92
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO BEATRIZ CERQUEIRA DE CASTRO UMA DEUSA PEREGRINA TRAJETÓRIAS LITERÁRIAS DO CULTO À ÍSIS DO EGITO A ROMA RIO DE JANEIRO 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO BEATRIZ … · 2020. 2. 5. · Uma deusa peregrina – trajetórias do culto à Ísis do Egito a Roma / Beatriz Cerqueira de Castro. –- Rio

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    BEATRIZ CERQUEIRA DE CASTRO

    UMA DEUSA PEREGRINA – TRAJETÓRIAS LITERÁRIAS DO

    CULTO À ÍSIS DO EGITO A ROMA

    RIO DE JANEIRO

    2018

  • 2

    BEATRIZ CERQUEIRA DE CASTRO

    UMA DEUSA PEREGRINA – TRAJETÓRIAS LITERÁRIAS DO

    CULTO À ÍSIS DO EGITO A ROMA

    Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

    de Pós-Graduação em Letras Clássicas, Linha de

    Pesquisa Estudos Interdisciplinares em

    Antiguidade Clássica, Faculdade de Letras da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

    requisito para a obtenção do título de Mestre em

    Letras Clássicas.

    Orientador: Prof. Doutor Álvaro Alfredo Bragança

    Júnior

    RIO DE JANEIRO

    Agosto de 2018

  • 3

    Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

    Sistema de Bibliotecas – SISBI

    Catálogo de Publicação na Fonte. UFRJ – Biblioteca Setorial do Centro de Letras e

    Artes – CLA

    Castro, Beatriz Cerqueira de. R696v. Uma deusa peregrina – trajetórias do culto à Ísis do Egito

    a Roma / Beatriz Cerqueira de Castro. –- Rio de Janeiro,2018.

    92 f.

    Orientador: Prof. Doutor Álvaro Alfredo Bragança Junior.

    Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras,

    Programa de Pós Graduação em Letras Clássicas, 2018.

    1. Ritual 2. Culto 3. Ísis 4. Apuleio.

    I. Júnior, Álvaro Alfredo Bragança. II. Título.

  • 4

    BEATRIZ CERQUEIRA DE CASTRO

    UMA DEUSA PEREGRINA – TRAJETÓRIAS LITERÁRIAS DO

    CULTO À ÍSIS DO EGITO A ROMA

    Dissertação aprovada como requisito para obtenção do grau de Mestre no

    Curso de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do

    Rio de Janeiro, pela comissão formada pelos professores:

    __________________________________________ Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Junior

    (Orientador)

    __________________________________________ Profª. Drª. Arlete José Mota

    (Avaliadora Interna)

    ___________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Karol

    (Avaliador Externo)

    __________________________________________ Prof. Dr. Ricardo de Souza Nogueira

    (Avaliador Interno Suplente)

    __________________________________________ Profª. Drª. Dulcileide Virgínio do Nascimento

    (Avaliadora Externa Suplente)

    Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2018.

  • 5

    À minha família

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    A jornada ao longo deste mestrado não foi nada fácil, entretanto, chegar a este

    momento faz com que todos os obstáculos tenham valido a pena. Primeiro, agradeço a

    Deus por todas as vezes que ouviu quando eu lhe chamei.

    Agradeço ao meu orientador, professor doutor Álvaro Alfredo Bragança Júnior,

    que esteve presente durante todo este percurso, apesar do tema difícil, principalmente no

    que tange às fontes. Agradeço por suas palavras cavalheirescas e o apoio durante este

    trajeto.

    Expresso minha total gratidão aos outros professores que permearam o caminho

    do meu mestrado, seja nas aulas presenciais seja por trabalhos de cunho elucidativo, que

    auxiliaram em muito na elaboração deste trabalho, principalmente os professores

    doutores Arlete José Mota e Ricardo de Souza Nogueira.

    Também sou grata a Capes pelo apoio durante a maior parte da realização desta

    pesquisa, sem o qual talvez ela não fosse possível.

    Agradeço a toda minha família, principalmente à Jeane Cerqueira Silva de Castro,

    minha progenitora, cujo apoio e auxílio estiveram presentes não só durante este mestrado

    como durante toda minha vida.

    Por fim, agradeço ao Julio Cesar, meu esposo e companheiro de vida, fortaleza

    que me manteve de pé durante momentos de tempestade. Tê-lo ao meu lado foram a razão

    e a causa de conseguir finalizar mais esta grande etapa de minha vida.

  • 7

    UMA DEUSA PEREGRINA – TRAJETÓRIAS LITERÁRIAS DO

    CULTO À ÍSIS DO EGITO A ROMA

    Beatriz Cerqueira de Castro

    Orientador: Professor Doutor Álvaro Alfredo Bragança Junior

    Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

    Clássicas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

    necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Clássicas.

    A presente dissertação tem como objetivo traçar uma trajetória da deusa Ísis desde suas

    origens egípcias até sua chegada em Roma, centrando-se em aspectos históricos, políticos

    e principalmente literários. Ao longo deste texto serão expostas fontes literárias e

    históricas tanto egípcias, como o Texto das Pirâmides, quanto gregas, De Iside et Osiride

    de Plutarco, e romanas, O Asno de Ouro de Apuleio e excertos textuais de Cícero, Lucano

    e Ovídio. Pretende-se com este trabalho demonstrar como uma deusa estrangeira cultuada

    por um povo sob domínio da Urbs conseguiu não apenas adentrar solo estrangeiro, como

    se tornar uma das deusas do panteão romano, tendo seu culto e seu festival celebrados

    por muitos anos, enfrentando e vencendo uma forte oposição em Roma e eternizando-se

    na literatura latina.

    Palavras-chave: Ritual; Culto; Ísis; Apuleio.

  • 8

    ABSTRACT

    Beatriz Cerqueira de Castro

    Orientador: Professor Doutor Álvaro Alfredo Bragança Junior.

    The present dissertation aims to trace a trajectory of the goddess Isis from her Egyptian

    origins until her arrival in Rome, from historical, political and especially literary aspects.

    Throughout this text, there will be exposed both historical and literary sources, such as

    the Egyptian Text of the Pyramids, as well as Greek, De Iside et Osiride of Plutarch, as

    well as Roman, the Golden Ass of Apuleius and textual excerpts of Cicero, Lucanus and

    Ovid. The purpose of this work is to demonstrate how a foreign goddess, worshiped by a

    people under the dominion of the Urbs, managed not only to enter foreign soil, but also

    to become one of the goddesses of the Roman pantheon, having her cult and festival

    celebrated for many years, facing and overcoming a strong opposition in Rome and

    eternalizing itself in the Latin literature.

    Keywords: Ritual; Cult; Isis; Apuleius.

  • 9

    SUMÁRIO

    I. INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------- 10

    II. POR UMA SÍNTESE DA HISTÓRIA DO EGITO ANTIGO------- 12

    III. ÍSIS NO EGITO – ORIGEM E CULTO ------------------------------ 20

    III. 1 O mito e a religião -------------------------------------------- 21

    IV. UMA PONTE ENTRE DUAS CULTURAS ------------------------- 33

    IV.1 A chegada à Alexandria------------------------------------------ 33

    IV.1 Plutarco e sua descrição do culto isíaco ----------------------- 40

    V. ÍSIS EM ROMA – NOVOS CONTORNOS --------------------------- 44

    V.1 Do Egito a Roma – caminhos e descaminhos de um culto--46

    V.2 Religiosidade Greco-romana e o culto a Ísis ----------------- 54

    VI. ÍSIS NA LITERATURA ROMANA ---------------------------------- 59

    VI.1 O asno de ouro ------------------------------------------------- 59

    VI.2 Outras fontes literárias ---------------------------------------- 73

    VII. CONSIDERAÇÕES FINAIS ----------------------------------------- 76

    VIII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS------------------------------ 79

    IX. ANEXOS ----------------------------------------------------------------- 83

  • 10

    I. INTRODUÇÃO

    As influências do Império Romano sobre o mundo conhecido na Antiguidade vão

    bem mais além das esferas política e social. A mistura de culturas, religiões, línguas e

    tradições no momento de afirmação de Roma como caput mundi, é atestada a partir de

    diversas fontes. Nesse sentido, o Egito Antigo influenciou e foi influenciado pelo contato

    com Roma, misturando sua cultura com a dos invasores e, em um primeiro momento,

    exportando muito mais do que era imaginado. O Egito, também considerado como

    “celeiro de Roma”, em razão da quantidade de grãos que exportava e que abastecia Roma,

    era indispensável para a manutenção dos estoques alimentares da Vrbs.

    No caso do sagrado, é interessante perceber como uma divindade de outra cultura

    foi também utilizada pelos romanos, cujo culto foi por eles incluído em sua sociedade e

    até mesmo em sua literatura com profundidade e destaque. As obras, tanto teóricas,

    quanto literárias, analisadas neste trabalho demonstram com clareza que havia aqueles

    que creditavam sua fé à deusa Ísis, consagrando-a como superior a outros ou a todas as

    outras divindades nativas. Junto com os gregos, os romanos admitiram em seu panteão a

    citada deusa egípcia, modificando sua apresentação e suas formas de culto, mas, ao

    mesmo tempo, incluindo aspectos de seu culto original, mesclando ambos em um novo

    rito.

    Embora existam inúmeras versões para cada mito, inclusive aquelas que são objetos

    desta análise, a mensagem intrínseca ainda é mantida. Nas duas formas de cultuar a deusa

    analisada nestes textos que atravessam fronteiras e épocas, ainda há um elo que os une e

    os torna comparáveis.

    Ao longo da história, o significado de sagrado e profano foi muito alterado,

    dependendo da sociedade e do momento histórico. Esta dissertação tem como objetivo

    demonstrar o culto de uma mesma deusa em culturas e religiosidades distintas, realçando

    pontos de contato e distanciamento entre as formas de culto e os contextos socioculturais

    e políticos específicos. As lendas e relatos mitológicos envoltos no culto à personagem

    feminina diferem em diversos aspectos, mas também se envolvem em outros. O fato de

    uma divindade egípcia tornar-se tão popular e adorada em um império que dominou a

    “terra natal” da deusa gera reflexões e estudos, por exemplo, nO Asno de Ouro, obra

    literária latina que será analisada ao fim desta dissertação, pois nela a presença do sagrado

    é demasiadamente importante, incluindo até detalhes sobre o culto e festival a Ísis.

