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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Instituto de História
Programa de Pós-Graduação em História Comparada
Fabrício Nascimento de Moura
Práticas de sacrifícios humanos em Cartago: exercício de experimentação comparada com
a civilidade romana no século III a. C.
Rio de Janeiro
2013
Fabrício Nascimento de Moura
Práticas de sacrifícios humanos em Cartago: exercício de experimentação comparada com
a civilidade romana no século III a. C.
Dissertação apresentada à Coordenação do Programa
de Pós-Graduação em História Comparada da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, visando a
obtenção do título de Mestre em História
Comparada. Linha de Pesquisa: poder e discurso.
Professora- Orientadora: Profa. Dra. Maria Regina Cândido
Rio de Janeiro
2013
M929p Moura, Fabrício Nascimento de
Práticas de sacrifícios humanos em Cartago: exercício de
experimentação comparada com a civilidade romana no século III a. C. /
Fabrício Nascimento de Moura – 2013.
179 f. ; il.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto
de História, PPGHC, Rio de Janeiro, 2013.
Orientadora: Maria Regina Cândido
1. Cartago 2. Roma – História a.C. 3. Sacrifícios Humanos 4. Comparação
I. Cândido, Maria Regina (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
III. Título
CDD 937.01
Fabrício Nascimento de Moura
Práticas de sacrifícios humanos em Cartago: exercício de experimentação comparada com
a civilidade romana no século III a. C.
Dissertação apresentada à Coordenação do Programa
de Pós-Graduação em História Comparada da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, visando a
obtenção do título de Mestre em História
Comparada. Linha de Pesquisa: poder e discurso.
Aprovado em 21 de Outubro de 2013.
Professora- Orientadora: Profa. Dra. Maria Regina Cândido – PPGHC/UFRJ
Profa. Dra. Gracilda Alves – PPGHC/UFRJ
Prof. Dr. Paulo Roberto Gomes Seda - UERJ
Rio de Janeiro
2013
“Quem é como o Senhor nosso Deus, que habita nas alturas;
Que se curva, para ver o que está nos céus e na terra;
Que do pó levanta o pequeno, e do monturo ergue o necessitado,
Para fazê-lo assentar com os príncipes, sim, com os príncipes do seu povo;”
Salmos 113, 5-8.
AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar a Deus que me concedeu a oportunidade de caminhar
mais este passo em direção ao sonho da carreira acadêmica. Quero deixar registrado ainda um
agradecimento à minha família, em especial a minha esposa Ana Cleia pela paciência, pelo
incentivo e pela dedicação à minha formação. Agradeço também por seu amor incondicional.
Agradeço à minha mãe pelo encorajamento, pela força e pelo apoio. Dedico aqui um especial
agradecimento para a minha orientadora, a professora Maria Regina Cândido pelo incentivo,
apoio, pelas cobranças que me fizeram crescer e principalmente pela paciência que tem
dispensado a mim em todos esses anos.
Não posso deixar de citar meus agradecimentos aos meus queridos orientandos que
sempre me incentivaram a continuar o meu trabalho e que sempre foram para mim uma
grande fonte de inspiração. Agradeço enfim a todos que contribuíram de forma direta ou
indireta para a realização deste sonho, que foi possível graças ao apoio de pessoas que
dedicaram parte do seu tempo a me incentivar e encorajar. Muito obrigado a todos!
RESUMO
MOURA, Fabrício Nascimento de. Práticas de Sacrifícios Humanos em Cartago: exercício
de experimentação comparada com a civilidade romana no século III a. C. Rio de Janeiro,
2013. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em
História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
O estudo da civilidade cartaginesa esteve sempre ligado ao da civilidade romana, sobretudo
em virtude das Guerras Púnicas. A partir deste contexto da produção historiográfica púnica
nos questionamos sobre a possibilidade de escrever uma História de Cartago a partir das
práticas de sacrifícios humanos. Práticas estas que também estiveram presentes no arcabouço
religioso da civilidade romana. Desta forma propomos um exercício de experimentação
comparada dos ritos de sangue entre romanos e cartagineses a partir do uso da documentação
textual e dos relatórios das escavações arqueológicas. O desenvolvimento desta pesquisa põe
em perspectiva o diálogo entre a História, a Antropologia Histórica e a Arqueologia.
Palavras-Chave: Cartago; Roma; Sacrifícios Humanos; Comparação.
ABSTRACT
MOURA, Fabrício Nascimento de. Práticas de Sacrifícios Humanos em Cartago: exercício
de experimentação comparada com a civilidade romana no século III a. C. Rio de Janeiro,
2013. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em
História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
The study of the Carthaginian civilization has always been linked to the Roman civilization,
mainly because of the Punic Wars. From this context of historical production Punic we
inquired about the possibility of writing a history of Carthage from the practice of human
sacrifice. These practices also attended the religious framework of Roman civilization. Thus
we propose an exercise trial compared the rites of blood between the Romans and
Carthaginians from the use of textual documentation and reporting of archaeological
excavations. The development of this research puts into perspective the dialogue between
History, Historical Anthropology and Archaeology.
Keywords: Carthage, Rome; Human Sacrifices; comparison.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Apud Citado por
CIS Corpus Inscriptionum Semiticarum
Et. Alii E outros.
Et seq. que se segue
HTTP HiperTextTransferProtocol
Ibid. na mesma obra
Id. o mesmo autor
In Em.
KAI Kanaanäische und Aramäische Inschriften
n. p. Não paginado
Op. Cit. Da Obra Citada.
p. Página.
PPGHC Programa de Pós-Graduação em História Comparada
RES Repertoire d’épigraphie Semitique
s. d. Sem data
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNESCO United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization
www World Wide Web
LISTA DE QUADROS COMPARATIVOS E GRÁFICOS
Quadro Comparativo 1: Análise comparada dos suportes de informação acerca da prática de
sacrifícios infantis em Cartago ................................................................................................ 86
Gráfico 1: Gráfico com a distribuição etária da amostra de esqueletos humanos do Tophet
cartaginês ................................................................................................................................ 95
Quadro Comparativo 2: Análise comparada da teoria do Sacrifício .................................... 102
Quadro Comparativo 3: Análise comparada da religião romana e cartaginesa .................... 112
Quadro Comparativo 4: Análise comparada do sacrifício humano em Cartago e em
Roma...................................................................................................................................... 124
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Ilustração de Salammbô de Gustave Flaubert ......................................................... 26
Figura 2: A fundação de Cartago ............................................................................................ 28
Figura 3: Sítio arqueológico do Tophet cartaginês ................................................................. 78
Figura 4: Estela com desenho de sacerdote cartaginês ........................................................... 80
Figura 5: Ruínas de Cartago com símbolo da deusa Tanit ..................................................... 83
Figura 6: Santuário da deusa Tanit ......................................................................................... 85
Figura 7: Urna contendo ossos calcinados de crianças ........................................................... 94
Figura 8: Táticas de Aníbal na batalha de Canas .................................................................. 126
Figura 9: Táticas de Aníbal na batalha de Canas .................................................................. 126
Figura 10: Estela votiva de Cartago ...................................................................................... 134
Figura 11: Ânfora do Tanit I ................................................................................................. 138
Figura 12: Ânfora do Tanit II ................................................................................................ 139
Figura 13: Ânfora do Tanit III .............................................................................................. 139
LISTA DE MAPAS
Mapa 1: Rotas comerciais fenícias no Mediterrâneo .............................................................. 38
Mapa 2: Regiões sob o domínio cartaginês até as guerras púnicas ........................................ 41
Mapa 3: Mapa da Região da Sicília no contexto da primeira guerra púnica .......................... 47
Mapa 4: Alterações territoriais de Cartago ao longo das guerras púnicas .............................. 48
Mapa 5: Península Ibérica durante a ocupação cartaginesa .................................................... 53
Mapa 6: Região da Campânia ................................................................................................. 55
Mapa 7: Mediterrâneo no contexto da terceira guerra púnica ................................................. 58
Mapa 8: Visão aérea do Golfo de Tunis ................................................................................. 76
Mapa 9: Localização das cidades gregas e cartaginesas na Magna Grécia ............................. 88
SUMÁRIO
Introdução: ............................................................................................................................ 14
1. Os Regimes de Historicidade: as representações de Cartago na Historiografia Antiga
e na Historiografia francesa e anglo-americana Contemporâneas ............................ 20
1.1. Regimes de Historicidade e a Construção da Memória de Cartago: ................................ 20
1.2. Cartago entre os historiadores antigos e contemporâneos: .............................................. 27
2. Práticas sacrificiais: uma análise comparada da teoria do Sacrifício e suas aplicações
ao ritual cartaginês .......................................................................................................... 62
2.1. Do diálogo entre História e Antropologia: ....................................................................... 62
2.2. Do conceito de Ritual: ...................................................................................................... 67
2.3. O debate historiográfico acerca do Tophet Cartaginês: ................................................... 72
2.4. A teoria sacrificial em René Girard e Marcel Mauss & Henri Hubert: uma análise
comparada ......................................................................................................................... 85
3. O ritual de sacrifício humano em Cartago: análise comparada com o ritual romano e
significado....................................................................................................................... 107
3.1. História e Arqueologia: .................................................................................................. 107
3.2. Religião cartaginesa e romana: uma comparação .......................................................... 111
3.3. Sacrifício humano em Cartago: uma análise comparada com o ritual romano
.......................................................................................................................................... 123
Conclusão:............................................................................................................................. 145
Referências: .......................................................................................................................... 151
Anexos: Análise do Conteúdo .............................................................................................. 163
14
INTRODUÇÃO
O tema sobre o sacrifício humano na Antiguidade, especificamente em Cartago, torna-
se um desafio instigante ao suscitar o debate sobre esta sociedade no século III a. C., período
em que fazia uso de seres humano na celebração de rituais em honra aos deuses. Nas mais
variadas sociedades onde eram empregados, os sacrifícios humanos parecem ter
especificidades simbólicas distintas, mas objetivando geralmente a alcançar manutenção da
ordem e da coesão social.
Como o nosso objeto de pesquisa está relacionado à região de Cartago, informamos
que os dados sobre o tema serão provenientes do seguinte Corpus Documental, a saber: as
narrativas de Diodoro da Sicília (Biblioteca Histórica, XXII, 14) e Plutarco (De Superstitione,
13), além das descrições arqueológicas presentes no Relatório das Escavações do Tophet de
Salammbô em Cartago, publicado nos anais da revista Antiquités africaines em 1995 e no
Relatório de Estudos Interdisciplinares das Urnas do Tophet Cartaginês e seu Conteúdo,
publicado em 2003 pelo Departamento de Arqueologia da Universidade de Ghent, na Bélgica.
Recorreremos ainda à obra História, do historiador grego Políbios (História – I, III, VI), à
obra Política (Política II – VII), do filósofo estagirita Aristóteles e à narrativa mítica acerca da
fundação da cidade de Cartago através das descrições elaboradas por Virgílio, na obra Eneida
(Eneida I – V. 369-388). Para o caso romano, selecionamos como documento as narrativas de
Tito Lívio (História de Roma, XXII – 57.4), Dionisios de Alicarnassos (Antiguidades
Romanas I, 19, 38), Plínio, o velho (História Natural, XXX – 3.12) e Plutarco (Questões
Romanas, 83 e Vida de Marcellus, 3.4).
As informações arqueológicas nos permitem redescobrir as atividades ritualizadas que
eram realizadas durante a cerimônia, incluindo a construção de fogueiras individuais, a
imobilização e instalação das crianças na pira sacrificial, a imolação das vítimas, a extinção
das brasas ou o resfriamento das cinzas. É possível, portanto, estabelecer uma reconstrução
parcial dos procedimentos seguidos durante esta celebração através dos dados provenientes da
Arqueologia. A documentação textual revela a prática de sacrifícios humanos em Roma e em
Cartago, deixando transparecer detalhes dos rituais, a conjuntura de sua celebração e a
tipologia das vítimas expiatórias empregadas.
Em razão das Guerras Púnicas, a História de Cartago sempre esteve atrelada à de
Roma. Em função disso, parte das principais temáticas abordadas envolviam sempre as
questões políticas e militares. A historiografia em geral negligenciou diversos aspectos da
15
cultura e da sociedade cartaginesa. Diante deste quadro atual da historiografia contemporânea
sobre a civilidade1 cartaginesa, nos questionamos se é possível construir uma História de
Cartago, evitando o lugar comum em que ela foi inserida ao longo do tempo, a saber: um rival
digno a fazer da Cidade Eterna a senhora do mundo mediterrâneo.
Desta forma nosso olhar se deslocará para a sociedade cartaginesa a partir de sua
religiosidade, sobretudo aquela que se refere à prática de sacrifícios de crianças. Observamos
que a maioria dos relatos historiográficos que atravessaram o século XX até os dias atuais
envolvem a discussão acerca da existência ou não de práticas de sacrifícios humanos em
Cartago. Contudo esta mesma historiografia não apresenta análises sistemáticas acerca das
especificidades destes rituais. O estudo da documentação textual ao lado das informações
arqueológicas nos permite levantar um conjunto de questionamentos, a saber: a comparação
entre a documentação textual e as evidências arqueológicas nos permite falar de práticas
sacrificais? De que maneira a dimensão espacial da necrópole cartaginesa nos ajuda a
compreender as especificidades dos ritos realizados? Quais condições sociais favoreciam ao
desenvolvimento de tais atividades? Quais as especificidades do uso de crianças como vítimas
expiatórias? Qual o significado dos elementos rituais presentes nestas práticas?
As relações beligerantes entre Cartago e Roma contribuíram para a criação de uma
identidade cartaginesa quase diametralmente oposta à dos romanos. O historiador grego
radicado em Roma Políbios consagrou esta oposição ao elaborar sua narrativa comparada
entre as citadas cidades-estados. Nesta análise comparada, Políbios dedica-se a colocar em
perspectiva a constituição e os costumes dos romanos e dos cartagineses. De acordo com o
antigo historiador, durante a segunda guerra púnica a constituição romana era bastante
superior à de Cartago:
“De fato, na mesma proporção em que o poderio e a prosperidade de
Cartago eram mais antigos que os de Roma, Cartago já havia começado a declinar,
enquanto Roma estava justamente no apogeu, pelo menos em relação ao seu sistema
de governo”.2
Para Políbios, até mesmo na maneira de conduzir a guerra, os romanos eram
superiores. As razões dessa superioridade residiriam no fato de que as tropas cartaginesas
eram constituídas em sua maioria por soldados mercenários, ao passo em que as romanas
1 O termo civilidade é usado aqui em substituição ao conceito de civilização. A ideia de civilização remete ao
positivismo ao estabelecer critérios de diferenciação entre grupos sociais, nações ou países a partir da
bipolaridade civilização x barbárie. A ideia de civilidade é defendida por Marcel Detienne e se aproxima do
conceito de cultura desenvolvido pelos antropólogos, no qual não se estabelece hierarquia entre as mais diversas
formações sociais. 2 Historia, VI – 51.
16
eram compostas de cidadãos que combatiam por suas famílias e por seu próprio território.3
Quanto aos costumes, Polibios aponta as seguintes características:
“As leis e os costumes pertinentes ao enriquecimento são também melhores
entre os romanos que entre os cartagineses. Em Cartago, nada que proporcione lucro
é considerado ignóbil; em Roma, nada é considerado mais ignóbil do que deixar-se
subornar, ou procurar o ganho por meios impróprios, pois não menos forte que sua
aprovação ao ganho por meios respeitáveis é o seu repúdio ao ganho inescrupuloso
oriundo de fontes interditas. Eis uma prova disso: em Cartago, os candidatos a
funções públicas recorrem abertamente ao suborno, enquanto em Roma essa prática
é punida com a pena de morte. [...] Parece-me, porém, que a superioridade maior
do povo romano está em suas concepções religiosas; na minha opinião o que
entre outros povos constitui um defeito reprovável – refiro-me à superstição – é
o sustentáculo da coesão de Roma”.4
Estas digressões influenciaram os debates da historiografia contemporânea. A partir da
documentação acima citada, estabeleceremos um Exercício de Experimentação Comparada
acerca das perspectivas religiosas dos cartagineses e dos romanos, tomando como objeto de
estudo as práticas de sacrifícios humanos. A atividade sacrificial esteve presente em diversas
sociedades antigas, apresentando diferenças sutis entre si. Estas atividades buscam, por vezes,
construir ou reforçar identidades, promover a coesão social e a construção de comunidades. A
quebra de velhos paradigmas que influenciam a construção de identidades e a formação do
etnocentrismo é um dos objetivos do emprego do método comparativo.
O historiador Marc Bloch desenvolveu sua concepção de comparativismo a partir da
ótica da sociologia, cuja herança remete aos estudos de E. Durkheim. Sua proposta consistia
em buscar as semelhanças e as diferenças que dois fenômenos apresentam em meios sociais
diferentes.5 Ao analisar a proposta de Marc Bloch, as pesquisadoras Neide Theml e Regina
Maria da Cunha Bustamante acrescentam que para o autor, a comparação possuía os seguintes
objetivos, a saber: pesquisar e entender as características singulares e comuns dos fenômenos
sociais e prestar auxílio na compreensão das causas e das origens destes fenômenos. Sua
proposta de análise direcionava-se para sociedades próximas e contemporâneas, que sofreriam
a influência direta umas das outras.6
Por outro lado, o historiador Marcel Detienne aponta um caminho alternativo para o
emprego do método comparativo ao aproximar suas questões metodológicas àquelas
propostas pela Antropologia. De acordo com o autor, o comparativismo experimental dos
primeiros antropólogos objetiva comparar as civilidades em seus vários aspectos, deslocando
3 Historia, VI – 52.
4 Historia, VI-56.
5 BLOCH, M. Pour une histoire comparée des sociétés européennes. In: Revue de Synthèse historique. 46,
1928, p. 15-50. 6 BUSTAMANTE, R. M ; THEML, N. História Comparada : olhares Plurais. Revista de História Comparada.
Vol. 1. N. 1. Jun/2007, p. 3.
17
seu olhar entre as sociedades do presente e do passado.7 Ao contrário de Marc Bloch, o autor
defende um comparativismo a partir da análise do conjunto de representações culturais entre
as sociedades, sem levar em conta as noções de tempo e lugar.8
Nossa análise será orientada a partir da perspectiva do comparativismo experimental
com a civilidade romana, onde é possível perceber que a prática de sacrifícios humanos
também estivera presente em sua religião. Nosso recorte temporal pretende abarcar o século
III a. C. A escolha deste recorte temporal justifica-se em virtude da presença de vestígios
arqueológicos que atravessam este período, notadamente o Tanit III, conjunto de urnas
funerárias encontradas na necrópole cartaginesa neste período, e das descrições dos
historiadores gregos antigos, além de ser o contexto no qual tiveram início as hostilidades
entre romanos e cartagineses.
Esta estruturação do trabalho integra a perspectiva do campo de experimentação
comparada9, defendida por Marcell Detienne, na qual o uso induz à construção de problemas
que atravessam diversas realidades sociais em diversas temporalidades e espacialidades.
Trata-se de uma ferramenta metodológica voltada para a experimentação na qual se colocam
em perspectiva as diferenças sociais e históricas a partir de um conjunto de problemas.10
A seguir veremos como o autor apresenta as potencialidades do método comparativo,
sobretudo destacando a relação da História com a Antropologia, uma vez que nossa
abordagem se insere no campo da História Antropológica. A comparação é inerente ao
trabalho do antropólogo. Este põe em contato grupos de relações destacadas internamente em
diversas culturas. A Antropologia nasce como ciência utilizando o método comparativo e
entre suas preocupações encontra-se a ideia de comparar nações entre si, analisando seus
costumes sociais, religiosos e morais.11
De acordo com Marcel Detienne, o encontro da História com a Antropologia ocorreu
por volta da década de 1960, quando os historiadores passaram a se interessar pelo cotidiano,
pelos hábitos alimentares e religiosos, pelo vestuário e pelas formas de habitação dos mais
variados grupos sociais. O trabalho em conjunto entre antropólogos e historiadores, entre
História e Antropologia, surge a partir da necessidade de se conhecer a totalidade das
sociedades dos homens e todas as civilidades. As vantagens deste diálogo permitem uma
7 DETIENNE, M. Comparar o incomparável. Aparecida – SP: Ideias & Letras, 2004, p. 23.
8 DETIENNE, op. Cit., p. 47.
9 O termo Campo de experimentação comparada aparece no artigo “História Comparada: olhares plurais” das
professoras doutoras Neide Theml e Regina Maria da Cunha Bustamante, publicado na Revista de História
Comparada, V. 1 – N. 1 de Jun. 2007. 10
DETIENNE, op. Cit., p. 43-53. 11
Ibid., p. 22-23
18
abordagem contrastante que possibilita ressaltar os detalhes, aqueles traços que escapavam à
percepção do observador.12
A partir desta perspectiva, Marcel Detienne irá defender a sua
proposta de uma História Comparada, ou um Comparativismo Construtivo. Trata-se de um
campo de exercício de experimentação do conjunto de representações culturais entre as
sociedades cartaginesa e romana, sem levar em conta as noções de tempo e lugar.13
Os comparáveis entre historiadores e antropólogos, entre História e Antropologia, são
mecanismos de pensamento observáveis, placas de encadeamento causal. São relações em
cadeia que se caracterizam como escolhas realizadas pelos grupos sociais. Quando uma
sociedade elege um mecanismo de pensamento, ela faz uma escolha, dentre muitas que
poderia fazer.14
A partir destas escolhas decorre o choque do incomparável, ou seja, a atitude
metodológica que permite comparar traços semelhantes entre sociedades, mas que apresentam
certas diferenças entre si. Não se compara temas, mas maneiras de ver o mundo, ou as
maneiras como as sociedades veem a si mesmas, fatores que são distintos por natureza.15
A Construção de Comparáveis entre historiadores e antropólogos não visa à criação de
leis e modelos do comportamento social. Busca-se, antes de tudo, analisar os mecanismos de
pensamento, os encadeamentos decorrentes das escolhas realizadas pelas civilidades que em
muitos casos não se conhecem. A utilidade do método reside na sua eficácia em se colocar os
valores e as escolhas das sociedades em perspectiva. Trata-se de um olhar crítico sobre a
tradição. Objetiva-se compreender diversas culturas da mesma forma que elas se
compreendiam para depois analisá-las entre si, reconhecendo as diferenças em relação às
outras.16
Essas definições metodológicas comparativas nos permitem colocar em perspectiva a
sociedade cartaginesa em relação à sociedade romana, no que tange às práticas de sacrifício
humano. De uma forma ou de outra, a historiografia especializada tratou a história da
sociedade cartaginesa vinculada à romana, e é através das Guerras Púnicas e seus resultados
que a Historiografia mundial normalmente situa Cartago.
A partir de um conjunto de conceitos definidos por Marcel Detienne, podemos ainda
analisar de forma comparada as Historiografias que, sejam elas antigas ou modernas,
ajudaram a construir a memória17
de Cartago. Trata-se da análise dos Regimes de
12
DETIENNE, op. Cit., p. 46 13
Ibid., p. 47 14
Ibid., p. 57 15
Ibid., p. 49-52 16
Ibid., p. 65-67 17
Ibid., p. 74. Marcel Detienne defende a ideia de memória como apreensão no tempo a partir de um
distanciamento de si mesmo e não como um estoque de informações.
19
Historicidade, como o estudo de uma “consciência histórica”. Mas não de uma consciência de
si mesmo, já que não chegaram até nós vestígios escritos realizados pelos cartagineses sobre
eles mesmos. Analisamos uma “consciência” construída, elaborada de fora, por historiadores
antigos e por historiadores modernos, que não eram de Cartago. Neste sentido, se faz
necessário questionar os regimes historiográficos e analisar seus componentes.18
O diálogo entre a História e a Antropologia se estende a uma abordagem comparativa
das diversas formas de experiência da História, no espaço e no tempo. Trata-se de colocar em
perspectiva os modelos de escritura da historicidade, analisando suas construções, suas
estruturas lógicas, as distâncias aparentes entre si, a sua circulação, seus encontros e
desencontros.19
Ainda que a memória desempenhe um papel importante na construção da História, ela
não provoca instantaneamente as representações do passado. Para que haja consciência
historiográfica é preciso que se estabeleça a organização do passado do grupo social, onde se
faz necessário tornar presentes e reviver acontecimentos anteriores, como as práticas de
sacrifícios humanos em Cartago e em Roma.20
18
DETIENNE, op. cit., p. 71 19
Ibid., p. 72 20
Ibid., p. 74-76
20
1: OS REGIMES DE HISTORICIDADE: AS REPRESENTAÇÕES DE CARTAGO NA
HISTORIOGRAFIA ANTIGA E NA HISTORIOGRAFIA FRANCESA E ANGLO-
AMERICANA CONTEMPORÂNEAS.
Neste capítulo partiremos da concepção teórica proposta por Marcel Detienne acerca
da análise comparada dos Regimes de Historicidade e sua consequente construção da
Memória. Ainda que não tenham chegado até nós os vestígios de uma consciência de si
mesmo produzida pelos cartagineses, encontramos dados destas representações entre os
historiadores antigos e também na historiografia francesa e anglo-americana contemporâneas.
O estudo comparado destas correntes historiográficas envolverá análises acerca do processo
mítico de fundação da cidade-estado cartaginesa, sua origem fenícia, seu desenvolvimento
mercantil, suas estruturas e dinâmicas sociais e suas relações políticas com as demais
civilidades do Mediterrâneo, em especial aquelas estabelecidas com Roma, seja por meio de
tratados de cooperação econômica e militar, seja por meio de embates bélicos pela conquista
da hegemonia na região. Ao final deste capítulo pretendemos responder à seguinte questão: é
possível escrever uma História de Cartago?
