja junto de quem morre, a experiência
da morte em sentido próprio só pode ser realizada por aquele que se encontra em situação de
morte.
Mas, por meio da morte dos outros a pre-sença pode observar o finar da pre-sença no
mundo. A morte do outro revela o seu desaparecimento como pre-sença no mundo, que
possibilita uma significação para aqueles que ficaram. E, assim, “quanto mais adequada for a
apreensão fenomenal do não-mais-estar-pre-sente do finado, mais clara será a visão de que
justamente esse ser-com o morto não faz a experiência do ter-chegado-ao-fim do finado [...]”
(HEIDEGGER, 2002b, p.19).
Contudo, o morto é ainda um ser na ocupação dos que não morreram e estão com ele,
em compaixão, prestando-lhe condolências. O ser-com o morto enquanto objeto de ocupação
indica, por este ser-com, que, na convivência do mesmo mundo, o ser da pre-sença ainda pode
ser e estar com o ser-não-mais-pre-sente. O morto é assim mais do que simplesmente uma
coisa material destituída de vida. Inclusive o cadáver, enquanto objeto de estudo anátomo-
patológico, orienta a idéia de vida, conquanto este estudo converte-se em busca de
conhecimento para utilização entre os que ficam.
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A morte está entranhada no ser da pre-sença como ser-no-mundo e, neste sentido, é
uma possibilidade que já está acontecendo desde o nascimento, em meio a escolhas que se
dão no processo da existência humana. Por isso, deve ser assumida como possibilidade e, em
comportamento, suportada como tal; como uma possibilidade irremissível, certa,
indeterminada e insuperável que marca o fim da pre-sença no mundo e a coloca frente ao nada
da possível impossibilidade de sua existência. Esta qualidade de ser irremissível, insuperável,
torna a pre-sença um ser-para-a-morte, o que evoca uma angústia. Ser-para-a-morte é,
portanto, essencialmente angústia que dispõe a pre-sença diante da possível impossibilidade
de sua existência.
Para Heidegger o importante é a atitude, em vida, em relação à própria morte. Ele
denomina de atitude inautêntica, o comportamento de negar, esquecer, fugir, insistir em falar,
inclusive o suicídio. A atitude autêntica, em sua concepção, se configura como um adiantar-se
à morte, o que abre a pre-sença para o seu ser-próprio. A antecipação da possibilidade
irremissível da morte libera a pre-sença para assumir o seu próprio ser, a partir de si mesmo e
para si mesmo. A morte, quando compreendida existencialmente, é, pois, o elemento que dá
sentido às outras possibilidades.
Diante da possibilidade do irremissível, a pre-sença se desvia da angústia,
empenhando-se nos afazeres cotidianos de uma ocupação impessoal. Buscando reverter essa
angústia, assume um modo de escape permanente, que desvirtua e toma impropriamente o
fato de ser a pre-sença um ser-para-o-fim. A angústia é, então, ambiguamente considerada
temor e fraqueza que conduz a pre-sença à busca de uma tranqüilidade indiferente frente ao
fato concreto da morte, especialmente da sua própria morte.
Na cotidianidade impessoal, de-cadente e alienante, a pre-sença assume uma constante
fuga do ser-para-a-morte, transformando a morte num caso da morte dos outros, o que
pretensamente contribui para assegurar que ainda se está vivo e se tranqüilizar a respeito da
morte. Dá-se assim a impessoalidade e o falatório sobre a morte. O falatório sustenta um
discurso impessoal que tende a banalizar a morte do outro, contribuindo para manter a ilusão
de que a morte atinge somente ao outro e, com isso, nossa própria morte é adiada e
despistada.
No falatório, como um modo de decadência, a fala sobre a morte carrega uma
ambigüidade que confere à pre-sença a capacidade de perder-se no impessoal, onde a própria
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morte é deslocada, desviada e se converte num acontecimento público e impessoal. Na
cotidianidade, o impessoal assegura uma interpretação para a morte em um discurso com o
conteúdo que morre-se, algum dia, mas ainda não. Na publicidade, a morte se configura como
uma ocorrência que, embora atinja a pre-sença, não pertence propriamente a ninguém. Cria-se
a aparência de que se está certo da morte, onde esta certeza serve ao intuito de enfraquecer,
aliviar e encobrir o estar-lançado à morte.
A impessoalidade da morte, na cotidianidade, que aparece no modo da ocupação
indiferente e imperturbável é uma busca de escape de si e da morte, encoberta na
cotidianidade tranqüila das ocupações, o que Heidegger denomina de fuga de-cadente da
morte. Com isso, encobre-se a certeza de que a morte é possível a cada momento
indeterminado. E é justamente isto, a indeterminação do momento exato da morte, que leva a
pre-sença a se entregar às ocupações impróprias e impessoais. Assim, “[...] A indeterminação
da morte certa determina as ocupações cotidianas, colocando-lhes à frente as urgências e
possibilidades previsíveis do cotidiano mais próximo” (HEIDEGGER, 2002b, p. 41).
A pre-sença se desvia para uma existência inautêntica para fugir da angústia da morte.
O impessoal interdita à pre-sença a coragem que permite efetivar o modo pessoal e próprio de
assumir a angústia com a morte. Entretanto, somente por meio da angústia, a pre-sença pode
alcançar um poder-ser mais próprio e realizar um projeto existencial autêntico. Deste modo, a
morte enquanto uma possibilidade ontológica deve ser sempre assumida pela pre-sença.
Quando assumida, permite à pre-sença não perder de vista sua constituição como ser de
projeto, que não descarta a morte, mas a utiliza como estímulo para assunção de atitudes
próprias e realização do seu projeto existencial.
A morte, enquanto fenômeno existencial pertencente à condição ontológica da pre-
sença como ser-no-mundo, permite também à pre-sença mover-se para frente em sua
existência, elaborando projetos e existindo em suas possibilidades, apesar da sua constituição
finita, e em meio à sua finitude. Neste caso, o ser-para-a-morte é assumido como ser para
uma possibilidade privilegiada, o que significa empenhar-se por algo possível ocupando-se de
sua realização e, assim, conduzir sua própria vida. A morte deve ser então assumida como
uma possibilidade de que não se foge, nem encobre, mas que é suportada como possibilidade
certa e insuperável.
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A antecipação à morte liberta a pre-sença de se perder nas possibilidades ocasionais,
impessoais e impróprias da de-cadência cotidiana. A possibilidade certa da morte permite um
modo de abertura da pre-sença para um poder-ser mais próprio de si, ou seja, para assumir seu
próprio ser a partir de si mesmo e para si mesmo. Na atitude autêntica de antecipação, a pre-
sença se abre para si mesma como possibilidade de compreender seu poder-ser mais próprio,
que é o existir em sentido próprio, e de se desvencilhar da perdição do impessoal da de-
cadência cotidiana e suas ilusões. A isto Heidegger denomina LIBERDADE PARA A
MORTE.
Estamos na dependência da morte para tudo em nossa vida, já que ela é imprevisível e
também irremissível. A pre-sença foge da angústia da morte, empenhando-se no impessoal da
cotidianidade mediana, para buscar uma pretensa tranqüilidade para sua existência. Porém,
somente vivendo essa angústia e se abrindo para o seu poder-ser próprio é que a pre-sença
poderá atingir sua plenitude existencial. Ser-para-a-morte permite à pre-sença encontrar
sentido para a sua existência. A morte se torna, desta maneira, o sentido da vida – o sentido do
ser.
71
4 O ESPAÇO HOSPITALAR NA INTERFACE DE UMA EDUCAÇÃO
SOCIAL: reinvenções de práticas educacionais no enfrentamento da morte
e do morrer
Neste capítulo dirijo atenção à consideração da Educação Social enquanto partícipe do
processo de formação humana, relacionada aos aspectos do desenvolvimento pessoal e
profissional dos sujeitos presentes na vivência de enfrentamento da morte e do morrer no
contexto hospitalar.
Considero a Educação Social como modalidade de Educação, inscrita na dimensão da
vida social, que possibilita a apreensão de conteúdos de vida e de aprendizagem informal bem
como formal curricular, pensada e realizada para além dos espaços estritamente escolares.
Neste sentido, compreendo o hospital como espaço possível para o desenvolvimento e
efetivação de práticas (psico)pedagógicas de Educação Social, tendo em vista a pluralidade de
modos de encontros e de experiências que se (des)encadeam e se presentificam neste espaço
institucional social.
Trata-se de um “saber-prática” (PINEL, 2006a; 2006c) que se identifica como uma
educação não-escolar. No espaço do hospital, este modo educativo pode se dar de maneira
intencional ou não e se produz de forma distinta da escolar, formal, pois não está polarizada
nas figuras do educador e do educando. Estas figuras se mesclam nos modos de ser dos
diversos atores (profissionais, doentes, familiares), presentes neste lugar-tempo (o hospital),
que seguem, na mundanidade do mundo, sendo e se reinventando nos “modos de ser si
mesmo no cotidiano do mundo” (PINEL, 2006b, p. 159-163).
Em meus modos sentidos de ser pessoa (na complexidade do sujeito racional,
emocional, social, cultural, político, espiritual e tantas outras facetas), concebo a Educação
Social como uma maneira de aprender-ensinar, que pode tomar dimensão real marcada,
experienciada, sentida e vivida em qualquer contexto e lugar-tempo. Assim, esta concepção
me faz acreditar que educar no modo da Educação Social pressupõe viver, apreender e buscar
sentido para a existência, mesmo diante das mais profundas adversidades – uma vez que
mesmo em contextos adversos, a vida se faz presente, demandando a apreensão de conteúdos
necessários ao enfrentamento e superação das vicissitudes reais. “[...] a ‘vida vivida’, ela
72
mesma, está impregnada da educação, produzindo e ou provocando sentido da existência
humana [...]” (PINEL, 2006b, p. 24).
Cabe ainda aqui a consideração da educação sob um pensar/agir sentido e inspirado na
fenomenologia existencial, aberta a outros atravessamentos tais como o marxismo. Assim,
trata-se de conceber a Educação Social sob a presença atenta de uma teoria e práxis
fenomenológico-existencial em um fundo marxista, incluindo o humanismo rogeriano e
frankliano, todos estes presentes nas concepções de Pinel (2006a; 2006b; 2006c; 2007) sobre
a Educação Social, considerando ainda as formas de educação formal e informal e da
Educação Não-Escolar, num sentido/sentido, na possibilidade de educação social a partir do
que Colodete (2004) e Pinel (2006a) denominam de estratégia de inter(in)venção psico-
pedagógica.
A inter(in)venção psico-pedagógica refere-se à produção e criação de intervenções,
procedimentos, técnicas, de formas de expressão corporal e de linguagem e de modos de
subjetividade. Está relacionada aos saberes-práticas que evocam, na pessoa, modos de
inventar e agir em sua experiência compartilhada vivida, e os sentidos que esta vivência pode
provocar em sua existência, marcando-a em seu ser sendo. Trata-se, então, de modos de
inventar e agir que, provocando a emersão de sentidos, abram o ser à possibilidade de sua
existência.
Na Educação Social assim concebida o companheirismo e a cumplicidade tornam-se
ingredientes básicos para a composição do processo experiencial/vivencial que permite
emergir e intensificar a relação entre os mais diversos sujeitos nele envolvidos. Há ainda que
considerar a importância do cuidado que se presentifica na forma simultânea do cuidar de um
com o outro, companheiros, no sentido de estar junto-com. Pinel (2006b) descreve que o
cuidado humano é característica central da educação social, devendo ser vivido, sentido e
experienciado no processo estabelecido de estar junto-com, que implica num estado de
abertura ao outro, um estado de compreensão e um estado de aproximação.
O hospital, a considerar seus modos de organização, funcionamento e atendimento,
torna-se também espaço educativo, por evocar diversas possibilidades de co-engendramento
de experiências e vivências, provocando, proporcionando e possibilitando, assim,
significativas aprendizagens para aquelas pessoas inseridas e participantes do seu cotidiano.
Constitui-se, portanto, em espaço de prática educacional social e de inter(in)venção pisco-
73
pedagógica diversa obviamente da proposta educacional explícita e formal, porém, mesmo
assim, um profícuo contexto para a efetivação dos diferentes modos de aprender/ensinar.
Educar no modo de uma Educação Social, mesmo em contexto de tamanha
adversidade, no qual a morte marca a real finitude humana, é um fato possível. E, como
sinaliza Pinel (2003, 2006b), a Educação Social neste contexto poderá ser construída a partir
de uma relação dialógica de escuta empática, mostrada pelos participantes deste cotidiano em
suas convivências e formas de estar-com-o-outro, de ser-com-o-outro, nos “modos de ser
sendo si mesmo no cotidiano do mundo” (PINEL, 2006b, p.159), no enfrentamento das
situações diversas postas no espaço/tempo institucional hospitalar.
Assim, nesta possibilidade de Educação Social, educar é um modo de ser com o outro,
firmado a partir de uma relação existencial (histórico-político-social) e dialógica que permite
a emersão de conteúdos de vida e possibilita aos sujeitos partícipes do processo vivencial
educacional a aquisição de aprendizagens decorrentes dos modos de ser-no-mundo e de ser-
com-o-outro. É também, como assinala Pinel (2006b), possibilidade de prosseguir nas
invenções (psico)pedagógicas de provocar as instituições e pessoas nas suas culturas,
ideologias, relações de poder, etc. compondo e engendrando processos de constituição de
subjetividade e de desenvolvimento interpessoal.
Pinel (2003, 2006b) considera que a Educação Social compõe a Educação Não-
Escolar, podendo apresentar-se de duas maneiras: formal e informal. A maneira formal possui
uma intencionalidade psicopedagógica explícita posta na relação ensino-aprendizagem, que é
estabelecida por meio de uma estruturação e organização, implicando na existência de
programa de ensino com conteúdos previamente definidos para a efetivação do processo
educacional. Já a maneira informal tem a característica de poder ser realizada sem uma
intencionalidade previamente determinada, sendo esta algo que se constrói no processo em
curso, a partir dos encontros estabelecidos entre os sujeitos partícipes de seu processo. A
educação informal acontece no cotidiano, via relações interpessoais de sujeitos que
(co)laboram, pela via de processo e papéis interdinâmicos e simultâneos do que Alves (2001)
denomina de aprenderensinar.
No contexto hospitalar, uma forma de educação social não-formal, sensível, inventiva,
sentida, significativa, existencial pode ser configurada a partir da atuação dos diversos atores
sociais que, presentes e atuantes neste espaço institucional social, vão provocando e sendo
provocados em suas alegria e dores, dissabores, desejos, lutas, sonhos, crises, resistências. As
74
motivações e os sentimentos evocados a partir dos encontros instalados, demandam ocupação
e preocupação. A partir daí um enfoque educacional social não-formal dirigido a tais
demandas pode ser constituído.
No caso do profissional de saúde, o lidar com a morte e morrer do outro e todas as
tensões decorrentes desta experiência, pode pressupor a inter(in)venção de modos psico-
pedagógicos de aprender e ensinar a lidar com a angústia evocada pelo vivenciar a morte
cotidianamente. Isto pode ocorrer a partir da efetivação de grupos de escuta e discussão; de
seminários, a exemplo dos criados por Kübler-Ross (2005); e de espaços de (super)visão,
segundo Pinel (2007). Nestes grupos, seminários, supervisão, os diversos profissionais que
constituem a equipe de saúde, podem aprender e ensinar, constituírem-se educadores e
educandos – partilha(dores) de conhecimentos – construindo assim um processo de produção
de conhecimento significativo, vivido e sentido na experiência (com)partilhada.
No caso da pessoa doente, e de seus familiares, um modo de Educação Social não-
formal pode se dar também dentro do hospital, por meio de trocas entre estes e a equipe de
profissionais, num modo de escuta clínica e empática, que em termos freiriano pode evocar a
questão de “quem educa quem?”. Os diferentes sujeitos se tocam, resistem, amparam,
desesperam e seguem, inventando e agindo, provocando a emersão de sentidos na
possibilidade de ser. Assim, neste processo educativo, quem se torna o educador e quem é o
constituído educando? Todos são ambos, muito embora em alguns momentos estes dois
personagens possam insistir em se mostrar distintamente personalizados.
O modelo de Educação Social aqui pensado e defendido se efetiva pela clínica do
sujeito que no dizer de Pinel (2006b) vem a ser uma relação de escuta refinada realizada pelo
“sujeito-educa(dor) social” que possibilita ao “sujeito-educando” expressar o leitmotiv de sua
aprendizagem em suas diversas formas de linguagem. O processo é então conduzido pelo
sujeito-educando. Inclusive a possibilidade de se pensar a utilização de instrumentais e
estratégias de intervenção pelo “sujeito-educador” deve considerar a intenção de
aprendizagem do “sujeito-educando”. Neste aspecto, trata-se de efetivar uma prática
educacional social que busque “inventar nascimentos de protagonistas estrelares” (PINEL,
2006a), por meio de “inter(in)venções (psico)pedagógicas” (COLODETE, 2004; PINEL,
2006a).
É assim que
75
Ampliando mais nossa compreensão do que seja a educação social e seu objeto de intervenção e de estudo, podemos refletir que esse saber-prática é um tipo de intervenção (vir ou caminhar por dentro) ou de interferência (ferir por dentro) psico-social realizada a partir das estratégias e conteúdos educativos, em áreas da promoção do bem-estar psico-social e da melhora da qualidade de vida, mediante uma série de mecanismos que são planejados-executados-avaliados no sentido de minimamente resolver problemas pessoais, grupais, coletivos e prevenir que esses problemas possam aparecer ou emergir com grande força de devastação concreta e psíquica, otimizando os processos de socialização e vida em pequenos e grandes grupos, e no próprio país, não significando isso submissão e docilização, mas enfrentamento, coragem, ousadia, solidariedade, conflitos, etc. (PINEL, 2006b, p. 251).
Seguindo o interesse e a escolha de pensar a Educação Social pela via existencial,
resgato o pensamento do educador Paulo Freire, que muito contribui com sua teoria para a
crença na realização de uma práxis educacional realizada a partir dos conhecimentos prévios
dos educandos. E aqui entendo que um processo de educação social informal deve partir,
portanto, da valorização da pessoa que busca apreender conhecimentos, sentidos e
significados, de modo que a educação nestes moldes possa apresentar-se como uma prática
social contextualizada e emancipadora, apta a realizar o empowerment (no sentido de
capacitação, potencialização, fortalecimento) dos sujeitos partícipes deste saber-prática.
Assim, os diferentes sujeitos podem seguir em um processo relacional se inventando, se
constituindo protagonistas e produzindo crescimentos.
Na perspectiva existencial, a educação social informal pode apoiar-se na contribuição
teórica de Carl Rogers e sua aprendizagem significativa, assim descrita por ele:
Por aprendizagem significativa entendo uma aprendizagem que é mais do que uma acumulação de fatos. É uma aprendizagem que provoca uma modificação, quer seja no comportamento do indivíduo, na orientação da ação futura que escolhe ou nas suas atitudes e personalidade. É uma aprendizagem penetrante, que não se limita a um aumento de conhecimentos, mas que penetra profundamente todas as parcelas da sua existência (ROGERS, 1976, p. 253).
Ainda, para Rogers, (1977), a aprendizagem não é um fenômeno restrito à capacidade
intelectual, cognitiva, do homem; mas um processo que se dá nas relações humanas,
integrando os aspectos: cognitivo, afetivo e visceral (este último referindo-se aos eventos
emocionais que acontecem no organismo durante uma vivência de aprendizagem). A isto ele
denomina de aprendizagem por inteiro.
Este mesmo autor defende o argumento de que a aprendizagem deva ocorrer em meio
aberto, o que implica uma relação de abertura, na qual a relação humana com sua carga de
afetividade permeie o processo de ensino-aprendizagem. Assim realizada, a relação de
76
aprendizagem permite a emersão de conteúdos relacionados à emoção, à importância da
descoberta, às limitações e capacidades, à responsabilidade, aos fatos.
Quando as figuras distintas de educador e educando insistem em aparecer em suas
especificidades e distinções sociais, podemos nos apoiar na concepção rogeriana de educação.
Nela, alguns elementos são postos como indispensáveis ao desenvolvimento da
aprendizagem, quando esta envolve as figuras do educador e do educando, bem discriminadas
e delimitadas em seus papéis. Um dos elementos refere-se à autenticidade do educador
(denominado por Rogers de facilitador). Ser autêntico em Rogers significa que o facilitador
vai para um encontro direto, pessoa-a-pessoa, sendo “ele mesmo” (pessoa verdadeira, sem
fachadas), colocando-se presente na relação de encontro. Outro elemento vem a ser a atitude
de prezar, aceitar a pessoa do aprendiz (o educando) com seus sentimentos, suas opiniões,
numa relação de compreensão empática (outro elemento), na qual o aprendiz se sinta
compreendido, ao invés de julgado ou avaliado. Por fim, Rogers aponta para a importância de
que o aprendiz perceba os elementos acima descritos presentes na pessoa do educador.
Identifico nestes pressupostos educacionais rogerianos que a aprendizagem pressupõe
um modo de ser-com, onde o conhecimento se tece de maneira dinâmica, marcado pela inter-
relação e pelo exercício de convivência, num contexto compartilhado que contempla a
preocupação. Neste sentido, a aprendizagem significativa e a aprendizagem por inteiro podem
contribuir para possibilitar ao aprendente compreender seu ser próprio, em seu modo de ser
sendo.
O pensamento de Rogers sobre a educação me sinaliza ainda que o cuidado é algo que
deve estar presente na relação educacional constituída entre facilitador e aprendiz, como meio
indispensável ao favorecimento da efetivação do processo de aprendizagem. Considerar o
aspecto do cuidar no processo educacional me leva a uma inserção nos modos de conceber a
categoria cuidado, de forma que esta categoria nos guie nos modos de ser sendo educador
social.
Em Pinel busco novamente a consideração de que o cuidado humano é característica
central da Educação Social, sendo que para ele, “[...] Cuidar significa agir fortemente,
produzindo provocações e inquietações que acabam por trazer à tona a marca existencial dos
modos de ser sendo... cuidadoso” (PINEL, 2006b, p. 20).
77
O cuidado em Heidegger (2002a), enquanto uma das estruturas que compõem os
diversos modos do existir humano aponta a consideração da totalidade do ser-aí (dasein),
revelando que o ser está no mundo. Neste aspecto, cuidado pode ser descrito como condição
ontológica do homem enquanto ser-no-mundo. Diante da constante tarefa de seu existir ante
as vicissitudes da vida, o homem tem no cuidado o pilar para a compreensão do sentido
próprio em direção a si e à sua realização.
A noção de cuidado em Boff (1999), desenvolvida a partir das idéias heideggerianas,
demonstra uma profunda sensibilidade com o destino do homem em nosso mundo. Cuidado,
para ele, abrange uma atitude de atenção, zelo e desvelo e se encontra associado à adoção do
espírito de com-paixão, muitas vezes esquecido por nós nestes tempos de luta e
competitividade, características da sociedade pós-industrial em que vivemos.
A adoção de uma conduta e atitude de ocupação, atenção, zelo e responsabilização
com o outro demonstra alteridade e registra uma pré-ocupação e um interesse real na garantia
do bem-estar daquele, e também daquilo, com o qual se mantém uma relação, um vínculo,
proporcionando a instalação de uma situação afetiva de doação de respeito e de carinho.
Acredito que cuidar pressupõe um investimento no outro, sendo que a forma de
investir estará sempre marcada por um conjunto de valores sócio-histórico-culturalmente
definidos, que podem variar de uma sociedade para outra, mas que comportam sempre
atitudes de respeito, compromisso, responsabilidade, atenção e afeto para com o outro.
Para cuidar de si e do mundo é imprescindível que o ser humano mantenha-se
conectado com a vida, com a existência sua e a do outro, deixando-se tocar pela vida e pelo
outro; (com)partilhando ternura, liberdade e respeito em direção de si mesmo, do outro e do
mundo. Somente assim poderemos estabelecer relações e condições mais dignas de serem
vividas pelo homem.
Assim, o pensar/agir no modo de efetivação de uma educação social informal em
ambiente hospitalar precisa levar em conta a noção de cuidado que o evidencie como
elemento favorecedor da relação e processo educacional, possibilitando a apreensão dos
conteúdos indispensáveis ao enfrentamento das condições de existência, naquele espaço e
para além dele, ao mesmo tempo em que revigore o que Espinosa denomina de potência de
agir, elemento presente em todas as coisas.
78
Em meio a esta base existencial-humanista de concepção da educação social informal,
o fundo marxista emerge trazendo à tona a consideração de que esta modalidade de Educação
deva ainda incluir o profundo interesse na capacitação da pessoa, dirigida à busca de sua
emancipação pela via do fortalecimento de sua identidade, autonomia e cidadania. Nestes
moldes, uma Educação que busque tornar a pessoa um ator social crítico e capaz de decidir
sobre si, nesta difícil época de globalização e neoliberalismo. Assim, o fundo marxista na
práxis fenomenológico-existencial, (co)labora no sentido de possibilitar a articulação das
dimensões social e política da vida humana na forma de ser-aí.
Considerando o hospital um espaço complexo, múltiplo, dialeticamente total e
singular, penso no mesmo como local onde se aprende/ensina, se produz conhecimento, e
onde se efetivam práticas sociais, sendo, portanto, reconhecidamente um loco aprendente,
produtor de conhecimento, e constituidor do sujeito social. Desta forma, reconheço nele a
possibilidade do desenvolvimento de práticas educacionais sociais informais, nos modos de
tessitura de conhecimentos, pela constituição de um processo de ensino-aprendizagem
simultâneo, capaz de viabilizar bilateralmente o exercício do pensamento com/nos/dos
diversos sujeitos experienciadores do cotidiano hospitalar17.
17 Experienciadores do cotidiano hospitalar é um termo aqui utilizado para desvelar o modo de pensar nos diversos sujeitos que (com)vivem no ambiente hospitalar e vivenciam sua rotina/realidade atravessada e marcada não somente por tantas dores e dissabores, mas também por vitórias e alegrias dissipadas ante a construção referencial sócio-histórica do hospital como espaço institucional marca(dor) do sofrimento e da finitude humana. Experienciadores são todos aqueles que participam do cotidiano hospitalar – trabalhadores da saúde, usuários, voluntários, comunidade em geral – que coengendram experiências e práticas nos modos de ser-no-mundo e de ser-com-o-mundo, atravessados por elementos diversos como a cultura, a política, a ideologia, e tantos outros, componentes da vida social.
79
5 PERCURSO METODOLÓGICO
5.1 O MÉTODO E SUA ESCOLHA
Na busca em que me lancei, quando empreendi o presente estudo, um caminho
investigativo precisou ser traçado de forma a me possibilitar cumprir os objetivos definidos
neste trabalho. Para isto, busquei adotar um percurso que, trilhado de forma aberta e
construído nos modos de (co)existência com as pessoas envolvidas na pesquisa, pudesse me
conduzir ao encontro do objeto, possibilitando apreensão e demonstração dos resultados
obtidos neste encontro. Reconheço, porém, que mesmo um caminho aberto, necessita de
rotas que, traçadas, possam guiar o caminhante em seu percurso. Por isso passo aqui a
apresentar os métodos, instrumentos e técnicas adotados que me conduziram pelo processo
de investigação realizado.
O modo de me colocar presente e partícipe na experiência sentida/vivida de
profissionais de saúde diante da vivência da morte e do morrer em seus ofícios me conduziu
à escolha de um método-guia de investigação aberto à consideração da experiência, da
intersubjetividade, do vivido e da inter-relação pesquisador-objeto-sujeitos do estudo. É
relevante também assinalar que o estudo realizado buscou se constituir em uma pesquisa do
vivido, admitindo o envolvimento da pesquisadora no fenômeno investigado e a instalação
da interexperiência e da intersubjetividade no processo de busca da compreensão do
fenômeno em questão – a experiência vivida e sentida dos profissionais de saúde diante da
morte. Tais considerações me levaram a considerar o método de investigação
fenomenológico oportuno e adequado à realização deste trabalho.
Sobre a Fenomenologia, posso descrevê-la como uma escola filosófica que, segundo
Bruns (2003), surgiu no final do século XIX por intermédio de Franz Brentano (1838-1917),
adquirindo dimensão maior a partir do trabalho de Edmund Husserl (1859-1938),
especialmente no início do século XX. Contrapondo-se ao racionalismo cartesiano e ao
pensamento positivista de Comte, que enfatizam a racionalidade, a objetividade e a
neutralidade no afã do conhecimento exato, a Fenomenologia busca a superação da
dicotomia sujeito-objeto por considerar que toda consciência é intencional e tende para o
mundo, não podendo estar dele separada. Propõe, assim, um caminho para a realização da
pesquisa, que se apresente como alternativo e diverso daquele formatado na pesquisa
positivista.
80
Enquanto pensamento filosófico, a Fenomenologia se ocupa em pensar a realidade,
buscando compreender como o sujeito vivencia sua experiência cotidiana. Mas,
Fenomenologia diz respeito ainda à elaboração de uma metodologia a ser aplicada aos
estudos científicos. Como método de investigação, procura descrever o fenômeno e dele
captar a essência.
Para Husserl, a Fenomenologia é uma ciência descritiva das essências da vivência.
Dirige-se, assim, ao mundo da vivência cotidiana, enquanto investigação da vivência das
pessoas em determinada situação. Busca a compreensão da essência, o que se faz por
intuição e significação. Nestes moldes, para se compreender a vivência de uma pessoa, é
necessário tentar captar intuitivamente sua vida, conforme é por ela vivida. Isto implica
então em procurar penetrar no existir da pessoa.
Holanda (2003) afirma que a Fenomenologia é um método de grande valor para se
estudar como as pessoas estão sendo num dado momento. Isto implica em abandonarmos
temporariamente o que acreditamos que as pessoas sejam para entrarmos em contato com a
realidade das mesmas, a partir das mesmas. Neste caso, “A pesquisa fenomenológica-
existencial está (pré)ocupada em tentar descrever e analisar compreensivamente o
fenômeno, focando a subjetividade naquilo que ele propõe observar e produzir descrições
[...]” (PINEL, 2006b, p. 87).
Em Fenomenologia, considera-se fenômeno tudo aquilo que se mostra em si mesmo
e que assim se apresenta para a consciência do sujeito, instigando-o a conhecer e
compreender – o que para Heidegger (2002a) pressupõe um modo privilegiado de encontro
e assim “[...] deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a
partir de si mesmo [...]” (HEIDEGGER, 2002a, p. 65). Em sua Fenomenologia Ontológico
Hermenêutica, o método investigativo é compreensivo-interpretativo; ou seja, a pesquisa é
utilizada com a finalidade de desvelar o fenômeno para compreendê-lo e interpretá-lo.
Para a realização de minha investigação, procurei me guiar pelo método de pesquisa
fenomenológico, associado à pesquisa-ação existencial e ao estudo etnográfico de inspiração
fenomenológico-existencial, onde minha atenção caminhou num movimento, ora de
mergulho existencial, ora de distanciamento reflexivo, associado à atitude de participação
ativa na pesquisa, junto com os sujeitos da mesma, já que, enquanto profissional de saúde
81
implicada no contexto hospitalar, eu convivia e compartilhava a realidade da vivência
colocada em estudo, tanto quanto as demais pessoas da vivência.
Assim, parti do método fenomenológico de pesquisa descrito por Forghieri (2001),
no qual o envolvimento existencial compreendeu minha inserção na vivência em estudo,
marcada pelo meu modo de ser-no-mundo, e onde a atitude de distanciamento reflexivo se
dirigiu aos aspectos de perceber-sentir compreensivamente a experiência em estudo,
destacando e descrevendo a subjetividade presente na experiência de enfrentamento da
morte pelos diversos trabalhadores que desenvolvem sua prática no hospital.
A este método procurei associar a pesquisa-ação existencial na concepção proposta
por Barbier (2002). Vários são vários os motivos me levaram a considerar este tipo de
abordagem metodológica como orientação para a condução de minha pesquisa, o que vem a
ser importante e necessário aqui destacar. Um destes motivos refere-se ao fato de que, para
o autor citado, este método investigativo se abre simultaneamente para uma psicossologia
clínica e uma etnografia de campo. Outro motivo vincula-se à abertura do método a uma
abordagem multirreferencial dos fatos/acontecimentos e das práticas individuais e sociais
partícipes das situações humanas. Sem esquecer de considerar ainda que este método
investigativo agrega o reconhecimento da intuição, da criação, da improvisação, da
sensibilidade, da empatia, da ambivalência e da ambigüidade como elementos presentes, e
não descartáveis, do processo de investigação científica. Por fim, esta metodologia se abre
para a arte, a poesia, a filosofia, as dimensões espirituais e multiculturais da vida, que são
aspectos para os quais a pesquisa fenomenológica também pode se abrir.
Numa definição do que se denomina por pesquisa-ação existencial, Barbier esclarece
que esta diz respeito à inclusão da dimensão do vir-a-ser humano às demais dimensões da
pesquisa-ação que são a participativa e a política, conotando, assim, sua qualidade e
especificidade existencial, cujo objetivo compreende a mudança relativa de atitude
individual ou grupal em relação à realidade circundante, que possibilite um
desenvolvimento do ser humano, tanto no plano individual, como no coletivo. Muito
embora a pesquisa fenomenológica busque descrever, sem acintosamente desejar provocar
mudanças de atitude, compreendo que o modo de estar junto-a e de ser junto-com pode
desencadear mudanças, mesmo que nem tão intencionais. Por isso não descartei a
possibilidade a pesquisa-ação existencial em minha investigação.