  • 11

    A comparação entre o culto e atributos da mesma deusa por Roma e Egito motiva-se

    por diversas razões, entretanto a mais relevante prender-se-ia talvez à importância da

    religiosidade egípcia, personificada por Ísis para a cultura e religião romanas, não apenas

    no aspecto do sagrado, como também na política e na literatura.

    Como um primeiro passo nesse trabalho para se entender o culto e a presença da

    deidade, ter-se-á como objetivo discursar sobre o culto de Ísis no Egito, iniciando com

    uma breve explanação sobre a organização do Egito política e religiosamente. Ao longo

    dos parágrafos deste primeiro capítulo teórico, serão elencados e contextualizados, de

    forma sucinta, aspectos concernentes à história do Antigo Egito, bem como a ligação

    entre seus líderes e suas escolhas religiosas. Essa primeira parte servirá como

    embasamento teórico-religioso para os comentários posteriores acerca de outros traços

    relacionados à deusa.

    Em um segundo momento, passar-se-á ao trabalho sobre uma possível definição de

    mito e religião, as múltiplas possibilidades de narração do mito de Ísis e explanar-se-á o

    porquê de tais apropriações. Também serão demonstrados trechos literários ainda

    egípcios com a menção à deusa, além de evidências que corroboram a permanência da

    deusa ao longo da história do Antigo Egito.

    No capítulo quarto proceder-se-á a uma passagem por Alexandria e a correspondente

    influência helenizante, que permearam o culto e o mito isíaco antes que este chegasse a

    Roma. Nesse sentido, como fonte literária e historiográfica será utilizada a obra de

    Plutarco Iside et Osiride.

    No penúltimo capítulo teórico, será abordada a chegada de Ísis em Roma, as

    dificuldades encontradas no início em instaurar e manter o culto da deusa em Roma e a

    perseguição sofrida por seus devotos, passando pelas mudanças e definições dos ritos para

    os romanos.

    No último capítulo, por fim, será testemunhada a presença da deusa em Roma com a

    obra de Apuleio, O Asno de Ouro, além de menções à divindade egípcia em outras obras,

    como Metamorfoses, Sobre a Natureza dos deuses e Farsália, as quais servem como

    fontes dialógicas para comparação entre as diversas espacialidades, temporalidades e

    características do culto tratadas nesta dissertação.

  • 12

    II. POR UMA SÍNTESE DA HISTÓRIA DO EGITO ANTIGO

    Com milhares de anos de história, formas de governo distintas e inúmeras

    divindades e modos de culto, é tarefa árdua se pensar em uma história do Egito Antigo e

    sobre suas formas de expressão de religiosidade a partir de pontos de vista da atualidade.

    Entretanto, antes de adentrar mais profundamente no conteúdo mitológico e religioso, é

    preciso conhecer um pouco sobre essa história, que traz consigo informações políticas,

    entrelaçadas com a religiosidade de então.

    Os períodos históricos, definidos posteriormente para uma melhor compreensão da

    história egípcia, foram divididos de acordo com o modo de governo e as invasões sofridas.

    Utilizam-se os termos Antigo Reino, Reino Médio e Reino Novo, com alguns períodos

    intermediários entre eles, como afirma Doberstein1 (2010, p. 57):

    Sobre as denominações dos períodos de governo unitário existem duas

    tendências principais. Uma é chamá-los de ‘Impérios’ (Antigo Império,

    Médio Império e Novo Império). Até os anos 70 predominava essa tendência.

    A outra é denominá-los de ‘Reinos’ (Antigo Reino, Reino Médio e Reino

    Novo). É bom lembrar que o conceito ‘Império’ normalmente designa ‘uma

    unidade política que abarca um vasto território ou numerosos territórios ou

    povos, sob uma única autoridade soberana’.

    O início da história egípcia registrada por escrito é marcado pela unificação dos

    grupos que viviam dentro do território do Egito Antigo, sendo o período anterior

    classificado como pré-história destes povos2. Conforme pode ser visto no seguinte

    quadro:

    11 Ver em: DOBERSTEIN, Arnoldo W. O Egito Antigo. EdPucs. Porto Alegre, 2010 2 Na Figura 1 dos anexos, também representada aqui,há uma pequena linha do tempo com as marcações

    de início e fim dos períodos do Egito Antigo. Períodos e dinastias do Egito Antigo. Fonte:

    DOBERSTEIN, Arnoldo W. O Egito Antigo. Porto Alegre: EdPucs, 2010. p.59.

  • 13

    Antes da real instauração do Antigo Reino, houve um primeiro momento

    denominado Dinástico Primitivo. A Dinastia é nomeada desta forma, pois a passagem do

    poder no trono ocorria de pai para filho, ou mesmo filha, não necessariamente

    primogênitos, dependendo da época do recorte. Segundo os documentos históricos

    citados a seguir, os diversos grupos dentro do território egípcio foram unidos a partir da

    iniciativa do futuro faraó Menés, o qual, após conflitos bélicos, conseguiu a unificação

    dos territórios e tomou o trono. Datam deste primeiro momento também algumas das

    primeiras fontes materiais, como A Pedra de Palermo e o Papiro de Turim. Já neste

    primeiro espaço de tempo, referências para Ísis e Osíris são notadas, como, por exemplo,

    na nomenclatura do segundo faraó registrado. Ainda de acordo com Doberstein (2010, p.

    65):

    O sucessor imediato de Menés foi um faraó que, na Pedra de Palermo,

    aparece com o nome de Athotis. Na nomenclatura que o apresentava como

    ‘Filho de Hórus’, ele aparece com o nome de HorAha, representado pelo

    desenho de um falcão (Hor) e da torre de um palácio (Aha).

    Não somente Hórus é mencionado, como também seus pais em um dos festivais

    que era celebrado no reinado deste faraó, pois “Com o nome Adoração de Hórus, era

    celebrado um festival no qual se homenageava a Hórus, representado como um falcão, na

    condição de deus do outro mundo, filho único de Osíris e Ísis.” (DOBERSTEIN, 2010, p. 65).

    Neste primeiro momento, a religião está ainda muito voltada para uma forma mais

    relacionada a entidades com aspectos de animais. Após a conquista e unificação do Egito

    em aproximadamente 3100 a.C. pelo faraó Menés, os grupos reunidos trouxeram algo de

    sua crença anterior relacionado às divindades e à forma que elas assumiam, segundo

  • 14

    assevera Cunha3 (1969, p. 79-80):

    Sendo a caça a ocupação precípua dos antepassados dos antigos egípcios,

    e seu meio de subsistência, os animais, como ocorria com o Nilo,

    começaram a ser divinizados, ou a representar deuses ou a ser mesmo

    consagrados a eles, acompanhando-os. Detalhes tirados à animalidade são

    encontradiços nas divindades egípcias. Heródoto presenciou o crocodilo

    (Sebek) ornado de joias, sendo cultuado. Thot tinha a cabeça de íbis,

    Sechmet, de leão, encimada por uma serpente, Hathor, de vaca, da qual Ísis

    tinha os chifres, Hórus, de falcão, Anúbis, de chacal, Béstis, de gata,

    Nekhebt, de abutre. O boi Ápis escolhido mediante ritual era consagrado a

    Osíris e seus restos depositados no Serapeum.

    Desta forma, é possível perceber como a morfologia animal estava incorporada às

    divindades desde o início do culto da civilização egípcia, e, apesar dos traços animalescos,

    aquelas possuíam características e desejos típicos de humanos, tais como inveja, ódio,

    desejo e arrogância, como é possível ver a partir dos relatos mitológicos, por exemplo, no

    caso de Ísis e Osíris, que será aprofundado posteriormente nos próximos capítulos. Os

    egípcios cultuavam deuses antropomórficos, zoomórficos e antropozoomórficos, sendo

    que as duas últimas morfologias não eram comuns entre os romanos, com poucas

    exceções, como Pã. Para que se possa perceber a importância dos nomes de animais e das

    expressões da natureza para esses primeiros grupos, será utilizado o trecho de Cunha

    (1969, p.80):

    Os quarenta Nomos4, aproximadamente, existentes no primitivo Egito e

    oriundos da união de gens, e que tinham denominações tiradas aos animais

    (Chacal, Monte das Serpentes, etc.) foram, como já referimos, unidos por

    MENÉS que se tornou, ainda, Rei do Alto e do Baixo Egito. Esses Nomos,

    governados por um Nomarca, tinham vida própria e independente,

    guerreavam-se mutuamente e adoravam deuses locais, cujo culto era,

    muitas vezes, exportado pelas guerras vencidas. As lutas armadas eram, no

    fundo, batalhas em que os deuses pelejavam através de seus crentes. Sendo

    assim, é fácil deduzir como a importância dos deuses dependia do sucesso

    político que, por sua vez, neles se apoiava. O Egito, mesmo unificado,

    jamais se apartaria de um federalismo religioso, representado, então, pelo

    papel de suas grandes cidades, oscilando a sua história, como já

    examinado, entre a união e a desunião políticas.

    Em vista do exposto, evidencia-se que nunca houvera, desde o princípio, uma

    unificação real tanto religiosa quanto política devido à existência de divisões entre os

    povos assimilados ou incorporados, mesmo após a instituição de um governo único. Isso

    é deveras interessante a partir de um ponto de vista mitológico, pois, por haver diversos

    3 Ver em: CUNHA, Fernando Whitaker da. Teologia e política no antigo Egito. Revista de Ciência Política,

    Rio de Janeiro, v. 3, n. 4, p. 71-88, out. 1969. 4. Pequenos reinos comandados por autoridades locais.

  • 15

    povos, o modo de ser transmitida uma história oral poderia variar bruscamente, e não é

    sem motivos que o mito isíaco possuía tantas formas distintas. Nesse sentido, querer

    afirmar que existia apenas “um Egito” seria uma atitude simplista e reducionista, pois

    esse território englobava diversos grupos sociais e étnicos que não possuíam homogenia.

    Não é sem motivos que há uma alternância muito grande entre os deuses que são elevados

    ao grau mais alto do panteão de acordo com o faraó governante, pois, dependendo de sua

    origem e de sua concepção político-religiosa, essa escolha pode variar sobremaneira.

    Entretanto, a divindade foco deste trabalho já está presente com destaque desde o início

    da história escrita egípcia, o que demonstra não só seu grau de importância no Egito como

    um todo, como também sua penetração dentro dos diversos grupos que habitavam o Egito.