1.1: Regimes de Historicidade e construção da Memória de Cartago
“Fiquei chocado ao saber que fenícios possivelmente sacrificavam jovens
crianças no Tophet cartaginês. A ideia é horrível. Eu sempre pensei que os Fenícios
eram uma raça civilizada.”21
A história de Cartago sempre esteve, invariavelmente, ligada à de Roma. São raras as
obras editadas em língua portuguesa que tratam especificamente da civilidade cartaginesa, o
que conduz o pesquisador a buscar informações sobre esta sociedade nas obras dedicadas à
história de Roma, sobretudo nos capítulos que tratam do fim da República e formação do
Principado. Por outro lado, as informações da documentação textual de que dispomos são
oriundas das narrativas de historiadores antigos de origem grega ou romana, o que torna
questionável muitos dos aspectos por eles descritos, em virtude das rivalidades entre Cartago,
Grécia e Roma. Os historiadores contemporâneos basearam-se nestas descrições ao tentar
21 Roberts P. D. Forum Archaeology Odyssey, 2001: p. 10-11 Apud, GARNAND, B. K. From Infant Sacrifice
To The Abc’s: Ancient Phoenicians And Modern Identities. Stanford Journal of Archaeology. Vol 1. p. 1-82
21
descrever os aspectos gerais da civilidade cartaginesa, o que nos leva a analisar de forma
comparada os principais eixos temáticos abordados por esta historiografia.
De acordo com Marcel Detienne algumas sociedades acreditam possuir um passado e
que a sua consciência histórica é clara e objetiva. Em muitos aspectos, determinadas
civilidades buscam, a partir de uma análise reflexiva, desconstruir a “História Oficial”,
denunciando suas incorreções e questionando sua veracidade. Este processo que objetiva
reconstruir a imagem de si mesmo no passado, embora seja, na opinião do autor, aceitável,
permanece de maneira incerta. Nesse sentido, determinadas sociedades são levadas a construir
para si mesmo uma nova História identitária, de acordo com novos critérios, revisitando o seu
próprio passado.22
A análise comparada dos regimes de historicidade busca compreender os aspectos de
uma consciência histórica. Mas não de uma consciência de si mesmo, já que não chegaram até
nós vestígios escritos realizados pelos cartagineses sobre eles mesmos. Analisamos uma
“consciência construída”, elaborada de fora, por historiadores antigos e por historiadores
modernos, que não eram de Cartago. Neste sentido, se faz necessário questionar os regimes
historiográficos, analisar seus componentes, suspeitar de sua aparente unicidade. De acordo
com Marcel Detienne, as reflexões sobre a “consciência histórica” envolve a análise de duas
questões, a saber: o debate sobre a memória e a sua relação com a História e o estudo da
mudança.23
Ainda que a memória tenha desempenhado uma ação relevante para a História, não
podemos dizer que esta cria espontaneamente as representações sobre o passado. De acordo
com Pierre Nora a História caminha a passos cada vez mais apressados. Vivemos uma
oscilação cada vez mais acelerada de um passado morto relacionado a uma consciência de si
mesmo que se constrói a partir de aspectos definitivamente terminados. Para o autor, a
memória não existe mais e este seria o motivo pelo qual se fala tanto nela. O interesse pelos
lugares de memória é uma consequência deste contexto em que vivemos. Contexto esse
marcado pela consciência de uma ruptura com o passado que se imiscui com o sentimento de
um esfacelamento da memória, ainda que esta desintegração possa suscitar a questão de sua
materialização, agregando um sentimento de continuidade residual a determinados lugares. Os
lugares de memória existem porque os meios de memória desapareceram.24
22
DETIENNE, op. Cit., p. 70 23
Ibid., p. 71-73 24
NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo, nº 10, p. 7-
28, dez. 1993.
22
Para Marcel Detienne a organização da memória não se refere ao domínio espacial de
um conjunto de informações, mas a uma apreensão no tempo de uma consciência de si mesmo
em relação a si mesmo.25
Nosso estudo, como vimos, será constituído por uma “consciência
construída”, uma vez que não chegou até nós os vestígios de uma consciência de si mesmo
produzida pelos cartagineses.
A mudança, segundo aspecto apontado por Marcel Detienne, está vinculada ao
processo de construção do pensamento histórico. O domínio político é o espaço de excelência
das reformas que traduzem as razões que levam às transformações. As ações políticas estão
acompanhadas das teorias da mudança. O contexto dos embates, das guerras torna-se um
lócus privilegiado para o estudo da mudança.26
Nesse sentido, entendemos que o debate da
historiografia acerca das Guerras Púnicas torna-se pertinente para a compreensão do regime
de historicidade de Cartago, a partir do conjunto de mudanças por ela provocado.
A seguir, veremos algumas das características históricas do processo de construção do
Regime de Historicidade dos fenícios e em especial de Cartago. Em primeiro lugar
observando o contexto da produção historiográfica cartaginesa, e depois, o conteúdo abordado
pela mesma historiografia. De acordo com Brian Garnand, os fenícios sempre mostraram
talento para o comércio e para as comunicações ao colonizar o Mediterrâneo Ocidental à
frente dos gregos e ao divulgar uma de suas mais relevantes invenções: a escrita
alfabética. Ao mesmo tempo, contudo, eles receberam reputação de piratas e fraudadores,
revelando um caráter “depravador” extremo ao praticar o sacrifício de crianças e a
prostituição sagrada ritualizada, de acordo com a descrição das fontes clássicas e
bíblica. “Civilizador depravado”, ou “depravador civilizado”, o fenício apresentou um modelo
de paradoxo. Durante o século XIX, e durante boa parte do século XX, os artistas europeus,
escritores e estudiosos resolveram este paradoxo, suprimindo o aspecto civilizador,
minimizando a questão do desenvolvimento do alfabeto fenício, mantendo apenas o caráter de
civilidade oriental depravada e exótica. Formado em um ambiente de racismo27
,
25
DETIENNE, op. Cit., p. 74 26
Ibid., p. 77-78 27
SEYFERTH, G. Racismo no Brasil. São Paulo: ABONG, 2002, p. 28. O conceito de raça foi criado para
interpretar a história das nações. No início do século XX tonou-se um conceito biológico, influenciado por ideias
políticas e relacionado aos antagonismos entre raças distintas, cujo fundamento ideológico encontrava apoio na
expressão “sobrevivência do mais forte”. O termo “racismo” surge na década de 1930 para criticar os postulados
que afirmaram ser a raça o aspecto determinante da cultura. Em seus desdobramentos o conceito de “racismo” se
refere ainda às práticas que objetivam desqualificar e subordinar socialmente determinados grupos ou
indivíduos, influenciando as relações sociais.
23
imperialismo28
e do nacionalismo29
, a influência de tais interpretações dos fenícios foi
superada atualmente, sendo substituídas por “pós” interpretações, a saber: pós-moderna30
,
pós-colonial31
e pós-estrutural32
. Contudo, recentemente, alguns estudiosos têm abandonado
o paradigma do sacrifício infantil convencional em favor de uma narrativa que enfatiza as
contribuições dos fenícios para a civilidade ocidental.33
Ainda de acordo com Brian Garnand, o ano de 1987 foi um momento decisivo para a
aceitação desta revisão dos estudos acerca dos fenícios. Citando as pesquisas do historiador
Martin Bernal, o autor destaca que neste período verificou-se que os estudos da civilidade
fenícia haviam sido influenciados pelo racismo e pelo antissemitismo34
, suprimindo as suas
28
DÖPCKE, W. Imperialismo. In: SARAIVA, J. P. (Org.) Relações Internacionais – Dois séculos de História.
Vol. I. São Paulo: FUNAC, 2010, p. 143-144. O debate acerca do conceito de Imperialismo surgido no final do
século XIX provocou o surgimento de uma grande variedade de teorias e modelos. De acordo com Wolfgang
Döpcke, o termo imperialismo é amplo e relaciona-se ao domínio das potências europeias e dos E.U.A e Japão
sobre o hemisfério sul do planeta, através de ações diretas – conquista territorial – e indiretas – relações
econômicas e políticas assimétricas. Não é possível determinar uma única causa para este fenômeno, uma vez
que os interesses das potências imperialistas eram múltiplos e diferentes entre si. 29
REMEDIOS, M. L. R. Sujeito, etnia e nação nas literaturas lusófonas. In: AGUIAR, V. T.; PEREIRA, V. W.
(Orgs.) Pesquisa em Letras. Porto Alegre: PUCRS, 2007, p. 34. Para além de uma ideologia ou forma política,
os conceitos de nação e nacionalismo são compreendidos como fenômenos culturais. O nacionalismo é um
conceito que está ligado à ideia de identidade nacional, se relacionando a sentimentos, valores simbólicos e uma
linguagem específica. A identidade nacional é, portanto, um fenômeno cultural coletivo. A ideia de nação
presente no Ocidente revela uma concepção espacial, onde a comunidade e o território pertencem um ao outro. A
memória e a identidade do grupo social são construídas a partir de uma associação histórica com o local onde
vive. 30
TEIXEIRA, C. Moderno Pós-Moderno: modos e versões. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 56-57. O conceito
de “pós-moderno” está relacionado a uma conjuntura das culturas dos países desenvolvidos após as
transformações da ciência, das artes e da literatura a partir do final do século XIX; SANFELICE, J. L. Pós-
modernidade, globalização e educação. In: LOMBARDI, J. C. (Org.) Globalização, Pós-Modernidade e
Educação. Caçador-SC: Autores Associados, 2003, p. 6-7. Associado às questões econômicas, o conceito
assumiu, a partir da década de 1980, uma relação com a democracia liberal, ao apregoar que não poderia haver
nada mais definitivo que o Capitalismo. Nesse sentido, o pós-moderno passou a se considerado uma sentença
definitiva contra quaisquer alternativas ao sistema econômico vigente. 31
AUGEL, M. P. O desafio do escombro: nação, identidade e pós-colonialismo na literatura da Guiné-Bissau.
Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p. 140-141. O campo semântico do conceito de pós-colonial relaciona-se a uma
ideia de embate nas representações das culturas nativas frente à cultura imposta pelo dominador estrangeiro. Em
sua variante política e ideológica, o termo pós-colonial é usado para revelar um conjunto de correntes
aticoloniais, nacionalistas, antiimperialistas e anticapitalistas, ligados à máxima da “libertação do terceiro
mundo”. 32
PECI, A. Além da dicotomia objetividade-subjetividade. In : VIEIRA, M. M. ; ZOUAIN, D. M. (Orgs.)
Pesquisa qualitativa em Administração. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 31. Pós-estruturalismo é um conceito
polissêmico que inclui a contribuição de diversos autores, como Jacques Derrida, Roland Barthes, Jacques
Lacan, Julia Kristeva. Michel Foucault, Jean F. Lyotard e Jean Baudrillard. O pós-estruturalismo é caracterizado
por uma politização da crítica e considera as dicotomias, como corpo – espírito, objetividade - subjetividade,
fenômenos históricos e o legado da ideia de razão presente nos postulados modernistas. 33 GARNAND, op. cit. p. 3 34 AQUINO, R. S. L. de. Antissemitismo. In: SILVA, F. C. T. da. (Org.) Enciclopédia de guerras e revoluções
do século XX: as grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 37.
Termo criado pelo publicista alemão Wilhelm Marr em 1879 para designar um novo tipo de antijudaísmo
surgido na Alemanha no final do século XIX. O termo semita tem origem nos estudos bíblicos de finais do
século XVIII, usado pela linguística para diferenciar o caráter e o espírito entre os povos semitas e os arianos.
Aos semitas foram atribuídas características negativas e aos arianos, positivas. A expressão semita aponta para
24
contribuições para a formação da civilidade ocidental. Além disso, o romance de Gustave
Flaubert, intitulado Salammbô (1862) havia inspirado uma repulsa geral e a condenação da
sociedade cartaginesa, influenciando as análises dos historiadores no século XX. Contudo, o
autor acrescenta que a influência da novela de Flaubert continua viva até os dias atuais,
através de exibições de operas de Salammbô e dos guias turísticos tunisinos baseados em sua
narrativa. Não há um turista que, ao visitar as ruínas de Cartago, não ouça de seu guia a
história de sacrifício de crianças, com riqueza de detalhes, elaborados talvez a partir das
páginas de Salammbô de Gustave Flaubert. Da mesma forma, não existe um manual histórico
que, ao falar de fenícios e cartagineses, não se refira ao ritual de sacrifício que objetivava
oferecer vítimas humanas na necrópole comumente chamada de Tophet.35
Em suas análises acerca das influências contemporâneas sobre os estudos fenícios,
Brian Garnand considera três diferentes contextos históricos, a saber: o período do
lançamento da obra de Gustave Flaubert, em 1862, no momento da criação de uma identidade
francesa36
, formada em parte, a partir da vitória sobre os árabes, após a invasão napoleônica
do Egito para a conquista e colonização da Argélia; e, depois, o filme mudo de Giovanni
Pastrone de 1914, intitulado Cabiria, situado no contexto da formação de uma identidade
imperial italiana37
a partir do momento das primeiras vitórias sobre os turcos e os árabes da
Tripolitânia e Cirenaica (Atual Líbia); e, finalmente, a questão do “fenicianismo38
” no
uma visão secularizada do Judeu, não mais definido pela religião, mas pelo pertencimento a uma determinada
reaça ou nação. 35
GARNAND, op. Cit., p.4-5 36 Ibid., p. 24 et. Seq. O primeiro passo para o ordenamento ocidental do Mundo Árabe ocorreu durante a
expedição de Napoleão ao Egito (1798-1801) e a inauguração quase simultânea de um Orientalismo acadêmico
com o estabelecimento de estudos árabes na École des Langues Orientales. A França napoleônica foi concebida
como Roma, desvendando os mistérios do Oriente. Era a oportunidade para representar livremente as batalhas
sangrentas, o canibalismo desesperado, ritos de sacrifício de crianças e, sobretudo, o sexo, encontrando no
mundo árabe uma “Alternativa visionária”, em contraste com a “tonalidade acinzentada da França”. A França
testemunhou debates entre arabophobes e arabophiles que dizia respeito aos papéis desempenhados pelas
concorrentes militares, pelos colonos e pelos árabes na Argélia, e como o francês poderia cumprir melhor o seu
papel paternal de “civilizar” os nativos, cumprindo sua missão civilizadora. 37
Ibid., p. 36, 40. O filme Cabiria (baseado, em parte, na obra Salammbô ) valoriza os romanos “civilizados” em
relação aos fenícios “depravados”. Estas narrativas colonialistas caracterizavam-se por uma exaltação do próprio
passado, desqualificando os povos que por eles eram subjugados e suplantados. Na verdade, procura-se enfatizar
o primitivismo e a falta de realizações desses povos para justificar seu próprio tratamento sobre eles. O Filme
mudo de Giovanni Pastroni foi lançado dois anos após a captura italiana da Tripolitania. O cinema não é apenas
um instrumento para a representação da realidade, como um documentário, mas também serve como um modo
de escrita histórica que pode transmitir visualmente uma consciência histórica para o público com muito mais
eficiência do que o valor educativo dos livros de história convencionais. A narrativa de Cabiria defendeu o
Imperialismo italiano contemporâneo. Era um filme sobre a Roma antiga, mas direcionado para a Itália moderna.
O cinema italiano emergente valorizou as correntes ideológicas ligadas à origem de uma nação recém-unificada. 38
Ibid., p. 56,58. Nos anos que se seguiram ao fim da administração egípcia da Síria, o clero Maronita promoveu
um “Libanismo” como um movimento paroquial, conservador, voltado para uma identidade cristã. Contudo, o
movimento desapareceu após 1861. O componente cultural fenício só foi empregado em um “Libanismo”
revivido no final virada do século, entre a elite letrada, e foi fomentado em grande parte a partir do estrangeiro,
por comunidades de imigrantes nos Estados Unidos e no Egito. No lugar de mitos faraônicos de origem, os
25
desenvolvimento de identidades no Líbano, em 1920. Para o autor, em todas estas três
situações, os antigos fenícios estavam envolvidos com ideologias contemporâneas, e estas
questões revelam muito mais sobre cada um de seus contextos históricos do que as pesquisas
realizadas nos dias atuais.39
Apesar destas conexões, o autor adverte que embora seja possível
sugerir as relações entre os contextos europeus do século XX e as representações construídas
sobre os fenícios, a comprovação efetiva de tais evidências é um espaço aberto à pesquisa.40
Por outro lado, o processo de consolidação da memória de Cartago teve uma de suas
etapas mais recentes em Novembro de 2007 quando o Instituto do Mundo Árabe inaugurou
uma exposição no Museu do Louvre cujo título era “O Mediterrâneo Fenício: de Tiro a
Cartago”, refletindo o crescente interesse por um período do mundo antigo relativamente
desconhecido. De acordo com Clementine Gutron, o campo das crenças e das práticas
religiosas e funerárias dos fenícios ainda traz consigo muitos mistérios a serem solucionados,
e se houve algum progresso nos últimos anos, isso se deve à descoberta do sítio arqueológico
da necrópole cartaginesa no início do século XX. As peças exibidas em 2007 foram produto
das escavações arqueológicas realizadas na região da Tunísia entre as décadas de 1920 e
1970. De acordo com a autora, a Arqueologia é um conhecimento político e as pesquisas
realizadas na necrópole cartaginesa foram influenciadas pela ocupação francesa daquela
região de 1881 a 1956. Haveria, portanto um legado colonial sobre as escolhas operadas pela
Arqueologia, que teve suas descobertas utilizadas pelo turismo nacional tunisino no processo
de construção da memória daquele país.41
A cada nova escavação da necrópole cartaginesa surgia a questão que instigava os
arqueólogos e historiadores: os cartagineses de fato haviam praticado sacrifícios de crianças?
Para Clementine Gutron, este debate ganhou implicações relativas à identidade e a Tunísia
iniciou um processo de construção dos seus antepassados “aventureiros” na busca pela
construção de uma história nacional única que remontava há muitos séculos e, neste processo,
o conhecimento sobre o passado e o contexto contemporâneo se misturam. Por outro lado, a
autora alerta que o desenvolvimento das escavações arqueológicas pôs em perspectiva a
imigrantes do Líbano traçaram suas próprias origens até a civilidade fenícia. Em um esforço para avançar até a
sua civilidade original, os sírio-americanos estabeleceram centros culturais, os “Clubes fenícios", em todo o país,
onde os seus filhos tinham contato com sua herança cultural fenícia, estudavam árabe, e aprendiam a história do
Líbano. O novo “fenicianismo” descartava o paradigma do “Árabe passivo", promovendo um modelo
fenício/libanês "dinâmico". Este paradigma revertido descreveu o fenício/libanês compartilhando seu instinto
comercial e descreveu sua diáspora como uma colonização moderna. 39
GARNAND, op. Cit., p. 7 40
Ibid., p. 59 41
GUTRON, C. La mémoire de Carthage en chantier: les fouilles du tophet Salammbô et la question des
sacrifices d’enfants. L'Année du Maghreb, IV- p. 3.
26
representação dos cartagineses, uma vez que os textos dos historiadores clássicos e a obra de
Gustave Flaubert moldaram a imagem de Cartago e do mundo púnico em geral. A obra de
Flaubert, ao descrever o sacrifício de crianças, tem influenciado a construção da memória da
Tunísia até os dias atuais.42
“As crianças subiram lentamente, e com a fumaça em forma de imponentes
redemoinhos, elas pareciam, a certa distância, desaparecer em uma nuvem. Não se
mexeram. Seus pulsos e tornozelos foram amarrados, e a roupagem escura as
impedia de ver qualquer coisa e de serem reconhecidas. Toda vez que uma criança
era apresentada, os sacerdotes de Moloch estendiam as mãos sobre ela para imputar-
lhe os crimes do povo, vociferando: “Elas não são homens, mas bois”! e multidão
repetia: "Os bois, os bois"! Um devoto exclamou: "Senhor coma"! e os sacerdotes
de Prosérpina, respondendo às necessidades de Cartago através do terror,
murmuraram a fórmula de Elêusis: "Derrama, traga a chuva”! As vítimas, colocadas
na base da abertura [da estátua de Moloch], desapareceram como uma gota de água
sobre uma placa quente e uma fumaça branca subiu no meio da grande fumaça de
cor escarlate”.43
Figura 1: Ilustração da obra de Gustve Flaubert representando a estátua de Moloch e o sacrifício de crianças em
Cartago - Fonte: http://www.mediterranees.net/romans/salammbo/sommaire.html - Acesso em 08/02/2013
As últimas escavações sistemáticas na necrópole cartaginesa ocorreram como parte da
campanha internacional organizada pela United Nation Educational, Scientific and Cultural
Organization (UNESCO) na década de 1970 para preservar o patrimônio cultural daquela
região. De acordo com Clementine Gutron, na década de 1960 a Tunísia, recém -
independente do domínio francês, optou pelo turismo como um instrumento de
42
GUTRON, op. Cit., p. 5 43
Gustave Flaubert – Salammbô – Cap. XIII
27
desenvolvimento social, quando iniciou então uma política de investigação do potencial
econômico do patrimônio arqueológico. Procurada, a UNESCO organizou uma série de
missões em todo o país, tornando prioritárias as investigações na região do golfo de Túnis,
onde se localiza o sítio arqueológico cartaginês. A magnitude do empreendimento e a
elaboração de um relatório sobre os estudos nesta área foram possíveis apenas a partir de uma
cooperação internacional, uma vez que a Arqueologia nacional tunisina não dispunha de
recursos suficientes.44
Os principais objetivos destas pesquisas arqueológicas eram identificar e classificar os
objetos encontrados. Ainda de acordo com Clementine Gutron, foram realizadas doze
missões, que envolveram nacionalidades diferentes, organizadas em dezoito equipes de
trabalho de pesquisa arqueológica sobre os vestígios identificados, a fim de conhecer a
história de Cartago. Mais de 600 especialistas, entre arqueólogos, historiadores e arquitetos se
dedicaram, por mais de uma década, a salvaguardar este sitio, finalmente considerado
Patrimônio natural e cultural da humanidade pela UNESCO em 26 de outubro de 1979.45
Veremos a seguir, após este breve percurso do contexto histórico das influências sobre
a construção das representações de Cartago, como os historiadores antigos e a historiografia
contemporânea contribuíram para a construção de sua memória.
1.2: Cartago entre os historiadores antigos e contemporâneos
Selecionamos, para este estudo, as análises da Historiografia Francesa e da
Historiografia Anglo-Americana, uma vez que grande parte das pesquisas realizadas sobre a
cidade-estado fenícia está concentrada nestas correntes historiográficas. Os aspectos da
religião cartaginesa serão discutidos no terceiro capítulo desta dissertação, quando
analisaremos de forma comparada as especificidades do ritual de sacrifício humano em
relação à civilidade romana.
Iniciaremos nossas digressões a partir dos estudos acerca do processo de fundação de
Cartago. A narrativa mítica acerca desta fundação pode ser observada na obra Eneida do
poeta romano Virgílio. Vejamos a descrição:
“[...] O império atem-se a Dido, Que por fugir do irmão, fugiu de Tiro [...]
Siqueu, fenício em lavras opulento, foi da mísera esposo, e muito amado: com bom
presságio o pai lha dera intacta. Pigmalião façanhoso entre os malvados, bárbaro
44
GUTRON, op. cit., p. 6 45
Ibid., p. 7
28
irmão, do estado se empossara. Interveio o furor: de fome de ouro. Cego, e à paixão
fraterna sem respeito, pérfido, ímpio, a Siqueu nas aras mata. [...] Da casa o crime e
trama desenleia; a Ara homicida os retalhados peitos desnuda, e à pátria intima-lhe
que fuja: Prata imensa e ouro velho, soterrados, Para o exílio descobre. Ela, inquieta,
Apressa a fuga, e atrai os descontentes; Que ou rancor ao Tirano ou medo instiga;
Acaso prestes naus, manda assaltá-las; Dos Tesouros do avaro carregadas;
Empegam-se: a mulher conduz a empresa! Chegam d'Alta Cartago onde o castelo
verás medrando agora e ingentes muros: mercam solo (do feito o alcunham Birsa);
Quanto um coiro taurino abranja em tiras.”46
Figura 2: A fundação de Cartago.
Fonte: http://www.mundos-fantasticos.com/mitologia - Acesso em 30-04-2013.
A narrativa mítica acerca da fundação de Cartago nos remete à ideia de
territorialidade, defendida por Marcel Detienne. De acordo com o autor, o conceito de
territorialização traduz as mais diversas maneiras de se estabelecer um território. Nesse
sentido, é preciso analisar as variadas formas de se conceber um território, de territorializar a
partir do emprego de rituais com suas representações simbólicas. O estabelecimento de um
território está diretamente ligado à ideia de fundação, que exige um início significativo que
segue um processo histórico. A categoria “fundar” faz referência a um ato, a gestos, a um
46
Eneida I – v. 358 -388
29
ritual ou um cerimonial diretamente ligado a um indivíduo que está na origem do lugar que é
ao mesmo tempo único.47
Os arqueólogos Gilbert & Collete Charles-Picard descartam a explicação mitológica
para a fundação de Cartago e atribuem a motivação principal à expansão dos Assírios por
volta do século IX a. C. Para os pesquisadores, após ter sua cidade cercada e saqueada, os
habitantes de Tiro procuram por um lugar em que poderiam manter a salvo parte da riqueza
que ainda lhes restava. Chegaram primeiro a Chipre, e mais tarde, seguiram para o norte da
África.48
O pesquisador Sege Lancel49
acrescenta que a fundação da cidade não foi um ato
isolado, mas um evento inscrito num vasto movimento de viagens exploradoras e comerciais
vindas do oriente em direção ao Mediterrâneo50
.
O historiador Pierre Grimal não descarta a narrativa mítica da fundação de Cartago,
revelando que a origem da cidade deve-se a uma princesa da cidade-estado fenícia de Tiro,
chamada Dido, que por força de problemas internos, fora obrigada a partir em busca de um
novo lugar para habitar. A princesa, ao lado de membros da aristocracia de Tiro, teria
negociado uma vasta extensão territorial nas proximidades da atual Tunísia.51
Uma questão que parece resolvida é a da origem fenícia de Cartago. Os historiadores
Andre Aymard e Jeannine Ayboyer acrescentam que a colonização de Cartago suscita um
duplo paradoxo, a saber: em primeiro lugar, enquanto os cartagineses se desenvolviam
rapidamente, seus colonizadores de Tiro atravessavam um período de desestruturação política
e econômica; em segundo lugar, Cartago conservava seus traços culturais fenícios enquanto
sua cidade de origem era assimilada e influenciada diretamente pela cultura grega,
principalmente a partir do século IV a. C. com a expansão de Alexandre Magno.52
A questão acerca da fundação cartaginesa também foi debatida pela Historiografia
Anglo-Americana. B. H. Warmington salienta que é difícil definir a data de fundação de
Cartago, uma vez que as informações arqueológicas deste período não são precisas. Além
47
DETIENNE, op. Cit., p.46-52 48
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. A vida quotidiana em Cartago no Tempo de Aníbal.