82
Além disso, um outro fator me levou a reconhecer a pertinência deste método de
pesquisa, de maneira a considerar importante sua inserção em minha pesquisa. Para
justificar, me valho das palavras do próprio Barbier, pois para ele:
[...] A pesquisa-ação existencial é talvez a que mais diretamente aborda as situações-limite da existência individual e coletiva. A morte, o nascimento, a paixão, a doença, a velhice, a solidão, a excentricidade, a criação... são campos de investigação que ela apreende com habilidade e compreensão (BARBIER, 2002, p. 74).
Procurei ainda associar a etnografia à Fenomenologia. Como já referido, a
Fenomenologia possibilita a realização de análises das experiências vividas. Já a etnografia,
a seu modo, procura descrever a cultura manifesta por pessoas e seus grupos, em suas ações
humanas, revelando as relações e interações significativas ocorridas no contexto
determinado, no qual pessoas ou grupos estão inseridos.
Estive aberta ao desenvolvimento desta ação descritiva, procurando proceder à
realização de um estudo etnográfico de inspiração fenomenológico-existencial, conforme o
descrito por Pinel (2006b). Segundo ele: “Esse tipo de estudo valoriza o elo
inventado/criado entre as pessoas do lugar e que fornecem uma identidade cultural daquele
lugar. E a produção científica é efetuada via descrição da experiência vivida, isto é, os
modos como eles inventam o mundo daquele lugar [...]” (PINEL, 2006b, p. 68).
Procurei assim construir uma metodologia na junção dos três tipos de pesquisa – a
fenomenológica, a pesquisa-ação existencial e a etnográfica, no que estes métodos
apresentam em convergência e complementação entre si, tecendo junto com os atores
protagonistas locais um modo sentido de investigar a vivência cotidiana, de forma a
produzir hermeneuticamente uma das possíveis interpretações do fenômeno em estudo.
5.2 O LOCAL E OS COLABORADORES
Escolhi como campo para a realização desta pesquisa um hospital da rede pública do
estado do Espírito Santo, tendo em vista o fato de estar inserida em seu contexto, o que me
possibilitou franco acesso ao fenômeno em estudo, inclusive como co-partícipe do mesmo,
uma vez que componho a equipe de profissionais que atua diretamente com a morte no
cotidiano hospitalar. A morte é fenômeno recorrente nesta instituição social acima
mencionada, considerando o alto índice de encaminhamento de pacientes graves para este
83
hospital, que é público e atende às demandas de urgência/emergência, especialidades e alta
complexidade em pediatria, sendo referência em todo o Espírito Santo, sul da Bahia e parte
do leste de Minas Gerais.
Neste local identifiquei como possíveis colaboradores (sujeitos da pesquisa) os
diversos profissionais/trabalhadores do hospital que, em seu cotidiano desenvolvem ação
intimamente relacionada ao contato com a morte e o morrer. São estes os mais diversos
trabalhadores inseridos no cotidiano hospitalar, como: médicos, pessoal da Enfermagem
(enfermeiros, técnicos, auxiliares), assistentes sociais, psicólogos, maqueiros (auxiliares de
serviços gerais que, dentre as suas funções, conduzem a maca com o cadáver até o
Laboratório de Patologia), técnicos de patologia (funcionários que auxiliam os médicos
patologistas nas necropsias). Dirigi minha atenção aos profissionais atuantes nas Unidades
de Oncologia, Terapia Intensiva, Pronto Socorro (Sala de Emergência) e Laboratório de
Patologia, mas o estudo também se abriu para outros setores, como as Enfermarias de
Infectologia, de Neurocirurgia, e de Ortopedia, além do hospital-dia de AIDS (que, embora
não seja local de ocorrência de óbitos, trata-se de um serviço existente que também oferece
indícios valiosos para a compreensão do fenômeno sob investigação).
A escolha dos colaboradores seguiu um modo distinto do padrão tradicional clássico
de pesquisa empírica, não se prendendo à técnica de seleção por amostragem. Foi feita
opção pela escolha aleatória dos colaboradores, onde me deixei guiar por minha intuição,
indo em busca daqueles que aceitassem colaborar. Também procedi, algumas vezes,
seguindo pistas que emergiam nos contatos realizados com os colaboradores abordados e,
ainda, recebi o depoimento daqueles profissionais que espontaneamente se dispuseram a me
oferecer seus depoimentos, uma vez que houve aqueles que fizeram questão de participar se
oferecendo como colaboradores. Contei com a participação de vinte e três colaboradores
(APÊNDICE A), que de maneira sempre gentil falaram de si e de modo sempre aberto de
expuseram diante de mim.
5.3 OS INSTRUMENTOS ESCOLHIDOS E SUA UTILIZAÇÃO
Dentre os instrumentos e procedimentos que previamente selecionei para a condução
deste estudo encontram-se aqueles que, a meu ver, possibilitam a arte da escuta, do
84
encontro, da confiança mútua, ingredientes imprescindíveis na perspectiva da pesquisa-ação
existencial, da etnografia e da pesquisa fenomenológica.
Um dos instrumentos adotados foi a observação, realizada por meio de contato
direto da pesquisadora com as pessoas do estudo no cotidiano dos mesmos, onde, num
contato ativo e direto com o fenômeno, procurei captar sensível, sentida e vivencialmente,
as ações dos colaboradores em suas práticas sentidas/vividas e modos de ser diante da morte
no cotidiano profissional. Tratou-se, portanto, de um tipo de observação direta e participante
que, buscou ser “[...] uma partilha completa, duradoura e intensiva da vida e da atividade
dos sujeitos de pesquisa, identificando-se [o pesquisador] com eles, como igual entre pares,
vivenciando todos os aspectos possíveis de sua vida, das suas ações e dos seus significados
[...]” (PINEL; COLODETE, 2002, p. 53).
Com base nesta técnica, me conduzi voltada àquilo que, relacionado ao tema do
estudo, se passasse diante de mim, de forma intencional ou não, verbal ou não verbal,
expresso pela fala, gestos, olhares, atitudes, movimentos, silêncios. Não produzi documento
escrito para registro das observações realizadas. Mantive as mesmas, com suas apreensões,
percepções, impressões, emoções, sensações, sentimentos e sentidos registrados em meu ser
por minha memória-percepção.
Escolhi, como principal instrumento utilizado para a produção de dados, a solicitação
de depoimentos, realizados por meio de contatos pessoais, em forma de diálogo aberto,
espontâneo, buscando a obtenção de informações a respeito do(s) modo(s) como aquela
pessoa experiencia, sente, vivencia e enfrenta a morte na realização de seu ofício. Para tentar
identificar, pela observação e depoimentos, os modos de ser sendo pessoa/profissional de
saúde diante da experiência de enfrentamento da morte, optei pela utilização dos Guias de
Sentido (GS), descritos por Pinel (2003; 2006b). O autor identifica o GS como possível
instrumento de pesquisa fenomenológico-existencial, que é por ele definido como um guia do
ser (valores e virtudes) que conduzem o ser a ser, diante da experiência vivida, nos seus
modos de ser; ou seja, um guia do ser-aí. Assim, Guias de Sentido revelam-se como valores
ou virtudes do ser humano, constituídos nas experiências vividas em sua existência, que
guiam o seu sentido da vida.
[...] O GS aparece e ilumina tudo ao redor, como se fosse um facho de luz (de energia própria). Um Guia que tem um pertencimento de sentido – no sentido de significado e de norte que o ser sendo toma diante das experiências da vida cotidiana no mundo. Um Guia de Sentido que se desvela pela vida afetiva
85
(sentimentos, por exemplo), apontando sensibilidades humanas, lágrimas e risos fáceis. Um GS que mostra sensações corporais – que a um menor toque se desmancha no ar; entrega-se aos prazeres – tratando-se de um movimento complexo psicofisiológico. O GS proporciona uma espécie de razão de sentido (razão encarnada – razão co-movida pela vida que vive, pois tem sangue nas veias). Um GS que diz a finalidade dele estar sendo isso aí mesmo – objetivo de ser sendo si mesmo no cotidiano do mundo – ampliando mais e mais sentidos de orientação e ou desorientação, mas que apegado com desvelo, desvelando nos modos de ser sendo... na atitude de situar-se ou colocar-se a si próprio (o si mesmo) diante das exigências do mundo externo e ou interno, como um farol a iluminar e mostrar pontos lunares e estrelares de referências [...] (PINEL, 2006b, p. 93).
Para a obtenção dos depoimentos, busquei apoio em Amatuzzi (2001), com sua versão
de sentido, definida por ele como um relato livre que expressa uma reação a algo
vivido/sentido, podendo ser falado ou escrito imediatamente após o ocorrido, tratando-se,
portanto, “[...] da fala, o mais autêntica possível, que toma como referência intencional um
encontro vivido, pronunciada logo após sua ocorrência [...]” (AMATUZZI, 2001, p. 81).
Obtive, entretanto, certa dificuldade para o relato espontâneo logo após o ocorrido, pois
alguns profissionais alegavam não ter condições de falar sobre sua experiência imediatamente
após a vivência, por sentirem-se profundamente sensibilizados naquele momento, sem
condições de expressar, em palavras, a reação vivida/sentida. Considero, porém, que suas
atitudes (choro comovido, silêncio, etc.) eram também uma forma de depoimento de suas
versões de sentido oferecidas e expressas por guias de sentido. O depoimento verbal foi
obtido respeitando o momento de cada colaborador, em sua condição emocional de falar sobre
o assunto. Ou seja, respeitou-se o tempo subjetivo de cada um que, embora algumas vezes já
cronologicamente distante do momento do evento ocorrido, ainda mantinha a pessoa
mergulhada na vivência.
A coleta dos depoimentos falados foi realizada mediante utilização de registro escrito
(realizado pela pesquisadora), ou gravado, com a devida autorização dos colaboradores da
pesquisa, conforme preferência dos mesmos e respeitando o tempo subjetivo de cada um para
falar a respeito de sua experiência. Não me utilizei, assim, de uma técnica de entrevista ou de
questionário nos moldes tradicionais e clássicos, com roteiro padronizado. Partindo da
pergunta “Como é para você vivenciar a morte de um paciente e o que você aprende com essa
experiência?”, o diálogo entre pesquisadora e colaboradores fluía livre, sem direcionamentos,
respeitando a livre expressão da fala, gestos, olhares, silêncios, movimentos e posturas de
cada colaborador.
86
5.4 MINHA PRE-SENÇA NA PESQUISA
Procurei me deixar sempre guiar por uma postura presente e ativa na
experiência/vivência do fenômeno de que se ocupa a presente investigação, assumida nos
meus modos de ser pessoa, assistente social, educadora, pesquisadora, mulher, e seus tantos
outros modos constituídos/marcados pela minha singularidade e pluralidade de ser sendo no
mundo. Considero que minha participação compreendeu um envolvimento de maneira
emocional, sensitiva, política, ética, crítica, reflexiva, de modo a perceber-sentir a pesquisa
com os demais participantes desta (os colaboradores), expressada como “[...] uma arte de
rigor clínico, desenvolvida coletivamente [...]” (BARBIER, 2002, p. 67).
Neste aspecto, no contexto e cultura local da pesquisa, busquei sempre me manter
existencialmente próxima e aberta aos modos de sentimentos, atitudes, pensamentos e
comportamentos expressos pelos atores desse espaço-tempo institucional denominado
hospital, na cultura desse lugar.
De acordo com os pressupostos da Fenomenologia o objeto é definido a partir de sua
relação com o sujeito. Sendo o objeto desta pesquisa identificado como a experiência dos
profissionais de saúde diante da morte e do morrer, este então se refere ao homem em sua
existência. Como homem e mundo não existem separadamente, isso pressupõe a implicação
sujeito-objeto-mundo nas interexperiências vividas entre pesquisadora e colaboradores.
Como pesquisadora e profissional partícipe do contexto e cultura em que se desenvolveu a
pesquisa, não pude deixar de estar profundamente implicada enquanto pessoa, profissional e
pesquisadora, no espaço-tempo do processo de investigação.
Para Laing (1978), a Fenomenologia, enquanto ciência da interexperiência, se ocupa
da relação da experiência do outro em mim no(s) modo(s) de seu comportamento, bem
como da experiência de mim no outro no(s) modo(s) do meu comportamento. Tenho
reconhecidamente clara a compreensão de que não posso experienciar a experiência do
outro, mas posso experienciar como o outro experiencia sua experiência e daí obter uma
análise possível. Ademais, o reconhecimento do fato real existente das implicações sujeito-
objeto-mundo envolvidas no processo de pesquisa me deixou à vontade para o meu ser-aí
nesta pesquisa.
Estar presente no hospital como assistente social, compondo a equipe
multidisciplinar da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica e da Unidade de Neonatologia
87
me permitiu vivenciar diversas cenas de morte e acompanhar processos de tratamento que
resultaram em morte. Pude ver de perto e de dentro da vivência as ações, reações,
confrontos, fugas, atitudes, movimentos, emoções, comoções, sentimentos, valores e
virtudes presentes nos modos dos diversos profissionais em lidar com a morte e o morrer no
desempenho de seu ofício. Compartilhei todos eles. No desenvolvimento da pesquisa foi
possível construir uma relação de cumplicidade e confiança e, muitas vezes, de suporte
mútuo entre eu (pesquisadora) e os outros (colaboradores). Recebi muito apoio e estímulo
para continuar, principalmente nas vezes em que confidenciava meu cansaço com o estudo.
Estive junto-com o outro e percebi que o outro também se colocou junto-com a minha
pessoa.
Procurei me pautar por uma postura ética na condução da minha pesquisa. Desta
forma, todo o desenvolvimento deste estudo seguiu os preceitos éticos de pesquisa com
seres humanos preconizados pela CONEP, a partir da Resolução CNS 196/96 e suas
complementares (ANEXO A e APÊNDICE B).
5.5 TRATAMENTO DOS DADOS CAPTURADOS
De acordo com os pressupostos da Fenomenologia, o fenômeno é reconhecidamente
aquilo que adquire sentido para uma consciência (a consciência do sujeito que busca
conhecê-lo). Assim, a percepção, a concepção, a compreensão de um fenômeno são
produzidas na consciência de um sujeito, a partir de sua vivência com o fenômeno posto em
estudo. Tomando a fenomenologia ontológico-hermenêutica de Heidegger como guia, busco
apreender e descrever o que me for possível desvelar da experiência de enfrentamento da
morte pelos profissionais de saúde. Assim, a concepção heideggeriana de Fenomenologia,
enquanto hermenêutica e analítica existencial do ser, me conduz à escolha da técnica de
tratamento de dados utilizada.
Recorro ao método fenomenológico descrito por Giorgi (apud MOREIRA, 2002), na
busca e obtenção das unidades de significado reveladoras do fenômeno sob consideração
neste estudo. Trata-se, este, de um método de comunicação dos resultados do estudo que
busca, pela via da análise de conteúdo do material obtido e registrado, capturar as categorias
temáticas descritoras e reveladoras do fenômeno em foco, permitindo a avaliação
interpretativa das mesmas e a comunicação dos resultados do estudo. Para descrever
88
segundo este método, o processo de análise contempla quatro passos. O primeiro pressupõe
a transcrição do material coletado pelos depoimentos e observação e a realização de uma
leitura superficial destes registros. Após obter o sentido do todo pela leitura inicial, no
segundo passo busca-se a discriminação das unidades de significado, procedendo-se a uma
leitura exaustiva do material coletado e registrado. O terceiro passo refere-se ao
agrupamento das unidades de significado em categorias de análise que expressem o insight
nelas contido e revelem o fenômeno em questão. O último passo compreende a síntese de
todas as categorias descritas, transformadas em uma declaração consistente que expresse a
estrutura da experiência em estudo.
Portanto, os dados adquiridos na pesquisa de campo, por meio dos depoimentos
coletados, serão apresentados e tratados analiticamente, com base na hermenêutica
ontológico-existencial heideggeriana, partindo do modelo fenomenológico de tratamento de
dados de Giorgi.
Para demonstrar os dados, optei por inserir os depoimentos no corpo da tese e não
em apêndice. Para tratamento analítico hermenêutico destes dados pretendo: 1) extrair do
texto figuras presentes no discurso dos colaboradores do estudo e que, a partir da minha
intuição, apareçam para minha consciência como categorias de sentido, constituindo-se em
unidades de análise, reveladoras do fenômeno; 2) tratar descritiva e compreensivamente
essas figuras/unidades, objetivando sentir se elas se transformam em um mosaico que
configura um ou mais Guias de Sentido do poder-ser da pre-sença diante da morte.
A partir deste método, devo proceder analiticamente lendo e relendo, por diversas
vezes, o material transcrito dos depoimentos coletados, associando a este minhas
impressões, percepções e memórias obtidas pelas observações realizadas, pelos guias de
sentido e vivências compartilhadas. Isto me permitirá estabelecer as unidades de significado
e produzir, por fim, uma interpretação (hermenêutica) ontológico-existencial, alcançando,
assim, uma compreensão – a minha compreensão analítica existencial – sobre a experiência
de enfrentamento da morte por profissionais de saúde.
A metodologia de análise, ao abordar a teoria heideggeriana, trará também a
associação a alguns outros autores e suas idéias, que aos meus olhos e sentidos se
aproximam da filosofia de Heidegger, como, por exemplo, Viktor Frankl e contribuem para
uma interpretação analítica do fenômeno.
89
6 O PODER-SER DA PRE-SENÇA NA CONVIVÊNCIA COM A MORTE
Neste capítulo pretendo demonstrar e analisar, com base na hermenêutica ontológico-
existencial heideggeriana, a cultura de convivência com a morte no ofício de profissionais de
saúde, descrevendo-a compreensivamente. Para tanto, apresento, em primeiro plano, os dados
coletados por meio dos depoimentos gentilmente cedidos pelos colaboradores deste estudo,
para, a seguir, apresentar o tratamento analítico dos mesmos, conforme método descrito no
capítulo anterior.
6.1 O SER SENDO DIANTE DA MORTE: depoimentos
Os depoimentos18 que aqui apresento constituem-se a descrição do fenômeno em
estudo, ou seja, a experiência sentida/vivida do profissional de saúde diante da morte e os seus
modos de ser no enfrentamento da mesma. As colaborações obtidas expressam ainda o
fenômeno no modo como o mesmo me veio ao encontro, tendo em vista que os depoimentos
coletados representam a abertura e da pesquisadora ao fenômeno, bem como um modo
privilegiado de encontro possibilitado entre pesquisadora e colaboradores.
Colaborador 119: homem, 34 anos, 12 anos de exercício da profissão, católico, escolaridade
3º grau; médico.
Para mim, profissionalmente, a experiência de óbito gera impotência e angústia. E eu
não sinto angústia pela morte da criança em si, porque acho que ela vai para um lugar melhor
e que ficará bem. A angústia que sinto refere-se à perda sentida pela família. A situação do
óbito, para mim, reflete a dor da perda vivida pela família. E reflete como um espelho, que me
faz pensar e preocupar em como a família irá processar a dor desta perda; em como ela ficará
diante da morte de sua criança.
Apesar de sentir com a família a sua dor, de estar próximo a ela no sofrimento da
perda, não carrego essa dor para casa. A dor fica no hospital. Eu consigo me desprender disso
18 Nos depoimentos, as palavras registradas em negrito representam a ênfase dada pelo depoente em sua fala. Os nomes apresentados são todos fictícios; uma preocupação ética de proteção à identidade dos depoentes.19 O profissional pede para que eu faça um registro escrito do seu depoimento, após eu explicar mais detalhadamente minha pesquisa. A princípio a abordagem seria à outra pessoa, que me havia relato uma situação de óbito vivenciada por ela. Quando toma conhecimento da minha pesquisa, o profissional espontaneamente começa a falar de como é para ele experienciar esta situação em seu trabalho. Vendo que não estou a registrar sua fala, pede que eu a escreva, dizendo querer colaborar com a pesquisa.
90
muito bem. A dor é marca do momento do óbito. Neste momento eu fico presente na dor da
família, sinto e compartilho com os familiares a dor deles. Mas quando vou para casa não levo
este sentimento comigo. Ele pertence ao momento anterior – ao momento do meu trabalho.
Para mim é mais difícil vivenciar a morte de uma criança maior do que vivenciar a de
um recém-nascido. Eu sinto assim porque uma criança maior carrega consigo uma história de
vida, que a marca como pessoa, ao passo que um RN ainda não possui uma história que o
caracteriza, que o marca como pessoa.
Uma aprendizagem que fica – o que eu consigo aprender com a experiência de morte
dos meus pacientes – é que é preciso valorizar mais a vida no sentido de trabalhar menos e
dedicar mais horas ao convívio social.
Colaborador 220: mulher, 32 anos, 7 anos de exercício da profissão, católica, escolaridade 3º
grau; médica.
Depois que tive meu filho passei a associar muito o sentimento da mãe ao meu na hora
do óbito de um paciente, no sentido de me preocupar com o que a mãe pode estar sentindo na
situação da perda do filho. Eu consigo separar as coisas e sei, reconheço, que na hora do óbito
a dor é da mãe (do outro) e não minha. Tenho claro que, embora procure me colocar no lugar
do outro no momento do atendimento à família e, embora compartilhe com ela a dor da perda,
sei muito bem que a dor é do outro.
Antes de ser mãe eu era mais fria e menos sensível diante do óbito de um paciente.
Admito que não me envolvia muito na dor do outro, mas hoje me compadece mais da dor da
família. Hoje busco mais me envolver com a família durante o atendimento ao paciente; busco
conhecer mais (com mais detalhes) a história que levou aquele paciente ao hospital. Sinto-me
mais solidária após minha experiência pessoal de maternidade.
Sinto que um sentimento de tristeza marca o momento de proximidade com a família
na experiência do óbito; no momento em que o médico tem que conversar com a família para
dar a notícia do óbito. Mas tenho claro também que, passado este momento de contato com a
família e saindo do local de contato com a família do paciente, indo para outro local, setor ou
20 Vendo o médico conversar comigo sobre sua forma de enfrentar a morte, a médica também participa da conversa, dando a sua colaboração na forma de seu depoimento.
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até mesmo para a casa, o sentimento de tristeza é abandonado; não segue comigo. A tristeza
fica restrita ao espaço onde ocorreu o atendimento. É muito difícil, para mim, confortar a
família. Não sei o que dizer a respeito da morte, do que a família sente e vivencia É muito
difícil encontrar as palavras adequadas para ajudar a família a lidar com a perda.
Uma aprendizagem que, para mim, resulta desta experiência é que é necessário dar
mais valor a quem está ao seu lado no dia-a-dia e abandonar o materialismo; não priorizar na
vida o valor aos bens materiais.
Colaborador 3: mulher, 27 anos, 3 anos de exercício da profissão, católica, escolaridade 3º
grau; médica residente.
Existe diferença entre atender um recém-nascido e uma criança maior, cujo desfecho
da situação de tratamento de saúde é o óbito. Não que se desmereça o sofrimento da mãe que
perdeu o filho recém-nascido, pois afinal de contas ele em geral é esperado, desejado. Mas a
criança maior conta com uma condição não presente no RN, que é a existência de uma
história de vida partilhada com os seus pares. O paciente pediátrico apresenta uma trajetória
de existência, traz consigo sua história vivida, compartilhada com outras pessoas de sua
convivência. A criança maior possibilita lembranças de vivências partilhadas com seus
familiares, amigos, colegas de escola. É isso que torna mais difícil lidar com o seu óbito.
Quando um pouco da história do paciente é trazida pelos pais em suas memórias e
você ouve os pais falarem, mesmo que em poucas lembranças compartilhadas com o
profissional, não há como não se envolver. Assim, você se envolve não só com o paciente,
mas com os pais, com toda a família. Você se coloca próximo aos pais e fica tentando
entender como a família vai lidar com a perda. É muito difícil ainda quando a situação de
morte envolve uma criança como o menino do CTI, cheio de vida, alegre, saudável,
inteligente, muito querido, segundo o relato dos pais. E esse menino, com tudo para viver, de
repente perde a vida! Como entender e explicar isso? Eu falava para o pai: “Não sei quem
você é; não conheço você, mas sei que você fez a sua parte com o seu filho”. Menino bonito,
bem cuidado; pais atenciosos...
Apesar da situação de gravidade, pelo TCE, com perda de massa encefálica, com toda
a pouca chance de sobrevivência, eu não conseguia olhar para a situação de gravidade do caso
e ficar pensando que ele iria morrer e pronto. A cada momento eu procurava me apegar à
92
possibilidade de recuperação, mesmo diante da pouca possibilidade. Aí veio a situação de
midríase21 constatada e informada pela médica plantonista do CTI. Isto me causou um aperto
na alma. Revelou a impotência diante de tamanha gravidade. Durante todo o tempo de
atendimento ao menino o que marcava e conduzia a minha ação profissional era o otimismo e
a esperança de uma possível recuperação e melhora do quadro. É isso que marca o ser
profissional médico – a esperança e a busca de uma melhora do paciente. O compromisso
médico é salvar vidas. No exame clínico para verificação do quadro de morte encefálica, o
paciente mexeu levemente a perna, o que foi sentido por mim como uma possível esperança.
Era um fio de esperança de que ainda haveria possibilidades. Ouvir a explicação técnica e
objetiva do médico chefe do CTI, esclarecendo tratar-se apenas de um mero reflexo
medular22, frustrou a expectativa que eu havia criado.
A pessoa estuda tanto para se tornar médica. Estuda para salvar a vida e não para vê-la
acabar e deixá-la se esvair. Por isso é muito difícil para o médico lidar com a morte. Quando
se faz de tudo para tentar reverter um quadro grave, para tirar alguém da possibilidade de
morte e não se consegue é muito frustrante. O pai do menino dizia que tinha uma pessoa na
família que já estava mais perto da situação de morte, por enfermidade e idade; e que a
família esperava lidar com a morte desta outra pessoa, mas não com a de um filho cheio de
vida. Isso é doloroso. É sempre bom fazer tudo o que está ao alcance médico durante o
tratamento.
Uma vez foi possível acompanhar uma situação de óbito na Sala de Emergência. Neste
local é diferente lidar com a morte, porque em geral é tudo muito rápido, com pouco contato
com a família. Não dá tempo para se estabelecer um vínculo de proximidade com a família.
No caso do menino do CTI23 houve muito contato com os pais e eles se mantinham na
esperança de que eu pudesse salvar a vida do filho deles. Eu também conservava uma
esperança na recuperação do paciente. Era uma grande expectativa minha. Era impossível
pensar que fosse ocorrer o contrário. Lá bem dentro de mim, acho que minha expectativa era
21 Midríase, segundo o Stedman Dicionário Médico: “é a dilatação da pupila” (p. 886). É um dos dados verificados em condição de morte encefálica. 22 Reflexo medular vem a ser o movimento reflexo executado, onde a medula espinhal é o único órgão do sistema nervoso central envolvida, não havendo a intervenção do encéfalo na sua realização. 23 Menino de dez anos de idade, vítima de atropelamento. Deu entrada no CTI com traumatismo crânio-encefálico grave.
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maior que a dos pais. Mas quando estava com eles eu tentava não deixar tão à mostra esta
expectativa para não estimular uma esperança em algo que eu não poderia garantir.
No Pronto Socorro – lá na Sala de Emergência – o caso era de um menino com
varicela infectada. Houve 40 minutos de tentativa de reanimação. Todo mundo sabe que em
longo tempo de reanimação sem resposta é impossível reverter o quadro, mas a médica da
Sala de Emergência tentou tudo, tentou o máximo que pôde para se desvencilhar da morte.
Mas mesmo assim não foi possível...
Quando eu era MR124 tive que conviver com uma situação de informar à mãe de uma
criança o diagnóstico de Werdnig-Hoffmann25. Foi difícil e chorei muito. Isto me fez pensar
em como poderia ser médica, se não conseguia controlar estas emoções e também em como
poderia lidar com a morte dos pacientes.
No caso do CTI, conversando com minha mãe em casa, comentei achar tão difícil uma
família aceitar realizar a doação de órgãos. Hoje em dia tem sido muito difícil a doação de
órgãos. Mas a decisão da família em doar os órgãos do filho – único filho – me fez sentir
muito realizada e confortada, por saber que minha intervenção junto à família contribuiu para
esta decisão. É muito bom saber que esta decisão possibilitou chance de vida para outras
pessoas. Presenciei a cirurgia de captação dos órgãos. Estar presente neste momento foi uma
coisa sofrida. Não me senti bem nesta experiência. Quando cheguei em casa chorei muito. Se
você me perguntar por que eu fui assistir a retirada dos órgãos, eu posso responder que não sei
se foi somente um impulso motivado por interesses técnicos, profissionais ou se foi um ato
necessário para me fazer acreditar e constatar que havia acabado; que o menino realmente
estava morto. Ontem mesmo eu pensei na família do menino, em como deverão estar estes
pais. Eu ainda não me desliguei completamente desta história...
Durante todo o atendimento eu esperava ver uma reação diferente nos pais. Os pais
eram humildes em termos sociais, mas possuíam uma boa capacidade de entendimento de
tudo que era passado para eles sobre o filho. Especialmente o pai. A reação do pai aos
acontecimentos no CTI e à evolução clínica do filho me impressionou. Ele parecia mais
24 Médica residente no primeiro ano de Residência Médica.25 Doença de Werdnig-Hoffmann é uma doença que se caracteriza por atrofia muscular infantil progressiva. NoStedman Dicionário Médico é descrita como: “perda muscular progressiva devido à degeneração de neurônios motores nos cornetos anteriores da medula espinhal; o início é geralmente no primeiro ano vida, com 80 por cento de mortalidade na idade de quatro anos” (p. 137).
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apegado ao filho e também parecia enfrentar a situação com muita dignidade. A mãe parecia
mais distante. O pai demonstrava controle da sua aflição e do seu sofrimento, embora em
alguns momentos deixasse extravasar suas emoções. Como responder a um pai que pergunta:
“E agora doutora, como vai ser ir para a pesca, e não ter mais o meu filho vindo atrás de mim
pedindo para não ir à escola e para deixá-lo ficar comigo?”.
Foi insuportável, diante de tudo isto, ter que lidar com a frieza de outros profissionais,
médicos especialistas que não demonstram um mínimo de sensibilidade com a situação do
paciente e sua família. O especialista em momento algum teve uma postura de sensibilidade.
Todas as outras pessoas da equipe que chegavam próximo ao menino comentavam como ele
era bonito. Todos se compadeciam. Mas o especialista não demonstrava qualquer tipo de
compaixão. A sua postura de extrema insensibilidade me deixou chocada. Sua postura me fez
refletir que eu nunca quero ser assim. Como alguém que tem filho, esposa, pais, irmãos, pode
ser tão insensível ao sofrimento humano na situação de perda de um ente querido? Será que
não pensa que poderia estar no lugar do outro? Que poderia ser ele a passar pela perda de
alguém que ama?
Eu não consigo identificar com clareza uma única aprendizagem que resulta da
situação de vivenciar a morte de um paciente, pois cada caso é único e remete à uma
aprendizagem específica. Assim, não há uma aprendizagem generalizante, há uma
aprendizagem relacionada a cada situação vivenciada. Mas neste caso em questão uma
aprendizagem que posso identificar é que preciso buscar um controle maior de minha angústia
diante da morte. Também fica uma aprendizagem reforçada que é buscar fazer todo o possível
para tentar salvar o paciente da morte e assim não ter que passar pela situação de seu óbito.
Eu acho que todos no CTI se envolveram com a morte do menino, sentiram a sua
morte de maneira mais tocante, principalmente porque há algum tempo não havia um óbito
nestas circunstâncias. Um menino hígido26, vítima de um acidente fatal. Em geral é mais fácil
lidar com a morte de alguém que está convalescendo, que já tem uma doença crônica, que
possui um prognóstico27 ruim, com poucas chances de cura. Mas o menino em questão era um
menino cheio de vida até o momento do atropelamento e que se não tivesse sido vitimado
poderia estar vivo.
26 Hígido: saudável 27 Prognóstico segundo o Stedman Dicionário Médico é a “previsão do curso provável de uma doença; a previsão do resultado de uma doença” (p. 1110).
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Colaborador 4: mulher, 44 anos, 23 anos de exercício da profissão, espírita kardecista,
escolaridade 3º grau; enfermeira.
Na verdade eu já tive muitas experiências com a morte de pacientes. Eu trabalhei no
CTI, no Pronto Socorro, mas houve uma experiência de uma criança que chegou ao Pronto
Socorro com um diagnóstico de meningite – meningococcemia28 – era meningite
meningocócica. Essa criança evoluiu para óbito muito rapidamente e lúcido. Ele chocava29 e
ele conversava com a gente, com a equipe. Ele... Tinha momentos que ele conseguia
conversar e ele pedia para a gente cuidar dele, para não deixar ele morrer. E foi uma coisa que
marcou muito a equipe. A criança evoluiu para óbito muito rapidamente. Era uma criança
hígida, que não tinha nenhuma história anterior de doença. Então essa experiência foi uma
experiência que me marcou muito, me incomodou muito; até com a proximidade com a minha
realidade, enquanto mãe. Este tipo de óbito faz a gente pensar nas pessoas queridas. Além
disso, a condição de mãe impõe a condição de viver a situação de perda do outro lado, não
mais como profissional, mas como mãe.
Porque muitas vezes você atende... Por exemplo, hoje eu trabalho com criança, a
maioria com transmissão vertical30. Muitas delas, a gente percebe que está evoluindo para
uma dificuldade terapêutica, como já ocorreu este ano, que a gente via essa criança e dizia:
“Não tem mais remédio que fará ficar bom, ele já está resistente”. A gente percebeu
claramente que a criança estava indo a óbito. E foi a óbito! E foi uma criança que... estava
conosco desde bebê, desde os oito meses de idade. Também incomoda porque você tem um
vínculo de afetividade com a família e com a criança. Mas está um pouco distante da minha
realidade neste momento. Socialmente distante. Agora, uma criança que vem hígida, que
estava muito bem, é diferente.
