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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CURSO DE LETRAS
BACHARELADO COM ÊNFASE EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO
O LUGAR DA TRADUÇÃO NO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA MODERNA
GABRIELA DE AZEVEDO LEÃO REGO
CURITIBA
JUNHO 2008
ii
GABRIELA DE AZEVEDO LEÃO REGO
O LUGAR DA TRADUÇÃO NO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA MODERNA
Monografia apresentada à disciplina de Orientação
Monográfica II do Curso de Letras Português-Inglês da
Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para
a obtenção do título de Bacharel em Letras com ênfase em
Estudos da Tradução.
ORIENTADOR: PROF. DR. MAURICIO MENDONÇA CARDOZO
CO-ORIENTADORA: PROF. DRA. CLARISSA MENEZES
JORDÃO
CURITIBA
JUNHO 2008
iii
Aos meus amigos, às minhas famílias e, principalmente, ao
meu marido, Rafael.
Serei sempre grata ao meu orientador, Mauricio, pela
paciência e pela competência. Agradeço, também, à minha
co-orientadora, Clarissa, por toda a colaboração valiosa.
1
Resumo
O presente trabalho é uma reflexão sobre o lugar da tradução no pensamento acerca
do ensino de línguas estrangeiras modernas a partir da relativização das noções tradicionais
de língua e da dicotomia teoria versus prática. A busca por uma definição do conceito de
tradução exerce papel fundamental, pois é a base que parece escapar aos estudos de
lingüística aplicada ao ensino, ainda que, como advogo aqui, tenha muito a contribuir para
o ensino/aprendizado de LE, principalmente quanto à relativização do significado da língua
estrangeira e da própria língua-materna. A reavaliação dos métodos etnocêntricos e,
também, o processo de construção de identidade são conseqüências diretas da reflexão
proposta. A constante redefinição do papel e do lugar da tradução no ensino de LE,
portanto, pode contribuir significativamente com trabalhos futuros que partam tanto do
ensino de línguas estrangeiras quanto da lingüística aplicada ao ensino.
Palavras-chave: tradução, ensino de línguas estrangeiras, teoria versus prática, lingüística
aplicada.
2
Abstract
This work aims at constituting a reflection about the place of translation in the
academic thinking regarding modern foreign language teaching. The reflection derives
from the relativization of the traditional notions of language and of the theory versus
practice dichotomy. The search for a definition of the concept of translation plays an
important role in the paper, for it is the groundwork which seems to be lacking in the
applied linguistics studies, even though, as I defend here, this definition has a lot to
contribute for the teaching/learning of foreign languages, mostly as to the relativization of
the notions of meaning, foreign language and mother language. The re-evaluation of
ethnocentric methods, as well as the process of identity construction are direct
consequences of the proposed reflection. The constant redefining of the role and place of
translation in the teaching of foreign languages, therefore, can contribute significantly to
future research both in the teaching of foreign languages and in applied linguistics.
Keywords: translation, foreign language teaching, theory versus practice, applied
linguistics.
3
Sumário
RESUMO........................................................................................................................................................... 1
ABSTRACT....................................................................................................................................................... 2
1. I�TRODUÇÃO............................................................................................................................................. 4
2. A TRADUÇÃO EXCLUÍDA DA SALA DE AULA .................................................................................. 5
2.1 A DIMENSÃO PRÁTICA.............................................................................................................................. 5 2.2 A DIMENSÃO TEÓRICA.............................................................................................................................. 9
3. POR UM LUGAR DA TRADUÇÃO �O E�SI�O DE LÍ�GUAS ESTRA�GEIRAS ....................... 12
3.1. A DIMENSÃO TEÓRICA............................................................................................................................ 12 3.2 A DIMENSÃO PRÁTICA ............................................................................................................................. 16
4. A DIME�SÃO POLÍTICA DA TRADUÇÃO �O E�SI�O DE LÍ�GUAS ESTRA�GEIRAS ........ 20
CO�CLUSÃO................................................................................................................................................. 24
REFERÊ�CIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................................... 27
4
1. Introdução
A motivação para este trabalho surgiu da angústia de quem passou os anos da
faculdade num lugar in between, num espaço entre os estudos da tradução e a prática do
ensino de inglês como língua estrangeira. Foi a partir da convivência com colegas também
professores de inglês no Centro de Línguas e Interculturalidades da UFPR (Celin), tanto no
dia-a-dia quanto nos espaços de discussão em reuniões, que surgiu a idéia de escrever um
trabalho que juntasse as minhas metades: o ensino de língua estrangeira e a tradução.
Cerca de um ano atrás uma colega de trabalho me perguntou como deveria trabalhar
com a tradução de textos escritos em sala de aula. Na época, ela usava a tradução como
prática de interpretação de textos escritos, mas estava angustiada porque os alunos “não
sabiam traduzir” e perguntavam para ela qual a fórmula a ser seguida. Minha colega
tampouco tinha uma resposta, então recorreu a mim, bacharelanda em estudos da tradução,
que, naturalmente, deveria ter algum truque na manga. Não foi sem desapontamento que ela
não conseguiu a resposta que buscava.
A expectativa dessa minha colega diz muito sobre a expectativa que professores e
alunos de línguas estrangeiras modernas têm sobre o que é traduzir e o que é tradução.
Procuro refletir no presente trabalho, portanto, sobre as implicações teóricas e práticas
advindas dessa postura de que a tradução é uma mera técnica com fórmulas a serem
empregadas.
Parto da relativização das noções positivistas de língua e da dicotomia teoria versus
prática tradicionalmente embutidas no ensino de LE. Ensaio uma relativização do
significado tanto da língua estrangeira quanto da própria língua materna, buscando discutir
o lugar da tradução no pensamento e na prática do ensino de línguas estrangeiras modernas,
pois que esta parece ser a base fundamental que escapa aos estudos da lingüística aplicada
ao ensino de LE. Avalio as implicações teóricas e práticas advindas de uma discussão
conceitual da tradução, especialmente porque essa discussão pode contribuir com o
ensino/aprendizado de línguas estrangeiras.
Ao questionamento da produção teórica que se refere à tradução no ensino de língua
estrangeira exposta nas pesquisas da lingüística aplicada e do ensino de línguas, portanto,
dedico o capítulo que se segue.
5
2. A Tradução Excluída da Sala de Aula
2.1 A Dimensão Prática
Quando me refiro à dimensão prática da tradução nos estudos de ensino de língua
estrangeira, procuro levantar um problema que muitos preferem manter em sono profundo.