Lisboa: LB, 1964, p. 16. 49
LANCEL, S. Carthage. Paris: Fayard, 1992, p. 13 50
É importante acrescentar que com a destruição de Cartago pelos romanos em 146 a. C., poucas informações
produzidas pela cidade sobreviveram e grande parte do que sabemos hoje é proveniente dos avanços das
escavações arqueológicas ou das narrativas dos antigos historiadores gregos e romanos. 51
GRIMAL, P. História de Roma. São Paulo: UNESP, 2005, p. 59 52
AYMARD, A.; AYBOYER, J. História Geral das Civilizações. – Vol. III – Roma e Seu Império. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1993, p. 51.
30
disso, o pesquisador rejeita qualquer possibilidade de extração de informações históricas nos
registros míticos transmitidos por gregos e romanos acerca da fundação da cidade-estado.53
De acordo com Chester G. Starr, Cartago – em fenício Kart-hadast ou “Nova Cidade”
– foi fundada em meados do século VIII a. C. e eventualmente adquiriu o controle sobre todos
os demais centros fenícios do Mediterrâneo Ocidental.54
Donald Harden acrescenta que a
tradição que situa a fundação de Cartago por volta de 814 a. C. parece corresponder às
informações arqueológicas e à documentação textual. De acordo com o pesquisador, os
personagens descritos por Virgílio em sua Eneida não são figuras míticas no sentido usual da
palavra, tendo todos eles existido historicamente.55
O historiador Michael Grant destaca que em meados da segunda metade do século
VIII a. C., período em que grande parte do comércio mediterrânico estava concentrado nas
mãos dos fenícios, uma de suas principais cidades fundou uma colônia no norte da África, a
qual nomearam Cartago. De acordo com o autor, a escolha do lugar para o estabelecimento da
Nova Cidade se deveu à proximidade dos bancos de púrpura e à localização estratégica para a
proteção das rotas comerciais ocidentais.56
A seguir, veremos de que maneira os cartagineses se organizavam política e
socialmente. A questão política de Cartago foi descrita pelo filósofo estagirita Aristóteles em
sua obra Política. Vejamos a citação:
"Os Cartagineses em particular possuem instituições excelentes, e o que
prova o grande mérito de sua constituição é que, a pesar da grande parte de poder
que concede ao povo, nunca houve em Cartago mudanças de governo, e, o que é
mais estranho, jamais conheceram nem as revoltas, nem a tirania. [...] a magistratura
cartaginesa é preferível, uma vez que seus membros, em lugar de sair das classes
obscuras, são escolhidos entre os homens mais virtuosos. [...] mas Cartago é mais
prudente e não toma seus reis de uma única família, tampouco os toma a todas
indistintamente, e remete a eleição e não a idade e que seja o mérito o que ocupe o
poder. O reinado e o senado, quando há consenso, podem decidir certos negócios e
subtrair outros ao conhecimento do povo, que só tem direito a decidir em caso de
desentendimento. Mas quando este caso chega, podem não só fazer com que os
magistrados exponham suas razões, mas também falar como soberano, e cada
cidadão pode tomar a palavra sobre o objeto em discussão; prerrogativa que não há
em outras constituições. [os cartagineses] Creem que as funções públicas devem
confiar-se não só aos homens distintos, mas também à riqueza, e que um cidadão
pobre não pode abandonar seus negócios e gerir com propriedade os do estado.
Cartago se salva dos perigos do seu governo oligárquico enriquecendo
continuamente uma parte do povo, que envia às colônias.”57
53
WARMINGTON, B. H. O período Cartaginês. In: MOKTAR, G. (coord.). Historia Geral da África. V. 2.
São Paulo – Paris: Ática – UNESCO, 1983, p. 476. 54
STARR, C. G. The Ancient Romans. New York: Oxford Press, 1971, p. 21. 55
HARDEN, D. Os Fenícios. Lisboa: Editorial Verbo, 1971, p. 64. 56
GRANT, M. História de Roma. São Paulo: Civilização Brasileira, 1987, p. 90. 57
Política II – VIII
31
O historiador grego radicado em Roma, Políbios, também teceu descrições acerca da
constituição dos cartagineses, realizando uma comparação com a constituição dos romanos no
contexto da segunda guerra púnica:
"Entretanto na época em que os cartagineses entraram na Guerra Anibálica
sua constituição já havia degenerado e a de Roma lhe era superior.
Consequentemente o povo em Cartago já havia obtido a preponderância nas
deliberações, enquanto em Roma ela ainda era do Senado. Em Cartago, nada que
proporcione lucro é considerado ignóbil; em Roma, nada é considerado mais ignóbil
do que deixar-se subornar, ou procurar o ganho por meios impróprios [...] em
Cartago, os candidatos a funções públicas recorrem abertamente ao suborno,
enquanto em Roma essa prática é punida com pena de morte."58
Vejamos como a questão da organização social cartaginesa foi tratada pela
Historiografia Francesa. Inspirado talvez pelas descrições elaboradas por Políbios, o filósofo
francês Montesquieu também teceu sua comparação entre romanos e cartagineses. De acordo
com o autor, Cartago havia se tornado uma cidade-estado rica antes dos romanos, e, em
consequência disso, teria se corrompido também mais cedo. Nesse sentido, Montesquieu
destaca que em Roma os cargos públicos eram conquistados através da virtude do indivíduo,
lhe proporcionando prestígio e em Cartago, por sua vez, os cargos públicos eram vendidos e
os magistrados exerciam sua função mediante um pagamento. O autor revela ainda que, se por
um lado a pobreza que era cultivada em Roma tornava todos os homens relativamente iguais,
em Cartago a riqueza acentuava as diferenças entre os cidadãos. Esta situação levou a uma
divisão da oligarquia que governava a cidade: dos dois grupos que governavam Cartago, um
buscava a paz e o outro, a guerra. Se por um lado, em Roma, a guerra unificava os interesses,
em Cartago ela os dividia ainda mais. Ao contribuir para a construção da memória de Cartago,
Montesquieu a concebeu quase como uma cidade diametralmente oposta à Roma, no que
tange às instituições e aos valores. Para o filósofo, a rica cidade-estado de Cartago se opunha
à pobreza e à virtude romanas. Nesse sentido, os romanos seriam ambiciosos por orgulho, e os
cartagineses por avareza.59
Politicamente os cartagineses se organizavam a partir de uma constituição mista,
agregando características comuns a vários sistemas de governo. De acordo com Serge Lancel,
Cartago se organizava em torno de um poder mais ou menos centralizado nas mãos dos
Sufetas, magistrados eleitos anualmente responsáveis pela administração da cidade, cujo
poder era limitado por um Conselho de Anciãos e cujas ações eram julgadas pelo Tribunal dos
Cento e Quatro. Outro aspecto da estrutura política cartaginesa que merece destaque é a
existência da Assembleia do Povo, que detinha a prerrogativa de avaliar todos os assuntos
58
História, VI – 56 59
MONTESQUIEU. Grandeza e decadência dos romanos. São Paulo: Paumape, 1995, p. 29-30.
32
referentes à comunidade cívica.60
Gilbert e Collete Charles-Picard destacam que politicamente
os cartagineses guardavam semelhanças com romanos e gregos, uma vez que se organizavam
socialmente em torno da ideia de cidadania.61
A sociedade cartaginesa era composta por uma população muito diversa em sua
origem e bastante desigual em termos de riqueza e participação política. Contudo não
chegaram até nos vestígios de graves conflitos de grupos sociais que tenham agitado a cidade.
De acordo com Gilbert e Collete Charles-Picard, as ameaças à ordem social pareciam vir dos
agricultores líbios circunvizinhos, que teriam se revoltado em 396 e 379 a. C. A sua condição
social degradante teria causado o motim que pôs em risco a própria sobrevivência da cidade.
Outro fator de risco era constituído pelos mercenários que compunham seu exército. A revolta
de 240 a. C. pode ser considerada um dos grandes embates sociais que abalaram o mundo
antigo.62
Os pesquisadores Andre Aymard e Jeannine Ayboyer destacam que havia em Cartago
três tendências políticas desiguais, de acordo com as circunstâncias. A cidade foi inicialmente
administrada a partir de um regime monárquico, que desapareceu por volta do século VI a. C.
sendo substituído por vários colégios de magistrados eleitos anualmente, no qual um deles era
composto por dois Sufetas, que seriam juízes, embora os gregos traduzissem essa palavra
como reis. A magistratura cartaginesa se concentrava nas mãos de uma oligarquia pouco
numerosa em relação ao conjunto da comunidade cívica. A riqueza desta oligarquia era
proveniente da atividade mercantil da cidade-estado que se desenvolveu a partir de sua
expansão territorial, com a exportação de produtos manufaturados e agrícolas. Havia ainda
uma aristocracia guerreira de onde provinham os generais que, ao longo da história de
Cartago, ameaçou a situação privilegiada da oligarquia emergente das atividades comerciais e
mercantis. Estes generais eram eleitos pelos cidadãos e, no comando das forças militares,
possuíam autonomia absoluta, não tendo que contar com a interferência de conselheiros ou
inspetores designados pelas autoridades locais, administrando, de acordo com seus desígnios
os territórios que porventura ocupassem.63
O historiador M. Sznycer alerta, no entanto, que a tarefa de reconstruir a história
interna de Cartago, como os historiadores contemporâneos têm objetivado fazer, isto é,
analisando seus problemas sociais, as disputas internas e as mudanças de regimes políticos é
bastante complicada. A dificuldade do trabalho do historiador contemporâneo tem origem na
60
LANCEL, op. Cit., p. 133. 61
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. op. cit., p. 59. 62
Ibid., p. 129. 63
AYMARD; AYBOYER, op. Cit., p. 58-59.
33
inexistência de informações produzidas pelos próprios cartagineses acerca de suas questões
sociais internas. A arqueologia pouco descobriu até agora para que pudéssemos possuir
informações seguras acerca do cotidiano cartaginês e a documentação textual disponível até
então sobre seus hábitos e costumes é necessariamente questionável, por sua origem grega ou
latina, povos que historicamente mantiveram relações de hostilidade com os cartagineses.64
A temática da constituição cartaginesa também atravessou a Historiografia Anglo-
Americana. Dexter Hoyos revela que Cartago era uma República, isto é, uma comunidade
com magistrados eleitos anualmente por seus concidadãos. Contudo, o autor acrescenta que
ao longo de sua história os cartagineses foram controlados por uma elite aristocrática, baseada
na ancestralidade, mas também aberta à capacidade guerreira e aos recursos monetários
provenientes da intensa atividade mercantil.65
Alfred Church acrescenta que parte do conhecimento que temos acerca das instituições
políticas dos cartagineses se deve a um capítulo da Política do filósofo estagirita Aristóteles.
Segundo o autor, a cidade era governada por reis, mas seu poder era bastante limitado e sua
posição na hierarquia social era um pouco mais elevada que o sumo sacerdote e os generais
do exército. Outra questão que merece destaque é que em Cartago os reis eram eleitos, ainda
que não houvesse eleições anuais. Uma vez eleito, o mandato dos reis era vitalício, porém não
hereditário. Os reis eram dois magistrados chamados sufetas, uma derivação da palavra
Shophetim, que significa juízes. Abaixo dos reis na escala social estavam os generais. Os dois
ofícios poderiam ser exercidos pela mesma pessoa, mas ao que parece, isso raramente
aconteceu. Os reis normalmente não comandavam o exército ou a marinha. Depois dos
generais, havia um corpo legislativo que podemos chamar de Senado. Este órgão era dividido,
por sua vez, em dois subgrupos, a saber: um menor e mais poderoso, escolhido entre seus
membros em períodos de grave agitação social ou conflitos que ameaçassem a cidade, e um
maior, composto pelos demais membros. Outra parte da estrutura administrativa da cidade era
a Pentarquia. Não existem muitas informações acerca deste conselho, mas é provável entre
suas funções estavam a supervisão das finanças, do comércio e dos assuntos militares.66
De acordo com Chester G. Starr, a constituição cartaginesa era bastante similar à de
Roma. Havia uma assembleia de cidadãos, um conselho aristocrático formado por 300
integrantes e dois chefes da magistratura eleitos anualmente. As famílias aristocráticas de
Cartago possuíam vasta extensão de terras nas regiões circunvizinhas à cidade, mas também
64
SZNYCER, M. Carthage et la civilisation punique. In : NICOLET, C. (Org.) Rome et la conquête du monde
Méditerranéen. Paris: Press Université De France, 1995, p. 550. 65
HOYOS, D. The Carthaginians. New York: Routledge, 2010, p. 20. 66
CHURCH, A. The History of Carthage. Cheshire: Biblo-Moser, 1998, p. 102-104.
34
se dedicavam às questões comerciais, estabelecendo trocas no norte da África, no sul da
Península Ibérica, no oeste da Sicília, além das ilhas da Córsega e da Sardenha. A manutenção
do império cartaginês se dava mediante o emprego de uma força militar composta por
mercenários e por uma numerosa frota, além do uso de artifícios diplomáticos a partir do
estabelecimento de tratados com as cidades-estados vizinhas, com o objetivo de delimitar as
esferas de influência e atividade mercantil. A população nos domínios cartagineses chegava a
3.000.000 de pessoas aproximadamente. Ainda de acordo com o autor, não conhecemos
amplamente a história de Cartago e algumas questões ainda permanecem obscuras como sua
produção artística e sua Literatura, por exemplo. É possível dizer, contudo que os cartagineses
foram influenciados pela cultura helênica a partir do século IV a. C.67
A seguir, veremos os principais aspectos da economia cartaginesa. Antes, contudo, é
preciso verificar os aspectos econômicos da Antiguidade. De acordo com Moses I. Finley, a
palavra economia possui origem grega, sendo composta pelo termo oikos, “casa ou unidade
doméstica”, e pela raiz semântica nem-, com o sentido de “regulamentar, administrar,
organizar”. Em linhas gerais o oikonomikos, significa a “administração da casa”.68
Max Weber destaca que a cultura antiga é essencialmente urbana, sendo a cidade
portadora de vida política, assim como da arte e da Literatura. Economicamente a cidade
antiga se baseia na troca, nos mercados locais, de produtos de origem nas manufaturas
urbanas com os frutos da área de produção agrícola circundante. Essa troca direta local, entre
produtores e consumidores, atende às necessidades da região sem a necessidade de
importação de produtos do exterior. Esta característica estaria assentada no princípio da
autarquia, ou da autossuficiência. Para o sociólogo, embora haja um comércio marítimo entre
cidades-estados a sua intensidade é bastante limitada, restringindo-se apenas aos produtos de
luxo que buscavam atender a uma aristocracia cada vez mais exigente. O tráfico de
mercadorias não interessava à população em geral, com suas necessidades cotidianas.69
Ao comentar sobre a estrutura econômica das cidades antigas M. I. Finley destaca que
esta incluía o interior rural e um centro urbano, onde residia a aristocracia e onde estavam
instalados os cultos públicos e a administração da comunidade. Para o autor, a relação
econômica entre a cidade e o campo pode ir do parasitismo à completa simbiose. Os
residentes de uma cidade que não estão diretamente envolvidos na produção dos alimentos
vão buscar no campo os meios de sua subsistência. Assim, M. I. Finley defende a ideia de que
67
STARR, op. Cit., p. 21-22. 68
FINLEY, M. A economia Antiga. São Paulo: Afrontamento, 1986, p. 19. 69
WEBER, M. História Agrária romana. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 40.
35
as cidades são centros consumidores. Entretanto, estendendo a perspectiva de M. Weber, o
autor questiona se as cidades antigas eram essencialmente consumidoras. Em outras palavras,
como a cidade pagava ao campo pelos produtos que consumia? Para M. I. Finley não existe
uma resposta segura a esta pergunta, já que cada cidade ou região possuía suas
especificidades. Contudo, em linhas gerais, a capacidade de pagar pelos escravos, alimentação
e outros artigos repousava, na opinião do autor, sobre quatro variáveis, a saber: a quantidade
de produção agrícola local, a presença ou ausência de recursos minerais ou a produção de
vinhos ou de plantas produtoras de óleos, as exportações de comércio e turismo e o
rendimento da propriedade e domínio de terras, rendas, impostos e doações.70
Na contramão destas concepções teóricas observamos o paradigma defendido por M.
Rostovtzeff. Para o autor, as cidades antigas não eram apenas exploradoras das riquezas
produzidas pelo campo. Eram, além de tudo, centros de produção manufatureira voltados para
a obtenção de lucro e para a ampliação do consumo.71
Para Jean Andreau esta análise
privilegia concepções marxistas ao interpretar a economia antiga como uma economia de
mercado e o comércio e suas transformações em função das noções de concorrência e leis de
oferta e procura.72
Karl Polany refuta esta concepção ao afirmar que a economia de mercado,
como uma estrutura institucional, esteve presente, mesmo que de forma parcial, apenas em
nossa época, rejeitando sua aplicabilidade ao mundo antigo.73
(POLANY, 1980: 55).
Contudo, a análise de M. Rostovtzeff mereceu o destaque daqueles que discordam dos
modelos de M. I. Finley por sua ênfase na Arqueologia e o estudo da cultura material das
cidades antigas.74
Os seguidores de M. Rostovtzeff foram denominados “modernistas”, enquanto os
defensores dos postulados inerentes à cidade “consumidora” receberam a designação de
“primitivistas”.
Para Karl Polany, no mundo antigo, as questões econômicas atraíam menos a atenção
dos homens que a maioria dos outros setores da vida em sociedade. Entre os antigos não
existiu nenhum vocábulo que designasse o conceito de “econômico”. De acordo com o autor,
a razão para esta falta de conceito era a dificuldade que o homem da Antiguidade possuía para
70
FINLEY, op. Cit., p. 171-174. 71
ROSTOVTZEFF, M. Historia Social y Económica Del Imperio Romano. Tomo II. Madrid: Espasa-Calpe,
1972, p. 178-222. 72
ANDREAU, J. L’économie antique. In: Annales: histoire, sciences sociales. 50 Année – N. 5. Paris: Armand
Colin, 1995, p. 950. 73
POLANY, K. A grande transformação. – As origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 55. 74
FUNARI, P. P.; GARRAFFONI, R. S. Economia romana no início do principado. In: MENDES, N. M.;
SILVA, G. V. da. (Orgs.) Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural.
Vitória: Mauad, 2002, p. 53.
36
identificar o processo econômico em uma situação em que este estava integrado com outras
instituições sociais extraeconômicas. As causas deste fenômeno são passíveis de explicação
através do uso de determinados conceitos75
defendidos pela Antropologia Econômica, dentre
os quais destacamos o cenário físico da vida do homem, em que seu habitat não possui
nenhuma significação econômica, já que suas relações sociais são complexas e as questões de
economia encontram-se confundidas com as ações cotidianas. Por outro lado, em
comunidades organizadas sobre a base do parentesco, muito dificilmente surgem transações
econômicas. Isso significa que as trocas eram atos públicos realizados de acordo com o lugar
social do indivíduo e, por maiores que fossem estas transações, o mais importante era o fato
de que marcavam a posição dos indivíduos evolvidos em um determinado contexto social.
Contudo, o autor adverte que, o que não existiu na Antiguidade foi o conceito de economia e
não a própria economia.76
Ainda de acordo com M. I. Finley, a ausência de um conceito de economia entre os
antigos estaria relacionada ao fato de que esta sociedade nunca possuiu um sistema
econômico que fosse um grande conglomerado de mercados interdependentes. Para o autor,
não havia ciclos de negócios na Antiguidade e nenhuma cidade cujo desenvolvimento possa
ser atribuído ao estabelecimento de uma manufatura. E por esta razão nenhum modelo de
investimento moderno pode ser aplicado às maneiras de conduzir a vida econômica do
homem na Antiguidade.77
Outra questão a se destacar, a da autossuficiência, não era comum a todas as cidades, o
que as obrigava a conseguir, no exterior, os produtos necessários à manutenção de sua
sobrevivência.78
E esta suposição predomina entre os autores que analisaram a estrutura
econômica cartaginesa.
Iniciaremos o debate acerca dos aspectos econômicos de Cartago a partir da
Historiografia Francesa. Para os pesquisadores Andre Aymard e Jeaninne Ayboyer o
comércio era o principal motor da economia cartaginesa, já que estes não desenvolveram uma
75
POLANY, op. Cit., p. 118-124. Karl Polany destaca outras hipóteses para a ausência de um conceito de
economia entre os antigos, a saber: a ausência de quantitatividade como um fator desagregador da economia; a
inaplicabilidade de um conceito de propriedade como o direito de dispor de determinados objetos; em muitas
sociedades antigas a riqueza não está constituída por bens, mas sim por serviços prestados por escravos, criados
e trabalhadores livres; na Filosofia de Aristóteles os três prêmios da fortuna eram a honra e o prestígio, a
segurança de vida e a integridade física e a riqueza, esta última relacionada à felicidade da propriedade que
permitia ao indivíduo desfrutar do lazer, sinônimo de liberdade; a autossuficiência do grupo humano, postulado
da sobrevivência, está assegurada quando é possível fisicamente o abastecimento daquilo que é necessário para a
subsistência. 76
Ibid., p. 114-121. 77
FINLEY, op. Cit., p. 26-27. 78
Ibid., p. 174.
37
manufatura consistente que pudesse atender a todas as suas necessidades e nem tampouco
eram reconhecidos pela qualidade de suas mercadorias. Quanto aos objetos manufaturados, os
cartagineses não chegaram a criar um estilo próprio. A produção de artigos de luxo acabou
por não satisfazer às exigências da aristocracia local e não deu margem à exportação. Por
outro lado, os cartagineses produziram muitos objetos de uso cotidiano e mesmo essa
manufatura desenvolveu-se tardiamente. Durante muito tempo esses produtos foram
importados da Grécia e até mesmo do Egito. Os cartagineses dedicaram-se ainda a exportar
seus produtos para aquelas cidades do Mediterrâneo Ocidental onde exercia a sua hegemonia,
e vestígios arqueológicos apontam para a presença de cerâmica, joias e outros produtos nestas
localidades. Após ter importado vinho da Grécia e da Sicília, pôde, nos últimos séculos de sua
existência, vender seu azeite e seus frutos para as ilhas da península itálica. Por outro lado, o
frete foi o essencial de sua atividade comercial: os cartagineses, experientes navegadores,
desde muito tempo colocavam sua frota à disposição daquelas cidades que oferecessem
maiores recursos econômicos. Em suma, foi do comércio e não da produção manufatureira,
que Cartago conquistou sua riqueza. A cidade foi um grande entreposto de redistribuição de
mercadorias: centralizava as matérias-primas ocidentais a fim de exportá-las ao Oriente, além
de distribuir os produtos orientais por diversas cidades do Mediterrâneo Ocidental.79
Fernand
Braudel complementa, afirmando que os portos fenícios, lotados de navios, efetuavam vastas
trocas, desde o Mar Vermelho e o Oceano Índico até o Atlântico, além do estreito de
Gibraltar. Todo o Mediterrâneo se inclui neste sistema de longo alcance.80
De acordo com Pierre Grimal, Cartago se desenvolveu rapidamente, adquirindo grande
prosperidade. Ao herdar a tradição comercial fenícia, os cartagineses mantiveram relações
comerciais com os mercadores sírios, além de possuírem navios que garantiam a comunicação
marítima entre sua cidade e o Oriente. Os cartagineses trocavam ainda suas mercadorias,
principalmente joias, mobiliários e tecidos, com as populações do interior do continente
africano, que ofereciam elefantes, madeira, peles e cavalos. Em pouco tempo, Cartago já
havia controlado todo o comércio naquela região. Ao descobrirem novas rotas comerciais, os
cartagineses buscavam protegê-las das investidas estrangeiras, seja mantendo-as em sigilo,
seja atacando embarcações não autorizadas a trafegar nestas regiões. Aos poucos, toda a
região do Mediterrâneo Ocidental foi se tornando área sob o controle cartaginês, repleta de
feitorias e estaleiros para o reparo de suas naus. No interior do continente africano os
79
AYMARD; AYBOYER, op. Cit., p. 63-69. 80
BRAUDEL, F. Memórias do Mediterrâneo: pré-história e Antiguidade. Rio de Janeiro: Multinova, 2001, p.
212.
38
cartagineses exploraram os territórios com o estabelecimento de propriedades onde
cultivavam trigo, oliveiras e videiras. Os cartagineses eram reconhecidos pelo
desenvolvimento de suas técnicas agrícolas entre os antigos.81
Mapa 1: Rotas comerciais fenícias no Mediterrâneo.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fen%C3%ADcia – Acesso em 30-04-2013
As características da economia cartaginesa tiveram consequências em suas estruturas
sociais. De acordo com Pierre Grimal, as riquezas de Cartago se concentravam nas mãos dos
grandes proprietários e o trabalho na terra era deixado a cargo de uma mão de obra escrava
numerosa. O crescimento da cidade e sua riqueza levaram os cartagineses a ditar as regras
comerciais no Mediterrâneo Ocidental. Nesse percurso, Cartago estabeleceu alianças com os
Etruscos, por meio de tratados, contra os gregos de Marselha, impedindo-os de realizar trocas
comerciais com as tribos gaulesas da Península Ibérica.82
A arqueóloga Véronique Krings afirma que o século VI a. C. ocupa um lugar à parte
na história de Cartago por se tratar de um século de problemas e ao mesmo tempo de transição
que coincide com o domínio cartaginês sobre as colônias fenícias do Mediterrâneo Ocidental.
