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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA - DEAN ARTHUR DA SILVA MERCER MOVIMENTOS SOCIAIS E SUBJETIVAÇÃO CURITIBA 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · escancarou a polarização política na qual o país se encontrava (e ainda se encontra). As especulações, depois confirmadas,

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA - DEAN

ARTHUR DA SILVA MERCER

MOVIMENTOS SOCIAIS E SUBJETIVAÇÃO

CURITIBA 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – DECISO

ARTHUR DA SILVA MERCER

MOVIMENTOS SOCIAIS E SUBJETIVAÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Prof.a Dr.a Eva Scheliga

CURITIBA 2015

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RESUMO

Esta monografia tem por objeto o processo de subjetivação dos indivíduos postos em contato com movimentos sociais, servindo-se de informações coletadas a partir de etnografias. Embora o conceito de subjetivação tenha logrado destaque a partir de um autor da sociologia, Alain Touraine (1994), o processo de transição do indivíduo em sujeito coletivo pode ser observado em abordagens antropológico-etnográficas de movimentos sociais. Após uma introdução ao assunto, apresenta-se a ideia de etnografia de movimento social, tomando-se como exemplo a descrição das ações de um coletivo ocorrido em Curitiba. Segue-se um panorama dos estudos dos movimentos sociais no Brasil, destacando-se a produção de antropólogas da USP durante as décadas de 1970 e 1980. Em seguida, são analisados dois estudos etnográficos: um relativo a moradores de rua de Curitiba, outro referente a movimentos de mulheres em Recife, ambos os quais fornecem elementos para uma descrição do processo de ativação dos indivíduos em sujeitos políticos. Palavras-chave: Subjetivação. Movimento social. Etnografia.

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LISTA DE SIGLAS

CENEDIC - Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania

FAS - Fundação de Ação Social de Curitiba

FMPE - Fórum de Mulheres de Pernambuco

GTIS - Grupo de Trabalho de Inclusão Social da População de Rua

LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros

MNPR - Movimento Nacional da População de Rua

MPM - Movimento Popular por Moradia

ONG - Organizações Não Governamentais

PE - Pernambuco

PR - Paraná

PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira

PT - Partido dos Trabalhadores

UFPR - Universidade Federal do Paraná

USP - Universidade de São Paulo

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 5

2 ATIVAÇÃO DO OLHAR ................................................................................ 6

2.1 A PRAÇA ..................................................................................................... 6

2.2 A ASSEMBLEIA ........................................................................................... 8

2.3 MANIFESTAÇÃO DA FRENTE POPULAR ................................................. 11

2.4 TEMPO E ESPAÇO DA SUBJETIVAÇÃO ................................................... 14

3 MOVIMENTOS SOCIAIS: CONSTRUINDO UM SUJEITO COMO OBJETO DE PESQUISA ............................................................................... 20

3.1 MOVIMENTOS SOCIAIS: A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA .................... 20

3.2 MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS E A TRAJETÓRIA DOS

MOVIMENTOS SOCIAIS ............................................................................. 22

3.3 A POLÍTICA DOS OUTROS ........................................................................ 25

3.4 SOCIOLOGIA POLÍTICA ............................................................................. 28

4 ANÁLISE DE ETNOGRAFIAS ACERCA DE MOVIMENTOS SOCIAIS ....... 33

4.1 A VIDA NAS RUAS ...................................................................................... 33

4.2 A AUTOPERCEPÇÃO ................................................................................. 35

4.3 NÃO BASTA SER MULHER, TEM DE TER CORAGEM ............................. 39

4.4 OS MOVIMENTOS ...................................................................................... 42

4.5 ANÁLISE DAS ETNOGRAFIAS ................................................................... 45

4.5.1 Engajamento acadêmico e subalternidade ........................................... 45

4.5.2 Luta e reconhecimento ............................................................................ 51

5 BALANÇO/CONCLUSÃO ............................................................................. 60

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 64

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1 INTRODUÇÃO

Esta monografia traz os resultados de uma pesquisa de caráter bibliográfico a

respeito do conceito de subjetivação, assim como fora delineado por Alain Touraine

(1994), na qual se busca apreender a categoria de sujeito em movimentos sociais

contemporâneos. Ainda que o fenômeno da subjetivação tenha sido inicialmente

detectado na sociologia, esta monografia procurará analisá-lo sob a luz da antropologia,

baseando-se em etnografias recentes feitas no Brasil, com foco em movimentos sociais.

Para tanto, num primeiro momento, será apresentado um exercício etnográfico

realizado na cidade de Curitiba durante um coletivo de movimentos sociais, com o

intuito de educar o olhar para uma melhor interpretação das etnografias que serão

analisadas posteriormente. No capítulo em questão, também se discutirá a ideia de

subjetivação, tal qual proposta por Touraine (1994), bem como a forma como se

procurará entendê-la neste exercício.

No capítulo seguinte será traçada uma trajetória parcial da construção dos

movimentos sociais como objeto de estudo, tanto da antropologia brasileira quanto

da sociologia política. Esse exame será parcial por abarcar um período de tempo

específico, pós-anos 70, e também um espaço específico, a Universidade de

São Paulo.

Por fim, serão analisados especificamente dois estudos etnográficos

contemporâneos feitos no Brasil: um de Tomás de Melo (2011), acerca de um

movimento de moradores de rua, em Curitiba; e outro de Alinne Bonetti (2007),

realizado com movimento de mulheres de periferia, em Recife. Além de uma breve

síntese de ambos, veremos em que medida eles se aproximam e se distanciam de

alguns debates produzidos na antropologia, tanto a contemporânea quanto a dos

anos 1980, empreendida por antropólogas uspianas.

Por fim, será feito um balanço de como os movimentos sociais, bem como

suas interpretações por parte da antropologia, foram se alterando ao longo do

período estudado. Do mesmo modo, será avaliada a contribuição trazida por esse

campo das ciências humanas para a compreensão do processo de subjetivação que

aqui nos interessa.

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2 ATIVAÇÃO DO OLHAR

A escolha do exercício etnográfico como recurso para sondar o interior do

movimento social representa uma aposta na possibilidade de alcançar os elementos

factuais que sustentam a ideia de subjetivação. O breve exercício etnográfico que se

relatará em seguida configura-se como uma espécie de treinamento da observação

a partir de uma experiência própria, com a finalidade de possibilitar, posteriormente,

a leitura das etnografias pesquisadas com um olhar mais agudo. Em outras palavras,

essa acuidade é o que permitirá uma nova interpretação dos trabalhos a serem lidos

numa perspectiva específica, a da subjetivação, possibilitando ganhos maiores que

os de uma leitura "desarmada". Ao ter um contato mais direto com pessoas ligadas

aos movimentos sociais, é possível perceber o aparato simbólico, tanto em termos

de linguagem quanto em termos de ação, habilitado por seus componentes, o que

possibilita identificar traços comuns ao ethos que caracteriza estes sujeitos coletivos,

os quais serão analisados posteriormente.

A experiência etnográfica foi elaborada a partir de uma reunião realizada a

26 de novembro de 2014 na Praça de Bolso do Ciclista, em Curitiba, que se deu sob

o nome de Assembleia dos Movimentos Sociais. Essa plenária, aberta ao público e

organizada por meio de uma rede social, reuniu diversas pessoas com o intuito de

deliberar acerca da construção de uma agenda para manifestações populares

na cidade.

2.1 A PRAÇA

Antes de descrever a assembleia propriamente dita, cabe contextualizar o

local onde ela foi realizada. A Praça de Bolso do Ciclista foi construída pela iniciativa

civil no centro de Curitiba, mais especificamente na Rua São Francisco, uma quadra

abaixo da Rua Riachuelo. Essas duas ruas foram recentemente revitalizadas1, uma

vez que integravam uma região degradada e eram identificadas como áreas de

1 O termo revitalizar, oriundo do jargão dos arquitetos e urbanistas, é de emprego frequente pela Prefeitura Municipal e já foi incorporado por largos segmentos da população. É possível afirmar que, com a intervenção, tanto Prefeitura quanto comerciantes da região pretendiam que a rua tivesse uma "cara nova", para melhorar a imagem desta zona degradada e estigmatizada, a fim de torná-la mais segura e comercialmente atrativa, e propiciar um aumento do fluxo de pessoas que por elas transitam.

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prostituição, tráfico e consumo de drogas, sendo algumas vezes caracterizadas

como a Cracolândia curitibana, em alusão à região do bairro da Luz, em São Paulo,

que se tornou conhecida nacionalmente, graças a várias reportagens veiculadas na

mídia, como o local com maior concentração de usuários de crack do Brasil. Com

essa revitalização, alguns bares e cafés se instalaram na Rua São Francisco, dando

nova vida à rua.2

FIGURA 1 - MAPA DA PRAÇA DE BOLSO DO CICLISTA

FONTE: Google Maps

2 Para mais informações, ver: FILENO (2014).

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A Praça mencionada acima resultou de uma iniciativa de pessoas ligadas ao

cicloativismo3, que procuraram construir um espaço útil numa área abandonada no

centro da cidade. Então, fizeram-se tratativas com as esferas competentes da Prefeitura

Municipal de Curitiba e a uma ONG para executar o projeto, conforme noticiado

na imprensa.4 A Praça ocupa uma esquina no centro da cidade e tem espaço

relativamente reduzido em comparação àquilo que se espera de uma praça em

moldes tradicionais. Ela conta, porém, com alguns bancos e bicicletários. A Praça

tornou-se local de exposições artísticas e eventos musicais, além de ser um ponto

de encontro para ciclistas. Pinturas, grafites e cartazes decoram a Praça. Apesar de

alguns desses cartazes conterem mensagens de outros movimentos, como coletivos

feministas – com manifestações em defesa da descriminalização do aborto, por

exemplo –, predominam os referentes a questões de mobilidade urbana.5

2.2 A ASSEMBLEIA

A assembleia ocorrida no dia 26 de novembro de 2014 havia sido divulgada

por meio de redes sociais e cartazes afixados na região central da cidade de

Curitiba. Dias antes, minha orientadora sugerira que aquela poderia ser uma boa

3 Movimento formado por ciclistas, que procura garantir os direitos dos usuários de bicicletas, já garantidos pelas leis do trânsito, mas a seu ver pouco reconhecidos, principalmente por parte dos automobilistas; e que também confere ênfase à mobilidade urbana, tema que por muito tempo foi pouco prestigiado pelo poder público e pelos planos diretores municipais. Além disso, esse movimento defende o uso da bicicleta como meio de transporte não poluente. Para maior compreensão das concepções defendidas pelos ativistas desse movimento, conferir o site http://www.cicloativismo.com/

4 Cf. CASTRO, Janaína. Praça de bolso do ciclista: um presente para Curitiba. #ACuritibaqueeuamo, 23 maio 2014. Disponível em: <http://redeglobo.globo.com/rpctv/a-curitiba-que-eu-amo/platb/ noticias/praca-de-bolso-do-ciclista-um-presente-para-curitiba/>. Acesso em: 04 nov. 2015.

5 Cabe aqui um relato interessante sobre as ideias que cercam essa praça. Ainda que pública, ela é vista por algumas pessoas ligadas ao cicloativismo como uma espécie de propriedade dos integrantes desse movimento, já que a criação desse logradouro foi uma conquista da mobilização específica desse movimento. Em setembro de 2014, pouco antes das eleições, houve no local um evento que ficou conhecido como Musicletada. Como o nome diz, o evento reunia música e discussões sobre mobilidade urbana, em especial da bicicleta como alternativa de transporte. Na época, foi-me relatada por um conhecido que esteve presente ao evento uma situação emblemática: uma das lideranças do movimento em questão era candidato a deputado federal pelo Partido Verde. Durante o evento, um candidato de outro partido, o PT, começou a distribuir seu material de campanha, e logo foi repreendido por pessoas ligadas ao cicloativismo, sob a alegação de que aquele sítio "era delas", e proibido de prosseguir sua propaganda eleitoral no local. O episódio mostra que, embora os movimentos sociais busquem o aprofundamento da democracia, não é raro que algumas ações sejam executadas sem deliberação coletiva.

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oportunidade para conhecer mais de perto o meu objeto de estudo. A assembleia

teve início com o discurso de um dos organizadores, em que explicava que a

iniciativa daquela reunião propunha uma contrarreação às diversas mobilizações

que se deram no país após a vitória da candidata Dilma Rousseff na eleição

presidencial. Essas mobilizações, ocorridas em algumas cidades do país, pediam o

impeachment da chefe do Poder Executivo e também um golpe militar.6 A disputa

acirrada pela presidência da República, com a vitória da presidenta Dilma Rousseff

com pouco mais de 51% dos votos sobre o candidato Aécio Neves, do PSDB,

escancarou a polarização política na qual o país se encontrava (e ainda se

encontra). As especulações, depois confirmadas, sobre a indicação da senadora

Katia Abreu7 para o Ministério da Agricultura acenderam o sinal de alerta em diversos

setores, inclusive em movimentos sociais que apoiaram a reeleição de Rousseff.

Some-se a isso o fato de, nas eleições para o Poder Legislativo, ter sido eleito um

Congresso Nacional cuja composição é considerada a mais conservadora em

décadas, na história recente do país.8

Portanto, segundo a fala da pessoa que se dispôs a presidir a reunião, cuja

filiação a algum movimento específico não me foi possível identificar, a assembleia

teria o propósito de mobilizar as forças populares e de esquerda na cidade de Curitiba

para combater a ascensão conservadora que se via nas ruas do Brasil, e também

para pressionar a presidenta reeleita, que estaria adotando a agenda derrotada nas

urnas. Por esse motivo, seriam necessárias mobilizações em defesa de uma série de

reformas, as quais atenderiam aos interesses populares: reformas política, agrária,

tributária, urbana; regulação da mídia; entre outras que a necessidade de assegurar a

governabilidade impediu que os governos do Partido dos Trabalhadores colocassem

efetivamente na agenda durante os quase doze anos que o partido vem ocupando o

Poder Executivo.

6 CORNELL,Oswaldo. Ato contra Dilma pede intervenção militar. Exame.com, 02 nov. 2014. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/ato-contra-dilma-pede-impeachment-e-intervencao-militar />. Acesso em: 04 nov. 2015.

7 Trata-se de figura com trajetória notoriamente vinculada ao agronegócio e a setores conservadores da política brasileira, que se posiciona, por exemplo, contra a demarcação de terras indígenas..

8 SOUZA, Nivaldo; CARAM, Bernardo. Congresso eleito é o mais conservador desde 1964, afirma DIAP. Estadão, 06 out. 2014. Disponível em: <http://política.estadao.com.br/noticias/eleicoes, congresso-eleito-e-o-mais-conservador-desde-1964-afirma-diap,1572528>. Acesso em: 04 nov. 2015.

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Em seguida, os demais participantes apresentaram-se, dizendo seus nomes

e a que organizações pertenciam. Além de estudantes, havia membros de vários

movimentos e organizações: movimento de moradia popular, de reforma urbana,

feminista, partidos políticos de esquerda, sindicatos tradicionais, etc. Posteriormente,

as pessoas habilitavam-se a expressar alguma de suas opiniões, da maneira mais

democrática possível.9 Nos discursos que se seguiram, cada uma das pessoas

ouvidas propôs um tópico a ser acrescentado à agenda do movimento e de suas

futuras manifestações, todos os quais aparentemente contaram com o consenso

geral: democratização da cidade, dos meios de comunicação, da moradia; defesa

dos direitos dos indígenas, das mulheres, das populações LGBT; combate aos abusos

policiais e ao extermínio da população negra nas periferias urbanas, dentre outras

propostas. Todas as falas eram seguidas de aplausos dos presentes. Outro lugar

comum nos pronunciamentos disse respeito ao caráter conservador da cidade de

Curitiba e à necessidade de mobilizações progressistas que demarcassem, no

tabuleiro político, o território daqueles que se situam à esquerda no espectro político.

Encerrados os discursos e o período mais harmônico do debate, chegou a

hora de planejar pragmaticamente as ações e o modus operandi que a organização

adotaria. Isso deu lugar a divergências. A primeira delas foi quanto ao horário de

uma marcha marcada para duas semanas depois da assembleia. Uma das pessoas

que assumiu o papel de liderança da reunião pertencia a um movimento de luta por

moradia e sugeriu que a manifestação ocorresse pela manhã, enquanto os órgãos

do Estado estivessem funcionando, para dar mais visibilidade ao protesto e também

pelo fato de que seria possível trazer dois ônibus de moradores de uma ocupação

que seu movimento coordenava. Outros argumentaram que essa seria uma má

ideia, levando em conta que a maioria das pessoas estaria trabalhando no período

matinal. Como foi marcada uma nova assembleia para a semana subsequente,

9 Isto pode ser ilustrado por duas intervenções inesperadas: a de um morador de rua, habitué da região boêmia do centro da cidade, que interrompeu a fala de uma pessoa para demonstrar sua gratidão por todos aqueles que ele conhecia na praça e que em algum momento de sua vida foram gentis ou lhe ofereceram ajuda; mais tarde um homem aparentemente embriagado se inscreveu e fez um discurso pouco conexo, com mensagens de amor, de caráter religioso. Em ambos os casos, a fala dessas pessoas – alheias ao propósito da reunião – foi recebida com bom humor, causando risos entre os presentes, que aguardaram pacientemente o fim das intervenções. Ou seja, o que seria dito por aqueles que se habilitavam a falar não passava por qualquer filtro prévio por parte dos organizadores a assembleia. Aparentemente, se alguém porventura tivesse opiniões completamente distintas daquelas defendidas pelas pessoas que já haviam se manifestado, poderia emiti-las tranquilamente.

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decidiu-se que a questão do horário seria discutida posteriormente. Em seguida,

travou-se um debate quanto ao nome que o movimento deveria receber. Após várias

sugestões, decidiu-se por Frente Popular10, uma vez que o vocábulo popular

sintetizaria todas as demandas que foram apresentadas, sem privilegiar nenhuma

pauta especificamente. Por fim, uma moça pediu que se reconsiderasse o nome da

manifestação, uma vez que a palavra marcha teria conotação militar, evocando

justamente uma das coisas contra as quais se estava mobilizando ali – no caso, o

pedido de alguns setores pela intervenção militar no Brasil. Sua sugestão foi aceita e

decidiu-se que na próxima assembleia seriam ouvidas sugestões mais criativas para

o nome da passeata. Combinado o próximo encontro, deu-se por encerrada a

reunião com todos cantando em coro: "Vai avançar, vai avançar a Frente Popular",

seguido por aplausos.