A tradução, de modo geral, vem sendo há décadas evitada, quando não completamente
ignorada, por vários métodos de ensino de línguas estrangeiras modernas. Ao contrário
disso, no campo da didática das línguas clássicas, por exemplo, a tradução como técnica
parece ser há muito tempo o mecanismo didático dominante empregado pelos professores e
produtores de metodologias e materiais mais tradicionais. Mais recentemente, no entanto,
têm surgido, nessa área, novos modos didáticos com ênfase no ensino da habilidade de
leitura, relativizando o papel da tradução como único mecanismo didático disponível para o
ensino dessas línguas, mas ainda sem relativizar a própria concepção de tradução adotada.
(cf. Moita Lopes, 1994; Alzir Oliveira, s/d)
Não obstante, a tradução insiste em resistir como técnica de aprendizado na mente
daqueles que se aventuram a aprender línguas estrangeiras, e também como técnica de
ensino na mente daqueles que ensinam línguas estrangeiras, sejam elas quais forem. A
tentativa de relacionar o desconhecido com o que já é conhecido parece ser um processo
espontâneo e, portanto, impossível de ser completamente ignorado. Por mais que se tente
manter a língua materna separada da língua estrangeira em sala de aula, a experiência
prática nos leva a crer que, na cabeça do aluno, elas continuam ligadas1. Não faz sentido
tentar reprimir uma das línguas que já se fala pra aprender outra. O processo de
aprendizagem necessariamente passa pela construção de relações do que já se sabe com o
que se está aprendendo, mesmo porque não temos o poder de jogar fora este ou aquele
conhecimento ao bel prazer. Se temos consciência disso quando lemos uma matéria de
jornal ou assistimos a uma aula de história da arte, porque não podemos aceitar essa
condição – repito, espontânea – quando ensinamos uma língua estrangeira?
As razões que levam as pessoas a estudarem uma língua estrangeira mudaram com o
tempo, de modo que o ensino dessas línguas também teve que ser repensado cada vez que
1 A relação entre a língua-mãe e as línguas estrangeiras, no que concerne o ensino de LE, será retomada mais adiante.
6
se sentia que certas práticas, teorias ou perspectivas já não se encaixavam naquele tempo. É
natural que as idéias mudem com o passar das épocas se acreditamos que buscamos o que
consideramos mais aceitável para aquele tempo, e não a verdade única de todos os tempos.
Os enfoques do ensino de língua estrangeira, portanto, variaram muito com o tempo.
A grande preocupação durante o século XIX e grande parte do século XX era a análise
formal dos sistemas lingüísticos. Como exemplo, podemos citar o método de gramática e
tradução e o áudio–lingual, em que a sentença era a unidade primária de um estudo
organizado por categorias lingüísticas. Essas abordagens têm um histórico de ligação com
as próprias teorias lingüísticas em voga na primeira metade do século XX, as teorias de
linha estruturalista, que faziam da análise e descrição da própria língua materna um estudo
sistemático de relações abstratas entre elementos de um único sistema. Quando se passa
para o ensino de língua estrangeira, acaba essa perspectiva acaba refletindo no modo
estruturalista de pensar a sentença como unidade de análise, na ênfase em metalinguagem
gramatical, na ênfase em estudos comparativos entre as línguas, na não-comunicatividade
etc. (cf. Mussalim e Bentes, 2004, caps. 1 e 2)
Já nos anos 60, com os estudos de Chomsky e Krashen2 (cf. Kern e Warschauer apud
Martins, 2003: 29), o objetivo do ensino passou a ser a construção mental das gramáticas
das línguas a partir de testes de hipóteses para se descobrir e adquirir a língua estrangeira.
Depois, veio a preocupação com o conteúdo, de modo que se buscava ocupar os alunos
com tópicos não referentes explicitamente à linguagem, mas com a “vida real”.
Em suma, não é preciso observar exaustivamente as mudanças desses focos e
perspectivas para perceber que uma série de visões embutidas em cada um deles é parte
fundamental da mudança. Por exemplo, visões de língua, de ensino, de aprendizagem, de
técnicas etc., tudo sempre com base no que veio antes e moldando teoria e prática.
É curioso, no entanto, perceber que a tradução, que por séculos foi a base fundamental
do ensino de língua estrangeira, não foi repensada conceitualmente junto com outras
questões. Praticamente desde os ataques ao método gramática e tradução, ela foi deixada de
lado e ganhou fama de ultrapassada. Os problemas advindos dessa fama são bastante
questionáveis e devem ser revistos.
Em primeiro lugar, o nome ‘gramática e tradução’,
2 Chomsky em si nunca falou de ensino de línguas estrangeiras, mas, no entanto, Krashen escreve influenciado pela nova orientação dos estudos da linguagem humana, especialmente a vertente inatista cognitivista liderada por Chomsky, que destrona o estruturalismo em voga até meados do século XX.
7
[...] cunhado pelos seus oponentes, guia a atenção para duas das características menos
significativas do método. A origem do método não vem do fato de se ensinar línguas
pela gramática e pela tradução, já que essas eram características comuns aos métodos
precedentes. (Howatt,; 1984: 131).
O método era antes uma tentativa de adaptar ao sistema de ensino nas escolas os
métodos tradicionais de estudo de gramática e posterior aplicação na interpretação de
textos, com auxílio de dicionários. Ou seja, foi uma tentativa de tornar o aprendizado mais
simples, tomando a sentença como unidade ao invés do texto. Mas quando o foco do ensino
deixou de ser o texto escrito, a tradução deixou de ser pensada e passou a ser lembrada
apenas como técnica retrógrada de ensino de gramática3.
Daí em diante, a postura mais popular foi abolir a tradução da sala de aula e
estabelecer um contexto monolíngüe, em que somente a língua estrangeira seria aceita.
Refiro-me aqui aos métodos posteriores à gramática e tradução, como o método direto, o
áudio-lingual, silent way, suggestopedia, e, principalmente, o método comunicativo,
adotado oficialmente pela grande maioria das escolas e centros de línguas hoje no Brasil. É
interessante notar que não só a tradução foi banida da sala de aula, como também nunca se
tornou alvo de pesquisa por grande parte dos estudiosos da lingüística aplicada ao ensino de
LE. Mas ela não sumiu efetivamente da sala de aula. Teimosa, ela continuou a persistir
como método de aprendizado informal na cabeça dos alunos, que passaram apenas a se ver
culpados e tendo que sussurrar no ouvido do colega ou colar de um dicionário bilíngüe. E o
professor, que comprou de olhos vendados as maledicências sobre a tradução, tampouco
deixou de recorrer à tradução num lapso quase criminoso de raciocínio espontâneo.