81
GRIMAL, op. Cit., p. 59-60. 82
Ibid., p. 61.
39
Ao se firmar no cenário ocidental os cartagineses substituíram os fenícios, de maneira
contundente, com destaque para o seu antagonismo comercial, político e em certa medida
cultural com o mundo grego.83
André Aymard e Jeannine Ayboyer destacam que havia em Cartago um apoio intenso
das instituições governamentais à expansão comercial que pode ser constatado pelo uso
constante de artifícios diplomáticos nas relações com as civilidades vizinhas.84
O historiador Claude Nicolet revela que as representações mais comuns, construídas
pela historiografia sobre Cartago a descrevem como um poder essencialmente comercial, ao
passo que negligenciam sua agricultura e seu exército. A hegemonia cartaginesa envolve, de
fato, três regiões estratégicas: uma na África, que a cidade conservou até 201 a. C., a segunda,
nas ilhas da Sicília, Córsega e Sardenha, que serão perdidas para os romanos entre 241 e 234
a. C., e a terceira, localizada na Península Ibérica, cujo controle irá exercer até o fim da
Segunda Guerra Púnica. Para o autor, a agricultura cartaginesa, que em solo africano produzia
azeite, vinho e variados tipos de frutos, juntamente com uma relativa produção manufatureira
e artesanal, poderia nos levar a pensar que a exportação era a principal característica de sua
economia. Entretanto, o autor adverte que, pelo contrário, o comércio púnico era bem
particular: tratava-se, na verdade de um comércio de intermediários e de entrepostos de
transporte, principalmente. O controle da bacia ocidental do Mediterrâneo e dos numerosos
centros fenícios ao longo desta região dinamizava as trocas comerciais cartaginesas,
fortalecendo sua economia.85
A temática da economia púnica também pode ser verificada na Historiografia Anglo-
Americana. Os dois primeiros séculos da história de Cartago permanecem envoltos em
mistérios. Quase nada se sabe acerca deste período. Alfred Church acredita que foi neste
período os cartagineses estabeleceram as primeiras relações com seus vizinhos na África, na
Sicília e na Península Ibérica, seja por intermédio de alianças, seja por meio de disputas pelo
controle de rotas comerciais.86
Donald Harden revela que a partir de sua fundação, Cartago
teria se desenvolvido rapidamente, tornando-se a cidade mais importante do Mediterrâneo em
consequência do controle que exercia sobre as principais rotas comerciais da região e também
por possuir a mais poderosa frota naval do período.87
83
KRINGS, V. La civilization Phénicienne et Punique. Leiden: Brill, 1994, p. 9. 84
AYMARD; AYBOYER, op. Cit., p. 63. 85
NICOLET, C. (Org.) Rome et la conquête du monde Méditerranéen. Paris : Press Univ. De France, 1995,
p. 594-595. 86
CHURCH, op. Cit., p. 12. 87
HARDEN, op. Cit., p. 64-65.
40
O pesquisador Dexter Hoyos destaca que por volta da segunda metade do século VI a.
C. os cartagineses foram assegurando o domínio sobre a costa africana.88
De acordo com A. V. Mishulin, até o século III a. C. Cartago era a cidade-estado mais
rica do Mediterrâneo. Os comerciantes cartagineses possuíam colônias em toda a costa
africana, na Sicília, na Córsega, na Sardenha e na Península Ibérica e suas viagens
exploratórias os haviam levado até o Oceano Atlântico. Para garantir o controle de suas rotas
comerciais, os cartagineses empregavam uma numerosa frota, bem como um grande exército
de mercenários.89
Donald Harden adverte, no entanto, que Cartago não exerceu um poder de império90
no sentido usual do termo. Os cartagineses subjugaram as demais cidades da Fenícia por sua
força comercial e guerreira, mas nunca trataram essas regiões como suas possessões e nem
tampouco atribuíram aos cidadãos desta região o status de cartagineses. Desta forma, o autor
lembra que as cidades da Sicília e da Península Ibérica cunhavam suas próprias moedas. Além
disso, todas as cidades sob a sua área de influência possuíam seu próprio exército, mas
recorriam a Cartago sempre que se viam ameaçadas por ataques estrangeiros. No início de sua
história, Cartago possuía apenas um pequeno território, que se alargou gradualmente,
atingindo quase a totalidade da região norte da África. A expansão territorial não transformou
Cartago em um império, mas concedeu-lhe a administração direta de uma grande extensão de
terras férteis que forneciam gêneros alimentícios que afastavam qualquer risco de
desabastecimento. Em linhas gerais, os cartagineses buscavam cultivar cereais, explorar as
minas de chumbo e prata, e manter os comerciantes afastados de suas possessões nas ilhas da
Sicília, da Córsega e da Sardenha, regiões estratégicas para o controle das rotas comerciais no
Mediterrâneo Ocidental. Para Donald Harden, o poderio cartaginês nestas regiões era
sustentado por uma influência moral, não havendo destacamentos militares para impor sua
autoridade direta. Desta forma, por não haver uma coesão em seus domínios, os cartagineses
assistiram à desintegração gradual do seu império no momento que iniciaram os conflitos
contra os romanos.91
88
HOYOS, op. Cit., p. 40. 89
MISHULIN, A. V. Historia de La Antigüedad. Buenos Aires: Futuro, 1960, p. 182. 90
GUARINELLO, N. L. Imperialismo Greco-romano. Rio de Janeiro: Atica, 1988, p. 14. Os termos império e
imperialismo, embora próximos, apresentam realidades distintas. Imperialismo é uma ação política ou
econômica de dominação de uma cidade-estado sobre outras. Império é um Estado, geralmente resultante de uma
ação imperialista, mas que não se confunde com esta. No mundo antigo, diferentemente do mundo
contemporâneo, podemos acompanhar a transformação de uma ação imperialista em um grande império. 91
HARDEN, op. Cit., 74-76.
41
Mapa 2: Regiões sob o domínio cartaginês até as guerras púnicas.
Fonte: http://www.historiadomundo.com.br/cartagines/mapa-do-imperio-cartagines.htm – Acesso em
30-04-2013
Para o historiador Michael Grant, foi a busca por metais preciosos que levou os
cartagineses a conquistar as ilhas do Mediterrâneo Ocidental. A região da Península Ibérica
era reconhecida por possuir grande quantidade de minas, mas navegar até aquela região sem
escalas intermediárias significava submeter-se aos riscos de um litoral africano hostil por
conta de suas fortes correntes marítimas. Assim, a Sicília ocupava uma posição estratégica
privilegiada, onde Cartago assumiu a liderança dos colonos fenícios locais, construindo portos
e explorando as terras férteis do interior. Na Sardenha, os cartagineses construíram quatro
portos, o que também lhes permitiu assumir o controle e desenvolver colônias ao sul da
Península Ibérica. Além disso, a conquista desta ilha ofereceu aos cartagineses o acesso a uma
segunda fonte de metais preciosos, ou seja, as minas de prata da Etrúria.92
Para o historiador Ernle Bradford, os cartagineses seguiram a tradição herdada dos
fenícios, se dedicando principalmente à atividade mercantil e seu poderio econômico os
tornava suficientemente fortes para manter o controle das tribos líbias e das ilhas da Córsega e
Sardenha e de uma pequena extensão territorial na Sicília93
.
92
GRANT, op. Cit., p. 92. 93
BRADFORD, E. Aníbal: um desafio aos romanos. São Paulo: Ars Poética, 1992, p. 22-26.
42
Em seu processo de expansão os cartagineses também se viram em conflitos contra os
gregos, motivados principalmente pelo controle das rotas comerciais. Para Ernle Bradford, o
resultado deste embate foi uma espécie de empate combinado. Após quase dois séculos de
combate, os gregos passaram a controlar a região oriental da Sicília, enquanto os cartagineses
ocuparam a Sardenha e toda a área costeira localizada na parte norte do continente africano. A
partir deste momento surge uma nova força neste jogo de poder. O recém-chegado era Roma,
que acabara de expulsar os Etruscos, constituindo sua República. O autor afirma ainda que
Cartago havia firmado dois tratados com Roma nos séculos VI e IV a. C., ambos destinados a
assegurar aos romanos que eles, os cartagineses, não tinham interesse sobre a Península
Itálica, enquanto os romanos concordavam com a presença cartaginesa na Sicília.94
Os
tratados com os romanos foram ratificados entre os anos de 509, 309 e 279 a. C. O historiador
grego Políbios também descreveu o conteúdo destes documentos.
Tratado ratificado em 509 a. C.:
“Quem vier comerciar não deverá concluir negócio algum sem a presença
de uma arauto ou escrivão, e a efetivação de qualquer negócio feito na presença
destes será garantida ao vendedor pelo estado, se a transação ocorrer na Líbia ou em
Sardó.”95
Tratado ratificado em 309 a. C.:
“Nenhum Romano poderá comerciar ou fundar uma cidade em Sardó ou na
Líbia, nem permanecer em uma localidade sardônia ou líbia por um período mais
longo que o estritamente necessário para reabastecer ou reparar sua nau.”96
Tratado ratificado em 279 a. C.:
“Para possibilitar a qualquer das duas partes a prestação de assistência à
outra no lugar onde esta se encontre em guerra, seja qual for a parte que peça ajuda,
os cartagineses fornecerão as naus para o transporte das tropas, tanto na ida quanto
na volta, mas cada parte deverá pagar o soldo de seus homens.”97
A ratificação destes tratados envolve contextos bastante particulares. Os dois
primeiros acordos, firmados em 509 e 309 a. C. destacam as regras estabelecidas para a
realização de trocas comerciais. Vejamos inicialmente como a Historiografia Francesa
analisou estes contextos. De acordo com Pierre Grimal, em meados do século V a. C.,
segundo a tradição, Roma declarou-se independente da realeza etrusca. Ao mesmo tempo
94
BRADFORD, op. cit., p. 24. 95
História, III, 25 96
Ibid. III, 25 97
Ibid., III, 25
43
observa-se uma acentuada retração do poder etrusco, que os levaria a recolherem-se outra vez
na Etrúria, perdendo parte de seus domínios na Península Itálica. E, juntamente com os
etruscos, Roma também perde parte de sua hegemonia e talvez até de seu poder na região. A
razão para este fenômeno seria, entre outras, a de que a Liga Latina, até então controlada por
uma forte e etrusquizada Roma, retoma sua independência. Neste período, os romanos
alcançam algumas vitórias contra as cidades etruscas, mas a cidade permanecia em constante
estado de sítio. Os romanos assistiram à elaboração de alianças entre diversas civilidades do
Lácio e a paz era sempre precária. Além disso, no plano interno, é possível constatar uma
sucessão de embates entre os principais segmentos sociais de Roma: patrícios e plebeus. A
oposição entre estes grupos pôs em risco a própria sobrevivência da cidade-estado.98
Os romanos herdaram uma tradição de boas relações entre etruscos e cartagineses,
onde aos últimos interessava, ao nosso entender, manter livre o acesso às ilhas da Córsega e
da Sardenha. O contexto apresentado em 309 a. C. aponta algumas mudanças no cenário
político do Mediterrâneo. O século IV a. C. marca o início do contundente avanço de Roma
ao longo da península itálica, em direção ao Mediterrâneo.
Neste período, Roma era a maior potência de toda a região peninsular. Estava em
contato com as colônias gregas ao sul e aliviava a pressão etrusca sobre Marselha ao norte.99
Este fato certamente não seria ignorado pela maior potência de todo o Ocidente nesta ocasião.
Os cartagineses, talvez impressionados com o movimento expansionista romano, buscaram
métodos para proteger suas rotas de comércio. E parte destes métodos é o que podemos
observar na já citada mudança de atitude dos fenícios em relação aos romanos, no que diz
respeito às transações comerciais na região da Sardenha e da Líbia.
Assim, observando o surgimento de outra potência que pudesse rivalizar consigo, os
cartagineses se anteciparam, com o uso da astúcia, através do instrumento diplomático,
interditando aos romanos o acesso às suas rotas comerciais. Para o historiador Pierre Grimal é
provável ainda que, além de proteger seus domínios, os cartagineses tivessem a intenção de
provocar obstáculos ao desenvolvimento comercial de Roma. E, muito embora os romanos
não tenham criado instantaneamente uma frota comercial, neste período já havia se tornado
uma potência costeira, assegurando o patrulhamento do litoral sob seu controle na Península
itálica.100
98
GRIMAL, P. A civilização romana. Lisboa: Edições 70, 1984, p. 33-34. 99
Ibid., p. 38. 100
Ibid., p. 38.
44
Além disso, podemos notar a localização estratégica das regiões citadas na
documentação. De acordo com S. Giammellaro, a Sardenha, bem como a Líbia, a Sicília e até
mesmo a Península Ibérica eram regiões voltadas para a produção agrícola de Cartago durante
o período que compreende desde o século IV a. C. até a conquista romana, ou seja, durante
todo o período em que a cidade-estado controlou a navegação mediterrânica. A Sardenha,
bem como as demais regiões citadas, também era um estratégico polo de produção cerealífera,
geralmente controlada por regiões periféricas que dispunham de recursos próprios e que
funcionavam à margem dos centros principais. Além disso, a região servia, muito
provavelmente, de porto de reabastecimento das naus que partiam ou retornavam da Ibéria,
área onde se encontravam Cardos, cujo consumo era muito apreciado pelas aristocracias
ocidentais e por isso a maior parte de sua produção era destinada à exportação. Além disso, a
Ibéria era grande produtora de azeite e principal centro de pesca controlado por Cartago e, ao
lado da Sardenha, da Sicília e da Líbia, explorava salinas para a salga dos peixes. Na Líbia
observamos a presença de hortas e jardins exuberantes, e na região do Promontório Belo,
ainda na área norte da África, citam-se um grande número de produtos hortícolas, como
couve, alcachofra e alho, além dos figos. As oliveiras eram bastante comuns nesta região e
teriam sido introduzidas pelos cartagineses, assim como a produção do azeite.101
Estas
regiões, como vimos, eram centros produtores de alimentos utilizados para consumo e para
exportação. É muito provável que Cartago pretendesse proteger estas localidades contra o
crescente poderio romano.
A Historiografia Anglo-Americana também analisou os contextos dos acordos
ratificados entre Roma e Cartago. O tratado de aliança militar fora ratificado em 279 a. C. por
ocasião da invasão do general epirota Pirro à Península Itálica, atendendo a um pedido de
socorro da cidade-estado de Tarento, na Magna Grécia102
. O impasse gerado pelo desenrolar
do conflito levaria o general epirota a pedir a paz aos romanos. Entretanto, um evento de
ordem política influenciou a decisão de Roma: uma frota cartaginesa surgiu na foz do rio
Tibre e os seu general fora propor um tratado de aliança contra Pirro. Aos cartagineses
interessava conquistar as cidades da Sicília que ainda não estavam sob seu domínio e para isso
era necessário reter, na Itália, as tropas do general epirota. De acordo com Carl Grimberg, no
contexto da conclusão do tratado entre romanos e cartagineses, os sicilianos já haviam
101
GIAMMELLARO, A. S. Os fenícios e os cartagineses. In: FLANDRIN, J-L.; MONTANARI, M. (Orgs.).
História da Alimentação – 1 – Dos primórdios à Idade Média. Lisboa: Terramar, 2000, p. 81-86. 102
GRIMAL, op. cit., 1984, p. 39. O Pretexto para o embate fora o fato de os romanos terem enviado uma frota
para a região litorânea da cidade. Este ato contrariava as cláusulas de um tratado ratificado entre tarentinos e
romanos por volta de 303 a. C. Na verdade os tarentinos sentiam-se ameaçados pelo avanço romano, que
fundava colônias nas proximidades de sua costa.
45
solicitado ajuda a Pirro. As escolhas do general eram claras: se os cartagineses dominassem a
Sicília sua posição na Itália seria insustentável frente à aliança entre estes e os romanos, e por
outro lado, se ele conquistasse a ilha, ficaria numa posição extremamente vantajosa contra os
romanos.103
O epirota escolheu a segunda alternativa e, durante três anos, combateu e liderou
os sicilianos. Contudo, os gregos da ilha, insatisfeitos com seu governo rigoroso, revoltaram-
se e o expulsaram. Pirro retornou para Tarento, onde foi derrotado definitivamente.
Para Carl Grimberg a vitória dos romanos sobre Pirro os tornou hegemônicos em toda
a Itália, surgindo assim uma nova peça no jogo político mediterrânico naquele período da
história.104
Estes eventos concorreriam, em breve, para o embate entre os antigos aliados:
romanos e cartagineses lutariam até a morte pelo domínio do Mediterrâneo.
De acordo com Michael Grant a guerra contra Pirro intensificou os contatos romanos
com Cartago, a maior potência do Ocidente até então. A partir deste momento, as questões
que ameaçavam a coexistência pacífica das duas cidades-estados multiplicaram-se
rapidamente.105
Robert Palmer acrescenta que é possível perceber a intenção dos tratados púnico-
romanos, revelando o menosprezo romano e sua falta de interesse na atividade comercial,
ressaltando o formato Helênico e Semita dos tratados cartagineses como pactos feitos
indiscriminadamente, por conta dos interesses dos comerciantes diante de uma boa
oportunidade de negócio.106
Quando os romanos assinaram tratados com Cartago não suspeitavam que este ato se
tornasse a causa das três guerras que colocaria em risco a própria sobrevivência de sua cidade,
mas que ao mesmo tempo também seria a origem da sua maior riqueza. O ano de 264 a. C.
marcou o início do embate entre as cidades, que ficou conhecido como “Guerras Púnicas”.
O historiador grego Políbios narrou os motivos que levaram romanos e cartagineses a
entrarem em conflito naquela que ficou conhecida como primeira guerra púnica:
“Os romanos estavam, portanto extremamente apreensivos e receosos de que, se
os cartagineses se tornassem igualmente senhores da Sicília, pudessem causar
maiores dificuldades e ser mais perigosos aos vizinhos, hostilizando-os por todos os
lados e ameaçando todas as regiões da Itália. [...] O povo, porém, embora exausto
por causa das guerras recentes, e necessitando de qualquer maneira de um estímulo,
ouviu prontamente os comandantes militares, que além de alegarem as razões
mencionadas acima para justificar a conveniência da guerra do ponto de vista do
103
GRIMBERG, C. História Universal. 4- Das Origens de Roma à Formação do Império. Lisboa: Europa-
América, 1969, p. 74. 104
Ibid., p. 76. 105
GRANT, op. cit., p. 90. 106
PALMER, R. Rome and Carthage at peace. New York: F. Steiner, 1997, p. 25.
46
interesse do Estado, aludiram também aos grandes benefícios em termos de captura
de despojos de guerra, dos quais cada um e todos tirariam proveito.”107
Ao descrever a situação de ambas as cidades, Políbios revela que havia certo equilíbrio de
forças no início do embate:
"[...] naquela época os dois povos ainda estavam moralmente impolutos, eram
moderadamente afortunados e suas forças equilibravam-se, sendo maiores, portanto
as possibilidades de fazer uma apreciação melhor das qualidades peculiares a cada
um deles mediante a comparação de sua conduta nessa guerra do que em qualquer
das outras."108
Veremos a seguir, como a Historiografia Francesa abordou a questão da Primeira
Guerra Púnica. A arqueóloga Véronique Krings afirma que a disputa pelo controle do
Mediterrâneo ocidental é, em geral, a primeira das causas das Guerras Púnicas, ainda que as
duas potências tivessem mantido relações de cooperação e reciprocidade durante vários
séculos por meio de tratados. A causa da primeira guerra foi a ocupação de Messina pelos
mamertinos, um grupo social localizado ao sul da Península itálica. Ameaçados, os habitantes
de Messina receberam a ajuda dos cartagineses e depois, dos romanos. Em 264 a. C.
desembarcou na Sicília uma armada romana, que acabou aprisionando os cartagineses que lá
estavam. Este primeiro conflito terminou com a derrota de Cartago e a perda de parte do seu
território no Mediterrâneo, como as ilhas da Córsega e da Sardenha e as suas colônias na
Sicília.109
107
História, I – 10,11 108
Ibid., I – 13 109
KRINGS, op. cit., p. 244-245
47
Mapa 3: Mapa da região da Sicília no contexto da Primeira Guerra Púnica.
Fonte: http://www. xenohistorian.faithweb.com/europe/eu03a.html- Acesso em 30-04-2013.
De acordo com Serge Lancel foi a primeira vez na história do mundo mediterrânico
que um embate decisivo opôs duas cidades-estados igualmente prósperas: Roma, em posição
central naquela região, e Cartago, localizada marginalmente no norte da África, mas com a
vantagem de possuir colônias em ambas as margens da bacia mediterrânea.110
110
LANCEL, op. cit., p. 379
48
Mapa 4: Mapa com as alterações territoriais cartaginesas ao longo das Guerras Púnicas e a localização de
Messina e da Numídia. Fonte: http://usuarios.multimania.es – Acesso em 07-10-12
De acordo com Pierre Grimal, o exército romano alcançou rápidas vitórias na Sicília,
obtendo assim uma aliança com o tirano de Siracusa, Hierão II. Além disso, os romanos já
haviam derrotado os cartagineses na batalha naval de Mylae, em 260 a. C. Incentivados por
estes sucessos iniciais, os romanos decidiram transferir para a África o palco das batalhas
contra Cartago. Entretanto, após um começo favorável, os romanos foram derrotados naquela
região, sendo obrigados a retonar à Sicília. De acordo com o autor, essa derrota prolongou a
guerra e uma série de derrotas romanas devolveu aos cartagineses a supremacia no mar. A
partir desse momento os conflitos se concentraram na região de Palermo, onde o exército
cartaginês era liderado pelo general Amílcar Barca. Com a reconquista do domínio sobre o
mar, os cartagineses passaram a dirigir pequenas campanhas ao longo da costa da Península
Itálica. A situação do conflito parecia indefinida até que os romanos reorganizaram sua frota,
obtendo uma vitória decisiva sobre os cartagineses na batalha de Égatas, em 241 a. C.
Esgotada economicamente por uma guerra que já durava há vinte e três anos, Cartago não
insistiu e pediu a paz. Entre as condições estipuladas pelos romanos para o fim do conflito
estavam a retirada dos cartagineses da Sicília e o pagamento de uma indenização de guerra.
49
Os romanos rapidamente acrescentaram outra exigência, a saber: os cartagineses deveriam
abandonar suas posições nas ilhas da Córsega e na Sardenha111
.
O pesquisador Marcel Le Glay acrescenta que após serem obrigados a pagar a
indenização de guerra, os cartagineses viram-se sem recursos para pagar seus soldados
mercenários, que se revoltaram, colocando em risco a sobrevivência da cidade. Aproveitando-
se da situação, os romanos exigiram que os cartagineses abandonassem as ilhas da Córsega e
da Sardenha – o que fizeram prontamente.112
O tema da primeira guerra púnica também perpassou a Historiografia Anglo-
Americana. O historiador Michael Grant questiona sobre quem seria o responsável por este
conflito. Segundo ele, ambas as potências tiveram sua responsabilidade para o
desencadeamento da guerra. Os romanos haviam estendido seus territórios a tal ponto que
qualquer suposta ameaça, dirigida contra eles ou seus aliados, poderia servir de pretexto para
a guerra. Por outro lado, havia em Cartago uma oligarquia que não hesitava diante da
possibilidade de conquistar novos entrepostos comerciais. Qualquer que tenha sido o
responsável é certo que Roma e Cartago, por suas diferenças culturais irreconciliáveis, não
poderiam resolver suas divergências por meios diplomáticos.113
Carl Grimberg lembra que o embate entre Roma e Cartago pôs em disputa elementos
muitos mais relevantes que o estreito de Messina. Para o autor, o Ocidente observava o
choque entre duas grandes potências e que mais cedo ou mais tarde, uma delas deveria se
tornar hegemônica em toda a bacia do Mediterrâneo Ocidental.114
Para Chester G. Starr, um dos principais eventos da primeira guerra púnica foi a
revolta dos mercenários em Cartago. Insatisfeitos com a falta do pagamento prometido, os
soldados declararam guerra contra os cartagineses, recebendo apoio de parte da população que
habitava as colônias do norte da África.115
O historiador Ernle Bradford assinala que a partir do final da primeira guerra púnica
teve início outro grande conflito, que pôs em risco a sobrevivência de Cartago: a guerra
inexpiável, ou a guerra dos mercenários. Após assinar os tratados de paz com os romanos,
Amílcar Barca, general que havia liderado as tropas cartaginesas na Sicília, retornou para
Cartago, ao lado de seus soldados mercenários – algo em torno de vinte mil, que aguardavam
por seu pagamento. As despesas com a guerra e a indenização a que fora obrigada a pagar
111
GRIMAL, op. cit., 1984, p. 40. 112
LE GLAY, M.; LE BOHEC, Y.; VOISIN, J.-L. Histoire romaine. Paris: PUF, 1991, p. 84. 113
GRANT, op. cit., p. 93. 114
GRIMBERG, op. cit., p. 80. 115
STARR, op. cit., p. 24.