Na verdade, a nossa formação profissional... Nós não somos preparados para lidar com
a morte. Eu, na graduação, em momento nenhum eu tive uma discussão sobre a morte. Na
nossa formação só é dito assim: “Tem que cuidar, tem que salvar vidas”. O tempo inteiro 28 Meningococcemia no Stedman Dicionário Médico é descrito como “presença de meningococos (Neisseria meningitides) na circulação sangüínea” (p. 824).29 A colaboradora refere que o paciente estava em choque clínico, o que significa, segundo o Stedman Dicionário Médico: “1. súbita perturbação física ou mental. 2. Estado de profunda depressão mental e física após grave lesão física ou emocional.” (p. 1238). 30 Transmissão vertical é definida como a situação em que a criança, nascida de mãe soropositiva para o HIV, é infectada pelo vírus HIV durante a gestação, parto ou na amamentação.
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assim. Eles nos falam de cuidar, da assistência ao paciente, de... a vida, né? Que você é
realmente preparado para evitar a morte. Mas esse é... a morte... ela acontece. A gente sabe
que tem um momento em que todas as nossas limitações... A gente não consegue avançar [no
tratamento]. E isso não é muito discutido. Parece que fica uma coisa meio que... que...
escamoteada. Eu sinto assim. Então, na hora que a pessoa vai trabalhar – e trabalhar no
Hospital Infantil – e começa a lidar com a morte da criança, que é uma outra coisa que muito
incomoda – que é a questão da criança também [da morte da criança]. Porque quando você
trabalha com o idoso fica uma coisa meio assim... Parece que é mais aceitável. Então isso para
mim é muito difícil. Acho que a gente tinha que rever um pouco desta questão mesmo. Não
que você vai ensinar a lidar com a morte, que isso ninguém ensina. Isso você consegue...
Você alia todo o conhecimento que você tem: pessoal, religioso e tal. Eu acho que a questão
religiosa também é importante. Para mim! Porque eu sou kardecista. Bom, eu acho que isso
[falar de religião] não é o foco do trabalho [a tese], mas isso me dá um pouco de subsídio para
poder até, para conversar um pouco com a família, para demonstrar um pouco de
solidariedade, de carinho... E como você sabe, eu trabalho com paciente que ficam conosco
muito anos, então inevitavelmente eu crio vínculo com essa família e eles nos reforçam muito.
A criança que eu me referi, que a gente... que foi a óbito este ano... que já não vinha
muito suscetível ao tratamento, a mãe chegava para mim e falava: “O que vai ser do meu
filho? A médica me falou que o remédio que está sendo feito para ele é igual água, que os
exames que foram feitos já indicaram que este remédio não vai fazer efeito”. Então na
verdade, o que você tem que fazer? Você tem que trabalhar a possibilidade da morte com essa
família e consigo também. Para mim fica difícil também (breve silêncio). Olhar para o
menino e pensar: “Ele vai morrer...” E eu tinha que entender isso. E, no final, a mãe já estava
mais... Até foi um processo de sofrimento grande... A mãe já estava um pouco mais tranqüila
e a equipe também. Teve um tempo para aceitar isso.
As experiências de óbito relatadas são diferentes. Este é diferente do óbito lá do Pronto
Socorro, que foi uma coisa rápida, de uma pessoa que vinha com saúde e de repente evoluiu
para morte. É totalmente diferente. Eu vejo isso também na Oncologia. Eu tive uma amiga
que teve um filho internado aqui, que no final ela falava assim: “Ah, eu queria que ele fosse
logo” (expressão facial de tristeza). Então isso acontece com a gente também, com a equipe...
Quando você tem tempo de elaborar também a perspectiva desta morte é... Fica diferente; a
aceitação é diferente, é outra. Quando a morte vem aos poucos dá tempo de se preparar, mas
quando vem rápido e a gente está tentando salvar a vida – e a nossa formação focaliza o salvar
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a vida – mas não dá tempo de salvar a vida e a morte chegou muito rápido, isso é um baque. O
mais difícil é quando a morte vem muito rápido e quando é um paciente que eu vejo nele
alguma pessoa mais próxima, ligada a mim. Isso não deveria ser um fato, mas infelizmente
existe. Isso incomoda muito. Eu tenho um paciente também que me marcou. Ele era sobrinho
de um médico aqui do hospital que morreu com estafilococcia31. Ele caiu, teve uma queda de
patins; fez uma escoriação no joelho e foi a óbito por estafilococcia. São situações que
incomodam muito mais. É muito... Para mim fica muito mais fácil lidar com aquele que está
um pouco distante da minha realidade. Infelizmente.
Eu acho que a principal aprendizagem disso aí é a gente entender que nós temos
limitações; nós não somos detentores de todo o poder, né? Eu acho que isso é importante. E
por isso... Eu acho que isso me reforça a idéia de que eu tenho que buscar todas as alternativas
possíveis enquanto existe a vida. O que eu tenho que fazer para o meu paciente, eu não posso
poupar esforços. Mais ou menos assim: “Não, eu acho que talvez o pessoal de não sei aonde
tem uma experiência melhor, então eu tenho que buscar esta experiência pra ver se vai se
enquadrar no meu paciente”. Porque tem um momento que aquilo pode ser... Aquilo poderia
ter sido a salvação dele... A última chance dele e eu neguei isso. Então eu acho que é
importante a morte pra saber que eu tenho um limite, que vai chegar uma hora que eu não vou
conseguir avançar. Então antes que isso aconteça, eu tenho que tentar tudo que me é possível.
Eu acho que isso... eu acho que isso, para mim, é um diferencial de profissional que está
envolvido; não no sentido emocional, de chorar, de não conseguir trabalhar, mas um
profissional que está envolvido no sentido de buscar uma melhora para aquele paciente.
Na questão pessoal, eu acho que a experiência com a morte torna a gente mais
humilde. Assim, nós somos... eu acho que... Pelo menos o que eu sinto é que tem que ser
humilde, porque nós somos vulneráveis, porque isso pode acontecer a qualquer um, em
qualquer momento. Eu acho que como pessoa e também no... Eu acho importante lidar com
aquela família ali [na situação de morte]. Porque muitas vezes a gente está tão... num processo
muito mecanicista na hora do óbito; na hora da assistência, da reanimação. E às vezes a
família... Parece que você é um profissional muito frio ali. Porque naquele momento [da
reanimação] você tem que ser frio mesmo, você tem que ser muito profissional mesmo! Você
não pode demorar em administrar uma medicação; eu não posso me dar ao luxo de ter... a
unidade tem que estar paramentada com tudo o que eu vou precisar. Eu tenho que ter muita
31 Estafilococcia no Stedman Dicionário Médico é descrito como: “qualquer infecção estafilocócica” (p. 1286). Estafilocócico: “relativo ou causado por qualquer espécie de estafilococos” (P. 1286).
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consciência disto. Tem que ser muito frio nessa hora e muito prático! Mas eu não posso
também deixar de, no atendimento à família, me humanizar, né? Eu acho que pessoalmente
isso ajuda muito; assim, a humanização... o entendimento maior daquela família. Uma queixa
que às vezes a gente vê aqui dos acompanhantes é que aquela enfermagem [auxiliares e
técnicos] não... Nem ligou... Que foi fazer uma pergunta e a enfermagem tratou mal. Eu acho
que quando você consegue perceber todo esse sofrimento, essa coisa, que aquela criança pode
estar vulnerável à morte, ou mesmo durante o óbito, se deve tentar humanizar um pouco o seu
trato com as pessoas.
Colaborador 5: mulher, 34 anos, 11 anos de exercício da profissão, católica, escolaridade 3º
grau; médica.
Lidar com a morte faz com que eu me sinta arrasada e às vezes culpada. Sempre me
leva a pensar no que eu poderia ter feito além do que fiz; no que eu deixei de fazer... Para
mim existem duas situações distintas. Uma é quando a criança está muito grave e eu percebo
que a possibilidade de seqüela é muito grande, ou quando há um prognóstico ruim. Neste caso
eu me conformo mais. Outra é quando a criança descompensa de forma aguda. Aí eu me sinto
profundamente impotente e arrasada, pensando no que mais eu poderia ter feito para salvar a
vida do paciente (talvez devesse ter pedido mais uma gasometria32, trocado o antibiótico...).
Fico refletindo e me ponho em auto-questionamento. Quando uma criança grave apresenta
sinais de melhora e depois piora novamente, acontecendo o óbito, isso é muito difícil de lidar,
porque, nesse caso, já havia sido criada a expectativa de vida para o paciente e, aí, vem a
frustração com a sua morte.
O contato com a história da família também em geral contribui para o sofrimento da
perda do paciente. Às vezes é uma história de grande expectativa e investimento no
nascimento da criança e é duro ver a dor dos pais diante da morte do filho tão desejado. Sinto-
me muito mal quando enfrento uma situação de óbito em que há grande investimento da
família na criança. É muito difícil, para mim, lidar com esta situação. Em casos assim, fico
lembrando, pensando na situação por algum tempo, além do período de atendimento aos
familiares no hospital. Fico triste, meio deprimida e preciso de um tempo para esquecer e
superar a tristeza que envolveu o óbito.
32 Gasometria está descrito no Stedman Dicionário médico como a “mensuração de gases.” (p. 556). Refere-se à análise do nível dos gases presentes no sistema respiratório humano, como, por exemplo, o oxigênio.
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Uma estratégia que utilizo para lidar com o momento de dar a notícia do óbito aos
familiares é buscar consolá-los pela via da religião. Sou uma pessoa religiosa, católica, e
acredito que Deus é maior e é ele quem decide pela vida ou pela morte. É Ele quem dá o
limite! Isso me ajuda a enfrentar com os pais a perda de seus filhos. A crença religiosa ampara
e ajuda a suportar melhor a dor da perda. Sinto que os pais que são abertos à religiosidade
conseguem suportar um pouco melhor o momento do óbito. Conversar com eles, utilizando
argumentos religiosos e espirituais favorece o enfrentamento desse momento tão difícil.
Uma aprendizagem que fica é que tudo tem limite. Você não é dono, não pode
escolher vida ou morte para a criança. Às vezes a criança chegou no limite dela e o
profissional tem que entender isso.
Colaborador 633: mulher, 47 anos, 24 anos de exercício da profissão, católica, escolaridade
2º grau; técnica de enfermagem.
Aqui, quando tem uma criança grave com possibilidade de óbito, a gente fica em
observação do paciente, atenta a tudo o que acontece. Quando a gente vê que o respirador dá
sinais de uma parada34, nós logo tratamos de afastar o acompanhante do local e chamar a
assistente social para fazer atendimento ao familiar. Ao mesmo tempo, corremos para auxiliar
os médicos na reanimação à criança. Muitas vezes a gente luta, luta, e mesmo assim a criança
vai a óbito. Isso causa tristeza. Ficamos tristes pela família e pela criança, principalmente
quando quem morre é uma criança grande, que já viveu um pouco mais a vida.
O que a gente faz? Bem, a gente tenta conversar com a mãe (ou quem estiver como
acompanhante no momento do óbito), tentando consolá-la, tentando acalmá-la. Eu,
pessoalmente, procuro dar apoio religioso à mãe. Quando eu vejo a tristeza da mãe, fico triste
também, porque fico pensando em mim; se fosse eu naquela situação. Eu ainda não lido bem
com a morte, apesar de conviver com ela tantas vezes. É muito sofrido perder alguém que a
gente ama.
33 A técnica em enfermagem senta-se ao meu lado na mesa de prescrição médica da enfermaria e se põe a falar sobre a experiência dela e das colegas ali na enfermaria, onde algumas crianças crônicas seguem internadas há alguns anos, sem possibilidade de alta hospitalar para casa. 34 Parada a que a profissional se refere vem a ser parada cardio-respiratória – sinal de morte do paciente.
100
Depois do momento de assistência ao paciente, quando já foi constatado o óbito, então
a enfermagem prepara o corpo para encaminhá-lo para o Setor de Patologia35 e quando a mãe
vai embora (sai da enfermaria), o corpo é transportado. Aquele que está mais forte é quem vai
preparar o corpo. Os outros ficam pelos cantos. Tem algumas situações em que a gente fica
paralisada com o sofrimento. A gente fica pensando na mãe, na sua perda. Tem casos em que
o médico chora e nem a gente agüenta. Tem mães que voltam para agradecer, porque viram
que a gente lutou pelos seus filhos.
Aqui nesta enfermaria, nós lidamos de forma igual com todos os pacientes. Não há
distinção entre eles. Todos recebem atenção igual por parte da enfermagem. Se tem um
paciente grave, todos têm que se envolver, mas um dos técnicos de enfermagem fica com
atenção mais voltada para observação do paciente grave e os demais vão cuidar dos outros
pacientes. Na hora do atendimento do paciente que está morrendo, toda equipe trabalha junta.
Quando uma mãe está com muita dificuldade para aceitar que ocorreu a morte do seu
filho, todos vão conversar com a mãe: médico, assistente social, enfermeiro, técnicos. O
psicólogo é chamado para atender a mãe. Até o pessoal da limpeza do setor se envolve com a
morte do paciente.
Uma aprendizagem que eu vejo é que cada paciente é diferente. A gente aprende com
cada um coisas diferentes. Mas isso não ajuda a abrandar o enfrentamento da situação de
morte em família. Eu ainda não estou preparada para perder alguém da minha família. Não
acostumo com a idéia de perder alguém mais próximo a mim. Se a gente fica triste com a
morte de um paciente, imagine, com a morte de um parente! A gente sofre muito. Você fica
naquela situação de saber que a pessoa que se ama está doente e vai morrer, mas você não
quer aceitar a morte dela.
Também é muito sofrido quando um paciente que ficou muito tempo internado vai
embora de alta. Fica em nossa lembrança os momentos compartilhados durante a sua
internação hospitalar. Principalmente, quando se trata de paciente que não vai receber em casa
a mesma atenção e cuidados que recebeu de nós aqui no hospital. A gente sofre por imaginar
o que pode acontecer com ele fora do hospital; como ele vai ser cuidado... Imagina se ele
morrer em casa! Temos uma criança de três anos, que desde os cinco meses está aqui com a
35 No HINSG, os corpos ficam guardados no Laboratório de Patologia, em geladeira específica, até sua liberação para a família.
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gente. Nós praticamente o criamos. Ele já fez incontáveis paradas cardio-respiratórias. Ele
tem Síndrome de Down, é traqueostomisado36 e é uma criança muito doce. Quando a equipe é
muito ligada ao paciente, é difícil se desprender dele. A fisioterapeuta leva as roupas dele para
lavar em casa, traz xampu, sabonete. Antes era uma senhora da limpeza que cuidava das
coisinhas dele. Quando ela morreu, a fisioterapeuta assumiu estes cuidados. Ele está perto de
receber alta hospitalar e a gente fica pensando: como esse menino será cuidado em casa?
Quando existe uma criança com grande chance de evoluir para óbito a qualquer
momento, a gente fica muito alerta.
Colaborador 7: homem, 49 anos, 25 anos de exercício da profissão, evangélico, escolaridade
3º grau; médico.
Quando vivencio a situação de morte de um paciente, eu procuro me conduzir de
forma a investir numa boa assistência. Enquanto há possibilidade de vida para o paciente,
procuro oferecer todas as condições para a sua recuperação. Se não há chances de vida, não
fico investindo demais, porque isso não ajudará o paciente a viver, apenas irá retardar a sua
morte inevitável.
O meu sentimento em relação à morte de um paciente varia de acordo com a situação e
prognóstico do paciente. A morte de um paciente hígido, acometido por alguma enfermidade
aguda ou trauma, causa impacto. O sentimento da perda é maior, pelo pesar da interrupção
brusca daquela vida. É um sentimento de tristeza e de compaixão com os familiares. No caso
de paciente com prognóstico ruim, fechado, em fase terminal, sofrendo, sem condições de se
reverter o quadro, também dá tristeza. Sempre é triste. Mas neste caso há uma sensação de
alívio pela cessação do sofrimento do paciente.
Na minha opinião pessoal, se houvesse a legalização da eutanásia em pacientes fora de
possibilidades terapêuticas, eu seria a favor da interrupção da vida; porque vejo isso como a
interrupção do sofrimento da pessoa, respaldado numa situação legal para os casos de
pacientes sem chances de vida. Em casos de morte de pacientes neuropatas37, com paralisia
36 Traqueostomia, segundo o Stedman Dicionário Médico vem a ser a “formação de um orifício na traquéia [...]” (p. 1418). Traqueostomisado, assim, é a pessoa que foi submetida a este procedimento médico-cirúrgico. 37 Neuropata, segundo o Stedman Dicionário Médico é “aquele que sofre de uma doença do sistema nervoso ou possui predisposição para isso.” (p. 918).
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cerebral severa, seqüelados gravemente, eu me sinto triste pelo pesar da família, mas não fico
desnorteado pela perda. Penso no fim do sofrimento daquela criança, daquela pessoa.
Eu acho que para o médico existem dois tipos de sentimento frente a morte do
paciente. O primeiro é quando se tem a perda porque a morte venceu, apesar de todos os seus
esforços. É triste, mas você sabe que fez tudo o que podia e então sente uma situação de alívio
por não ter permitido que o paciente morresse sem a devida assistência. Fica uma sensação de
dever cumprido. O segundo é resultante da situação que pode acontecer com qualquer
profissional, quando ele perde o paciente por falta de conhecimento, por imprudência, ou por
atuar de forma inapropriada. Aí o sentimento é de culpa, decepção indignação, fracasso,
incompetência, imprudência. Por isso é necessário estar sempre estudando, para evitar errar,
apesar de isto [o erro] ser inerente ao ser humano.
Quando vivencio uma perda não levo o sofrimento para a casa. Isso fica no plantão.
Não deixo que isto afete o meu humor fora do hospital, com minha família e na vida social.
Trabalho em UTI, onde a possibilidade de óbito é constante, diária. Se eu sofrer com todos os
óbitos, como é que fica?
Acho que na relação médico-família é muito importante buscar interação e contato
aberto para preparar o paciente e a família para a morte e assim diminuir o impacto da perda.
É importante a realização de uma assistência à família para trabalhar o desfecho com óbito. É
preciso procurar amenizar o sofrimento daqueles que ficam. Isso é possível quando se busca
passar para a família que a vida pode continuar. Também ajuda a consolar a família quando a
gente reflete junto com ela que o destino de todos é a morte, que todos vamos morrer um dia.
Quando se consegue mostrar para os familiares que há esperança, eles ficam mais amparados.
Principalmente aqueles que acreditam em Deus. É possível trabalhar a morte utilizando a
espiritualidade como estratégia de apoio à família. Quando eu falo de espiritualidade, falo de
cristianismo. A aproximação com Deus possibilita abrandar o sofrimento dos familiares. A
possibilidade de se pensar em um reencontro algum dia com aquele que morreu, em
comunhão eterna, deixa a morte como um afastamento temporário. Ajudar a família a pensar
na possibilidade de comunhão eterna, auxilia no amparo aos que perdem seu ente querido.
Em sua essência, o ser humano apresenta a capacidade de lidar com a perda das
pessoas que ama e sobreviver à perda. Dentro da nossa programação genética nós temos essa
capacidade de lidar com a perda, mantendo em nós as lembranças boas do que foi vivido com
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aquele que se foi. Exceto quando a pessoa já tem um gene para depressão. Aí ela terá enormes
dificuldades para enfrentar a perda.
Acredito que várias aprendizagens resultam da experiência de enfrentamento da morte
dos pacientes. No aspecto científico, a aprendizagem tem a ver com a curiosidade suscitada
pela busca de respostas científicas fisiopatológicas, para se entender o que aconteceu. No
aspecto pessoal, a aprendizagem que resulta é saber que o homem é um ser frágil e tem limite.
A morte é certa. Não somos melhores, mais poderosos e nem temos vantagens sobre os outros
por nossa condição social. A morte é um mal necessário, faz parte do ciclo da vida, nivela as
pessoas. Viemos do pó e ao pó voltaremos.
Colaborador 8: mulher, 62 anos, 32 anos de exercício da profissão (8 em hospital), espírita
kardecista, escolaridade 3º grau; assistente social.
A morte do João nos deixou muito chocados porque de fato ele não estava com
infecção. Nós acompanhávamos passo a passo a vida dele e eis que de repente a gente recebe
a notícia que ele havia falecido. Bem, a gente já estava preparado porque a própria doença
dele na literatura [médica] informa que com dois ou três meses a criança morre. E ele já
chegou aos doze anos. Mas nos últimos tempos ele tinha tido uma recaída muito grande. Ele
já não estava mais brincando; a gente brincava com ele e ele não respondia. Ele perdeu a
alegria de viver; ele perdeu o estímulo para se alimentar, tanto que os médicos verificaram
que ele travou a própria garganta para não engolir a alimentação. Ele comia e a comida saía
pelo nariz. Então ele já estava se preparando para isso [a morte]. Mas, de certa forma, foi
muito difícil esse enfrentamento, por causa da nossa convivência. Nós não queríamos que a
criança saísse do hospital da forma como saiu. Nós esperávamos que ele saísse como todas as
outras crianças38: caminhando e aproveitando a vida lá fora (silêncio e emoção).
Falar sobre meus sentimentos diante disso me engasga um pouco. Eu acho que esta
criança foi uma experiência de vida para todos nós, com o problema que ele tinha, que era
muito grave e ele demonstrava uma alegria muito grande de viver. Esse tempo todo em que
ele permaneceu entre nós, ele estava sempre rindo, brincando, alegre. Dentro dos seus limites
ele conversava, ele fazia as suas gracinhas. E eu acho que a gente também aproveitou muita
coisa com ele porque a gente aprendeu que a vida é passageira e chega um determinado 38 Na enfermaria onde a criança estava internada a incidência de óbitos é baixa e, em geral, as crianças saem do hospital com alta hospitalar para casa.
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momento em que você tem que deixar a vida material e seguir seu caminho. Mas é muito
complicado, sabe? Muito complicado. Principalmente quando esse fato acontece com pessoas
dos nossos laços de afeto ou pessoas muito ligadas à gente por laços familiares. Isso bate de
frente e bate firme. Toda morte é difícil para mim. Eu não consegui ainda entender o fator
morte, embora eu saiba que você tem que nascer, crescer, viver e morrer. Mas eu não tenho
essa hipótese bem trabalhada dentro de mim. Então eu tenho dificuldade de lidar com esse
fator. Eu vivo. Se eu precisar fazer um atendimento eu vou fazer, mas eu vou chegar no meu
momento em que eu vou sentar no cantinho e vou chorar, porque eu acho que foi uma perda.
Talvez eu não chore nem por mim; talvez eu chore pela outra pessoa, pela mãe ou pelo
parente da pessoa que passou [morreu]. Porque eu acho que é muito difícil, muito difícil
mesmo. Lembro minhas perdas; que não foram fáceis... A minha convivência com o período
dessa perda. Aquela preparação que o médico fazia todos os dias, dada minha revolta com
relação a essa perda que, para mim, foi infinitamente difícil. E a minha mãe depois foi muito
rápido, mas eu continuei não aceitando. E, para mim, lidar com o fator morte é muito difícil!
Mas eu tento reconstruir. Um dia depois eu dou uma melhorada, mas existem uns óbitos que
deixam a gente pra baixo mesmo. Não tem jeito!
Eu procuro usar... Se o outro tem que ser atendido por mim, eu procuro usar da melhor
maneira possível. Eu procuro ser muito técnica, porque eu não estou ali para chorar; eu estou
ali para resolver os problemas... da família – acalentá-la e resolver os problemas sociais que
advém do óbito. Mas depois, dependendo de como aconteceu, eu me desmancho. Ah, todo
óbito é uma experiência de vida, né? É uma lição que o outro deixa para nós. Cada criança
que morre é uma experiência de vida que a gente vê. A gente olha; toda mãe quer que seu
filho nasça e cresça, brincando e saudável. Aí na hora que o óbito acontece, acho que perde
alguma coisa dela. Eu sinto a dor que ela está sentindo, mas claro, eu sinto muito diferente.
Depois essa dor é reconstruída de outra forma. Eu tento lidar com outros problemas. Eu
termino esquecendo a dor que eu senti. Mas continua sendo difícil. Para tentar esquecer eu
procuro outras formas de... Ver crianças brincando; cuidar das crianças que estão aqui ainda,
que estão no nosso meio; de estar presente conversando com as mães; ouvindo música; lendo
jornal – procurando não ler nada sobre morte, mas sempre coisas agradáveis para aliviar um
pouco. Eu vou buscar coisas que mostram que um se foi, outros existem. Aquele que se foi
não precisa mais da minha ajuda; os que estão presentes precisam. De forma que quem se foi
é chegado o momento. Então tem que se caminhar passo a passo até que se chegue cada um
no seu momento. Ninguém vai antes de sua hora, ninguém! Cada um tem seu tempo marcado
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e por certo talvez aquela foi a melhor escolha. A gente tem que entender isso, apesar de ter
que lidar com essa dor.
Faz pensar e refletir bastante na minha própria existência... O que eu deixei de fazer, o
que eu poderia ter feito, o que eu posso fazer que eu ainda não fiz; o que eu posso mudar que
eu não mudei; tudo o que eu posso ser melhor para aliviar a dor do outro, a minha dor; para
melhorar a minha existência, a minha partida. Eu sofro pela perda, pela dor da perda. Eu não
temo a minha própria morte. Até pelo fato de desconhecer o desconhecido. Eu não sei o que é.
Eu até imagino, mas eu não sei o que está do outro lado da vida, como será aquela vida do
outro lado da vida. Então, eu não sei, quando uma pessoa partiu da vida material para a vida
espiritual como ela vai estar na próxima existência. Tem uma série de coisas que deixam uma
interrogação. Então essa interrogação bate, faz doer, exatamente por você estar acostumado a
ver a figura da pessoa... o ser humano, a pessoa, a figura. Com a morte você deixa de vê-la.
Você não tem mais. Você sabe que ela existiu; você vai ter provas da existência, mas ela não
estará presente em momento algum. Principalmente se for nos laços familiares. Você faz uma
reunião de família e vai faltar alguém.
Colaborador 9: mulher, 57 anos, 25 anos de profissão (18 anos no hospital), católica,
escolaridade 3º grau; assistente social.
Assim que eu cheguei aqui no HINSG, passando um mês, aproximadamente, eu tive
que dar uma notícia de óbito. Isso pra mim foi chocante, porque eu nunca tinha dado uma
notícia de óbito para ninguém. E eu sempre falo assim: a gente perde um dedo, um braço, o
marido, a mãe, o pai, mas perder um filho eu acho que é uma coisa que toca muito. Essa coisa
de morte, perder um filho... E era um avô até que cuidava dessa criança. Ele parecia ser um
menino de rua, mas não era menino de rua e tinha uma ligação muito forte com o avô. Ele
tinha aproximadamente doze anos. Foi muito triste, para mim, dar a notícia para o avô de que
o menino havia morrido. O avô chorou muito. Isso ficou marcado porque foi assim logo no
início que eu vim atuar aqui no Hospital Infantil.
Recentemente, me marcou a situação de um menino de onze anos, que tinha AIDS e
ele foi uma das primeiras crianças a quem foi dado o diagnóstico. E eu tinha um vínculo
muito forte com ele e com a mãe. Ele internou várias vezes. Depois ele ficou muito tempo
sem internar e agora, na fase da adolescência, ele internou e não saiu. Ele já estava cego e
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identificava a gente – a equipe toda – pela voz. E no dia que ele faleceu, estavam todos da
equipe dentro da enfermaria e todos ficaram muito tristes. Ao ponto de todos chorarem, desde
o médico até a funcionária da limpeza. Eu não tenho nem palavras para dizer. Ele era um
menino alegre; tinha um bom relacionamento com todos da equipe. Quando ele tinha por
volta de seis, sete anos, quando ele não queria internar, não tinha doutor que desse jeito, ele
não internava mesmo. E foi muito triste o dia que ele morreu. A mãe ficava abraçada comigo,
chorando, pedindo para trazer o filho de volta. Foi uma coisa ruim, que eu não tenho nem
palavras para dizer. Ela me abraçava e dizia: “Meu filho foi embora; volta...” E eu tentava me
controlar para não chorar perto dela; mas eu acabei chorando. E aí veio outra pessoa da equipe
também e conseguimos conversar com ela. Depois eu respirei fundo e dei as orientações que
deviam ser dadas para o sepultamento. Foi uma sensação de impotência (risos) quando ela me
abraçou chorando, porque eu não sabia o que falar para ela. Eu pensava: “O que que eu vou
falar para essa mãe nesse momento? Não sei como!” E eu costumo dizer – e eu nem cheguei a
dizer isso pra ela, porque nem tive condições... Eu digo que todos nós somos filhos de Deus e
que Deus empresta os filhos dele e tudo que é emprestado, um dia você tem que devolver.
Mas neste óbito eu não tive condições de falar isso para a mãe. Ela chorava tanto abraçada
comigo que eu fiquei parada, sem dizer nada. Não tinha palavras! (risos). Eu só pedia a Deus
para dar conforto a ela. Mas fiquei impotente mesmo.
Não são todos os óbitos que são assim. Por exemplo, um óbito em que eu não tenho
muito vínculo com a família, eu dou tranqüila a notícia. Quando eu aviso um óbito da minha
enfermaria eu dou tranqüila a notícia. Tranqüila, assim entre aspas, né? Mais ou menos. Mas
quando não tenho vínculo com o pai, a mãe, nem com a criança, porque houve pouco contato
ou nenhum anteriormente, dar a notícia de óbito é mais tranqüilo. No outro caso, não; o
menino estava sendo acompanhado por nós desde pequeno. Então foram muitos anos de
contato.
Antes eu não aceitava a morte muito não, tendo em vista... Em relação à minha mãe.
Eu sempre dizia que se minha mãe morresse, ela sairia por uma porta e eu pela outra. Mas, de
um tempo pra cá, há mais ou menos vinte anos, eu mudei meu pensamento. Eu acho assim,
que se a pessoa está sofrendo, em cima de uma cama, doente, eu acho que sofre quem cuida e
quem está doente também. Então eu aceito. Eu acho que a religião ajuda. Porque quando eu
dou uma notícia de óbito para uma família que tem uma religião, a família não fica tão
desesperada como aquela que não tem religião. Aquele que não tem religião, grita, fala, xinga
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Deus. E aquele que tem religião não... É lógico, ele chora, tem aquele sentimento, mas ele
aceita mais, se conforta mais. Eu acho que é assim comigo também.
Colaborador 10: mulher, 47 anos, 20 anos de exercício da profissão, católica, escolaridade 3º
grau; médica.
Eu acho que eu me deparo com essas situações de óbito e, na verdade, assim... não é
nem o óbito concreto mesmo, de ele ter ocorrido nem nada. Eu acho que a gente já convive
com isso desde o momento em que o paciente entra no serviço e recebe o diagnóstico de uma
doença que é sempre associada à morte. Então, por que o câncer? Bem, há uns 40 anos atrás
era uma doença que matava praticamente todas as pessoas. Hoje em dia, principalmente os
adultos, eles carregam essa informação. Então quando a gente usa essa palavra [câncer] eles
realmente associam [à morte]. Quando é uma criança, que talvez não tenha vivenciado a
situação de câncer na família, a gente fala essa palavra e a gente vai explicar então para a
criança. Então ela não tem essa informação anterior e aí fica mais tranqüilo. Então, bem no
começo, quando eu vou dar a notícia para a família, eu evito usar a palavra câncer logo no
início. É lógico que as informações que eu vou dar têm que ser informações que sejam
assimiladas integralmente. Então eu não posso ficar com meias palavras. Eu tenho que falar
realmente o que deve ser dito. Eu tenho que dar todas as informações, mas eu evito falar a
palavra câncer logo de início. Então, depois de ter falado muita coisa, eu falo que é uma
doença grave, que é uma doença que se não tratar vai acabar evoluindo e a criança pode
morrer, mas a gente vai tratar, a gente tem chance de cura. Falo das chances de cura e, no final
eu falo: “É câncer”. Porque se eu falo que é câncer logo no início, eles não ouvem mais nada.
Então se eu tenho que dar segurança, eu tenho que dar antes de usar a palavra câncer. Isso é o
que eu percebo. Mas nem todos os casos são assim.
Quando é uma doença que a gente sabe que não tem um prognóstico bom, que a gente
sabe que é 100% chance de morte pela doença, eu falo sim [da possibilidade de morte].
Lógico que eu falo com cuidado, falo até esperando saber se aquele é o momento. Pode ser
que aquele não seja e no dia seguinte a gente tem que rever e conversar mais um pouco, até
que todas as informações sejam passadas de uma forma, assim, tentando ser menos
traumática. Quando a criança tem chances de cura, eu reconheço que eu sou bastante positiva.
Então se a criança tem 70% de possibilidade de cura, eu sou bastante positiva! Eu, como
pessoa, como profissional, sei lá como o quê, sou bastante positiva. Eu me apego bastante nas
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chances de cura que a criança tem e tento transmitir isso para a família. E por que eu faço
isso? Porque eu tenho visto que quando a família se desespera as coisas andam muito mal em
todos os sentidos. Parece que é sofrimento a mais do que o já existente. E quando a família
tem fé na cura, ela suporta melhor e transmite coisas melhores para o paciente. Então aí tudo
vai bem.
No momento do diagnóstico, quando é um diagnóstico que a gente está conhecendo o
paciente naquela hora, quando tem possibilidade de cura, eu fico tipo assim: “Vamos lá!
Vamos lutar!”. Eu fico bem animada. Quando é algo que não tem chance, quando é aquele
prognóstico reservado, a postura que eu tomo é: “Eu vou ajudar essa família e esse paciente a
terem a melhor qualidade de vida possível que eles puderem ter; eu vou tentar estar do lado
deles; vou ver o que tem de melhor a ser feito neste tempo de vida que resta”. Assim, a minha
postura é essa. E enfrento... Acho que tenho enfrentado isso hoje em dia de uma forma muito
melhor do que antes, porque eu tenho estudado sobre cuidados paliativos. E eu acho que...