Um dos problemas resultantes da crença algo mítica de que se deve estabelecer um
ambiente monolíngüe em LE – em especial no contexto da abordagem comunicativa – é a
freqüente insegurança e frustração causada nos alunos de níveis iniciais, que se vêem
impedidos de falar qualquer coisa em sua língua materna no ambiente de sala de aula,
incluindo palavras importantes e necessárias para lidar em alguma medida com a língua.
Nesses casos, o professor é instruído a trabalhar com respostas que listem sinônimos da
3 A idéia de que a tradução está sempre ligada ao texto escrito é falsa não só por limitar as possibilidades da tradução como um todo, mas também pela leitura errônea de que os métodos tradicionais de fato se limitavam apenas ao texto escrito. Por mais que ele fosse o ponto de partida das aulas de língua estrangeira, em sala de aula a tradução era usada como uma técnica de prática oral, em que a oralidade, sim, era entendida a partir do registro escrito.
8
palavra desconhecida na própria LE, ou ainda produzir paráfrases (como num dicionário
monolíngüe – que, por sinal, é considerado pelos professores como mais adequado e mais
útil do que bons dicionários bilíngües), ou, em último caso (e não necessariamente
desvinculado das práticas anteriores), usar de linguagem gestual. O resultado, não
raramente, é que os alunos se sentem incapazes de entender a explicação convoluta do
professor e procuram meios alternativos de obtenção do significado desejado (após
gesticular ao professor como se tivessem entendido a explicação): perguntar ao colega mais
inteligente sentado ao lado, buscar a tradução em um dicionário bilíngüe etc.
Esses problemas, enfrentados em nossa prática de professores de línguas estrangeiras
no dia-a-dia ou em contextos em que observamos outros professores trabalhando (quando
somos instados a produzir relatórios de observações de aulas ou quando somos alunos e
professores ao mesmo tempo), poderiam ser minimizados em alguma medida com a
relativização da necessidade do ambiente monolíngüe e a abertura de espaço para algumas
instâncias do trabalho com tradução – assunto que retomarei mais adiante.
9
2.2 A Dimensão Teórica
Apesar de a lingüística aplicada ao ensino de línguas estrangeiras estar sempre muito
preocupada com o modo como melhor se aprendem e se ensinam as línguas, principalmente
o inglês (em vista de sua demanda), pouca atenção foi dada à tradução. O que se encontra
são trabalhos pulverizados aqui e ali, quando não apenas breves passagens dedicadas quase
que sem querer à tradução no ensino de LE.
De acordo com Cook4 (2007: 396), na lingüística aplicada, “houve vozes eminentes
que se levantaram de tempos em tempos em defesa da tradução (Widdowson 1979, 2003:
149-64; Stern 1992: 279-301; Kramsch 1993: 163-9; Canagarajah 1999: 129-32)”. Por
outro lado, “o tópico ou sequer aparece nas introduções-padrão (e.g. Ellis 1994, 1997;
Lightbrown & Spada 2006; Mitchell & Myles 2004) ou é tratado como uma curiosidade
histórica (Johnson 2001: 163-70, Richards & Rodgers 2001: 4-10).”
Ocorre que, se entendemos a tradução como um processo espontâneo na aquisição de
uma língua estrangeira, então, ao invés de ser banida, ela deve ser pensada. Se mesmo
banida ela não deixa de existir na prática, então a teoria deve amadurecer e dar suporte à
sua prática. É, portanto, fundamental que seja estabelecido o lugar da tradução no ensino de
língua estrangeira, pois a conseqüência de sua proibição não é o não-uso, como se haveria
de esperar, mas o mal-uso da tradução, uma vez que indevido e irrefletido.
No artigo já mencionado, intitulado “A thing of the future: translation in language
learning”, como o próprio título já sugere, Cook (2007) aponta a tradução como um tópico
para o futuro nas pesquisas da lingüística aplicada e afirma:
[...] ela permaneceu somente marginal no mainstream da lingüística aplicada e na
teoria de ensino de língua inglesa: tanto naquela dedicada ao estudo empírico dos
processos aquisicionais da linguagem, quanto naquela preocupada com a sociologia e
política do ensino de inglês no mundo globalizado contemporâneo. (Cook, 2007: 396,
tradução minha)
E mais adiante:
4 Guy Cook é professor de lingüística aplicada na University of Reading, na Inglaterra.
10
onde a tradução é mencionada, é freqüentemente só para ser prontamente rejeitada
como auto-evidentemente retrógrada e inútil (idem).
Além da falta de pesquisa sobre a tradução como meio de ensino, Cook aponta
também a questão da tradução como um fim, de modo que um aluno competente seria
aquele com capacidade tradutória. Assim, para além das outras quatro habilidades
tradicionais: leitura, escrita, escuta e fala, somar-se-ia uma quinta, a tradução.
A própria definição do que seria um fim no aprendizado de uma língua estrangeira,
segundo o autor, é um ponto difícil e mais comumente ignorado pelos estudiosos ou, ainda,
tratado como um estado não problemático, universalmente entendido como domínio da
gramática da fala estrangeira em contextos monolíngües.
Há poucos, se é que existem, estudos sobre como variaram histórica e culturalmente
as concepções de sucesso no aprendizado de LE. A preocupação se concentra em renovar
aquilo que diz respeito a ser um aluno bem sucedido. O método comunicativo e seus
sucessores, por exemplo, mudaram o foco da medida do sucesso no aprendizado de língua
estrangeira: passando do domínio das formas da língua para a habilidade de usá-las, para
suas funções. Além disso, o foco na linguagem formal e literária transferiu-se para a
linguagem “do dia-a-dia”, “real” e “autêntica”. Resumindo, passou-se a advogar em favor
de um tipo de linguagem que o aluno – supostamente – encontraria fora da sala de aula
quando se deparasse com o “mundo real”5. A crença é a seguinte: se o que se estuda é
potencialmente usável, então as aulas passam a ser mais motivadoras. Isto posto e aceito, há
que se perguntar, então, como o uso da tradução pode ajudar o aluno e o professor.