    O Antigo Reino (2695-2160 a.C.), marcado pela construção das pirâmides,

    inclusive a de Unas, que será mais bem descrita a posteriori neste trabalho e que

    desempenha um papel importante no mito isíaco, tem o seu declínio em 2160 a.C., com

    uma nova fragmentação do território, em que se instaura o primeiro período intermediário

    que durará até 1750 a.C. quando Monthuhotep, devoto ao deus Monthu, unificou

    novamente o Egito. Através deste e outros faraós egípcios, é possível perceber que os

    deuses elevados ao mais alto pedestal não são sempre os mesmos, alternando-se entre Rá

    (e sua forma posterior Amón-Rá), Monthu, Osíris, Aton, dentre outros. Nesse momento,

    a deusa Ísis ainda não possui papel de destaque individual no panteão divino, mas, apesar

    disso, manteve-se presente, durante toda a história egípcia.

    O Reino Médio foi marcado, principalmente, pelo avanço da tecnologia hídrica,

    com construções e estratégias para levar a água do Mar Vermelho a lugares muito

    distantes, conforme salienta Doberstein (2010, p. 132), ao dizer que “Ao longo dos quase

    60 quilômetros que separam as pedreiras do litoral do Mar Vermelho foram perfurados

    12 poços para suprir o comboio de água”. Este avanço tecnológico para a época foi

    imenso, o que demonstra a engenhosidade desta sociedade em criar mecanismos que a

    ajudavam a superar as dificuldades do local em que vivia.

    A invasão dos Hicsos em 1785 a.C, marcou o fim do Reino Médio e o início do

    segundo Período Intermediário, em que as terras do Egito ficaram sob a dominação

    daquele povo, que, apesar disso, adotou a mesma forma de escrita e de cultura dos

    dominados. Kamósis, o último rei da XVII Dinastia, foi quem realmente começou uma

    campanha para expulsar os invasores, porém foi Ahmósis quem instaurou o Reino Novo,

    marcado pela expansão militar, em 1580 a.C.. Apesar da ascensão de mulheres na

    organização do culto nessa época, estas não eram comparadas a Ísis, mas sim ao clero de

  • 16

    Amón ou mesmo a divindade Mut. Neste sentido, Doberstein (2010, p. 153) afirma que

    Assim como nos cultos do Antigo e Médio Reino, o culto do deus Amón

    empregava um grande número de mulheres, controladas por uma superiora,

    geralmente a esposa do sumo sacerdote. A novidade das dinastias XVII e

    XVIII foi a nomeação de uma dama da família real, às vezes a própria

    rainha, para comandar todo esse “harém” divino. Num certo sentido ela

    desempenhava também a função de esposa do deus, ou seja, a representante

    da deusa Mut (esposa divina de Amón) aqui na terra.

    Ainda que as mulheres estivessem presentes nos rituais religiosos - como

    cultuadoras e divindades a serem evocadas -, no governo do Egito, estas não foram

    associadas num primeiro momento ao culto de Ísis.

    Outra grande mudança na religiosidade dos egípcios no Novo Reino ocorreu com

    Amenófis IV que instaurou o monoteísmo, numa tentativa de suprimir os diversos cultos

    e práticas religiosas diversas que havia por todo reino. Inicialmente, manteve as tradições

    do culto a Amón e aos diversos outros deuses presentes no panteão, porém, após alguns

    anos de governo, a adoração ao Disco Solar5 e profundas mudanças políticas e sociais

    foram por ele impulsionadas, como demonstra Doberstein (2010, p. 167):

    Entre o quinto e o sexto ano de seu reinado a crise se instalou. Por motivos

    ainda incertos, o faraó decidiu que o deus da monarquia deveria ser um só.

    E mais, que não deveria ser nenhum dos deuses tradicionais (Rá, Ptah,

    Amón, etc.). Declarou-se profeta e seguidor de Aton, passando então a

    chamar-se de Aquenaton.

    Além das transformações religiosas, a vida no Egito passava por inúmeras

    transformações, que impactavam outras áreas da sociedade, como destaca Cunha (1969,

    p. 83):

    Tal revolução espiritual teria que ter repercussões na esfera política, social

    e econômica. O misticismo do Faraó fizera-o descuidar-se da coisa pública.

    O término das guerras abalara o erário; o desapego total pelas coisas

    terrenas olvidara os campos; os inimigos percebendo a fraqueza militar do

    Egito ameaçavam suas fronteiras e, vanguardeiras da anarquia próxima,

    rondavam a miséria e a fome. Desmoronava-se o império egípcio,

    enquanto o Faraó, numa cidade inacabada, entoava loas ao Sol. Os

    distúrbios internos, então, insuflados pelo agora clandestino clero de

    Amón, desenvolveram-se, contando com o apoio popular. A frágil saúde

    de Amenófis IV, o real consorte de Nefertite, minada por uma linhagem

    real repleta de uniões consanguíneas, terminou por levá-lo ao túmulo.

    Tal situação não foi esquecida pelo clero de Amón, que não era favorável a essas

    mudanças, a tal ponto que, após a morte de Amenófis IV, os sacerdotes de Amón

    5.

    Adoração ao deus egípcio Ra-Harackte de Heliópolis e transposição da capital para o mesmo local, com

    a adoção de mudanças não apenas religiosas como econômicas e sociais. Ver anexo 5..

  • 17

    procuraram apagar todos os registros desse governante, assim como os templos

    construídos por ele, conforme nos informa Cunha (1969, p. 84):

    A corte retornou a Tebas, abandonando Akhenaton à própria ruína. A

    múmia de Amenófis IV foi vilipendiada, seu nome apagado das inscrições

    (a magia acreditava que a destruição do nome equivalia à destruição da

    própria pessoa) e sua memória ligada ao cognome ‘aquele criminoso’.

    Após esse reinado, ocupam o poder dois faraós de grande importância e repercussão

    na história do Egito Antigo: Tutancâmon e Ramsés III6.

    O fim do Reino Novo é marcado pela queda de Psamétrico III. De acordo com

    Cunha (1969, p. 75), “Psamétrico III, vencido em Pelusa, por Cambesis, como bem narra

    Heródoto, encerra, praticamente, a história do Antigo Egito, dominado a seguir, por

    persas, gregos, romanos, árabes e turcos”.

    A partir desta mui sucinta exposição sobre a história egípcia na Antiguidade,

    constata-se que não havia uma uniformidade quanto à primazia no panteão divino egípcio,

    entretanto, resta uma dúvida: se Ísis não era tão relacionada aos faraós, como adquiriu

    posteriormente tamanha importância? Apesar de não estar em primeiro plano no cenário

    egípcio, Ísis esteve presente em grande parte da história egípcia e por isso a origem da

    divindade e seu culto serão analisados no capítulo seguinte.

    É suficiente, por ora, uma reflexão acerca da relação entre religião, cultura e

    política, que fica muito bem explícita na história do Egito Antigo. A supremacia dos

    faraós e daqueles que venciam suas disputas militares ou até sucessórias tinha como

    suporte ideológico a presumida onipotência dos deuses que eles defendem em suas

    disputas, o poder da religião não se restringindo apenas ao culto propriamente dito.

    Destarte, a falha de um governante pode ser atribuída a sua fé, como ocorreu no caso de

    Akhenaton. Conforme será visto nos capítulos três, quatro e cinco, referentes à chegada

    de seu culto em Roma e sua passagem pela Grécia, a forma como um deus ou uma deusa

    são vistos e cultuados, ou o que as divindades representam pode ser usado como objeto

    político e social, para a defesa de um ideal ou como forma de unir vários povos sob uma

    dinastia ou governante.

    Para os egípcios, a sacralidade das divindades é muitas vezes reforçada pela escrita

    6.

    Devido ao escopo da dissertação e por fugir à temática desta não discutiremos aspectos relacionados aos

    dois faraós. À guisa de informação, contudo, podemos afirmar que Tutancâmon morreu muito jovem,

    sendo considerado o faraó criança e só teve importância histórica devido à sua tumba encontrada

    praticamente intocada, porém não exerceu grande poder em sua época. Apesar de Ramsés III ter sido um

    faraó conhecido por sua “luta” contra os judeus, não influenciou no culto isíaco e pouco se fala de sua

    religiosidade. Para maiores informações cf. Doberstein (2010, p. 202).

  • 18

    hieroglífica. Nesse sentido, entende-se melhor o porquê de ser tão importante a menção

    a Ísis logo nos Textos das Pirâmides, o que evidencia não só sua presença desde o início

    da história do Egito Antigo, quanto seu valor para os egípcios. Destarte, como assevera

    FISCHER (2009, p. 35)7 “No passado, os egípcios chamavam a escrita de mdw-ntr –

    “palavras de deus” – porque acreditavam ser ela um presente de Thoth, o escriba dos

    deuses com cabeça de íbis, curandeiro, senhor de toda a sabedoria e patrono dos sábios.”

    Portanto, a associação da escrita a alguma forma de sacralidade evidencia, desde o início,

    a presença destacada da divindade feminina dentro da história do Egito Antigo.

    Em O poder da Escrita, Ladislas Mandel (2011, p. 7) discorre ainda mais a fundo

    sobre os hieróglifos, relacionando-os ao alfabeto ocidental:

    Nosso alfabeto é filho do hieróglifo. Se com os gregos ele deixa de ser uma

    representação abreviada do mundo para tornar uma figuração arbitrária do

    som, o caráter abstrato de seu status lhe confere em troca uma plasticidade

    sem precedentes 8.

    O autor, ao discutir sobre a escrita etrusca e do surgimento do alfabeto, intitula o

    capítulo que trata desse assunto desta forma: “A escrita dessacralizada – o alfabeto”,

    logo, há a possibilidade de dizer que a egípcia seria, então, uma escrita sacralizada. Tal

    afirmação é reveladora, pois se a escrita é sagrada, apenas aquilo que deve ser marcado é

    escrito, como já foi visto neste mesmo capítulo com referência a Aquenaton, o apagar de

    um nome ou a escrita dele marca a história, a modifica.

    Mandel (2011, p. 25) prossegue discorrendo sobre as três funções da escrita entre

    os egípcios e outros povos da Antiguidade:

    Na maioria das sociedades, desde a mais remota Antiguidade, três grandes

    funções, desigualmente repartidas, porém complementares, prevaleceram

    nas diferentes formulações escriturais: expressão do poder político: escrita

    monumental; expressão do poder espiritual: escrita literária; expressão do

    poder individual: escrita corrente.

    Aqui fica clara a relação entre escrita literária e a expressão do poder espiritual.