50
esvaziaram o erário público cartaginês. A demora em solucionar o problema do pagamento
dos mercenários suscitou a revolta. Duas tentativas de conter a revolta malograram e apenas
após três anos de combates, os cartagineses conseguiram finalmente derrotar os
mercenários.116
Michael Grant acrescenta que os romanos se aproveitaram da rebelião dos mercenários
para anexar a Córsega e a Sardenha, elevando ainda mais a indenização de guerra imposta aos
cartagineses. Para o autor, não havia justificativas convincentes para esta postura adotada
pelos romanos. Nem mesmo as questões econômicas estariam implicadas nessa ação, uma vez
que, embora o cereal da Sardenha fosse usado, não houve qualquer esforço para desenvolver
seus recursos minerais durante muitos séculos. Os romanos agiram, portanto, aproveitando-se
da oportunidade para proteger-se contra um possível reaparecimento do sentimento
beligerante do inimigo que acabara de derrotar. Esta medida teve pouco alcance e mais tarde
provocou a renovação de um espírito de revanchismo entre os cartagineses.117
Alguns anos mais tarde, Cartago e Roma voltariam a entrar em conflito. Desta vez a
guerra se desenvolveria em território romano. Políbios descreveu as causas deste segundo
embate:
[...] devemos ver como sua causa primeira a indignação de Amílcar,
cognominado Barca, o verdadeiro pai de Aníbal. Com o espírito em nada abatido
pela guerra da Sicília, sentindo que havia mantido o exército sob o seu comando em
Êrix combativo e resoluto até o fim, e que havia concordado com a paz premido
pelas circunstâncias após a derrota dos cartagineses na batalha naval, ele
permaneceu decidido e ficou na expectativa de uma oportunidade para atacar.118
O historiador romano Tito Lívio também teceu digressões acerca das causas da
segunda guerra púnica:
Nunca antes estados reuniram-se dotados de recursos mais amplos, nem a sua
própria força e poder nunca foram tão grandes. Eles não eram estranhos em relação
aos modos de combate uns dos outros, porque a Primeira Guerra Púnica os fizera
compreender. E assim, variáveis foram as fortunas da guerra e incertos eram os seus
resultados e aqueles que finalmente venceram foram os que estiveram mais perto da
ruína. A animosidade, também, com a qual eles lutaram era quase maior do que a
sua força: os romanos ficaram furiosos porque o vencido deve reconhecer realmente
a espada dos seus conquistadores; e os fenícios, porque acreditavam que o
conquistador os havia tratado com arrogância dominadora e com ganância. [...] A
perda da Sicília e da Sardenha era uma tortura contínua ao espírito orgulhoso de
Amílcar. Ele afirmou que tinham entregado a Sicília em desespero prematuro, e que
os romanos haviam indevidamente se apropriado da Sardenha, além de uma
indenização imposta sobre eles durante seus distúrbios na África.119
116
BRADFORD, op. cit., p. 26-27. 117
GRANT, op. cit., p. 98. 118
História, III – 9 119
História de Roma, 21 – 1
51
A historiografia francesa analisou os aspectos da Segunda Guerra Púnica. Para Pierre
Grimal, a guerra de Aníbal, como o conflito ficou conhecido entre os romanos, não foi grave
apenas em virtude da ameaça à existência de Roma, mas porque a própria cidade teve seu
pensamento e sua civilidade modificados após este embate. Para o autor, os romanos
iniciaram as hostilidades contra os cartagineses com o objetivo de proteger os interesses do
helenismo120
ocidental. Entretanto, terminou como inimiga dos reinos helênicos do Oriente.121
Os cartagineses, por sua vez, buscavam reorganizar sua economia após a perda de suas
ilhas estratégicas na bacia do Mediterrâneo Ocidental. De acordo com Claude Nicolet a busca
pela restauração do seu império levou os cartagineses, sob a liderança de Amílcar Barca, a
intensificar a conquista do território da península Ibérica a partir da cidade de Gades, em 237
a. C.122
O historiado grego Políbios descreveu os eventos ocorridos na Ibéria após a chegada
da aristocracia guerreira cartaginesa liderada pela família dos Bárcidas:
“Logo após o restabelecimento da situação anterior na Líbia, os cartagineses
despacharam Amílcar para o território da Ibéria, confiando-lhe forças adequadas à
missão. Levando consigo esse exército e seu filho Aníbal, cuja idade na época era de
oito anos, ele atravessou as colunas de Héracles e começou a submeter a Ibéria aos
cartagineses. Nesse território ele demorou-se aproximadamente doze anos, durante
os quais sujeitou numerosas tribos ao jugo dos cartagineses, em parte pela força das
armas e em parte pela diplomacia, e teve lá uma morte digna dos feitos praticados ao
longo de sua vida [...]. Os cartagineses confiaram então o comando do exército a
Asdrúbal, genro de Amílcar e almirante de sua frota. [...]. Com efeito, essa época
assinala o início da administração de Asdrúbal, sensata e pragmática; a fundação
pelo mesmo da cidade chamada Cartago por algumas pessoas e Nova Cartago por
outras, contribuiu sobremaneira para melhorar a posição dos cartagineses,
especialmente por sua localização muito vantajosa com vistas a ações tanto na Ibéria
quanto na Líbia. [...] Asdrúbal, após governar esse território por oito anos, foi
assassinado à noite por um certo celta em decorrência de ofensas de caráter privado.
[...] Os cartagineses escolheram Aníbal para ser o comandante-em-chefe na Ibéria,
apesar de sua pouca idade, tendo em vista a argúcia e coragem demonstrada por ele
em suas ações. [...] A partir da entrega do comando a Aníbal as relações entre os
cartagineses e os romanos passaram a caracterizar-se por suspeitas recíprocas e
atritos; os primeiros, desejosos de vingar-se dos reveses sofridos na Sicília, deram
prosseguimento aos seus planos hostis, enquanto os últimos, percebendo tais planos,
demonstravam profunda desconfiança. Era portanto evidente a todos os
observadores competentes que a guerra entre os dois lados não tardaria muito a ser
deflagrada.”123
120
SCHÜLER, A. Dicionário enciclopédico de Teologia. Canoas: ULBRA, 2002, p. 227. Termo criado no
século XIX pelo historiador alemão Johann Gustave Droysen (Gerschichte Alexanders des Grossen). Designa
todo o movimento de assimilação da cultura helênica por outras civilidades, desde as guerras de Alexandre
Magno até o advento do Cristianismo, época durante a qual a cultura grega se tornou o ideal da formação
artística e intelectual. Contudo, séculos antes de Alexandre já temos o helenismo como consequência da
colonização grega da região da Magna Grécia. 121
GRIMAL, op. cit., 1984, p. 41. 122
NICOLET, op. cit., p. 611. 123
História II, 1, 13, 36
52
Com sua chegada ao poder na Ibéria, Aníbal iniciou os preparativos para a guerra
contra Roma. De acordo com Claude Nicolet, após a morte de Asdrúbal, o general cartaginês,
que era considerado o “segundo em comando”, foi aclamado por seus soldados como seu
novo líder. Entretanto, seu primeiro gesto político foi o de solicitar sua investidura oficial ao
senado e à comunidade cívica de Cartago, tornando-se desta forma um strategos regularmente
nomeado pelas autoridades da cidade.124
A partir do reconhecimento oficial de sua liderança na Ibéria, Aníbal promoveu as
primeiras ações militares. De acordo com Pierre Grimal, em 219 a. C. o general cartaginês
atravessou o rio Jucar e atacou a cidade-estado de Sagunto, aliada de Roma. O senado romano
solicitou a Cartago que reparasse esta violação de um tratado assinado com Asdrúbal, no qual
se comprometiam a não atacar nenhum de seus aliados. Os cartagineses apoiaram as ações de
Aníbal, que continuou em marcha, à frente de um numeroso exército. A partir desta recusa de
Cartago, os romanos declaram-lhe a guerra.125
Para Marcel Le Glay, a segunda guerra púnica pode ser dividida em três fases
distintas, a saber: a primeira, de 218 a 210 a. C. a intervenção cartaginesa na península
itálica, na qual os cartagineses, que contavam com o apoio dos gauleses, conquistaram
algumas vitórias contra os romanos. A segunda fase, que atravessa o período de 210 a 206 a.
C., é caracterizada como a recuperação da Itália arrasada, na qual os romanos buscaram
reconquistar o apoio das cidades da região que haviam declarado apoio à Cartago. A terceira
fase, de 206 a 201 a. C., pode ser considerada como o período da ofensiva romana, no qual os
cartagineses perderam sua posição na Ibéria e foram definitivamente derrotados na batalha de
Zama, nas proximidades da muralha da cidade.126
As questões da Segunda Guerra Púnica também foram objeto da historiografia Anglo-
Americana. De acordo com Chester G. Starr, após a primeira guerra púnica, os cartagineses
buscaram restaurar seu poderio econômico a partir da conquista da Ibéria, garantindo o livre
acesso às minas de ouro e prata da região. A expansão cartaginesa na região provocou a
reação da cidade grega de Marselha que, vendo seus interesses comerciais ameaçados,
solicitou ajuda dos seus aliados romanos. Desta forma, em 226 a. C., os romanos e os
cartagineses assinaram um tratado limitando a hegemonia de Cartago à região ao sul do rio
Ebro. De acordo com o autor, a historiografia antiga considera o ataque de Aníbal à cidade de
Sagunto, aliada dos romanos e localizada na margem oposta do rio Ebro, como a causa da
124
NICOLET, op. cit., p. 614-615. 125
GRIMAL, op. cit., 1984, p. 42. 126
LEGLAY, op. cit., p. 87-90.
53
segunda guerra púnica. Para o autor, no entanto, foi a constante suspeita romana em relação à
Cartago o fator decisivo para a eclosão do conflito.127
Mapa 5: Mapa da Península Ibérica durante a ocupação cartaginesa.
Fonte: http:// www.allworldwars.com/Hannibal-by-Dodge-Volume-I.html - Acesso em 30-04-2013
Para Michael Grant, o motivo pelo qual os romanos declararam guerra aos
cartagineses foi exatamente a desconfiança que sentiam em relação a Aníbal, a quem
suspeitavam estar planejando uma campanha militar do outro lado das margens do rio Ebro.
De acordo com o autor, após conquistar a cidade de Sagunto, Aníbal transferiu o seu exército
para o outro lado do rio Ródano e, no Outono de 218 a. C., atravessou os Alpes. O general
cartaginês iniciou sua marcha ao lado de aproximadamente quarenta mil homens e trinta e
sete elefantes, chegando à planície do vale do Pó, no entanto, com um numero total de vinte e
seis mil soldados. Após dois meses e algumas vitórias contra as legiões romanas, o exército
cartaginês já havia dominado toda a região norte da Península Itálica. Um ano mais tarde,
outra batalha decisiva na região do lago Trasimeno com vitória de Cartago, abriu para Aníbal
a estrada que levava a Roma. Entretanto, o general púnico não se valeu desta oportunidade.
Para o autor, a destruição total do poderio romano não parecia ser o principal interesse dos
cartagineses, uma vez que tal situação abriria espaço para a ocupação daquele território por
outras potências orientais. Além disso, faltava ao exército de Cartago um equipamento para
127
STARR, op. cit., p. 25-26.
54
sitiar a cidade, cujas muralhas não poderiam ser transpostas sem uma base de abastecimento
nas proximidades. Esta base nunca existiu, porque nenhuma cidade-estado da região central
da Península Itálica aliou-se ao exército cartaginês.128
O historiador A. H. McDonald, acrescenta que o destacamento militar cartaginês
conseguiu vencer os exércitos romanos em diversas batalhas, mas da mesma forma que o
epirota Pirro, o general cartaginês Aníbal não conseguiu desfazer a organização política
romana na Itália Central.129
Quais foram os principais erros estratégicos de Aníbal? Para Michael P. Fronda, o
ponto de partida para qualquer discussão sobre esta questão deve residir sobre a vantagem
romana em relação à sua disponibilidade de mão de obra. É geralmente aceite que estas
reservas de mão de obra e a capacidade romana de organizar exércitos modelou o curso da
Segunda Guerra Púnica, tornando este, o fator crítico na determinação do resultado do
embate. Na verdade, os romanos possuíam uma vantagem significativa em recursos humanos
em relação às forças sob o comando de Aníbal desde o início da guerra e manteve essa
vantagem durante todo o curso do conflito. Em resumo, a disparidade relativa ao número de
tropas disponíveis significava que Aníbal tinha uma margem de erro muito menor do que os
romanos. No entanto, também devemos lembrar que a estratégia adotada por Aníbal na Itália
teve o potencial para neutralizar, pelo menos parcialmente, a vantagem da mão de obra
romana. Aníbal pode ter planejado que os aliados rebeldes, insatisfeitos com o domínio
romano, iriam fornecer reforços para seu próprio exército, uma vez que ele havia adquirido
rapidamente milhares de soldados gauleses. Ainda que os aliados descontentes não
fornecessem tropas para o seu exército, as cidades-estados rebeldes teriam privado os
romanos de potenciais soldados para as suas legiões. A estratégia de Aníbal pareceu
funcionar, pelo menos nos primeiros anos da guerra. De 218 a 216 a. C. Aníbal era o líder
inconteste da Itália, tendo obtido uma série de vitórias sobre os exércitos romanos e, depois de
Canas130
, inspirando uma série de aliados italianos de Roma à deserção. Com efeito, todos ou
a maioria das comunidades na Campânia, como Apúlia, Bruttium, Samnium, Lucania, Magna
Grécia e a península de Sallentine havia se revoltado em algum momento durante a guerra, e
128
GRANT, op. cit., p. 110-111. 129
MACDONALD, A. H. Roma Pré-Revolucionária. In: BALSDON J. P. V. D. (org.). O Mundo Romano. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1971, p. 60. 130
GRANT, op. cit., p. 112. A batalha de Canas foi a maior derrota sofrida pelo exército romano em sua história,
e constituiu-se de um exemplo sem igual de uma força menor envolver uma força maior pelos dois lados.
Estima-se que o exército cartaginês contava com um numero não superior a 40 mil soldados, enquanto as legiões
romanas somavam pouco mais de 90 mil homens. O saldo da batalha foi a perda de quase dois mil soldados do
exército de Aníbal e a morte de 80 mil romanos. Poucos latinos conseguiram escapar e os cartagineses fizeram
cerca de 10 mil prisioneiros.
55
muitos já haviam desertado por volta de 215 a. C. Contudo, depois de 216 a. C., embora ainda
fosse capaz de derrotar os exércitos romanos, a guerra entrou num impasse, e por volta de 211
a. C. a conjuntura do conflito começou a se voltar contra Aníbal. O general cartaginês nunca
convocou os romanos à mesa de negociações, e nem tampouco provocou uma desintegração
total do acordo de alianças entre Roma e as cidades- estados a ela subordinadas na Itália.131
Mapa 6: Mapa da região da Câmpania.
Fonte: http://larrythewineguy.net – Acesso em 30-04-2013
Ainda de acordo com Michael P. Fronda é preciso compreender por que as cidades
aliadas à Roma não se revoltaram com maior intensidade após o período crítico de Canas. A
resposta militar e diplomática de Roma depois de Canas foi a principal responsável pela
derrota de Aníbal. Para o autor, há certo consenso entre os pesquisadores de que após a
derrota inicial, Roma adotou estratégias que se basearam na força dos seus recursos humanos,
limitando as oportunidades de Aníbal, que não conseguiu tirar proveito de sua superioridade
tática aparente. Por outro lado, há aqueles que creditam que a causa da vitória romana esteve
apoiada nos seus comandantes e magistrados, ou nas suas estruturas sociais que lhes
permitiram suportar a guerra por quase duas décadas.132
De acordo com Michael Grant, a conquista romana da Península Ibérica nos anos que
se seguiram aos combates foi outro fator decisivo para a derrota de Cartago, uma vez que os
recursos que abasteciam as tropas de Aníbal eram provenientes desta região. Após a conquista
131
FRONDA, M. P. Between Rome and Carthage: southern Italy during second punic war. Cambridge:
University Press, 2010, p. 34-37. 132
Ibid., p. 40.
56
da Ibéria, os romanos mudaram o espaço das batalhas, desembarcando suas tropas na África,
objetivando atacar Cartago diretamente. A proximidade das legiões romanas das muralhas da
cidade levou os cartagineses a iniciarem um processo de paz com os latinos. Entretanto,
Aníbal convenceu as autoridades da sua cidade de que ainda era possível vencer a guerra e,
abandonando a Itália, se dirigiu à Cartago. Os romanos avançaram com suas tropas para o
interior da África, com o objetivo de cortar as ligações da capital inimiga com as suas fontes
de abastecimento agrícola. No ano de 202 a. C., travou-se a batalha final da guerra. As forças
militares de Aníbal, já debilitadas em virtude do longo período de batalha na Itália, foram
derrotadas. Cartago, que já havia perdido suas colônias da bacia ocidental do Mediterrâneo,
agora perdera suas minas de ouro e prata da Ibéria, deixando definitivamente de ser uma
potência. A partir de então os romanos completaram uma etapa decisiva no seu processo de
conquista e dominação do Ocidente. Para o autor, a Segunda Guerra Púnica foi, para o
Ocidente, à exceção dos conflitos do século XX, o mais importante conflito de todos os
tempos.133
Carl Grimberg acrescenta que as condições de paz impostas aos cartagineses foram
bastante rigorosas. Os fenícios foram obrigados a pagar uma indenização anual de 200
talentos, não poderiam declarar a guerra contra nenhuma cidade sem o consentimento de
Roma e deveriam ainda entregar seus elefantes e seus navios de guerra. Na prática, estas
condições colocavam Cartago sob o domínio político e econômico de Roma.134
Para Michael
Grant, o principal êxito de Cartago na segunda guerra púnica foi o de confirmar e aumentar a
confiança e o poder de Roma.135
Entretanto, o desfecho das relações entre romanos e cartagineses ainda estava por vir.
Em 143 a. C. foi declarada a terceira e última guerra entre as cidades-estados. Os romanos
buscavam um pretexto para esse conflito, como atesta Políbios:
“Os romanos já tinham tomado havia muito tempo a decisão de agir dessa
maneira, mas estavam aguardando uma oportunidade conveniente e um pretexto
honroso aos olhos dos estrangeiros. Os romanos davam com muita razão a maior
importância a esse assunto [...].” E acrescenta: “em verdade, os cartagineses agora
não haviam sido culpados de qualquer ofensa irremediável contra Roma, porém os
romanos trataram-nos com uma severidade irremediável, embora os primeiros
tivessem aceitado a totalidade das suas condições e concordado em obedecer a todas
as suas ordens.”136
133
GRANT, op. cit., p. 115-117. 134
GRIMBERG, op. cit., p. 114. 135
GRANT, op. cit., p. 120. 136
História, XXXVI – 9
57
As análises da Terceira Guerra Púnica também podem ser encontradas no debate da
Historiografia Anglo-Americana. Para Chester G. Starr, a suspeita romana da força de
Cartago após a Segunda Guerra Púnica era expressa nos discursos ao senado proferidos por
Catão, o velho, que, qualquer que fosse o assunto em pauta, sempre encerrava sua fala com a
expressão “Cartago deve ser destruída!”. A terceira guerra púnica, travada entre 149 e 146 a.
C. foi deliberadamente provocada pelos romanos, encorajados por uma disputa entre os
cartagineses e seus vizinhos no norte da África. Cartago foi destruída em 146 a. C., após um
cerco de três anos.137
De acordo com Dexter Hoyos, Cartago recuperou sua prosperidade rapidamente após
a Segunda Guerra Púnica, especialmente depois que Aníbal, eleito Sufeta em 196 a. C.,
realizou reformas políticas, financeiras e econômicas. Entretanto, Masinissa, rei da Numídia,
cidade vizinha a Cartago, buscou anexar áreas sob o domínio cartaginês naquela região,
alegando que tais terras eram sua propriedade ancestral. Entre os anos de 160 e 150 a. C.,
quando Masinissa tomou grandes regiões ao lado de suas fronteiras, Roma decidiu em seu
favor: a sua antipatia pelo reavivamento de Cartago estava crescendo. Os cartagineses
declararam a guerra contra a Numídia, montando um grande exército em 151 a. C. Contudo,
seus esforços não foram suficientes, sendo forçada a se render. O pior para Cartago foi o fato
de ter rompido o tratado de paz de 201 a. C., ratificado com os romanos, que a impedia de
declarar a guerra contra quem qualquer cidade sem a sua autorização. Após os debates em
Roma, nos quais Catão, o velho, argumentou pela destruição Cartago, os romanos declararam
a guerra. Para o autor, Cartago não intimidava Roma, mas os romanos podem ter-se
convencido de que os cartagineses pudessem tornar-se uma ameaça no futuro. A busca pela
riqueza de Cartago, que levou milhares de voluntários para a guerra, provavelmente também
influenciou a elite romana, embora essa não fosse a única razão para o conflito. A partir do
desembarque das tropas romanas nas proximidades de suas muralhas, os cartagineses foram
obrigados a oferecer submissão total, entregando todas as suas armas. Contudo, os romanos os
ordenaram a deixar sua cidade, obrigando-os a buscar reassentamento no interior da África.
Entretanto, os cartagineses se recusaram a partir e iniciaram uma grande resistência. Os
romanos se encontraram em um cerco longo e prolongado que durante dois anos não produziu
nenhum progresso. Entretanto os romanos destruíram as fontes de abastecimento da cidade,
que foi acometida pela fome generalizada. Cerca de cinquenta mil homens e mulheres se
renderam após três anos de cerco. Cartago fora incendiada e teve seus prédios públicos e
137
STARR, op. cit., p. 39.
58
demais construções destruídos. Os territórios restantes de Cartago foram anexados pelos
romanos como província da África.138
Mapa 7: Mapa do Mediterrâneo no contexto da terceira guerra púnica.
Fonte: http://www.penfield.edu – Acesso em 30-04-2013
O Historiador Nigel Bagnall destaca que a causa da Terceira Guerra Púnica pode ser
atribuída à perda da influência de Cipião Africano, que foi vítima de uma política de
enfrentamento, sendo substituído por Catão, o velho, com sua defesa de um confronto contra
Cartago. Para o autor, ao observarmos os eventos das três guerras púnicas, podemos notar a
questão do ajuste das estruturas políticas com as necessidades militares e, em seguida, a
realização da guerra com um objetivo estratégico proposital.139
Vejamos a seguir como a Historiografia Francesa tratou os últimos anos da República
cartaginesa. De acordo com Ernest Mercier, Masinissa, príncipe da Numída, acreditava que
poderia satisfazer aos interesses dos romanos, intensificando seus ataques aos cartagineses.
Cartago, por sua vez, renovava suas queixas à Roma, agindo em conformidade com os
tratados ratificados por ocasião do fim da segunda guerra púnica. Na busca por uma solução
dos romanos para este impasse, os cartagineses chegaram a enviar navios e trigo para ajudar
os seus inimigos em suas guerras na Ásia e na Macedônia. Por estas ações, os cartagineses
138
HOYOS, D. Punic Wars: 262-241, 218-201, 149-146 BCE. [Online] Disponível na Internet
via:http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781444338232.wbeow506/pdf, p. 9-10. - Acesso em 23-03-
2013. 139
BAGNALL, N. The Punic Wars: 264-146 B.C. Oxford: Osprey Publications, 2002, p. 84.
59
haviam obtido apenas recompensas insignificantes. Masinissa, com o mesmo objetivo de
demonstrar sua fidelidade, também enviava ajuda aos romanos quando necessário, seja em
soldados, cavalos, trigo e até mesmo em elefantes. Aos poucos, a Numídia submeteu à sua
autoridade muitas tribos nativas estabelecidas no norte da África, restringindo cada vez mais o
território cartaginês.140
Ainda de acordo com Ernest Mercier, a fragilidade cartaginesa neste período residia
em suas disputas políticas internas. Havia em Cartago três correntes políticas que disputavam
o poder: a aristocracia, aliada de Roma, que estava sempre disposta a fazer o que fosse
necessário para manter a paz; os herdeiros e aliados da família dos Bárcidas, que buscavam
preservar as tradições e a independência da cidade; e, finalmente, os aliados de Masinissa,
muito dispostos a abrir as portas da cidade ao príncipe da Numídia. Apesar destas desavenças,
a experiência comercial dos fenícios devolveu à cidade alguma prosperidade material.
Entretanto, de acordo com o autor, a última espoliação de Masinissa levou os cartagineses
mais uma vez a Roma, em sua busca em obter justiça. Novos comissários romanos foram
enviados para a África, e entre eles estava Marcos Catão, veterano das guerras contra Aníbal.
Catão, ao observar o crescente progresso comercial de Cartago, incentivou a manutenção do
ataque de Masinissa àquela cidade. Ao perceber a reação militar de Cartago contra a Numídia,
Catão fez chegar a notícia à Roma, que obtinha, dessa maneira, o pretexto necessário para
iniciar a campanha contra os fenícios.141
Após dois anos de cerco, Cipião Emiliano procurou asfixiar a cidade cartaginesa. De
acordo com Gilbert e Collete Charles - Picard, a primeira medida romana foi barrar
hermeticamente o istmo da baía de Cartago com uma vasta área de trincheiras. Os romanos
utilizaram uma grande corda para fechar a entrada do porto, onde os bloqueadores eram
capazes de deslizar através dos ventos favoráveis. Os cartagineses abriram um novo porto,
que ligava diretamente o porto naval ao mar, e enviaram uma frota improvisada que tentou,
sem sucesso, destruir a barreira romana. Cipião, no entanto, conseguiu ganhar uma posição
nas proximidades da necrópole cartaginesa, de onde comandou a entrada das tropas pelo
porto. Na primavera de 146 a. C., Cipião reuniu todas as suas forças para o assalto decisivo.
Antes de iniciar o ataque, ele solenemente, pronunciou as tradicionais fórmulas ritualísticas
que estimulavam os deuses protetores da cidade a protegerem-no e a libertarem os poderes do
mundo dos mortos. Os romanos deixaram a fortificação que haviam construído na entrada da
140
MERCIER, E. Histoire de L’Afrique Septentrionale (Berbérie) depuis les temps les plus reculés jusqu’à
la conquête française. Vol. 1. Paris: Ernest Leroux, 2007, p. 38. 141
Ibid., p. 38-47.