Mas talvez a pergunta que devêssemos fazer, antes de perguntar como usar a
tradução?, fosse outra: do que estamos falando quando nos referimos à tradução? Como
mencionado anteriormente, Cook sugere o uso da tradução como um “fim”, mas não define
em que medida esse fim se estabelece, tampouco de que modalidade de tradução está
tratando.
Como a tradução pode ser usada em sala de aula é uma discussão extremamente
importante, mas é precisamente a discussão, primeiramente, sobre o que seria a tradução
que parece escapar à lingüística aplicada ao ensino de LE. A falta dessa discussão e do
5 Seria o caso, aqui, de discutir isso como a visão ainda antiga e mal-digerida da concepção de linguagem como comunicação, aquela da teoria da comunicação clássica, e que é prejudicial em vários sentidos, especialmente naqueles que dizem respeito ao fato de não se questionar os objetivos gerais do ensino de língua estrangeira. No Brasil, por exemplo, nem todo mundo que aprende uma língua estrangeira necessariamente tem como objetivo a comunicação do dia-a-dia em um contexto internacional etc. (cf. Moita Lopes cap. 3)
11
lugar da tradução no ensino de línguas estrangeiras, no entanto, pode ser vista
positivamente, já que é justamente esta lacuna que permite a presente discussão. Aos
problemas teóricos advindos da falta dessa reflexão e aos seus desdobramentos práticos,
portanto, dedico o próximo capítulo.
12
3. Por um Lugar da Tradução no Ensino de Línguas Estrangeiras
3.1. A dimensão teórica
Vimos que, mesmo banida, a tradução não deixa de existir na prática do aprendizado
de LE e que a conseqüência da proibição acaba sendo antes o seu mal-uso, do que o não-
uso. Tradicionalmente, portanto, o ensino de línguas estrangeiras não define o que seja
tradução, mas a trata como um instrumento técnico e prático no aprendizado de uma outra
língua. A não definição do que seria a tradução talvez seja o grande problema frente à
inserção dela no ensino, pois se trata de uma recusa não se sabe bem do quê.
A recusa da tradução, a sua indefinição e o seu uso ocasional, digamos, irrefletido,
revela muito sobre o que se pensa ou se deixa de pensar sobre ela. Em primeiro lugar,
revela uma separação supostamente possível entre o que costumamos chamar de teoria e
prática; em segundo lugar, pressupõe uma idéia de que a tradução é um mero artifício
técnico que pouco contribui para o ensino ou aprendizado; e ainda, que as duas idéias
anteriores são aceitas sem qualquer questionamento, pois são tradições embutidas, de modo
geral, no ensino de língua estrangeira. Pensemos, então, sobre cada um desses pontos de
maneira isolada.
A oposição teoria/prática talvez seja útil em termos didáticos, mas nunca deixará de
ser uma criação humana que tenta separar o inseparável. Por mais que não se reflita
conscientemente sobre a tradução, quando um professor de língua usa a tradução, ele revela
a idéia que ele faz do que seja este procedimento. O próprio (não) problematizar pode ser
entendido como uma prática da teoria, se entendemos que também a teoria é uma prática,
pois uma revela a outra. Cito Arrojo (2003: 108) sobre essa perspectiva:
A crença na possibilidade da dicotomia teoria x prática, sobre a qual tem se baseado
todo o arcabouço do conhecimento ocidental, traz pelo menos duas conseqüências: 1.
a possibilidade de uma oposição clara e objetiva entre teoria e prática emerge da
crença na possibilidade da oposição entre sujeito e objeto, em que o primeiro
pretende não apenas descrever e controlar o segundo, mas também não misturar-se
com ele. A possibilidade dessa oposição necessariamente anula a subjetividade do
sujeito em sua relação com o objeto. 2. Se se estabelece que há uma teoria separada
13
da prática, pressupõe-se também que a prática poderia ser realizada sem uma teoria
que a governasse inteiramente, que a motivasse e delineasse seus caminhos.
Teoria e prática são, tradicionalmente, vistas como separáveis no ensino de língua
estrangeira, mas “para a produção de uma teoria, nos moldes tradicionais, é necessário
separar o sujeito do objeto. A tradução e o ensino de línguas estrangeiras não se prestam a
essa separação” (Ottoni, 2005: 26). Não foi à toa, portanto, que a tradução acabou
encontrando dificuldade de ser aceita no ensino de LE. E é aí possivelmente que reside uma
questão central da discussão da tradução no ensino das línguas estrangeiras modernas.
Talvez o que falte para que a tradução encontre seu lugar na sala de aula seja a
percepção de que traduzir não necessariamente se trata de um ato mecânico que nada tem a
contribuir com o ensino/aprendizado e que, além disso, pode ser domado e,
conseqüentemente, evitado. Essa perspectiva é uma conseqüência direta da crença na
dicotomia teoria versus prática que, como bem aponta Arrojo na citação acima, pretende
uma oposição clara e “[pressupõe] também que a prática poderia ser realizada sem uma
teoria que a governasse inteiramente”.
Quando encaramos a tradução como prática apenas, sob a perspectiva de que seria
possível separar teoria e prática, nos deparamos com uma certa impossibilidade ou uma
crença na impossibilidade da tradução, pois “a separação idealiza essa dicotomia sujeito-
objeto e cria, através de uma teoria ideal, uma prática também idealizada, que deve ser
transmitida através do ensino” (Ottoni, 2005: 26). Por trás dessa postura existe uma idéia
ingênua, ou talvez um desejo apenas, de que os sentidos fossem estanques. Quer dizer,
antes mesmo do questionamento sobre a fidelidade de uma tradução – deixando de lado
aqui toda uma discussão sobre o que é ou deixa de ser a fidelidade no campo da tradução –
deveria existir um questionamento sobre a fidelidade dos significados na própria língua – o
que de certa forma, já revelaria parte da problemática que escolhi deixar de lado
anteriormente. Na seguinte passagem, Ottoni atribui à maneira que se concebe a língua e os
significados a crença na impossibilidade da tradução ou a sua eterna imperfeição.