    Seja por uma possível inspiração das musas pelos gregos, ou seja, a fonte divina que o

    autor use, o sobrenatural está ligado à literatura já desde suas origens e isso não é diferente

    nos textos relacionados a Ísis. A menção à deusa nesses escritos acaba sempre sendo

    associada a alguma referência mitológica, sagrada.

    A extensão desse aspecto de sacralidade do texto escrito até à contemporaneidade

    7 Ver em: FISCHER, Steven Roger. História da escrita. Tradução e Mirna Pinsky. São Paulo: Editora

    UNESP. 8 Ver em: MANDEL, Ladislas. O poder da escrita. Tradução de Contância Egrejas. São Paulo: Rosari,

    2011.

  • 19

    é atestada por Mandel, em sua obra anterior Escritas, espelho dos homens e das

    sociedades9 (2006, p. 29), ao dizer que:

    (...) a despeito do caráter profano da escrita alfabética amplamente

    difundida, ela não perdeu inteiramente a sacralização, pois nunca deixou de

    recorrer às virtudes mágicas do sinal, ampliadas pela presença do VERBO,

    da palavra misteriosa, não expressa, mas criadora de realidades.

    Não é sem razão que até na era contemporânea ainda existam tantas religiões que

    valorizam seus textos sagrados, punindo severamente quem os profane ou atue de modo

    incorreto com estes. Todavia, após a contextualização ora apresentada, discorramos sobre

    o papel propriamente dito de Ísis entre os egípcios.

    9 Ver em: MANDEL, Ladislas. Escritas, espelho dos homens e das sociedades. Tradução de Constância

    Egrejas. São Paulo: Rosari, 2006.

  • 20

    III. ÍSIS NO EGITO – ORIGEM E CULTO

    No que diz respeito ao culto da deusa no Egito e para um melhor entendimento

    sobre este, é necessária uma explicação do mito de Ísis. Todavia, conforme exposto ao

    longo do capítulo anterior, o mito de Ísis foi contado durante praticamente, se não toda, a

    história do Egito Antigo, então traçar a história do mito “original” é uma tarefa muito

    árdua, restando sim fontes escritas, porém vagas e de difícil acesso. Nesse sentido, será

    lançada mão de relatos retirados de diversas fontes egípcias, desde escritos em paredes

    de pirâmides até estelas para demonstrar as suas características primeiras, bem como

    assinalar, como típicas de relatos oriundos de tradição oral, as modificações

    implementadas.

    Segundo a mitologia, como exemplificado pela pirâmide de Unas, que será mais

    detalhadamente abordada mais a frente neste mesmo capítulo, Ísis, em um de seus

    primeiros relatos mitológicos, é, juntamente com Nephtys, irmã de Osíris, que, segundo

    a lenda, era rei e foi atacado por seu irmão Seth, que almejava o trono. Ambas as irmãs

    saem em busca do corpo do irmão e marido de Ísis e a rainha, através de sua magia,

    ressuscita o irmão.

    Inicialmente, vale ressaltar, segundo assevera Cunha (2009, p. 84), que o culto de

    Ísis e Osíris é antiquíssimo e popular:

    Importante papel teológico-político representou o culto de Osíris,

    legítimo deus popular do antigo Egito, e perante o qual eram iguais todos

    os homens. Associado ora a Rê10, ora a Amon, a humanização que trazia

    deve ter influído no próprio atonismo. A sua legenda empolgava e

    anunciava a aurora, a redenção e a imortalidade. Esse deus que fora rei,

    na dinastia divina; que fora assassinado por Seth, deus das trevas; que

    ressuscitara pelo amor de Ísis e que fora vingado por seu filho Hórus, era

    bem a imagem de uma vida melhor.

    Essas informações servem como um primeiro sinal do possível motivo da

    popularidade do culto isíaco: uma deidade que possui em si algo humano, que se sente

    traída, que ama e vivencia toda a sorte de emoções por que passam os seres humanos,

    mas ao mesmo tempo recupera tudo que lhe fora tirado, isto é, seu esposo e seu reino,

    embora não nas mesmas condições originais. Não é, portanto, difícil de entender como a

    lenda sobre esta deusa alcançou e penetrou rapidamente nas camadas populares. Mesmo

    assim, não há muitos dados acerca do culto de Ísis, mas os encontrados fornecem pistas

    10

    . Rá, apenas como tradução diferente como Akhenaton e Aquenaton.

  • 21

    interessantes para a compreensão de seu culto. Em Magic in Ancient Egypt, Geraldine

    Pinch (1994, p. 29) narra a importância da deusa, apesar de não haver, em um primeiro

    momento, grandes templos em seu nome.

    Ísis, a mãe de Hórus, desempenha um papel dominante na magia. Tão

    antiga quanto os Textos das Pirâmides, ela foi creditada com poderes

    mágicos extraordinários que foram capazes de reverter ou prevenir o

    apodrecimento do corpo de seu marido. Ela destaca-se em numerosos

    encantamentos através do segundo milênio a.C.. Apesar de sua

    proeminência nos mitos e na magia, ela tendeu a desempenhar um papel

    secundário nos cultos. Templos maiores não foram dedicados a Ísis

    antes do final do primeiro milênio a.C.. Em textos mágicos ela aparece

    como uma deusa popular, simpática diante dos membros mais humildes

    da sociedade. De todas as divindades egípcias, ela foi a que mais se

    aproximou ao tipo de sofrimento experimentado pela maioria da

    humanidade (Tradução nossa)11.

    Por essa e outras razões, como os festivais populares e náuticos, pela crença em sua

    atuação mágica através de fórmulas próprias ligadas a assuntos do dia-a-dia (amor, sorte,

    desejar mal a alguém, etc.) e da propagação futura de seu culto pelos legionários romanos

    (através dos devotos da deusa), é através desta camada social que seu culto se disseminou

    inicialmente, em sua grande maioria, não só pelo Egito como também pelo mundo greco-

    romano. Entretanto, a oficialização do mito ocorrerá de modo diferente, como será

    apresentado mais adiante.

    III.1 O mito e a religião

    Antes de ser possível discutir aprofundadamente o culto de Ísis e o seu

    mitologema12, são necessárias as definições dos conceitos de mito e religião e como o

    culto isíaco se enquadraria dentro daquelas.

    De acordo com Eliade (1972, p.9), ter um conceito definitivo de mito não é uma

    tarefa das mais fáceis, mas ele o esboça da seguinte maneira:

    A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser

    a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um

    acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do

    11.

    “Ísis, the mother of Horus, plays a dominant role in magic. As early as The Pyramid Texts, she was

    credited with extraordinary magical powers which were able to reverse or prevent the decay of her

    husband's body. She features in numerous spells throughout the second millennium BC. In spite of her

    prominence in myth and magic, she tended to play a secondary role in cults. No major temples were

    dedicated to Ísis before the late first millennium BC. In magical texts she appears as a popular goddess,

    sympathetic towards the humblest members of society. Of all Egyptian deities, she was the one most closely

    associated with the kind of suffering experienced by the majority of humanity.” 12 De acordo com ALVARENGA, M. Z., “Mitologema é o conjunto de várias histórias míticas que

    traduzem uma mesma temática”. Ver em: ALVARENGA, M. Z. Mitologias Simbólicas, estruturas da

    psiquê e regências Míticas. São Paulo: Casa do Psicológo, 2007, p. 11.

  • 22

    "princípio". Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos

    Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total,

    o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um

    comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de

    uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.

    Destarte há um paralelismo entre a essência do mito e o culto de Ísis, pois estes, Ísis

    e Osíris, seriam os primeiros reis do Egito, também aqueles que ensinaram diversas

    funções e trabalhos ao povo e também a origem da primeira múmia, Osíris.

    Religião, por outro lado, seria, conforme o Dicionário ilustrado de religiões, (1997,

    p. 90)13:

    Difícil de ser definida, já que está presente em todos os tempos e em todas as

    culturas, sob as mais diversas formas. Religião tem a ver com as questões

    fundamentais do homem: Quem sou eu? De onde vim? Por que e para que eu

    vivo? O que devo fazer? O que vai acontecer comigo depois da morte? São

    questões a respeito do transcendente, do divino, do sagrado. A origem do

    termo religião tem várias explicações. Segundo alguns, vem de “religare” =

    reatar. Segundo outros, vem de “relegere” = reler, observar

    conscienciosamente; lembra o respeito devido às prescrições da religião

    romana.

    Arnold van Gennep complementa esta definição em seu livro Os Ritos de Passagem

    (2011, p. 32): “Designamos por animismo a teoria personalista, quer a potência

    personificada seja uma alma única ou múltipla, que se trate de uma potência animal ou

    vegetal (totem), antropomórfica ou amorfa (Deus). Estas teorias constituem a religião14”.

    Gennep (2011, p. 25-28) ainda apresenta um panorama geral de ritos, explicando

    suas possíveis variações e classes. O que há em comum, entretanto, são as reações sempre

    ao sagrado ou ao profano; às vezes para marcar a mudança para outro estágio da vida,

    chegada à juventude ou nascimento, por exemplo, ou para um casamento e funeral.

    Entretanto, os ritos aos quais se refere neste estudo são o festival e os ritos de nascer e

    por do sol consagrados à deusa Ísis.

    Através dessas definições é possível chegar à conclusão de que existe, da mesma

    forma que existiu no passado, tanto o mito de Ísis quanto a religião isíaca, visto que havia

    sacerdotes que deviam obediência à deusa e prestavam-lhe serviço e culto. Portanto, é

    necessário dividir esses dois pontos em relação à divindade, o mito e sua religião, sendo

    o primeiro a narrativa da história da deusa e a segunda os ofícios empregados ao seu culto,

    13 Ver em: SCHWIKART, Georg. Dicionário ilustrado de religiões. Tradução de Pe. Clóvis Bovo, C.Ss.R.. Aparecida: Santuário, 1997. 14 Ver em: GENNEP, Arnold van. Os Ritos de Passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira,

    da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação,

    noivado, casamento, funerais, estações etc. Tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2011.

  • 23

    principalmente na transposição do culto para a Grécia, devido à carência de fontes

    propriamente egípcias do culto e sacerdócio isíacos. Desta forma, é possível se aproximar

    da deusa a partir da criação de seu mito e as dificuldades implicadas na tentativa de

    encontrar uma fonte mais próxima possível da sua origem, como se mostrará

    posteriormente ainda neste capítulo.