60
muralha, forçando a área do porto de guerra. Os legionários invadiram a área central da
cidade, saqueando o templo de Apolo e o seu tabernáculo de ouro. Em seguida, eles lançaram
seu ataque ao interior da cidade, através de ruas estreitas, ladeadas por edifícios de até seis
andares, queimando tudo o que encontravam pela frente. Assim terminava a existência de
Cartago, em conflito que combinava a piedade e o horror.142
O historiador grego Políbios descreveu a reação do general romano Emiliano Cipião
ante a cidade cartaginesa em chamas:
“Voltando-se para mim e segurando-me pela mão Cipião me disse: ‘este é
um belo momento, Políbios, mas tenho o pressentimento funesto de que algum dia a
mesma sentença será pronunciada contra a minha pátria’. [...] Segundo consta,
Cipião, vendo a cidade completamente arrasada e nos últimos estertores da
destruição total, deixou caírem lágrimas e chorou à vista de todos pelo infortúnio do
inimigo.”143
Para os arqueólogos Gilbert e Collete Charles-Picard os últimos cinquenta anos de
Cartago foram de intensa agonia. Não dispondo de capacidade para se reerguer por si mesma,
poderia ter se entregado à Masinissa, tornando-se a capital de um vasto reino africano capaz
de rivalizar com Roma, que talvez por prever este cenário, preferiu destruí-la. O território
cartaginês sobreviveu como uma província onde a civilidade púnica esteve sob a
administração indiferente da aristocracia romana. O governo imperial romano, que substituiu
a República, fez os herdeiros dos cartagineses participarem do desenvolvimento da África,
mantendo seu idioma e suas práticas religiosas, até as transformações que iriam se abater
sobre o Ocidente nos séculos IV e V da nossa era.144
Segundo Pierre Grimal, os despojos de Cartago fizeram de Roma a grande potência
econômica do Mediterrâneo. Todas as rotas comerciais daquela região caíram sob seu
controle. Além disso, os romanos passaram a controlar todas as minas de prata e ouro da
Península Ibérica.145
. Ainda de acordo com o autor, os romanos saíram das guerras contra
Cartago fortalecidos e com um prestígio bastante reconhecido no mundo mediterrânico. Não
iria tardar até que voltassem seus olhos para o Oriente em semelhante impulso por conquistas.
A expansão, iniciada contra os cartagineses, provocou transformações na política interna de
Roma, conduzindo ao fim da República e do regime oligárquico e inaugurando o
principado.146
142
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. Vie et mort de Carthage. Paris: Hachette, 1970, p. 294-
295. 143
História XXXVIII, 21-22 144
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. Op. cit., 1965, p. 21. 145
GRIMAL, op. cit., 2005, p. 77. 146
Id, op. cit., 1984, p. 44.
61
Finalmente, como vimos as informações oriundas da documentação textual de que
dispomos foram descritas por romanos e gregos, cuja rivalidade sempre esteve latente contra
os cartagineses. Desta forma, a memória de Cartago foi sendo construída a partir do olhar do
outro, estrangeiro e rival e estas digressões acabaram incorporadas pela historiografia
contemporânea. Nesse sentido, a escrita de uma História de Cartago passa necessariamente
pelo diálogo da História com a Arqueologia. Falamos de uma História de Cartago que
destaque aspectos de sua sociedade, suas relações sociais, seus usos e seus hábitos cotidianos.
Tratar-se-ia de uma análise voltada para a compreensão do pensamento religioso cartaginês,
em sua interação com o sobrenatural a partir do uso corrente da atividade de sacrifícios
humanos. O debate acerca da existência ou não de tais atividades entre os cartagineses esteve
no centro da produção historiográfica desta civilidade a partir do século XIX. No capítulo a
seguir, veremos as principais questões deste debate, analisando a atividade ritual do sacrifício
de sangue à luz da teoria antropológica.
62
2: PRÁTICAS SACRIFICIAIS: UMA ANÁLISE COMPARADA DA TEORIA DO
SACRIFÍCIO E SUAS APLICAÇÕES AO RITUAL CARTAGINÊS.
Neste capítulo apontaremos as potencialidades do diálogo entre a História e a
Antropologia, analisando seu percurso histórico, seus temas e seus problemas, destacando a
questão em torno da definição do conceito de ritual e suas especificidades. Outra questão
abordada neste capítulo é a que trata do debate realizado ao longo do século XX acerca da
existência ou não da prática de sacrifícios humanos em Cartago e como a teoria antropológica
pode nos ajudar a resolver este dilema. Procuramos analisar comparativamente a teoria
sacrificial do antropólogo René Girard que fundamenta suas análises na relação entre a
violência e o sagrado, onde o ritual visa reestabelecer a estabilidade social e a teoria sacrificial
dos também antropólogos Marcel Mauss e Henri Hubert que partem do princípio teológico da
consagração aos deuses a partir de um estado de alteração da vítima sacrificial realizado após
o ritual. Ao final deste capítulo esperamos responder ao seguinte questionamento: a partir das
evidências arqueológicas e da documentação textual é possível falar em prática de sacrifício
humano em Cartago?
2.1: Do diálogo entre a História e a Antropologia:
Uma das características da Antropologia é o seu empenho constante no uso do método
comparativo. De acordo com E. Hoebel e Everett Frost, para estabelecer as normas gerais do
comportamento humano, os antropólogos culturais analisam, de forma comparada, as mais
diversas sociedades do mundo, no presente e no passado. Os autores destacam ainda a questão
da relação entre a Antropologia e a História, sobretudo a partir de sua dimensão temporal
como unidade básica da experiência humana. Entretanto, este reconhecimento não é unânime.
Os arqueólogos são os mais propensos a defender a relevância da História para a
Antropologia, enquanto os antropólogos sociais destacam que basta a análise comparada das
sociedades existentes hoje, uma vez que as informações arqueológicas nem sempre trazem os
detalhes capazes de satisfazer as necessidades da atividade científica. Entretanto, os autores
apontam o que seria para eles uma saída possível, ou um ponto de vista equilibrado sobre a
relação da Antropologia com a História, afirmando que a comparação entre sociedades
diretamente observáveis não coloca o estudo da humanidade numa base científica mais firme
em termos de resultados verificáveis e válidos. Porém, também concordam que é
cientificamente importante estudar os processos do crescimento e das mudanças das culturas.
63
A cultura e a sociedade não são fatores momentâneos, mas saíram do passado, existem no
presente e continuam no futuro. Podemos dizer que são o produto do que foram sob a ação de
condições e influências que encontram no momento. Os autores concluem, afirmando que
nem o presente, nem o futuro poderão ser totalmente compreendidos sem o estudo, ainda que
impreciso, do passado.147
Os pesquisadores Don Kalb e Herman Tak destacam a chamada “virada cultural”
como um marco decisivo no encontro entre a História e a Antropologia. De acordo com os
autores, esta “virada cultural” é um movimento multifacetado que tem influenciado as
universidades ocidentais no que tange aos métodos do conhecimento social, desde os meados
da década de 1980. Foi neste período em que houve uma maior aproximação entre a História
e a Antropologia. Muitos antropólogos se voltaram para a História em busca de novos estudos
analíticos que pudessem ajudá-los a superar os modelos estáticos de comunidades produzidos
pelo trabalho de campo e pela descrição cultural. Por outro lado, muitos historiadores
passaram a apoiar suas pesquisas sobre as interpretações culturais dos antropólogos-
historiadores.148
A pesquisadora Lynn Hunt questiona o programa desta Nova História Cultural que
emerge a partir da década de 1980, advertindo contra o desenvolvimento deste campo do
conhecimento histórico como delimitação de temas de pesquisa. Para a autora, a História
Cultural definida apenas por categorias temáticas poderia engendrar uma procura por
diferentes práticas culturais a serem analisadas. Lynn Hunt acrescenta ainda que, na
atualidade, o modelo da Antropologia é o padrão principal das abordagens da História
Cultural, através de estudos sobre os rituais, os festivais e os ritos de passagem. Hoje, o
objetivo principal da História Cultural, influenciada pela Antropologia, é o de decifrar e
interpretar os significados das mais variadas práticas culturais.149
Desta aproximação entre a História e a Antropologia, emergiram duas questões de
ordem teórico-metodológicas, a saber: a Antropologia Histórica de um lado, e a História
Antropológica, de outro. De acordo com Don Kalb e Herman Tak a História Antropológica
tende a estudar as épocas históricas como blocos estáticos e temporais, carregados de
significados, exatamente como os antropólogos fizeram ao eleger a aldeia como o seu maior
universo semiótico. A Antropologia Histórica, por outro lado, parecia estar em busca das
147
HOEBEL, E. A.; FROST, E. L. Antropologia cultural e social. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 5-12. 148
KALB, D.; TAK, H. Critical Junction – Anthropology and History beyond the cultural turn. New York:
Bergham Books, 2005, p. 1-2. 149
HUNT, L. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 11-16.
64
práticas evolutivas – incluindo as práticas discursivas – no interior das redes de poder e
contrapoder, no passado, no presente e no futuro.150
O historiador Peter Burke também analisou a historicidade das relações entre a
História e a Antropologia. Para o autor, a “virada antropológica” foi um dos fatores mais
característicos da prática da História Cultural entre as décadas de 1960 e 1990. Entretanto,
este novo olhar, voltado para a Antropologia, influenciou outros campos do conhecimento
histórico, como a História Política e a História Econômica. Essa mudança significou também
uma ampliação do uso do termo “cultura” 151
e contribuiu para a construção de uma
abordagem que viria a ser conhecida como “Antropologia Histórica”, que na visão do autor
deveria ser chamada de “História Antropológica”. Para Peter Burke não há uma diferença
substancial entre as duas expressões. Umas das características desta abordagem, a utilização
do termo cultura, antes empregado para se referir à “alta cultura”, passou a incluir o cotidiano,
os valores, os costumes e as maneiras de viver das mais diversas sociedades, aproximado dos
historiadores uma visão que era, antes de tudo, antropológica. Assim, os historiadores
passaram a recorrer à teoria antropológica para explicar seus objetos e entre os antropólogos
mais estudados estão Macel Mauss, sobre o fenômeno da dádiva, Edward Evans-Pritchard,
sobre bruxaria, Mary Douglas, sobre pureza, e Clifford Geertz, sobre Bali.152
O pesquisador José d’Assunção Barros acrescenta que a História Antropológica
privilegia problemas relativos à “alteridade”, voltando seu interesse para as populações de
tradição oral, para comportamentos não usuais, para os grupos familiares e para as relações de
parentesco. Para o autor, de certo modo, o que funda a História Antropológica como um
campo novo, mais específico que a História Cultural, é a utilização da Antropologia como
modelo, mais do que os objetos antropológicos propriamente ditos. Os historiadores
descobriram nas últimas décadas do século XX a possibilidade de uso de conceitos e
procedimentos oriundos da vertente antropológica.153
O historiador André Burguière vincula à escola dos Annales o renascimento de uma
História Antropológica que, para ele, remonta ao século XVIII. De acordo com o autor, neste
período, à margem do Iluminismo, viajantes, médicos eruditos ou administradores locais
voltaram seu olhar etnológico sobre diversas sociedades. Este modelo, considerado um
150
KALB; TAK, op. cit., p. 4. 151
BURKE, P. O que é história cultural ? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 52. Peter Burke faz uso da
definição de cultura desenvolvida pelo antropólogo Clifford Geertz que define o conceito como “um padrão
historicamente transmitido, de significados incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas,
expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atitudes acerca da vida”. 152
Ibid., p. 44-48. 153
BARROS, J. D’A. O campo Histórico. Rio de Janeiro: CELA, 2002, p. 90.
65
subproduto das Luzes, sobreviveu a partir de obras que se intitulavam “História Natural”, cujo
objeto se concentrava em províncias ou unidades nacionais, onde, ao definir a identidade de
um grupo social, buscava-se reconstruir a história dos seus costumes e de seus hábitos de
vida. Entretanto, esta perspectiva tornou-se ultrapassada, ainda que não tenha deixado de
existir completamente, a partir do momento em que os Estados-Nações recém-construídos
tomaram para si a tarefa de construir a memória coletiva, com o objetivo de legitimar sua
dominação e sua maneira de organizar a sociedade. Esta nova abordagem aconteceu sob a
égide do Positivismo que não é completamente independente da pressão política que exerce
sobre o saber histórico. Para atender aos critérios de cientificidade que se atribuiu, a pesquisa
histórica confundiu a memória social com a memória do Estado.154
A escola dos Annales irá constituir seu discurso contra essa concepção. De acordo com
Andre Burguière, os fundadores desta escola irão conclamar os historiadores a uma
abordagem mais profunda de cada sociedade. Neste sentido, se faz necessário rever até
mesmo o recurso à documentação, como propõem os fundadores da Escola dos Annales ao
defender o uso das tabelas de preços ou dos pagamentos de dízimos para estudar as variações
da produção agrícola, ou o uso dos arquivos dos cartórios para estabelecer a variedade das
fortunas e a transformação dos patrimônios familiares.155
Contudo, na medida em que registram as informações seriais, os historiadores são
convidados a reconstruir os conjuntos a partir de uma análise estatística. Para André
Burguière, este procedimento pode levar a uma reflexão antropológica. Como o antropólogo
que utiliza a distância entre sua cultura e a de seu objeto de observação para se afastar de suas
próprias categorias e reconstituir o sistema social que analisa, o historiador pode explorar a
característica fragmentada, não construída, destas fontes, para encontrar, além da realidade
revelada, a lógica que explica determinada conjuntura ou determinada transformação. O
mesmo procedimento pode ser aplicado às fontes qualitativas ou literárias, na medida em que
leva o historiador a interessar-se sistematicamente pelo que os discursos dominantes de uma
sociedade dissimulam ou desprezam.156
A partir deste quadro geral é possível definir a Antropologia Histórica como a história
dos hábitos, a saber: físicos, gestuais, alimentares, afetivos, religiosos, mentais. Entretanto,
154
BURGUIÈRE, A. A antropologia Histórica. In: LE GOFF, J.; CHARTIER, R.; REVEL, J. (Orgs.) A História
Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 171. 155
Ibid., p. 174. 156
Ibid., p. 175.
66
para André Burguière, a Antropologia Histórica estaria muito mais vinculada a um contexto
da produção do conhecimento histórico do que a um campo específico propriamente dito.157
O historiador Marcel Detienne, destaca a importância do diálogo entre a História e a
Antropologia no emprego do método comparativo. De acordo com o autor, a Antropologia,
que surge em meados do século XIX, nasce comparativa, buscando comparar entre si as
nações que emergiam neste período, a partir da análise de seus costumes e símbolos. Era um
campo do conhecimento que tinha por objetivo comparar as comunidades cívicas, os hábitos e
a mitologia. Os primeiros estudos antropológicos surgem a partir da observação das
sociedades da Antiguidade Clássica em comparação com as civilidades nativas do continente
americano. A História parecia anunciar, após o seu surgimento, um tipo de conhecimento
comum aos historiadores e aos antropólogos, que buscavam classificar e arquivar as novas
culturas em relação às antigas. Entretanto, essa comparação, que classificava as culturas numa
escala da mais “primitiva” às mais “evoluídas”, tomou os moldes de uma comparação pautada
em valores. O comparativismo experimental dos primeiros antropólogos cedeu à pressão dos
valores ocidentais que buscavam a transmissão, em linha direta, da universalidade grega, com
o predomínio da razão, da ciência e do seu aspecto incomparável. Rapidamente as demais
sociedades antigas foram marginalizadas. Logo, as sociedades antigas do mundo Greco-
romano foram interditadas ao comparativismo.158
Neste sentido, se por um lado a Antropologia descobria nas civilidades clássicas um
campo de estudo no qual o antigo e o novo se combinavam, a História, por outro, via-se
impedida de comparar as sociedades antigas com as da América ou com outras quaisquer.
Para Marcel Detienne, um dos resultados advindos deste processo foi a aparente separação
entre a História, ciência que em sua origem privilegiou os estudos nacionais, e a
Antropologia, que sempre foi comparativa. Este cenário só iria se modificar a partir da década
de 1960, quando um grupo de antropólogos, oriundos da Filosofia, verificou que certos
objetos de estudo, como a guerra, a caça e as relações com a terra, integravam seus interesses
comuns e que, portanto, era possível caminharem juntos. Abria-se um espaço para um campo
de experimentação comparada entre duas áreas das ciências humanas mais preocupadas com
os objetos em comum do que com os elementos que pudessem afastá-las. Estas mudanças
afetariam todos os pesquisadores do social na década de 1960, período a partir do qual os
historiadores admitem que, ao se interessarem pelo cotidiano e pelos hábitos das sociedades
no tempo, eles contribuem para a ampliação do conhecimento sobre o homem da mesma
157
BURGUIÈRE, op. Cit., p. 178. 158
DETIENNE, op. cit., p. 22-25.
67
maneira que os antropólogos que buscam territórios não totalmente estudados, se
questionando sobre as mudanças e a historicidade. Os historiadores redescobriram, de uma
maneira diferente, um domínio que outros pesquisadores atentos não tinham deixado de
estudar: o dos usos e costumes com seus contextos.159
A nossa pesquisa se insere no campo da História Antropológica por basear-se na
análise das práticas de sacrifícios humanos que se encontram presentes na sociedade
cartaginesa. A seguir veremos como a Antropologia definiu o conceito de ritual, destacando
sua raiz etimológica e suas implicações sociais. Essa definição torna-se relevante, uma vez
que as práticas sacrificiais se inserem nesta perspectiva ligada ao campo do religioso.
2.2: Do Conceito de Ritual:
Uma vez definidas as características da História Antropológica, passaremos a análise
do campo semântico do termo ritual e suas implicações teóricas. Veremos a seguir as
definições presentes nas obras de Marcel Maus & Henri Hubert, René Girard, Jean Pierre
Vernant, Martine Segalen e Jean Maisonneuve.
O antropólogo Jean Maisonneuve revela que o termo rito define práticas que visam
prescrever ou interditar ações, associadas a crenças religiosas, tendo como constituinte
determinadas cerimônias e festividades, a partir da oposição entre o sagrado e o profano, entre
o puro e o impuro. Em todas as circunstâncias, os ritos preceituam determinados
comportamentos relacionados a situações e normas específicas, onde a repetição é uma das
suas principais características, mas cuja função quase nunca é evidente.160
O autor analisa
ainda outras noções adjacentes ao termo, a saber: costume, código, cerimônia e símbolo.
O rito, em geral, se relaciona a determinados usos ou padrões de conduta, que são
cobertos de um caráter ligado à rotina e ao estereótipo. Entretanto, para Jean Maisonneuve,
esta ideia extensiva do rito, que o liga a um costume, permanece sem sentido, com um valor
simbólico relacionado apenas a uma determinada utilidade. Assim, nem toda atividade
rotineira é considerada um ritual. Os rituais constituem, portanto, um sistema de códigos, que
favorecem o contato entre as pessoas e um poder sobrenatural, oculto e divino. Ainda que o
conjunto de códigos possa sofrer alterações, o rito permanece imutável ao longo de extensos
períodos temporais. E é neste aspecto que o rito se distingue do simples costume, ou seja,
através da sua ligação com as forças do sagrado. Por outro lado, a expressão cerimônia deve
159
DETIENNE, op. cit., p. 24 et seq. 160
MAISONNEUVE, J. Os Rituais. Porto: RÉS, 2000, p. 10.
68
estar ligada às práticas coletivas organizadas ou teatralizadas, que se refira a um rito fundador
e a todo rito que contenha algum tipo de encenação. Esta perspectiva nos aproxima de outro
caráter distintivo do rito: o seu valor simbólico. Trata-se de algo que não pode ser percebido
imediatamente e cuja representação se faz por meio de algo figurado pelo objeto portador de
um símbolo. Este objeto estabelece uma ligação com o sobrenatural, acionando o imaginário.
As práticas simbólicas se fazem representar por meio de atitudes, gestos ou palavras que
mediatizam a relação com uma “entidade” não apenas ausente, mas impossível de ser
percebida sem o emprego do símbolo, tornando-o solidário ao rito.161
Outras noções subjacentes estão ligadas ao rito e, na perspectiva de Jean Maisonneuve,
tornam possível sua existência e seu funcionamento: a fé, o sagrado e os gestos corporais. Fé
é um elemento dirigido a um ser supremo, a forças ocultas e a determinados valores que se
revestem de uma natureza sagrada. Neste sentido, o autor afirma que não existem ritos sem fé
ou fé sem rituais. O sagrado, por outro lado, se relaciona àquilo que se encontra separado e
circunscrito, em um lugar reservado, destinado apenas aos iniciados em determinados cultos.
Além disso, o sagrado depende muito mais da emoção do que da representação, sendo,
portanto, uma categoria de sensibilidade. Por outro lado, não existem rituais que não utilizem
o corpo como suporte direto de sua ação e de sua eficácia, seja para nele fixar sinais e marcas
ou para praticar intervenções, como fonte de energia e influência.162
A partir destas análises, Jean Maisonneuve define o rito como um “sistema codificado
de práticas, mediante certas condições de lugar e tempo, que possui um sentido vivido e um
valor simbólico para os seus atores e os seus testemunhos, implicando a ação do corpo e
certa relação com o sagrado”.163
Os rituais trazem consigo ainda determinadas funções que estão relacionadas entre si e
que nem sempre são conscientes para os grupos que os empregam. De acordo com Jean
Maisonneuve os ritos possuem a Função de contenção da mutação e de segurança contra a
angústia, permitindo que as emoções humanas sejam canalizadas. A mediação com o divino
ou com certas formas e valores ocultos ou ideais é outra função desempenhada pelo rito. Esta
função busca a conciliação com os poderes que escapam à nossa compreensão: deuses e
espíritos. Ao se colocar diante de forças que não são acessíveis ou controláveis, o homem
lança mão de práticas simbólicas. Por fim, os ritos possuem a Função de comunicação e de
regulação, mediante o atestado e o reforço do vínculo social. Esta perspectiva é, na opinião
161
MAISONNEUVE, op. cit., p. 11-13. 162
Ibid., p. 14-16. 163
Ibid., p. 16.
69
do autor, a menos consciente, embora passível de percepção aos observadores mais atentos:
todas as comunidades que compartilham um sentimento de identidade coletiva recorrem a
mecanismos que reforcem os sentimentos fundamentais de sua unidade.164
Para Jean Maisonneuve, as funções dos rituais situam-nos na convergência entre a
natureza e os domínios da cultura, entre o sensível e o espiritual, assegurando uma regulação
social e moral aliadas a uma satisfação consagrada de determinados desejos: união,
abundância, perdão e consolo.165
Outra vertente teórica relaciona a narrativa mítica à definição conceitual do ritual. O
historiador Jean Pierre Vernant acrescenta que thámbos é a palavra em grego que designa o
temor reverencial, base sobre a qual se apoiaram os cultos mais antigos, as diversas formas
assumidas pelo rito, para corresponder à pluralidade das necessidades humanas. Além disso,
por trás da grande variedade de nomes e características dos deuses, acredita-se que o rito
aciona a experiência do divino como uma realidade supra-humana. Agregando à religião a sua
dimensão mitológica, o autor revela que o mito integra as práticas rituais e as maneiras de
representação do divino: mito, rito e representação figurada são as três formas de expressão –
verbal, gestual e imagética – através das quais a experiência religiosa se manifesta.166
Jean Pierre Vernant destaca ainda que uma cerimônia ritual desenvolve-se de acordo
com um roteiro de episódios estritamente ordenados, repletos de significado, tal qual uma
narrativa mítica. Cada detalhe da encenação busca representar sua relação com a divindade,
comportando uma dimensão intelectual. Assim, o ritual implica uma divindade, as condições
de sua abordagem e dos efeitos que os participantes, em função do seu papel, podem esperar
de sua relação simbólica. Portanto, cada forma adquirida pela representação de uma divindade
implica uma maneira diferente de apresentação ao homem, exercendo, através de suas
imagens, o poder sobrenatural que ela possui.167
Seguindo na mesma perspectiva de análise, o antropólogo René Girard destaca a
questão das religiões antigas e nos remete à duas hipóteses fundamentais, a saber: a mais
antiga, que liga o ritual ao mito, buscando no mito um acontecimento real ou um conjunto de
crenças que deu origem às práticas rituais, e outra mais recente, que remete ao ritual os mitos,
os deuses e as mais diversas tragédias, sobretudo as presentes na cultura grega. Nesta segunda
perspectiva encontramos a ideia de que o sacrifício originou todos os deuses a partir de sua
repetição no interior das sociedades humanas. Por outro lado, o autor acrescenta que há
164
MAISONNEUVE, op. cit., p. 16-18. 165
Ibid., p. 18. 166
VERNANT, J. P. Mito e religião na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 22-24. 167
Ibid., p. 27-28.
70
semelhanças entre as mais diversas formas rituais praticadas em várias culturas. Desta forma,
o autor desloca sua análise do rito para o mito fundador das sociedades antigas que apontam
em quase sua totalidade para a presença da atividade sacrificial. Assim, a violência fundadora
reside na origem de tudo aquilo que os homens possuem de mais valioso e que buscam
preservar com bastante atenção, onde todos os mitos de origem que se remetem ao assassinato
de uma personagem mítica por outras personagens míticas reforçam esta ideia. Para o autor, a
violência situa-se na formação do pensamento religioso. A presença do religioso na origem de
todas as sociedades humanas é inquestionável e o seu objeto é o sacrifício, cuja função é
perpetuar ou reforçar os efeitos do próprio sacrifício, ou seja, manter a violência afastada da
comunidade.168
De acordo com René Girard, a violência é o elemento fundador da ordem cultural. É a
partir da divindade morta no rito de fundação que todos os demais ritos são originados e é a
partir deste assassinato inicial que se formam as regras matrimoniais, as proibições, as
sanções e todas as formas culturais que dão ao homem seu caráter humano. Em qualquer vida
religiosa, em qualquer prática ritual ou elaboração mítica, o tema da unanimidade aparece
com bastante frequência. Em suas análises, René Girard pretende estabelecer uma teoria dos
mitos e dos ritos, abarcando, portanto, a totalidade dos sistemas religiosos. 169
O rito é a repetição de um primeiro assassinato que trouxe a ordem de volta à
comunidade, por refazer a unidade dissolvida na violência recíproca. Entretanto, ainda de
acordo com René Girad, nenhum rito irá reproduzir todos os detalhes da operação que o
coloca na origem de todos os ritos, revelando assim que o desconhecimento é uma das
dimensões mais fundamentais de todo o pensamento religioso.170
Por outro lado, os antropólogos Henri Hubert e Marcel Mauss deslocam a análise do
ritual para valorizar a do sacrifício. Para os autores, a noção de sagrado e de sacrifício são os
operadores do conhecimento dos ritos e dos mitos. Neste sentido, a definição de sacrifício está
no centro da definição de rito. Para os autores, além de ser uma instituição, o sacrifício é um
fenômeno social, onde o rito não é uma forma de renúncia moral, com sua autonomia e
espontaneidade. Existem poucos ritos que sejam mais sociais que o sacrifício, e se a crença
nesta atividade subsiste em sua eficácia é por conta de sua natureza social.171
Marcel Maus e Henri Hubert acrescentam ainda que a palavra sacrifício está associada
etimologicamente à noção de consagração, objetivo final de todo ritual ligado à prática
168
GIRARD, R. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 17, 21. 169
Ibid., p. 122. 170
Ibid., p. 134. 171
MAUSS, M; HUBERT, H. Sobre o Sacrifício. São Paulo: CosacNaify, 2005, p. 69-70.