A ciência lingüística dificulta a compreensão do ato de traduzir partindo da postura
do tradutor como um transportador de significados estáveis de um sistema – de uma
língua – para outro, aquele que vai transportar significados entre dois sistemas
fechados e diferentes entre si. Daí o tradutor ser colocado na posição de quem nunca
14
consegue realizar essa tarefa de transporte de maneira perfeita, do mesmo modo que
perfeitamente funciona o sistema da língua para a ciência lingüística6. (...)
transformar e produzir significados não pode ter como pressuposto a existência de um
significado estável e único. Para transformar e produzir outros significados numa
outra língua é fundamental partir da multiplicidade do significado. (Ottoni, 2005: 27)
Quer dizer, lidar com a tradução necessariamente envolve aceitar condições que não
são estanques ou perfeitas ou fixas, uma vez que, antes de falar de tradução, estamos
falando de línguas. Por isso, Ottoni defende que uma língua é composta, na verdade, de
várias línguas (Ottoni, 2005: 32), e isso é fundamental para se pensar tanto a língua materna
e as estrangeiras, quanto a tradução e o ensino de línguas de modo geral. Quer dizer, o
desejo de imutabilidade dos sentidos não deve passar de desejo. Ou ainda, nem a isso
deveria chegar, já que a aceitação da imperfeição, por assim dizer, é uma demanda da
natureza primeiro da língua, depois da tradução e do ensino de línguas.
Se aceitamos que os significados são produzidos e transformados em uma mesma
língua, bem como entre línguas diferentes, não podemos, então, pensar que a relação entre
as línguas independe de um sujeito, de um tradutor, de um aprendiz. Quer dizer, essa não é
uma relação pura e estável. Segundo Arrojo:
Se pensamos o processo de tradução como transporte de significados entre língua A e
língua B, acreditamos ser o texto original um texto estável, “transportável”, de
contornos absolutamente claros, cujo conteúdo podemos classificar completa e
objetivamente. Afinal, se as palavras de uma sentença são como carga contida em
vagões, é perfeitamente possível determinarmos e controlarmos todo o seu conteúdo e
até garantirmos que seja transposto na íntegra para outro conjunto de vagões. Ao
mesmo tempo, se compararmos o tradutor ao carregador do transporte dessa carga,
assumiremos que sua função, meramente mecânica, se restringe a garantir que a carga
chegue intacta ao seu destino. Assim, o tradutor traduz, isto é, transporta a carga de
significados, mas não deve interferir nela, não deve interpretá-la (Arrojo, 1986 apud
Arrojo, 2003: 102)
6 Em vários momentos Ottoni atribui à ciência lingüística, tão somente, a dicotomia positiva entre teoria e prática. Parece-me importante comentar, no entanto, que essa dicotomia é um fenômeno da ciência que pretende ser pura e neutra de modo geral. Além disso, o autor se refere à ciência lingüística com uma generalidade por vezes perigosa e até injusta, sem nem menos citar nomes ou estudos que pudessem esclarecer sua postura.
15
Se aquele que traduz, portanto, não é um mero transportador de significados puros e
estáveis, então ele tem, sim, um papel ativo no processo da tradução. Ele é um produtor de
significados e “representante e intérprete do autor e dos textos que traduz” (Arrojo, 2003:
104). Não trato aqui especificamente do texto escrito, mas, antes, refiro-me à tradução, de
qualquer modalidade, como um processo ativo na produção de significado.
Não penso que a tradução seja produtiva em todos os momentos do aprendizado de
língua estrangeira, e o objetivo deste trabalho é pensar, ao mesmo tempo, quando e como
devemos recorrer a ela, partindo de uma ótica menos positivista do que seja a tradução. É
parte fundamental nesse processo de definição do lugar da tradução no ensino de LE
compreender as relações até então estabelecidas. Até aqui, pensamos a dicotomia teoria
versus prática tradicionalmente adotada tanto no ensino de língua estrangeira quanto nos
estudos da tradução. Vimos que essa tentativa de separação é facilmente frustrada diante da
natureza do objeto de estudo dessas áreas: a língua; e que a pluralidade dos significados não
é exclusividade da relação entre duas línguas, mas também da relação entre as várias
línguas que compõem cada língua. Além disso, entendemos que aquele que traduz
necessariamente exerce um papel ativo na produção de significados, já que eles não são
imutáveis e fechados em si.
16
3.2 A dimensão prática
Vimos até agora que teoria e prática são duas dimensões complementares, assim
como são complementares sujeito e objeto. Este item 3.2 tratará, portanto, de algumas
conseqüências práticas complementares às questões teóricas levantadas anteriormente, fruto
da fusão dessas quatro dimensões.
Um dos efeitos da dicotomia teoria versus prática para a tradução é a idéia de que
aquele que traduz seja visto como um mero transportador de significados fechados entre
dois sistemas lingüísticos diversos, mas também fechados. A responsabilidade do tradutor,
portanto, seria atuar com perfeição. Como bem afirma Ottoni,
Daí o tradutor ser sempre colocado na posição de quem nunca consegue realizar essa
tarefa de transporte de maneira perfeita, do mesmo modo que perfeitamente funciona
o sistema da língua para a ciência lingüística. (2005: 27)
Sob essa ótica, traduzir seria, portanto, uma eterna frustração. Quando
compreendemos, por outro lado, que as relações entre os significados não são estanques,
aprendemos a lidar com um certo grau de imperfeição, por assim dizer. No ensino de língua
estrangeira, lidar com a aceitação da imperfeição pode ajudar o aluno a lidar com as
próprias frustrações; e talvez ajude também até mesmo o professor a lidar com a ansiedade
dos alunos. A questão da tradução seria, portanto, uma fonte de motivação diante de tanta
ambigüidade e diferença e um exercício de tolerância e aceitação das diferenças do outro,
decorrente da aceitação das ambigüidades da própria língua e cultura. A tradução, então,
passa a ser o próprio espaço de relação entre a língua materna e a língua estrangeira, e,
também, da relação entre o sujeito e essas línguas, pois ela envolve a transformação e a
produção de significados.
A partir do pressuposto da multiplicidade do significado, portanto, a relação entre a
língua materna e a estrangeira não pode mais ser entendida como uma relação que
independe de alguém que traduz, que aprende ou ensina uma língua estrangeira. Participar
da construção do significado pode representar, em sala de aula, uma grande fonte de
motivação diante das dificuldades de se aprender uma língua estrangeira.
17
É parte do aprendizado de língua estrangeira, também, estabelecer relações entre o
que já se sabe e o que é novo, ou seja, relacionar a língua mãe e a língua estrangeira.
Estabelecer relações em termos metalingüísticos não necessariamente mostra que se sabe
uma língua, assim como pode não ser produtivo para alguns aprendizes. Nas palavras de
Ottoni:
Na medida em que aprendo uma língua estrangeira, a partir da minha língua materna,
a tradução torna-se um processo inerente e fundante desse processo de aprendizagem.