    Conforme sucintamente discutido no capítulo anterior, houve múltiplos momentos,

    religiões e governos no Antigo Egito, o que se torna um desafio de grande porte àquele

    que tenta estudar o assunto no que tange à recuperação de fontes sobre a origem do mito.

    Como já havia a presença de mitos antes da escrita e, novamente, devido à multiplicidade

    de povos que habitavam o território egípcio, não é difícil descobrir que também existem

    múltiplas versões do mito de Ísis e Osíris, uma delas citada por Pinch (1994, p.26):

    O bom deus Osíris reinava na terra com sua sábia irmã Ísis como sua

    consorte. É dito que Ísis e Osíris se apaixonaram um pelo outro no útero.

    O reino de Osíris foi uma era dourada, mas não estava destinada a durar

    muito. Seth estava com ciúmes do poder de seu irmão e decidiu matar

    Osíris. De acordo com várias tradições, Seth tomou a forma de um touro,

    um hipopótamo ou um crocodilo, para atacar seu irmão e jogá-lo no Nilo.

    Ísis e sua irmã Nephtys procuraram pelo corpo. Quando elas o

    encontraram, Ísis usou seus poderes mágicos para reverter os efeitos do

    apodrecimento. Anúbis, o deus chacal do embalsamento, fez de Osíris a

    primeira múmia. Criou-se uma tradição de que Seth cortou o corpo em

    pedaços. Em algumas versões do mito, Ísis junta as partes com sua mágica;

    em outras, ela enterra cada parte onde ela as achou. Enquanto que as duas

    deusas estavam cuidando do corpo, Ísis foi capaz de reviver Osíris apenas

    o tempo suficiente para conceber uma criança dele. Em uma tradição

    alternativa, a deusa engravidou por fogo divino. (Tradução nossa)15.

    Em outro relato, retirado dos Pyramid Texts16, coleção de textos considerada a

    biblioteca mais antiga do mundo, datando de mais de 4500 anos 17, as irmãs, juntas,

    encontraram o corpo em decomposição imerso na água, após procurarem por todo o Egito.

    Ambas as irmãs choraram a perda do irmão, o que chegou aos ouvidos do deus Rá, que

    interveio e ressuscitou Osíris, cujo filho vingou a morte do pai. Essa narrativa é composta

    15

    . “The good god Osiris ruled on earth with his wise sister Ísis as his consort. Osiris and Ísis were said to

    have fallen in love in the womb. The reign of Osiris was a golden age but it was not destined to last long.

    Seth was jealous of his brother's power and decided to murder Osiris. According to various traditions, Seth

    took the form of a bull, a hippopotamus or a crocodile, to attack his brother and throw him in the Nile. Ísis

    and her sister Nephthys searched for the body. When they found it, Ísis used her magic powers to reverse

    the effects of decay. Anubis, the jackal god of embalming, made Osiris into the first mummy (fig. 80). A

    tradition grew up that Seth had torn the body to pieces. In some versions of the myth, Ísis joined the pieces

    together by her magic; in others she buried each piece where she found it. While the two goddesses were

    watching over the body, Ísis was able to revive Osiris for just long enough to conceive a child by him. An

    alternative tradition had the goddess miraculously impregnated by divine fire.” 16

    . The Pyramid Texts. Trad. de Samuel A. B. Mercier. London: Longmans, 1952. 17 Os textos serão melhor analisados posteriormente neste trabalho.

  • 24

    por diversos rituais e encantamentos que serviriam para auxiliar o morto, no caso o faraó,

    a chegar ao outro lado em segurança e com as devidas honras. O que é interessante de ser

    notado é que em todos os momentos há uma comparação feita com as divindades e o

    falecido faraó, com analogias entre o finado e Osíris, por exemplo, o que atesta a

    importância longeva desses deuses, como evidenciada a partir de alguns trechos dos

    Textos das Pirâmides de acordo com a tradução de Mercier (1952)18.

    871d. tu comandas os espíritos.

    872a. Ísis lamenta por ti, Neohtys chora por ti,

    872b. o grande mni.t19 fere o mal por ti,

    872c. como para Osíris em seu sofrimento.20

    (hino 461, p.257)21

    898a. Ísis lamenta por ti, Nephtys chora por ti, como Hórus

    que vingou seu pai Osíris.22

    (hino 468 – p. 262)

    1004d. quando eles vierem para Osíris como a voz da

    lamentação de Ísis e Nephtys

    1005a. As Almas de Buto dançam por ti;

    1005b. eles batem na sua carne por ti; eles ferem seus braços

    por ti;

    1005c. eles raspam seu cabelo por ti;

    1005d. eles dizem para Osíris:

    1006. “Tu te fostes, tu vieste; tu estás acordado, tu estivestes

    dormindo; tu permaneces vivo.

    1007a. Levanta, veja isto; levanta, ouça isso,

    1007b. o que teu filho fez por ti, o que Hórus fez por ti.

    18 Os números das páginas serão informados a partir de cada citação, visto que estão em várias páginas ao

    longo do texto. 19

    . Falha na inscrição. 20

    . As traduções para o português são nossas, a não ser em casos especiais por nós mencionados. 21

    . 871d. thou commandest the spirits.

    872a. Ísis laments for thee, Nephthys bemoans thee,

    872b. the great mni.t smites evil for thee,

    872c. as for Osisris in his suffering. 22

    . 898a. Ísis Laments for thee, Nephthys bemoans thee, as Horus who avenged his father Osiris.

  • 25

    1007c. Ele vence aquele que vence a ti; ele amarra aquele

    que amarra a ti;

    1008a. ele o coloca sob sua grande filha que está em Kdm.

    1008b. (é) tua grande irmã quem coletou tua carne, quem

    recolheu tuas mãos,

    1008c. quem procurou a ti, quem achou a ti em teu lado na

    costa.

    (hino 482 p. 284)23

    Por se tratar de uma série de hieróglifos nas paredes das tumbas em que estão

    retratados vários rituais funerários para a passagem do rei ou faraó para o submundo, a

    narrativa confunde-se com os próprios ritos do morto, como uma forma de recriação da

    morte e ressurreição de Osíris no corpo do faraó.

    Depois de receber diversas modificações até o Novo Reino, o mito de Ísis e Osíris

    chega a sua forma definitiva no Hino a Amnemose, uma composição da 18ª. dinastia

    (1500 a 1300 a. C.), que se encontra em uma estela, hoje localizada em exposição no

    Museu do Louvre. Nesta versão do mito, Ísis casa-se com o irmão Osíris e reinam juntos

    no Egito. Entretanto, o outro irmão de Ísis e Osíris, Seth, também quer se apoderar de

    forma matrimonial da irmã, elaborando para isso um plano para matar Osíris. Ísis é dotada

    de magia24 e pressente que Seth irá fazer algo para prejudicar seu marido-irmão, mas não

    consegue impedi-lo. Seth manda construir um baú do tamanho exato de Osíris e fornece

    um banquete para o irmão. Durante o banquete, Seth anuncia que dará o baú de presente

    para aquele que couber nele e todos tentam a sorte, pois era um baú muito bem

    ornamentado com ouro e joias, entretanto, ninguém consegue completar a façanha.

    23

    . -1004d. when they come to Osiris as the voice of lamentation of Ísis and Nephtys

    1005a. The Souls of Buto dance for thee;

    1005b. they beat their flesh for thee; they smite their arms for thee;

    1005c. they disvehel their hair for thee;

    1005d. they say to Osiris:

    1006. "Thou art gone, thou art come; thou art awake, thou wast asleep; thou remainest alive.

    1007a. Stand up, see this; stand up, hear this,

    1007b. what thy son has done for thee, what Horus has done for thee.

    1007c. He beats him who beats thee; he binds him who binds thee;

    1008a. he puts him under his great daughter who is in Ḳdm.

    1008b. (it is) thy great sister who collected thy flesh, who gathered thy hands,

    1008c. who sought thee, who found thee upon thy side on the shore 24 Magia: Poder de dirigir e influenciar o mundo e a natureza com as próprias forças, apenas empregando corretamente um rito secreto. Do ponto de vista das religiões, pode ser também uma superstição. Frequentes

    vezes estão em jogo truques mágicos. - Do grego do persa magush = evocação de forças

    suprassensíveis. Ver em: SCHWIKART, Georg. Dicionário ilustrado de religiões. Tradução de Pe. Clóvis

    Bovo, C.Ss.R.. Aparecida: Santuário, 1997. p. 67.

  • 26

    Quando todos, exceto o rei e a rainha, tentam sua vez, Seth sugere que o baú talvez seja

    apenas digno de um rei e que Osíris deveria tentar. Apesar dos conselhos de sua esposa

    para que não fizesse isso, Osíris entra no baú que é imediatamente fechado por Seth e

    seus seguidores. Seth tenta, então, se apoderar da irmã, porém ela usa sua magia para

    fugir. O baú é jogado aos crocodilos e o corpo de Osíris é despedaçado. Ísis parte então,

    junto com sua irmã, as duas sob a forma de falcões egípcios25 em uma jornada para

    recuperar todos os pedaços de Osíris. Ísis utiliza sua magia para interromper a

    decomposição, e realiza, por fim, uma cerimônia de ressurreição. Após Osíris ser

    desperto, ele e Ísis concebem seu filho, Hórus, e Osíris parte para o mundo dos mortos

    junto com Anúbis, para participar do julgamento dos que se foram. Ísis cria seu filho para

    que possa vingar o pai e, quando o menino cresce, entra em uma disputa com Seth. Ísis

    utiliza novamente sua magia, criando uma serpente que pica o deus do sol Rá, o mais

    poderoso no panteão egípcio, o qual, para receber o antídoto, revela seu nome verdadeiro

    e concorda em se tornar o protetor de Hórus e deixar que Ísis visite Osíris

    esporadicamente no mundo dos mortos26.

    A tradução do nome original de Ísis (Aset) e Osíris (Asar)27 foi realizada pelos

    gregos e, com esta nova nomenclatura, seu culto atravessou as fronteiras do Egito.

    Etimologicamente, segundo Fallorca em citação no texto de Fantacussi (2006, p.12), Ísis

    origina-se do verbo grego eidenai, do antigo verbo iseme, que significa “saber”. Dessa

    forma, como afirma Fantacussi, “o templo de Ísis foi chamado por Plutarco de Iseión, ‘a

    casa onde podemos adquirir a ciência do ser’ (Plut. 2)”. Mais uma vez é provada a

    importância da deusa, portadora do conhecimento segundo os gregos.