2.3 MANIFESTAÇÃO DA FRENTE POPULAR

Duas semanas após o primeiro encontro, no dia 10 de dezembro de 2014,

ocorreu a manifestação de protesto dos movimentos sociais que haviam se

reunido anteriormente.

O evento havia sido marcado para as onze horas da manhã. Cheguei

pontualmente ao local combinado para a concentração dos manifestantes – as

escadarias da UFPR, no centro de Curitiba –, mas encontrei pouco mais de uma

dezena de pessoas, talvez menos do que na assembleia realizada dias antes. Na

assembleia, ainda que não se houvesse estipulado um número mínimo de participantes

para que a manifestação ocorresse, pediu-se que todos os presentes trouxessem

mais alguns amigos, de modo a aumentar o grupo. À medida que o tempo transcorria,

outras pessoas começavam a chegar, algumas com cartazes ou camisetas que

10 A expressão Frente Popular remonta à década de 1930, na Europa, quando partidos comunistas, então refratários a alianças, optaram por se aliar a partidos socialistas e outras organizações de esquerda com o intuito de se oporem ao fascismo. Ao longo do século XX, várias frentes surgiram na Europa, assim como em outros continentes, com a finalidade de aglutinar partidos/setores da esquerda em face de determinadas conjunturas políticas. Para mais informações, cf. BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1986.

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identificavam o movimento ao qual pertenciam – estudantes, feministas, etc.11 Após

uns quinze ou vinte minutos, chegaram, entoando cantos que era possível escutar

desde longe, os dois ônibus com integrantes de uma ocupação em Curitiba, que

haviam sido prometidos pelos líderes do Movimento Popular por Moradia (MPM).

"Uniformizados" de vermelho, vestiam camisetas e portavam bandeiras vermelhas

com o logotipo do Movimento, em que as letras m têm o formato de casas. Uniram-

se às demais pessoas na escadaria, onde houve uma série de discursos. A exemplo

do que ocorrera na primeira reunião que presenciei, pessoas ligadas a cada um dos

movimentos discursavam num microfone, explicando a importância da reforma

específica que defendiam (reforma urbana, dos meios de comunicação, acesso à

moradia, direitos das mulheres, etc.) e, em seguida, a necessidade da integração

das lutas por diferentes reformas – ou, para usar a expressão empregada por eles,

pelas reformas estruturantes necessárias.

Após uma série de discursos e fotografias, iniciou-se a marcha – ou

caminhada – pela Rua XV de Novembro, palco histórico de manifestações na capital

paranaense. Os manifestantes continuavam fazendo discursos ao microfone e puxando

cantos e coros, os quais eram acompanhados por percussão trazida pelo grupo/banda

feminista Vadiô12, enquanto outros estudantes distribuíam um volante por meio do

qual eram apresentados aos transeuntes os objetivos da manifestação. Assinado

pela Frente Popular Curitiba, o panfleto continha o seguinte texto:

Nas últimas semanas, a elite do país tem ido às ruas para pregar o ódio e a intolerância contra a juventude e os trabalhadores. Os ricos são contra as reformas que garantem a redução das desigualdades sociais e liberdade de expressão. Nós estamos do outro lado: a favor da reforma política, reforma agrária, reforma urbana, reforma tributária, reforma do judiciário e dos meios de comunicação. Agora é o povo quem vai às ruas para defender seus direitos.13

11 Entre os movimentos presentes estavam os seguintes: Movimento Popular por Moradia (MPM), Frente Paranaense pelo Direito à Comunicação e à Liberdade de Expressão (FRENTEX), Marcha das Mulheres (MMM), Levante Popular da Juventude, Fórum Popular de Mulheres, Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Paraná (SINDIJUS), Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (CEFURIA). Estavam igualmente presentes representantes de partidos políticos de esquerda e diretórios de estudantes.

12 Inicialmente formado por estudantes de direito da UFPR, esse grupo procura manifestar-se musicalmente em prol de causas femininas, sobretudo.

13 Panfleto sem indicação de autoria.

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Ainda que o texto e algumas falas ao microfone procurassem dar mais

objetividade às reinvindicações do coletivo (as mesmas da assembleia: reformas

urbanas, política, agrária, etc.), os gritos de guerra/músicas eram algumas vezes

relativamente genéricos: "O povo na rua, elite, a culpa é sua!"; "Lutar, lutar pelo

poder popular!"; "O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!". Posteriormente, ao

consultar a página do movimento no Facebook, chamou-me a atenção o fato ali

exposto de que, por mais que a manifestação houvesse ocorrido em pleno horário de

almoço, na rua mais movimentada da cidade, com batuques e megafones, não produziu

qualquer repercussão na mídia tradicional. Apenas sites e blogs independentes

noticiaram o evento.

A manifestação seguiu até a Praça General Osório, aonde se profeririam os

discursos finais. O único fato inesperado ocorreu quando a manifestação passou em

frente a uma unidade móvel da Polícia Militar, que estava estacionada ao lado do

Bondinho da Rua XV. Dois jovens que acompanhavam a passeata na retaguarda

estavam encapuzados à Black Bloc14, e acabaram sendo abordados pela polícia.

Como a manifestação já se afastava, não acompanhei o desfecho da situação, mas

aparentemente os dois rapazes não seguiram adiante com o resto dos manifestantes.

Ao fim, formou-se uma roda e novamente liberou-se o acesso ao microfone

aos interessados em defender a validade de suas demandas. As últimas falas foram

de algumas pessoas que se apresentaram de alguma maneira como lideranças do

movimento, as quais ressaltaram a importância desse primeiro evento e pediram que

as pessoas presentes mantivessem contato via internet/Facebook para que, no ano

seguinte (2015), outros atos como aquele fossem realizados.

Ao todo, o trajeto durou em torno de uma hora e meia, levando-se em conta os

discursos feitos ao final, na Praça General Osório. Durante a caminhada, as pessoas

mantinham-se próximas dos que pertenciam ao seu próprio movimento, enquanto os os

ativistas dos diversos movimentos presentes revezavam-se na utilização do microfone

e da caixa de som. No entanto, os integrantes do MPM, principalmente suas lideranças,

14 Ativistas que utilizam táticas de inspiração anarquista, os Black Blocs surgiram nos anos 80, na Alemanha, e se notabilizaram mais tarde, nos anos 90, nos EUA. No Brasil, ficaram conhecidos após as manifestações de 2013. Distinguem-se pelo uso de máscaras ou capuzes pretos, que preservam o anonimato dos manifestantes e protegem-nos de eventuais intervenções da polícia; caracterizam-se ainda por ataques a locais que simbolizem marcos capitalistas (lojas e bancos) ou estatais/repressivos. Poderá mostrar-se útil para este tópico o seguinte veículo de divulgação científica: ZÚQUETE, João Pedro. Por que ser um black bloc? Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/por-que-ser-um-black-bloc>. Acesso em: 04 nov 2015.

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eram os que demonstravam mais intimidade com o processo de gerir uma manifestação

e proferiam os gritos e discursos mais objetivos, procurando de forma sintética

esclarecer o motivo da manifestação e informar quem eram os participantes.

Havia, dentre os passantes, pessoas que dispensavam alguma atenção à

passeata, parando e tentando ouvi-la para compreender seus objetivos. Outros

pedestres, porém, demonstravam claro descontentamento, vendo os manifestantes

como "amigos da Dilma", "gente do PT", "defensores dos ladrões", entre outras

expressões ouvidas. Vale ressaltar que essas críticas aparentemente se deviam à

percepção que tais pessoas têm da gestão petista como corrupta, sobretudo a partir

do episódio conhecido como Mensalão, em 2005, quando se fizeram denúncias de

que integrantes do governo pagavam mensalmente uma espécie de propina para

membros da base aliada, as quais resultaram na condenação, pela justiça, de vários

integrantes do partido. Como a isso vieram se somar sistemáticas denúncias feitas

pelos meios de comunicação, explica-se por que motivo os participantes da marcha

foram vistos como endossadores da corrupção.

No ano de 2015 não se registraram maiores movimentações desse coletivo

de movimentos sociais. Em seu perfil numa rede social, no entanto, a Frente Popular

seguiu divulgando agendas e pautas, como, por exemplo, manifestações contra a

redução da maioridade penal, contra a intolerância religiosa e em favor dos trabalhadores

sem teto.15

2.4 TEMPO E ESPAÇO DA SUBJETIVAÇÃO

Em linhas gerais, pode-se dizer que a diferença entre o Ato e a Assembleia

dos Movimentos realizada semanas antes foi o caráter móvel do primeiro, já que as

falas e a dinâmica dos discursos e de quem discursava foram praticamente as mesmas.

Além da incorporação de moradores de uma área ocupada, que engrossaram a

manifestação e deram-lhe mais visibilidade, os discursos feitos ao longo da caminhada

puderam atingir pessoas alheias aos movimentos, e que não estavam cientes deste.

Alcançou-se, assim, o objetivo básico da manifestação.

15 A página do grupo pode ser acessada pelo link: <https://www.facebook.com/frentepopularcuritiba>. Acesso em: 04 nov. 2015.

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Evidentemente, essa comunhão de diversos movimentos sociais em torno

da manifestação deriva inicialmente de uma questão situacional, fruto da conjuntura

política vigente no país. Uma das características dos movimentos sociais é a sua

fragmentação interna, a divergência de opiniões, ou seja, a ideia de que não se trata

de um todo homogêneo, livre de dissensos (cf., dentre outros, AQUINO, 2008).

Levando isso em consideração, fica evidente a predisposição dos participantes da

Frente Popular para atingir um consenso nas pautas apresentadas na agenda e para

dotar esse movimento de maior coerência.

Apesar da multiplicidade de atores que compuseram a organização da Frente,

torna-se óbvio que para alguns deles essa é uma luta permanente. Tal é o caso das

pessoas que militam pelo direito à moradia e das mulheres que se engajaram na

busca pela ampliação de seus direitos e pelo seu reconhecimento, para citar dois

exemplos. Indivíduos que passaram a reconhecer que compartilham características

com outras pessoas e que sua união em torno de movimentos sociais tornaria

possível converter em impulso para reivindicação política aquilo que, num primeiro

momento, fazia-os mais vulneráveis individualmente. A vivência de experiências

cotidianas, tanto de afronta moral e ofensa à dignidade quanto de desrespeito aos

seus direitos enquanto cidadãos, possibilita a aglutinação desses indivíduos com a

finalidade de problematizar suas respectivas questões no âmbito político. Portanto, as

reuniões e manifestações funcionam como espaço onde as interações consolidam

o aspecto engajador dos movimentos, quando a palavra, a partilha e o convívio

pavimentam a adesão ao grupo. E é essa interação social que possibilita a emergência

do processo de subjetivação.

É oportuno um parêntese: seria inapropriado supor a existência de uma cartilha

com o passo-a-passo desses processos de subjetivação dos indivíduos. Historicamente,

os movimentos sociais tendem a variar suas formas de atuar e se relacionar com a

esfera pública em função de uma série de fatores: conjunturas políticas locais, busca

por conquista ou manutenção de direitos, etc. Não sendo eles estanques, também

não o são os processos que culminam com a subjetivação dos indivíduos que se

tornarão sujeitos coletivos.

Como será visto mais adiante, no exame da literatura, ao longo dos anos

noções importantes como luta, reconhecimento, cidadania e busca por direitos estiveram

em permanente reformulação, renegociação, tanto endógena como exogenamente.

Consequentemente, o mesmo ocorre com as análises desses fenômenos: assim

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como os movimentos acabam por reinventar-se, as análises acerca deles também se

reciclam ao longo do tempo. A partir da perspectiva proposta pelo sociólogo francês

Alain Touraine (1994), nessa narrativa pode-se ver esboçado um modo específico de

se compreender o processo de subjetivação dos indivíduos: eles ultrapassariam a

racionalidade instrumental esperada pelo Estado e pelo mercado e iriam além das

suas condições de trabalhadores que deveriam se deixar incorporar pelo sistema de

forma acrítica. Essa manifestação multifacetada incitaria à democratização, tanto de

aspectos do universo instrumental (leis, direitos, etc.) quanto de facetas do universo

simbólico (questões de gênero e étnico-raciais, por exemplo).

Com certo esgotamento dos principais paradigmas canônicos da sociologia

e sua limitação para analisar sociedades que se tornavam cada vez mais complexas,

Touraine (1994) procurou empreender uma nova interpretação das sociedades

modernas, buscando ir além das teorias dos autores mais clássicos, que já não

davam conta de explicar a realidade que se apresentava. Segundo ele, a modernidade

se caracterizaria por uma ruptura, tanto com as sociedades tradicionais quanto com

as industriais. Se as sociedades tradicionais eram dominadas por uma forma religiosa e

metafísica de interpretar o mundo, caindo numa falsa consciência, o triunfo da razão

fracassou na medida em que ela foi instrumentalizada pelo poder e pelas instituições

tecnocráticas. Após o advento do Iluminismo, a sociedade tomou os rumos da

industrialização. Hoje viveríamos numa sociedade pós-industrial, que deixou de ser

uma sociedade de produção para se tornar uma sociedade de consumo. Os

indivíduos – entendidos como cidadãos com direitos jurídicos, políticos, universais,

etc. – viveriam assimilando o que o Estado e as instituições burocráticas e tecnocráticas

esperam deles e consumindo o que o mercado lhes oferece.

De acordo com o sociólogo, caberia ao indivíduo passar a se perceber como

ator de si mesmo e tornar-se sujeito. Esse processo, que ele denomina subjetivação,

consiste na "penetração do Sujeito no indivíduo e, portanto, a transformação –

parcial – do indivíduo em Sujeito" (TOURAINE, 1994, p.232). A subjetivação se

colocaria em oposição à ideia de racionalização: enquanto a primeira deveria ser

operada pelos dominados, a segunda seria utilizada pelos dirigentes.

Esse sujeito passaria a ser produtor de suas experiências e não mais um

mero consumidor, conformando-se com um papel social predeterminado. Por meio

de sua criatividade, ele superaria a racionalidade instrumental imposta pelas instituições

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17

e pelo mercado.16 Essa criatividade tem, portanto, caráter libertador e emancipatório.

Para sublinhar a diferença entre o indivíduo e o ator/sujeito, poderia dizer-se que o

primeiro se limita a cumprir resignadamente o papel social dele esperado, enquanto

o segundo o transcende, escapando aos mecanismos de dominação social. O

sujeito cria um novo estilo de vida, marcado por pensamento autônomo e postura

crítica em relação à esfera do consumo.17

Além de romper com o individualismo, esse ator disporia, ainda, como

grande trunfo a possibilidade de catalisar a transformação em sujeito coletivo, que teria

sua melhor tradução na forma dos movimentos sociais. Para o sociólogo francês,

nas sociedades pós-industriais já não há mais sentido em tratar o proletariado como

o ator social por excelência. O autor defende que o eixo dos movimentos se

deslocou do social para o cultural, de modo que deveriam assumir maior protagonismo

aqueles ligados a questões de gênero e etnia, para citar dois exemplos de destaque

no período estudado por Touraine, as décadas de 1960-1970. Menos rígidos e mais

coerentes, capazes de se reinventar, esses sujeitos, enquanto integrantes de

movimentos sociais, têm condições de defender reivindicações mais plurais e menos

unívocas, criando diálogos entre atores que por muito tempo não tiveram suas vozes

ouvidas pelas instituições e pelos meios de comunicação.

O deslocamento de eixo significa mudança no contexto da subjetivação. Ana

Maria Doimo (1995) faz breve síntese de como as ciências sociais, tanto no mundo

como no Brasil, abordaram os novos movimentos sociais desde Touraine, que foi

seu primeiro ou mais celebre teórico. Ele detectava nos novos movimentos surgidos

nos anos de 1960/1970 a substituição da matriz econômica, que até então caracterizava

a luta dos movimentos operários, pela matriz cultural, representada por movimentos

negros, feministas, de gênero, etc. Esses movimentos se caracterizariam por um

16 Segundo Max Weber, a sociedade moderna caracteriza-se por sua capacidade de racionalização, pelo seu desencantamento, que a afasta tanto das explicações mágicas do mundo quanto das sociedades tradicionais (WEBER, 2000, p.139-147). Sob esse ponto de vista, a racionalização da economia, que se realiza pela formação da empresa capitalista, e a racionalização da política, pelo desenvolvimento das instituições liberais e democráticas, constituem os elementos essenciais dessa sociedade.

17 "'Ser sujeito' significa ter vontade de ser ator, isto é, atuar e modificar seu meio social mais do que ser determinado por ele. Portanto, a liberdade do sujeito será construída em sua relação com o outro, na alteridade, mas não na subjugação, não na integração sistêmica acrítica, mas na busca por reconhecimento na sua universalidade e na sua particularidade." (GADEA; SCHERER-WARREN, 2005, p.42).

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afastamento do Estado, acompanhado de um ceticismo quanto à eficácia deste para

atender suas demandas, o que para o autor (TOURAINE apud DOIMO, 1995, p 41)

não seria de todo benéfico, uma vez que as instituições são necessárias para se atingir

determinadas mudanças. Cabe às organizações racionais assimilar as demandas

oriundas dos diversos movimentos sociais para que se atinja um denominador

comum, o qual caracterizaria o "genuíno movimento social: aquele que capta as

tendências centrais da cultura e coloca-se na luta face a face com a classe dirigente"

(DOIMO, 1995, p.42). Por essa razão, muitos anos mais tarde, em 1989, Touraine

irá olhar com desconfiança e pouco otimismo para os movimentos sociais surgidos

no Brasil nos anos de 1970 – olhar compartilhando, de certa forma, por Ruth

Cardoso, como se verá mais adiante –, pois não os considera capazes de se tornarem

sujeitos per se, dependendo fundamentalmente das esferas institucionalizadas

e partidárias.