Não aprendemos completamente uma língua estrangeira, não traduzimos
completamente, assim como não sabemos completamente sobre nossa língua
materna. (...) A relação que um aprendiz estabelece entre língua materna e língua
estrangeira é sempre individual. (Ottoni, 2005: 33)
Quer dizer, é difícil estabelecer como se aprende uma língua ou como se traduz, mas
exercitar um certo grau de relativismo à semelhança e à diferença entre o eu e o outro
relativiza também a própria língua e a própria experiência pessoal no processo de
aprendizagem. Daí podermos pensar a tradução não como sempre diferente e imperfeita –
em razão da frustração de um ideal de semelhança –, mas como uma relação de semelhança
e de diferença diante do outro. Afinal, “pelo menos desde Schleicher, é possível traduzir
porque é possível aprender uma língua estrangeira e é possível aprender uma língua
estrangeira porque [ou visto como] foi possível aprender uma língua primeira [a materna]”.
(Mounin, 1975: 168 apud Ottoni, 2005: 30). Estabelecer relações de semelhança, assim
como aceitar a multiplicidade dos significados, também pode ser fonte de motivação diante
do outro, visto que nem tudo é diferente, pois - repito - há também semelhanças.
Aprender que línguas não são traduções diretas umas das outras pode ajudar o
aprendiz a relativizar a língua mãe e desenvolver a habilidade de perceber o quanto da
própria língua é dependente da cultura. Abrir os olhos para a própria língua, à diferença e à
semelhança do outro, pode significar relativizar a própria cultura e compreender que, não
só as línguas não são sistemas fechados e estáveis, mas também as culturas são
‘plurissistemas’.
A relativização, portanto, da língua, da tradução e da cultura, pode evitar frustrações
do aprendiz, como o exemplo dado por Citron (1995) em seu artigo intitulado “Can Cross-
Culture Underestanding Aid Second Language Aquisition? Toward a Theory of Ethno-
18
Lingual Relativity” (2005). Segundo o autor, um estudante norte-americano conversava
com um estudante mexicano, na Cidade do México, e, não conseguindo falar o que queria,
recorreu ao dicionário. Não foi sem frustração que ele não encontrou a palavra stooge,
referente ao grupo cômico norte-americano The Three Stooges (Os Três Patetas, no Brasil).
O aluno em questão foi incapaz de perceber que o que ele buscava era parte da cultura dele,
que as línguas não são traduções perfeitas de sistemas estanques perfeitos e, também, que a
tradução não é independente daquele que relaciona as línguas. Nada disso significa que ele
nunca vai aprender espanhol ou qualquer outra língua, mas o coloca num lugar
desvantajoso na aprendizagem de língua estrangeira com relação a um aluno que seja capaz
de relativizar os conceitos mencionados anteriormente.
Ainda no mesmo artigo, Citron relembra dois dos fatores sociais e psicológicos
listados por Schumann (1978) que podem contribuir para a aquisição de língua estrangeira:
O fator personalidade, de tolerância à ambigüidade e o fator afetivo, de ajustamento
cultural, são significativamente relevantes à hipótese do relativismo etno-lingüístico.
Qualquer pessoa que já tenha tentado aprender uma nova língua pode confirmar o
fato de que, freqüentemente, tem-se que atuar em situações ambíguas, em que os
tópicos da conversa e as maneiras de responder a ela não são claros. Alguns teorizam
que aprendizes com um baixo nível de tolerância a ambigüidades podem reagir a
essas situações com depressão, desgosto ou negação. (Citron, 1995: 108)
E mais adiante:
[...] a tolerância a essas ambigüidades está relacionada ao quão estruturada e limitada
a visão de mundo da pessoa é ou o quão aberta ela é às novas maneiras de se ver o
mundo. (ibidem, p. 109)
As passagens se referem a como o relativismo etno-lingüístico pode ajudar o
aprendizado de língua estrangeira em um contexto de imersão, mas pode-se facilmente
adaptá-las ao contexto da tradução em sala de aula. Uma vez que alguns aprendizes podem
mostrar uma certa dificuldade em aceitar as ambigüidades decorrentes do estudo de línguas
estrangeiras, tanto por motivos puramente lingüísticos, como por motivos lingüístico-
culturais, a tradução pode significar o elo de semelhança entre esses mundos aparentemente
19
tão distintos. Como exercício de tolerância, a relativização da diferença do outro pode
significar uma relativização ainda maior: a relativização etnocêntrica do
ensino/aprendizado de língua estrangeira.
Existe, portanto, um movimento de ida - a relativização do outro, a constatação da
diferença ou semelhança -, mas também deve existir o retorno – a relativização do eu, à
diferença e à semelhança do outro. No ensino de língua estrangeira, essa relativização se dá
por meio da tradução, que, “enquanto transformação e produção, é libertar-se da língua
materna; é sair dela e a ela retornar” (Ottoni, 2005: 33). No entanto, o contexto monolíngüe
de ensino de língua estrangeira, em que a língua estrangeira é a língua oficial e exclui a
língua materna, impossibilita esse movimento e preza, apenas, pelo conhecimento e a
aceitação do outro, sem que seja estabelecida uma relação entre ele e eu7.
7 Entendo relação, aqui, como um processo de ida e volta e não de mão-única. Sendo assim, no aprendizado de línguas estrangeiras, considero que é esse caminho de mão dupla que contribui para a construção de identidade do Eu diante do Outro.
20
4. A Dimensão Política da Tradução no Ensino de Línguas Estrangeiras
Apesar de passar desapercebida em grande parte dos estudos da lingüística aplicada
ao ensino de LE, ironicamente, a tradução tem ganhado espaço em discussões políticas
sobre o ensino de língua estrangeira. Parece unânime, no âmbito dessas discussões, que ela
ajude a combater preconceitos referentes a línguas e culturas diferentes, bem como a evitar
a imposição de uma língua em detrimento de outras. Mas isso parece valer tão somente da
sala de aula para fora. Isto é ainda mais visível na presença da tradução como uma das
habilidades a serem avaliadas segundo CEF (Common European Framework, 1996).
O CEF é uma tentativa política de unificar o ensino de língua estrangeira em toda a
Europa, com o objetivo de diminuir preconceitos, quebrar barreiras e enriquecer o
entendimento do outro. Não por acaso, sua abordagem intercultural vê na construção de
identidade, no confronto com o “outro” expresso na língua e na cultura, um ponto central
no ensino de língua estrangeira.