Uma coisa que me lembro agora é que quando se fala em eutanásia, os cuidados paliativos,
eles falam justamente contra a eutanásia. Porque... Para que que vai se fazer a eutanásia a
princípio, né? “Ah, é para abreviar o sofrimento; então para morrer logo”. Os cuidados
paliativos vêm justamente contra isso, porque vem, tipo: vamos dar uma qualidade de vida!
Vamos fazer com que tenha uma vida boa e não uma vida curta! Já que vai morrer, que sabe
que vai morrer daquela doença, que seja da melhor forma, né? Ter ido para os cuidados
paliativos foi uma brecha que eu vi que estava precisando ser ocupada; assim, de amparo para
as famílias. E, olha, quando a gente faz isso, principalmente com as visitas domiciliares, é um
reconhecimento tão grande! É como se a mãe, principalmente a mãe – que é a cuidadora –
dissesse: “Ah meu Deus, tem alguém também cuidando de mim”. Eu sinto como algo de
solidariedade, tipo assim, a gente que tem filho... Quando a gente era criança, a gente queria a
mãe da gente: “Oh mãe, me segura, me acolhe!” ; aquela coisa de MÂE!!! Aí depois quando a
gente fica adulto a gente já não pode mais chamar a mãe: “Mãe, vem me ajudar!” e quando a
mãe está naquele lugar de ela ter que ajudar o filho, mas ela também está precisando de um
apoio e a gente leva esse apoio, leva essa visita domiciliar, eu acho que é o colo da mãe que a
gente está levando para ela. E eu reconheço como isso é importante para eles. Eu acho que é
fantástico! Pena que a gente não tem podido fazer isso [cuidado paliativos]; não está podendo
levar isso em frente.
Existe a situação de Fora de Possibilidades Terapêuticas – a fase terminal. Eu conto
demais com a equipe que a gente tem; com a nossa equipe que eu acho que é
109
interdisciplinar; pelo menos para mim, no meu modo de trabalhar. Assim... porque eu, a
psiquiatra, a psicóloga, a assistente social, a gente está sempre interagindo nesses momentos e
é bom demais, porque a gente divide muito essas coisas. Se tiver que chorar, uma chora nos
ombros da outra, entendeu? E assim divide essa carga; porque é uma carga pesadona para
uma pessoa só. Então, se eu tenho ajuda da equipe interdisciplinar no atendimento de um
adolescente que sabe que vai morrer, isso ajuda muito. A psiquiatra tem acompanhado os
últimos pacientes nossos. Eu acho que ela tem feito um trabalho muito legal, no sentido de...
não é nem de preparar não, mas no sentido de ouvir, de fazer esses pacientes falarem,
desabafarem e tudo. É... Eu... É impressionante que eu percebo que, quando a gente conversa
com o paciente e expõe as coisas, como as coisas ficam mais serenas. Parece que então eles
estão pisando no chão; eles estão conhecendo o chão em que eles estão pisando. O que eu falo
é o seguinte: quando o paciente percebe que não tem mais jeito, não tem mais possibilidade de
cura, e isso não é dito num primeiro momento, a gente vê muita somatização, muita
ansiedade, muita poliqueixa e coisas que às vezes não tem nada a ver. E na hora que a gente
conversa e coloca as cartas na mesa – é lógico que isso tem que ter um momento, e isso aí
quem está preparando é o pessoal da saúde mental – na maioria das vezes o paciente fica mais
sereno; o paciente consegue falar. É como se ele falasse assim: “Oba, agora então eu vou
poder falar, porque até então estavam colocando uma barreira e não estavam me deixando
colocar pra fora o que eu estava percebendo”.
Bom, agora o momento da morte, né... Olha, no momento mesmo... eu choro junto e
tudo; vou para casa arrasada, dependendo do paciente. Depende muito do paciente. Se é um
paciente que eu tive muito contato, eu fico mal. Algumas vezes não fico mal naquele dia, vou
ficar mal uns dez dias depois, sabe. Principalmente quando são pessoas que têm a idade dos
meus filhos. E isso aí... os meus filhos foram crescendo e as idades dos pacientes que foram
me afetando mais foram crescendo. Então, quando é da idade dos meus meninos, nossa! A
coisa é muito maior. Porque eu vejo o meu filho lá em casa – os meus filhos. Sei o que pensa,
o que gosta, sei o que aquela fase de idade está pensando. Então relaciono. Não tem como
separar. Não consigo separar isso e acho que nem sei se vou conseguir algum dia; nem sei se
vai ser bom para mim, nem sei se vai ser bom para os pacientes eu conseguir separar. Não sei
se é bom para os meus filhos eu não conseguir separar isso. Bom... é uma perda. Não vou
comparar com a perda de uma mãe, entendeu? Mas é uma perda que é uma perda aqui, uma
perda ali; vai juntando, juntando, juntando, juntando; parece que a gente vai sendo assim... é...
não sei... Socada; assim como se fosse um bife socado e vai, e vai e vai... você vai ficando...
110
não sei... preparado... Não sei se preparado é a palavra, mas pouco a pouco, pouco a pouco,
sempre e sempre... a gente está nessa vida, e entra paciente, sai paciente... a gente vai ficando
calejado; mas não é um calejado frio e distante.
Cada paciente é como se renovasse tudo e eu fico assim: “Não, esse aí vai dar certo;
vamos investir”. Eu fico depositando tudo, todas as esperanças, investindo e quando é para
transplante, corro atrás do transplante; e quando as coisas não dão certo... Nossa! É uma
porrada! Eu fico: “Puxa vida, fiz de tudo e não deu certo?!” É uma decepção. É ruim. E eu
acho que não... Eu acho que renova... Cada paciente é uma coisinha diferente. Eu não carrego
a mágoa do que aconteceu com um [paciente anterior] para o outro [paciente atual] não. Não
carrego isso e, tipo, vou com menos pique, não. Eu acho que... Hoje, pelo menos... Eu estou
falando isso porque eu estou vivendo uma situação agora na enfermaria, que eu vivi em
novembro do ano passado – mesma doença, a mesma idade praticamente, mesmo protocolo39,
mesmo segundo protocolo – e eu estou com muita fé que essa menina vai ficar boa, sabe; que
a gente vai conseguir. Se não conseguir eu vou ficar decepcionada.
É... Bom... Agora o que mais? Depois da morte vem a família e eu acho que é uma
coisa que a gente não tem podido atender – que é o pós-morte. Porque eu acho que quem fica
é que agora vai sofrer. Trabalhar em cuidados paliativos para mim é uma coisa que eu acho
que... Eu não tenho conseguido fazer isso plenamente. No ano passado a gente foi
caminhando... Estava caminhando para isso, mas aumentou demais o serviço e nós não temos
dado conta. A gente fazia visitas domiciliares. E, no início, foi assim: “Vamos fazer! Vamos
fazer!”. E a equipe que estava ligada mais nos cuidados paliativos, todo mundo no mesmo
pique, vamos fazer, vamos fazer. E ficava no papel, ficava no papel... E eu falava: “Gente,
está me dando nervoso! Vamos botar isso para funcionar!” E diziam: “Mas não tem
estrutura!” Pegamos o carro e fomos! Com o nosso carro mesmo começamos a fazer as visitas
domiciliares; e começamos a correr atrás de medicamentos importantes para os cuidados
paliativos. Conseguimos! E fomos caminhando e tal; e fizemos aquela jornada [Jornada de
Cuidados Paliativos, em Vila Velha]. Fomos no ano passado para um workshop em São
Paulo, que foi muito bom! Bastante proveitoso! Mas, depois, entramos num sufoco no Serviço
[aumento da demanda de atendimento] e nós não estamos dando conta, infelizmente [de
manter os cuidados paliativos].
39 Protocolo é o tipo de tratamento preconizado.
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Mas isso [cuidados paliativos] é uma coisa que eu vejo comigo; que está guardadinha
dentro do meu coração, num cantinho, pronto para explodir no momento em que eu tiver
condições, que o Serviço me der condições. E agente está trabalhando para que o Serviço
tenha condições para isso. Eu acho que cuidados paliativos... A gente faz cuidados paliativos.
Sempre fizemos. Mas, na maneira assim ampla, como tem que ser feita – com estudo, com
discussão de casos, com tudo, fisioterapia, essa coisa toda – a gente tem deixado muito a
desejar, nesse sentido.
O que eu aprendo como pessoa, ao lidar com a situação de morte, é valorizar as
pequenas coisas, as alegrias, o momento da minha família – “Puxa, está todo mundo bem!” –
não tem alegria maior no mundo do que isso. Que bom que meus filhos têm saúde; que a
gente chega em casa e está todo mundo lá, e que não sabe nem o que é tomar uma injeção. E
as outras coisas... É lógico que eu gosto de uma casa bem arrumada, de uma viagem, mas isso
acaba ficando em segundo plano. O dia em que eu não puder fazer, o dia em que eu não tiver
uma roupa nova para vestir, isso não é nada! Porque a gente... Tem tantas outras coisas que
são mais importantes que o material, né? Então, como pessoa, a morte me ensina a viver.
Como profissional, eu acho que eu tenho crescido profissionalmente. Eu acho que isso traz
benefícios para os meus pacientes porque eu vou aprendendo – o que me ajuda a lidar com
meus pacientes e trazer mais conforto [para os pacientes]. Então, coisas que a gente vai
aprendendo; a gente vai aprendendo a ter palavras de conforto para as famílias que perdem os
filhos. Eu acho que tem me acrescentado bastante em todos os sentidos.
Eu quero que daqui a pouco tempo, quando você estiver apresentando isso daí [a tese],
que você mostre assim: “Agora eles já estão com o serviço de cuidados paliativos de vento em
popa”. Eu espero que quando você publicar isso aí, ou apresentar; eu gostaria demais que nós
estejamos com as coisas funcionando plenamente.
Colaborador 11: homem, 42 anos, 20 anos de exercício da profissão (12 anos na função
atual), católico, escolaridade 2º grau; auxiliar de patologia.
É muito chato, porque a gente fica triste. Caso de criança que morre, assim por
descuido da família, né? Uma pneumonia de repente, uma gastrenterite. Tem muita doença
aqui que a gente sabe que tem condição de ser tratada. Aí você vê aqui cada criança bonita.
Então, eu penso assim: “A criança não deveria morrer”. Às vezes é por falta de cuidado da
família e de saber também como procurar recurso. Também a gente não entende. Tem tudo
112
isso. A gente fica triste. Eu, por exemplo, eu fico. Então eu procuro não pensar naquilo. A
gente tem filho pequeno também, então para mim quanto menos pensar é melhor.
Logo no princípio eu tinha... Eu pensava que podia estar necropsiando uma criança
que poderia ser o meu filho ou poderia estar viva; eu tinha o maior cuidado. Hoje a gente tem
muito cuidado, mas antigamente tinha mais cuidado ainda. Via se a criança não estava se
mexendo; há oito ou dez anos atrás. Então aquela necropsia ali, já imaginava ali se fosse um
filho, de repente. Aí a gente tem até um choque na hora que vê; com medo de ser uma doença
contagiosa também.
A gente sente muito quando vê a família chorando. Às vezes dá até vontade de chorar
também (risos). Eu, por exemplo, às vezes... A gente sente mesmo. Às vezes a mãe ou o
próprio Serviço Social vem e passa com a mãe e o pai aqui e gente vê que eles gostavam
muito da criança. Às vezes a mãe pega o filho no colo. O filho já morreu, mas ela está ali
abraçada, às vezes beijando. A gente fica... Comove. De qualquer jeito! Não tem aquele que
acha que não se comove numa situação dessas não. Criança falecida... Morreu, né... No caso
ali está o pai, a mãe... É complicado... é complicado... a gente agüentar sem se comover. Eu
acho assim. Tem que se comover; por mais frio que a pessoa seja, entendeu?
No caso da necropsia em si, no meu modo de pensar eu não aceito a necropsia. Eu faço
porque é minha função, mas se fosse um parente meu, um sobrinho, um tio, eu lutaria para
não fazer aquela necropsia. Iria até na Justiça. Eu acho que... Estou falando até contra o
hospital... a lei fala que até 48 horas [de entrada no hospital e evolução para morte] tem que
fazer a necropsia, e tem também os acidentes em que é obrigatório fazer. Mas tem os casos de
enfermaria como acontece lá no Hospital X, que tem muito paciente adulto, com casos em que
não é tão necessária a necropsia. Às vezes é um idoso que já está internado há três, quatro
meses e o médico, com preguiça de dar o atestado [declaração de óbito], manda para a
necropsia. É complicado. A família chegava lá, chorava, dizia que não queria. Eu falava:
“Tem que correr atrás do médico”. O médico teria que assinar, porque o paciente já tinha
vários, quatro, cinco meses de internação, já se sabia o diagnóstico e tudo mais; não precisava
da necropsia, entendeu? Às vezes é paciente crônico, já tem a história dele; já estava fazendo
tratamento, mas o médico com preguiça... Já estou mudando de assunto também (risos). É
complicado. Da nossa parte não é preguiça. Se tem que fazer a gente faz, mas como se vê tem
muito médico que não pensa na família do paciente. Para ele tanto faz, não está nem aí, não
quer nem saber. Não é ele, né?
113
Mas aqui a gente sempre sente. Às vezes eu saio até de perto para não ficar ali, para
não ver aquela família chorando. Às vezes a gente pega um banco, uma cadeira, pede à mãe
para sentar, acalmar. A gente fica com medo de a mãe pegar o neném e levar embora (risos).
A gente vê o desespero da família e a gente sente também: “Pô! Essa família vai acabar
pegando a criança e levando embora”. Igual uma vez aí. Uma mãe – acho que foi num fim de
semana, num sábado. A mãe estava falando com a criança para ela acordar. Tem muito caso
que a gente vê assim. É difícil! É um sofrimento danado! Então a gente tem que se colocar no
lugar da família.
O pessoal da enfermagem, o pessoal hospitalar, sei lá – que trabalha em hospital –
desde o serviçal até o diretor, tem que se colocar no lugar da família, entendeu? Eu acho que
nós, funcionários de hospital, temos que nos colocar no lugar deles. Olhar o paciente como
um parente nosso; um parente, uma filha, um sobrinho. Da nossa parte aqui não. Eu acho que
jamais. Muita coisa que a gente faz aqui não pode deixar o paciente à vontade na hora, né?
(risos). Imagina você cortando a cabeça ali... Eu falei até com a doutora uma vez: “Imagina,
doutora, se a gente começa a mexer e o paciente começa a dar uma mexida e começa a chorar;
começa a falar que está doendo?” Imagina, heim?! (risos). Eu tenho medo disso – de
necropsiar alguém que não esteja realmente morto. Imagina! Nunca mais eu trabalho numa
função dessa. Imagina só o que a pessoa vai passar. O meu medo até hoje ainda é sempre o
medo dessa parte aí. E o medo também de me contaminar. Porque aqui a gente pega paciente
que teve meningite. Ainda bem que está tendo pouco caso. Mas é uma doença complicada;
para pegar pouco custa. Aí a única coisa que a gente tem para confiar é Deus, né? Deus tem
que nos proteger.
Lidar com isso [a morte], eu acho que me acrescenta no modo de lidar com as pessoas.
A gente aprende a ser mais humilde. Tem muitas pessoas que deveriam assistir uma
necropsia, ver a família. Tem muitos médicos, profissionais de saúde, que deveriam vir
assistir uma necropsia; ver uma família, por exemplo, como a família fica; como é que faz
uma necropsia. O aprendizado que se tem é de procurar ser mais humilde, entendeu? Eu acho.
Mas tem muitos profissionais que não acham isso. Mesmo lidando todo dia com o paciente
não se tocam, não se comovem. Mas eu acho que, para mim, no meu modo de ver, me deixou
mais humilde; mais humano. Mas tem muitas pessoas que não são assim, humanas, né? São
muito ignorantes, indiferentes. Mas eu acho que, pra mim, melhorou o meu modo de lidar
com as pessoas. Já fiz muita coisa errada, mas a gente vai aprendendo... Vai aprendendo que a
gente tem que ser mais humilde; e isso vale para todo ser humano, não importa a classe social.
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Eu tento não ficar pensando só em estar aqui neste local, em um determinado
assunto... Eu tenho que enfrentar a situação, pois essa é a minha função. Se eu tiver cinco
necropsias, tenho que fazer cinco; se tiver uma, tenho que fazer uma; se não tiver necropsia
para fazer, não faço. Então tenho que pensar normal. Eu tento não misturar as coisas. Tento
deixar fora daqui a minha vida particular, a vida da minha família. Tento não misturar porque
você não pode misturar as duas coisas. Você tem que fazer o seu serviço; não importa o
serviço que você faça. Não pode ficar pensando que vai levar contaminação para casa. A
gente periga até evitar de chegar em casa e dar um beijo, um abraço no filho, na mãe, na
esposa. Eu tento não misturar as coisas. Serviço é serviço, família é família. Eu tento sempre
me descontaminar um pouco quando eu saio daqui. Não levo minha roupa daqui para casa;
minha roupa daqui fica aqui. Eu tento fazer isso para não ficar preocupado. Mas a gente não
pode misturar.
Colaborador 12: mulher, 32 anos, 10 anos de exercício da profissão, católica, escolaridade 3º
grau; fisioterapeuta.
É difícil porque muitas vezes a gente não recebe orientações para isso e vem lidar
justamente quando a gente está no trabalho. Alguns pacientes em especial a gente sente mais
do que outros, dependendo, não do tempo que você o acompanha, mas da própria situação,
das circunstâncias em que acontece a morte. Mas tem umas em especial que marcam e não
tem como esquecer e isolar seu sentimento e a profissão, entre uma e outra. E, ultimamente,
foram duas que me marcaram muito e eu fui realmente ativa ali na hora; não só olhando, mas
também participando diretamente na intervenção; em manobras. Participação mesmo; de
manobrar, ambuzar40... Mas tem duas coisas que eu separo. Na hora em si [no momento da
reanimação] eu sou literalmente uma fortaleza; não me aflora sentimento. Na hora mesmo –
na hora mesmo em que eu estou com a mão – é o objetivo: eu tenho que salvar; e eu
racionalizo o que eu tenho que fazer. Assim, na hora você tem desgaste emocional também,
mas na hora você está tão compenetrada, está tão imbuída de conseguir aquilo, que você não
pensa.
No último [óbito] eu acho que eu saí descabelada e fisicamente fragilizada, porque
foram 40 minutos de massagem cardíaca; e realmente o desgaste físico foi grande. Mas eu
40 Ambuzar é um termo usado no hospital e se refere à utilização do instrumento denominado ambu (nome comercial da bolsa valva) para realizar manualmente a oxigenação do paciente; procedimento denominado ventilação bolsa volva máscara.
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tirava forças e não sabia de onde. É uma coisa que não tem como explicar. É uma coisa que
vem de dentro e realmente depois você para e pensa: “Como é que eu fiquei 40 minutos
massageando uma pessoa?” – um adolescente grande – e não sabe. É muito... Na hora é que
você vê que tudo aquilo que você fez e infelizmente não conseguiu o sucesso, aí realmente a
gente... Bate aquela sensação de impotência... de não ter conseguido... Aí que... que...
realmente parece que o corpo entrega e dá... aí que a emoção realmente aflora e vem a
sensação de impotência. Em certos pacientes você faz aquilo [manobra de reanimação], não é
que seja mecânico. Eu não sei explicar se com uns você tem mais ligação do que com outros,
ou às vezes é a situação da família no momento... Eu também já participei de outros, em que
eu tinha acabado de conhecer e me comovi da mesma forma. Não é apenas quando eu
conheço o paciente e a família há muito tempo, que me leva a me comover. Eu já vi que são
situações distintas; eu não sei. Porque parece que você se envolve mais com certas situações.
Na maioria das vezes a família, no momento do óbito, não está junto, mas você vê
aquele sofrimento, você participa. E, realmente a morte do José e do Antônio foram umas das
piores para mim. E o José, você vê que ele... enquanto ele estava consciente, pedindo ajuda,
com aquele olhar dele. E depois ele fechou o olho, permanecendo por algum tempo com o
olho fechado. Eu chamei: “José, acorda!” E ele abriu o olho... Aquela sensação... Na hora eu
pensei assim: “Será que ele parou?” Aí eu chamei e ele abriu o olho. Eu perguntei: “Você está
melhor?” Aí você via que ele não tirava o olhar. Aí no final quando a gente... Eu via aquela
agonia. Todo mundo tentando pegar veia, e ambuzando; todo mundo mobilizado. Mas é
engraçado, eu não sei como, mas naquela hora que eu estou lá... O pessoal ainda pergunta,
como é que eu... Eu não tenho... Não sei, não sei dizer que eu tenho emoção, naquele
momento ali. Parece que... Eu canalizo tudo para o meu esforço físico e para minha... para o
meu discernimento, para o meu pensamento rápido para aplicar. Aí depois que o negócio
acaba; bate aquilo ali. Aí não tem... Aí realmente eu desabo (risos). Aí é uma perda como se
eu estivesse perdendo... Vem a sensação de impotência, o pensamento de: “Será que a gente
fez tudo realmente o que a gente poderia ter feito?” Você refaz tudo o que você fez e pensa:
“Será que se eu tivesse feito de outra forma, talvez pudesse não ter acontecido”. Normalmente
o fisioterapeuta não atua na reanimação, mas eu não consigo deixar de me envolver. Eu
assumi a massagem porque estava mais fácil para eu massagear do que para os outros, na
posição em que eu estava.
Quando acabou tiveram que me amparar, porque a força emocional e a física, parecia
que eu tinha ido a zero. Eu sentei e parece que naquela hora caiu a ficha. Aí eu realmente
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botei para fora. Chorei tudo. Aí peguei o telefone – porque eu ainda me preocupo – liguei para
outra colega, porque era o setor de uma outra colega, não era o meu setor. Eu fui pega de
surpresa na hora da confusão, na hora que o paciente estava passando mal. Era o setor da
outra colega, que trabalha de manhã e já havia saído do trabalho; e da colega da tarde, que era
o dia de folga dela. Então era um setor que não era meu; mas que eu já tinha passado por lá
[atuado anteriormente no setor]. E aí eu fui avisar às colegas e participar com elas também
disso, porque é uma coisa do dia-a-dia. Aí liguei e avisei. E depois estava naquela... como eu
escutei falarem: “Ah, vamos parar de chorar, porque a mãe vem aí. Vamos parar com essa
choradeira”. Isso é estranho, porque não tem como você não se envolver numa situação dessa.
Isso veio de outro profissional. Eu estava perto do expurgo; eu estava me refazendo porque
tinha outras crianças e aí veio todo mundo arrasado. E veio essa profissional dizendo vamos
parar de chorar... Isso realmente incomoda, porque parece que para essa pessoa é apenas um
corpo inerte; é menos um para você ver.
Eu já tive muitas diferenças com essa mãe. Mas, na hora que me falaram que ela
estava sentada no estacionamento, desesperada; e que iam lá para ver se ela queria ver o filho;
e a pessoa responsável em dar a notícia falou que não tinha um bom relacionamento; eu virei
e falei: “Eu vou lá com você, não tem problema não”. Mas quando chegamos perto da mãe,
nós vimos que ela não tinha a mínima condição. Então, aí realmente sai a profissional e entra
o ser humano. Tento me colocar no lugar do outro e ver o desespero daquela mãe que estava
completamente fora de si; que não sei se por ignorância ou por negação, nunca conseguiu
realmente compreender o que o filho dela tinha [a doença] e que mais cedo ou mais tarde isso
iria acabar acontecendo. É difícil ver o desespero dela e, na hora, você não tem como não
participar e não se envolver. Só que aí vai mais uma vez, que o controle... você treme dos pés
à cabeça. Mas em momento nenhum eu estava desesperada ao lado dela. Aí que vai aquele
discernimento de você tentar apoiar. Você vê que está todo mundo assim – parece que o
pessoal perde a ação. Tem certas situações que o pessoal perde a ação. Queriam botar a mãe
de pé e eu dizia: “Gente não tem condição de colocá-la de pé; vamos pegar a cadeira de
rodas”. Colocamos na cadeira, levamos para o Serviço Social. E lá realmente, como era um
paciente que já estava no hospital há muito tempo, todo mundo conhecia; então o hospital
inteiro ficou mobilizado. E eu não sei, depois eu até pensei: “Será que eu me intrometi onde
eu não devia?” Depois eu pensei, quando eu fui para o Serviço Social, eu já tinha tido mil
diferenças com essa mãe; mas naquela hora isso sumiu. De você não esperar ter que dar a
notícia e de estar dando assistência. E a crise nervosa onde ela entrou; que na verdade não era
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uma crise normal de uma perda só – tinha outros componentes psicológicos ali. E realmente
foi difícil. E ali, eu não sei... Eu acabei entrando, eu acabei não sei... me intrometendo, vamos
dizer assim. Eu esqueci a parte profissional realmente e fui mais um apoio perto do... do... me
fazer bem! Entendeu? Aquilo ali deu um ponto final em todas as diferenças, ou todas as
discussões que eu já tinha tido com ela. Você esquece completamente que você já teve
problemas.
A gente não tem como... O envolvimento com a família... Se você dá... Por exemplo,
não cabe a mim como fisioterapeuta dar a notícia, mas em certas circunstâncias eu tive que
dar. Como na morte do Antônio, em que eu saí dali [da reanimação]... E olhar para a cara da
mãe e falar com ela que, daquela vez – depois de sete paradas [paradas cardio-respiratórias] –
não teve condições. E ela me abraçar e vir agradecer. Eu falo que não tem remédio no sentido
da morte e até da vida, quando você consegue um bom resultado. Quando uma criança ou mãe
vem... (emoção) agradecer por tudo o que você tem feito (choro). Então eu acho que, apesar
da falta de estrutura que a gente tem, do salário que não é tão bom, às vezes da falta de
reconhecimento... eu acho que nem de colega... Eu acho que o reconhecimento maior vem do
paciente e da família em relação a você. Você vê que ele te reconhece e isso é o que dá ânimo
para continuar – e da maneira que eu ajo e sempre agi desde o começo. Não é só o
profissional; massagear assim, cumprir meu papel, avisar o óbito e sair.
O óbito, eu acho que... Você vê certas coisas... Como a perda... E outros profissionais
que você não tem como... Como eu já vi... Que você não tem como se meter no meio... Eu
sempre me coloco, em todas as situações. Não só em relação à morte, em dar a notícia, em
estar agindo como se fosse eu que estivesse na situação – como se fosse eu que estivesse
passando por aquilo... Eu sempre me coloquei na minha profissão, seja em hospital ou em
consultório, sempre pensando dessa forma: “Se fosse eu do outro lado, como eu gostaria de
ser tratado?”. Eu não gostaria de ser um objeto, de ser mais um na lista. Então, para mim, até
hoje – eu tenho dez anos de profissão – cada óbito foi um, cada pessoa foi uma pessoa. E não
tem como dizer que morreu, não sei quantos, e é apenas mais uma morte na minha vida
profissional. Eu lembro de cada um. Não tem como ser indiferente. E cada óbito é uma
situação diferente. Do meu primeiro óbito até hoje, cada um eu lembro. Lógico que uns são
mais ativos na nossa lembrança, mais persistentes, mantém mais. Mas não tem como dizer
que você se acostuma. Eu sinceramente, eu não me acostumo. Eu aceito; eu não tenho medo
da morte, como não tenho medo de um corpo depois. Não tenho! Manuseio como se fosse
uma pessoa viva. Não tenho problema com a morte. Mas dentro de mim não tem como
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separar que aquilo ali é uma pessoa e que mesmo depois da morte, ou com a morte, você
passa a ver como um objeto. Não consigo diferenciar isso – com pessoas conhecidas ou com
não conhecidas.
É uma situação, só pra ter uma idéia: eu estou fazendo pós-graduação em saúde
coletiva e fizemos uma dinâmica onde uma professora da Pós colocou duas situações: “Você
tem um milhão para salvar 100.000 pessoas, em um orçamento público, e um milhão para
salvar uma vida”. E dividiu a turma em grupos para poder decidir onde cada um investiria o
orçamento público – se você investiria 1milhão para salvar 100 mil pessoas ou 1 milhão para
salvar uma única pessoa que precisava de tratamento especial. Do meu grupo eu fui a única
que colocava em 100 mil. O resto todo mundo foi unânime que uma vida é uma vida. E teve o
depoimento de um rapaz da turma, que o pai dele passou pela situação de precisar de um
tratamento caro e que teve acesso ao mesmo e se curou. E eu disse aos prantos que escolhi
100 mil porque eu não queria sinceramente ver 100 mil rostinhos de criança morrendo por
uma coisa que eu poderia ter investido o dinheiro para prevenir certos tipos de coisas. Aí no
intervalo a professora veio conversar comigo, que ela nunca havia escutado um depoimento
assim, porque é normal uma pessoa se comover por uma pessoa com a qual tem vínculo; mas
que em todas as vezes que ela usou a dinâmica ela nunca havia escutado alguém chorar e nem
lamentar por vidas de pessoas com as quais não se tem convivência, que são estranhas. Eu,
para mim, uma criança do hospital, um sobrinho meu, eu tenho o mesmo sentimento, o
mesmo carinho e a mesma preocupação. Então, lidar com a morte, para mim, – com a de uma
criança aqui dentro; ou qualquer pessoa – é como lidar com a morte de um parente meu. Não
tem como não me envolver.
Aqui infelizmente não tem quem cuide da gente. Alguém que nos oriente. Assim, a
parte de um outro profissional para orientar que atitude tomar, até para conversar, para
desabafar. Porque às vezes você chega a um ponto de estar quase explodindo. E a gente não
tem um suporte psicológico (choro). A gente tinha uma pessoa, uma profissional de Serviço
Social que nos atendia, quando eu comecei a trabalhar aqui. E a gente não tem mais quem
atenda ao trabalhador41. E isso, em certas circunstâncias, faz falta. A gente acaba tentando
suprir essa falta com outro colega que tenha disposição para ouvir, para ajudar, entendeu?
41 A assistente social que fazia atendimento em Serviço Social do Trabalho deixou o HINSG por ter sido aprovada em concurso da Justiça, onde agora atua como assistente social. Com sua saída, a SESA não vê motivos para substituição e a vaga foi extinta.
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Então isso faz muita falta também – a parte do suporte para a gente. Porque na faculdade
mesmo a gente não aprende a lidar com isso. E no trabalho a gente não tem suporte.
A aprendizagem, para mim, no sentido pessoal e profissional é que a gente deve ser
um ser humano; ser solidário a uma pessoa que você nunca viu antes na vida; dar a alma por
uma pessoa, ou seja, fazer tudo o que está ao seu alcance. Ser humano com uma pessoa
(choro). Então eu acho que cada dia que passa, cada morte... É isso que eu penso. Não me
arrependo do que eu faço, das atitudes que eu tenho e acho que, cada vez, eu me torno mais
humana. Ao invés do que o que se fala – que com o tempo você vai ficando mais fria – eu
acho que com o tempo você vai ficando mais humana. No meu caso, vendo tanto sofrimento...
Então a gente aprende a ser mais humana e a respirar fundo na hora que uma pessoa vem com
mais ignorância; ou quando uma coisa em que a pessoa perde a cabeça e você respira fundo e
não responde à altura. Você se colocar no lugar do outro. Eu aprendi já muito isso: a ser mais
humana, ter mais compaixão.
Colaborador 13: homem, agnóstico, escolaridade 3º grau (não informou idade e tempo de
profissão); médico.
Quando acontece a morte durante minha ação como médico, é como eu te falei; em
termos técnicos, em termos médicos, eu fico frustrado, porque a gente sempre espera um bom
resultado – sempre. O meu trabalho é um trabalho extremamente técnico; então a gente
espera que sempre tenha um bom resultado, se você fez tudo de acordo com o que estava
certo; ou às vezes mesmo você quer é um bom resultado. Agora, em termos pessoais, nunca
me ligo muito com o paciente. Eu já encaro todos os pacientes, desde que entram no hospital,
como um potencial morto, vamos dizer assim. Então o paciente que eu estou operando eu não
tenho ligação pessoal com o paciente. Nenhum paciente. Pode ser até uma forma de me
ausentar de ter algum tipo de trauma, para me proteger, alguma coisa assim. Mas, na
realidade, eu pelo menos vejo o paciente como um paciente, nunca como uma pessoa, vamos
dizer assim. Então ele está ali. Ele tem alta chance de morrer, não importa qual seja a doença
dele. Se é uma unha encravada ou se é um tumor no cérebro, para mim as chances são as
mesmas. Não importa a gravidade, nem a complexidade da doença. Isso eu já encaro antes,
quando eu converso com o paciente. Eu acho o seguinte: se a pessoa entra em um hospital ela
tem que saber que ela pode não sair mais do hospital viva. E, ainda, tempos depois que ela
120
saiu, ela ainda pode ter problemas pela passagem dela no hospital. Então isso me deixa mais
tranqüilo.
Eu tenho muito contato com a morte, não só de crianças, mas com adulto também,
porque a gente também trabalha com adulto. Mas eu... Quando a gente vai informar que
alguém foi a óbito ou que, irremediavelmente, não importa o que transcorra, a pessoa ainda
está viva, mas não importa o que aconteça, a pessoa vai morrer; que não tem condições de
ficar vivo durante muito tempo, eu também tento ser o mais técnico possível. Eu não me
compadeço com o que a família está sentindo apesar de a gente saber que a família está
sofrendo. Eu vejo o sofrimento das pessoas, mas eu tento ficar alheio a esse sofrimento.