Segundo Doimo (1995, p.43), o deslocamento do foco central do econômico

para o cultural nesses movimentos foi visto de forma positiva por Tilman Evers, que

detectou nessa mudança uma possibilidade não de transformação estritamente

política, mas sim sociocultural.18 No entanto, a autora expõe sua dúvida sobre a

adequação da categoria "identidade cultural" para habilitar-se na esfera política em

busca de solucionar ou minimizar problemas enfrentados dentro da sociedade

capitalista. Essa busca por um distanciamento da política seria igualmente perigosa,

uma vez que passaram a surgir movimentos xenófobos, intolerantes e outros, que se

caracterizavam por seu desprezo pela política institucional. Embora empunhando

bandeiras que nada têm de progressistas (ao contrário da maior parte dos movimentos

sociais), esses movimentos se configuram, sim, como movimentos sociais.

Ao analisar a polarização do debate acerca dos movimentos sociais no Brasil,

Doimo (1995) discorre sobre algumas ideias que seriam posteriormente apresentadas

por Szwako (2009) no seu artigo sobre o CENEDIC, discutidas mais adiante. A autora

conclui de maneira reticente, sublinhando as virtudes que estes movimentos podem

apresentar para a ampliação de direitos, da cidadania e até da própria política/

18 O aspecto sociocultural dos movimentos apontado por Evers não representa uma exclusão do político. Ao contrário, tais movimentos têm potencial para irem além do político, englobando-o. Mais adiante será possível perceber que esta interpretação do caráter cultural dos movimentos não seria uma exclusividade de Tilman Evers.

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democracia, bem como os perigos de uma ameaça à política, quando articulada por

grupos mais afinados com a intolerância e a violência.

Já se pode perceber que a interpretação do processo de ativação política do

indivíduo no quadro dos movimentos sociais não está desligada da interpretação que

se faz dos próprios movimentos. O tema, como mostra Doimo (1995), é controverso,

mas relevante. Assim, a proposta de exame de etnografias deve ter por ponto de

partida o debate sobre os movimentos sociais no Brasil.

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3 MOVIMENTOS SOCIAIS: CONSTRUINDO UM SUJEITO COMO OBJETO DE PESQUISA

Nesta seção se seguirá uma linha de interpretação dos movimentos sociais

e dos processos de ativação de indivíduos nos atores sociais (subjetivação) que

neles se desenvolvem. Este exercício se realizará com base na leitura de textos

emblemáticos de três antropólogas da Universidade de São Paulo, que ofereceram

importantes contribuições para o debate acadêmico brasileiro em torno do tema, a

partir dos anos 70; a saber: Eunice Durham, Ruth Cardoso e Teresa Caldeira. Os

aportes das duas primeiras serão analisados a partir de artigos nos quais as autoras

apresentam um balanço das perspectivas das Ciências Sociais quanto aos movimentos

sociais e buscam sistematizar um programa de trabalho que envolva esse objeto de

estudo, ao passo que da terceira se recorrerá a uma etnografia realizada em bairro

da periferia de São Paulo.

Durham e Cardoso, seguidas por Caldeira, contribuíram para o estabelecimento

de uma antropologia urbana que dialogava com a antropologia política e orientaram

diversos trabalhos nesse campo. É certo que não se trata de uma exclusividade do

grupo uspiano; Alba Zaluar fez trabalhos e empreendeu esforços similares no Rio de

Janeiro, para citar só um exemplo. No entanto, não é possível fazer um levantamento

exaustivo sobre o tema em função dos limites deste exercício monográfico.

3.1 MOVIMENTOS SOCIAIS: A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA

Da produção de Eunice Durham, é oportuno examinar o artigo Movimentos

sociais: a construção da cidadania, publicado em 1984, num quadro de pesquisas

conduzidas na cidade de São Paulo, por ela, Ruth Cardoso e seus alunos de pós-

graduação, já no fim do regime militar, quando se preparava a abertura democrática.

Nesse trabalho, Durham (2004, p. 271-294) faz uma distinção quanto à abordagem

dos movimentos sociais pela sociologia brasileira: pelo viés da sociologia política,

receberiam um olhar externo, dando atenção à sua interface com o Estado e às suas

características de contestação política; já a antropologia lançaria um olhar interno,

procurando interpretar de dentro como esse movimento era composto.

Esse olhar de dentro deveria procurar compreender o que diferenciava os novos

movimentos sociais dos tradicionais sindicatos, assim como discutir a interpretação

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de que o proletariado seria o sujeito revolucionário por excelência. Ainda que boa

parte dos movimentos tivesse uma origem nas camadas de menor renda, isso não

homogeneizava as pessoas que os integravam. Portanto, os estudos acerca desses

movimentos necessitariam avançar para além das interpretações consagradas, as

quais limitariam seu exame do fenômeno ao prisma da classe econômica.

Durham (2004) defenderá que o que une indivíduos que portam características

diferentes entre si será a conscientização das suas carências em comum, o que os

levará a fazer reivindicações coletivas. Aí residiria o embrião do processo de subjetivação

desses indivíduos, que, ao se engajarem nos movimentos sociais, passariam a se

ver como sujeitos também na esfera pública, e não só na sua vida privada. O

processo tornaria essa experiência um "enriquecimento pessoal, uma intensificação

de sua qualidade de sujeitos" (DURHAM, 2004, p.290). O giro do caráter privado para o

público será fundamental, pois torna públicas as reivindicações perante o Estado e a

sociedade. O diálogo com o Estado, mesmo que se dê mediante respostas negativas

às suas demandas, já seria em si uma vitória, pois significaria algum reconhecimento

dos movimentos. Nessa negociação, os meios de comunicação seriam catalisadores

e legitimadores do processo de inserção desses movimentos na esfera pública.

Segundo Durham (2004), duas categorias-chave nesse processo seriam direitos

e cidadania, pertencendo essas categorias nativas mais aos antropólogos do que

propriamente à população estudada. A reivindicação de uma solução para certa

carência – esta uma expressão analítica, e não nativa – e seu posterior reconhecimento,

são mediados pelos direitos. Assim, o direito das mulheres à igualdade ou o dos

moradores de periferia ao saneamento, uma vez atendidos, irão dotar ou reabilitar a

condição de cidadãos aos indivíduos que se viam privados de sua cidadania. A

"reconquista" de direitos seria uma forma de prestar reconhecimento a indivíduos

que, em algum momento, tiveram sua dignidade desrespeitada no âmbito da vida

social. Para Durham, nesse processo ocorre a procura de uma "construção coletiva

de direitos" e também da reivindicação de "uma nova cidadania" perante o Estado, a

fim de torná-los legítimos (DURHAM, 2004, p.292). A questão da relação dos

movimentos com o Estado será aprofundada mais adiante, no quadro da discussão

proposta por Ruth Cardoso.

Durham (2004) chamará ainda a atenção para duas formas possíveis de

estruturação dos movimentos: uma "formal", hierarquizada e burocratizada, de que

são exemplos os partidos e instituições (às quais os movimentos costumam se

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opor); e outra, "comunitária": horizontal, igualitária, que demanda a participação dos

seus membros. Os movimentos organizados de acordo com a segunda forma seriam

mais bem vistos pela autora, por serem dotados de características mais democráticas,

participativas e inclusivas, a exemplo do que o movimento procura na esfera pública.

No entanto, esse modelo estaria limitado aos movimentos com número reduzido de

participantes, uma vez que sua expansão, cedo ou tarde, iria tornar inevitável a

burocratização e a hierarquização do grupo.

Portanto, os movimentos sociais teriam um caráter ambivalente: por um

lado, a face que se apresenta à esfera pública procurando igualdade, cidadania e

demonstrando a coerência interna do movimento; por outro, seu aspecto interno, que

pode ser marcado por disputas e relações hierarquizadas e até mesmo autoritárias

por parte de suas lideranças, como ocorre no caso dos movimentos formais. De

alguma forma, seria necessária a ampliação do diálogo e da democracia dentro dos

próprios movimentos para que fosse possível criar demandas mais abrangentes para

serem levadas à esfera pública. Sendo eles de caráter comunitário e democrático,

com direito amplo a vocalização, esses movimentos estariam mais aptos a encorajar

novos participantes a trazer seus pontos de vista. Essa horizontalidade dos movimentos

comunitários pode atuar no sentido de possibilitar a produção de subjetividades em

indivíduos ainda não familiarizados com o movimento social.

3.2 MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS E A TRAJETÓRIA DOS MOVIMENTOS

SOCIAIS

Ruth Cardoso aqui comparece com dois trabalhos. O primeiro, datado de 1988,

é especialmente importante para este debate: Movimentos sociais urbanos: balanço

crítico. Como o próprio título antecipa, a autora faz nele um apanhado daquilo que se

produziu desde os anos de 1960, tanto no quadro da teoria sociológica mainstream,

como no âmbito do debate brasileiro. Grande parte das ideias aqui retomadas já se

encontrava presente nesse texto: o potencial transformador, a emergência de atores

excluídos, política para além dos partidos, desinstitucionalização, alargamento da

democracia, etc. Ainda que demonstre compreender o otimismo com que esses

movimentos foram incorporados no debate acadêmico, Ruth Cardoso mostrará que

vê limites nas suas possibilidades de ação. Embora exerçam alguma influência em

determinadas agendas políticas e dotem de coerência sujeitos coletivos que

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compartilham alguma experiência de injustiça – fatos vistos pela autora como muito

positivos e saudáveis –, esses movimentos não teriam força suficiente para alterar

substancialmente o status quo político. Essa alteração teria de necessariamente

passar pelos partidos políticos, cujas lideranças nem sempre vocalizam demandas

de suas bases sociais. Ainda que pudessem vir a se tornar mais influentes, a

margem de ressonância desses movimentos estaria por ora restrita à sociedade,

dificilmente vindo a ter ressonância objetiva na arena política.

O segundo trabalho é o artigo A trajetória dos movimentos sociais, publicado

em 1994, já no quadro de redemocratização do País. Nele, a antropóloga irá defender a

existência de dois momentos na interpretação acadêmica brasileira desse fenômeno:

o primeiro se daria entre as décadas de 1970-1980 e se caracterizaria por uma

espécie de deslumbramento e de otimismo exacerbado em relação aos movimentos

surgidos no período, que procuravam uma forma de fazer política "fora da política".

O segundo seria uma forma de "desilusão" que ocorreu a partir dos anos de 1980,

com a reta final da ditadura e o maior envolvimento dos movimentos sociais com as

instituições formais e os partidos políticos. A autora, então, buscará compreender as

razões que conduziram as interpretações acadêmicas a esses dois momentos

antagônicos, por assim dizer.

No primeiro período, que será chamado da "emergência heroica dos

movimentos", estes aparecem como uma nova forma espontânea e pura de se fazer

reivindicações políticas dentro do contexto dos anos de 1970 e do regime militar.

Esses movimentos caracterizavam-se por refutar as formas tradicionais de se fazer

política e eram enxergados como "anti-Estado, antipartido e antissistema político"

(CARDOSO, 1994, p.82). Com a transição da ditadura para a democracia, os

movimentos começam a relacionar-se com o Estado, o que passou a ser visto de

maneira negativa por intelectuais e ativistas, como cooptação. De certo modo, a

abertura do Estado à sociedade acabou absorvendo demandas oriundas também

dos movimentos sociais.

A autora se pergunta o motivo pelo qual, num primeiro momento, houve uma

leitura tão otimista e, posteriormente, outra excessivamente pessimista, ambas

possivelmente equivocadas na intensidade de suas interpretações. Tomando de

empréstimo as terminologias de Eunice Durham (2004), poderíamos dizer que

Cardoso atribuiria à primeira onda interpretativa, a mais otimista, um olhar "de fora" –

mais ligado à sociologia política. Essa interpretação se caracterizaria por ser pouco

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crítica e, ao não manter o devido distanciamento em relação aos pesquisados, isto é,

aos movimentos, comprar o discurso destes. Houvesse ocorrido, pelo menos

paralelamente, uma abordagem "de dentro" – no caso, a antropológica – seria

possível compreender a heterogeneidade interna dos movimentos, a variedade de

pessoas que os compunham e suas cisões internas. Ou até mesmo, como a própria

autora exemplifica, a presença de agentes políticos dentro dos movimentos – assim

como Teresa Caldeira (1984) detectara nos anos de 1970, em sua etnografia,

mostrando a existência de núcleos do Partido dos Trabalhadores nas associações

do bairro estudado, além do fato de que seus moradores mantinham, historicamente,

uma coerência eleitoral muito clara em relação aos candidatos que apoiavam.

Portanto, acusar os movimentos de haverem sido "cooptados" durante a

abertura democrática não seria a mais adequada das interpretações. Os contextos

políticos mudaram e seria pouco provável que tanto Estado como movimentos sociais

permanecessem impermeáveis um ao outro. As demandas dos movimentos frente

ao Estado e as negociações correspondentes fizeram com que esses polos, tidos

como opostos nos anos de 1970, se interpenetrassem a partir dos de 1980.

No caso da violência contra as mulheres dentro de casa, como cita a autora, se

havia uma demanda para levar a questão ao debate público, existiria em contrapartida

uma politização do espaço privado.19 E este é um elemento constituinte da esfera

pública, a interface entre sociedade civil e Estado: a partir das demandas da sociedade

civil, o Estado age ou não de acordo com tais demandas e gera novos posicionamentos

por parte da sociedade civil.

Em suma, o novo contexto político que se estabeleceu nos anos de 1980

abriu canais de diálogo entre o Estado e os movimentos, os quais visavam a atender

demandas que até então não eram ouvidas. E havia casos de movimentos similares que

competiam entre si, o que impedia que as demandas fossem atendidas integralmente

sem que houvesse qualquer negociação entre Estado e movimentos.

19 É ilustrativo o exemplo paradoxal oferecido por Teresa Caldeira (1984), com o relato do caso de mulheres que se uniram para exigir creches para seus filhos no bairro em que residiam. Essas mulheres não se preocupavam com a política, de maneira estrita, nem viam nesse seu gesto um ato político: estavam apenas preocupadas em ter um local aonde deixar suas crianças e assim ter maior dedicação ao lar. No entanto, mesmo num gesto visando uma racionalidade tradicional, é possível encontrar uma inter-relação das esferas privada e pública, visando a reivindicação de um direito.

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Segundo Ruth Cardoso (1994), mais importante do que a suposta pureza

dos movimentos sociais na década de 1970 e sua suposta mácula pelo contato com

a política e o Estado, o que houve de realmente significativo nesta transição foi a

criação de canais entre as esferas pública e privada, o que veio a conferir efetivamente

a cidadania a indivíduos que dela careciam. Esses canais de diálogo que se

estabeleceram e as conquistas práticas deles advindas poderão impulsionar novos

projetos de subjetivação, instigando indivíduos a se mobilizar enquanto sujeitos políticos

na luta por seus direitos. Nesse sentido, os movimentos sociais foram imperativos

para a reivindicação de direitos coletivos. No entanto, o acesso aos direitos e a

expansão da cidadania só ocorrem na interface entre Estado e sociedade civil, entre

esfera pública e esfera privada. Daí resultaria a efetiva importância dos movimentos:

mais pelos resultados que eles possibilitam alcançar do que pelo seu distanciamento

ou não da política tradicional.

Se Cardoso (1994) qualifica as questões da cidadania e direitos como objetivos,

é interessante procurar em etnografias atuais acerca dos movimentos sociais a

persistência ou não do caráter comunitário, para o qual Durham (2004) chamou a

atenção, no sentido de observar elementos que fortalecem o processo de subjetivação

dos indivíduos a partir dos movimentos.

3.3 A POLÍTICA DOS OUTROS

De Teresa Caldeira escolheu-se o texto intitulado A política dos outros (1984).

Nessa obra, Caldeira irá apresentar a realidade cotidiana dos moradores de um

bairro periférico de São Paulo no fim dos anos de 1970 e início dos de 1980. A partir

de conversas e entrevistas com eles, traçará um panorama de como vivem – suas

experiências diárias de longas jornadas de trabalho e grandes deslocamentos até

seus empregos – e como lutam para sobreviver em meio às adversidades de um

bairro periférico e às precariedades constitutivas de uma comunidade em tal situação.

Mais do que simplesmente descrever o dia a dia das pessoas, essa pesquisa procura

apresentar como elas enxergam a si próprias, aos seus ambientes de trabalho e à

política, e de que maneira esta afeta suas vidas.

Apesar de serem unidos por aquilo que lhes falta (dinheiro, infraestrutura

básica, acesso à saúde e educação de qualidade, etc.), a vida dos moradores, assim

como seu valores, projetos e interpretações da realidade, são diversos e heterogêneos,

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assim como as formas de se diferenciarem de seus vizinhos. Assim como Maria

Celia Paoli (1987) fez no seu texto Os trabalhadores urbanos na fala dos outros a

partir de uma perspectiva histórico-sociológica, Caldeira (1984) pretende compreender

a vida dos trabalhadores da periferia não a partir daquilo que lhes falta, mas sim de

como realmente são. Sua ferramenta será a etnografia, que enriquece a análise não só

em detalhes, como se vistos por uma lupa, mas também complexifica a relação destes

com a realidade social e política, através da exposição dos discursos dos moradores:

conflitivos entre si, contraditórios individualmente, mas nem por isso permanentemente

incoerentes. É através de suas experiências vivenciadas, atravessando e interagindo

com diferentes contextos do cenário social, que os indivíduos vão formando suas

visões de mundo. Sendo suas vivências tão díspares, não se pode acusá-los de

serem incoerentes, de mudarem de opinião e de não obedecerem a um pensamento

mais sistematizado. O método etnográfico é capaz de problematizar os discursos e

ações daqueles que se pretende interpretar como uma categoria dada, chamando a

atenção para suas contradições e para a sua heterogeneidade, de uma maneira que

dificilmente pode ser apreendida sem o seu emprego.

Isso fica mais explícito na etnografia de Teresa Caldeira (1984), para quem

o denominador comum dos integrantes são suas carências, ao mesmo tempo em

que é habilitado amplo aparato simbólico na busca pela distinção interna dos moradores

de um bairro periférico. Por um lado, os moradores de periferia compartilham a

experiência das dificuldades cotidianas com transporte público, problemas de

saneamento, escassez de serviços públicos, etc. Essa vivência comum gera uma

empatia que dota de significado suas experiências enquanto coletivos de sujeitos.