    O culto isíaco fornece uma revelação muito interessante acerca da concepção

    religiosa egípcia de divindade feminina, mostrando que as deusas não possuíam caráter

    inferior ou superior às divindades masculinas, ocupando, portanto, um mesmo patamar.

    O mito de Ísis (Aset) e Osíris (Asar) apresenta muito mais do que apenas um casal de

    divindades e um aspecto da religiosidade egípcia Ao redor da lenda que circunda os

    mitológicos rei e rainha, conhecimentos sobre agricultura, medicina e outras atividades

    aprendidas pelo povo também estão relacionados. De acordo com a mitologia egípcia, os

    homens eram bárbaros e não possuíam conhecimento sobre nenhuma ciência, contudo, a

    25 Imagem na figura 2 dos Anexos. 26

    . Ver The Routledge Dictionary of Gods and Goddesses. 2005, p. 80. 27

    . Os nomes Ísis e Osíris são gregos, sendo Aset e Asar os nomes egípcios originais.

  • 27

    vinda de Ísis e Osíris provê aos homens os ensinamentos sobre todos esses assuntos.

    Sendo um dos maiores mitos relacionados à religiosidade egípcia, não é sem motivos que

    o culto à deusa se espalhou por outras sociedades, conforme Quesnel (1993, p. 11)

    Irmã e esposa de Osíris, a deusa Ísis foi objeto de uma admiração

    fervorosa pelas multidões – não somente no Egito, mas em todo o mundo

    antigo. Para todos, mostra-se mãe compassiva, sensível às tristezas

    humanas e capaz de compartilhá-las […] Frequentemente, os egípcios a

    representavam em companhia de seus filho Hórus[…].

    Esse mito, conforme afirmado anteriormente, já aparece nos Textos das

    Pirâmides. Os textos estão grafados nas paredes do complexo de Pirâmides de Unas, que,

    apesar de ser uma das menores, guarda esse precioso tesouro relacionado a cinco faraós:

    Wenas, Teta, Pepy I, Nefer-Ka-Ra’ Pepy II e Mer-en-Ra’ II. Os Textos das Pirâmides

    foram modificados e acrescentados até chegarem aos Textos dos Sarcófagos, que

    posteriormente tiveram a mesma função: auxiliar os mortos a chegar ao seu lugar no

    Além. Por fim, esses relatos escritos deram origem ao que modernamente se conhece

    como O Livro dos Mortos egípcio.

    Os textos contêm uma grande quantidade de encantamentos para proteger o faraó,

    ou quem estivesse sendo sepultado, de forma a propiciar àquele uma viagem adequada

    para o além, conforme foi apresentado nos excertos acima. Além disso, discutem a criação

    de avatares, formas humanoides que serviriam a diversos propósitos para o sepultado.

    A menção a Ísis e Osíris remete ao filho de ambos, Hórus (Heru), e junto com seus

    pais e irmão mais velho, o babuíno Benety, nascido, em algumas versões, de uma cópula

    de Osíris com Nephtys (cópula realizada quando Osíris pensava que esta sua outra irmã

    era Ísis) representam os quatro pilares para a evolução do homem: Osíris representa o

    indivíduo, que é o detentor de seu mundo e se apresenta para ir ao além; Ísis representa a

    característica mais importante do ser humano: a habilidade de sentir, lamentar-se e curar,

    para prosseguir o caminho; Baba (Buddha), filho mais velho, representa a consciência

    indefinida, que se molda aos poucos; e Hórus, que é o herói, representa a vontade

    deliberada, já que conseguiu vingar o pai e tornar-se o grande vencedor. Junto com essas

    entidades, o ser pode atravessar o Caminho do pós-vida e chegar ao seu destino final.

    Exemplo de Hino (em que [_____] é substituído pelo nome da pessoa sepultada

    que passa pelo ritual):

    Hino 363:

  • 28

    Tradução do inglês:28

    Diga: Caminho de Hórus,

    Prepara tua tenda para [________]

    Prepara teus braços para [________]

    Rá transporta [________] para o outro lado.

    Assim como transportas teu seguidor acima do neblungo, que tu amas.

    Se estenderes tua delgada mão em direção ao Ocidente, então tu quererás estender

    tua delgada mão em direção a [________]

    Se estenderes tua delgada mão em direção ao Oriente, então tu quererás estender

    tua delgada mão em direção a [________]

    Assim fizeste para o babuíno Benety, teu filho mais velho.

    As diversas faces de Ísis são reveladoras da importância da deusa para a cultura e

    religiosidade egípcias e, posteriormente, gregas e romanas. Ísis, de acordo com o Hino de

    Amnemose, seria a primogênita no casamento entre Geb, a deusa da terra, e Nut, o deus

    do firmamento, que depois conceberam seu irmão Osíris. Osíris era considerado o deus

    28 To say: Way of Horus,

    Make ready thy tent for [________], make ready thy arms for [________].

    Re comes, ferry [________] over to yonder side,

    As thou ferriest thy follower over, the wing-plant, which thou lovest

    If thou stretchest out thine arm towards the West, so willt thou strech out thine arm to [________];

    if thou strechest out thine arm toward the East, so willt thou strech out thine arm to [________],

    as that which thou hast done to the bnti(-ape), thine eldest son.

  • 29

    que auxiliou os homens a se estabeleceram às margens do Nilo e tinha Ísis ao seu lado

    como esposa-irmã, que não mediu esforços para protegê-lo, salvá-lo e também instruir o

    seu povo, sendo retratada na Estela de Amnemose como um grande pássaro a proteger o

    seu marido. Além disso, Ísis é a deusa da maternidade e protetora das crianças por razão

    da concepção de seu filho Hórus, que também contou com a sabedoria e astúcia da mãe

    para auxiliá-lo a tomar o poder do tio, demonstrando seu lado como deusa protetora da

    maternidade e fertilidade. Todos os faraós posteriores, segundo o relato mitológico,

    seriam a encarnação de Hórus vivo e, portanto, possuiriam a proteção de Ísis. Por fim,

    Ísis ainda possui outra faceta sobrenatural como deusa, auxiliadora nos mundos dos

    mortos e utilizadora de magia, visto que foi sua magia que impediu a putrefação de Osíris,

    sua ressurreição e todos os outros feitos que auxiliaram Hórus a vencer Seth.

    A importância da deusa cresceu com o passar dos anos, começando a se misturar

    com outras culturas e divindades e assumindo as características que ainda hoje a

    definem29. O culto a Ísis foi tão importante, que o nome da deusa foi concedido a uma

    cidade na parte central do delta do Nilo, chamada pelos gregos de “Isidopolis”.

    Por essa assimilação de vários nomes e personagens, Ísis foi denominada

    Myrionima, “aquela de milhares de nomes”. Uma de suas primeiras assimilações foi a

    deusa grega Deméter, por razão da relação entre as duas com a colheita e a semeadura.

    Além disso, a procura de Démeter por sua filha Perséfone e a alegoria com as estações do

    ano30 pode ser comparada com a busca de Ísis por Osíris e sua intervenção nos períodos

    de plantio, colheita e de seca, estando as cheias do rio Nilo relacionadas à deusa e a sua

    procura de seu marido. Quando representada dessa forma, Ísis portava uma túnica e

    segurava um feixe, ou carregava acima da cabeça, um vaso que representava chifres ou a

    lua crescente. Pela mesma vinculação, Ísis foi assimilada à deusa Thermutis na era

    Ptolomaica. Nessa representação, Ísis possuía a cabeça de mulher e corpo de cobra.

    Uma das vinculações mais disseminadas no mundo romano era Ísis-Fortuna, que

    delegava à deusa poderes de mudar o destino, comandar a fertilidade e a saúde. Nessa

    forma, Ísis era representada portando uma cornucópia e um leme e seus símbolos que a

    distinguiam da deusa Fortuna, que eram seu nó e coroa. Muitas estátuas de bronze de Ísis-

    Fortuna foram encontradas por arqueólogos nas escavações das regiões do Império

    29

    . Ver: BURRI, Carla Maria. Isis, the goddess who conquered Rome. Cairo: Museu do Cairo, 1998. 30 O mito grego das estações conta sobre o rapto de Perséfone por Hades e a busca de Démeter por sua filha.

    Ao final, os deuses concordam em dividir a companhia de Perséfone, que quando está com a mãe, dá origem

    à primavera e verão, pois alegra a sua mãe, e quando está com Hades, a natureza também se entristece,

    dando origem ao outono e inverno.

  • 30

    Romano, portanto, acredita-se que ela tenha sido muito cultuada, especialmente pelas

    mulheres.

    A assimilação de Ísis também vinculou-se a deusas da sexualidade, entre elas

    Hathor, Astarte e Afrodite, em culturas distintas, com o exemplo da figura em anexo 10.

    Em um dos mitos relacionados com Ísis, ela mostrara suas partes íntimas ao deus Rá, para

    que o mesmo se alegrasse. Entretanto, também houve uma contradição completa em sua

    comparação à deusa Hathor, como observa Cardoso (2003):

    Segundo o autor (Cardoso), as mulheres podem aparecer nas narrativas

    literárias egípcias de duas formas: a primeira, chamada de paradigma de

    Ísis, é usada quando a mulher aparece na narrativa de forma positiva.

    Neste caso, suas funções essenciais são a de esposa e mãe. Já a segunda,

    denominada pelo autor de paradigma de Hátor, é assim descrita pelo

    mesmo:

    Já a deusa Hátor, (...), a uma Ísis monocórdia opunha-se uma

    personalidade dual: representando o amor carnal, a beleza feminina, a

    amabilidade da mulher, Hátor configurava-se como personagem

    altamente desejável e a qual muitos papéis considerados positivos

    estavam reservados (…). No entanto, além do desejo carnal ser

    considerado potencialmente negativo fora dos laços conjugais, portanto

    fator de possível desordem, Hátor era também uma das encarnações do

    olho de Rá e, como tal, tinha um aspecto terrível, ameaçador, predador:

    num contexto adequado, esse seu lado podia tornar-se instrumento de

    justiça e restabelecimento da ordem (cósmica ou social), mas em outras

    situações assinalava ou simbolizava o excesso, a desordem, o caos. O

    paradigma de Hátor, ao moldar as mulheres da ficção era, portanto,

    ambíguo. Por isso mesmo tinha possibilidade dramáticas maiores que o

    paradigma de Ísis.31 (CARDOSO apud ZULLI, p. 134)

    Uma outra assimilação que deve ser comentada é com a ninfa Io32, filha de Inaco.