Com relação à aprendizagem, todo paciente nosso é um aprendizado técnico. Eu fico
tentando saber o que talvez eu tenha feito de errado ou talvez o que eu não tenha feito, e que
eu possa melhorar da próxima vez, para evitar ter um resultado semelhante. Na realidade, a
minha profissão eu vejo como um jogo; o tempo todo: nós brincando de tentar manter o
paciente vivo. Por isso é que eu gosto tanto! Porque eu sou bastante lúdico, eu sou bastante
criança, vamos dizer assim, tá? Então eu sempre interpreto o meu dia-a-dia como uma
brincadeira. E eu me divirto muito. Eu sempre exponho, quando o paciente está ciente, ou
quando é adulto, quais são os problemas que ele pode ter com relação àquilo [doença; morte].
E eu exponho de forma tão espontânea, que o paciente muitas vezes acha que eu estou
brincando. Mas eu sempre falo sério! E quando é criança eu exponho sempre para os pais; ou
quando é um idoso, que não tem consciência do que está acontecendo, eu exponho sempre
para o cuidador quais são os problemas, quais são os riscos. Isso também diminui muito a
carga sobre meus ombros, no caso de morte do paciente. Eu não me sinto tão frustrado,
porque eu nunca vejo de uma forma otimista. Eu sempre sou extremamente pessimista com
relação a todos os resultados. Então qualquer coisa que vier de bom é lucro, é vantagem. É
isso.
Colaborador 14: mulher, 29 anos, 9 anos de exercício da profissão, católica, escolaridade 3º
grau; pedagoga.
É uma experiência um pouco nova, né? Eu vim parar na Classe Hospitalar do nada –
como estagiária – e acabei me envolvendo e ficando até hoje. Só que a gente nunca espera, e a
gente acaba, de certa forma, se tornando frio. Eu sempre reclamava com os médicos e eles
sempre falavam: “Um dia você vai ser assim”.
121
A morte, principalmente de uma criança, me marcou muito. E era uma criança... que
você querendo ou não... Eu acabei me envolvendo fora do hospital também. Ia aos
aniversários e tal. Então é muito complicado. Porque antes eu não me imaginava como
pedagoga trabalhando dentro do hospital, quando eu fazia faculdade. É uma experiência muito
nova. E às vezes dá aquele nó na garganta quando você vê que uma criança está passando
mal. Aí você vai para casa e tenta, de alguma forma, se desligar. Mas, eu já sonhei com
criança, já. Aí eu ligo para cá; e, às vezes, conversando com as pessoas pergunto: “Como é
que está fulano?” (risos) Entendeu? A gente às vezes não consegue se desligar! A
possibilidade da morte, também, eu acho que assusta mais ainda porque você não sabe; você
fica naquela indecisão; você fica em cima do muro. “Será que vai, será que não vai?” Às
vezes a gente pensa, principalmente em alguns casos: “Ah, se a criança morrer é uma alívio
para ela”. Mas aí você pensa: “Nossa, estou sendo horrível! Estou sendo fria!” Mas não é por
desejar que morra; é para desejar que a pessoa pare de sofrer. É uma situação ambígua. Uma
coisa que eu fiz, quando uma criança faleceu foi: eu tinha muitas fotos, tinha minha
monografia sobre ela e eu coloquei tudo dentro de uma caixa e engavetei. Pelo menos por um
tempo. Depois eu peguei para dar palestras; mas pelo menos por aquele tempo, para eu poder,
sabe... dar uma relaxada; porque eu voltei a trabalhar aqui.
Eu não era exclusiva desta criança na época. Já aconteceram outros casos de me dar
uma angústia. Eu não sei quem acredita nisso, mas me deu uma angústia num domingo à noite
de eu chorar, chorar... Eu estava na missa e chorei, chorei, chorei e lembrei muito de uma
criança42 aqui. E quando eu cheguei aqui na segunda-feira de manhã, essa criança estava
morrendo. Olha, me deu vontade de virar as costas, sair e nunca mais voltar aqui. Mas a gente
sempre pensa; “Alguém tem que fazer esse trabalho”. E uma vez uma professora minha na
faculdade falou: “Por que você vai sair de lá? Por que não pode ser você? Você já está tão
acostumada”. Então, assim, dá até um nó na garganta falar, lembrar de tudo o que aconteceu –
de brigar às vezes pelas crianças com os médicos, tipo: “Você tem que dar remédio, a criança
está com dor”; e o médico dizer: “Olha, infelizmente para esta criança não tem mais jeito”.
42 Trata-se de uma menina que tinha um tumor cerebral. Ela, a profissional, havia confeccionado um material em braile para a menina, que estava cega devido ao tumor. No dia em que a menina seria submetida a uma cirurgia, a médica pediu a ela que acompanhasse a paciente até o Centro Cirúrgico e ela o fez. Na porta do Centro Cirúrgico despediu-se da menina (que estava com muito medo do desfecho da cirurgia) e disse à mesma que assim que ela melhorasse do pós-operatório, iriam iniciar as aulas de braile. Na segunda-feira referida por ela, ao chegar ao hospital, foi informada pela médica de que a menina estava em morte encefálica. Após receber esta informação, sua atitude foi a de desprezar o material confeccionado.
122
Mas acho que... Eu trabalho aqui, já estou acostumada com essa situação e é uma coisa que eu
faço e que faço com muito carinho.
Olha, a gente aprende a não dar muito valor àquelas coisas bobas. Aconteceu uma
situação comigo que todo mundo ri. Duas unhas do meu pé são encravadas e eu choro de dor.
Uma vez eu estava dando aula para uma criança43 – essa que faleceu – e eu bati o dedão no
carrinho. Na hora meu olho logo encheu de lágrima e eu chorei. Ele olhou para mim e disse:
“Professora, isso é só uma unha”. Olha, nunca mais eu reclamei! Ela dói, mas já não fico mais
reclamando. Então a gente aprende que existem pessoas em situação muito pior do que a
gente. Às vezes a gente está cheia de problema em casa... É, eu tenho problema, mas o meu
problema não é problema de saúde, eu não estou correndo risco de vida, entendeu? A gente
tem que inventar mil e uma... Aquelas teorias do curso de Pedagogia são lindas, mas eu pelo
menos não achei uma teoria específica que encaixasse na pedagogia hospitalar, né? A gente
tem que se fantasiar, vestir de quadrilha... Então, assim, você tem que... É um aprendizado
profissional muito grande, mas eu acho que ele é muito mais pessoal. Porque o profissional
praticamente você aprende na faculdade; agora, lidar com essas situações é uma experiência
de vida muito grande.
Colaborador 15: homem, 59 anos, 33 anos de exercício de profissão, católico, escolaridade
3º grau; médico.
Provavelmente a gente não poderia falar da morte de uma forma tão isolada, quanto a
questão de ela estar ocorrendo dentro de uma instituição. Em um sentido genérico, eu entendo
a morte, quer seja de seres humanos, como de outros seres vivos, como... Eu considero como
uma renovação imposta até pela natureza; uma reformulação do existente e uma progressão.
Eu considero a morte como um fato... Em primeira instância como um fato natural; da
própria natureza. Aos três anos de idade, lembro-me do nascimento de um irmão e três meses
após o nascimento dele lembro-me – apesar de que essa imagem me fica muito vaga – mas
lembro de algumas velas. Eu acho que tinha um pequeno altar. E me lembro que esse irmão
deixou de fazer parte da minha convivência. Então, desde cedo eu tive uma experiência que
não... Não me marcou. Me marcou muito mais o nascimento desse irmão meu, que foi um dia
de muita festa. Isso aí me marcou, mas o outro... era uma coisa um pouco... um pouco triste.
43 A criança em questão era um menino que sofreu acidente automobilístico, no qual obteve uma lesão medular que o deixou tetraplégico.
123
Mas, assim, não me afetou, não me machucou tanto. Mais tarde eu perdi outros irmãos. Uns
foram raptados pelo mar, minha irmã foi atropelada. E, evidentemente, isso traz um
sentimento muito grande de perda. E esse sentimento de perda que ocorre, ele me foi muito
mais profundo quando... Quando alguma coisa pudesse ter ficado pendente entre o meu
consciente e aquela pessoa. Se tinha alguma coisa que eu ainda tinha para resolver com aquela
pessoa, aquilo ali me marcou mais; me deixou com uma dificuldade maior de aceitar a morte
naquele momento.
Com relação especificamente ao trabalho, eu acho, assim, eu acho que tecnicamente
você se defrontar com a morte de um paciente seu, você obrigatoriamente coloca como se
fosse a morte de um irmão; coloca como se fosse a morte de uma pessoa da família; coloca
como se fosse uma pessoa – às vezes, dentro da pediatria, até de um filho. Porque a gente tem,
na figura desse paciente, a figura de alguém que passou a fazer parte da sua vida; alguém que,
às vezes até, fica um longo tempo ao seu lado. E isso aí... Você passa a sentir aquela pessoa
ali como um filho seu. Nesse momento que essa morte ocorre, não tem jeito. Você repassa
pela sua cabeça uma reavaliação de tudo que você achou que aprendeu, de tudo que você
pensava ter um conhecimento pleno; tudo isso vem à sua mente e a pergunta... a pergunta
principal sempre me é colocada assim: “O que que eu deixei de fazer? Será que eu deixei de
fazer?” Então a sensação... A sensação de que se eu deixei de fazer alguma coisa – essa
sensação, se ela ocorrer, é... É uma marca maior dentro desse contexto; porque se você deixou
de fazer de alguma forma, você participou de uma forma negativa naquela evolução [do
quadro clínico], naquele resultado.
Quando você participa da morte de um paciente seu; que você tomou conta e ele vai a
óbito e você – é claro que nós sabemos, é lógico que a gente tem noção plena de que nós não
sabemos tudo – mas você pensa ter feito tudo (silêncio breve), me parece que ela [a morte] é
mais suave para o consciente, para a sua razão, para o seu ser, para a sua alma. Então, comigo
acontece dessa maneira. Eu acho que eu já tive óbitos em minha mão, de eu não saber o que
fazer para o paciente. Isso é extremamente desgastante. Porque eu não consegui compreender
a doença, eu não conseguia compreender o que estava se passando e perdi o paciente. Isso é...
isso é... É desesperador; porque, você faz o quê? Para onde eu vou? Que caminho que eu tomo
agora? E às vezes você não tem conhecimento para isso. E já existem outras mortes que, às
vezes, afeta até muitas outras pessoas em volta da gente, e que a gente se sente, assim,
tranqüilo, seguro. Por que? Porque até aonde a gente tem conhecimento a gente fez aquilo que
124
a gente gostaria de ter feito. É uma obra que você percebe que você não deixou de dar a ela
(breve silêncio) o que ela precisava.
Então, Silvia, é claro, a gente sente a morte; porque quando um ser humano está
morrendo, é sua espécie que está morrendo; é um ser de sua espécie que está morrendo.
Então, quando um ser humano está morrendo, sempre há uma sensação de perda. Pode ser até
que isso seja um sentido de manutenção das espécies sobre a Terra, né? Quando está
morrendo o seu semelhante, você está vendo a sua espécie... De certa forma aquilo ali é um
sinal de risco para a sua espécie. Então sempre existe esse sentimento. Mas, não sei se eu
deixei claro um raciocínio de como eu sinto a morte, porque eu acho que não adianta falar em
teoria de outros, mas o meu sentimento de morte... primeiro porque eu acho ele é uma coisa
não tão dramática como é colocada. Não sinto dessa maneira. Talvez porque eu tenha
vivenciado muitas vezes em minha família como uma coisa até natural.
Quanto à aprendizagem, olha, o primeiro ponto é de fato tentar aprender a respeitar as
pessoas que estão mais diretamente perdendo aquele ente querido. Em segundo lugar, toda
vez que ocorre um óbito (silêncio) eu me sinto obrigado a rever dentro de mim, e dentro dos
meus conhecimentos, falhas – a busca de falhas e de melhorias do que se poderia fazer.
Sempre; sempre, eu penso no que eu poderia estar fazendo de melhor para aquele paciente.
Então eu acho assim que todo óbito – como profissional – é um momento de reflexão e de
busca de um novo estímulo para melhorar.
Colaborador 16: mulher, 30 anos, 12 anos de exercício da profissão, evangélica, escolaridade
2º grau; técnica de enfermagem.
Eu acho que a gente acaba sofrendo junto. Até porque a gente trabalha com criança e a
gente tem filhos – às vezes até da mesma idade – e a gente acaba sofrendo e se chocando
com alguns tipos de morte. A questão da morte encefálica, então, é uma morte agressiva.
Extremamente agressiva – eu acho que, para o profissional, e, muito mais, para a família. Mas
para o profissional, lidar com a morte encefálica é mais duro do que uma morte mais rápida.
Você trabalhar com um paciente em morte encefálica, eu acho muito mais agressivo, por
causa da durabilidade maior; e você lidar com a família, com uma pessoa que não está mais
ali, que está ali só através de um aparelho... E a questão assim... Às vezes as pessoas acham
que é mecânico... Não é! Cada dia você lida com um negócio diferente, com alguma coisa
125
mais agressiva, com uma morte, assim, mais instantânea – muito mais rápido; então eu não
acho que seja tudo muito mecânico não. Acho que... Quando... Alguns meses atrás eu tive
dois óbitos no mesmo leito meu44 e, no segundo óbito, teve uma hora que eu não agüentei e eu
saí para chorar, porque foi estressante; foi muito duro eu perder duas crianças no mesmo dia.
Eu acho que os colegas vêem da mesma forma que eu, embora cada um reaja de
maneira diferente. Eu... Tem algumas coisas que me chocam muito e eu choro; eu saio para
chorar. O fato da hora... da mãe perdendo o filho ali é uma coisa que me choca muito também
– poderia ser eu a estar ali no lugar... Mas eu vejo que os colegas vêem da mesma forma. Não
é um negócio mecânico, não. Não é frio! É uma coisa de sentir com o outro. Até porque
quando a criança chega morta... Quando veio... Quando você chega, a criança está em parada,
que você fica naquela luta com a morte – porque a impressão que dá é que você luta com a
morte – quando a gente está reanimando, eu vejo como uma batalha mesmo. Eu costumo dizer
que quando tem uma criança parando, a Emergência parece um campo de batalha, porque a
gente puxa muita coisa, a gente quebra muita ampola – fica muito bagunçado o setor – então
eu vejo como uma batalha. A gente luta contra a morte, para morte não levar aquele
indivíduo, e a gente... a gente... A sensação que a gente tem é que a gente está numa guerra. É
isso que eu sinto quando a gente está naquele momento ali de resgatar aquela criança para a
vida.
Há uma diferença entre a morte aguda e a morte mais lenta, como a morte encefálica.
Todas duas trazem sofrimento, mas um sofrimento diferente. É diferente também quando
você se envolve com a família. Quando a criança chega, na morte instantânea, não dá tempo
de se envolver com a família. Quando a criança chega, vai agravando e passa a agravar
caminhando para a morte, você já se envolveu com a família; você já sabe de toda a história;
você já está envolvido com a família – muito envolvido com a família. Então é muito
diferente. É mais sofrido.
O que a morte traz para mim de aprendizagem... Para mim, enquanto profissional, é
fazer o meu melhor, porque amanhã ou depois pode ser eu ou pode se um dos meus. Então na
minha cabeça... Eu tenho isso na minha cabeça de a gente sempre fazer o melhor, sempre
achando que poderia ser a gente naquele lugar. E da minha vida pessoal, é ver que a gente não
é nada, que a gente tem que estar andando aqui da melhor forma possível, de estar tratando as
44 O leito a que a colaboradora se refere é o leito do paciente que ela cuida.Cada técnico fica responsável por um ou mais leitos, para os cuidados ao paciente.
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pessoas o melhor possível, porque a morte vem sem avisar. Então é o momento assim de você
estar... de você estar andando como... Aproveitar ao máximo o que você tem, da melhor
maneira possível, porque a gente vê que a morte vem e não avisa que vem. Te pega da
surpresa, entendeu? É dessa forma que eu vejo.
Colaborador 17: mulher, 34 anos, 10 anos de exercício da profissão, católica, escolaridade 3º
grau; enfermeira.
Apesar de eu trabalhar aqui na Emergência há nove anos, toda semana, não todo dia,
mas toda semana a gente tem um caso de óbito no nosso setor. Para mim não é tão comum;
graças a Deus não é rotina ver a morte de uma forma tão simples. Primeiro porque eu acho
que no meu trabalho eu não fui capaz de ajudar alguém. A morte, para mim, me traz uma
certa impotência porque se o nosso dever é salvar vidas e ajudar as pessoas a saírem de um
quadro crítico, quando o paciente vai a óbito, para mim, é uma sensação de impotência muito
grande. Me leva a uma tristeza muito profunda. Eu posso ver óbitos todos os dias, toda
semana, mas às vezes eu saio da Emergência e choro, porque, para mim, me comove muito;
comove o fato porque aquela criança... Por que... Eu penso lá atrás: por que com aquela
criança aconteceu aquilo, o lado social, o lado familiar, como esses parentes irão ficar, o
quanto de sofrimento é para as famílias... O nosso lado também. Que agente fez tudo o que
podia, dentro das nossas limitações, e a gente não conseguiu ter um êxito no tratamento dessa
criança. A morte também, para mim, é vista como... (silêncio).
Uma coisa que mexe muito comigo, também, é a questão da morte encefálica, que a
gente costuma ter muito aqui, em conseqüência de trauma ou de doenças mais graves. Para
mim ainda é muito pior, porque você vê ali um paciente pelo qual você não tem mais nada a
fazer, a não ser esperar o protocolo [protocolo de morte encefálica], esperar o coração parar
de bater... Para mim é pior do que quando a morte já foi concluída, já terminou, já foi
constatado o óbito ali e fizemos tudo o que teríamos que fazer. Você ficar com uma criança
em morte encefálica, esperando, é mais assistir a morte chegar. Posso ver... Eu acho que...
Que esse fato de eu ver o óbito, assistir o óbito e ainda me emocionar, significa pra mim que
eu não estou tão insensível. Porque às vezes as pessoas falam: “Nossa, você trabalha, você já
está acostumada a ver morte; você vê todo dia gente morrendo, para você é fácil”. Para mim
não é fácil! Eu tento trabalhar isso. Às vezes eu não choro perto da mãe, porque nem devo,
mas saio um pouquinho. Se eu não estou agüentando, eu peço licença e saio para chorar,
127
porque é de mim. Eu sou extremamente emotiva e eu acho que isso ainda é um bom sinal,
porque eu não gostaria de ser uma profissional de saúde também tão insensível e tão fria
diante de uma situação dessa. Porque a morte... A morte, para mim, é um enigma, é uma coisa
assim que não se tem muita explicação. O que é? Acabou aqui? A pessoa vai... É um
recomeço ou é um término? Eu não sei explicar. É uma coisa que é muito difícil... Por que
aconteceu aquilo? Chegou realmente a hora, como as pessoas dizem? Eu fico extremamente
emocionada, dependendo das circunstâncias em que você pega o paciente – como foi, o que
levou ele a chegar até o nosso Serviço... Para mim é isso a morte.
Com relação à situação de impotência que a gente fica diante de certos casos, às vezes
a morte nos ensina que a gente tem, cada vez mais, que procurar melhorar como profissional –
eu estou falando com relação ao nosso trabalho. Se a gente deixou alguma coisa falha; se foi,
às vezes, algum descuido assim de a gente não ter visto a coisa acontecer a mais tempo... Eu
acho que serve como aprendizado para a gente ter aquele... A gente fica com um olho mais
clínico, de ver que as coisas poderiam ser evitadas – enquanto ambiente hospitalar. E, em
termos pessoais, a morte acrescenta aprendizado, principalmente dependendo de como, do
que aconteceu com a criança – se foi um acidente; às vezes, se foi um descuido da mãe que
deixou a criança cair do colo; ou foi assim um acidente, porque o pai estava alcoolizado,
estava sem o cinto de segurança... A morte tem o seu lado que realmente nos ensina que a
gente tem que prevenir certas coisas para que não aconteçam, né? A gente tem como evitar a
morte. Em determinadas situações você tem como evitar! Uma forma de assim... Como posso
dizer? Serve para conscientizar a gente de que certas coisas a gente pode evitar. Só não te
digo assim uma doença grave, ou uma doença fulminante, mas à vezes as doenças
preveníveis, os acidentes, os afogamentos, o alcoolismo, o dirigir sem cinto de segurança, as
quedas... A morte traz esse lado de mostrar às pessoas, também, mesmo sendo da forma mais
dolorosa possível, que a gente tem que cuidar do outro.
Colaborador 18: mulher, 50 anos, 25 anos de exercício da profissão (14 anos no hospital),
sem religião, escolaridade 3º grau; médica.
Nesse momento de óbito, para mim o mais difícil não é tanto a perda do paciente; é o
enfrentamento com a dor do familiar; e, aqui, na maioria das vezes, são os pais – o pai ou a
mãe. Porque nosso paciente, a gente tem uma relação com ele, mas não deixa de ser um
paciente, nunca passa a ser um amigo ou um parente.
128
Então, muitas vezes a gente perde um paciente – nessa situação de hoje, por exemplo.
Era um paciente terminal, com um tumor avançado, sem possibilidades terapêuticas. E, apesar
de estar fazendo quimioterapia, era um prognóstico muito fechado. Então, assim, é uma morte
esperada, uma morte anunciada. Mas nunca deixa de ser... A gente nunca se acostuma, não é
verdade? Eu nunca me acostumo com a dor da família, entendeu? Então essa mãe que está aí
hoje, ela estava relativamente tranqüila, apesar de estar sentindo muito a perda do filho,
porque ela está com esse menino aqui, desde que ele começou o tratamento. Está aqui em
Vitória direto, porque poucas vezes ele pôde voltar para casa. Mas ele estava sofrendo muito.
Ela já sabia. A gente vem conversando sempre com ela. Ontem mesmo ela me procurou para
falar sobre ele, se estava muito grave ainda e eu falei: “Está; está muito grave”. Ela
perguntou: “Ele pode morrer?”. Eu disse: “Pode”. Então ela disse: “Ah, mas não está
desenganado...” Eu falei: “Não, ele está se tratando, mas ele pode morrer; ele está muito
grave”. Porque... Porque ela percebeu que ele estava morrendo. Então, assim... É uma
situação. Ela acontece; ela dói, mas não é nada incontrolável.
Para mim, não tem efeito na minha vida. Eu saio daqui e fica aqui. Eu não levo para
casa. Eu não levo para o meu trabalho à tarde. Fica aqui. Outra coisa; eu faço análise. Então
os efeitos que esse contato tem tido para mim ao longo desses treze anos em que eu estou na
Oncologia é muito interessante. Foi muito positivo! Porque a gente aprende a valorizar a vida.
Mostra, para mim, que a dimensão dramática da vida reduziu muito. Sofrimento, para mim,
tem uma outra dimensão. Isso foi uma coisa muito interessante. E depois que a gente
conseguiu trabalhar com cuidados paliativos e que eu comecei a acompanhar no ambulatório
os pacientes terminais, você vê que cada experiência é uma experiência; depende da pessoa
com quem você está trabalhando. Mas algumas experiências foram muito ricas, como, por
exemplo, ver como é possível a pessoa viver um dia. E a pessoa te pergunta, o paciente te
pergunta [sobre a situação dele].
O atendimento de ontem foi horrível, porque era uma criança de leucemia que atrasou
a quimioterapia porque não tinha vaga na Enfermaria. E a criança morreu. A família não
esperava, porque no início do tratamento eles estão todos mobilizados, ainda com uma
esperança de cura. E a menina teve uma recaída da doença no começo do tratamento por falta
de quimioterapia. E todos os pais sabem disso porque o problema lá embaixo [no Ambulatório
de Oncologia], já tem uma lista de quinze pessoas esperando – gente atrasada com a
quimioterapia já há três semanas. Então ontem foi tenso na Enfermaria, porque teve o óbito da
menina no início da tarde. A mãe ficou desesperada; não se conformava. Com toda razão!
129
Além da dor, ainda ter que lidar com isso?! E os outros pais todos que eu atendi ontem
estavam apavorados.
Então, assim, é muito mais difícil essa situação. Você perder um paciente numa
situação onde você falhou com o paciente é muito complicado. Porque é uma situação que
não está associada ao prognóstico do paciente. E isso é complicado. É complicado para os
pais. Aí você tem que lidar com a dor daquela família. Ontem, eu acabei de atender a mãe e
voltei lá para a enfermaria; aí a gente tem que atender os outros pacientes. Todos os outros
pacientes que eu atendi, um por um, isso aparecia. Uma mãe que acabou de internar essa
semana com o filho no começo do tratamento, com o mesmo diagnóstico da menina que
morreu. O que que ela pensa? Aí você tem que passar óleo de peroba na cara; porque a gente
tem sustentar o Serviço45. É complicado. Então no começo do tratamento, você aborda o
diagnóstico, você fala do tratamento, a possibilidade de cura, responsabiliza a família por
trazer o filho; não é? Aí depois... O hospital falha, né? (silêncio) Aí é muito difícil. Uma outra
situação que eu acho muito difícil também é na prática, por exemplo: morreu, vou para casa e
amanhã eu venho; se amanhã eu tiver que atender outro paciente, é um outro dia. Agora, você
acabar de atender um óbito e você atender um paciente que está chegando, essa virada é muito
difícil, porque você não teve tempo de se refazer, às vezes, e você tem que estar num estado
de espírito completamente diferente, né? Porque o paciente que está chegando, está ameaçado
pelo diagnóstico, apavorado; a mãe com a certeza de que o filho vai morrer; então a gente tem
que questionar exatamente isso. Agora, fazer isso com você tendo acabado de atender um
óbito...
Agora, se é um óbito como o de hoje, onde o paciente fez a quimioterapia toda, nunca
respondeu – e isso é uma coisa que acontece, sei lá, 40% dos casos – é uma coisa. Mas se é
um óbito como esse de ontem, que a menina morreu porque nós não prestamos o atendimento
que ela tinha direito, né? Assim, não fui eu, não foram os profissionais, mas foi o hospital.
Porque o hospital não contratou a tempo os profissionais para abrir a enfermaria, que está lá
[o espaço físico e os recursos materiais] disponibilizada já tem duas semanas. Então... Você
sabe o porquê (silêncio).
Ajudar o paciente a lidar com a sua morte é difícil, mas é só você se dispor a escutar e
não tampar a boca do paciente. Por exemplo, hoje eu comecei a atender – eu estou atendendo
uma moça que acabou de entrar em cuidados paliativos – uma moça linda; tem um tumor de
45 O Serviço a que se refere a colaboradora é a Instituição.
130
sistema nervoso central, mas está sem nenhuma seqüela até agora; até agora ela não tem
muitas perdas. Está fazendo quimioterapia. Ninguém prometeu cura a ela, mas ela acredita
que vai ficar boa. Acredita e não acredita; você sabe, é uma coisa dividida ali. Acredita, mas
ela morre de medo de não ficar. Então ela... As perguntas que o paciente vai colocando em
relação a isso e todas, todas as respostas ela tem, entendeu? Então não é essa fantasia que as
pessoas têm que você fica dizendo para o paciente assim: “Não, você vai morrer”. Porque
todo mundo acha isso, né? Mas o paciente não pergunta o que ele não sabe. Então quando o
paciente pergunta a você se ele vai morrer, ele mesmo responde. É só você não dizer “Não,
não vai não”. Porque se você se contrapõe a uma realidade que ele está vivendo e que ele está
compartilhando com você; porque ele te pergunta para poder falar, para poder se sentir
acolhido e aliviar um pouco a ansiedade; se você fala “Não, não vai não, você tem esperança,
quem sabe...” – aquelas coisas – você cala a boca do paciente e ele fica abandonado.
Teve uma paciente que eu atendi muito, muito, muito. Era uma que tinha um tumor
que sangrava para fora; uma adolescente cheia de vida, cheia de planos. E o tumor dela não
respondeu a nada. Aí eu atendi até na véspera de ela morrer. Mas ela me perguntou: “Eu não
vou mais fazer quimioterapia, né?” Eu falei: “O que que a médica falou para você?” e ela:
“Ela falou que não vou”. Perguntei: “Por quê?” e ela respondeu: “Porque não está adiantando;
e agora?”. Entendeu? Ela sabe. E agora?... Eu disse: “Ué, agora você vai tratar aquilo que
você precisar: a dor; vai tomar sangue...”. Aí ela me perguntava: “Você acha que eu vou
morrer?” eu falava: “O que que você acha?” E ela dizia: “Eu acho que já estou morrendo”.
Entendeu? E é isso mesmo! Mas enquanto isso, ela freqüentava a escola; ia visitar a família;
alguma festa na família que ela queria ir, ela ia. Aí chegou uma época que ela não podia mais.
E aí é isso mesmo. Aí ela se alimentava pela gastrostomia46; e ela queixava: “Ah, eu não sinto
o gosto da comida” Eu perguntei: “Você quer sentir o gosto da comida?” Então nós
combinamos com a mãe que a mãe ia fazer duas comidas; uma para ela comer – mastigar e
cuspir; e outra para botar na gastrostomia. E a mãe fazia. Fazia todos os desejos de comida
dela. E ficou assim, ela mastigava e cuspia, mastigava e cuspia, mastigava e cuspia, até passar
a vontade; e a mãe a alimentava pela gastrostomia. E foi assim por um bom tempo. E aquela
mãe a cozinhar. Olha, aquela mãe cozinhou! Aí teve uma vez que foi um absurdo. Fizeram
uma festa. A enfermagem, nessa coisa de... da alegria, de não pode ficar pra baixo... Aí
quando eu cheguei na enfermaria, estava acontecendo uma festa de aniversário; no meio da
46 Gastrostomia no Stedman Dicionário Médico é descrito como “incisão no estômago.” (p. 558). É utilizado quando o paciente não pode se alimentar por via oral.
131
enfermaria! E ela estava naquela fase que ela não engolia. Aí trouxeram salgadinho, bolo –
aquela festa! Para ficar pra cima! E a menina, ela mantinha, assim, um bom humor. Ela
chorava, tinha momentos que ela ficava triste, mas ela mantinha um bom humor; ela não ficou
deprimida durante seu tratamento. Olha, aquela festa foi uma coisa tão chocante! Aí a menina
sentou naquela mesa da enfermaria, e todo mundo comendo salgado e ela lá sentada. Óbvio!
Ela não podia comer, porque ela não ia poder cuspir na enfermaria. Eu falei com a outra
profissional, minha colega: “Que isso? É o fim do mundo. Coisa esdrúxula!” E aí tem a
história do parabéns, né. O pessoal cantando parabéns pra você e aí na hora do muitos anos de
vida ficou todo mundo assim... Aquilo foi surrealista! Mas foi essa coisa que o profissional de
saúde tem que... tem que ficar pra cima, né? Então tem que morrer pra cima, né? Aquilo eu
achei puro absurdo. Aí depois ela saiu comigo e eu perguntei o que ela tinha achado da festa e
ela disse: “Ué, eu não podia comer, né?” Eu falei com ela tudo o que eu achava; que eu tinha
achado muito esquisito aquela festa justamente porque ela não podia comer. Mas ela
realmente não se chocou com a festa. Ela entendeu que era carinho das pessoas com ela.
Então isso varia de acordo com cada um. Mas, assim, é... Basta você não calar a boca
do paciente, segurar sua onda; porque você também tem que suportar, né? Tem que suportar
porque quem está morrendo é o paciente, não é você. Tem que manter uma certa separação.
Não pode se identificar. E, assim, tem que ir acompanhando. Então, essa menina, na véspera
de ela morrer, eu cheguei aqui à tarde e ela estava sangrando muito. Aí a médica tinha
proposto a ela fazer uma quimioterapia para ver se conseguia matar um pouco os vasos
sangüíneos, para parar de sangrar um pouco. Aí ela falou com a médica: “Eu quero conversar
com a Ana primeiro”. Era um dia que eu vinha à tarde. Aí cheguei, à tarde, e ela falou o que a
médica tinha dito e eu falei: “O que que você acha?” Ela respondeu: “Ah, eu acho
quimioterapia horrível”. Eu falei: “Bom, mas você tem que se decidir, né?” E ela: “Ah, eu não
vou curar tudo, né?” Eu respondi: “Não”. E ela, então disse: “Ah, eu vou enjoar e ela nem tem
certeza se vai melhorar, né?”. Eu disse: “Não, não tem, é uma tentativa”. E ela disse: “Ah,
não quero fazer não”. E a médica tinha prescrito duas bolsas de sangue para ela. Eu falei:
“Está bem, então não vai fazer; mas tem duas bolsas de sangue para você tomar”. E aí já era
tarde e ela falou: “Eu só vou tomar uma hoje; amanhã eu volto pra tomar a outra”. Eu falei:
“Então está bem”. Aí fomos lá e eu conversei com a enfermeira: “Olha, ela só vai tomar uma
bolsa hoje, amanhã ela toma a outra”. Ela foi embora e morreu à noite. Morreu em casa. A
mãe falou que ela começou a sangrar à noite, chamou a mãe, se despediu da mãe e morreu. Aí
a mãe veio aqui no outro dia pra me contar que a menina morreu tranqüila.