Por outro lado, há um profundo apelo pela distinção. Se eles se veem como pobres em

relação aos ricos, percebem que entre si há diferentes condições. A falta de emprego

formal, de família, de higiene ou o fato de morar na rua, por exemplo, sempre

caracterizariam aqueles ainda mais pobres, de quem os não-tão-pobres procuram

se diferenciar.

Na fala dos moradores de periferia que constituíram o objeto da análise de

Caldeira (1984), observa-se que o vocábulo direito adquire caráter polissêmico. O

direito pode ser interpretado em três contextos diferentes: o primeiro, quando dito no

singular, refere-se aos direitos em termos políticos e civis (que estariam de certa

forma suspensos em função do regime militar); o segundo, dito no plural, remete aos

direitos trabalhistas e previdenciários, que lhes haviam sido "generosamente doados"

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por Getúlio Vargas, por quem guardam grande estima. Por último, há a ocorrência

do termo como adjetivo dentro de uma locução – alguém ser direito –, em que se

refere às pessoas com família, casa e emprego, em oposição àquelas que moram na

rua, sem emprego fixo e sem família. De acordo com esta lógica, os direitos civis,

políticos e trabalhistas – ainda que universais – só seriam válidos para pessoas que

fossem direitas na sua própria vida. Ainda que reconhecidos formalmente como

inerentes a toda a população, grande parte dos direitos era vista pelos moradores

entrevistados como algo a ser conquistado, que não estava à disposição de qualquer

um, principalmente dos mais vulneráveis social e economicamente. Caldeira (1984)

chamará a atenção para o fato de que isso não se constitui per se numa visão

deturpada da realidade social, mas trata-se de uma interpretação plausível para

essas pessoas, uma vez que, na prática, os direitos no Brasil nunca se notabilizaram

por uma distribuição igualitária. A impossibilidade do exercício de determinados direitos

é o que será interpretado por esses indivíduos como uma afronta à dignidade da

pessoa. Para as pessoas mais velhas, que vivenciaram o período pré-1964, esse

contexto tinha um caráter temporário. Já os mais jovens, que tinham essa experiência

política como única referência, viam com ceticismo gestos como o exercício do voto

e não demonstravam grandes expectativas em relação à possibilidade de mudanças.

Um cotejo desses quatro textos faria ressaltar desde logo dois aspectos. Por

um lado, os trabalhos – principalmente os de Caldeira e Durham – procuram dirigir um

olhar mais "interno" sobre esses movimentos, o qual se distancia da externalidade

que era encontrada nos trabalhos de décadas anteriores, realizados pelas outras

disciplinas das ciências sociais. Esse olhar mais próximo permitiu que se tivesse

uma noção mais apurada da realidade social na qual estavam inseridos os setores

populares urbanos brasileiros, e também da maneira pela qual esses setores

interpretavam sua situação e reconheciam suas possíveis fontes de mudança. Já

nos trabalhos de Cardoso (1988; 1994), esse olhar mais próximo ou menos externo

possibilitou problematizar os temas mais "consagrados" pelas pesquisas de movimentos

sociais no âmbito da sociologia política, como: direitos, cidadania e arranjos institucionais.

Essa perspectiva antropológica abriu espaço a outra interpretação para o otimismo e

o pessimismo manifestados por alguns intelectuais, pois apontou outras conquistas

que os movimentos foram capazes de alcançar. Entre esses intelectuais estão

sociólogos do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC), da USP,

que se destacaram por valiosas contribuições.

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Ao se fazer um balanço das leituras propostas pelas três autoras desse

período acerca dos movimentos sociais, fica evidente uma interpretação diversa da

que era proposta pela sociologia política da época. Lançar um novo olhar sobre

alguns conceitos de alguma forma já estanques na literatura da sociologia política,

bem como procurar por um olhar de dentro sobre esses movimentos, permitiu expandir

a compreensão que deles se tinha. No entanto, como será visto mais adiante, esse

contato ainda se dará de forma tímida quando comparado às etnografias mais

contemporâneas. De certa maneira, ainda que para estas autoras fosse necessário um

olhar mais interno sobre esses movimentos, era prudente manter certo distanciamento

em relação a eles, ou um envolvimento menos engajado, para que fosse possível

manter um olhar mais crítico e que levasse em conta algumas nuances da sua inter-

relação com a política e a sociedade de maneira geral.

3.4 SOCIOLOGIA POLÍTICA

Importantes debates foram travados no campo da Sociologia Política a propósito

dos movimentos sociais, particularmente na USP. Aqui não caberá uma revisão

exaustiva desse legado como um todo, senão de uma pequena parte. No entanto,

para fins informativos, segue um quadro com algumas das principais obras relativas

ao tema, de autoria de pesquisadores uspianos:

QUADRO 1 - PRODUÇÃO DA USP

Ano Autor Título 1982 (tese) 1984 (livro) Teresa Caldeira A política dos outros 1983 Ruth Cardoso Movimentos sociais: um balanço crítico

1988 Vera Telles Anos 70: experiências, práticas e espaços políticos

1988 Eder Sader Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo

1994 Ruth Cardoso A trajetória dos movimentos sociais 1994 Vera Telles Pobreza movimentos sociais e cultura política 1995 Ana Maria Doimo A vez e a voz do popular

1995 Maria Célia Paoli Movimentos sociais no Brasil: em busca de um estatuto político

2000 (artigo de revista) 2002 (capítulo de livro) Evelina Dagnino Sociedade civil, espaços públicos e a construção

democrática no Brasil FONTE: O autor

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Conforme apontado por José Szwako (2009), uma discussão intensa teve

início com o grupo de pesquisadores uspianos ligados ao CENEDIC. Esse debate,

que será reportado adiante, refere-se basicamente a três autores: Francisco de

Oliveira, Maria Célia Paoli e Vera Telles. Procurando aproximar-se mais da realidade

empírica em vez de procurar amoldá-la aos conceitos clássicos da sociologia – como é

caso de Touraine, por exemplo –, esses autores buscaram entender pragmaticamente

como eram de fato esses movimentos e de que potencialidades eram eles portadores,

principalmente num período de transição democrática como o que o país atravessava

no início dos anos 90.

Um lugar comum nesse grupo era a compreensão do caráter político que

os movimentos em questão apresentavam, uma vez que oriundos estritamente da

sociedade civil. Uma característica de tais movimentos era sua capacidade de

promover o alargamento da democracia como um todo e a extrapolação dos limites

formais da democracia institucional. A força com que conseguiam levar um debate

entre desiguais para a esfera pública tenderia a reforçar e valorizar as demandas

dos setores dominados.

A capacidade criativa e renovadora desses atores fez com que as reivindicações

por direitos ampliassem o debate político e lhe trouxessem novos ganhos. Para o grupo

de autores, esses movimentos, mesmo não sendo necessariamente virtuosos e

igualitários per se, reafirmando ou reforçando a existência de uma série de desigualdades

existentes na sociedade, teriam a capacidade de radicalizar a democracia. Não ficariam

à espera da boa vontade dos governantes em olhar para eles: iriam reivindicar suas

demandas até sua inserção na agenda política, de alguma forma. Ou seja,

desvelando a sociedade não como todo monolítico e unívoco, mas multifacetado,

hierárquico e desigual, essas outras formas de fazer política teriam o potencial de

redesenhar e redefinir o Estado.

No entanto, a potencialidade que os autores viam nesses movimentos, no

início dos anos de 1990, esvaiu-se com o advento do neoliberalismo, que pregava o

esvaziamento do Estado (principalmente suas políticas de bem-estar social em prol

da maior participação do mercado), fazendo com que a já pequena atenção dedicada

por este às camadas mais vulneráveis fosse ainda mais reduzida. As privatizações e

desregulamentações acabaram por esvaziar o debate político e reduzir as funções do

Estado, relegando a cidadania a um papel coadjuvante. O otimismo que inicialmente

caracterizou o grupo foi substituído pelo desencanto e pelo pessimismo. Nesse

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momento, a etnografia foi vista por esses intelectuais como importante ferramenta

analítica para compreender sob a perspectiva das teorias micro a forma como se

davam essas articulações. No entanto, a aproximação com a etnografia era vista

mais como o recurso "que sobrou" para analisar tais movimentos, já que as teorias

macro estariam descartadas em função da "catástrofe" epistemológica provocada

pelo neoliberalismo. A partir de então se explicaria o Brasil por aquilo que ele não

foi, que transformações poderiam ter ocorrido, etc.

Essa descrição das interpretações dos pensadores do CENEDIC acerca dos

movimentos sociais é importante tanto para contextualizar o debate acadêmico em

sua época, como para destacar, de certa forma, os limites da análise, já que tais

interpretações focalizavam os movimentos de uma perspectiva afastada, levando em

conta suas inter-relações políticas e institucionais. A diferenciação entre forma e

conteúdo, por assim dizer, dos movimentos proporcionará uma abordagem diferente

em Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos, de Evelina Dagnino,

Sonia Alvarez e Arturo Escobar. Neste livro, os autores procuram abordar os

movimentos sociais justamente a partir do período neoliberal no continente. Para

eles, fazia-se necessária uma politização da cultura e uma interpretação cultural da

política. Seria nessa interface que os movimentos sociais poderiam desenvolver suas

maiores potencialidades. Compartilhando as visões otimistas do grupo do CENEDIC,

os autores viam nos movimentos sociais essa capacidade de redefinir a alargar a

democracia, ampliar a cidadania e a participação política fora dos partidos e das

instituições, ou seja, "dos poderes sedimentados" (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR,

2000, p.30).

A construção de identidades dos grupos dominados/subalternos, isto é,

daqueles grupos mais carentes de capital político, com menos condições de terem

suas reivindicações ouvidas, seria uma condição imprescindível à coletivização

desses sujeitos, o que tornaria a questão política inseparável das questões culturais,

das subjetividades que os caracterizam. A esse propósito, afirma Alvarez: "quando

apresentam concepções alternativas de mulher, natureza, raça, economia, democracia

ou cidadania, que desestabilizam os significados culturais dominantes, os movimentos

põem em ação uma política cultural" (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.25).

O subcontinente latino-americano foi marcado pelo domínio oligárquico da

vida política pelas elites locais, caracterizado historicamente por clientelismos,

paternalismos, patrimonialismos, etc., e posteriormente por regimes populistas, que

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geriam a cidadania de forma heterônoma, e por seguidos regimes ditatoriais. Isso fez

com que a maioria dos cidadãos latino-americanos raramente cogitasse reivindicar

direitos de modo efetivo. Seriam necessárias novas significações para cidadania,

direitos, igualdade, etc. Mais do que ter suas demandas ouvidas – ou atendidas –,

os movimentos sociais devem "transformar os discursos dominantes e as práticas

excludentes da democracia latino-americana realmente existente" (ALVAREZ;

DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.30).

Por isso, para além das leituras hegemônicas que a ciência política praticada

na América Latina faz de democracia representativa, engenharias institucionais, etc.,

novas esferas públicas e políticas são necessárias para a emergência desses sujeitos

subalternos como condição para suas reivindicações. A despeito do entendimento

de Habermas de que "uma multiplicidade de públicos representa um afastamento da

democracia" (HABERMAS apud ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p.42), num

contexto em que a esfera pública sempre foi altamente elitizada e inacessível aos

setores dominados, como é o caso latino-americano, quanto mais vozes compuserem

o debate público, mais profunda será a democracia.

O próprio Touraine (apud GADEA; SCHERER-WARREN, 2005, p.40), ao

analisar a situação latino-americana, mais tarde, iria chamar a atenção para certa

ambiguidade que caracteriza o continente. Por um lado, uma modernidade que tarda

em se efetivar na forma de um projeto elitista de racionalização; de outra parte, a

diversidade de dinâmicas socioculturais próprias à região leva à emergência de

processos de subjetivação na busca por reconhecimento de identidades culturais e

sociais. Há um embate pelo reconhecimento de identidades particulares (indígenas,

mulheres, minorias urbanas, etc.), ao mesmo tempo em que se luta para tornar mais

inclusivas essas democracias em permanente construção.

As ideias propostas por esses grupos de autores serão importantes na

medida em que deixam clara não só a possibilidade como até a necessidade do

engajamento dos atores até então afastados da esfera pública para que, engajando-

se, possam transformá-la. É esse processo de engajamento, de subjetivação, que se

procurará clarear a partir da leitura dos trabalhos etnográficos selecionados.

O debate sobre as percepções dos movimentos sociais por este grupo de

autores é muito pertinente para lançar luz sobre o breve exercício etnográfico feito

em Curitiba e apresentado nesta monografia. Toda aquela articulação da Frente

Popular se deu após o período eleitoral (em um contexto polarizado, é bom frisar), o

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qual se encerrou com a vitória da candidatura mais alinhada aos movimentos que a

compõem. Do ponto de vista institucional, essas pessoas já haviam cumprindo com

seu dever cidadão de votar. No entanto, mesmo com o voto depositado na urna e

com a vitória assegurada, a conjuntura política passou a demandar mais do que o

mero exercício do voto como delegação de poder.

A situação demandava que os movimentos sinalizassem aos governantes

quem os elegeu e por quais motivos eles haviam sido reeleitos, incluindo e/ou

rememorando pautas que foram sistematicamente deixadas de lado pelo governo

petista, pautas tão diversas que extrapolavam a política em vários momentos,

chegando a acionar uma faceta cultural: a efetivação dos direitos das mulheres, dos

povos indígenas e da população negra, por exemplo. Tais pautas têm como intuito

reivindicar que se assegure a efetividade da cidadania e dos direitos a setores que

não se sentem contemplados quanto a esses aspectos.

É possível identificar ali um movimento que avança rumo à ampliação e ao

aprofundamento da democracia, ao mesmo tempo em que não aceita incondicionalmente

a tese da "cooptação" dos movimentos, num processo em que todos esses fenômenos

se dão paralelamente: eleições, adesão a uma candidatura, vitória e uma posterior

reivindicação de agenda em tom crítico ao governo eleito. Nas etnografias estudadas a

seguir, também se poderá identificar esses elementos: busca por direitos, cidadania

e democracia, acompanhada de diálogos com órgãos do Estado e partidos políticos,

sem que isso implique necessariamente uma cooptação passiva por parte dos sujeitos

coletivos. Não se pode negar, no entanto, que o debate da sociologia política

exposto acima trouxe elementos fundamentais para a análise dos movimentos sociais.

Os próprios movimentos, por sua vez, atuarão no sentido da sua afirmação

como legítimos autores das reivindicações contidas em suas bandeiras e como

atores capazes de traçar suas estratégias de mobilização para alcançar resultados

através da política institucional e da interação com órgãos competentes do Estado.

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4 ANÁLISE DE ETNOGRAFIAS ACERCA DE MOVIMENTOS SOCIAIS

Nesta seção se fará uma análise de etnografias relativas a movimentos sociais,

como base para lançar um olhar mais próximo sobre o processo de subjetivação dos

indivíduos neles envolvidos. Para tanto, este capítulo se dividirá em dois momentos:

primeiramente, será apresentada uma síntese das etnografias escolhidas: uma a

respeito de um movimento ligado aos moradores de rua de Curitiba, de autoria de

Tomás Mello, e outra acerca de movimentos feministas de camadas populares em

Recife, produzida por Alinne Bonetti. Num segundo momento, será feita uma análise

mais detida e de maneira conjunta, em que se procurará problematizar esses estudos.

Vale notar que os dois trabalhos mencionados tinham objetivos próprios,

alguns dos quais não apresentam necessariamente conexão com os que interessam à

presente monografia. Por esse motivo, as etnografias em questão serão apreciadas

com foco em seus pontos de interesse para esta pesquisa monográfica, e não se

fará uma tentativa de análise ampla de seus textos.

Como se observará, há desequilíbrio entre os espaços destinados à

apresentação de cada uma das monografias. Tal desigualdade foi incontornável, pois

além do fato de a primeira, a de Melo, ser uma dissertação de mestrado e a segunda,

de Bonetti, ser uma tese de doutorado – costumeiramente mais volumosa –, esta

última procura dar conta de um movimento mais polifônico que o estudado no

primeiro trabalho. Com isso, Bonetti obrigou-se a um grau de detalhamento de suas

nuances maior do que aquele que se observa na dissertação de Melo.

4.1 A VIDA NAS RUAS

A primeira das etnografias aqui estudadas será a dissertação de mestrado de

Tomás Melo, defendida em 2011 e intitulada A rua e a sociedade: articulações políticas,

socialidade e a luta por reconhecimento da população de rua em Curitiba. A pesquisa

que lhe deu origem ocorreu na cidade de Curitiba, no ano de 2009. Segundo Melo, a

população de rua era historicamente entendida mais pelo estigma que carregava do

que mediante uma interpretação "científica" de suas características. Ao se propor

etnografar a experiência de rua, Melo buscou apresentar as diversas trajetórias e

narrativas próprias dos que vivenciam essa situação, bem como a posterior

interlocução destes com o Estado – através do Movimento Nacional da População

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de Rua –, em busca de se fazerem ouvir enquanto sujeitos de direito que reivindicam

políticas públicas específicas.

Logo na introdução, Melo deixa claro que durante sua pesquisa foi inevitável

certa adesão à causa dos seus pesquisados, assim como uma relação de proximidade

com muitos deles. Remetendo-se ao texto de João Pacheco de Oliveira (2009) sobre

certo mal-estar na antropologia, Tomás Melo irá defender essa relação de ampla

proximidade e envolvimento com aqueles que estuda, como a única forma de ter

acesso a várias informações que seriam inacessíveis de outra forma. Ainda que,

eventualmente, corresse o risco de ter a objetividade de sua pesquisa abalada, essa

aproximação seria a própria garantia de se obterem informações suficientes e

relevantes para a compreensão das experiências de seus interlocutores. Soma-se a

isso a necessidade que se manifestou de ter uma relação mais comprometida com

a população de rua, pois esta por vezes deixava clara sua insatisfação para com

aqueles que os pesquisavam ou entrevistavam e logo em seguida lhes davam

as costas.

Melo explica que teve convívio frequente com os moradores de rua, tanto na

própria via pública quanto em reuniões realizadas em Curitiba, assim como durante

viagens que os integrantes do grupo estudado faziam a outras cidades. Assim, foi

possível experimentar o olhar "de dentro", como defendera Eunice Durham (1984),

dentre outros. Este olhar "de dentro" tornou possível para Tomás Melo, como já o

fizera para Caldeira (1984), descontruir a homogeneidade que se supõe no grupo

quando olhado de fora. Procurando deixar de lado as carências que unem os

moradores de rua, Melo procurou demonstrar, por meio das histórias a ele relatadas

por seus interlocutores, como suas trajetórias de vida os levaram a viver nas ruas.