71
religiosa. Mas diferentemente de outras consagrações, no sacrifício tudo o que está
relacionado ao ritual altera a sua personalidade após a sua execução.172
Por outro lado, a antropóloga Martine Segalen destaca que o caráter repetitivo de uma
ação é condição necessária, mas não suficiente para definir um rito. A autora acrescenta ainda
que não há uma definição que possa incluir a diversidade das manifestações sociais sobre as
quais a Antropologia se debruça há séculos. Para a autora, uma das características mais
fundamentais do rito é a sua flexibilidade, sua polissemia e sua capacidade para adaptar-se às
transformações sociais. O Conceito de ritual se forjou no campo religioso e passou a formar
parte do estudo das religiões.173
Martine Segalen, citando o linguista E. Benveniste, revela ainda que a etimologia de
rito está associada a formas gregas como o “Artus” (ordenação), “Ararisko” (harmonizar) e
“Arthmos” que invoca o vínculo, a união. Com a raiz indoeuropéia védica “ar”, a etimologia
leva a análise do termo até a ordem do cosmos, para a ordem das relações entre os deuses e os
homens e a ordem dos homens entre si.174
Entretanto, o campo semântico do termo ritual é bastante fértil. De acordo com
Martine Segalen, o termo cerimônia, por exemplo, nos remete aos ritos seculares solenes, de
origem profana. Contudo, os termos cerimônia, cerimonial e ritual se sobrepõem no campo do
religioso. A autora destaca ainda, certos aspectos da análise do rito relacionados à Sociologia,
a partir dos estudos de E. Durkheim, que vincula o rito à religião. Para a autora, nesta
perspectiva, o aspecto mais significativo do religioso é a distinção entre o sagrado e o
profano. A religião se caracteriza por uma divisão do universo em dois gêneros que incluem
tudo o que existe, mas que se excluem de maneira absoluta. As coisas sagradas são aquelas
que protegem e isolam as interdições. As coisas profanas são aquelas a que se aplicam as
interdições e que devem permanecer à distância das primeiras. Entretanto, o profano não pode
existir sem o sagrado.175
Ainda de acordo com Martine Segalen, a abordagem sociológica elabora a associação
entre rito e religião por outra via, a saber: as crenças e os ritos. As crenças religiosas são
representações que expressam a naturalidade das coisas sagradas e as relações que mantêm
umas com as outras, bem como com as coisas profanas. Os ritos, neste sentido, são normas de
conduta que prescrevem como o homem deve se comportar diante de coisas sagradas.176
172
MAUSS, M; HUBERT, H, op. cit., p. 15. 173
SEGALEN, M. Ritos e Rituais. Lisboa: Europa-América, 2000, p. 8-9. 174
Ibid., p. 13. 175
Ibid., p. 17. 176
Ibid., p. 17-18.
72
Uma vez definidos os aspectos sociológicos do rito, Martine Segalen parte para a sua
própria definição de ritual. Para a autora, o rito ou ritual é um agrupamento de atos revestidos
de formalidade, com expressões portadoras de uma dimensão simbólica. Assim, o rito se
caracteriza por uma configuração espaço-temporal específica, pelo recurso a uma série de
objetos, por sistemas de comportamentos e linguagens específicas e por alguns signos
emblemáticos, cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns de determinada
sociedade.177
A partir da definição dos preceitos teóricos do termo ritual, passaremos a seguir ao
estudo dos principais aspectos do debate acerca da existência ou não de sacrifícios
sistemáticos de crianças em Cartago. Seguiremos as definições teóricas de Marcel Mauss e
Henri Hubert que aproximam o conceito de ritual ao de sacrifício.
2.3: O debate historiográfico acerca do Tophet cartaginês
“Qualquer hipótese e todos os argumentos que tecemos em torno da morte tenta
contornar um obstáculo: assim como o sol, nós não podemos olhar diretamente para
a morte. O sol, porque brilha intensamente, a morte porque é muito escura,
impenetrável. O que sabemos sobre a morte tem como base aquilo que nós não
sabemos.”178
O debate da historiografia contemporânea acerca do sacrifício humano em Cartago
esteve quase sempre ligado à questão sobre a existência ou não do ritual de sangue humano
naquela sociedade. A temática do sacrifício humano, durante muitos séculos, foi considerada
por muitos estudiosos como uma excentricidade antropológica ou, em muitos casos, como
produto de imaginações férteis. A antropóloga Barbara Ehrenreich revela que a repugnância
que os pesquisadores hoje sentem pela prática do sacrifício de seres humanos impediu que se
construíssem investigações objetivas acerca desta temática. Muitas vezes o conquistador
europeu atribuiu o sacrifício humano às civilidades conquistadas, com o objetivo de
desvalorizar a cultura local. A autora lembra que um dos argumentos mais utilizados no
século XIX para justificar a escravidão era o de libertar os prisioneiros de um destino pior nas
mãos de sua própria sociedade. Por outro lado, os pesquisadores buscavam corrigir as
distorções imperialistas negando ou ignorando as práticas de sacrifícios humanos na
Antiguidade ou no período Moderno. A partir de então, se tornou prática comum destes
estudiosos classificarem o sacrifício humano como um instrumento sensacionalista de injúria
177
SEGALEN, op. cit., p. 30. 178
Santo Piazzese - Il soffio della valanga.
73
de uma cultura sobre a outra. Entretanto, nos dias atuais acumulam-se evidências que não
permitem negar esta prática, e o sacrifício humano, longe de ser uma excentricidade
antropológica, foi uma atividade muito difundida em variadas culturas e teve participação em
quase todas as formas de religiosidade.179
Negar a prática sistemática de sacrifícios humanos em diversas épocas e lugares reflete
a dificuldade do pesquisador contemporâneo em admitir que um evento “moralmente
repugnante” para nós tenha sido “moralmente necessário” para civilidades tão humanas
quanto a nossa. A pesquisadora Barbara Ehrenreich destaca que grande parte da história do
sacrifício humano permanece obscura, sobretudo a partir da sua relação com a prática mais
aceitável do sacrifício animal. Em muitos aspectos da narrativa mítica180
as formas do
sacrifício humano e do sacrifício animal parecem intercambiáveis. Para o leitor moderno a
prática do sacrifício humano parece ser bastante perturbadora por levá-lo a pensar em si
mesmo ou em seus semelhantes como alimento sagrado.181
Este contexto contemporâneo em relação à prática de sacrifícios humanos pode estar
relacionado ao polêmico debate acerca de sua pertinência à sociedade cartaginesa. Estes
questionamentos atravessaram a historiografia italiana, árabe, francesa e Anglo-Americana.
Iniciaremos nosso debate a partir das considerações pertinentes à Historiografia
Francesa182
. De acordo com os arqueólogos Gilbert e Collete Charles-Picard, apesar de viver
num mundo repleto de encadeamentos sobrenaturais, os homens não estão desprovidos de
meios de ação, no qual o mais poderoso é o sacrifício, que renova e restaura a energia divina.
Entretanto, para os autores, não se trata de uma simples oferenda e o sacrificador imola a ele
mesmo, sendo a vítima seu substituto. Por outro lado a persistência do rito é explicada por sua
eficácia: quanto mais elevado o valor da vítima expiatória, mas eficiente é a prática ritual. Tal
é a situação do ritual cartaginês, onde a imolação de crianças é a sua forma mais eficaz,
revelando a manutenção da tradição herdada dos fenícios do Oriente. Para os autores, a
objetividade do sacrifício cartaginês buscava expiar alguma falta cometida, algum desvio de
conduta em relação às divindades, consideradas causas das calamidades a que a cidade-estado
179
EHRENREICH, B. Ritos de Sangue. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 67. 180
Ibid., p. 68. A mitologia grega apresenta algumas referências relacionadas às práticas de sacrifícios humanos,
a saber: o Titã Cronus, que exigia carne humana; as bacantes, adoradoras de Dionísio, que destroçavam pessoas
e as devoravam vivas; e os doze troianos que, na Ilíada, foram sacrificados no funeral de Pátroclo. 181
Ibid., p. 71-73. 182
KORNIS, M. A. Cinema, televisão e história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21. A Nova História,
movimento de renovação da Historiografia francesa, teve como uma de suas características o levantamento de
novos objetos e métodos, ampliando os domínios da Historiografia tradicional. Esta renovação relativizou a
predominância da documentação escrita. É no bojo destas mudanças que a Historiografia Francesa irá deslocar
seu olhar para as questões relativas ao sacrifício de crianças em Cartago.
74
esteve sujeita ao longo de sua história. Neste sentido, as famílias mais abastadas de Cartago
tinham a obrigação de oferecer seus filhos primogênitos à Baal Hammon e Tanit como
instrumento de restauração da aliança com os deuses.183
De acordo com Serge Lancel, o infanticídio ritual também pode atuar como um
mecanismo de controle de natalidade, ainda que estas práticas sejam consideradas
inconcebíveis nos dias atuais. Poderia ser também um sistema de regulação econômica. O
estudo de inscrições votivas descobertas na necrópole cartaginesa revela uma predominância
de dedicatórias relativamente ricas sobre estes ex-votos. Restringir sua prole era também uma
maneira que muitas famílias cartaginesas encontravam para evitar a dispersão da riqueza,
ainda que a regra da primogenitura já limitasse esse risco. E, por outro lado, menos indivíduos
para alimentar provavelmente livravam muitas famílias da pobreza. Há ainda a hipótese
funerária, teoria que defende a ideia de que a necrópole cartaginesa era um local onde se
realizavam os sepultamentos de crianças vítimas de mortalidade infantil ou vítimas de aborto.
De acordo com o autor, esta hipótese é viável do ponto de vista sociológico e religioso, mas
não resolve todos os questionamentos acerca do assunto, a saber: se todas as crianças
encontradas no sítio arqueológico cartaginês foram de fato vítimas de doenças ligadas à
mortalidade infantil, como explicar a presença de ossos de pequenos animais nas mesmas
urnas funerárias? Para o autor, somente a partir de uma melhor analise osteológica poderemos
saber objetivamente quando e sob qual circunstância ocorreu a morte dessas crianças, e então
concluir uma questão que permita negar categoricamente a realidade do sacrifício humano em
Cartago.184
Na opinião de Serge Lancel, os historiadores do mundo antigo se encontram diante de
dificuldades irredutíveis quando têm a necessidade de unir documentação textual e evidências
arqueológicas, completando umas pelas outras.185
Auguste Pavy afirma que era para a divindade Baal Hammon que os cartagineses
ofereciam vítimas humanas, durante um longo período. Ele revela que as vítimas expiatórias
eram escolhidas entre os filhos das mais importantes famílias daquela cidade.186
O historiador
Arthur Pellegrin, escrevendo quase vinte anos após as descobertas do Tophet, afirmou que
Tanit e Baal eram conhecidos por seu culto “bárbaro”, que exigia sacrifícios humanos.
Segundo ele, Baal Hammon fora representado por uma estátua de bronze cujas mãos
183
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. op. cit., 1964, p. 67. 184
LANCEL, op. cit., p. 271-273. 185
Ibid., p. 276. 186
PAVY, A. Histoire de la Tunisie. Tunis: Bouslama, [s.d.], p. 21.
75
articuladas recebiam e deixavam cair as crianças sobre o fogo, e as descobertas arqueológicas
confirmavam essa afirmação, embora esta estátua nunca tenha sido encontrada.187
Vejamos a seguir como parte da Anglo-Americana188
tratou o assunto. Os
pesquisadores Lawrence E. Stager e Samuel R. Wolff revelam que a palavra Tophet é de
origem bíblica e se refere a uma região ao sul da antiga cidade de Jerusalém, no vale de Ben-
Hinom, onde os israelitas tinham o costume de sacrificar os seus filhos.189
As descrições
destes ritos encontram-se no texto bíblico do profeta Jeremias:
“E edificaram os altos de Tofete, que está no Vale do Filho de Hinom, para
queimarem no fogo a seus filhos e a suas filhas, o que nunca ordenei, nem me subiu
ao coração. Portanto, eis que vêm dias, diz o Senhor, em que não se chamará mais
Tofete, nem Vale do Filho de Hinom, mas o Vale da Matança; e enterrarão em
Tofete, por não haver outro lugar.”190
Estas práticas sacrificiais são comumente associadas à divindade Baal Hamom:
“E deixaram todos os mandamentos do Senhor seu Deus, e fizeram imagens
de fundição, dois bezerros; e fizeram um ídolo do bosque, e adoraram perante todo o
exército do céu, e serviram a Baal. Também fizeram passar pelo fogo a seus filhos e
suas filhas, e deram-se a adivinhações, e criam em agouros; e venderam-se para
fazer o que era mau aos olhos do Senhor, para o provocarem à ira.”191
Há ainda outra referência bíblica a estes ritos sacrificiais dedicados a uma divindade
não israelita, conhecida pelo epíteto de Moloque, cujas práticas teriam sido abolidas por volta
do século VII a. C.:
“Também profanou a Tofete, que está no vale dos filhos de Hinom, para
que ninguém fizesse passar a seu filho, ou sua filha, pelo fogo a Moloque.”192
Estas descrições bíblicas citadas acima levaram os arqueólogos e historiadores a
denominarem de Tophet o santuário onde foram descobertas urnas contendo ossos calcinados
de crianças, localizado em Cartago. De acordo com Lawrence E. Stager e Samuel R. Wolff, o
Tophet cartaginês é a maior necrópole destinada às vítimas de sacrifícios humanos já
descoberta até hoje, reforçando a ideia de que os cartagineses sacrificaram suas crianças de
forma sistemática por mais de 600 anos. A área total da necrópole está situada em torno de
187
PELLEGRIN, A. Histoire de la Tunisie. Tunis: La Rapide, 1944, p. 42. 188
SILVA, F. C. da. Em diálogo com os tempos modernos: o pensamento político e social de G. H. Mead. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p. 40. O ambiente intelectual anglo-americano assistiu a uma mudança
historiográfica na década de 1960. Estas transformações caracterizaram-se principalmente pela atitude cética dos
pesquisadores quanto à perspectiva progressista da História normalmente associada ao Positivismo, aproximando
seus estudos de uma abordagem sociológica. 189
STAGER, L. E.; WOLFF, S. R. Child Sacrifice at Carthage—Religious Rite or Population Control?
Archaeological evidence provides basis for a new analysis. Biblical Archaeology Review 10: 31–51, p. 31. 190
Jeremias 7: 31-32 191
2 Reis 17:16-17 192
2 Reis 23:10
76
16,5 a 19,5 km2, ainda que os limites não possam ser seguramente fixados em virtude da
moderna ocupação urbana da região.193
Mapa 8: Mapa aéreo do Golfo de Túnis com destaque para localização da necrópole cartaginesa. – Fonte:
BENICHOU-SAFAR, H. Les fouilles du tophet de Salammbô à Carthage (première partie) In: Antiquités
africaines, 31,1995. pp. 81-199.
Para Lawrence E. Stager e Samuel R. Wolff as evidências arqueológicas descobertas
no Tophet cartaginês ao longo do século XX comprovam a existência das práticas sacrificiais
naquela região, descritas pelos historiadores antigos, como Diodoro da Sicília e Plutarco.
Entre estas evidências há a presença massiva de estelas funerárias votivas que revelam as
promessas feitas pelo ofertante do sacrifício, algo que não se observa em inscrições funerárias
comuns. As fórmulas mais comuns trazem as seguintes inscrições: “à nossa senhora, à Tanit,
face de Baal e ao nosso senhor, à Baal Hammon, aquilo que foi prometido (...) filho de
[descrição do nome], filho de [descrição do nome], porque ele (...) ouviu a sua voz e o
abençoou.” Além disso, há, em alguns casos, a presença de ossos de pequenos animais
193
STAGER; WOLF, op. cit., p. 33.
77
juntamente com os ossos de crianças no interior das urnas, descobertas através das escavações
arqueológicas realizadas no local.194
De acordo com as análises apontadas pelos autores, não parece haver dúvidas quanto à
prática sacrificial exercida pelos cartagineses. Mas quais seriam as razões que os levavam a
tais práticas? De acordo com Lawrence E. Stager e Samuel R. Wolff, os cartagineses
utilizaram os animais como vítimas expiatórias nos primeiros anos após sua fundação no
século VIII a. C., mas na medida em que a cidade se desenvolveu, expandindo sua influência
ao longo do Mediterrâneo ocidental, sua população cresceu bastante, chegando quase à marca
de um milhão de pessoas. Esse crescimento demográfico teria provocado a substituição dos
animais pelas crianças na celebração dos ritos de sacrifício. Assim, objetivando estabelecer
um controle da sua densidade demográfica, Cartago viu multiplicarem-se os sacrifícios de
crianças, que foi, provavelmente incentivado pelas elites locais que buscavam a manutenção
de sua riqueza, evitando assim a divisão do seu patrimônio em diversas partes entre os seus
herdeiros. Para os autores, esta atividade religiosa foi muito importante para os cartagineses e
contou ainda com o apoio das instituições políticas locais.195
194
SATAGER; WOLF, op. cit., 34. 195
Ibid., p. 45
78
Figura 3: Sítio arqueológico do Tophet cartaginês. – Fonte: Schwartz JH, Houghton F, Macchiarelli R, Bondioli
L (2010) Skeletal Remains from Punic Carthage Do Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoS ONE
5(2): e9177. doi:10.1371/journal.pone.0009177.
De acordo com o historiador Dexter Hoyos, a prática religiosa mais bem conhecida
sobre Cartago é aquela que se refere ao sepultamento de urnas funerárias dedicadas à Tanit e
Baal Hammon no santuário chamado de Tophet, onde os primeiros rituais teriam sido
realizados por volta do século VIII a. C e os mais recentes em meados de 146 a. C., data da
destruição da cidade pelos romanos. As evidências que apontam para a existência destes
rituais, no entanto, apresentam certas divergências entre si. A análise das urnas contendo
ossos humanos revela que a maioria pertence a crianças natimortos ou a fetos, com raras
exceções que incluem crianças entre dois e quatro anos e uma única com doze anos de idade.
As análises da medicina legal revelaram ainda que muitas crianças poderiam estar mortas no
momento em que foram cremadas. De acordo com o autor, não existe, até o momento,
nenhuma evidência arqueológica que comprove a cremação em massa de várias centenas de
vítimas como a que o historiador Diodoro da Sicília relatou ter ocorrido em 310 a. C. As
investigações acadêmicas acerca da prática de sacrifícios humanos em Cartago se encontram
em andamento, mas é possível levantar algumas questões. A primeira delas é a de que, como
79
vimos acima, o Tophet cartaginês era uma necrópole destinada a crianças que morriam ao
nascer ou que eram vítimas de abortos. Por outro lado, as características dos sepultamentos,
verificadas a partir das descobertas arqueológicas, em quase nada coincidem com as
descrições de historiadores gregos ou romanos, que afirmaram estar descrevendo os ritos
habituais de sacrifícios de crianças em Cartago.196
As contradições entre as informações arqueológicas e a documentação textual são
visíveis e usar uma para reforçar ou comprovar a outra é praticamente impossível. Ainda de
acordo com Dexter Hoyos, uma estela funerária do século II a. C. oriunda da região da
Numídia (atual Argélia), na região norte do continente africano, registra o sacrifício de um
cordeiro sacrificado a Saturno, nome latino de Baal Hammon, com o objetivo de salvar a vida
de uma criança. A estela se refere ao cordeiro como um “substituto” (pro vikario) e ao rito,
como “molchomor”, versão transliterada de mr mlk’, que significa “o senhor da cidade”. Além
disso, a estela revela a seguinte inscrição: “respiração por respiração, sangue para a vida,
para a vida”. Embora esta estela seja interpretada geralmente como o sacrifício de um
cordeiro em substituição ao sacrifício da criança, parece provável, na opinião do autor, que o
animal foi entregue a Baal Hammon porque a divindade teria poupado a vida dela, ou seja,
que ela teria se recuperado de uma grave doença ou de um acidente. Esta questão
demonstraria que os ossos de animais encontrados no Tophet cartaginês juntamente com os
ossos de outras crianças são, na verdade, um agradecimento pelo fato de a divindade não tê-
las tomado também.197
Outra evidência que influenciou a interpretação dos pesquisadores é a estela abaixo,
que representaria um sacerdote conduzindo uma criança em posição sacrificial.
196
HOYOS, op. cit., p. 103. 197
Ibid., p. 103.
80
Figura 4: Estela com desenho de sacerdote cartaginês.
Fonte: http://www.diggingsonline.com – Acesso em 07/02/2013
De acordo com Dexter Hoyos, esta estela não retrata um sacrifício e não se deve usá-la
como correspondente das descrições dos historiadores antigos. Trata-se, na verdade, de uma
figura masculina portando uma criança, com um gesto de benção ou oração, que pode
significar a solicitação da proteção divina. Para o autor, os ritos de sacrifícios generalizados
dos próprios filhos seriam notáveis, embora não totalmente impensáveis, em uma sociedade
na qual muitas crianças morriam durante o parto ou até mesmo antes de atingir a idade adulta.
As crianças estavam, provavelmente, mais vulneráveis a epidemias do que os adultos. Se os
cartagineses e os colonos fenícios da região norte do continente africano e da Sicília e da
Sardenha recorressem à prática sistemática de sacrifícios de crianças, colocariam em risco a
sua própria sobrevivência. As contradições verificadas entre as informações arqueológicas e a
documentação textual torna questionável a crença nestes eventos.198
De acordo com o pesquisador George Rawlinson não havia grande diferença entre o
sistema religioso dos fenícios e as demais cidades-estados orientais, exceto pelo nome das
198
HOYOS, op. cit., p. 105.
81
divindades, a complexidade ou simplicidade de determinados ritos e o maior ou menor
prestígio ligado à função sacerdotal. Entretanto, um aspecto diferenciava os fenícios das
demais civilidades orientais: o sacrifício envolvendo seres humanos. De acordo com a
mitologia fenícia, o deus El, na época em que reinava sobre a terra como soberano da cidade-
estado de Byblos, havia, em uma situação de extremo perigo, sacrificado seu filho
primogênito Ieoud, como uma oferenda expiatória. A partir desta narrativa mítica, este rito
passou a ser reproduzido entre os fenícios sempre que algum tipo de calamidade social
ameaçava a sobrevivência das cidades. Tornou-se habitual ainda selecionar as vítimas
expiatórias entre os filhos das famílias mais nobres que tinham suas vidas oferecidas para
apaziguar a ira dos deuses, em uma relação de custo e benefício. Os rituais eram realizados a
partir da cremação das vítimas, que, de acordo com os sacerdotes locais, eram colocadas nos
braços de uma estátua de Moloque, que era, por sua vez, representada como uma figura
humana com cabeça de touro. De acordo com o autor, os cartagineses teriam, portanto,
herdado estas práticas e esta questão estaria evidenciada a partir das descrições do historiador
grego Diodoro da Sicília.199
Para Brent Shaw, o ritual do sacrifício era o principal meio de comunicação entre os
cartagineses e suas divindades, e o núcleo destas práticas era o sacrifício de sangue realizado
em honra ao deus Baal Hammon. Para o autor, este rito assumiu uma forma exagerada, porém
mais significativa e poderosa, na qual mais do que a imolação de animais, sacrificava-se
também seres humanos. Estes ritos, que envolviam a imolação de crianças vivas, tem
fomentado o debate sobre o assunto nos dias atuais.200
Na África, a principal evidência acerca da prática de sacrifícios humanos provém da
necrópole em Cartago. Brent Shaw revela que estes rituais possuem origem oriental, ainda
que não tenha sido descoberta nenhuma evidência de um Tophet na região da Fenícia, atual
costa sírio-libanesa. Entretanto, a descoberta de outros sítios arqueológicos no Mediterrâneo
ocidental, como o norte da África, a Sicília e a Sardenha, indica nomeadamente a distribuição
da hegemonia política, militar e cultural exercida pelos cartagineses. Assim, para o autor,
parece evidente que este tipo de sacrifício ocupou um lugar central e permanente na religião
púnica, tendo por objetivo oferecer votos às divindades como forma de promessa por algo
previamente recebido.201
199
RAWLINSON, G. History of Phoenicia. Oxford, 1990, p. 145. 200
SHAW, B. Cult and Belief in Punic and Roman Africa. In: M. R. SALZMAN; SWEENEY, M. A. (Org.) The
Cambridge History of Religions in the Ancient World. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press,
2003, p. 12. 201
Ibid., p. 13-14.
82
Para Brent Shaw, no entanto, não há um debate consistente sobre as razões pelas quais
os cartagineses realizavam estas práticas, sobretudo por conta de um regime demográfico
bastante marcado pela mortalidade infantil. Entretanto, o autor considera que as evidências
encontradas até o momento sugerem que as crianças estavam vivas durante a execução do
ritual.202
O debate acerca das práticas sacrificiais em Cartago também perpassou a
Historiografia Árabe203
. De acordo com Mahmed Hassine Fantar, se não fossem as descrições
dos historiadores clássicos, os pesquisadores modernos dificilmente atribuiriam o Tophet
cartaginês ao sacrifício de crianças. Assim, o autor questiona se estas informações são
confiáveis e se os dados extraídos das escavações arqueológicas são, de alguma forma,
conclusivos.204
O primeiro questionamento feito pelo autor se refere à existência da estátua de Baal
Hammon, descrita por Diodoro da Sicília como o local onde as crianças eram sacrificadas.