    Segundo a literatura, mais precisamente o livro Metamorfoses do autor latino Ovídio,

    Júpiter, que estava apaixonado por Io, a transformou em uma vaca. Heródoto,

    anteriormente, em Histórias II, 41, já havia feito a associação entre as duas, porque Ísis é

    representada com os chifres de vaca. A citação da literatura latina pode ser vista no trecho

    a seguir33:

    Pressentira ele a chegada da esposa e mudara a aparência da filha de Ínaco em

    uma reluzente novilha. Em forma bovina ela também era formosa. A filha de

    Saturno, embora a contragosto, não deixa de reconhecer a beleza da vaca. E

    31

    . CARDOSO, Ciro F.. “Gênero e Literatura Ficcional – O caso do Antigo Egito no 2º milênio a. C. In:

    FUNARI, Pedro P. (org.). Amor, desejo e poder na Antiguidade. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003,

    p. 73-74. 32 Ver figura em anexo 11. 33 Ver em: Ovídio (Metamorfoses. I, 610-615). Tradução de Cláudio Aquati. In: FURLAN, Mauri; NUNES,

    Zilma Gesser (Orgs.). Ovídio – As Metamorfoses. Edição bilíngue – latim e português. Trad. Claudio

    Aquati et alii. Florianópolis: Editora da UFSC, 2017, p. 65.

  • 31

    como se se quisesse alheia à verdade, procura saber de quem é ela34.

    Os ritos e festividades em honra ou relacionados à Ísis incluíam homenagens aos

    mortos e festas de inícios de ciclos de colheita. Todavia, o Ano Novo egípcio detinha

    privilegiada importância por seu significado de renovação: o ano recomeçava e do caos

    surgia nova vida. O festival ocorria na estação de cheias do Nilo, com o surgimento no

    céu da estrela Sírio (Sirius) que significa “a chegada da deusa”, posteriormente

    denominada pelos gregos de Sótis, “a alma de Ísis”. A constelação associada a Osíris,

    Órion, também estava presente no céu, sendo que as próprias Pirâmides de Gizé foram

    construídas em alinhamento com as duas. No Ano Novo eram encenados os mitos de

    criação, incluindo o de Ísis e Osíris, ainda segundo Burri (1998, p.19).

    Como também a divindade estava relacionada aos rios, navios e ventos, o festival

    que ocorria no equivalente do nosso calendário ao dia 5 de março, conhecido como “Ísis

    abençoa as frotas”, ainda segundo Burri, tinha elevada importância, pelo fato das

    embarcações se constituírem em um meio de transporte muito utilizado e uma alegoria

    do reino dos mortos. Posteriormente, esse festival seria revivido por gregos e romanos

    como Navigium Isidis, que será comentado no capítulo referente ao culto de Ísis em

    Roma.

    Outra forma de análise e conhecimento maior sobre o processo ritualístico dos

    sacerdotes e da adoração de Ísis está na obra de Plutarco, Moralia, especialmente em seu

    quinto volume De Iside et Osiride, que apresenta também o relato do mito, porém este já

    contaminado pela tradição grega, um pouco distinto da narração original egípcia. Isto será

    melhor analisado no capítulo que trata sobre a transposição de Ísis para a Grécia. Na

    primeira parte do livro, relacionada às duas divindades, Ísis e Osíris, Plutarco também

    relata com detalhes os modos dos sacerdotes desde o que vestir até o que comer,

    explicando os motivos mitológicos por trás de cada proibição, mesmo que o autor não

    concorde com elas. De acordo com Plutarco35 em seus Moralia (s.d. p.21):

    34 Ovídio (Metamorfoses. I, 610-615): coniugis adventum praesenserat inque nitentem

    Inachidos vultus mutaverat ille iuvencam;

    bos quoque formosa est. speciem Saturnia vaccae,

    quamquam invita, probat nec non, et cuius et unde

    quove sit armento, veri quasi nescia quaerit. 35 Por não ser encontrada nenhuma tradução oficial da obra Moralia de Plutarco para a língua portuguesa,

    a autora teve como única opção fazer a tradução a partir da versão da obra para o inglês, porém, tanto a

    versão original quanto a grega estão incluídas para confronto crítico.

  • 32

    (...) Para36 o conto que Dictys, a ama de leite de Ísis, ao tentar alcançar um

    grupo de cebolas, caiu no rio se afogou é extremamente inacreditável.

    Porém, os sacerdotes mantêm-se afastados da cebola e detestam-na e têm o

    cuidado de evitá-la, porque é a única planta que prospera naturalmente e

    floresce no declínio da lua. Não é adequado nem para o jejum nem para o

    festival, porque em um caso provoca sede e no outro, lágrimas para os que a

    tomam37.

    Vistos os já citados traços marcantes da Ísis egípcia, será o momento, agora, das

    influências gregas no culto e de se falar na própria imagem da divindade, que adquire

    novos contornos e especificidades atestadas por Plutarco, que escreveu a sua própria

    concepção do mito de Ísis e Osíris. Sem a viagem intermediária ao mundo grego não será

    possível entender a deusa peregrina antes de sua chegada em Roma.

    36

    37

    . (…) For the tale that Dictys, the nurseling of Ísis, in reaching for a clump of onions, fell into the river

    and was drowned is extremely incredible. But the priests keep themselves clear of the onion and detest ir and are careful to avoid it, because it is the only plant that naturally thrives and flourishes in the waning of

    the moon. It is suitable for neither fasting nor festival, because in the one case it causes thirst and in the

    other tears for those who partake of it.

  • 33

    IV. UMA PONTE ENTRE DUAS CULTURAS

    Não é possível falar da chegada do culto de Ísis em Roma sem discutirmos

    previamente sua passagem pela Grécia e a forma como os gregos recepcionaram e até

    mesmo modificaram a figura e o culto da deusa. Embora as camadas populares tenham

    contribuído sobremaneira para a difusão do culto de Ísis do Egito para Roma, Alexandria

    possui um papel central, para que a deusa chegue à sociedade romana, transformando o

    mito e modificando a imagem dessa divindade, conforme nos asseguram Cumont38

    (1910), Lobianco39 (2006) e Bogh (2013)40.

    IV.1 A chegada à Alexandria

    A influência da Grécia no Egito já remonta ao período helenístico, em que não

    apenas as práticas de religiosidade nativa sofreram mudanças, como também até a própria

    língua falada em algumas cidades egípcias, segundo Lobianco (2006, p. 28):

    Durante o período helenístico, o Egito teve no grego, o registro

    linguístico oficial do Estado Ptolomaico, no qual se testemunhou o

    emprego deste idioma, majoritariamente em territórios considerados

    culturalmente gregos: sejam estes, áreas, as quais identifico como

    urbanas; em primeiro plano, a capital Alexandria, e em segundo, as

    cidades de Naucratis e Ptolemaida, sejam estes, regiões, as quais entendo

    como rurais, no caso do Egito Lágida.

    Ísis não se destacava inicialmente dentre as divindades mais importantes do

    panteão egípcio, apesar de estudiosos afirmarem sua importância contínua para a

    população e para os governantes desde o princípio do Egito Antigo, conforme foi

    asseverado ao longo deste texto. Sua ascensão no panteão egípcio efetivou-se lentamente,

    conforme pode ser verificado em Bogh (2013, p. 1): “Essa deusa se tornou gradualmente

    mais importante durante os Reinos Médio e Novo (2000-1600 a.C e 1500-1100 a.C.) e no

    Período Novo (primeira metade do primeiro milênio d.C), ela assumiu o status de uma

    das divindades principais do panteão egípcio”41. Dessa forma, o culto de Ísis que chegou

    38 Ver em: CUMONT, Franz. Oriental Religions in Roman Paganism. Oregon: Wip and Stock Publishers,

    1910. 39 LOBIANCO, Luis Eduardo. A Romanização no Egito: Direito e Religião (Séculos I a.C – III d.C). Niterói: (Tese de Doutorado), Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal.

    Fluminense, 2006. 40 Ver em: BOGH, Birgitte. The Graeco-Roman cult of Isis in Ancient Europe in the Historical Period.

    disponível em: https://www.academia.edu/5011152/The_Hellenistic-Roman_cult_of_Isis?auto=download

    acesso em 16/04/2018. 41 “This goddess became gradually more important during the Middle and New Kingdoms (ca. 2000-1600

    and ca. 1500-1100 BCE), and in the Late Period (mid-first millennium BCE), she had assumed the status

  • 34

    a ser realizado pelos ptolomaicos não era o mesmo descrito no Livro das Pirâmides.

    Destarte, o culto e a tríade Osíris, Ísis e Hórus com origem em Abidos, são de alguma

    forma “suplantados” e novos deuses e personagens surgem em Alexandria como

    demonstra Cumont (1910, p. 533):

    Ainda que das quatro grandes religiões orientais que foram

    transplantadas para o ocidente, a religião de Ísis e Serápis seja a única

    cuja relação com a antiga crença da pátria mãe podemos estabelecer com

    maior precisão, nós sabemos muito pouco de sua primeira forma e de sua

    natureza antes do período imperial, quando esta foi tida em alta

    consideração. Um fato, entretanto, parece ser certo. O culto egípcio que

    se espalhou pelo mundo greco-romano veio do Serapeum fundado em

    Alexandria por Ptolomeu Soter, de alguma forma semelhante à maneira

    que o Judaísmo que emanou do templo de Jerusalém42.

    Para que seja possível melhor entender este processo são necessários alguns dados

    históricos. Após as invasões e campanhas de Alexandre, o Grande, já durante a dinastia

    ptolomaica, houve a necessidade de um novo deus, um novo par e um novo descendente

    para Ísis. As razões disso remontam à origem de Alexandre, segundo Lobianco (2006, p.

    34):

    Alexandre Magno, embora Rei da Macedônia, foi concretamente um

    homem de cultura helênica, lembro que Aristóteles fora seu Mestre.

    Assim, ao partir com seu exército a conquistas dos Próximo e Médio

    Orientes, naturalmente levou e introduziu nestas regiões o helenismo, o

    qual, ao misturar-se com as manifestações culturais de tais áreas,

    terminou por cunhar uma nova forma de representação cultural, a

    helenística.