Emergem então diferentes histórias que têm em comum a ocorrência de algum

evento traumático, proveniente de violência familiar; o contato com drogas e bebidas; o

rompimento de uma relação amorosa; ou mesmo uma mudança de cidade, muitas

vezes motivada por alguma das razões anteriores ou por uma busca de emprego

que não se concretizou, entre outros motivos.

Essas rupturas seriam responsáveis pela perda de vínculos básicos que são

considerados os pilares da vida fora da rua, como a família, os amigos e o trabalho.

A experiência da situação de rua irá distanciá-los ainda mais desses vínculos. Além

do próprio estigma da viver na rua, a eles imposto pelos que não compartilham tal

experiência, parte dessa população muitas vezes acaba tendo problemas com álcool

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e drogas e esse cenário faz com que os moradores de rua nunca se sintam aptos a

retomar a vida pregressa, por acharem que precisam estar devidamente restabelecidos,

tanto clínica e financeiramente quanto "moralmente", em termos de autoestima. Isso

explica o fato de alguns deles, por vezes, amealharem alguma quantia significativa

em dinheiro e, ainda assim, permanecerem na rua, por não crerem ser o momento

adequado para deixá-la – atitude de difícil compreensão, à primeira vista, para os

não moradores de rua, ou domiciliados, como a eles se refere a categoria nativa.

Uma das formas utilizadas inicialmente por Melo (2011) para se aproximar

dessa população foi trabalhar como voluntário numa organização que, durante o

inverno, distribui sopas numa praça. Ao longo da sua dissertação, o autor explicita a

relação dessas organizações – religiosas ou voluntárias em geral – com os moradores

de rua e também com a Prefeitura Municipal, especialmente via Fundação de Ação

Social de Curitiba (FAS). Apesar dos esforços da FAS em prestar assistência tanto

aos moradores quanto à própria rede de organizações que os auxilia, não havia

estrutura necessária para suprir a demanda de moradores. Além disso, muitas vezes

o pessoal da própria FAS não era suficientemente capacitado para lidar com a

população de rua e sua heterogeneidade, ou ainda com a singularidade de cada

caso individual ou da condição da população de rua, conforme reconheceu uma

funcionária da instituição. Outra situação delicada decorreria do modo como a

Guarda Municipal e a Polícia Militar lidavam com os moradores de rua, não raro de

forma extremamente truculenta e autoritária.

Além dos processos de ruptura e da relação difícil com os serviços de

atendimento, as pessoas com trajetória de rua têm de se haver com a discriminação

imposta por parte da população domiciliada. Em sua visão de mundo, estas pessoas

não imaginam os processos que levam alguém a viver na rua, tampouco podem

conceber como é a dura realidade do cotidiano dos que experienciam essa vida. Por

outro lado, é comum nas falas dos não domiciliados a ênfase com que dizem "ser

moradores" de rua, uma vez que apenas eles compreendem essa experiência.

4.2 A AUTOPERCEPÇÃO

Para compreender a dinâmica que levou os moradores de rua estudados a

se organizarem politicamente, é fundamental levar em conta a forma como sua

identidade foi se moldando ao longo dos tempos – sobretudo na inter-relação

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moradores de rua-Estado-sociedade. Melo (2011) lembra que no período do Império,

os moradores de rua eram vistos como vagabundos, vadios, entre outros epítetos, e

que essa "prática" (ser morador de rua) era crime previsto em lei. Ainda que, com o

passar do tempo, as medidas punitivas tenham sido revogadas, a interpretação

moral subjacente a elas persistiu no seio da população domiciliada, que não vê com

bons olhos essa outra população que não cumpre seu "papel social" – trabalhar,

pagar impostos, etc. Tal interpretação se reflete na construção da imagem que os

moradores de rua formavam de si próprios.

No caso estudado, propiciou-se aos moradores de rua de Curitiba a

oportunidade de construirem uma autopercepção menos estigmatizante a partir do

contato com alguns atores externos, como instituições do terceiro setor (instituições

religiosas e ONGs) ou do próprio Estado (via FAS, principalmente), num primeiro

momento. Num segundo, esta mudança viria a se consolidar pelo contato com o

Movimento Nacional de População de Rua (MNPR), que passaria a apresentar-lhes

as potencialidades do engajamento. Embora composto por pessoas com trajetória

de rua, porém, tratava-se este de um coletivo que congregava indivíduos de outras

cidades, de modo que, em ambos os casos, as relações que possibilitavam a

reformulação de identidade e narrativa foram externas; não se tratou de um movimento

autóctone/endógeno.

Foi a partir de 2009 que começou a se articular localmente, em Curitiba, o

Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), que já atuava em outras grandes

cidades brasileiras. Por ter sua origem fora de Curitiba, o MNPR foi inicialmente

percebido pelos moradores de rua curitibanos como um movimento composto por

estranhos, alheios à realidade local. Isso fazia com que boa parte da população de

rua local tivesse reservas quanto à sua presença e se mostrasse cética com relação

à sua proposta. Some-se a isso o fato de o Movimento ter sido trazido para a capital

paranaense por uma espécie de intelligentsia, formada por pessoas ligadas ao

Movimento que se prepararam para assumir o protagonismo a partir do contato com

outras pessoas em situação de rua, em âmbito nacional, e adquiriram o know-how

da negociação política. Inevitavelmente, as pessoas vinculadas ao movimento de

âmbito nacional possuíam um ethos diferenciado em relação ao que a população de

rua estava acostumada no universo de seus pares.

A partir da atuação das lideranças desse movimento, foram organizadas

reuniões, primeiramente entre os próprios moradores de rua e, posteriormente, com

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órgãos do Estado e organizações do terceiro setor que prestam auxílio a essa

população. Pode-se dizer que nessas reuniões teve início o processo de conscientização

dos participantes, pois então puderam observar que existem situações comuns a

todos eles, as quais se configuram como afrontas aos seus direitos e podem ser

solucionadas. Em decorrência disso, apresentou-se a própria necessidade de eles

se autoafirmarem enquanto moradores de rua.

As reuniões seguintes foram ainda mais decisivas para o processo de

percepção do potencial de agência dos indivíduos. Na mesma medida em que

frequentavam os encontros promovidos pelo Movimento, trazendo pautas para a

agenda – que reivindicava acesso a direitos que estavam "em suspenso" pela sua

condição de moradores de rua – e criando laços com o coletivo, os moradores de rua

acompanhavam a interlocução com outros atores (principalmente órgãos do Estado).

Nesse contexto, causava-lhes desconforto ouvir discursos sobre eles elaborados por

pessoas que não compartilhavam de suas trajetórias de rua. Ficava claro para os

moradores que, de certa forma, apenas eles próprios poderiam elaborar um discurso

competente acerca de si mesmos, uma vez que a visão externa seria muito alheia à

realidade objetiva que enfrentavam.

As más condições de atendimento e os maus tratos infligidos pelos funcionários

da FAS, da Guarda Municipal ou da PM eram sempre descritos pelos moradores de

rua como ofensa à sua dignidade e desrespeito aos seus direitos enquanto cidadãos.

Apesar de suas prerrogativas de cidadãos estarem como que suspensas pela falta

de documentos, de residência fixa, de emprego formal, etc., os moradores de rua

nunca deixaram de se ver como cidadãos, uma vez que exercem pequenos "bicos",

compram produtos para o dia-a-dia que são taxados e, portanto, pagam impostos

indiretamente, etc. No entanto, viam sua cidadania e seus direitos sistematicamente

desrespeitados, principalmente por aqueles que deveriam estar cientes de que se

tratava de uma população igualmente provida de direitos.

A percepção de fazer parte de população dotada de direitos e o estabelecimento

de canal direto com o Estado, via movimento social, permitiram aos moradores de

rua identificar os elementos que os impediam de ter acesso aos mecanismos que

lhes ensejariam a restituição da autoestima e, em seguida, os vínculos que poderiam

resgatá-los das ruas. Exemplos de dificuldades enfrentadas por eles: os programas

governamentais de moradia exigem endereço para matricular os candidatos ao

programa, da mesma forma que os bancos requerem isso para abertura de conta; a

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ausência de comprovante de endereço também dificulta a contratação pelo mercado

de trabalho e até mesmo o emprego informal; a falta de emprego fixo, por sua vez,

dificulta o aluguel de um imóvel, e assim por diante. Como salienta Tomas Melo (2011),

existe um "ciclo vicioso" que vai minando as possibilidades de o morador de rua "se

levantar sozinho".

Após reuniões com a presença de representantes do Ministério Público, os

moradores de ruas que participavam do MNPR tiveram suas demandas encaminhadas

às autoridades. Estas buscaram solucioná-las, orientando os funcionários do FAS

quanto ao tratamento a ser dispensado a esses moradores e reiterando aos guardas

e policiais a proibição aos maus tratos, alertando-os de que até poderiam se abrir

processos contra aqueles que viessem a cometer essas práticas.

Os primeiros contatos entre o MNPR e o Ministério Público ocorreram a

partir de 2007, quando o movimento apresentou ao órgão uma série de reclamações

contra maus tratos sofridos pela população de rua nos abrigos da FAS, nos

seguintes termos:

O Fórum da População em Situação de Rua de Curitiba, realizado em 24 de abril de 2010 com a participação da população em situação de rua de Curitiba e região metropolitana, lideranças nacionais do Movimento Nacional da População de Rua, Organizações Não Governamentais e 135 instituições de outros estados, permanecem estarrecidos ao tomarem conhecimento da prática de abuso e violação dos direitos da população de rua acolhida na FAS - Fundação de Ação Social da Cidade de Curitiba (Resgate Social), por parte de funcionários e guarda municipal, e vem manifestar total indignação diante de fatos como: Atitudes de tortura e gestos obscenos utilizando cassetete e máquina de

choque elétrico aplicado na região anal para despertar as pessoas; Os servidores da FAS (Resgate Social) se negam a distribuir roupas e

calçados doados pelas entidades e população de Curitiba solidária e sensível às carências do próximo. Tal fato surpreendeu os participantes do Fórum quando os usuários reportaram ter conhecimento que vários servidores desenvolvem atividades de comercialização de roupas usadas em lojas de brechós, e que muitos destes são vistos de posse destas doações posteriormente;

A morosidade no atendimento médico, sendo esta justificada pelos servidores como decorrente da falta de profissionais;

A lentidão com a qual os usuários são atendidos pelos servidores (estes ficam muito tempo no telefone, conversando entre si, no computador e tomando café), fazendo que isto culmine com pessoas esperando em longas filas até avançada hora da noite e sob as fortes intempéries da nossa cidade. Tal situação corrobora para [sic] a impaciência e muitas vezes causam tumulto na frente da referida instituição, que responde com a ação violenta dos guardas aos usuários.

Profissionais sem capacitação para o devido acolhimento e atendimento as pessoas em situação de rua;

Falta de higiene e condições mínimas para a manutenção do albergue – Resgate Social.

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Ausência de atividades que motivem os albergados, tais como cursos de capacitação profissional conjugados com mecanismo de reinserção ao mundo do trabalho; falta de condições de assistência àqueles que conseguem se inserir no trabalho.

Falta de vagas que condigam com a demanda tanto para pernoite quanto atividades promovidas na entidade João Durvalino;

Recusa de atendimento a migrantes, ferindo o direito de ir e vir assegurado constitucionalmente;

Não "permite" ou convida a população de rua para o debate acerca de seus direitos, serviços prestados e demais aspectos ligados a este grupo populacional;

A junção imprópria de pessoas com problemas diversos de saúde mental aos demais;

tratamento inadequado e insuficiente de saúde mental e uso abusivo de substâncias psicoativas; ausência de recursos para a construção do projeto de saída e reincidência; entre outros. Solicitamos providências imediatas no sentido de garantir que a dignidade humana seja respeitada, que os infratores sejam punidos, respondam pelos atos cometidos e que a instituição coíba qualquer prática que viole os direitos humanos. (MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA apud MELO, 2011, p.134-136).

Pouco a pouco, essa reelaboração da nova identidade em conjunto com o

MNPR, na procura por se afirmarem como uma voz legítima a se manifestar sobre o

tema, vai culminar na adesão a um ethos militante por parte dos moradores de rua

que se engajaram e se politizaram através do movimento. A própria atitude de

abraçar ou não o movimento será outro fator distintivo em meio à população de rua,

reforçando outros aspectos destacados anteriormente por Melo, que demonstram a

heterogeneidade dessa população. No caso do movimento dos moradores de rua

prevalecia, contudo, a unanimidade em suas demandas, de maneira geral, sem que

se trouxessem à tona divergências internas. Suas maiores dissensões se davam nos

encontros com os seus interlocutores, que pela sua avaliação desconheciam a

experiência das ruas.

4.3 NÃO BASTA SER MULHER, TEM DE TER CORAGEM

Em sua tese de doutorado, Alinne Bonetti (2007) procurou investigar a teia20 de

movimentos feministas na cidade de Recife, com ênfase nos movimentos de camadas

20 Ilse Scherer-Warren (2006), em seu artigo Das mobilizações às redes de movimentos sociais, destaca as características transversais e transnacionais que perpassam os movimentos. Redes ou teias de movimentos articulam movimentos análogos de vários cidades, países ou regiões e geram solidariedades e alianças entre grupamentos de ativistas atuantes em frentes que militam por causas com ou sem alguma similaridade. Essas redes ampliam a visibilidade e a capacidade de diálogo com as instituições políticas formais.

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populares da cidade. A pesquisadora gaúcha – que intitulou seu trabalho Não basta ser

mulher, tem de ter coragem: uma etnografia sobre gênero, poder, ativismo feminino

popular e o campo político feminista de Recife-PE – escolheu a capital pernambucana

como terreno em razão do elevado número de movimentos e associações feministas

ali existentes, em relação ao de outras cidades brasileiras, o que a constituiria,

segundo a autora (BONETTI, 2007, p.70), como uma meca do feminismo no Brasil e,

principalmente, na região nordeste, onde se tornou grande referência.

Bonetti (2007, p.13) deixará claro, já na introdução, sua opção por um olhar

"parcial", uma vez que estará se debruçando sobre o tema com certo engajamento,

tanto no aspecto político quanto na abordagem epistemológica, com vistas a trazer à

cena um tema que não recebe tanta atenção na antropologia brasileira quanto na

norte-americana, por exemplo.

Seu interesse pelo campo do feminismo popular havia surgido em sua

pesquisa anterior, realizada em Porto Alegre, em que foi apresentada à noção de

mulherismo. Essa categoria nativa seria utilizada pelas mulheres de camadas populares

para estabelecer uma distinção em relação ao feminismo, visto por elas +como algo

mais elitizado. Enquanto o feminismo se encontraria no campo teórico, o mulherismo

seria fruto da experiência e da prática cotidiana das mulheres de baixa renda.

O fato chamou a atenção da pesquisadora para uma contestação de suposta

homogeneidade da dominação e da opressão às quais as mulheres são submetidas.

Nesse sentido, a pesquisa etnográfica ocupa lugar de destaque na tarefa de

"desontologização do gênero" (como proposta por MOORE, 1994, apud BONETTI,

2007, p.23). Assim, a partir do processo etnográfico, se revelaria como operam

outros marcadores sociais de diferença, como classe, etnia, gênero, etc., que

complexificam a experiência feminina. Essa complexidade pode ser representada

pelo conceito proposto por Nancy Fraser de "contra-públicos subalternos" (FRASER,

1993 apud BONETTI, 2007, p.20), que consistira na esfera de debates em que grupos

dominados formulam diferentes narrativas acerca de suas experiências, contribuindo

"para a expansão do espaço discursivo, para o alargamento da contestação e para a

inclusão da multiplicidade de sujeitos políticos. O que leva a possibilidades cada vez

maiores de aprofundamento da democracia" (BONETTI, 2007, p.20).

Ao se inserir no campo da pesquisa, Bonneti (2007) entrará em contato com

um universo em que dificilmente deixaria de ser vista como uma estranha; afinal sua

própria aparência ("branquela", como se definiu), seu sotaque e seu vocabulário

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estarão sempre denunciando a diferença de origem tanto geográfica quanto de

classe. Seu sexo e sua idade também lhe sugeriam que a cautela seria fundamental

ao andar sozinha em certas regiões da cidade e que não ignorasse os códigos que

lhe eram apresentados através da experiência.

Durante um de seus trajetos de ônibus para ir conhecer uma associação

feminina de base em bairro periférico do Recife, presenciou uma situação marcante:

um assalto a mão armada dentro do coletivo, cometido por um homem. O trauma

causado pelo que se apresentava a ela como uma situação inevitável passou a ser

relativizado quando notou a maneira como uma das senhoras que a acompanhavam

reagiu ao incidente: comentou que, se não estivesse em idade avançada, teria

tomado a arma do assaltante num momento de desatenção da parte dele.

Sem que percebesse, com essa situação a pesquisadora havia sido introduzida

a uma das ideias centrais do campo que pesquisaria: a coragem e a necessidade de

demonstrá-la publicamente. A coragem constitui-se em atributo imprescindível na

vida das mulheres no universo pesquisado e reafirmá-la é fundamental nos debates e

confrontos que elas travam. Demonstrações públicas de fraqueza não podem ocorrer;

hão de ser guardadas para a intimidade.

Retomando a ideia que se delineou durante o episódio do assalto, relativa à

demonstração pública de coragem, Bonetti irá descrever a prática política do próprio

movimento. Procurando desmitificar a noção de que haveria uma relação horizontal,

democrática, plural e de companheirismo solidário, frisará que, ao contrário, o campo

é permeado por disputas acirradas, em que subgrupos procuram impor suas agendas

como prioritárias sobre as outras.