132
Então, assim, essa mãe... Sempre que vinham as duas eu atendia a menina e atendia a
mãe; porque a menina não falava; tinha traqueostomia e a menina não falava com ninguém,
mas comigo ela falava. Com a mãe ela não falava. Ela falava comigo. Com a mãe ela falava
alguma coisa; mas falar mesmo, ela não falava. Porque ela tinha... Ela queria poupar a mãe do
sofrimento, entendeu? Então ela não falava com a mãe. Quando a mãe percebia que ela estava
muito angustiada, que ela estava ficando nervosa, a mãe trazia ela aqui. A mãe sabia dos meus
horários, então ela trazia aqui. Aí ela vinha, conversava comigo e acalmava. Eu atendia
sempre ela e depois a mãe. Ela tinha traqueostomia, mas, assim, eu ficava aqui na sala com
ela; ela falava; o que eu não entendia eu perguntava e ela escrevia. E eu consegui me
comunicar com ela. E comigo ela conseguia falar, porque eu não ia chorar, entendeu? Eu não
ia sofrer, entendeu? Assim, ela não ia me causar aquela dor que era insuportável para ela, que
era a dor que a mãe sentia. Então aí ela podia falar. Ela podia falar e se tranqüilizava. E assim,
então, ela vinha muito aqui para isso – para a gente conversar. Mas, assim... é... não era uma
conversa, era mais uma escuta mesmo. Assim, para poder falar e perguntar. E eu não
enganava nunca. Se tinha uma coisa que eu não sabia, eu falava que não sabia. É... Mas assim,
às vezes ela perguntava: “Você acha que eu vou conseguir ir à minha formatura?” era a coisa
que ela mais queria. Era no final do ano. Eu falava: “Olha, acho difícil, porque faltam alguns
meses, você está sangrando muito e sua situação tende a piorar”. Porque ela tinha um tumor
enorme que sangrava muito para fora; fazia um curativo, mas não era uma situação que
permitisse a ela ir a uma festa; pela questão estética e também porque as pessoas ficam
chocadas. Ela falou assim: “Você acha que convém?” porque ela se incomodava com as
perguntas das pessoas, entendeu? Então, também era manter uma história, meio que colocava
a menina numa situação de aumentar o sofrimento dela.
E às vezes aparece aquela revolta, né? Isso aparece. Mas tudo isso tem lugar, né?
Então quando o paciente fala com o profissional, fala comigo, no caso, eu não vou sofrer. Ela
não é para mim mais do que um paciente, por mais que eu goste dela. Ela não precisa se
preocupar comigo! Então aí ela pode falar. Porque às vezes os pacientes, muito
freqüentemente, entram numa história de poupar; não querem ver a mãe chorar; não querem
ver o pai chorar. E muitas vezes os pais não dão a devida importância à escuta. O que eles
imaginam é que vai ser sofrimento do filho se o filho falar sobre isso. É muito difícil
convencer os pais de que falar alivia; porque eles têm tanto medo de enfrentar isso, que eles
acham que se falar com o filho é... “O médico falou que não vai dar mais quimioterapia”. E
que o filho vai sofrer muito... Mas ele já sabe, entendeu? É isso que a gente percebe: que os
133
pacientes sabem. E se os pais não falam e eles ficam impedidos de compartilhar isso... É
muito difícil os pais entenderem isso.
Hoje eu estava atendendo a mãe de uma outra adolescente. É uma menina que é uma
situação assim... Aí, atendi a mãe. A menina tem muita confiança na mãe; dorme agarrada na
mãe. Está morrendo de medo, né? Aí eu falei com a mãe: “Olha, ela vai perguntar, porque a
pessoa pergunta; a pessoa quer saber”. E ela falou: “Ah, doutora, mas... Então eu disse: “Olha,
se ela pergunta, é porque ela já sabe; ela quer falar com você sobre isso; não é que ela quer
perguntar; ela quer falar com você sobre isso”. Falei ainda: “Olha, se você precisar da minha
ajuda, precisar da ajuda de qualquer profissional aqui do setor, a gente pode te ajudar a
enfrentar isso junto com ela; mas ela vai te perguntar; você não pode enganá-la, senão ela vai
ficar sozinha”. Porque ela não fala com mais ninguém da família. Mas a dificuldade da mãe é
essa. Eu já expliquei isso para ela. Falei: “Olha, ela não quer perguntar, ela quer falar e você
precisa ouvir”. Fiquei um tempão com essa mãe, mas eu tive a nítida impressão de que eu
desperdicei minhas palavras, porque sabe aquela pessoa que fala, fala, fala e não consegue
ouvir? Ela não consegue ouvir. Então ela mal conseguiu me ouvir; ainda mais que eu falei
para ela uma coisa que para ela é muito difícil. E ela não vai conseguir ouvir a gente, né?
Então... isso é muito difícil para os pais.
Colaborador 19: homem, 36 anos, 20 anos de exercício da profissão (13 no hospital), sem
religião, escolaridade 2º grau; auxiliar de patologia.
Eu, para mim, é como se estivesse habituado a isso. Às vezes as pessoas pensam: “Ah,
você não sente”. Eu encaro muito profissionalmente, como um trabalho. Eu não fico olhando,
“Puxa é uma criança”. Eu procuro nem olhar... Olhar para o rostinho, ficar admirando, nada
disso. Porque... Para evitar sofrimento e essas coisas, né? Eu só encaro como trabalho mesmo!
Tanto é que às vezes acaba e as pessoas perguntam como era; eu digo: “Ah, não me lembro
não; não me lembro o rosto; não sei”. Dá sofrimento! Eu não gosto também muito desse
negócio de estar vendo o sofrimento da família. Prefiro nem estar junto na hora, porque eu sei
que é muita dor; então não gosto. Eu tento encarar o mais natural possível, como só um
trabalho, mais nada.
A cena da mãe com o corpo do filho, para mim, é muito triste. Eu não agüento o
sofrimento de parente, de amigo, que está junto à mãe. Acho que é um momento muito
134
particular da pessoa e eu não gosto de estar convivendo ali junto, ali do lado, presenciando.
Isso me comove muito; eu não gosto! Quando chega [o familiar] para ver, primeiro eu
pergunto: “Você agüenta ver, quer ver?” Se a pessoa responde quero, então eu coloco ali [o
corpo sobre uma maca] para a pessoa ver e saio de perto. Eu não gosto de ficar junto não. É
muito ruim; ainda mais quando a gente tem filho. Você ver aquilo ali – o sofrimento da
pessoa – você já começa a pensar se fosse um filho seu, um parente seu. Sei lá! É uma coisa
muito esquisita.
Em termos de aprendizagem, dá para a gente observar por vários ângulos. Eu tenho
uma aprendizagem, tipo assim: de ver que a gente está de passagem por aqui. Sem mais nem
menos você morre. Então somos todos iguais. Fico olhando que tem gente que se sente tão
superior. Aí, sem mais nem menos, está numa situação dessa, sem esperar. É uma coisa... sei
lá. Eu acho que dá para você se sentir um pouco mais humano; como a pessoa deveria ser –
um pouco mais humana, sem ter tanto esse ar de superioridade – essas coisas assim.
Aprendizado que eu tenho também é em termos profissional, né? De como, às vezes, você
tem que ser um tanto frio para poder lidar com isso; de estar ali presenciando, lidando com
isso. Aprendizado que você tem, na parte técnica, é que são coisas do dia-a-dia, que às vezes
uma pneumonia... Uma coisa tão boba então você passa a ver: Pô! Poderia ter tido mais
cuidado quanto a isso! Tinha como evitar; ou então foi negligência, ou deixou de lado. Então
eu acho que é um aprendizado de todos os lados.
Colaborador 20: mulher, 45 anos, 21 anos de exercício da profissão, espírita kardecista,
escolaridade 3º grau; médica.
Silvia, lidar com a morte é uma tarefa difícil porque a gente faz, mas não pára para
falar o que a gente faz. Também não pára para pensar muito sobre o que a gente faz. Mas o
que eu entendo é que eu aprendi a fazer essa tarefa de examinar cadáveres com uma pessoa
que... Me ensinou a importância dessa tarefa. Ela é importante! E ela deve ser feita com
cuidado, com zelo, com respeito. E desde então eu tenho praticado essa... Essa tarefa de lidar
com os cadáveres dessa forma: com zelo, com respeito e com a intenção de achar uma causa
de morte e esclarecer para a família essa causa de morte. Então, quando eu encontro na sala de
necropsia um cadáver, eu sinto prazer em fazer essa tarefa. Porque eu sei que ela é
importante e que ela vai ajudar uma família a esclarecer a causa da morte. Então, para mim,
trabalhar com a morte é prazeroso. É um sentido de utilidade.
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Procuro fazer sempre da melhor maneira possível para que depois não fiquem
perguntas sem respostas. E eu aprendi, nesses últimos vinte anos em que eu tenho essa tarefa
de lidar com pessoas falecidas, aprendi também que... Como é frágil o ser humano, né? Do
ponto de vista material, fragilíssimo! E do ponto de vista de reconhecer como as pessoas são
todas iguais, né? Então, numa mesa de necropsia você percebe a igualdade de todos os seres.
E isso vai sendo também aplicado, praticado na nossa vida diária. À medida que a gente vai
fazendo [necropsia] a gente vai reconhecendo que a gente deve tratar as pessoas com
igualdade. Então isso trouxe para minha pessoa um sentimento de... de... de abolição do
preconceito, vamos dizer assim. Contra qualquer... de qualquer natureza, porque você abre
um cadáver e todos os cadáveres são iguais; não importa se seja rico, se seja pobre, se seja
branco ou se seja negro. Então todos são iguais! E a gente também aprende a dar muito mais
valor às coisas que têm importância, e não às coisas materiais, trabalhando com óbito. Porque
você começa a perceber a fragilidade da vida material; o pouco tempo que a gente pode viver.
Pode-se viver um ano, dez anos, vinte anos, cinqüenta anos, mas sempre é muito pouco tempo
para você passar assim a se considerar muito importante. Então, ao mesmo tempo, isso
diminui a nossa importância pessoal. Pelo menos do meu ponto de vista, né? Cada vez mais,
quanto mais eu trabalho com necropsia, mais eu percebo que a importância pessoal deve ser
minimizada e a coletividade deve ser valorizada, favorecida, nessa tarefa. E eu acho também
muito interessante como é que a gente passa a encarar a morte, inclusive na família. Porque
depois que eu comecei a trabalhar com morte – de outras famílias, de pessoas que eu não
conheço – eu passei também a trabalhar com a morte de pessoas que eu conheço; que são da
minha família. Então a morte dos meus familiares passou a ser uma coisa muito mais
tranqüila de aceitar, de compreender; de não sofrer tanto por essa morte, quando a gente vê
tantas pessoas morrendo e a gente percebe que todo mundo vai morrer. Embora muitas
pessoas achem que não vão morrer; que sua hora não vai chegar. Mas aí a gente também
passa a esperar a nossa hora com muito mais tranqüilidade. A hora de morrer, de mudar de
endereço – que se acaba considerando, neste ponto de vista, de mudança de endereço – com
muito mais tranqüilidade. Então trabalhar com a morte, para mim, tem favorecido muito o
crescimento pessoal e o meu entendimento da vida material, da vida espiritual e também do
respeito que se deve ter com o coletivo, com os entes queridos das outras famílias; o respeito
que se deve ter com isso e tratar com muita seriedade.
136
Colaborador 21: homem, 43 anos, 15 anos de exercício da profissão, espírita kardecista,
escolaridade 3º grau; enfermeiro.
Lidar com a morte, para mim é relativamente fácil. Re-la-ti-men-te fácil. O grande
problema, a grande questão da morte, até por conta da minha formação religiosa, é o
sofrimento; porque a morte a gente encara como uma questão natural. A morte em si não é tão
dramática. Mas o processo de sofrimento ligado à morte... Porque a morte pode ter
sofrimento, ou não, do paciente e da família; o que desgasta. Isso é mais forte para mim. Até
mesmo... Tem também a religião, né? Que encara o sofrimento de uma maneira mais
equilibrada. Mas eu tenho mais esse cuidado no sentido de lidar com o sofrimento. É até uma
coisa que eu não consigo cumprir – os postulados da minha religião com a questão do
sofrimento. Mas eu acho que isso aí é uma questão interna minha de encarar isso. Mas a
morte, de alguma forma, eu consigo.
Eu me lembro bem – há muitos anos atrás, quando a gente tinha muitos neonatos – que
tinha um bebê, um bebezinho prematuro, que devia ter umas 700, 800 gramas. Sei que ele
cabia na palma da minha mão. Meu palmo tem em torno de 22 cm. Ele tinha menos; tinha uns
20 cm. E aí um médico chegou e falou: “Olha, não tem jeito; realmente não tem; é um
prognóstico fechado e nós fizemos tudo o que se podia fazer”. Porque eu percebia que estava
começando com a saturação sangüínea caindo, a freqüência cardíaca caindo e eu fui buscar
ajuda. Aí ele falou: “Tudo o que podia ser feito, toda a medicação, tudo já foi feito; não tem
mais nada”. Então eu falei: “Está bem!”. Aí como eu vi que a freqüência cardíaca estava bem
baixa mesmo, eu botei ele na palma da minha mão e comecei a conversar com ele, fazendo
carinho. É uma coisa que a gente fala muito na nossa escola e eu nunca tive a oportunidade
para fazer isso. Mas com esse bebê, pelo menos uma vez na minha profissão, eu consegui
fazer – tentar dar conforto a ele no momento da passagem. Eu também já encarei alguns
colegas que tiveram a dificuldade que eu tive de trabalhar... Sabendo que eu não estava
falando com o corpo, eu estava falando com o espírito, porque a gente acredita, né? É uma
questão de crença. Aquele espírito, no corpo ele estava induzido a um momento de criança;
mas eu sabia que era um espírito que não é um espírito de criança – que ele entende,
compreende... E eu estava falando com a alma. Isso assim... Eu fui embora realizado por ter
feito um trabalho assim.
Agora, a gente sofre muito quando vê aqueles pacientes que a gente se apega; que têm
carisma; aquele laço que você vê – aquela identidade. Aí quando ele parte, a gente tem aquela
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dor, aquele sofrimento. Mas, é da partida mais. A gente sabendo que... Que não está mais ali,
não está sofrendo mais... Isso alivia. E se não fosse essa filosofia que eu elegi para eu viver...
Até porque eu questiono muito a vida. A dificuldade minha é essa. Questiono bastante a vida,
as coisas. Por quê? Por que acontece? Então, essa estrutura, de uns quinze anos de idade para
cá é que serviu como uma referência. Porque é tanta loucura no mundo, né? Tanta atrocidade,
tanta morte prematura, tanta violência, que a gente precisa de uma filosofia para viver.
O processo da morte em si é um aprendizado das reações que a gente pode ter, tanto
com relação à gente, quanto em relação aos entes queridos da gente, amigos. É... Aumento de
controle, a tentativa de controlar, de tentar manter... Centralizar... Não perder, porque a gente
perde completamente o rumo das coisas. A dificuldade que a gente tem de assumir as próprias
responsabilidades. A gente costuma jogar para cima dos outros o peso de uma situação, que
na verdade a outra pessoa não tem. Ou, às vezes, nem nós mesmos temos, no processo da
morte. Mas a gente costuma se culpar; principalmente quando é uma pessoa que a gente gosta
muito. “Ah, por que eu não estava perto? Por que eu não fiz isso; por que eu não fiz aquilo?”
É... (silêncio). Eu acho que... Eu acho que é isso.
Em relação aos técnicos que eu trabalho, eu me lembro bem que tem um que tinha um
paciente que ele se ligou muito. Se ligou muito! E ele era – antes de ser técnico – ele era
mecânico. Para você ter uma idéia, foi criado naquela insensibilidade; e ele foi aprimorando o
manuseio mais delicado com o paciente. Aquele foi o primeiro paciente bebê que ele se
apegou – esse bebê... E a família se apegou a ele. E esse bebê veio a falecer. Aí quando o bebê
faleceu, ele foi para o quarto [da enfermagem], não chorou, mas ficou ali sentido. Muito
sentido. Aí eu falei: “E a família, você vai conversar?” E ele: “Não, eu não vou conversar com
a família”. Eu falei: “Olha, não quero te pressionar não, mas a família, ela tem um carinho
enorme por você e está lá no Serviço Social; a família encontrou em você um porto seguro. O
carinho que você deu para ele foi fantástico. Não estou te forçando não, mas outras mortes
vão passar pelas suas mãos; essa é a primeira. Você pode recusar essa para se proteger, mas,
na frente, um dia, você vai ter que encarar; porque vai estar você e a família e aí como você
faz?” Ele parou, foi ao banheiro, voltou e falou assim: “Eu vou descer; eu vou lá falar com a
família”. Aí ele encarou e aceitou por ele só, sem forçar a barra. Mas ele percebeu “esse é
meu momento e eu não vou fugir desse momento não”. Aí desceu. Mas foi a primeira vez que
ele lidou com a morte. Eu tenho muito cuidado, muita atenção, quando é um técnico novo,
quando é um profissional novo, ou até um enfermeiro novo, porque... ou até médico; médico
mesmo, né? Porque a gente vê... a gente fica preocupado: “como é que você está lidando com
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isso, com a morte do seu paciente?” Médico tem aquela coisa de: “não pode morrer”, né? Às
vezes tem – nem todos – tem aqueles: “não pode morrer porque está nas minhas mãos e, puxa,
mas eu deixei escapar”. A gente vê; é muito sofrimento! Eu até consigo encarar um pouco
melhor, até porque... Incorporo aquela postura profissional; tento separar a questão do
sofrimento da família. Mas às vezes a gente não consegue separar. O ser humano... E aí... A
gente sofre com aquilo. Mas não é a morte em si, mas o processo de despedida – aquela dor
que a gente depois recupera. É assim que acontece comigo.
A morte é... Realmente é... Infelizmente essa questão da educação – a nossa educação
na sociedade. Hoje em dia está muito aberto, por exemplo, para a educação sexual, mas ainda
não chegou ao nível da educação para a morte, né? Os pais não abordam muito até porque não
sabem o que vão falar. Vão falar de acordo com a religião, mas às vezes não acreditam na
própria religião que têm. Falam: “Puxa, mas será que é isso mesmo? Eu não vou falar uma
coisa que mais tarde a criança vai encarar de outra forma?” De qualquer forma a gente
precisa... Precisa realmente que as famílias... Essas coisas de lidar com o processo de morte...
E, se for preciso, pedir apoio psicológico. Porque depois, quando adulto, pode ter bloqueios
sérios com relação a isso. E aí é educar para a questão não só da morte, mas a morte como
perda. A gente perde muita coisa na vida. A gente perde a barriguinha, o conforto da
barriguinha da mamãe, para poder sair. A gente já nasce perdendo – perdendo para poder
ganhar. Eu estava até conversando com uma amiga em relação a isso: perdendo para poder
ganhar alguma coisa, né? Eu acho que a morte, na verdade, é uma perda para ganhar outra
coisa – também. Mas é preciso educar para a gente saber perder. Eu acho que a morte passa
por esse processo de aprender a perder; a perder, a partir, a distanciar... Que é muito
importante uma educação nesse sentido – para homens e mulheres maduros – nesse sentido
também... Equilibrar, nesse sentido.
Colaborador 22: homem, 46 anos, 14 anos de exercício da profissão, católico, escolaridade
2º grau; funcionário do apoio.
Durante o período em que eu estou lá no Centro Cirúrgico, aconteceu no mês de
agosto, pela primeira vez no meu plantão. Eu vi uma criança no Centro Cirúrgico fazer óbito
lá dentro. Para mim, aquilo foi deprimente; porque eu já estava habituado antes a ver, por
exemplo, um atropelamento e a criança chegar muito grave e, eu, acompanhando, junto com
os médicos, passar pelo Raio-X, tomografia, aquele processo todo; depois passar pelo Centro
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Cirúrgico, a criança sair, ir para o CTI, se recuperar, ou, alguns deles, não chegar a se
recuperar e ir a óbito. Mas não no mesmo dia como esse fato que aconteceu; inclusive mexeu
muito com a minha cabeça. É muito difícil, porque eu vi a mãe – ela estava sentada próximo
ao Centro Cirúrgico; e o pai estava aqui em baixo esperando notícia da criança. Aí o Serviço
Social subiu; desceram com ela [a mãe]; não falaram com ela; foram falar primeiro com o pai.
E eu não quis nem acompanhar, porque para mim ficou difícil. Eu nem desci com esta
criança. Quem desceu foi o pessoal do apoio.
Eu senti a experiência que já tinha acontecido comigo, de eu perder a minha mãe, lá no
Hospital Y, dentro do CTI, segurando as mãos dela. É muito difícil. A gente fica... Não dá pra
você ter uma idéia assim de como fica o ser humano. Só quem passa pelo momento é que tem
como você... (silêncio). Assim... É uma coisa... Não dá para absorver aquilo ali não. Para mim
foi um... Parece que eu estava sonhando com aquilo ali; aquilo não era real. A realidade, para
mim, foi depois de um mês que caiu minha ficha de que eu tinha perdido minha mãe. Como
eu vi essa criança que entrou no Centro Cirúrgico falando e foi a óbito.
Como eu já te falei anteriormente, os outros casos... é diferente. Você vê uma criança
chegar aqui com meningite – são três processos, né; você sabe quais são. Tem aquelas 24
horas que só a gente que está aqui dentro sabe; quem está lá fora é leigo e não sabe que pode
perder a criança a qualquer momento... É complicado (silêncio).
Eu, até quando minha faleceu, eu já estava preparado, porque a situação dela era
gravíssima. E como a gente trabalha na área, a gente estava naquele... Lógico que todo mundo
tem a esperança de sair do hospital. Eu queria ver minha mãe andando, comigo. Mas a
situação dela era gravíssima. Então a gente estava assim... Acho que Deus me preparou um
pouco para aquele momento ali, porque eu estava saindo de um problema de saúde, que eu
faço tratamento e, graças a Deus eu estou melhor hoje. Mas assim... Eu acho que mesmo
acontecendo aquilo ali – que eu segurando na mão dela – acho que ela me passou muita
tranqüilidade, muita segurança naquele momento, sabendo que eu ia perdê-la. Quando eu vi o
monitor parar, apitar, eu trabalhando no hospital, o pessoal só pedia: “Dá para se retirar?” – eu
já sabia o que estava acontecendo com minha mãe. Mesmo pegando o desfibrilador47, aquele
processo todo de... Voltando a falar de que quem está fora não sabe, mas a gente que está
dentro do hospital já sabe o que está acontecendo e é muito difícil.
47 Equipamento utilizado para reanimar a pessoa em caso de parada cardíaca.
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Eu identifico algumas aprendizagens dessa experiência de conviver com a morte no
trabalho. Por exemplo, hoje, o que aconteceu – e voltando a falar no que aconteceu este mês
com essa criança – eu já estou mais assim... Não é insensível não, porque eu sou ser humano,
se beliscar dói. Mas eu, assim, eu já comecei a... A minha mente, com o que aconteceu, abriu
mais para isso [a morte]. Eu já consigo assim... Eu já consigo agora lidar... Não vou dizer que
é com facilidade, porque isso não é fácil para ninguém. Mas de ver uma criança entrou de
uma forma e a gente sabe a condição dela que... O médico fala, ele tem lá o diagnóstico dele,
mas quem está aqui fora não quer saber disso, né? Mas, então, com isso agora eu aprendi,
assim, já a lidar um pouco com... [a morte] pelo fato de já ter acontecido comigo; de ter
conversado com o médico, de eles passarem para a gente o que realmente pode acontecer e o
que está acontecendo no momento. Então, eu já estou assim mais preparado pra lidar com a
morte. Eu já não tenho mais aquela... aquele problema de... É uma coisa que eu não sei,
Silvia, se você, lá quando você estava fazendo sua faculdade, se as pessoas fazem esse
comentário; se alguém já defendeu uma tese sobre isso. É uma coisa assim em mim que, de
vez em quando eu converso agora. Você ver uma criança ir a óbito num hospital é uma coisa;
e uma pessoa no bairro faleceu é outra coisa totalmente diferente. São duas situações. No
bairro, o que acontece? As pessoas falam: “Ah, faleceu o fulano, vamos lá no velório”. Você
vai ver o quê? Uma pessoa dentro da sua urna [a urna funerária]. Está lá, com flores e aquela
coisa toda que é feita para ser sepultado. E a nossa situação no hospital é diferente. É o
inverso daquela ali. Então eu acho que aqui, aqui mexe mais com a cabeça do profissional, do
que lá fora. Eu acho que eu paro por aqui.
Ah, tem uma situação lá em casa, com meu filho. Minha mulher estava estudando e eu
estava na cozinha fazendo janta, para nós dois, e o meu filho brincando. Aí minha filha falou:
“Pai, o Francisco desmaiou!”. E eu levei dez minutos para chegar próximo dele, achando que
ele estava com brincadeira. Quando eu cheguei, ele estava ficando roxo, se batendo, fazendo
vômito, babando. Eu fiquei maluco! Eu não sabia o que fazer. Eu peguei meu filho no colo e
simplesmente comecei a gritar dentro de casa, igual um desesperado, por vizinho, para poder
resolver a minha situação. E eu... Quer dizer... Estar dentro do hospital como eu te falei, eu
não sabia o que fazer. Aí já é o outro lado. É o pai; não é mais o profissional da área. Mas
hoje ele [seu filho] está aí. Foram feitos todos os exames; ele não teve nenhum problema; e
ele está bem.
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Colaborador 23: homem, 31 anos, 9 anos de exercício da profissão, espírita kardecista,
escolaridade 3º grau; técnico de enfermagem48.
Quando eu entrei no Hospital Infantil, em 2001, eu fui trabalhar na Oncologia. De
início foi muito difícil para mim, porque, é... Essa coisa de lidar com a morte foi um impacto
muito grande; porque na Oncologia eram muitos óbitos. E você acaba se apegando, né? Se
afeiçoando à criança; aos familiares também. Então você acaba se envolvendo
emocionalmente e... E quando você batalha em cima da criança, dá todo o apoio, faz o seu
serviço que você tem que fazer naquela criança e você não vê o retorno daquele tratamento...
Aí quando a criança vai a óbito é muito difícil. A gente sente assim uma perda muito grande.
Eu chorava muito por causa disso. Aí eu comecei a criar uma defesa. Eu peguei a não
me envolver com a criança e nem com os familiares, entendeu? Eu comecei a manter
distância. Porque, para mim, na época, estava muito difícil também, porque estava com
problema com meu avô – que tinha câncer também e eu estava na luta com ele. E acho, assim,
essa questão... Que eu estava assim muito sensibilizado. Então essa coisa de lidar com a
morte, para mim, foi muito difícil no início. Mas depois eu fui criando essa defesa. Quer
dizer, eu me afastei né? Eu não me envolvi mais emocionalmente com a criança e com os
familiares.
Tanto na Oncologia, quanto aqui, são crianças graves. De uma hora pra outra está bem
e piora; tem um desequilíbrio orgânico, assim, de repente. Mas eu acho que hoje eu fui
trabalhando isso dentro de mim. Aí, hoje em dia eu já consigo trabalhar essa coisa da morte,
que você vivencia todo dia, né? Então isso daí, para mim, foi uma vitória, porque eu consegui
trabalhar isso.
Hoje eu já... Assim, eu já posso estar criando um círculo de amizade e tudo; mas eu
não me envolvo emocionalmente. Converso com os pais, cuido da criança para deixar ela o
mais confortável possível. Mas, sabendo que eu estou fazendo o meu trabalho,
cientificamente. É mais uma postura de profissional, de estar dando o máximo de conforto
para a família e para a criança.
Na hora do óbito você fica com aquela sensação de... Puxa, você investiu tanto
naquela criança e não conseguiu ter o êxito necessário, que você previa. Então fica aquela
48 O profissional é contratado e atua como técnico de enfermagem, embora tenha formação de enfermeiro (nível superior).
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sensação que você trabalhou tanto e não conseguiu ter o êxito que você queria; que você
esperava. Olha, é... Eu acho assim que, lidando todo dia com isso, é... Para mim, hoje a vida é
uma dádiva que Deus te dá e você tem que cuidar dela com a maior responsabilidade possível;
porque a sua saúde é só uma. E quando você perde; às vezes, quando você está em cima de
uma cama, ou está assim debilitado por algum tipo de doença, é que você vai enxergar o que
você poderia ter feito melhor na sua vida – ter ajudado algumas pessoas, entendeu? E isso aí
eu aprendi; assim, que na vida você tem que estar tentando ajudar as pessoas, dar o conforto
melhor para essas pessoas – que têm essas dificuldades, tanto financeiras, como de saúde. Eu
aprendi isso – que hoje a saúde é muito importante e a sua vida é uma só; e se você não
souber respeitar o seu próximo, lidar com as diferenças de cada um, fica complicado, né? Aí
quando você perde isso, que você está do outro lado, aí é que você vai ver que teve pessoas na
sua vida que tentaram te ajudar e você não aceitou; tentaram te alertar de alguma maneira e te
ajudar e você deixou passar isso, né? Eu penso assim.
Eu só queria dizer assim, que... Eu acho que... Hoje os profissionais que as faculdades,
as escolas técnicas estão formando, eu acho que não são profissionais assim – pelo menos a
maioria que eu já vi – eles não têm nenhuma importância com o trabalho, com o paciente. O
negócio deles é fazer tudo mecânico; e o dinheiro. Então, são poucas pessoas que estão na
profissão porque é vocação. O dinheiro é bom? É... Eu penso, assim, que o dinheiro é uma
conseqüência do seu trabalho; e se você faz o seu trabalho com prazer, o dinheiro fica em
segundo plano. Então eu penso que hoje as pessoas estão se formando em certas profissões,
não porque têm a vocação, mas por causa do financeiro e de não ter responsabilidade
nenhuma. Isso traz implicações para a recuperação do paciente. Se você está cuidando de um
paciente; se você tratar bem, der carinho, essa energia boa passa para ele e ele se recupera
melhor. Porque ele sabe – mesmo inconsciente ele ouve – que está sendo bem tratado; que os
familiares estão ali; que você está orientando os familiares, esclarecendo algumas coisas,
entendeu? Eu acho que a gente, na nossa profissão – eu acho que é isso: dar o melhor
conforto, tanto espiritual, quanto o conforto na questão de um banho, de bem-estar físico
desse paciente. Eu acho que é importante. E hoje eu estou vendo isso. Que a maioria dos
colegas não tem isso; é mais uma coisa mecânica. Acho que trata o paciente como – é uma
coisa chula que eu vou falar – mas, como um pedaço de carne que está ali só, para furar, para
fazer a medicação. Ah, morreu?! Pega, bota no pacote lá e manda embora... E eu acho que não
está havendo um trabalho nas escolas do saber do cuidar, né? Isso não está sendo bem
trabalhado; o que implica na relação do profissional com o paciente, ou do profissional com a
143
família, de estar dando esse conforto. Como eles falam, você estar dando, se não em todo, mas
em parte, essas necessidades psicológicas, fisiológicas, espirituais para a família e para o
paciente também.
6.2 A MORTE E O MORRER COMO SIGNIFICAÇÃO E APRENDIZAGEM
PARA OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE
Neste item passo a proceder ao desenvolvimento da análise fenomenológica dos
depoimentos coletados e sigo nesta tarefa, fundamentada na contribuição da analítica
ontológico-hermenêutica de Heidegger. Vale ressaltar que os depoimentos obtidos e
apresentados anteriormente neste trabalho partiram da questão referente a como é lidar com a
morte no trabalho e quais são as aprendizagens adquiridas nesta vivência. Isso com vistas a
identificar e analisar os modos de ser do profissional de saúde diante da morte, bem como os
significados e as aprendizagens ou produção de conhecimento presentes na experiência de
enfrentamento da morte pelo profissional de saúde.
Inicio, portanto, a tarefa explícita de interpretar ontologicamente a descrição
fenomenológica da experiência de enfrentamento da morte pelos profissionais de saúde,
acreditando firmemente que o processo de interpretar conduz à possibilidade de compreensão,
a partir da abertura para a significância do fenômeno que, por ora, se dá a compreender: o ser
sendo diante da morte.
Em Heidegger (2002a) encontramos a consideração de que o manual intramundano,
que neste caso vem a ser o objeto do estudo, é compreendido como, por meio da interpretação.
Isto significa que “[...] O ‘como’ constitui a estrutura da explicitação do compreendido; ele
constitui a interpretação [...]” (HEIDEGGER, 2002a, p. 205). Importa ainda considerar que a
interpretação é uma possibilidade determinada de interpretação, que se constitui na elaboração
das formas possíveis da compreensão. Assim, na interpretação, a compreensão se apropria do
que compreende e não é isenta de pressuposição, tendo em vista que se fundamenta numa
posição, numa visão e numa concepção prévia.
A partir destas considerações, prossigo apresentando ao leitor uma interpretação e
compreensão possível do fenômeno em foco. Seguindo o método fenomenológico descrito
por Forghieri (2001), precisei realizar o distanciamento reflexivo (sem me afastar do
144
envolvimento existencial; cena produtora de sentido), passando a ler e reler o material
produzido pelos depoimentos coletados, para assim construir uma análise ontológico-
hermenêutica dos mesmos. Foi por meio deste procedimento que cheguei à identificação de
unidades de significado, capturadas a partir de minha intuição e constituídas a partir de
categorias temáticas, com as quais passo agora a trabalhar. Do contato reflexivo com o
material de análise, identifiquei duas unidades de significado, aqui denominadas como: ser
sendo diante da morte é ser-com e ser sendo diante da morte é ser-para-a-morte. A
seguir, executo a tarefa de descrevê-las compreensivamente.
A primeira unidade identificada – ser sendo diante da morte é ser-com – revela que
os profissionais da saúde em seus modos de ser sendo diante da morte, na mundanidade do
contexto e cultura hospitalar, engendram, num dizer certeauniano, estratégias e táticas
(CERTEAU, 2005) que expressam a existência e o desenvolvimento de modos de ocupação e
de preocupação com o outro, evidenciando a presença de sentimentos e emoções, de
compaixão, cuidado e solidariedade na prática relacional construída por esse coletivo diante
da experiência de enfrentamento da morte.