Segundo o CEF, diferente do plurilingüismo, o multilingüismo é o conhecimento de
um dado número de línguas ou a coexistência de línguas diferentes numa sociedade. O
multilingüismo pode ser adquirido pelo estudo de mais de uma língua estrangeira na escola,
por exemplo, ou até diminuindo a posição dominante do inglês na comunicação
internacional. O plurilingüismo, em contrapartida e para além disso, entende que
A experiência pessoal de língua de um certo indivíduo nos seus contextos culturais se
expande da linguagem de casa àquela da sociedade de modo geral, e depois à línguas
de outras comunidades (tanto aprendida na escola ou na faculdade quanto por
experiência pessoal). Desse modo, esse indivíduo não mantém essas línguas e
culturas em compartimentos mentais completamente separados, mas sim constrói
uma competência comunicativa à qual contribui todo o conhecimento e a experiência
de língua e em que todas as línguas interagem e se interrrelacionam. (Common
European Framework , 1996: 04)
Desta maneira, o mesmo indivíduo pode usar de modo flexível partes diferentes da
sua competência, em situações diversas, para tornar a comunicação efetiva. Fazendo uso de
21
linguagem privada8, por exemplo, pode-se transitar entre diferentes línguas ou dialetos,
explorando a capacidade de expressão e compreensão uns dos outros. Ou, então, pode-se
usar o próprio conhecimento de línguas para entender um texto, ou mesmo uma conversa,
em uma outra língua que ainda não se domina.
Parece-me, portanto, que o plurilingüismo está intimamente relacionado à tradução.
Primeiro no que diz respeito à experiência lingüística individual ser, a bem da verdade, uma
experiência que envolve várias línguas e várias culturas, mesmo quando não estão
envolvidas línguas e culturas estrangeiras. Depois, na aceitação de que aquilo que
aprendemos não engavetamos em compartimentos separados e isolados, que o
conhecimento se constrói sem termos que esquecer o que aprendemos anteriormente para
abrir espaço para um novo aprendizado. Uma vez, então, que ninguém esquece uma língua
estrangeira para aprender outra, nada mais razoável que incentivar a produtividade das
relações entre elas, lembrando sempre que não há apenas diferenças, mas também
semelhanças entre as línguas.
Por outro lado, parece-me que a abordagem de ensino de línguas estrangeiras em voga
no Brasil, a abordagem comunicativa, perpetua a situação de imperialismo lingüístico que
acompanha o posicionamento dos norte-americanos em muitos aspectos de sua atuação.
Moita Lopes (1996), por exemplo, discorre sobre o papel colonizador que o professor de
inglês exerce no Brasil quando importa do outro o gosto por sua cultura e língua e o
desgosto pela língua materna e cultura local. O professor brasileiro de inglês, na média (cf.
pesquisa apresentada por Moita Lopes, 1996: 37ss.), aplica rótulos como “preguiçosos”,
“informais”, “mal-educados”, “indisciplinados” aos brasileiros muito mais freqüentemente
do que aos falantes de inglês, perpetuando uma visão que parece ser imposta culturalmente
e que revela uma relação de poder e influência vertical dos Estados Unidos sobre os países
em desenvolvimento.
A constatação é curiosa, uma vez que o CEF, exposto acima, parece considerar a
relação entre as línguas, culturas e países europeus de modo mais “horizontal”, propondo
modos metodológicos e de conteúdo que sejam aplicáveis a todas as línguas do quadro, sem
distinção. Não é a toa, então, que a grande maioria dos materiais de ensino de inglês para
comunicação internacional, de orientação etnocêntrica disfarçada, pseudo-tolerante, tenha
8 Entendo por linguagem provada, aqui, a linguagem restrita a círculos mais fechados de falantes, como os compostos por familiares, companheiros afetivos, amigos íntimos, membros de sociedades restritas dotadas de jargões etc.
22
considerado, por tanto tempo, indesejável o uso da língua local no ambiente de sala de aula.
Enquanto isso, na proposta do CEF, a tradução é inclusive listada como uma das cinco
habilidades lingüísticas desejáveis para se considerar como bem sucedido o aprendizado de
uma determinada língua.
Uma outra questão, que gera a situação mencionada acima no contexto da abordagem
comunicativa e que se perpetua no ambiente de ensino de LE (especialmente inglês) no
Brasil, é a aparente falta de reflexão sobre os motivos e necessidades dos estudantes ao
aprenderem uma língua estrangeira (cf. Moita Lopes, 1996: 63ss). Ao não se proporem tais
questionamentos, abre-se a porta para o estabelecimento da abordagem comunicativa e
todas as suas implicações político-pedagógicas: o ensino é voltado para situações de
viagem ao exterior, o conteúdo é preparado segundo uma seqüência de “situações
significativas”, sempre pensando a vivência no exterior, e as habilidades consideradas
essenciais passam a ser as de compreensão e produção oral, o que abre as portas para um
ambiente de imersão forçada e artificial bastante hostil à idéia da incorporação da tradução,
ou mesmo da presença da cultura local nas aulas (sem mencionar o papel secundário
relegado às habilidades de compreensão e produção escrita)9.
Mas mesmo essas discussões propostas no CEF parecem em algum grau ainda carecer
da conceituação do que pode ser a tradução. A habilidade tradutória aparece como uma
atividade de mediação, tanto oral quanto escrita. Segundo a descrição do CEF:
Nas atividades de mediação, aquele que usa a língua não está preocupado em
expressar os seus próprios significados, mas simplesmente atuar como um mediador
entre interlocutores que não são incapazes de compreender um ao outro,
normalmente, mas não exclusivamente, falantes de duas línguas distintas. Exemplos
de atividades de mediação incluem interpretação oral e tradução escrita, bem como
resumos e paráfrases de textos na mesma língua, quando a língua do texto original
não é compreensível para o seu receptor, etc. (Common European Framework , 1996:
87)
9 Isso não quer dizer, no entanto, que não haja reflexões contemporâneas sobre essas questões e mesmo um aparente início de mudança nos quadros metodológicos gerais do ensino de LE.
23
E mais adiante:
As estratégias de mediação refletem maneiras de se lidar com a necessidade de se
usar fontes finitas para processar informações e estabelecer significados equivalentes.
(ibidem, p. 87ss)
Existe, então, um enquadramento da tradução como uma das medidas de progresso no
aprendizado de língua estrangeira de acordo com a necessidade do falante, já que o CEF
reconhece o caráter processual e parcial do aprendizado de línguas. Mas, apesar de
descrever uma série de estratégias bastante produtivas no processo tradutório – que
envolvem desde a pré-tradução até a pós-tradução (cf. Common European Framework
1996: 88), – os conceitos de tradução e de equivalência não são discutidos nem
problematizados. São, antes, tratados como definições universalmente não problemáticas.