    Lobianco (2006, p. 38) ainda afirma que os ptolomaicos prosseguiram com o culto

    a deusa Ísis e que “Cleópatra igualmente prosseguiu na tradição ptolomaica de restaurar

    templos e foi além, representando-se a si própria como a deusa Isis e seu filho com César,

    Cesário, como o deus Hórus, ambos de tradição faraônica.”. A rainha ainda utiliza a tríade

    inicial de divindades, se assim podemos denominar estes três deuses, entretanto, duas

    novas figuras surgem com a nova versão grega da deusa: Serápis, seu consorte, e

    of one of the mains divinities of the Egyptian pantheon.” 42

    "While of the four great Oriental religions which were transplanted into the Occident, the religion of Ísis

    and Serapis is the one whose relation to the ancient belief of the mother country we can establish with

    greatest accuracy, we know very little of its first form and of its nature before the imperial period, when it

    was held in high esteem.

    One fact, however, appears to be certain. The Egyptian worship that spread over the Greco-Roman world

    came from the Serapeum founded at Alexandria by Ptolemy Soter, somewhat in the manner of Judaism that

    emanated from the temple of Jerusalem."

  • 35

    Harpócrates, seu filho.

    Antes que seja possível se debruçar sucintamente sobre o filho da deusa, é mister

    que se dediquem algumas palavras sobre Serápis. Muitas dúvidas envolvem esse deus,

    como afirma Cumont (1910, p. 554):

    Seria Serápis de origem nativa, ou foi importado de Sinpe ou Seleucia,

    ou mesmo da Babilônia? Cada uma dessas opiniões encontrou defensores

    muito recentemente. Seria seu nome derivado do deus egípcio Osíris-

    Apis, ou da deidade caldeia Sar-Apsî? Grammatici certant.

    Seja qual for a solução que nós adotemos, um fato permanece, a saber,

    que Serápis e Osíris foram imediatamente identificados um ao outro ou

    ainda eram idênticos desde o começo. A divindade cujo culto foi iniciado

    em Alexandria por Ptolomeu era o deus que governava os mortos e

    dividia sua imortalidade com eles.

    (…) Reconhecendo seu Osíris em Serápis, os egípcios prontamente

    aceitaram o novo culto. Havia uma tradição que uma nova dinastia

    deveria introduzir um novo deus ou dar uma espécie de proeminência ao

    deus de seu próprio distrito43.

    Lobianco (2006, p. 240) acrescenta, antes de tratar com mais profundidade da

    origem mitológica ou mesmo histórica de Serápis, dados sobre a formação do nome do

    deus, ao mencionar que "Lembra Dunand que, realmente, a palavra Serapis é o resultado

    da transcrição para a língua grega, do termo egípcio Osor-Hapi - deus adorado em

    Mênfis na época tardia, o qual se traduz pelo falecido touro Ápis, por conseguinte tendo

    se tornado um Osíris".

    O autor comenta sobre a lenda envolvendo o sonho de Ptolomeu Sóter, que será

    explanado mais adiante, visto que é na obra De Iside et Osiride que a história está narrada,

    e que este mesmo sonho seria a origem da figura de Serápis. Segundo Lobianco (2006, p.

    239):

    Dentre os relatos, que explicariam o advento de tal divindade (Serápis),

    a autora (Françoise Dunand) destaca aquele que lhe parece mais

    adequado, e que também é o mais divulgado, isto é, a narrativa de um

    sonho tido pelo rei Ptolomeu I Soter, segundo descrito por Plutarco em

    sua obra “De Iside et Osiride”. Tal lenda afirma que o monarca teria

    presenciado a aparição de uma “estátua colossal” de uma divindade (...).

    Este deus, o qual era totalmente desconhecido, até então, aos olhos do

    rei. Lá já estando presente, a imagem teria sido identificada e associada

    pelo entourage do monarca, a de Plutão, divindade grega dos infernos.

    43

    Was Serapis of native origin, or was he imported from Sinope or Seleucia, or even from Babylon? Each

    of these opinions has found supporters very recently. Is he name derived from that of the Egyptian god

    Osiris-Apis, or from that of the Chaldean deity Sar-Apsî? Grammatici certant.

    Whichever solution we may adopt, one fact remains, namely, that Serapis and Osiris were either

    immediately identified or else were identical from the beginning. The divinity whose worship was started

    at Alexandria by Ptolemy was the god that ruled the dead and shared his immortality with them.

    Recognizing their Osiris in Serapis, the Egyptians readily acepted the new cult. There was a tradition that

    a new dynasty should introduce a new god or give a sort of preeminence to the god of its own district.

  • 36

    Esta ligação de Serápis e Plutão, deus dos infernos, torna mais lógica a sua relação

    com o próprio deus Osíris, que não é ninguém menos que um deus também relacionado

    ao mundo dos mortos, sendo a primeira múmia e participando do julgamento de corações

    daqueles que chegam ao submundo. Dessa forma, é possível entender um pouco mais

    como essa tríade posterior pode ser tão bem recebida, pois os que seguiam a cultura

    egípcia puderam ver no novo deus um pouco do antigo Osíris.

    Entretanto, não há apenas essa versão para a origem do novo deus consorte de Ísis

    e para a hipótese de que a própria propagação de Serápis estaria relacionada à investida

    de Alexandre, o Grande. Lobianco (2006, p. 240) diz:

    Uma tradição afirma que o responsável pela aparição desta divindade na

    referida cidade, foi seu próprio fundador, portanto Alexandre. Em

    contrapartida, outra sustenta que rituais sagrados voltados para este deus

    já eram praticados na localidade faraônica de Rhakotis, sítio a partir do

    qual foi fundada Alexandria, portanto anterior a ela, e outrossim nome

    dado ao bairro egípcio da capital do Reino Ptolomaico, logo, onde residia

    a população indígena.

    Novamente, a falta de fontes primárias torna difícil a tarefa pela busca de uma

    verdadeira origem do deus Serápis. Lobianco (2006, p. 241) cita Françoise Dunand sobre

    as dificuldades e possíveis teorias que cercam a lenda deste deus:

    Após avaliar as dificuldades em se identificar, claramente, o processo

    através do qual surgiu Serápis, Françoise Dunand passa a ressaltar, que a

    divindade citada em papiros e outras fontes escritas egípcias, a partir do

    início do século III a.C,. cujo nome é Serápis, não se trata de uma

    elaboração, mas sim de uma reformulação, reconfiguração da imagem,

    de um antigo deus faraônico, aliás já conhecido pelo população grega de

    Mênfis, divindade esta que passou a ter aparência grega e foi renomeada,

    passando a ser chamada por um nome helenizado, a partir do antigo

    egípcio, o qual se identificara anteriormente. (...) a autora sustenta que o

    cerne da questão está no ato de transformação da imagem da divindade,

    já que é a partir de tal atitude que se consegue alterar a própria natureza

    do deus.

    Portanto, talvez a questão mais importante não seja a origem da divindade

    conhecida como Serápis, mas o porquê dessa transformação na imagem da deidade. Era

    costume a mudança das divindades proeminentes conforme o governante, e nesse sentido,

    a importância assumida por Ísis foi de certo maneira entendida como natural, pois a deusa

    era conhecida em todo o território. Entretanto, essa escolha não foi feita sem interesses

    políticos mesclados à religião. Era necessária a eleição de um(a) deus(a) que carregasse

    consigo a tradição nativa do Egito, mas que, ao mesmo tempo, conseguisse ser aceito(a)

    pelos gregos de forma mais adequada. Era preciso, portanto, uma figura sem a forma

  • 37

    animalesca egípcia, que correspondesse à visão divina dos helenos. Essa seria, talvez,

    uma explicação mais racional da reformulação de Osíris como Serápis. Nesse sentido,

    Cumont (1910, p. 554) ressalta que “Eles (alexandrinos) queriam que esse deus unisse

    em um único culto as duas raças que habitavam o reino, e então posteriormente uma

    possível fusão completa. (…) Essa foi uma ideia política inteligente para instituir uma

    religião egípcia helenizada em Alexandria.”44 O deus tornou-se a própria prova da

    soberania dos ptolomaicos e de seus sucessores, como afirma Lobianco (2006, p. 250):

    “Se a divindade egipto-helenística Serápis florescera em Alexandria concomitantemente

    com os Ptolomeus, legitimando seu poder; na época imperial tal função se preservara,

    naturalmente no que tange aos monarcas romanos". A própria imagem do deus foi se

    modificando de acordo com o governante, como evidenciado nos Anexos deste trabalho.

    O personagem final da tríade de Alexandria é Harpócrates, filho de Ísis e Serápis,

    que se diferencia bastante de Hórus em alguns aspectos. Conforme é possível ver nas

    figuras 12 e 13 no capítulo de anexos, Hórus podia ser representado como um jovem

    homem careca, com exceção de uma longa mecha acima da orelha trançada ou em cachos,

    entretanto, a maior parte das suas representações apresentam-no com a cabeça de

    pássaro;45 enquanto que Harpócrates seria uma criança roliça representada com um dedo

    na boca. Hórus era o deus da vingança, da justiça, que trouxe descanso para o seu pai,

    Osíris, após derrotar Seth, simbolizando um governante de mão firme, que aniquila seus

    inimigos, já que era diretamente relacionado aos faraós. Já Harpócrates era símbolo de

    fecundidade e abundância e poderia ser entendido como um sinal de um reino de riqueza

    e fartura.

    Para que se alcançasse o objetivo funcional de uma divindade grega e egípcia,

    mudanças no culto também foram estabelecidas: a linguagem litúrgica que era o egípcio

    passou a ser a grega e os deuses hieráticos tiveram as suas formas mudadas, ou seja, a

    linguagem dos ritos de Ísis passou a ser o grego e não mais o egípcio. De acordo com

    Cumont (1910, p. 557), “Um culto puramente egípcio não poderia ser aceito no mundo

    greco-romano46”, portanto, Serápis tinha a imagem semelhante a de deuses gregos e Ísis

    foi representada em um vestido de linho com uma capa franjada presa sobre o peito em

    semelhança à Hera e Afrodite, pois entende Bogh (2013, p. 2), que "No Egito, Isis já

    44

    They wanted this god to unite in one common worship the two races inhabiting the kingdom, and thus to

    further a complete fusion. (...) It was a clever political idea to institute a Hellenized Egyptian religion at

    Alexandria 45 Tanto a imagem de Hórus quanto a de Harpócrates encontram-se nos Anexos. 46

    A purely Egyptian worship would not have been acceptable to the Greco-Latin world.

  • 38

    exibira uma habilidade extraordinária de ser assimilada a outras deusas, e essa habilidade

    continuou sem diminuir no mundo grego. Esse processo resultou na absorção gradual de

    Isis das funções de outras divindades gregas e lançou a base para a enorme popularida