Ainda que seja um campo feminino, predominará um ethos masculino na

forma de se fazer política. Duas expressões nativas são muito esclarecedoras de tais

atributos, respectivamente da valentia e de certa masculinidade: a necessidade de

se "ter sangue no olho" durante as discussões e a de "colocar a arapiraca na mesa"

(arapiraca aqui no sentido de pênis) (BONETTI, 2007, p.33). Além da necessidade

de demonstração pública de coragem e da proibição velada de demonstrações de

fraqueza, os debates são sempre carregados de expressões como "força", "lutar",

"bater", etc., denotando certa agressividade e virilidade mais próximas do campo

masculino, ainda que isso não seja percebido como tal pelas participantes. Tal fato

poderia ser explicado pela valorização da valentia e da coragem no imaginário dos

nordestinos acerca de si mesmos, como especula Bonetti (2007), a partir de uma

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identidade regional que havia sido elaborada pela elite intelectual da região na

década de 1930.

4.4 OS MOVIMENTOS

Para Alinne Bonneti, a porta de entrada ao campo de pesquisa foi o seu

contato com o Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE). Fundada em 1988, esta

organização representava, de certa forma, o topo da pirâmide das organizações civis

do estado de Pernambuco, centralizando e aglutinando todas as demais. Formado

por mulheres com diferentes tradições de militância, o fórum surgiu com o objetivo

de difundir e popularizar o ideário feminista. Haveria uma camada intermediária de

ONGs na sua estrutura que comporiam o "meio de campo" com os movimentos de

base. O próprio FMPE e algumas ONGs tratavam de se relacionar com organizações

privadas nacionais e internacionais para a captação de recursos destinados às

organizações e movimentos relacionados com os objetivos de cada projeto, bem

como estabelecer interface com o poder público, o que não é exclusividade destas

entidades, já que em geral todos os movimentos, mesmo os de base, possuem

canais de acesso a conselhos municipais e a políticos.21

No caso dos encontros e reuniões do grupo de mulheres, discute-se neles

tanto assuntos de saúde quanto questões de direitos, trabalho, política, violência,

etc. Nesses momentos é que se tornam mais visíveis as disputas ali existentes. Cada

grupo específico vê-se com frequência invisibilizado, à medida que outra corrente

passa a pautar a agenda do fórum em causa própria. Então se estabelecem tensões

entre grupos: mulheres negras x lésbicas; mulheres populares x mulheres de classe

média/letradas; filiadas a partidos x não filiadas; lésbicas da periferia x lésbicas de

classe média; e assim por diante. É constante a criação de certas rivalidades e

disputas, pois está claro que o poder de falar e, sobretudo, o de ser escutada, não

está acessível igualmente a todas. Há uma distribuição desigual das relações de

poder, prestígio e privilégio, que varia de tempos em tempos, de acordo com a

21 Cabe aqui um parêntese sobre a dicotomia estabelecida por Durham (2004), mencionada acima: dada a dimensão do FMPE enquanto congregador de diversas associações e movimentos, ele terá inevitavelmente um caráter mais hierárquico e institucionalizado. No entanto, há uma discussão permanente entre as diversas associações que o compõe quanto ao caráter a adotar em seu próprio movimento: algumas são favoráveis a essa institucionalização, enquanto outras preferem a manutenção do caráter mais comunitário.

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conjuntura e o grupo que tiver mais autoridade sobre determinado assunto e

melhores relações para atingir determinado objetivo. Quanto a tal desigualdade, o

movimento de mulheres estudado confirma a interpretação da antropologia uspiana

mencionada anteriormente, que apontava para a necessidade de compreender a

heterogeneidade interna dos sujeitos coletivos.

Uma das questões mais polêmicas do Fórum de Mulheres dizia respeito

a(os) feminismo(s) pelo(s) qual(is) se orientar. Bonetti mostra que, desde a década

de 1980, o combate à violência contra a mulher foi progressivamente encampado por

diversos movimentos, até se tornar uma unanimidade. No entanto, a etapa seguinte

encontrou resistência: a luta pelo aborto. Esta questão, assim como aquelas

relativas a gênero e a mulheres lésbicas, enfrenta grande resistência, principalmente

nos movimentos de base, dada a capilaridade da religiosidade e a persistência de

uma visão mais conservadora nesses meios. Assim, prevalece no âmbito feminista

uma luta mais ligada à justiça social do que aos direitos individuais e de soberania

sobre o corpo. Como define a autora, há uma sobreposição de um feminismo "quem

ama não mata" sobre aquele do "nosso corpo nos pertence" (BONETTI, 2007, p.88).

Bonetti conheceu o Grupo de Mulheres da Vila e o Grupo de Mulheres do

Morro da Velha, grupos que funcionam como uma espécie de conselho de um bairro

da periferia, administrados exclusivamente por mulheres, ainda que voltados aos

interesses da população em geral. A partir do contato com tais grupos, a antropóloga

questiona um conceito que goza de prestígio nas pesquisas feitas nesse campo: o de

"maternidade militante". Utilizada também por Teresa Caldeira (1984), essa rubrica

remete à atividade política das mulheres de base como algo muito relacionado às

suas necessidades mais imediatas (construção de creches, postos de saúde, dentre

outras necessidades do bairro), mera transposição para a esfera política dos seus

papéis de mães e esposas na vida doméstica. Questões como igualdade de direitos

de gênero, por exemplo, estariam muito distantes das preocupações desse estilo

de militância.

Bonetti defende que as mulheres do conselho extrapolam o conceito de

"maternidade militante", não só aderindo ao feminismo da igualdade de direitos e a

outras bandeiras do movimento, como também ampliando suas ambições políticas para

além dos interesses cotidianos mais utilitários. A participação política das mulheres

pesquisadas por Bonetti ultrapassaria esse mero "papel de mãe" em relação à vida

pública, além do fato de essa noção carregar uma visão da personificação de

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mãe/esposa que é pouco afinada com a luta feminista por igualdade e mudança de

prerrogativas. Ainda que fossem mães, não era esse o motivo pelo qual essas

mulheres se engajavam na vida política: o contato com o feminismo e com a política

"mais ampla", para além dos problemas imediatos de seu bairro, instigam essas

mulheres a se engajar em questões mais complexas que o mero papel de "mãe

pública" poderia pressupor.22 Por exemplo, os grupos procuram estabelecer canais

de contato com a prefeitura para apresentar demandas de toda espécie e promover

cursos profissionalizantes, palestras sobre temas de saúde para mulheres e reuniões

destinadas a mobilizar os moradores da Vila na busca por direitos e cidadania.23

Um desses grupos feministas de base é o das Mulheres da Vila. Embora

formado por mulheres, como o nome indica, suas integrantes defendiam os interesses

gerais da comunidade em que viviam, e não exclusivamente aqueles mais imediatamente

ligados ao papel de mãe (demandas por creches, postos de saúde, etc.), que

constituiriam uma pauta própria da maternidade militante. A trajetória do Grupo

de Mulheres da Vila também mostrou-se fértil em elementos que possibilitam a

compreensão das dinâmicas da vida política do bairro, bem como do papel das

mulheres na história dessa comunidade. É ilustrativa uma mobilização da Associação

de Trabalhadoras Domésticas: custava a sair do papel uma promessa eleitoral do

prefeito referente a habitação, de forma que o Sindicato das Domésticas, que já

pressionava o poder público havia muito tempo para que o compromisso de campanha

se cumprisse, viu-se obrigado a se reunir "na marra" com o secretário de habitação,

indo até a Secretaria da pasta, exigindo e conseguindo uma reunião com ele, que

então assinou o documento que autorizava a construção de residências. Assim,

foram construídas vinte e cinco casas na Vila para serem ocupadas por domésticas.

22 "Podemos dizer que Eva, vista pela perspectiva de Lucimar, é um exemplo de mulher do meio popular que "deu certo": ascendeu através da militância, saiu do morro e foi morar num bairro classe média, pôde estudar, tem projetos para o futuro e angariou prestígio pessoal. Por sua vez, o seu grupo originário alcançou notoriedade e prestígio no campo político feminista local e parece permanecer forte, através da continuidade de seu desenvolvimento levado a cabo pelas outras militantes que continuam parte dele, como parece ser o caso de Vanir." (BONETTI, 2007, p.161).

23 Retomando a discussão de Durham (2004), chama a atenção a luta para que esse movimento de bairro permaneça comunitário, sem que se institucionalize.

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As domésticas tinham trajetórias pessoais distintas, mas possivelmente em

função de uma postura mais crítica ou engajada, já haviam se politizado24 através de

movimentos de base da igreja católica, de partidos políticos, da relação com patroas

feministas, etc. Além do engajamento, compartilhavam a experiência de serem mães

solteiras (24 das 25), que criavam seus filhos sozinhas. Essa característica era vista

como uma ameaça pelas mulheres casadas que já viviam na região. No entanto, tal

desconfiança revelou-se infundada, uma vez que para essas mães solteiras era

fundamental mostrar seu caráter e coragem de viver em tais condições.

4.5 ANÁLISE DAS ETNOGRAFIAS

4.5.1 Engajamento acadêmico e subalternidade

Melo (2011) e Bonetti (2007) explicitam no início de seus trabalhos haverem

optado por fazer uma etnografia comprometida, tomando o partido daqueles que

pesquisavam. Isso significou participar de reuniões e viagens, além de manter um

convívio diário, submetendo-se às mesmas condições em que se encontravam os

pesquisados.25 Em ambos os casos, a etnografia foi o método escolhido, por garantir

maior contato com os indivíduos estudados e possibilitar a desconstrução de uma

suposta homogeneidade dos grupos pesquisados. Essas homogeneidades seriam

geralmente construídas por olhares externos, a partir do conjunto de ausências e

carências que caracterizariam esses grupos e de sua suposta inaptidão26 para a

organização, principalmente no caso dos moradores de rua. Mas isso não se

demonstra verdadeiro, já que os grupos pesquisados são marcados por uma grande

diversidade interna e dispõem de capacidade de agência.

24 Politizar: "fazer alguém (ou a si mesmo) capaz de compreender a importância do pensamento e da ação política; dar ou adquirir consciência dos deveres e direitos do cidadão". (HOUAISS, 2001, sub voce).

25 Certa vez, Tomás Melo levou um dos moradores de rua a se sensibilizar com sua relação horizontal com eles, ao procurar copos e pratos descartáveis no lixo, para que pudesse beber e comer o mesmo que seu pesquisado e por viajar nas mesmas condições que ele: "Você não precisava estar passando por isso." (MELO, 2011, p.27).

26 "[...] pessoas tradicionalmente vistas como inaptas para a organização política passam em determinado momento a reivindicar políticas específicas [...]" (MELO, 2011, p.12).

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No caso da etnografia de Bonetti (2007), sua investigação se dará num

campo de pesquisa muito robusto, o feminista, já teorizado por várias áreas das

ciências humanas. Terá como intenção dialogar e problematizar de que forma as

interpretações dos feminismos formuladas pela academia se encaixam (ou não) com

a visão construída a partir de seu contato empírico com determinada realidade.

Diferentemente, Melo (2011) pesquisou um grupo mais específico, que até então tinha

sido objeto de número muito menor de pesquisas, se comparado ao das mulheres.

Sua pesquisa focará o modo como pessoas se tornaram moradoras de rua, assim

como o seu cotidiano, para em seguida procurar compreender de que forma elas se

engajaram e passaram a agir politicamente.

No caso dos moradores de rua, sua agenda se define como estritamente

política, atuando na interface do movimento com o Estado, em busca de acesso ao

direito e à cidadania a partir das especificidades da situação em que se encontram.

Já no caso das mulheres, suas agendas extrapolam o político no sentido mais clássico

do termo, visto que ao longo da etnografia são apresentadas situações de mulheres

que se encontram em luta por reivindicações outras, de natureza cultural e simbólica,

já percebidas por autores citados anteriormente. Evelina Dagnino e colegas, por

exemplo, mostram como movimentos sociais passaram a politizar aspectos culturais,

muitas vezes em oposição a outras mulheres – negras, lésbicas, moradoras de

periferia, etc. Essa constatação encaminha a uma "desontologização do gênero"

(MOORE, 1988 e 1994 apud BONETTI, 2007, p.23), uma vez que o gênero não é a

única maneira pela qual as mulheres podem ser diferenciadas, mas existem também

outros recortes (de classe, gênero, etnia, etc.), que, quando combinados, produzem

novas especificidades.

Ambos os autores escolheram a etnografia como procedimento; ambos

optaram por uma etnografia comprometida. Essas escolhas têm a ver com opções

epistemológicas nas quais eles não estão sozinhos. Para que a etnografia possa

captar e interpretar adequadamente determinadas pautas do grupo estudado, é

necessária uma vivência da realidade nativa, ainda que ao preço da ruptura para

com determinações oriundas de certos métodos mais ortodoxos da disciplina, deixando

em suspenso a pretensão de neutralidade científica. Apenas uma aproximação que

demonstre algum grau de comprometimento com o grupo estudado permitirá acessar

seus discursos sem reservas.

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Goldman (2006), na introdução a seu trabalho, expõe amplamente as razões

pelas quais optou por escolher determinado método para realizar sua etnografia.

Chama a atenção para o fato de que, para compreender a segmentariedade do

grupo estudado e apreender suas diversas faces, não seria possível manter uma

relação de distanciamento, nos moldes defendidos pelos pesquisadores canônicos

da antropologia, correndo assim o risco de ser visto como descomprometido para

com aqueles que eram objeto de sua pesquisa, ou de não dar conta de compreender

a complexidade das relações por eles tecidas. Em vez de questioná-los, seria mais

benéfico escutá-los falar livremente. A partir do convívio mais autêntico e menos

formal, seria possível estabelecer uma espécie de equilíbrio entre uma teoria científica

e uma teoria nativa. Goldman usará o termo "devir-nativo" (GOLDMAN, 2006, p.31)

para explicar o caráter ambivalente que o pesquisador assumiria.

Em seu estudo sobre o Movimento Negro de Ilhéus, Goldman (2006) propõe

que, uma vez conseguindo entender bem uma dinâmica política num espectro micro,

essa compreensão poderia trazer elementos para se compreender a política em

escalas maiores. Essa perspectiva antropológica, no entanto, extrapola parte das

noções acerca dos movimentos sociais propostas pela ciência política. O autor não

irá procurar detectar se simplesmente houve um alargamento da democracia ou

aumento dos direitos e do acesso à cidadania por parte do Movimento. A partir da

etnografia, ele procurou compreender como o bloco de carnaval opera simbolicamente

na dignificação dessas pessoas enquanto grupo social, tão legítimo quanto quaisquer

outros socialmente estabelecidos.

Essa justificativa, digamos assim, de Marcio Goldman a respeito da maneira

pela qual se aproximou e estudou o Movimento Negro de Ilhéus – ao interpretar a

faceta simbólica de sua prática, o que Touraine (1994) classificaria como universos

simbólicos27 – vai ao encontro do texto de José Pacheco de Oliveira (2009) intitulado

Pluralizando tradições etnográficas: sobre certo mal-estar na antropologia. O mal-

estar a que se refere Oliveira seria provocado justamente pela aproximação do

27 Segundo Touraine (1994), há uma tensão entre os universos instrumentais, operados pela racionalidade, e os universos simbólicos, fruto da experiência e produção de sujeitos sociais. Os movimentos sociais seriam uma válvula de escape, favorecendo a subjetivação, pela qual sujeitos pertencentes a culturas negadas e invisibilizadas pelos grupos hegemônicos buscam o reconhecimento como atores sociais.

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pesquisador com seu objeto. De acordo com o autor, haveria algumas vertentes da

antropologia que veem com maus olhos essa aproximação, que causaria uma

militância excessiva e acabaria por "contaminar" a objetividade e a cientificidade das

pesquisas etnográficas e, sobretudo, a neutralidade, o que ele classificará de "ficção

de natureza política" (OLIVEIRA, 2009, p.8).

Oliveira irá rebater as acusações acerca desse "mal-estar", argumentando

que a forma pela qual se desenvolve a relação entre pesquisador e pesquisado não

poderia determinar ou desqualificar a validade científica da pesquisa. As pesquisas

etnográficas clássicas da antropologia se desenvolveram em um contexto histórico

completamente distinto, notoriamente em situações coloniais. Aí havia uma espécie

de naturalização das relações hierarquizadas entre colonizadores e colonizados,

favorecendo os pesquisadores, que sempre se encontrariam no primeiro grupo. Para

estes, era preferível uma pesquisa mais distanciada de seus objetos de estudo,

baseada em pequenas trocas de favores.

No entanto, as situações que favoreciam esse tipo de relação tornaram-se

escassas. Em maior ou menor grau, os países adotaram regimes democráticos, dotando

de direitos as populações indígenas locais.28 Portanto, não só essa hierarquização

que existia entre pesquisador e pesquisado (ainda que ela eventualmente persista

na prática) não será suficiente para legitimar uma pesquisa "descompromissada", já

que as próprias populações indígenas – nesse caso – têm autonomia para decidir se

aceitam ser pesquisadas e que fins terá esta pesquisa. Consequentemente, as

comunidades estão cientes das consequências que laudos antropológicos, por

exemplo, poderiam lhes trazer em termos de direitos, cidadania ou recursos. Nesse

novo contexto, não há espaço para pequenas trocas de favores. O pesquisador se

vê numa situação em que o engajamento e o comprometimento com a comunidade

estudada são imprescindíveis para uma relação equilibrada. Toda pesquisa se dará

dentro de um contexto histórico e político. Não assumir tal contexto em nome de

uma abstração não tornará necessariamente a pesquisa "mais científica".

Portanto, o "mal-estar da antropologia" (OLIVEIRA, 2009, p.3) não se justificaria.

Um engajamento do pesquisador não comprometerá a objetividade da pesquisa e

28 Ainda que o autor cite grupos urbanos, entre outros objetos de estudo da antropologia, seu foco serão as comunidades indígenas. No entanto, a crítica que faz à tese do mal-estar na antropologia se dirigirá a estudos de maneira geral, não exclusivamente àqueles feitos entre comunidades indígenas, necessariamente.

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será benéfico à disciplina, que deverá fazer uma revisão de seus próprios métodos e

objetivos. Essa relação próxima do pesquisador com o pesquisado constituiu uma

condição fundamental nas etnografias estudadas nesta monografia, já que, a partir de

uma relação mais horizontal e envolvida do antropólogo com os movimentos sociais,

permite a elucidação do processo de subjetivação por parte dos seus integrantes.