Quer dizer, a tradução está classificada - uma atividade mediadora que busca a equivalência
-, mas não definida.
Entendo, então, que existe no CEF uma movimentação política bastante positiva em
prol do estabelecimento de um lugar da tradução no ensino/aprendizado de línguas
estrangeiras. Mas ainda há, também, uma lacuna que deve ser aproveitada, pois é essa
lacuna que abre espaço para que sejam levantadas questões que problematizem as
conceituações envolvidas no estabelecimento desse lugar, desse espaço.
Como vimos, o ensino de línguas estrangeiras no Brasil, principalmente do inglês,
tem um lugar menos “horizontalizado” do que o lugar do ensino estabelecido pelo CEF,
uma vez que o Brasil ainda sofre uma “verticalização” político-pedagógica, via de regra
imposta pelo método comunicativo nos moldes norte-americanos. Mas os espaços a serem
preenchidos, os lugares a serem definidos, no que concerne à tradução nesse ensino, tanto
lá quanto cá ainda devem ser questionados, problematizados e redefinidos.
24
Conclusão
A partir da relativização das noções tradicionais de língua e da dicotomia teoria
versus prática, saímos em busca por uma definição do conceito de tradução. Não é fácil
estabelecer o que é tradução, assim como é difícil definir o que é ensino. Mas pensar o que
é a tradução é fundamental no ensino de línguas estrangeiras, pois é a base que parece
escapar aos estudos de lingüística aplicada ao ensino de LE. Advoguei, aqui, em prol da
busca de um lugar da tradução nesses estudos, e argumentei que ela pode contribuir
sobremaneira para o ensino/aprendizado de LE, principalmente quanto à relativização do
significado, da língua estrangeira e da própria língua-materna.
Vimos que a tentativa de separação entre teoria e prática e entre sujeito e objeto é
facilmente frustrada diante da natureza do objeto de estudo do ensino de LE a da tradução:
a língua. Uma vez que as concepções de mundo estão embasadas em relações, a própria
concepção de realidade se molda de acordo com uma visão estabelecida por relações. É
precisamente o modo como o sujeito se relaciona com a realidade, com o mundo que faz
dele quem ele é e quem ele não é, num processo de construção de identidade em que a
linguagem constitui a realidade. Daí entende-se que a realidade não é neutra e objetiva, mas
antes depende da subjetividade de quem a observa, de modo que pode ser vista como a
própria relação do sujeito com o mundo. Sendo assim, a linguagem é sempre ideológica,
isto é, determinada pela ótica de quem a utiliza.
Naturalmente, essa ótica está embasada nas relações construídas por cada sujeito ao
longo da vida e é determinante nos processos interpretativos, sejam eles conscientes ou não.
Se não há, então, uma realidade objetiva, é o constante questionamento dos processos
interpretativos e a tentativa de torná-los processos conscientes que faz de nós sujeitos
reflexivos e capazes de identificar quem somos e quem não somos, quem queremos e não
queremos ser e, além disso, sujeitos capazes de nos responsabilizar por nossas escolhas,
atitudes e decisões.
Se o que há, então, são processos interpretativos incondicionalmente inseparáveis do
observador, só o que temos é a língua e se o que sabemos são interpretações, o que
ensinamos são interpretações. Daí a urgência de se formar professores reflexivos e capazes
de construir consciência crítica sobre o que se ensina e como se ensina.
25
A tradução aqui é também um espaço interpretativo que se estabelece nas relações
entre duas línguas/culturas e dentro de uma mesma língua/cultura no contexto do ensino de
língua estrangeira. E ela também é subjetiva e indissociável das percepções do indivíduo
que dela faz uso, de modo que, mais uma vez, o que ensinamos são as nossas
interpretações, as nossas traduções, a nossa realidade. Torna-se, portanto, fundamental
perceber que a língua, a cultura, a tradução são espaços interpretativos de construção de
identidade de professores e alunos.
Sendo assim, a pluralidade dos significados é uma característica tanto da relação entre
duas ou mais línguas, quanto da relação entre as várias línguas que compõem cada língua.
Além disso, entendemos que aquele que traduz não pode mais ser visto como um mero
transportador de significados estanques de um sistema fechado para outro, e, portanto,
exerce um papel ativo na produção de significados. Desse modo, o ideal da tradução
perfeita deve, também, ser relativizado.
Assim, a tradução, que agora ganha lugar como a relação entre a língua materna e a
língua estrangeira, e, também, a relação entre o sujeito e essas línguas – pois ela envolve a
transformação e a produção de significados em relação – desempenha um papel
fundamental do ensino de línguas estrangeiras. Ela atua como fonte de motivação à medida
em que lida com a aceitação da imperfeição, num exercício de tolerância a situações
ambíguas e de tolerância diante das próprias dificuldades, das próprias frustrações.
Ademais, ela pode ser o elo não só de diferença, mas também de semelhança entre a língua-
mãe e a língua estrangeira, o que também pode ajudar alunos e professores a lidarem com a
própria ansiedade diante do estudo/ensino de LE.
Compreender que as línguas não são traduções diretas umas das outras pode ajudar o
aprendiz e o professor a relativizar a própria língua-materna e desenvolver uma autonomia
para perceber que línguas expressam culturas. Desse modo, abrir os olhos para a própria
língua pode desencadear um processo de relativização da própria cultura, à semelhança e à
diferença do outro.
Abarcamos, também, as implicações políticas que estão envolvidas no ensino de
línguas estrangeiras – especialmente do inglês -, bem como na reflexão sobre a tradução, a
partir da problematização do ensino de viés marcadamente etnocêntrico
predominantemente adotado no Brasil, via método comunicativo. Comparativamente,
26
apontamos situações políticas diferentes das do Brasil, expressas principalmente pelo
Common European Framework.
Reavaliar esse conceito significa repensar uma série de questões que estão embutidas
na tradição do ensino de línguas estrangeiras; significa repensar as relações entre sujeito e
as suas línguas e culturas frente ao outro, num processo de aceitação, tolerância e
construção da própria identidade. É, pois, tarefa dos professores e educadores do ramo das
línguas estrangeiras redefinir urgentemente o lugar da tradução no seu meio de trabalho.
27
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