Numa concepção heideggeriana, cuidado, ocupação e preocupação pertencem,
respectivamente, à essência da pre-sença, ao ser-no-mundo, ao ser-com-o-outro. Sendo, na
mundanidade que conforma o contexto hospitalar, os profissionais de saúde depoentes se
desvelam em sua essência como ser-de-cuidado, na ocupação prática do seu ofício; que não se
configura como uma ocupação alienante de apenas ser-junto a, mas no modo de uma
ocupação responsável, de preocupação com o outro, sendo-com o outro, nos encontros
possibilitados e desencadeados pela experiência e cultura de enfrentamento da morte.
“Neste momento eu fico presente na dor da família, sinto e compartilho com os familiares a dor deles.” (C1)
“Você se coloca próximo aos pais e fica tentando entender como a família vai lidar com a perda.” (C3)
“Eu sinto como algo de solidariedade.” (C10)
“É difícil! É um sofrimento danado! Então a gente tem que se colocar no lugar da família.” (C11)
“Tento me colocar no lugar do outro.” (C12)
“Eu acho que a gente acaba sofrendo junto [...] É uma coisa de sentir com o outro.” (C16)
“Ajudar o paciente a lidar com sua morte é difícil, mas é só você se dispor a escutar e não tampar a boca do paciente.” (C18)
“E desde então eu tenho praticado essa... Essa tarefa de lidar com os cadáveres dessa forma: com zelo, com respeito...” (C20)
145
“Aí como eu vi que a freqüência cardíaca dele estava bem baixa mesmo, eu botei ele na minha mão e comecei a conversar com ele fazendo carinho.” (C21)
Colocar-se no lugar do outro exprime a capacidade do desenvolvimento da
compreensão empática, já descrita por Rogers (1977), o que nos permite inferir que a
experiência de enfrentamento da morte, na cultura local, exige a disposição para a
constituição do modo de ser sendo empático, no movimento inventado de ser-junto-com, a
partir da morte. Embora se reconheça que o sofrimento é do outro, ele é compartilhado na
dura realidade que compõe o contexto hospitalar e emerge na forma de compaixão e de
comoção. O sofrimento e a empatia presentes na vivência da morte e do morrer levam os
profissionais de saúde a se (co)moverem e a buscar segurança para si na recorrência de
valores/virtudes, como guias de sentido do ser sendo diante da faticidade e finitude humana.
No ser sendo diante da morte, a solidariedade aparece como atitude que desvela o
modo de ser-com. Em seu tratado, Comte-Sponville (2002) situa a solidariedade na condição
de um valor humano, não de uma virtude. Contudo, constitui-se numa ação que é um estado
de alma e que contempla em si a interdependência, a partilha, a coesão. Diante da morte e do
morrer de alguém, a solidariedade é atitude que emerge como estratégia de enfrentamento das
dores, de partilha de sofrimento e de coesão para manter-se íntegro, suportando a dor, a
angústia, os medos, a frustração, advindos do contato com a possibilidade iminente e
irremissível da morte. Nos cuidados paliativos, a solidariedade é imprescindível como
elemento de co-responsabilidade partilhada entre os profissionais de saúde, o doente e a
família.
Na temporalidade marcada pela faticidade da existência humana, a escuta do outro é
também estratégia de que se vale o profissional de saúde e que revela o modo de ser-com o
outro. A escuta emerge como uma abertura existencial do ser-com que marca um modo de
disposição e empenho para a convivência, enquanto co-presença constituída a partir da
possibilidade irremissível da morte. Quando nada mais resta a fazer em termos médico-
terapêuticos, a escuta ganha lugar no cuidado destinado ao doente e a seus familiares. É modo
de ser companheiro, de demonstrar compaixão, de compartilhar. Não há escuta sem a
disponibilidade de ser-com e isto é largamente mostrado no depoimento cedido pelo
colaborador 18.
A experiência de maternidade/paternidade se caracteriza como algo que aproxima o
profissional da saúde do sentimento de familiares por ocasião da situação de morte. Tal
146
aproximação é apresentada como resultante da condição de apresentar-se semelhante ao outro,
na possibilidade da perda dos próprios filhos e os sentimentos decorrentes desta possibilidade.
“Depois que tive meu filho passei a associar muito o sentimento da mãe ao meu na hora de óbito de um paciente...” (C2)
“Além disso, a condição de mãe impõe a condição de viver a situação de perda do outro lado, não mais como profissional, mas como mãe.” (C4)
“Eu pensava que poderia estar necropsiando uma criança que poderia ser o meu filho.” (C11)
“Você se defrontar com a morte de um paciente seu, você obrigatoriamente coloca como se fosse a morte de um irmão; coloca como se fosse a morte de uma pessoa da família; coloca como se fosse uma pessoa – às vezes, dentro da pediatria, até de um filho.” (C15)
O contato, a proximidade e o vínculo com o paciente e a família fazem emergir
sentimento de perda, sofrimento, comoção, tristeza, impotência, angústia.
“A experiência de óbito gera impotência e angústia [...] A angústia que sinto se refere à perda sentida pela família [...] reflete a dor da perda vivida pela família.” (C1)
“Sinto que um sentimento de tristeza marca o momento de proximidade com a família na experiência do óbito.” (C2)
“Lidar com a morte faz com que eu me sinta arrasada e às vezes culpada.” (C5)
“O contato com a história da família também em geral contribui para o sofrimento da perda do paciente.” (C5)
“É um sentimento de tristeza e de compaixão com os familiares.” (C7)
“Lembro das minhas perdas; que não foram fáceis.” (C8)
“Se é um paciente que eu tive muito contato, eu fico mal.” (C10)
“A gente fica... comove [...] É complicado... a gente agüentar sem se comover.” (C11)
“Aí é uma perda como se eu estivesse perdendo... vem a sensação de impotência.” (C12)
“E, evidentemente, isso traz um sentimento muito grande de perda.” (C15)
“Quando um paciente vai a óbito, para mim, é uma sensação de impotência muito grande. Me leva a uma tristeza muito profunda.”
A perda é sentida pelos profissionais de saúde de modo diferente do sentimento e
sensação de perda experimentados pelos familiares. É uma perda que remete às suas próprias
perdas, mas é também uma perda acumulativa que incide sobre a pessoa/profissional de saúde
em seu ofício, marcando seu ser em sua existência.
“Não vou comparar com a perda de uma mãe, entendeu? Mas é uma perda que é uma perda aqui, uma perda ali, vai juntando, juntando, juntando, juntando; parece que a gente vai sendo assim... é... socada: assim como se fosse um bife socado[...]” (C10)
147
Esta perda acumulativa exige a capacidade de se mostrar resiliente ante o sofrimento
inevitável, que marca a tragédia pessoal de tantos e tantos pacientes. No convívio diário, o
outrora distante, estranho e desconhecido sujeito, transforma-se em pessoa conhecida e de
convivência, que compartilha sua vida, suas alegrias e dissabores com outras pessoas
(profissionais do hospital) também já não mais estranhos desconhecidos. Diante de tantos
dramas vivenciados e compartilhados é preciso coragem para suportar o trágico e manter-se
ativo como profissional em um contexto de tamanha dramaticidade que marca o cotidiano
hospitalar. Num sentido frankliano, podemos reconhecer no profissional de saúde um ser
dotado de potencial para a vivência do que Frankl (1993) denomina de otimismo trágico.
A respeito da resiliência e do otimismo trágico, encontramos ainda a recorrência do
humor49, compondo o modo de ser-com diante da morte. O modo de ser-com, neste aspecto,
resulta da cumplicidade partilhada pelos profissionais de saúde entre si, enquanto capacidade
de buscar no humor um alimento fornecedor de suporte para a superação dos dramas diários
vivenciados na execução de seu ofício.
“Foi uma sensação de impotência (risos) quando ela me abraçou chorando, porque eu não sabia o que falar para ela.” (C9)
“Eu falei com a doutora uma vez: ‘Imagina, doutora, se a gente começa a mexer e o paciente começa a dar uma mexida e começa a chorar; começa a falar que está doendo?’ Imagina, heim?! (risos) eu tenho medo disso.” (C11)
“Aí realmente eu desabo (risos)”. (C12)
Quem está de fora do fluxo de intensidade dos dramas vividos e compartilhados no
cotidiano hospitalar poderá deduzir que o humor não afina com este ambiente; mas Frankl
(1993) nos ajuda a compreender como é possível manter o humor em ambientes de tamanha
dramaticidade, quando descreve em seu diário que também no campo de concentração o
humor se fazia presente, coexistindo com o trágico; o que permitia aos prisioneiros enfrentar e
suportar a situação indigna em que se encontravam e manter aceso o sentido para a vida.
O humor é escape da tensão que aparece como atitude praticada diante do trágico,
como modo de suportá-lo. O humor é, neste contexto, uma tática, cuja prática desponta como
misericórdia de si mesmo e permite suportar a angústia necessária para a efetivação de um
projeto existencial. Embora o humor pareça zombaria, descaso, descuido, não é. Estes
atributos pertencem à ironia, não ao humor. O humor é atitude que ajuda a viver. E, neste caso
“O humor não impede a seriedade, no que diz respeito a outrem, nossas obrigações para com
49 A combinação de humor e resiliência é tema tratado no estudo de Gomes (2004).
148
ele, nossos compromissos, nossas responsabilidades [...]” (COMTE-SPONVILLE, 2002, p.
230). Compromisso e responsabilidade são atitudes realmente presentes nas ações dos
profissionais de saúde abordados neste estudo, demonstradas a partir dos diversos
depoimentos coletados.
Muito embora a convivência com a morte se constitua num modo de ser-com que
pressupõe a preocupação e o cuidado, a experiência de contato com a morte no caso dos
profissionais depoentes se expressa tanto no modo de preocupação cuidadosa, quanto no
modo de fuga caracterizado pela ocupação de-cadente impessoal, desvelando que a vivência
de enfrentamento do óbito pode também levar as pessoas a se desviarem dos seus
sentimentos, do questionamento do seu ser e da estranheza consigo mesmo, perdendo-se na
ocupação com o manual intramundano. Neste aspecto, a ocupação com o desempenho de
tarefas práticas assegura uma fuga de si próprio.
“Para tentar esquecer eu procuro outras formas de... ver crianças brincando; cuidar de crianças que estão aqui ainda, que estão no nosso meio; de estar presente conversando com as mães; ouvindo música, lendo jornal – procurando não ler nada sobre morte, mas sempre coisas agradáveis para aliviar um pouco.” (C8)
A fuga constitui-se ainda numa manifestação de si que significa, contudo, o não
mostrar-se a si mesmo. A este respeito temos o seguinte depoimento:
“Então, o paciente que eu estou operando, eu não tenho ligação pessoal com o paciente. Nenhum paciente. Pode ser até uma forma de me ausentar de ter algum tipo de trauma, para me proteger, alguma coisa assim.” (C13)
“Eu não me compadeço com o que a família está sentindo apesar de a gente saber que a família está sofrendo. Eu vejo o sofrimento das pessoas, mas eu tento ficar alheio a esse sofrimento.” (C13)
O depoimento desvela que o ser sendo diante da morte mantém explícita a adoção de
um comportamento que se manifesta como forma de mostrar-se alheio ao sofrimento do
outro, revestido numa couraça de suposta frieza e excessiva racionalidade. Isto, entretanto,
não condiz com ser afetivo e solidário do depoente, capturado nos momentos em que este
permite mostrar-se na sensibilidade do seu ser sendo. A apreensão de sentidos, com as
emoções e sentimentos que podem emergir no ser, ao estar diante do sofrimento de outrem,
parece um grito a evocar: “Quem terá compaixão de mim?”.
A este receio um outro se associa: “Quem cuidará de mim?”. Trata-se de uma
preocupação sentida do profissional de saúde no abandono que caracteriza a pre-sença
149
enquanto um ser-lançado no mundo, entregue à sua própria sorte. Encontramos uma amostra
referente a esta situação, expressa de maneira categórica no trecho do depoimento de um dos
colaboradores, demonstrado a seguir:
“Aqui infelizmente não tem quem cuide da gente. Alguém que nos oriente. Assim, a parte de um outro profissional para orientar que atitude tomar, até para conversar, para desabafar. Porque às vezes você chega a um ponto de estar quase explodindo. E a gente não tem um suporte psicológico [...]. A gente tinha uma pessoa, uma profissional de Serviço Social que nos atendia, quando eu comecei a trabalhar aqui. E a gente não tem mais quem atenda ao trabalhador. E isso, em certas circunstâncias, faz falta. A gente acaba tentando suprir essa falta com outro colega que tenha disposição para ouvir, para ajudar, entendeu? Então isso faz muita falta também – a parte do suporte para a gente. Porque na faculdade mesmo a gente não aprende a lidar com isso. E no trabalho a gente não tem suporte.” (C12)
A preocupação manifesta pela depoente em relação ao cuidado para com o profissional
de saúde é também tratada por Campos (2005) e revela a necessidade de uma atenção voltada
a este profissional, no sentido de oferecer-lhe algum tipo de suporte que co-labore para o
modo de enfrentamento da morte e do morrer no desenvolvimento de sua prática laborativa.
Retornando aos trechos destacados do depoimento do colaborador 13, demonstrados
anteriormente, podemos inferir que a angústia com a morte e o temor pelo sofrimento que ela
provoca contribuem, ainda, para que o ser se perca mergulhado na ocupação. No impessoal a
pre-sença busca tranqüilizar-se a respeito da morte, no modo de ocupação de uma indiferença
imperturbável que funciona como escape de si. A impessoalidade da morte encobre-a na
cotidianidade tranqüila das ocupações técnicas – um escape ante os assombros suscitados pela
morte, incluindo o sofrer-com, que passa pelo sofrer em si mesmo.
No modo de ser-com, diante da experiência de enfrentamento da morte, também se
desvela o fato de que a religião é usada como estratégia recorrente que auxilia o profissional
de saúde a estar diante da morte e do morrer, o que associa ao aspecto técnico-científico do
ofício, o aspecto espiritual pessoal. Quando as palavras fundadas na razão científica não são
suficientes para explicar o incompreensível, é possível apelar para a comunicabilidade no
âmbito da metafísica, como meio de oferecer suporte à dor incomensurável da perda.
“Você alia todo o conhecimento que você tem: pessoal, religioso e tal. Eu acho que a questão religiosa também é importante. Para mim! Porque sou kardecista.” (C4)
“Uma estratégia que utilizo para lidar com o momento de dar a notícia de óbito aos familiares é buscar consolá-los pela via da religião.” (C5)
“Eu, pessoalmente, procuro dar apoio religioso à mãe.” (C6)
150
“É possível trabalhar a morte utilizando a espiritualidade como estratégia de apoio à família. Quando eu falo de espiritualidade, falo de cristianismo. A aproximação com Deus possibilita abrandar o sofrimento dos familiares.” (C7)
“Eu acho que a religião ajuda.” (C9)
Num ambiente de valorização da racionalidade científica, a religião desponta como
elemento de psicorreligiosidade (CRUZ et al., 1984) que segue acoplado à efetivação da
prática profissional, marcada pela cultura judaico-cristã de nossa sociedade. Assim, a
religiosidade resiste aos apelos da racionalidade científica e tecnológica, compondo uma
prática que se conforma num hibridismo possível de relações e ações na mundanidade do
contexto hospitalar. Trata-se de reconhecer que a religiosidade, negada por alguns e assumida
por outros, longe de ser uma ambigüidade, se configura como um elemento partícipe do
mosaico constitutivo da ação profissional e da composição humana – compreendendo-se o ser
do humano não apenas como um ente biológico, mas, reconhecidamente, um ser bio-psico-
sócio-espiritual; um ser de existência ativa e significativa no mundo.
Na temporalidade do ser-com diante da morte, o tempo não é apenas cronológico,
objetivo; ele se instala também como tempo subjetivo, marcado no compasso da possibilidade
de elaboração pessoal do ser sendo. Se, para alguns profissionais, o efeito imediato presente
na experiência da lida com o óbito mantém sua temporalidade objetivamente marcada, para
outros a marca do tempo não se dá de maneira tão objetiva. O tempo subjetivo mantém a
pessoa mergulhada na vivência da morte ocorrida e presenciada, mesmo que em termos de
tempo cronológico já se verifique um relativo afastamento do momento e data da ocorrência
do evento.
“Ontem mesmo eu pensei na família do menino, em como deverão estar estes pais.Eu ainda não me desliguei completamente desta história.” (C3)50
“[...] fico lembrando, pensando na situação por algum tempo, além do período de atendimento aos familiares no hospital. Fico triste, meio deprimida e preciso de um tempo para esquecer e superar a tristeza que envolveu o óbito.” (C5)
“Algumas vezes não fico mal naquele dia, vou ficar mal uns dez dias depois, sabe.” (C10)
Na realidade, a experiência, no modo objetivo ou subjetivo com que é apreendida,
acaba por ser absorvida pela pessoa, sendo visceralmente corporificada. E, neste aspecto,
segue com o experienciador em sua existência finita, enquanto apreensão de sentidos de ser.
Embora o profissional possa imaginar sentir-se inalterado pela experiência vivida no
50 O depoimento foi coletado aproximadamente vinte dias após a ocorrência da morte de um paciente vivenciada pela depoente.
151
momento de contato imediato com a morte, ou identificar a mesma como algo delimitado em
tempo e espaço, as marcas, mesmo que superficiais desta experiência, já marcaram o seu ser
de alguma forma. Uma cena, um olhar, um gesto de que se lembre após dez anos de
ocorrência do mesmo já é sinal evidente de que a marca da morte do outro em si, toma parte
na sua temporalidade seguindo adiante, consigo, em sua existência finita.
A considerar o quesito tempo cronológico de vida e de experiência profissional do ser
sendo diante da morte, isto se desvela como aspecto cuja mensuração meramente objetiva
incorre em erro. Ao tempo deve somar-se a experiência de vida; a formação da pessoa em seu
desenvolvimento humano, que não se dá apenas na linearidade objetiva do tempo, mas nos
encontros possibilitados pelo modo existencial humano de ser-no-mundo. Portanto, não é
possível aqui afirmar que os profissionais com mais idade e tempo de profissão são aqueles
que conseguem lidar de um modo mais efetivo com a morte em seu ofício e existência.
Tampouco a religião ou o tipo de função desempenhada são indicativos de que o
profissional se apresenta ou não mais preparado para lidar com morte em seu ofício. Não se
trata aqui de medir a capacidade de enfrentamento da morte, mas de identificar e descrever
compreensivamente como isso vem se dando na prática social dos profissionais de saúde. No
caso da religião, esta aparece como um recurso a mais, ou uma estratégia de que se valem
alguns profissionais na assistência ao seu usuário, que funciona como apoio da prática; mas
não se constitui na base da ação profissional, tendo em vista não ser utilizada, nem professada
por alguns que, independente de religiosidade, se apresentam de modo a ser-com o outro
diante da morte. Portanto, não é a religiosidade ou determinada religião que assegura o modo
de ser-com do profissional de saúde.
Com relação à função exercida pelo profissional, o modo de ser-com não é privativo
de uma determinada categoria profissional, nem tampouco se encontra vinculado ao nível de
escolaridade apresentado. Os profissionais depoentes, na diversidade de formação acadêmico-
educacional que apresentam, desvelam que na experiência de enfrentamento da morte não há
um modelo fechado e privativo no nível corporativista, hierárquico, ou de formação
educacional que possa conferir ao profissional da saúde a capacidade de ser-com. Lidar com a
morte no ofício destes profissionais se configura como algo que se inventa na previsibilidade
e na imprevisibilidade, científica e empiricamente, independente do grau de instrução escolar.
152
A segunda unidade, o ser sendo diante da morte é ser-para-a-morte desvela que a
experiência do profissional de saúde no enfrentamento da morte em seu ofício oferece ao
mesmo a constituição de modos de ser em possibilidades para a constituição de um projeto
existencial autêntico. A morte do outro, na vivência cotidiana de realização da atividade
laborativa e de relações humanas decorrentes e produzidas nesta prática social, emerge como
possibilidade de análise da historicidade fatual humana, ou seja, de análise da finitude humana
e, a partir daí, do sentido existencial do homem. A morte do outro, vivenciada em seus
variados contornos, possibilita àqueles que ficam buscar (e encontrar) uma significação para
si e para seu modo de ser-no-mundo, que no dizer de Pinel (2006b) também se refere ao
sentido de ser sendo si mesmo no cotidiano do mundo. Alguns depoentes trazem estas marcas
em suas falas quando se referem à(s) possibilidade(s) resultante(s) da experiência de lidar com
a morte em seu ofício.
“Faz pensar e refletir bastante na minha própria existência... o que eu deixei de fazer, o que eu poderia ter feito, o que eu posso fazer e ainda não fiz; o que eu posso mudar que ainda não mudei; tudo o que eu posso ser melhor para aliviar a dor do outro, a minha dor; para melhorar a minha existência, a minha partida.” (C8)
“Porque depois que eu passei a trabalhar com a morte – de outras famílias, de pessoas que eu não conheço – eu passei também a trabalhar com a morte de pessoas que eu conheço; que são da minha família. Então a morte dos meus familiares passou a ser uma coisa muito mais tranqüila de aceitar, de compreender; de não sofrer tanto por essa morte, quando a gente vê tantas pessoas morrendo e a gente percebe que todo mundo vai morrer. [...] Então a gente também passa a esperar a nossa hora com muito mais tranqüilidade. [...] Então trabalhar a morte, para mim, tem favorecido muito o crescimento pessoal e o meu entendimento da vida material, da vida espiritual e também do respeito que se deve ter com o coletivo, com os entes queridos das outras famílias; o respeito que se deve ter com isso e tratar com muita seriedade.” (C20)
“Eu acho que a morte, na verdade, é uma perda para ganhar outra coisa.” (C21)
O ser sendo ser-para-a-morte dos profissionais de saúde indica que o contato com a
morte do outro favorece a aquisição de sentido de ser, de sentido existencial. O
reconhecimento da morte como algo irremissível e insuperável permite uma abertura da
pessoa/profissional de saúde para um poder-ser si mesmo, para uma possibilidade de
compreensão do seu poder-ser mais próprio que permita a efetivação de uma existência
carregada de sentido existencial próprio. O homem, enquanto ser, é um ser de projeto – um
projeto existencial que se configura em modo(s) de ser de possibilidades(s). A morte pode ser
utilizada como estímulo para a adoção de valores e atitudes próprias que conduzem o homem
à realização do seu projeto existencial, configurando-o como ser autêntico; no modo de
autenticidade descrito por Heidegger, que vem a ser apropriação de valores próprios que
153
funcionam como Guias de Sentido (Pinel, 2003, 2006b) do ser e resulta na apropriação de si
mesmo.
A respeito da autenticidade, Lowen (1983) descreve que a pessoa orientada pelo seu
interior, que neste caso vem a significar seus valores pessoais escolhidos como Guias de
Sentido do seu ser sendo, possui a capacidade de se conduzir pela vida de modo mais próprio
e satisfatório na realização da sua existência. É possível reconhecer aqui algo muito
semelhante ao modo de autenticidade descrito por Heidegger. Lowen também descreve, na
mesma obra, o que denomina de pessoa orientada pelo seu exterior; designada como aquela
orientada pelos valores ditados socialmente como modelos a serem seguidos (por exemplo, os
valores postulados por uma sociedade de consumo, alienante). Tal modo de ser sendo
equivale ao que em termos heideggeriano é descrito como inautenticidade, como um perder-
ser na de-cadência da publicidade impessoal.
É importante salientar que não se trata aqui de conceber autenticidade e
inautenticidade de maneira bipolarizada, dualizada, no ser sendo das pessoas. Não há como
ser unicamente autêntico e manter-se fixado neste modo de ser; como também não há um
modo de ser única e fixamente inautêntico como modo de ser sendo. Ambos se presentificam
na constituição humana de ser sendo no mundo, de uma maneira co-existente. Assim, uma
mesma pessoa carrega consigo os dois modos de ser e segue pela vida de modo tanto
autêntico como inautêntico, já que a existência é um processo de desenvolvimento humano
que se conforma de maneira aberta e dinâmica, para além de uma estrutura rigidamente
fechada. O que pode revelar a autenticidade de uma pessoa é o fato desta se sobressair à
inautenticidade dessa pessoa em alguns momentos da sua existência, ou em grande parte dela.
O mesmo é válido para a condição inautêntica.
Frankl (1993) nos ajuda a compreender a questão do projeto existencial por intermédio
do seu conceito de sentido para vida. Segundo ele, o que move o homem em sua existência é a
busca por um sentido a realizar na vida, sendo que este pode ser encontrado nas situações
cotidianas, inclusive nas de sofrimento intenso. Sentido é descrito como aquilo que favorece a
gratificação emocional obtida pelas realizações pessoais alcançadas e preenche a vida do
homem, tornando-o humano. A busca de um sentido para a vida é por ele concebida como
condição ontológica do homem. O sentido da vida vem, então, como algo mobilizador de
forças vitais, que possibilita à pessoa um sentido próprio a realizar em vida e o preenchimento
em si de sentido existencial.
154
O ser-para-a-morte conduz o ser a uma possibilidade privilegiada de ser, que é o
poder-ser ou o poder-ser-si-próprio-no-mundo, com consciência de si. Permite ao homem
empenhar-se por algo possível e ocupar-se de sua realização assumindo por si próprio a
condução de sua vida. Entretanto, vale considerar que por estar no mundo e ser-com-o-
mundo, o homem se constitui na vivência compartilhada, que obviamente implica no contato
com uma gama diversificada de valores culturais e sociais. Estes valores seguem acoplados na
constituição humana do sujeito. Tendo em vista que ninguém se constitui no isolamento, o ser
si próprio carrega em si também um componente coletivo, múltiplo, formado a partir das
interações e inter-relações vivenciadas no mundo compartilhado. Mas cabe ressaltar que
mesmo que o modo de ser si mesmo revele algo de coletivo em sua gênese, também carrega
um modo de ser próprio, possibilitado pelas escolhas pessoais realizadas a partir das relações
sociais estabelecidas.
Os colaboradores do estudo, a partir dos depoimentos fornecidos, revelam que a
angústia com a morte co-move e co-labora para o questionamento de seu ser, possibilitando a
eles a consciência de si, bem como a aquisição de conhecimentos e de sentidos de vida. A
morte, assim, se converte em foco para a vida, para o sentido da existência humana, como se
desvela a seguir:
“Então, como pessoa, a morte me ensina a viver.” (C10)
“Lidar com isso, eu acho que me acrescenta no modo de lidar com as pessoas. A gente aprende a ser mais humilde. [...] Aprendizado que se tem é de procurar ser mais humilde.” (C11)
“Porque a gente aprende a valorizar a vida. Mostra para mim que a dimensão dramática da vida reduziu muito.” (C18)
“Eu aprendi [...] como é frágil o ser humano, né? [...] À medida que a gente vai fazendo [necropsia] a gente vai reconhecendo que a gente deve tratar as pessoas com igualdade. Então isso trouxe para minha pessoa um sentimento de... de... de abolição do preconceito, vamos dizer assim.” (C 20)
“E agente também aprende a dar muito mais valor às coisas que têm importância, e não às coisas materiais, trabalhando com o óbito. Porque você começa a perceber a fragilidade da vida material; o pouco tempo que a gente pode viver. Pode-se viver um ano, dez anos, vinte anos, cinqüenta anos, mas sempre é muito pouco tempo paravocê passar a se considerar muito importante [...] Cada vez mais, quanto mais eu trabalho com necropsia, mais eu percebo que a importância pessoal deve ser minimizada e a coletividade deve ser valorizada nesta tarefa.” (C20)
“O processo da morte é um aprendizado das reações que a gente pode ter, tanto com relação à gente, quanto em relação aos entes queridos da gente, amigos.” (C21)
“Eu acho assim que, lidando todo dia com isso, é... Para mim hoje a vida é uma dádiva que Deus te dá e você tem que cuidar dela com a maior responsabilidade possível [...].” (C23)
155
A morte é, portanto, referência para a vida, nos modos de ser sendo profissional de
saúde como ser-para-a-morte. Aquele que tem na rotina do seu trabalho a convivência com a
morte e o morrer carrega consigo aprendizagens diversas adquiridas pela experiência desta
vivência. Os profissionais colaboradores deste estudo demonstram que a aprendizagem e os
conhecimentos produzidos a partir do contato com a morte contemplam o aspecto pessoal e o
profissional, corroborando a idéia de que na mundanidade do contexto hospitalar os
conhecimentos produzidos pelos sujeitos experienciadores do seu cotidiano incluem tanto os
aspectos intelectivos, quanto os afetivo-emocionais. São, portanto, conhecimentos técnico-
científicos e pessoais a compor o conhecimento de si, do outro, da vida, da condição humana
em sua existência finita.
“Uma aprendizagem que resulta, para mim, desta experiência é que é necessário dar mais valor a quem está do seu lado no dia-a-dia e abandonar o materialismo; nãopriorizar na vida os bens materiais.” (C2)
“Eu acho que a principal aprendizagem disso aí é a gente entender que nós temos limitações; nós não somos detentores de todo o poder, né? [...] Na questão pessoal eu acho que a experiência com a morte torna a gente mais humilde.” (C4)
“Uma aprendizagem que fica é que tudo tem limite. Você não é dono, não pode escolher vida ou morte para a criança. Às vezes a criança chegou no limite dela e o profissional tem que entender isso.” (C5)
“No aspecto científico a morte tem a ver com a curiosidade suscitada pela busca de respostas científicas fisiopatológicas, para se entender o que aconteceu. No aspecto pessoal, a aprendizagem que resulta é saber que o homem é um se frágil e tem limite. A morte é certa. Não somos melhores, mais poderosos e nem temos vantagens sobre os outros por nossa condição social. A morte é um mal necessário, faz parte do ciclo da vida, nivela as pessoas.” (C7)
“Aprendizagem, para mim, no sentido pessoal e profissional, é que a gente deve ser um ser humano; ser solidário a uma pessoa que você nunca viu antes na vida, dar a alma por uma pessoa, ou seja, fazer tudo o que está ao seu alcance. [...] Eu aprendi já muito isso: a ser mais humana, ter mais compaixão.” (C12)
“Com relação à aprendizagem, todo paciente nosso é um aprendizado técnico. Eu fico tentando saber o que talvez eu tenha feito de errado ou talvez o que eu não tenha feito, e que eu possa melhorar da próxima vez, para evitar ter um resultado semelhante.” (C13)
“[...] o primeiro ponto é tentar aprender a respeitar as pessoas que estão mais diretamente perdendo aquele ente querido. Em segundo lugar [...] eu me sinto obrigado a rever dentro de mim, e dentro dos meus conhecimentos, falhas – a busca de falhas e de melhorias do que se poderia fazer. [...] Então eu acho assim que todo óbito – como profissional – é um momento de reflexão e de busca de um novo estímulo para melhorar.” (C15)
“O que a morte traz para mim de aprendizagem... Para mim, enquanto profissional, é fazer o meu melhor, porque amanhã ou depois pode ser eu ou pode ser um dos meus. [...] E da minha vida pessoal, é ver que a gente não é nada, que a gente tem que estar andando aqui da melhor forma possível, de estar tratando as pessoas o melhor possível, porque a morte vem sem avisar.” (C16)
“A morte nos ensina que a gente tem, cada vez mais, que procurar melhorar como profissional. E, em termos pessoais, a morte acrescenta aprendizado, principalmente dependendo de como, do que aconteceu com a criança [...] A morte tem o seu lado
156
que realmente nos ensina que a gente tem que prevenir certas coisas para que não aconteçam. [...] Serve para conscientizar a gente de que certas coisas a gente pode evitar. [...] A morte traz esse lado de mostrar às pessoas, também, mesmo sendo da forma mais dolorosa possível que a gente tem que cuidar do outro.” (C17)
“Eu tenho uma aprendizagem tipo assim: de ver que a gente está de passagem por aqui. Sem mais nem menos você morre. Então somos todos iguais. [...] Eu acho que dá para você se sentir um pouco mais humano; como a pessoa deveria ser – um pouco mais humana, sem ser tanto esse ar de superioridade. [...] Aprendizado que eu tenho também é em termos profissionais, né? De como, às vezes, você tem que ser um pouco frio para poder lidar com isso: de estar ali presenciando, lidando com isso. Aprendizado que você tem na parte técnica [...].” (C19)
Alguns Guias de Sentido do ser puderam ser percebidos a partir dos depoimentos
coletados. Como sentimos, os Guias se constituem em atitudes, comportamentos e valores
adotados pelos profissionais diante da experiência vivida, que os orienta no(s) modo(s) e
sentido(s) de ser, conduzindo-os como ser sendo no mundo, diante da morte. Dos Guias,
identificamos: comoção, compaixão, cuidado, sensibilidade, respeito, seriedade. Compaixão,
comoção e cuidado implicam em generosidade e proximidade com o outro, num sentido de
ser acolhe(dor). Os profissionais de saúde seguem em sua prática social como pessoas abertas
à emersão do sentimento alheio, acolhendo-o; e este sentimento, de alheio, passa a ser
sentimento compartilhado; torna-se coletivo.
Na proximidade com o outro, os profissionais se apresentam como pessoas capazes de
sentir tristeza sem perder a alegria. Neste sentido, se aproximam do que Frankl (1993)
denomina de otimismo trágico. Na sensibilidade humana mostram-se forte, por suportarem o
insuportável diariamente sem sucumbir. O modo de respeito e seriedade com que se
conduzem na execução de seus ofícios em nada se confunde com frieza ou insensibilidade. A
sensibilidade humana e a racionalidade científica convivem juntas se entrecruzando na prática
destes profissionais como inter(in)venção de modos de aprender e ensinar a lidar com a
angústia da morte no ofício e no processo de desenvolvimento humano. Tudo isso compõe a
cultura de enfrentamento da morte, destes profissionais de saúde, no contexto em que se
realizou o estudo.