A discussão proposta por João Pacheco de Oliveira (2009) de certa forma

relaciona-se com outra, proposta por Gayatri Chakravorty Spivak (2010) em Pode o

subalterno falar?. Diferentemente de Oliveira, que se ocupa da relação entre pesquisador

e pesquisado, Spivak está mais interessada pelo ponto de vista do subalterno e por

suas possibilidades de enunciação e vocalização próprias, sem depender de terceiros,

sejam eles intelectuais ou políticos. No tema que aborda, insere-se a questão da

legitimidade de um terceiro, como o cientista social, vocalizar em lugar do subalterno.

Colocando-se numa dupla posição de subalternidade, por ser indiana (isto é,

colonizada) e mulher, a autora irá problematizar a posição do intelectual pós-colonial

na busca de dar voz àquele sujeito silenciado, mas deslocando o foco da perspectiva

ocidental, como ocorrera até então. A noção de representação tem um papel muito

importante no seu texto. Spivak procurará diferenciar as noções de Vertretung e

Darstellung: o primeiro conceito teria o sentido de representação enquanto uma

procuração, outorgada a alguém para representar os subalternos; enquanto o

segundo seria uma apresentação (tal como a apresentação de uma peça teatral).

Assim sendo, o que ocorre com frequência é o subalterno delegar sua procuração a

alguém que o represente na esfera pública, tomando-lhe o direito à voz e à participação.

José Jorge de Carvalho (2001) defende que seria necessária uma "à-presentação",

em que as classes subalternas poderão se levantar e insurgir. Então poderíamos

constatar alguma convergência entre o papel da antropologia para Oliveira e Spivak.

Spivak também levará em conta a condição da mulher indiana, tomando por

referência o ritual do sati, a imolação de viúvas, e também a história de uma mulher

que se suicidou na cidade de Calcutá, na década de 1920. Neste caso, o suicídio foi

interpretado como fruto de um adultério. Após investigação aprofundada, descobriu-se

que a mulher havia se suicidado menstruada, afastando essa possibilidade.

Na verdade, ela havia se ligado a grupos insurgentes políticos e não foi capaz de

cumprir uma missão que lhe fora designada, por isso se suicidou. O ato de fazê-lo

menstruada se configuraria como a única a maneira de não ser julgada como

adúltera, já que não seria de forma alguma escutada – acabou "apenas" tida como

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louca. Assim, Spivak conclui o texto respondendo negativamente à pergunta feita em

seu título. A possibilidade de uma expressão própria subalterna ainda não se concretizou.

Convém apontar que a tese da autora, segundo a qual o subalterno não pode

falar, é passível de discussão. No caso apresentado, de mulheres indianas enquanto

indivíduos isolados, cuja possibilidade de vocalização/enunciação é por ela negada,

esse panorama talvez seja mutável a partir de um esforço de engajamento coletivo.

O empoderamento das mulheres, tomadas enquanto sujeitos coletivos, pode

possibilitar a emergência de um novo ator na sua esfera pública local, abrindo

espaço para uma luta por reconhecimento, dignidade, acesso a direitos, cidadania,

etc. O ponto a ser explorado parecer ser o da passagem da voz individual para a

vocalização coletiva, mediado pelo processo de subjetivação dos indivíduos.

Além de uma explícita militância/engajamento em favor dos seus objetos de

pesquisa, indo ao encontro do que havia sido avalizado por Oliveira (2009) e Goldman

(2006), as pesquisas de Melo (2011) e Bonetti (2007) procuraram compreender as

singularidades de sujeitos coletivos mais específicos, menos genéricos do que

aquela noção mais abstrata de "moradores de periferia"/"trabalhadores urbanos" que,

de algum modo, marcava a interpretação dos movimentos sociais vigente no grupo

de antropólogas uspianas das décadas de 1970/1980, comentadas anteriormente.

Ao entrar nesses universos específicos e de certa forma radicalizar o olhar de dentro

desses movimentos, a análise antropológica empreendida por Melo e Bonetti pode

alcançar um olhar mais aguçado que o daquela antropologia uspiana que pretendia

se distinguir da sociologia política.

Como a própria aproximação realizada junto aos movimentos sociais curitibanos,

a leitura destes dois trabalhos também possibilita certa busca por solucionar ou

recusar a assertiva de Spivak: esses sujeitos coletivos tratam não só de buscar e

ocupar o seu lugar de fala – e, em maior ou menor grau, tendo êxito nisso – como

também de demonstrar a legitimidade do seu discurso, distanciando-se ou minimizando

a necessidade de interlocutores estabelecidos (acadêmicos ou políticos). Parece

plausível afirmar que esses movimentos sociais veem a si mesmos cada vez mais

como protagonistas de suas lutas e menos dependentes de outras falas competentes,

que tenderiam a perpetuá-los ou mantê-los numa posição subalterna.

Não deve surpreender que a relação assimétrica preexistente entre pesquisador

e pesquisados conduza os pesquisadores a serem instrumentalizados em contextos

de conflito (reuniões ou eleições) ou na busca de visibilidade para a luta (entrevistas),

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como uma espécie de capital simbólico, utilizado como legitimador do ponto de vista

nativo frente a outros. No entanto, não parece ocorrer uma espécie de subjugação

daqueles numa posição subalterna por parte dos pesquisadores, prejuízo para o

qual alerta Spivak, que acredita que de alguma forma a participação acadêmica

perpetuaria a impossibilidade de enunciação/vocalização por parte dos participantes.

Ainda que seu alerta tenha fundamento, nos casos estudados o prejuízo não ocorre.

Por mais que os antropólogos se façam presentes, e em determinados momentos

sejam acionados em favor dos movimentos, sua presença não é uma condição sine

qua non para sua luta e tampouco para as vocalizações: estes movimentos

continuariam a defender suas reivindicações, independentemente da presença ou

não de um pesquisador.

4.5.2 Luta e reconhecimento

As duas etnografias aqui estudadas compartilham uma série de conceitos

utilizados por outros pesquisadores que se dedicaram à análise dos movimentos

sociais, principalmente alguns encontrados com mais frequência na literatura da

ciência política. Dois deles podem ser encontrados no próprio título da dissertação

de Melo (2011): luta e reconhecimento. O segundo deles, aliás, também é recorrente

na etnografia de Bonneti (2007). Reconhecimento, em ambos os casos, poderia

assumir o sentido proposto por Nancy Fraser (2007): o da restauração de uma

dignidade que cabe a alguém por direito, porém é sistematicamente desrespeitada,

o que acontece em decorrência da condição de morador de rua ou de mulher das

camadas populares.

O termo reconhecimento remeteria a uma esfera mais subjetiva. Diferentemente

do termo redistribuição, que visaria a uma igualdade social em termos econômicos ou

materiais, a ideia de reconhecimento, segundo Nancy Fraser (2007), se manifestaria

na procura de igualdade social, na busca por "respeito" e "dignidade". Essa demanda

por reconhecimento seria travada pelos setores minoritários dentro da sociedade,

como os grupos étnicos, tradicionais, religiosos, de mulheres, de minorias sexuais e

também pelos setores sistematicamente esquecidos pelas políticas públicas mais

básicas, como os moradores de periferia ou em situação de rua, por exemplo.

Por sua vez, luta é palavra que se reveste de caráter polissêmico na fala dos

diversos atores engajados em movimentos sociais, populares ou políticos. Como

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mostrou John Comerford (1999, p.19-45) em Fazendo a luta, seu estudo sobre

movimentos camponeses no sertão do nordeste brasileiro, a luta pode remeter a

basicamente a três níveis:

i) A luta cotidiana; aquela do trabalho e da sobrevivência. Encarar cada dia

de trabalho árduo como uma luta confere sentido de dignidade à vida.

No caso em que as condições de vida a que as pessoas estão submetidas

são tão duras, a vitória, entendida como melhora radical de vida, é quase

impossível. Trata-se, então, de uma luta para dignificar o sofrimento,

sem pretensão de vitória.

ii) A luta coletiva, a da mobilização dos iguais em confronto com um

adversário em comum. Essa luta se caracterizaria pela tomada de

consciência dos indivíduos de que, unidos, teriam mais chance de

solucionar seus problemas, seja ela contra fazendeiros que procuram

deslocá-los de seu local de origem, seja por melhor atendimento por

parte do Estado. Essa luta é passível de ser vencida.

iii) Por fim, a luta cotidiana pela manutenção da vitória coletiva, conquistada

na luta anterior. Uma vez organizados em movimentos ou sindicatos, a

prática do dia a dia das lideranças, no âmbito logístico-burocrático da

organização, é vista por esses líderes como um trabalho para garantir

que a luta das bases não tenha sido em vão. Relaciona-se com a do

primeiro nível, na medida em que diz respeito ao trabalho cotidiano, e

também com a do segundo, dado que a coletividade já pôde gozar de

alguns triunfos em suas demandas e é de sua obrigação preservá-los.

A partir deste exemplo de Comerford (1999), percebe-se que a mesma

palavra, ainda que dita por pessoas de uma mesma origem, pode assumir significados

distintos em seus discursos.

Ao examinarmos as análises de Eunice Durham (2004) e Ruth Cardoso (1988;

1994), encontrávamos termos como "busca por direitos e cidadania". O reconhecimento

pode ser interpretado como uma efetivação formal da conquista dos dois objetivos

citados por ambas as autoras – sob os marcos das leis e das instituições. No

entanto, ele os extrapola, uma vez que se pretende efetivá-lo também do ponto de

vista moral, isto é, que seja legítimo aos olhos dos outros. Por sua vez, a luta diria

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respeito ao conjunto das ações práticas, que são o meio de se alcançar e manter

esses fins.

Os processos de subjetivação dos indivíduos descritos nas etnografias tem

como ponto de partida o momento em que se tornou compreensível para eles que

sua adesão à luta poderia efetivamente lhes proporcionar mudanças. Trata-se de

indivíduos que se enxergam como privados de sua cidadania e limitados no acesso

a parte de seus direitos, e que, a partir de sua relação com movimentos sociais

instituídos, assumem-se como sujeitos políticos. Com isso, passam a lutar pelo

desvelamento de uma situação que reduz ou mesmo suspende o acesso aos seus

direitos enquanto cidadãos e compromete sua própria dignidade.

A conquista de demandas por parte de outros em situação análoga é

motivadora para que se forme a convicção de que, engajando-se na luta, pode-se

igualmente aspirar a direitos e reconhecimento. A isso vem somar-se o fato de que a

união em torno de uma luta comum acaba por integrar aqueles que aderem à

militância, ao oferecer-lhes um espaço de convívio e sociabilização e, ao mesmo

tempo, a possibilidade de alcançar maior coerência interna.

O movimento inicial é posto em marcha pela identificação de uma condição

interpretada como lesão moral e desrespeito, "uma 'experiência moral' de desrespeito

cujos termos se elaboram nos contextos sociais particulares" (MONTERO; ARRUTI.;

POMPA, 2012, p 33-34), a qual exige reparação na forma de reconhecimento. Esta

dimensão leva pesquisadores a se debruçarem sobre a constituição, apropriação e

representação das identidades culturais e, consequentemente, políticas, que irão se

inserir na agenda política da busca por reconhecimento. As identidades não

pertencem a categorias estanques e absolutas; elas são negociadas. São agentes que

promovem a mediação das alteridades, por meio de sua categorização, comparação e

generalização. Assim fazendo, negociam as categorias portadoras de identidade.

A pesquisa de Melo ilustra bem a política de reconhecimento, processo no

qual grupos lutam por assegurar o direito às suas formas de vida social, ameaçadas

por padrões hegemônicos ou homogeneizantes. Uma vez estabelecido o canal de

diálogo entre organismos do Estado e o MNPR, os moradores de rua que estavam

reticentes em se envolver com o movimento passaram a perceber a importância do

que estava sendo construído e passaram a admitir que, finalmente, sua voz poderia

ser escutada:

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Eu tinha boca e medo de falar. Tinha olho e fechava. E o movimento me ensinou. Já tomei porrada, já fui expulso de vários lugares e hoje tenho respeito, a gente sabe que tem direito e tem que saber usar na hora certa. A gente é trabalhador, alguns não têm estudo, mas o movimento ensinou muito [...] o movimento pra mim é lutar pelos direitos da constituição, se não se mexer não consegue [...]. (MELO, 2011, p.171).

Esta passagem sinaliza uma percepção do processo de subjetivação

resultante da relação com os movimentos sociais: as pessoas que foram objetos da

pesquisa etnográfica durante muito tempo viam-se apenas como indivíduos que eram

privados de sua cidadania e tinham seus direitos frequentemente desrespeitados. A

singularidade de seu modo de vida, sem residência ou trabalho fixos, impedia-os de

pleitear acesso a documentos e programas sociais, já que essa mesma condição

não lhes proporcionava elementos indispensáveis a certa racionalidade burocrática.

A isso vem somar-se a vulnerabilidade que os caracteriza: vítimas de agressões por

parte de policias e guardas municipais. A partir da organização e da articulação

política, foi possível elaborar uma nova percepção acerca de si próprios, a partir a

qual reconhecem o direito de falar e o de reivindicar sua cidadania, assim como o de

ter acesso às prerrogativas que a especificidade de sua situação demanda – e

compreendem que isso tudo é tangível.

A parcela da população de rua estudada por Melo se deu conta de que, para

eliminar os estigmas que lhes eram impostos, sobretudo sua suposta incapacidade

de agência, os preconceitos de que eram alvo, a dignidade ferida e as violações de

direitos, era necessária a mobilização para assumir o protagonismo da luta por

direitos e reconhecimento. Como resultado da sua relação com o MNPR, as pessoas

a ligadas a esse movimento passaram, de acordo com seus relatos, a ser mais bem

recebidas por gestores públicos e a ter acesso a programas sociais como os ligados

à habitação ou o Bolsa-Família, por exemplo, e, acima de tudo, também à emissão

de documentos que não possuíam, como carteiras de identidade, de trabalho e

outros, imprescindíveis para o cadastro em qualquer dos programas mencionados

ou para a abertura de conta bancária. Tal feito é encarado como uma conquista para

a população em situação de rua vinculada ao movimento.

A participação ativa da população de rua em reuniões, ensejadas pelo MNPR,

passa então a ter suma importância no processo que um dia poderá possibilitar que

esses indivíduos abandonem a vida nas ruas. Essa abertura, que era vista como

Ruth Cardoso (1994) como o grande trunfo dos movimentos sociais (e não sua

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"pureza" ou "mácula", pela cooptação), é algo que vai exercer influência no processo

de subjetivação desses indivíduos. Como ficou claro, a percepção de que a atuação

política dos indivíduos é capaz de proporcionar conquistas práticas através dos

diálogos estabelecidos, pode trazer um novo olhar e motivar os que se viam

excluídos e se comportavam com resignação.

Com a abertura desse canal no horizonte, os eventos organizados pelos

moradores de rua (fóruns, seminários e reuniões)29 passaram a problematizar a questão

de como trabalhar no processo de elaborar discursos acerca de si mesmos. Entre os

principais objetivos expostos estavam o esforço pela desinvisibilização30 da situação

dos moradores de rua e a demonstração de sua própria capacidade de agência,

tornando claro que estavam cientes de que seus direitos eram desrespeitados e que

exigiam seu reconhecimento pelo Estado. Uma vez estabelecido o canal entre os

eles e o Ministério Público, via Movimento, o que lhes possibilitava fazer solicitações

ou denúncias, a partir das reuniões realizadas com esse órgão, a voz dos moradores

de rua passou a ser escutada, o que os dotou de maior capacidade de reivindicação

e ampliou as possibilidades de que suas demandas fossem atendidas.

29 • 4 e 5 de novembro de 2009: II Seminário Sobre População de Rua (organizado pela articulação de ONGs).

• 08 de dezembro de 2009: audiência pública sobre projeto de lei (articulada pelo Pastor Varella). • 26 de janeiro de 2010: I Fórum Permanente da População em Situação de Rua (organizado

pelo MNPR em parcerias que culminaram na criação do GTIS). • 27 a 29 de janeiro de 2010: Encontro Nacional de Formação do MNPR em Cajamar/SP. • 11 de março de 2010: I Arte da Rua (MNPR – GTIS). • 18 de março de 2010: II Fórum Permanente da População em Situação de Rua (MNPR-GTIS). • 25 de maio de 2010: II Arte da Rua (MNPR-GTIS). • 26 de maio de 2010: III Fórum Permanente da População em Situação de Rua (MNPR-GTIS). • 24 de abril de 2010: Fórum Nacional da População em Situação de Rua (MNPRGTIS). • 23 e 24 de julho de 2010: Seminário da População em Situação de Rua – Região Sul (MNPR-GTIS). • 24 de agosto de 2010: 2.ª Marcha Nacional da População em Situação de Rua, realizada em

Brasília (MNPR). • 15 de outubro de 2010: IV Fórum Permanente da População em Situação de Rua. • 06 de novembro de 2010: I Encontro de Formação Política da População em Situação de Rua. • 12 de novembro de 2010: Encontro sobre Saúde da População em Situação de Rua – Saúde

Mental (MNPR-GTIS). • 12 de dezembro de 2010: Encontro de Confraternização (MNPR-GTIS-Meninos de 4 Pinheiros). • 16 de março de 2011: III Seminário sobre População de Rua – "reinserção social" (ONGs). • 29 e 30 de março de 2011: II Seminário da População de Rua de Salvador/BA. • 18 de maio de 2011: I Oficina Estadual sobre Moradia e População em Situação de Rua em

Curitiba-PR. • 27 de julho de 2011: Fórum Estadual da População de Rua sobre Segurança Pública. (MELO,

2011, p.194).

30 Categoria do autor. Apesar de ele utilizar invisibilidade e visibilidade, o de desinvisibilização, especificamente, é meu.

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Quanto à pesquisa de Alinne Bonetti, ainda que seu objeto seja o movimento

feminista de base, o ingresso da pesquisadora no campo feminista de Recife se deu

através do Fórum de Mulheres de Pernambuco, que congregava as mais diversas

entidades e organizações feministas da cidade. Ao longo da descrição das tensões

que aí surgiam em consequência do encontro de tantos grupos com recortes distintos,

torna-se claro que o próprio contato entre mulheres de diferentes matrizes feministas

era, por si só, um fator de subjetivação, no sentido de que mulheres pertencentes a

determinadas frações presenciavam a luta das outras pelo reconhecimento de suas

singularidades. Segundo a visão da autora, o encontro permite que as feministas de

base percebam o que as distingue das feministas de elite, as negras das brancas, as

lésbicas das não lésbicas e assim por diante, cristalizando-se a especificidade da

luta que cabe a cada fração, uma vez que sua demanda não será necessariamente

encampada pelas outras frações feministas.

O esforço do FMPE em espraiar o feminismo pelas diversas camadas da

sociedade é, por si só, um convite ao processo de subjetivação das mulheres, ao

explicitar a sua potencialidade de agência e ao mostrar-lhes uma série de questões

dignas de engajamento, incitando-as à participação na vida política e à sua transformação

em agentes de mudanças. Esse esforço, porém, comporta disputas, que por sua vez

são emblemáticas. Ainda que num primeiro momento os conflitos e discussões possam

parecer algo indesejável para a harmonia do fórum, o confronto de experiências

explicita as singularidades de cada experiência, expandindo e multiplicando as

possibilidades de sujeitos políticos que aí podem se constituir. Em vez de se engajarem

apenas pela condição de mulher, as questões apresentadas podem lançar luz sobre

as singularidades de ser mulher e negra, mulher e lésbica, mulher e trabalhadora/

moradora de periferia, etc.

A antropóloga destaca também que a militância por muitas vezes se apresenta

como possibilidade de ascensão social, sendo vista por algumas integrantes do

movimento como uma oportunidade de aliar aquilo por que se luta com a possibilidade

de obter retornos financeiros. A militância oferece novas experiências, como viagens,

ampliação do círculo de contatos com outros atores, relações de prestígio, etc. No

entanto, a ascensão social individual é vista por outras participantes dos movimentos

de base como uma ameaça à sua existência, uma vez que, passando as lideranças

a aspirar espaço no campo político feminista mais amplo, ficaria fragilizada sua luta

mais imediata. A trajetória do Grupo de Mulheres da Vila também se mostra fértil na

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compreensão das dinâmicas da vida política do bairro, bem como do papel das

mulheres na história local. Como se mencionou, foi a partir de uma mobilização da

Associação de Trabalhadoras Domésticas que se conseguiu o atendimento, por

parte das autoridades, à demanda por moradias a serem ocupadas por domésticas.

Bonneti enfatizará que, para além da mencionada "maternidade militante", o

que caracteriza esse grupo de mulheres é o compartilhamento de suas trajetórias de

mães solteiras e sua politização. É como se aquele que veio a ser o grupo político

desas mulheres substituísse a sua família, passando a constituir os laços mais

sólidos que possuíam. É como se os laços mais amplos com o feminismo e a política –

para além do imediatismo da vida cotidiana, fruto das suas relações com o Fórum e

outras frentes políticas – permeassem suas vidas privadas, tornando difícil separar da

esfera particular o tecido político. Como a autora irá definir, ocorre uma hiperpolitização

da vida dessas mulheres. O simples fato de grande parte das mulheres ligadas ao

grupo serem solteiras, um sinal negativo para a vizinhança, fez com que esse estigma

fosse transformado num código de distinção entre elas. Politizando seu posicionamento

em relação ao matrimônio, estas mulheres se atribuíam maior capital político, adotando

uma espécie de símbolo de resistência, que as dotava de coerência interna. Chegaram

juntas à Vila por via dos esforços políticos do sindicato, foram depreciadas pelos

moradores por serem solteiras e vistas como uma ameaça às famílias existentes, e

mesmo assim permaneceram "íntegras" – sem se envolver com os homens casados –

e lutaram por melhorias no local. Inevitavelmente, o que as une e as distingue das

mulheres anteriormente estabelecidas na Vila – e casadas – é o seu ethos politizado.

Essas passagens significativas da experiência etnográfica de Alinne Bonetti

(2007) são reveladoras de como se deram os processos de subjetivação de algumas

mulheres e de que maneira a sua transformação de indivíduos em sujeitos políticos

dotou de significado suas vidas.

Essas duas pesquisas têm em comum o fato de trazerem à luz a busca pela

afirmação da capacidade de agência de grupos subalternos. Como se discutiu a

propósito do livro de Spivak (2010), a capacidade de enunciação dos atores subalternos

pode encontrar dificuldades quando não está acompanhada de um discurso mais

legitimado, como o acadêmico ou o político. Os casos estudados, no entanto, mostram

uma tentativa não só de enunciação própria, como também de agência por parte

desses grupos, com vistas a tornar a singularidade de sua situação reconhecida pelo

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Estado e pela sociedade. Comprovemos isso retomando um episódio relatado na

etnografia de Bonetti.

Com vistas à celebração do Dia das Domésticas, comemorado a 27 de abril,

deu-se uma reunião em que se decidiria – pelo Fórum em conjunto com o Sindicato

das Domésticas – quando, onde e como se faria a comemoração. Considerando-se

que o Fórum iria disponibilizar a verba e alguns serviços para o evento, as lideranças,

que pouca relação tinham com a realidade das feministas da base, passaram a fazer

suas propostas quanto ao local e às atrações, sem levar em consideração o que as

mulheres da base pensavam. Exemplo da dissintonia foi a escolha de alguém para

fazer "voz e violão", algo mais próximo da MPB e da Bossa Nova, que pouco

apetecia ao público do evento. No entanto, tal sugestão foi acatada sem contestação

aparente pelas mulheres do sindicato, produzindo impressão de passividade, de

falta de agência.

Ao chegar o dia da comemoração, Bonetti foi surpreendida por uma

apresentação de brega e afoxé, estilos mais ao gosto das presentes. Chamou sua

atenção, também, a ausência das mulheres do Fórum que participaram da reunião e

tomaram as decisões sobre o evento. Ficou claro, então, para a antropóloga que,

dada a assimetria das relações de poder existentes naquela reunião, as empregadas

domésticas apelaram para um "roteiro oculto" (SCOTT, 1990 apud BONETTI, 2007,

p. 137), que seria uma política dos subordinados praticada indiretamente em relação

aos dominadores. Bonetti (2007) presumiu que alguma outra liderança – que estava

ausente da reunião – foi acionada para que, com seu capital político, tornasse a

comemoração mais adequada ao grupo "de direito".

A afirmação política da expressão cultural foi tematizada também por Marcio

Goldman (2006). Na sua introdução ao livro Como funciona uma democracia, ele

explica os motivos que o levaram a etnografar as relações políticas do Movimento

Negro na cidade de Ilhéus (BA). Recusando-se a estudar o Movimento Negro e sua

relação com a política a partir da ausência daquilo que não possui ou daquilo que o

movimento não é, o antropólogo irá estudar aquilo que exerce papel central na vida

de seus participantes e que lhes é efetivamente relevante: a relação com a música.

Uma das atividades organizadas pelo grupo eram os blocos musicais de carnaval.

Ainda que, aos olhos dos outros, esses blocos pouco tivessem a ver com política, era

uma atividade que dotava de dignidade e significado a vida de pessoas sistematicamente

discriminadas em seus cotidianos. E para que de fato acontecessem, esses blocos

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geralmente precisavam se relacionar com a prefeitura ou com políticos, tornando

essa etnografia necessariamente também política. Suas práticas, discursos e

silêncios em relação às esferas do poder são potencialmente muito reveladoras de

suas percepções da política. Fazendo referência a Foucault, é necessário tentar

"decodificar a política por meio de filtros oriundos de outros meios sociais" (FOUCAULT,

1980 apud Goldman 2006, p.101-102) a fim de dar voz aos saberes subalternos,

desqualificados pelo conhecimento científico. Nesse aspecto, a etnografia vai ao

encontro do que Ana Maria Doimo (1995) destacou: determinados segmentos

subalternos realizam uma migração de foco do econômico para o cultural, assim

despontando na esfera pública. Seria sobretudo uma busca por reconhecimento e

dignidade o que se verifica em meio à população negra de Ilhéus, estando sua

demanda alinhada com o que foi exposto anteriormente, a partir tanto das

considerações de Nancy Fraser (2007) quanto do artigo de Montero, Arruti e Pompa

(2012). Não seria exagerado afirmar que essa manifestação do movimento negro

guarda proximidade com a ideia de luta, uma vez que o grupo se une a fim de

combater a discriminação à qual são submetidos e defender sua própria dignidade.

A propósito dessa forma de conduzir disputas no campo, Bonetti (2007)

usará a expressão de Nancy Fraser (2007): "contra-públicos subalternos". Esta ideia

pode nos remeter ao artigo de Fernando Perlatto (2015) intitulado Seletividade da

esfera pública e esferas públicas subalternas: disputas e possibilidades na modernização

brasileira, no qual defende que, à parte da esfera pública institucionalizada, existem

esferas públicas subalternas. Desde o século XIX, as camadas subalternas resistem

de diversas maneiras ao discurso hegemônico, antes por performances, falas ocultas,

mecanismos de humor e ironia que por discursos formalmente redigidos. Parece-me

que esse conceito se encaixa na passagem acerca do conflito envolvendo as

atrações musicais da festa das domésticas.

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5 BALANÇO/CONCLUSÃO

Nossa reflexão sobre os movimentos sociais tomou como ponto de partida o

debate mais amplo da literatura das ciências sociais, que tem alguns marcos de

referência. Ao nos debruçarmos sobre a trajetória das pesquisas relativas ao tema

na antropologia brasileira, percebemos que, num primeiro momento, foi apresentada

pelas antropólogas uspianas, aqui vistas, certa proposta de diretrizes gerais do que

seria importante observar em tais movimentos. Em maior ou menor grau, os enfoques

por elas propostos procuravam estabelecer certo contraponto a alguns conceitos da

sociologia política.

Essas pesquisas contemporâneas permitiram ratificar certas apostas da

sociologia política, que viam nesses movimentos potencialidade para aprofundar a

democracia e a participação política, por se colocarem eles como interlocutores no

debate político e apresentarem suas demandas, sem que isso necessariamente

significasse uma cooptação passiva de sua parte. As etnografias estudadas ilustram

diversas observações feitas na literatura, das quais cabe destacar três. A primeira

diz respeito às relações que os movimentos projetam para seu exterior. Ruth

Cardoso (1994) em A trajetória dos movimentos sociais, interpretou como relevante

o fato de que estes movimentos estabeleceram um canal de diálogo com o Estado

ao buscarem acesso a direitos. Essa faceta pode ser confirmada em ambas as

etnografias aqui estudadas.

A segunda observação tem a ver com a organização interna dos movimentos.

Como assinalava Eunice Durham (2004) a respeito da hierarquização ou não dos

movimentos, aqueles manifestavam aspectos mais comunitários e menos

hierarquizados tendiam a dar mais espaço para a vocalização de pessoas ainda não

tão inseridas no movimento. A etnografia de Bonneti (2007) permite tal conclusão ao

demonstrar a fragmentação existente no Fórum de Mulheres, em que convivem

vários grupos menores dedicados a condições e demandas específicas. Ainda que

esses grupos possam posteriormente entrar em atrito entre si, num primeiro

momento sua existência parece ser decisiva para a adesão de novas mulheres e sua

integração em um grupo menor e mais coeso.

Por fim, olhados segundo a perspectiva de Teresa Caldeira (1984), os

movimentos se notabilizam por buscarem basicamente reconhecimento e direitos civis,

ficando em segundo plano os direitos trabalhistas e previdenciários. E essa busca se

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impõe, sejam ou não os participante "pessoas direitas", tal como concebidas pelos

moradores de periferia estudados por Caldeira (1984). Não seriam "pessoas direitas" os

moradores de rua, que não têm moradia, trabalho formal, família, etc.; e justamente

querem ser vistas como tais as mulheres solteiras mencionadas por Bonetti (2007),

que reiteravam não terem se envolvido com homens casados quando chegaram à

nova vila. Trata-se de aspiração ao acesso a direitos que já são outorgados a outros

setores da sociedade, que lhes devem ser reconhecidos, independentemente de

aspectos morais.

Iluminada por esse debate, a análise dessas etnografias permitiu detectar as

etapas e momentos constituintes do processo de subjetivação aqui observados. A

experiência própria de uma situação de desrespeito à integridade moral, que de

alguma forma agride a pessoa em sua qualidade de cidadão, portador de direitos, é

um dos primeiros passos desse processo. Trata-se de uma percepção contínua,

uma vez que está fora do alcance dessas pessoas a possibilidade de mudar por si

mesmas o que as mantém em situação de vulnerabilidade perante os outros. Essas

pessoas não podem e, algumas vezes – com razão –, nem devem ter como objetivo

mudar sua condição, como se vê nos casos de gênero e etnia, por exemplo.

Posteriormente, dá-se em algum momento o contato com pessoas inseridas

num mesmo contexto mas que, ao se organizarem coletivamente em movimentos

sociais, foram capazes de alcançar conquistas consideráveis. Esse exemplo de

sucesso, qualquer que seja sua dimensão, torna-se um convite a aderir à luta coletiva,

que se apresenta como mais fértil do que a mera resignação.

Feita a inserção nesse meio, abre-se espaço para uma troca de experiências

que permite aos seus membros a possibilidade de vocalização, por exemplo, de

levar às reuniões situações e experiências vividas que poderão traduzir-se em temas

incorporados às pautas de suas reivindicações perante as esferas competentes do

poder público com as quais venha a se estabelecer um canal de diálogo. Disso são

exemplos bem sucedidos os retratados nas etnografias estudadas ou na observação

participante realizada na assembleia dos Movimentos Sociais de Curitiba, em que

pessoas oriundas de diferentes movimentos expõem os motivos que deram origem

às sua lutas. Para além desse caráter mais pragmático, da busca por acesso a direitos

e por reconhecimento, os movimentos caracterizam-se por restituir a autoestima aos

seus integrantes, uma vez que a coerência pode gerar uma noção de identidade

interna e de pertencimento ao grupo, o que se traduz por solidariedade. Não só se

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afastam os estigmas que tais pessoas sofriam quando isoladas, mas também elabora-se

uma adesão afirmativa em relação à condição que outrora era causa de estigma.

A questão do estigma é mais flagrante no caso estudado por Melo (2011)

entre a população de rua; no entanto, uma das preocupações de Bonetti (2007) é

demonstrar que as mulheres podem acumular mais de um estigma, sendo elas

moradoras de periferia, negras, lésbicas, etc., o que pode distanciá-las ainda mais

do acesso ao reconhecimento e a certos direitos. Quando, porém, se olha para os

movimentos que compunham a Frente Popular, dada a polifonia que nela se manifesta,

pode-se afirmar que havia movimentos mais e outros menos estigmatizados. A essa

distribuição desigual de estigmas, por assim dizer, vem somar-se a distribuição

desigual de poder e de prestígio: alguns movimentos, por serem ou mais atuantes ou

mais estruturados politicamente, acabam assumindo a liderança dessa frente. No

entanto, a nova identidade afirmativa gerada pelo contato não é estanque; ela está

em permanente negociação e mutação, em função da diversidade de discursos,

tanto internos quanto adjacentes aos movimentos.

Essas etapas podem consolidar um ethos militante entre os envolvidos tanto

numa luta permanente pelo acesso a direitos e cidadania, por um lado, quanto numa

forma de "profissionalização política", que pode culminar em formas de ascensão

social, expandindo seu horizonte de atuação para áreas mais gerais, menos específicas

do que aquelas em que iniciaram sua trajetória. É possível concluir, portanto, que essa

relação dos indivíduos com os movimentos sociais – consolidada pela subjetivação –

pode operar em três dimensões: moral, a partir dos seus reflexos em termos de

autoestima, pertencimento, respeito, etc.; cidadã, ao possibilitar acesso a direitos e à

cidadania; e profissional, ao inserir indivíduos em meios políticos mais amplos e

mais profissionalizados.

O contato com os movimentos sociais tem o potencial de levar seus membros

a emancipar-se da relação de dependência identificada por Spivak (2010). Indivíduos

em condição de subalternidade procuram estar acompanhados de terceiros que

gozam de maior reconhecimento, aos quais delegam sua voz. Pode-se entender que,

inicialmente, os indivíduos por vezes operem essa delegação; subsequentemente,

porém, a vivência do movimento ensejará a transformação de subalternos em sujeito

coletivo. Com isso, abre-se a possibilidade de vocalização própria e mais autêntica

das demandas pelas quais lutam e que desejam fazer chegar a seus destinatários.

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O percurso desta monografia permitiu analisar uma série de elementos

presentes no debate acadêmico acerca dos movimentos sociais dentro de diferentes

áreas das ciências sociais, tanto no passado quanto no presente. A dinâmica observada

na Frente Popular, assim como seus esforços por uma composição harmoniosa

entre grupos com diferentes pautas, já era um indício de que as pessoas engajadas

nesse meio têm certa noção do fracionamento interno inevitável nesse tipo de

grupamento. A reivindicação de cada grupo pelo direito a ser o porta-voz de sua

própria causa foi também um elemento que constataríamos mais adiante, em outros

textos antropológicos. O mesmo vale para a disposição de certos grupos em demandar

que o Estado garantisse mais acesso a direitos para determinadas parcelas da

sociedade. Portanto, a aproximação etnográfica feita em Curitiba, com aquele movimento

incipiente, de sujeitos procurando se posicionar politicamente numa conjuntura

determinada, ainda que não tenha vindo a prosperar na prática, permitiu um primeiro

contato com esse universo, tornando possível identificar alguns códigos, discursos e

ações comuns aos movimentos sociais, que seriam fundamentais para a sua

compreensão ao longo deste exercício monográfico.

Esses movimentos, objetos das mais diversas interpretações acadêmicas,

como vimos aqui, estão em permanente negociação acerca de seus limites e de

suas potencialidades, o que alimenta a renovação contínua de sua análise. O olhar

mais contemporâneo sobre a questão da subalternidade, bem como uma observação

etnográfica mais engajada, permitem lançar nova luz sobre a capacidade de agência

dos indivíduos e da construção dos sujeitos coletivos.

Enfim, o exame do processo de subjetivação, feito a partir das monografias

escolhidas em face do exercício de observação participante feito em Curitiba e da

literatura selecionada, permitiu mobilizar elementos que permitem acompanhar o

olhar etnográfico contemporâneo, e assim refinar nosso próprio olhar, e ampliar

nossa capacidade de análise.

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