Tantas subjetividades e valores nos (co)movem a refletir, de modo inédito
(imaginamos), em pensar-sentir-agir um trabalho de Serviço Social de Cuidado, na dimensão
psicopedagógica do ser sendo assistente social cuidador, que se efetive por meio de uma
Educação Social a ser desenvolvida pelo assistente social no próprio campo hospitalar; no in
loco da morte, das perdas e das aprendizagens de sentidos nos profissionais, na cultura de
enfrentamento da morte por eles construída.
157
A partir daí uma interrogação irrompe em nosso ser de sentido. De qual Educação
Social compreendemos fundamental para a formação desse assistente social que atua nessa
esfera?
De imediato, desejo pontuar que aqui-agora falamos em formação de assistente social
nessa esfera da morte. Falamos isso, muito devido a nossa formação de base (graduação)
associada ao mestrado (educação), e agora no nosso complemento pedagógico (doutorado em
educação). Mas em hipótese alguma estamos a defender que a produção de conhecimento do
que se denomina Educação e/ou Pedagogia Social deva ser privilégio desta ou daquela
categoria – muito ao contrário, de chofre interessa aos pedagogos.
No próximo capítulo apresento o que, para mim, se constitui na síntese das unidades
de sentido aqui apresentadas e que, a meu ver, se abre para um pensar-sentir-agir em
Educação Social a partir da escuta de narrativas de experiências de enfrentamento da morte.
158
7 IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO EDUCADOR SOCIAL A
PARTIR DE UMA PEDAGOGIA NARRATIVA
Esse capítulo objetiva pontuar e, apenas pontuar, de modo geral, mas com
sensibilidade, como uma Educação Social de cunho fenomenológico pode ser útil (na
Filosofia e nas atitudes) aos profissionais de saúde (incluindo aí os/as assistentes sociais;
categoria profissional na qual esta pesquisadora se encontra inserida) na sua lide diária em um
hospital pediátrico – assim como o HINSG.
Tradicionalmente os profissionais de saúde assumem, em uma dimensão discursiva,
que praticam a Educação. Porém, com exceção dos cursos de Graduação em Enfermagem,
poucos profissionais de saúde têm em seu currículo formal disciplinas pedagógicas ou
educacionais. Nesse contexto, o presente capítulo traz em si uma relevância, a considerar o
mesmo como uma teoria (fenomenológica) que foca a dor do ser sendo si mesmo no cotidiano
do mundo da morte e uma educação social possível nesta realidade e cultura local.
Os modos descritos anteriormente de ser-com e de ser-para-a-morte, presentes no
exercício do ofício dos profissionais de saúde, revelam que a morte é referência para a vida e
para uma aprendizagem significativa de sentido existencial. A aprendizagem desencadeada
pela experiência de enfrentamento da morte se abre como pendência da pre-sença em seu
poder-ser, como processos de conhecimento e de produção de sentido. A morte e o morrer, no
contexto hospitalar se tornam, portanto, eventos educativos, no modo como as vicissitudes da
existência atuam no mundo da vida como ensinantes.
A morte, ao se constituir em referência para a vida e para a constituição dos modos de
ser, fornece subsídios para a invenção e efetivação de uma Educação Social especial a ser
desenvolvida no contexto hospitalar. No desenvolvimento do seu ofício, o profissional de
saúde, em contato permanente e próximo com o sofrimento, perdas (muitas vezes vividas
como decepção e fracasso), alegrias e realizações, tece coletivamente em sua prática
significação para si e para o outro. Tudo isso se conforma num mosaico de narrativas-de-
sentido que promove uma possibilidade de Educação Social Especial Não-Escolar, ao
provocar e possibilitar uma aprendizagem de angústia no ser sendo.
Entre estratégias e táticas, os diferentes sujeitos – profissionais de saúde – seguem se
inventando e inventando modos de conviver com a morte, na cultura local de enfrentamento
159
da morte. São protagonistas que tecem entre si e entre os usuários de seus serviços, os fios de
uma rede de conhecimentos, num movimento de educação sensível, inventiva, sentida,
significativa, existencial. Diante da real finitude humana, prosseguem inventando modos de
ser e de existir em seu ofício e cotidiano de prática, por entre uma multiplicidade de
sentimentos, ações, valores, sentidos de vida. Numa dinâmica pedagógica de sentido, tanto o
doente como o profissional de saúde emergem como sujeitos de aprendizagem imersos em um
movimento/processo de ensinagem humana que irrompe desta instituição social que é o
hospital.
Narrar é uma ação de sentido defendida por Walter Benjamin (1994) e ao mesmo
tempo denunciada por ele, sentindo sua ausência prática. Uma Educação Social, interessada
pelos sofrimentos ou não, explícitos ou não, conscientes ou não, de profissionais de saúde
frente a morte concreta, pode ser uma Pedagogia que traz à tona as narrativas das experiências
e vivências desses profissionais, frente a uma escuta psicopedagógica atenta e sensível a essa
única (e vital) tarefa: sobre a morte e o morrer e o que essa experiência nos ensina de sentido.
As práticas educacionais que focam as narrativas trazem a lume uma relação de
sentido em um mundo nem sempre hospedeiro – como nos disse Heidegger. Um posto de
escuta diante da finitude tão certeira, mas que o homem parece não aceitar de modo sentido,
pode ser entendida como um dispositivo de oposição do profissional de Serviço Social frente
ao aparente bem-estar que aquilo (morte) produz. Uma coisa naturalizada, mas que em sentido
social e histórico ainda não se naturalizou. Morrer ainda é algo que preocupa, especialmente
se cometer uma criança, pois no nosso imaginário a criança é o pai do pai – aquela que carece
crescer para cuidar e ensinar a nós, os adultos (que os pais representam).
A Pedagogia Social é uma disciplina implementada no novo currículo do curso de
Pedagogia do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo e que se sugere
para todos os cursos de Graduação em Pedagogia do nosso país. Quais seriam a contribuições
dessa Pedagogia e/ou Educação Social para a formação do assistente social interessado em
atuar escutando narrativas acerca da morte e do morrer? Vamos procurar tentar responder essa
questão inicial através dos dados obtidos em nosso estudo.
Parece que as minhas investidas de escuta acerca do tema provocaram mudanças nos
colaboradores. Umas colaborações acerca da dor deles em mim. Neste sentido, minha posição
fenomenológica de escuta das experiências (narrativas de sentido), como bem destaca
160
Amatuzzi (2001), foi uma intervenção. Aqui então ousamos enunciar a natureza dessa
intervenção: ela foi “educativa social”51.
Uma interrogação provocante aqui-agora pode ser: O que eu (pesquisadora) efetuei
nesse estudo que trouxe sentido a alguns colaboradores em se sentir melhor, por serem
escutados? Tal questionamento tratou-se de uma interrogação interessante de
saber/sentir/fazer o processo educativo (de ensino-aprendizagem) social de rua que aparece no
estudo de Pinel, Colodete e Paiva (2008).
Mas interessa-nos uma Educação. Um modo, pois de um “parto” (etimologia do termo
educar que vem de educare); de trazer à luz; trazer ao dia algo de sentido. Educação engloba
ensinar e aprender – e os dois atos sentidos se imbricam e se indissociam. Como já disse
Guimarães Rosa: “Mestre não é aquele que ensina, mas aquele que de repente aprende”52.
O educar é um fenômeno. Trata-se daquilo que vem à tona com sentido. O que se
perpassa no ato educativo são informações que se transformam em conhecimento pela relação
complementar.
Complementar-se é dar essência da parte e nós somos partes. Estar em contato é, portanto, nosso jeito natural de nos relacionarmos quando estamos em contato. Relacionar é se encontrar com o outro por algum tipo de troca, como uma locomoção no campo [...] [existencial] indo buscar no outro aquilo de que necessitamos (Ribeiro, 2006, p. 166).
Somos, pois, seres da relação (alteridade) e será ela que (co)moverá na troca de si
(assistente social com formação em Educação Social) com o outro (o profissional de saúde
frente às situações concretas de finitude; a morte-mesma em Heidegger). Enganam-se as
pessoas no dia-a-dia de que a morte do paciente infantil não “toca” o ser sendo mais profundo
do profissional de saúde. Isso é ilusão, pois o estranhamento psicopedagogicamente é sempre
bem vindo como provoc(ação) de mudanças. Provavelmente nunca deveremos nos acostumar
com a morte, mesmo que expressemos um acostumar-se natural à mesma.
Nos mais variados espaços de convívio social ela está presente em todos os seres, e
isso se mostra mais contundente na instituição hospitalar. Nesse sentido, educação coincide
51 Amatuzzi (2001) descreve que ao usar o método fenomenológico de pesquisa o autor, se psicólogo, estará praticando um tipo de intervenção, a Psicoterapia. Neste caso, a pesquisa foi interventiva, embora a intervenção possibilitada no estudo desenvolvido não pretendeu ser terapêutica, mas educativa. 52 Frase retirada da obra literária “Grande Sertão: Veredas” do escritor João Guimarães Rosa, que já se tornou bastante popular e que agora foi capturada de minha memória.
161
com o conceito de socialização, um processo mesmo que implica no sentido das
aprendizagens advindas da alteridade.
A alteridade (ser sendo pelo Outro-outro) é, aqui-agora, na nossa proposta, o aspecto
social da Educação, significando: vir à tona pelo Outro-outro. A morte ameaça esse-outro;
mas apenas ameaça; mesmo na morte o outro aparece (pré)ocupado com o mundo, com as
coisas simples da vida, como a morte do outro em mim.
Nós experienciamos o mundo – e ele nem sempre é hospedeiro. As crises diante da
morte mostram quase sempre uma vulnerabilidade dos profissionais de saúde. Uma tensão
advinda dos ofícios ali dentro, diante da criança, a morte dela e a família (que vivencia uma
morte advinda do concreto, e agora vivida simbólica).
O educador social estabelece-se, intervindo com as mais diversas faixas etárias (crianças, jovens, adultos, idosos) e nos mais diferentes contextos sociais, culturais, educativos e econômicos. Esta polivalência interventiva favorece a profissão ao nível da empregabilidade, embora dificulte ligeiramente a construção de um conceito profissional facilmente delimitável. Por outro lado, é possível observar a multiplicidade de experiências profissionais acumuladas pelos profissionais da Educação Social, as quais constituem na realidade, a grande riqueza de uma profissão que tem no geral conseguido obter a qualificação de competente para o seu trabalho. O Educador Social [...] está habilitado a intervir com diversas populações: crianças, jovens, adultos, séniores; e em contextos sociais, culturais e educativos diversos. O Educador Social não trabalha só com indivíduos em situação de vulnerabilidade, mas também com pessoas, independentemente da etapa de vida em que se encontram, estejam ou não em situação de vulnerabilidade social. Com todas estas o Educador Social, enquanto profissional, estabelece uma relação de proximidade que permite valorizar a importância de cada situação de forma particular, de modo a que cada indivíduo se sinta único e uno (HARO, 1998, p. 47).
Nossa intervenção tratou-se de um processo ensino-aprendizagem vital (vital de vida;
que não implica no desprezo à morte; ao contrário).
A Educação Social no contexto hospitalar, frente às vulnerabilidades de perdas
concretas (a morte-mesma) e simbólicas de crianças (e famílias), no impacto do educando
profissional de saúde, tenta resgatar de modo cuidadoso (em Heidegger, Sorge): 1) a relação
construída entre educador social e educando, a indicar o valor fornecido e agregado com a
(com)vivência, o acolhimento, a aproximação; 2) trazer a lume uma discursiva de sentimentos
e emoções na relação entre o conteúdo refletido e a realidade vivida, compondo o sentido de
“aprendizagem significativa”53; 3) o acontecer advindo do encontro de escuta, de descrições e
narrativas; o conjunto; a participação.
53 Ver capítulo 4 desta tese, citando Rogers (1976).
162
Nesse sentido, o educando é compreendido como homem social e político. O Ser-no-
mundo de Heidegger. E, quem é esse Homem (foco) da Educação Social? Trata-se do
profissional de saúde que carece de ser escutado (através de suas narrativas) acerca das perdas
simbólicas e concretas de seus pacientes (incluindo os familiares destes).
O existir desse profissional frente à morte apresenta diversas características. Uma
delas vem a ser a sua abertura (revelação de suas potencialidades), que significa uma abertura
como modo de estar (de ser sendo) disponível àquilo que se apresenta no mundo das perdas.
Outra característica é o entendimento como essência da existência desse ser-no-mundo. Diz
Lamonico (1992), referindo a Psicopedagogia Fenomenológica de Masini (1984) que é “[...]
pelo entendimento que as coisas podem ‘ser’ ou ter significado no mundo de um ser humano”
(p. 54).
Há ainda ressaltar outras características aí presentes, que merecem ser aqui
consideradas: a aproximação; a espacialidade; a temporalidade; a afinação. A aproximação
depende do desejo da pessoa em receber e/ou oferecer cuidados. Trata-se do modo como ele
percebe o fenômeno vivido, ocorrendo em dois níveis interdinâmicos: a) o ser-com o outro; b)
o modo descrito por Pinel (2006b) de “ser-sendo-si-mesmo-no-cotidiano-do-mundo” (p. 159-
163).
O aproximar um do outro (outros) implica ainda em espacialidade (espaço concreto e
espaço humano corporal, social e psicológico). Para Augras (1981) as dimensões do espaço
são criadas a partir das extensões do corpo, enquanto espacialidade aberta e orientada pela
movimentação do ser no mundo. A vivência do espaço se expressa, então, por uma
fenomenologia da corporeidade vivida na sua presença e movimentação; o que permite ao
homem isolar-se e comunicar-se.
Temporalidade refere presente, passado, futuro, abertura a novas experiências. O
tempo surge como orientação significativa do ser sendo em sua temporalidade e historicidade,
diante de sua condição fatual, conforme concebe Heidegger. Para Binswanger, não existe
separação entre passado e presente. “[...] a relação do presente individual com o passado não é
em si determinada pelo passado, mas pelo horizonte dentro do qual são experimentados, ao
mesmo tempo, presente e passado [...]” (BINSWANGER apud AUGRAS, 1981, p. 31).
Com relação à afinação, trata-se de um modo que deve ser buscado, e estabelecido, de
entrar em uma sintonia possível com o outro. A sintonia aqui referida não se impõe como uma
163
forma de ajuste harmonizado consensual, como imposição de modos de ser ao outro; mas um
modo de abertura que possibilite perceber e sentir com o outro, de maneira empática. É um
modo de entrar na relação: afetuosa; revoltada; dolorosa; etc.
Entrar em contato implica em escutar – e esse ato sentido (escutar) parece ser a maior
demanda de uma Educação Social no contexto hospitalar, pautado existencialmente pela dor;
sofrimentos orgânicos e psíquicos. Deve ser feita no modo de uma escuta aberta ao outro
(atenta e sensível), que se configura como cuidadosa. Uma escuta que permite trocas e que,
aberta ao outro (no encontro com o outro), favorece a escuta de si mesmo, na sua estranheza.
Este ato de escuta, realizado por um profissional comprometido e envolvido, torna-se
elemento favorecedor da significação e da aprendizagem mútua que emergem a partir da
relação dialógica estabelecida. E é estando nesse espaço-tempo de sintonia possível, que
poderá ocorrer (ou não) a aprendizagem significativa.
Ao me reportar aqui à aprendizagem significativa, considero importante pontuar o que
tomo como referência para o entendimento do que vem a ser significado na abordagem da
aprendizagem.
O significado é considerado para Ausubel54 um produto “fenomenológico” do processo de aprendizagem. O significado potencial converte-se em conteúdo significativo de acordo com cada indivíduo (Lamonico, 1992, p. 56).
O processo de aprendizagem significativa possui uma característica dinâmica, marcada
pelo processo construído entre educador e educando, onde estes compartilham experiência e
significados e, a partir daí, modificam idéias e conhecimentos sobre si, o outro e o mundo.
Este formato de educação só é possível na efetivação de interação com o outro, com objetos e
com situações que exigem envolvimento humano.
Os problemas de aprendizagem, ou quaisquer nomes que valham para indicar que
ocorreu um ensino de algo e os sujeitos implicados neste processo não aprenderam
significativamente, também podem se fazer presentes no contexto clínico (hospitalar). Para a
Educação Social aqui-agora proposta na vertente heideggeriana (advinda de Boss e
Binswanger – dois discípulos e amigos de Heidegger), isto releva mais sentidos. Mostra, por
exemplo, uma experiência sem sentido (sem apreensão de significados). Isso, na medida em
54 David Paul Ausubel (1918-) é um psicólogo estadunidense, de foco cognitivista, que nos textos de Masini (in Lamonico, 1992) se associam com os textos afetivos de Medard Boss (1903-1990) e Ludwig Binswanger (1881-1966). Estes últimos apresentam uma gênese heideggeriana, e denominada de Abordagem da Daseinsanálise (análise; psicoterapia; educação; psicopedagogia e pedagogia do ser-ai).
164
que reflete bloqueios ou fechamentos na comunicação (narrativa e escuta) estabelecida entre o
educador e o educando; além das questões físicas e psíquicas da dor – que compõem o
mosaico de ser sendo profissional de saúde que responde nesse tipo de Educação Social, tanto
no papel de educador como no de educando; a relação de um profissional que se disponibiliza
para a escuta das narrativas de um outro profissional (constituído como colega de trabalho).
As dificuldades são objetos de atenção nas intervenções e/ou interferências, numa
(pró)cura empática dos modos de ser sendo si mesmo no cotidiano do mundo hospitalar onde
o educando está inserido; o profissional de saúde, tanto quanto o paciente e sua família,
estabelecendo entre si redes de significação e de aprendizagem, a partir de seus encontros.
A Educação Social de cunho fenomenológico muito tem a contribuir com o
desempenho dos profissionais de saúde em contextos hospitalares, entre eles os assistentes
sociais. Assim, a efetivação de uma atenção educacional firmada em uma prática de narrativa
e de escuta, desenvolvida como modo de cuidado para com o profissional de saúde (que, por
conseguinte, se desloca para o cuidado dirigido ao usuário de seus serviços), revela-se como
possibilidade de Educação Social a ser realizada em ambiente hospitalar, inclusive pelo
assistente social.
O assistente social constitui-se um educador, tendo em vista que no desempenho de
suas atribuições profissionais trabalha com orientação e veiculação de informação, que se
constituem como atos educativos promotores de sensibilização, reflexão, formação de
pensamento crítico, mudança de comportamentos e atitudes. E, ainda, dado que este
profissional apresenta competência técnica para o desenvolvimento da escuta, na prática do
seu ofício, pode constituir-se educador social no contexto hospitalar, de modo a escutar as
narrativas de sentido de outros profissionais a respeito de suas experiências de enfrentamento
da morte.
A partir dessa escuta, que se difere da realizada pelo psicólogo na prática da
psicoterapia, o assistente social, também um educador, poderá auxiliar na constituição de um
espaço próprio, no contexto do hospital, destinado à produção de uma prática social de
inter(in)venção psicopedagógica que se destine a provocar e possibilitar a produção de
conhecimentos e a aquisição de aprendizagens significativas para aquelas diversas pessoas
inseridas no cotidiano de vivências (de situações educativas) que compõem esta instituição
social.
165
Em meu trabalho de mestrado, Trugilho (2003), aponto para a importância da
efetivação de espaços pedagógicos para atendimento à demanda educacional de crianças
hospitalizadas, como forma especializada de educação, tendo em vista ser a escolaridade o
meio utilizado pela criança hospitalizada para a manutenção de seu sentido existencial e para
transformar a dor e tragédia pessoal em uma vitória humana.
Neste momento busco firmar o assistente social como profissional mediador da
criação de espaços e práticas educacionais voltados para a atenção dirigida ao profissional de
saúde no ambiente hospitalar, que o permita desvelar-se em suas narrativas e, assim,
compreender, por seu sentido, as experiências, significados e aprendizagens presentes na
convivência diária com a morte e o morrer; na sua cultura de enfrentamento da morte.
Da maneira como foi pontuada neste capítulo é que penso a possibilidade do
estabelecimento de uma Educação Social que se efetive por meio de uma pedagogia narrativa
(de escuta) e que, por conseguinte, se constitui numa proposta de educação social
fenomenológico-existencial em contexto hospitalar. Espero aqui ter oferecido contribuições
para pensarmos a invenção de novas práticas educacionais e a ampliação dos espaços
pedagógicos de ação.
166
8 PALAVRAS FINAIS
Ao finalizar este trabalho não posso deixar de registrar o que ele representou em meu
ser sendo pesquisadora, pessoa e assistente social atuante em hospital, cuja atividade
profissional se realiza no contato diário com a morte e o morrer de crianças e adolescentes,
juntamente com os demais profissionais da saúde.
Estar diante e partícipe da prática desses profissionais no desenvolvimento do seu
trabalho, que envolve o fato concreto de lidar com a existência da morte (real e simbólica),
muito me acrescenta em conhecimentos. Daí a possibilidade de afirmar que a morte e o
morrer institucionalizados são favorecedores de aprendizagem pessoal e profissional.
Não posso aqui também deixar de registrar o meu profundo respeito e admiração pelos
colaboradores deste estudo e por tantos outros profissionais que dele não puderam participar
diretamente, mas que de alguma forma contribuem diariamente para a pensarmos e
efetivarmos a construção de uma prática social e educacional de profissionais da saúde no
enfrentamento da morte e do morrer. Foi impossível não me comover, surpreender, alegrar
diante de alguns colaboradores. Por isso desejo expressar minha profunda gratidão a estes
seres humanos que, em sua constituição de pessoa/profissional de saúde, se permitiram
desvelar em seus modos de ser sendo diante da morte a partir de depoimentos tão gentilmente
cedidos.
O caminho percorrido chega agora ao seu desfecho, mas dialética e
fenomenologicamente se abre para novas perspectivas de abordagem do fenômeno tomado
para a compreensão humana. A investigação fenomenológica não se interessa nem conduz a
generalizações a serem obtidas como resultado da pesquisa. Assim, as considerações aqui
apresentadas não se constituem uma conclusão fechada, definitiva e dogmática sobre o
fenômeno tido como foco neste estudo.
Trata-se apenas de uma consciência aberta, o que permite considerar que a
compreensão do fenômeno nunca se esgota em si, pois este sempre se abre para outras novas,
sendo, portanto, impossível a obtenção de uma compreensão única que abarque o fenômeno
em sua totalidade. Existe assim um modo de pendência, que é uma abertura do fenômeno a
outras consciências. Por esta razão, acredito que o estudo que aqui se encerra também se abre
para novas possibilidades de investigação da morte e morrer enquanto elemento constitutivo
da prática profissional de trabalhadores da saúde.
167
Lidar com a morte no exercício do trabalho não é uma tarefa simples, também não é
algo que se faz de maneira desprovida de sentimento como muitas pessoas podem imaginar a
respeito dos profissionais da saúde. O sentimento decorrente da perda do paciente nem
sempre emerge e se revela diante dos outros. Muitas vezes é experimentado na solidão, no
espaço mais íntimo e reservado do ser sendo si mesmo no cotidiano do mundo. É um
sentimento real e desvela que o profissional de saúde não é uma pessoa eminentemente fria e
insensível diante do sofrimento alheio, embora seu comportamento técnico pareça demonstrar
isso.
Os profissionais de saúde demandam apoio que os auxiliem na construção de um
corpo de conhecimentos teórico-metodológicos sobre a morte e morrer e que os ajudem a
lidar existencialmente com a finitude humana, não no sentido de negá-la, mas no sentido de
conhecer sobre si e o outro; sobre sua onipotência e impotência, seus receios, a sensibilidade e
os sentimentos ambivalentes em relação à morte; sobre a realização profissional e também
pessoal, tendo em vista que estes dois aspectos seguem no sujeito de modo sempre
indissociado.
Acredito que o contexto de um hospital pediátrico permite a constituição de uma
relação de maior proximidade entre o profissional de saúde e o paciente, devido a
característica própria da infância. A criança tem a grata capacidade de desarmar nossas
resistências e defesas ao contato com o outro. Ela nos permite agir na ludicidade e na
informalidade. Tudo isso favorece a composição de condutas acolhedoras e mais humanizadas
por parte do profissional de saúde que, por conseguinte, na mundanidade do mundo
hospitalar, favorece a constituição do modo de ser-com o outro, bem como a constituição de
uma cultura de enfrentamento da morte. Provavelmente é este um fator que muito contribui
para a alteridade e empatia do profissional de saúde e para identificar os colaboradores deste
estudo como profissionais cuidadores, revelado no modo de ser companheiro, de demonstrar
compaixão, de compartilhar.
A morte não é um fracasso. É parte da vida, do ciclo evolutivo, da existência humana.
Poder enfrentá-la de modo corajoso, sensível, compreensível e tornar a angústia com a morte
um meio propulsor e propiciador do sentido existencial, no caso do profissional de saúde,
pode favorecer a ajuda ao paciente em lidar com a sua morte, para além do abandono em que
muitas vezes é submetido, quando este profissional, no exercício de seu ofício, não dá conta
de encarar a real finitude humana.
168
A respeito do meu ser sendo, no sentido pessoal e profissional, a leitura de Heidegger
contribuiu para uma compreensão da morte como possibilidade de abertura da pre-sença ao
seu poder-ser; um poder ser mais próprio, que é ser si mesmo na condução da vida. O contato
com os colaboradores também acrescentou em mim conhecimentos para a vida a serem
utilizados tanto na esfera pessoal, quanto na profissional. Espero que os conhecimentos por
mim adquiridos encontrem espaço de expressão no ambiente hospitalar e possam ser
repassados a outras pessoas, de maneira que eu possa realizar a grata tarefa de partilhar com
elas o sabor das aprendizagens significativas.
É inegável a complexidade inerente ao tema morte, o que dificulta e até impossibilita
enfocá-lo em todos os seus aspectos. A despeito de ter focalizado neste estudo a questão da
morte na experiência profissional de trabalhadores da saúde, reconheço que outras dimensões
existem, compondo o tema e que, devido às limitações inerentes a toda pesquisa, não puderam
ser tratadas no presente trabalho. A este respeito temos, por exemplo, a questão da saúde do
trabalhador, tendo em vista estar o profissional de saúde submetido a um processo de estresse
contínuo, acarretado pela vivência de perdas consecutivas no exercício de seu trabalho.
O ato de cuidar e de se relacionar com o paciente gravemente enfermo pode favorecer
a adoção de uma conduta fria, impessoal e distante por parte do profissional de saúde. Isto
evidencia a dificuldade do mesmo no enfrentamento da finitude humana e também um modo
de se proteger contra o sofrimento e a angústia que advém do contato com a morte e morrer
de outras pessoas, levando-o a agir de maneira rotineira e despersonalizada diante da morte,
banalizando-a.
Esta evidência sugere a necessidade de investimento na realização de uma ação
educacional de apoio ao profissional de saúde, de forma que este possa debater, refletir,
apreender e construir modos de enfrentamento da morte que considerem os aspectos
existenciais da vida humana. Assim, a partir da consideração da morte, as áreas de saúde e
educação podem caminhar juntas, consolidando uma proposta de atenção psicopedagógica
que auxilie os profissionais de saúde no enfrentamento da morte e do morrer no exercício do
trabalho.
Os propósitos da institucionalização do processo de morrer e a atenção ao paciente em
risco iminente de morte devem ser constantemente examinados. Daí a importância e o desafio
de realizar-se no contexto hospitalar um Espaço Psicopedagógico de Educação sobre a Morte,
169
onde o lidar com a finitude humana possa ser tema de reflexão e debate a respeito da dialética
existencial vida e morte e os demais aspectos aí presentes.
Acredito que a possibilidade de um debate presente na rotina hospitalar sobre
existência e finitude humana deva estar inserida num currículo de educação permanente de
formação do profissional de saúde. A morte, quando compreendida como fator existencial,
constitui-se como possibilidade de qualificação e valorização da existência humana e,
conseqüentemente de qualificação da assistência ao paciente.
Os profissionais de saúde, no exercício de suas funções laborativas, vivenciam a morte
do outro lado, mas isso não impede, nem negligencia o sentimento de luto experienciado
pelos mesmos diante da perda do paciente. Assim, uma educação para a morte poderá
favorecer o desenvolvimento de um processo de luto antecipatório como estratégia
favorecedora da elaboração do luto pessoal/profissional vivenciado pelo profissional de saúde,
bem como o resgate em si e no outro do sentido da existência humana.
170
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176
APÊNDICE A – Tabelas Representativas do Perfil dos Colaboradores
TABELA 1 – PROFISSÃO DOS COLABORADORES
Atividade Profissional Nº de Colaboradores
Assistente Social
Auxiliar de Patologia
Enfermeiro
Fisioterapeuta
Funcionário do Apoio
Médico
Pedagogo
Técnico de Enfermagem
TOTAL
02
02
03
01
01
10
01
03
23
TABELA 2 – ESPECIALIDADES MÉDICAS
Especialidade Nº de Colaboradores
Neurocirurgião
Oncologista
Patologista
Pediatra
Psiquiatra
Residente em Pediatria
TOTAL
01
01
01
05
01
01
10
177
TABELA 3 – GÊNERO
Classificação Nº de Colaboradores
Homem
Mulher
TOTAL
09
14
23
TABELA 4 – RELIGIÃO DOS COLABORADORES
Classificação Nº de Colaboradores
Católica
Espírita
Evangélica
Sem religião
Agnóstico
TOTAL
13
05
02
02
01
23
TABELA 5 – ESCOLARIDADE DOS COLABORADORES
Nível de Escolaridade Nº de Colaboradores
1º Grau (Fundamental)
2º Grau (Médio)
3º Grau (Superior)55
TOTAL
00
05
18
23
55 Incluindo a Residência Médica, bem como a Pós-Graduação Lato Sensu e Stricto Sensu de alguns colaboradores.
178
TABELA 6 – IDADE DOS COLABORADORES
Especialidade Nº de Colaboradores
20 a 29 anos
30 a 39 anos
40 a 49 anos
50 a 59 anos
60 a 65 anos
Não informou
TOTAL
02
08
08
03
01
01
23
TABELA 7 – TEMPO DE EXERCÍCIO PROFISSIONAL
Tempo de Atuação na Área Nº de Colaboradores
0 a 5 anos
6 a 10 anos
11 a 15 anos
16 a 20 anos
21 a 25 anos
Acima de 25 anos
Não informou
TOTAL
01
05
06
02
06
02
01
23
179
APÊNDICE B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOCENTRO DE EDUCAÇÃOPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado para participar como voluntário de uma pesquisa sobre
como os profissionais de saúde enfrentam a morte do paciente em seu trabalho e que
aprendizagens resultam desta experiência. Sua participação constitui-se numa valiosa
colaboração, mas não é obrigatória. A qualquer momento você pode desistir de participar e
retirar o seu consentimento. Sua recusa não trará nenhum prejuízo em sua relação com o
pesquisador ou com a instituição e não acarretará custos para você.
INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA
Título do Projeto: A Morte e o Morrer como Experiência de Aprendizagem Sentida/Vivida
por Profissionais de Saúde no Contexto Hospitalar.
Pesquisador Responsável: Silvia Moreira Trugilho.
Telefones para contato: 3315-1109; 3137-2628; 9909-2672.
Instituição a qual a pesquisa está vinculada: Universidade Federal do Espírito Santo –
Centro de Educação/ Programa de Pós-Graduação em Educação – Curso de Doutorado em
Educação.
A pesquisa a ser realizada faz parte do curso de Doutorado em Educação e tem como
objetivos descrever e compreender a experiência de enfrentamento da morte do paciente
vivida pelos diversos profissionais que atuam no espaço hospitalar. Busca-se ainda analisar de
que forma esta experiência se constitui em aprendizagem e desenvolvimento humano. Espera-
se que o estudo contribua para a instituição/criação de modos de cuidado humanizado na
relação profissional-paciente-família em atenção à saúde.
Sua participação nesta pesquisa consistirá em fornecer depoimentos sobre como você
vivencia a morte de pacientes em sua prática profissional. Os depoimentos poderão ser
180
gravados; falados à pesquisadora e escritos por ela; ou então escritos por você e entregues à
pesquisadora, conforme você preferir. O material gravado será destruído logo após sua
transcrição, evitando acesso de outras pessoas ao mesmo. Será também realizada observação
sobre o cotidiano da prática profissional da qual você faz parte, em relação às situações de
morte. A observação será registrada em documento pessoal da pesquisadora.
Não existem eventuais riscos ou benefícios diretos à sua pessoa relacionados à sua
participação nesta pesquisa.
As informações obtidas serão confidenciais, assegurando o sigilo sobre sua
participação e privacidade. Os dados obtidos serão divulgados de forma que não possibilite
sua identificação. A pesquisa será convertida em uma Tese de Doutorado, onde não constará o
nome dos sujeitos colaboradores da pesquisa, preservando seu anonimato e poderá ser
posteriormente publicada em forma de artigo científico ou livro, bem como apresentada em
congressos e similares.
Você receberá uma cópia deste Termo onde consta o telefone do pesquisador
principal, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto de pesquisa e sua participação em
qualquer momento de realização da pesquisa. Você também poderá se informar sobre a
pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do HINSG.
____________________________
Silvia Moreira Trugilho
Eu, ____________________________________________________ declaro que recebi e
compreendi por completo as informações por escrito que constam neste documento e as
explicações que me foram fornecidas. Fui informado que sou livre para escolher concordar
em participar ou me recusar. Declaro estar ciente e esclarecido da pesquisa, seus objetivos,
metodologia, riscos/benefícios, garantia de sigilo e liberdade para desistir de participar e
colaborar com a pesquisa em qualquer etapa da mesma sem danos para a minha pessoa.
Nestes termos, concordo em participar deste estudo.
______________________________________
Assinatura do participante