Para Mahmed Hassine Fantar este relato não é verdadeiro, tendo Diodoro da Sicília
relacionado relatos cartagineses com antigos mitos sicilianos, especificamente o mito do
Touro de Bronze, no qual o tirano siciliano Phalaris, queimava seus inimigos. Por outro lado,
estas práticas estão ausentes nos relatos de outros historiadores, como Políbios, que participou
diretamente das campanhas militares dos romanos contra os cartagineses no período da
terceira guerra púnica, resultando na destruição de Cartago em 146 a. C. Além disso, Tito
Lívio, outro historiador romano relativamente bem informado sobre Cartago, também não
descreve o sacrifício de crianças realizado pelos cartagineses. Portanto, para o autor, não está
claro, a partir das fontes clássicas, que os cartagineses sacrificavam seus filhos. Quanto às
descrições bíblicas, o autor revela que os trechos não falam claramente em sacrifícios, mas
que as crianças não deveriam “passar” pelo fogo.205
E quanto aos vestígios físicos? O que eles podem nos revelar? De acordo com
Mahmed Hassine Fantar, o Tophet era o local sagrado onde as urnas contendo ossos
calcinados de crianças foram encontradas. Estes restos eram sepultados ritualmente de acordo
202
SHAW, op. cit., p. 15. 203
CHOUEIRI, Y. Modern Arab Historiography. London: Routledge Curzon, 2003, p. 66, 85. A década de
1920 representou um marco para a historiografia árabe. Este período representou uma ruptura com as velhas
tradições historiográficas vigentes até então por basear a produção do conhecimento histórico na análise
documental. A História deixou de ser uma mera descrição dos fatos. Além disso, a ocupação francesa da Tunísia,
já na segunda metade do século XIX, provocou o desenvolvimento de uma História baseada na construção de
uma identidade nacional, voltando a atenção dos historiadores para o estudo da civilidade cartaginesa. 204
FANTAR, M. H. The Tophet was the final resting place for the still-born and for children who died in
early infancy. [Online] Disponível na Internet Via: http://phoenicia.org/childsacrifice.html#ixzz2idnvICoO –
Acesso em 24-03-2013., n. p. 205
FANTAR, op. cit., n. p.
83
com as práticas religiosas púnicas, reveladas pela presença de estelas decoradas com o
símbolo triangular da deusa Tanit. Em algumas urnas foram encontrados restos incinerados de
crianças muito pequenas ou fetos em alguns casos, juntamente com ossos de animais. Para o
autor, o Tophet cartaginês era o local onde os cartagineses faziam votos e solicitações
endereçados a Baal Hammom e Tanit, de acordo com a fórmula ritual Ut Des (dou para que
você dê), evidenciando mais uma vez a relação custo e benefício. Cada voto era acompanhado
de uma oferta. Algumas estelas sugerem de fato que os animais eram sacrificados aos deuses.
Contudo, se o Tophet não é uma necrópole, mas um santuário, como explicar a presença de
ossos calcinados de crianças nesta região? Para o autor, em muitas culturas antigas, a morte de
crianças não era tida como algo natural, e o seu local de sepultamento deveria ser em um setor
separado e distinto daquele usado pelos adultos. Da mesma forma, as crianças púnicas que
morriam precocemente possuíam um estatuto especial.206
Figura 5: Ruínas de uma residência em Cartago com o símbolo de Tanit – HOYOS, D. The Cathaginians.
London: Routledge, 2010, p. 109.
As crianças eram, portanto, cremadas e sepultadas em um recinto reservado ao culto
de Baal Hammon e Tanit. De acordo com Mahmed Hassine Fantar, as crianças não estavam
mortas no sentido usual da palavra, tendo sofrido, na verdade, um “retrocesso”. Os
cartagineses acreditavam que, por razões misteriosas, Baal Hammon havia decidido tomá-las
206
FANTAR, op. cit., n. p.
84
para si mesmo e, submetendo-se à vontade divina, os pais devolviam-lhe as crianças, de
acordo com um ritual que envolvia, entre outras opções, a incineração e o sepultamento.207
Os cartagineses não sacrificaram seus filhos no Tophet. Para Mahmed Hassine Fantar,
este local, ao ar livre, acessível a todos que o visitavam, era um santuário sagrado presidido
por Baal Hammon e Tanit. Para este santuário se dirigiam pais em luto, que procuravam
devolver seus filhos às citadas divindades.208
O historiador Chedii Klibi, citado por S. E.
Tlatli, questiona o rótulo de “bárbaros”, herdado pelos cartagineses em virtude das práticas de
sacrifícios humanos. Para ele a história antiga de diversas civilizações está repleta de
exemplos destas atividades sagradas, como Israel e Grécia. Neste sentido, os cartagineses não
seriam mais “bárbaros” que estas civilidades da Antiguidade.209
O pesquisador Baruch Margalit destaca ainda que parte da atribuição aos cartagineses
das práticas de sacrifícios humanos é proveniente dos relatos de historiadores cristãos
posteriores ao século III da nossa era, como Filon de Biblos, Porfírio e Eusébio de Cesaréia.
De acordo com estes relatos, os fenícios tinham por hábito, em tempos de extrema agitação
social, sacrificar suas crianças aos deuses protetores da cidade.210
Por último, veremos de que maneira a Historiografia Italiana211
tratou o tema do
sacrifício de crianças em Cartago. O historiador Federico Mazza destaca que estudos recentes
revelam que os historiadores antigos, como Diodoro da Sicília e Plutarco, não tinham
conhecimento objetivo acerca dos relatos que produziram sobre sacrifícios de crianças em
Cartago. Além disso, outros historiadores do período como Herodoto, Polibios, Tucídides e
Tito Lívio não fazem menção a esta prática. Para o autor, as descrições que chegaram até nós
são, na verdade, ecos de narrativas míticas combinadas com propaganda negativa, que
produziram um quadro distorcido de um fenômeno cultural estrangeiro.212
De acordo com Ida Oggiano e Paolo Xella, os ritos realizados no santuário de Tanit
eram, ao mesmo tempo, privados e públicos, tendo sido importantes para toda a coletividade
cívica de Cartago. Para os autores, o Tophet - com suas estelas, símbolos e palavras - é o
retrato de uma civilidade em oração. Trata-se do testemunho de um lugar destinado ao diálogo
207
FANTAR, op. cit., n. p. 208
Ibid., n. p. 209
KLIBI, C. Apud, TLATLI, S. E. La Carthage punique. Étude urbaine. Paris: Mainsonneuve, 1978, p. 8. 210
MARGALIT, B. Why King Mesha of Moab Sacrificed His Oldest Son. Biblical Archaeology Society.
[Online] Disponível na Internet via: www.bib-arch.org/publication - Acesso em 23-06-2012, n. p. 211
A historiografia italiana esteve marcada, desde a década de 1970 por uma virada em direção à Micro-História,
que representou uma reação contra a história social impregnada pelas análises marxistas e contra as grandes
narrativas do progresso e da ascensão da civilidade ocidental. Neste processo, os micro- historiadores
enfatizaram os valores das culturas regionais e dos conhecimentos locais. (BURKE, 2008:61). 212
MAZZA, F. The Phoenicians as Seen by the Ancient World. In: MOSCATI, S. (org.) The Phoenicians. New
York: Abbeville Press, 1988, n. p.
85
entre os homens e as divindades, criado para solicitar ou para agradecer por algum pedido
alcançado. Entretanto, os autores lembram que resta saber ainda quais os motivos conduziam
os cartagineses a estas práticas sacrificiais.213
Figura 6: Santuário de Tanit. Necrópole onde foram encontradas as urnas contendo ossos calcinados de crianças.
Fonte: Schwartz JH, Houghton F, Macchiarelli R, Bondioli L (2010) Skeletal Remains from Punic Carthage Do
Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoSONE 5(2): e9177. doi:10.1371/journal.pone.0009177
Sergio Ribichini concorda com esta perspectiva ao afirmar que o Tophet cartaginês
possuía certo grau de multifuncionalidade de adoração, revelando o aspecto particular de um
santuário situado no limite entre o público e o privado, um santuário social e comunitário que
era também uma réplica de uma devoção doméstica e íntima.214
2.4: A teoria sacrificial em René Girard e Marcel Mauss: uma análise comparada
Como vimos, a polêmica em torno da questão do sacrifício humano em Cartago
envolve quase sempre a sua própria existência. Estas discussões estão relacionadas à causa da
morte das vítimas expiatórias. Este debate é importante para a compreensão do valor
simbólico do ritual, no qual a análise desta atividade em Cartago nos impele ao estudo das
213
OGGIANO, I.; XELLA, P. Comunicare con gli dei. Parole e simboli sulle stele del tofet. Bollettino di
Archeologia on line I 2010/ Volume speciale. p. 55. 214
RIBICHINI, S. Il Sacello Nel “Tofet”. In: GUZZO, A.; LIVERANI, M.; MATTHIAE, P. (Org.) Da Pyrgi a
Mozia: studi sull’archeologia del Mediterraneo in memória di Antonia Ciasca (Vicino Oriente, Quaderno 3/2),
Roma 2002, p. 425-439.
86
teorias antropológicas acerca do sacrifício. Para este estudo selecionamos duas modalidades
de abordagem a serem comparadas, a saber: o estudo da consagração mediante o ritual de
sacrifício, defendido pelos antropólogos Marcel Mauss e Henri Hubert e a análise da violência
primordial defendida pelo literato e antropólogo René Girard. Antes, porém é necessário
comparar os suportes de informação que apontam para a existência da prática de sacrifícios
humanos em Cartago. Para isso selecionamos a documentação textual e as análises realizadas
pela Antropologia Forense215
nos vestígios encontrados no interior das urnas funerárias, a
partir dos quais podemos inferir os seguintes Conjuntos de Problemas, conforme a grade de
comparação abaixo: em que contexto o ritual era praticado? Quais as vítimas empregadas?
Qual a causa da morte das vítimas?
Quadro Comparativo 1: Análise comparada dos suportes de informação acerca da prática de sacrifícios
humanos em Cartago.
Esta estruturação do trabalho liga-se, ao nosso entender, à perspectiva do campo de
experimentação comparada, defendida por Marcel Detienne, em que o uso induz à construção
de problemas que atravessam diversas realidades sociais em diversas temporalidades e
espacialidades. Trata-se de uma ferramenta metodológica voltada para a experimentação na
215 TIMMS, R. F. Princípios de Arqueologia Forense. San Rose (Costa Rica): EUNED, 1993, p. 20. A
Antropologia Forense é uma área especializada da Antropologia Física e se baseia nos estudos dos ossos
(Osteologia), tendo por objetivo produzir identificações médico-legais. Por identificação entende-se a descrição
dos mais variados aspectos físicos do indivíduo, como sexo, idade, altura e causa da morte, entre outros, a partir
da análise científica de sua redução esquelética. Esse ramo de atividade da Antropologia teve sua origem nos
Estados Unidos em meados do século XIX.
Ritual VítimasCausa da
MorteContexto
Antropologia
Forensex x Ausente Ausente
Documentação
Textualx x x x
Sacrifícios Humanos em Cartago
S
u
p
o
r
t
e
d
e
I
n
f
o
r
m
a
ç
ã
o
87
qual se colocam em perspectiva as diferenças sociais e históricas a partir de um conjunto de
problemas. 216
Os comparáveis entre historiadores e antropólogos, entre História e Antropologia, são
mecanismos de pensamento observáveis, placas de encadeamento causal. De acordo com
Marcel Detienne, são relações em cadeia que se caracterizam como escolhas realizadas pelos
grupos sociais. Quando uma sociedade elege um mecanismo de pensamento, ela faz uma
escolha, dentre muitas que poderia fazer. Disso decorre o choque do incomparável. Trata-se
da atitude metodológica que permite comparar traços semelhantes entre sociedades, mas que
apresentam certas diferenças entre si. Não se compara temas, mas maneiras de ver o mundo,
ou as maneiras como as sociedades veem a si mesmas, fatores que são distintos por
natureza.217
A Construção de Comparáveis entre historiadores e antropólogos não visa à criação de
leis e modelos do comportamento social. De acordo com Marcel Detienne, busca-se, antes de
tudo, analisar os mecanismos de pensamento, os encadeamentos decorrentes das escolhas
realizadas pelas civilidades que em muitos casos não se conhecem. A utilidade do método
reside na sua eficácia em se colocar os valores e as escolhas das sociedades em perspectiva.
Trata-se de um olhar crítico sobre a tradição. Objetiva-se compreender diversas culturas da
mesma forma que elas se compreendiam para depois analisá-las entre si, reconhecendo as
diferenças em relação às outras218
.
Assim, iniciaremos nossas análises a partir do questionamento sobre as
especificidades do Ritual de sacrifício. Vejamos como a documentação textual e a
Antropologia Forense descreveram os rituais de sacrifícios humanos em Cartago. O
historiador grego Diodoro da Sicília (90 a. C. – 30 a. C.) narrou os acontecimentos no
contexto de um dos vários embates entre cartagineses e gregos pelo controle de rotas
comerciais na região do Mediterrâneo, em meados do século III a. C.
"Quando eles refletiram sobre essas coisas e viram seu inimigo
[Agatócles] acampado diante de seus muros, eles estavam cheios de temor
supersticioso, pois acreditavam que tinham negligenciado a honra dos deuses, que
tinha sido estabelecida por seus antepassados. Eles [os cartagineses] também
alegaram que Cronus tinha se voltado contra eles na medida em que, em tempos
antigos, estavam acostumados a sacrificar a este deus o mais nobre dos seus
filhos"219
216
DETIENNE, op. cit., p. 45-53. 217
Ibid., p. 45 et. seq. 218
Ibid., p. 65-67. 219
Biblioteca Histórica 22, 14
88
Por outro lado, Plutarco (46 – 120 d. C.), também historiador grego, ratificou estas
práticas, ao afirmar que:
"Mais uma vez, não teria sido muito melhor para os cartagineses ter
tomado Crítias ou Diagoras para elaborar seu código de legislação no início, e assim
não ter acreditado em qualquer poder divino ou deus, oferecendo sacrifícios a
Cronus? Não, mas foi com pleno conhecimento e compreensão que eles mesmos
ofereceram os seus próprios filhos;"220
O embate entre gregos e cartagineses remonta a períodos bastante anteriores a este, no
qual Diodoro da Sicília revela a prática de sacrifícios humanos. O pesquisador B. H.
Warmington revela que a partir do século VI a. C. Cartago tornou-se uma cidade-estado
autônoma, passando a exercer sua hegemonia sobre as demais colônias fenícias no
Mediterrâneo Ocidental. Estas mudanças foram provocadas pelo enfraquecimento de Tiro e
das demais cidades da Fenícia, em razão da expansão do Império Babilônico. Foi neste
contexto que se iniciaram as hostilidades entre gregos e cartagineses, sobretudo em virtude da
disputa pela região da Sicília.221
Mapa 9: Mapa com a localização das cidades gregas e cartaginesas na região da Magna Grécia.
Fonte: http:// www.de.wikipedia.org/wiki/Magna_Graecia - Acesso em 29-01-2013
220
De Superstitione, 13 221
WARMINGTON, op. cit., p. 477.
89
Ainda de acordo com B. H. Warmington, por volta de 580 a. C. os habitantes de
Salinunte (Silenous) e de outras cidades-estados tentaram expulsar os fenícios de Mórcia
(Motya) e Palermo (Panormos). Para defender sua posição na região, os cartagineses
dirigiram campanhas militares defensivas contra os gregos. Os objetivos dos gregos eram os
de alcançar as cidades fenícias da Sardenha, abrindo acesso às rotas comerciais em direção à
Península Ibérica. Alguns anos mais tarde, os cartagineses firmaram alianças com os Etruscos,
impedindo que os gregos se fixassem na Córsega. Em 405 a. C. a cidade-estado de Siracusa
iniciou uma campanha militar para conquistar as colônias fenícias na Sicília, derrotando os
cartagineses e seus aliados na região. Ainda que vitoriosos, os siracusanos não avançaram
suas tropas, optando pelo recebimento de indenizações de guerra. Nos setenta anos seguintes,
os cartagineses evitaram os combates diretos contra os gregos, buscando ampliar seu domínio
no continente africano, ainda que mantivessem o controle sobre as principais rotas comerciais
do Mediterrâneo.222
O historiador A. G. Woodhead acrescenta que por volta do século VI a. C. as colônias
gregas do Mediterrâneo iniciaram um período de prosperidade, particularmente na região da
Sicília. Foi nessa ilha que se consolidaram as relações de conflito entre gregos e cartagineses,
a partir dos entraves criados por Cartago à expansão grega. A marinha cartaginesa aliada à da
Etrúria dominava as principais rotas comerciais daquela região, e os etruscos realizavam uma
oposição aos gregos em terra, ao longo do sul da Península Itálica. Para o autor, a expedição
do espartano Dorieus, em 514 a. C. foi a última tentativa grega de conquistar a região
ocidental da Sicília. Esta expedição objetivou fundar uma colônia grega na costa africana, e
seu iminente fracasso levou os invasores a voltar sua atenção para a região siciliana, onde
foram novamente derrotados.223
Alguns anos depois, as hostilidades entre gregos e cartagineses voltariam à tona. De
acordo com A. G. Woodhead, em 397 a. C., e após conquistar a parte oriental da Sicília, os
gregos de Siracusa lançaram-se numa batalha pela conquista da cidade púnica de Motya. Uma
grande epidemia atingiu o exército cartaginês e toda a região ficou sob o controle dos
siracusanos. Aos cartagineses restava a região mais ao norte, na cidade de Palermo, e mesmo
com algumas tentativas posteriores, não conseguiriam recuperar os territórios perdidos. Para o
222
WARMINGTON, op. cit., p. 478. 223
WOODHEAD, A. Os gregos do Ocidente. Lisboa: Verbo, 1972, p. 73-75.
90
autor, em 339 a. C., Cartago havia se conformado com a perda de quase toda a região da
Sicília.224
Entretanto, a situação mudou a partir de 312 a. C., com a chegada de Agátocles ao
poder em Siracusa. Ainda de acordo com A. G. Woodehead, o tirano de Siracusa conquistou a
cidade-estado de Messina e outras pequenas cidades da região, despertando a atenção dos
cartagineses que temiam perder suas últimas colônias na ilha. Após algumas batalhas,
Agátocles fora derrotado e os cartagineses puseram cerco à Siracusa. A partir desta derrota, o
tirano de Siracusa decidiu mudar de estratégia, atacando a própria Cartago, onde, com o
auxilio de um pequeno exército, obteve algumas vitórias. Apesar de algumas disputas internas
junto à sua elite, os cartagineses conseguiram se reorganizar e expulsar os invasores da costa
africana.225
Foi no contexto do cerco implementado por Agátocles que os cartagineses teriam
realizado as práticas de sacrifícios de crianças, conforme as digressões de Plutarco e Diodoro
da Sicília reveladas acima.
Ao ser derrotado na África, o exército de Agátocles sofreu outras derrotas na Sicília,
sobretudo contra outras cidades gregas da região que se sublevaram contra ele. A. G.
Woodhead acrescenta que a paz assinada com Cartago restaurou as antigas fronteiras da
Sicília aos moldes do que era em meados do século V a. C.226
Os arqueólogos Gilbert e C. Charles-Picard acrescentam que entre 750 e 500 a. C. os
gregos se aproveitaram do declínio das cidades da Fenícia para formar suas colônias ao longo
do Mediterrâneo. Estabeleceram-se na Sicília oriental, expulsando a população fenícia local
que havia se estabelecido ali há quase um século. Cartago encontrava-se sozinha na tentativa
de conter o avanço grego na região, e com o auxílio dos refugiados expulsos de Tiro, na
Fenícia, e de outras colônias recém - ocupadas no Mediterrâneo, ofereceu resistência comum
a todos os colonos dispersos na Península Ibérica, na Sicília, na Córsega e na Sardenha. Em
troca de apoio militar contra os gregos, os cartagineses exigiram às antigas colônias fenícias
da região a renúncia, em seu proveito, de toda autonomia política e econômica.227
De acordo
com os autores, foi desta maneira que os cartagineses construíram seu império: no contexto
dos embates contra os gregos.
Antes da fundação de Cartago, fenícios, etruscos e gregos começaram a ocupação das
regiões estratégicas que compunham o Mediterrâneo ocidental. De acordo com Gilbert e C.
Charles-Picard, um acordo não declarado definiu as áreas de influência dos três grupos que
224
WOODHEAD, op. cit., p. 94-99. 225
Ibid., p. 103-105. 226
Ibid., p. 106. 227
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. op. cit., p. 16-17.
91
ocupavam a região: os etruscos conquistaram a costa da Península Itálica, ao passo que os
gregos permaneceram na parte sul da mesma península. Para os fenícios, oriundos de Tiro, o
objetivo era o de manter o controle sobre as rotas comerciais que conduziam à Península
Ibérica, ladeando a costa norte do continente africano, chamado de Líbia pelos antigos. Estas
rotas eram compostas ainda pela parte ocidental da Sicília e pelas ilhas da Córsega e da
Sardenha, cuja ocupação parece coincidir com a fundação de Cartago. Entretanto, apenas em
meados do século VI a. C. os fenícios estiveram em condições de fazer oposição aos gregos e
outros grupos que navegavam pelo Mediterrâneo, a partir da consolidação de sua posição na
Ibéria. Aproveitando-se da crescente rivalidade entre gregos e etruscos, os fenícios
concluíram com estes últimos uma aliança na qual ficava reservado à Cartago todo o
comércio marítimo com a Península Ibérica.228
Outra aliança nos mesmos moldes entre gregos e fenícios parecia improvável. Gilbert
e C. Charles-Picard acrescentam que no final do século VI a. C. os Jônios, motivados pela
expansão Persa, emigraram em larga escala para o Ocidente, ocupando a Sardenha. Este
movimento migratório coincidiu com a tomada de Tiro por Nabucodonosor em 574 a. C., o
que transferiu para Cartago a posição de liderança sobre todas as colônias fenícias do
Ocidente. Entretanto, esta posição ocupada pelos cartagineses se revelou frágil mais tarde,
quase os conduzindo à destruição. Um dos motivos que concorreram para esta situação foi o
controle exercido pelos atenienses sobre a região oriental do Mediterrâneo, impedindo o livre
fluxo das mercadorias cartaginesas. Outro motivo apontado pelos autores foi a queda do
poderio etrusco na Península Itálica, com a sua expulsão de Roma e o consequente
estabelecimento da República. Esta situação levou os cartagineses a buscar novas regiões
onde pudessem continuar mantendo suas trocas comerciais, ampliando sua influência entre os
habitantes do continente africano, fazendo-os ressurgir economicamente.229
O historiador Hedi Slim concorda com esta perspectiva e acrescenta que a ascensão
cartaginesa chocou-se contra o poderio da Grécia, que estava no auge no século V a. C. As
forças gregas chegaram a expulsar os púnicos da cidade-estado de Himera, na Sicília em 480
a. C., o que assinalou uma data importante no processo de expansão marítima de Cartago.
Esta crescente rivalidade com os gregos provocou, na opinião do autor, uma série de
mudanças no modo de vida dos cartagineses. Até este momento, o isolamento da cidade
fenícia havia provocado dificuldades comerciais e problemas de abastecimento de alimentos.
Com o objetivo de restabelecer sua hegemonia mercantil e de novamente se colocar em
228
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. op. cit., p. 17. 229
Ibid., p. 18.
92
condições de resistir às eventuais agressões dos gregos, Cartago ampliou seu domínio sobre as
populações africanas por meio de embates e acordos diplomáticos. Esta ação representou o
enriquecimento econômico para os cartagineses, a partir do controle de uma produção
agrícola em larga escala, e de um aumento do efetivo militar com a cooptação dos
contingentes locais recém-conquistados.230
Contudo, nem todas as relações entre gregos e cartagineses foram de hostilidades. O
pesquisador Mhamed Hassine Fantar revela que o estudo da epigrafia púnica oferece muitas
informações acerca de uma colônia grega estabelecida no interior da sociedade cartaginesa.
Na perspectiva do autor, este grupo seria heterogêneo, formado principalmente por artesãos,
filósofos e militares. Os casamentos mistos, bastante comuns entre os cartagineses, podem ter
sido uma das vias de assimilação com os gregos imigrantes. O autor destaca ainda que o
estudo das consequências destas relações sociais toma como objeto algumas estelas funerárias
votivas encontradas no santuário do Tophet cartaginês. O exame destas estelas permite
verificar que o santuário era bastante frequentado pelos gregos, uma vez que grande número
de dedicatórias encontra-se escrito em seu idioma. Além de indicar a numerosa presença dos
gregos em Cartago, as estelas funerárias permitem inferir que estes estavam integrados àquela
comunidade, sendo a eles permitido praticar seus cultos em acordo com as autoridades
locais.231
Entretanto, para os arqueólogos Gilbert e Collete Charles - Picard, as escavações
arqueológicas na região de Cartago revelaram algumas estelas semelhantes aos ritos
celebrados pelos gregos em honra aos seus heróis míticos, que eram muitas vezes
considerados os fundadores das cidades-estados antigas. Também é possível observar outros
vestígios materiais desta influência cultural, a saber: a arquitetura de Cartago, por exemplo,
possuía características muito semelhantes às dos gregos, que iam desde a estética dos prédios
às técnicas utilizadas para a sua construção.232
Os historiadores antigos também reconheceram a aproximação cultural entre gregos e
cartagineses. Polibios, ao descrever as características da organização política de Cartago,
revela que esta foi bem concebida desde suas origens e, em seu conjunto, assemelhava-se
consideravelmente à de Roma e à de Esparta.233
Por outro lado, o historiador grego Diodoro
da Sicília aponta semelhanças entre gregos e cartagineses no plano do sagrado. Segundo a
230
SLIM, H. Grandeur and decline of the punic city-state. Carthage must not be destroyed. The UNESCO
courier. 1970, p. 9-14. 231
FANTAR, M. H. À propos de la présence des Grecs à Carthage. In: Antiquités africaines, 34,1998. p. 11-19. 232
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. Op. cit., p. 17. 233
História,VI – 51
93
narrativa, os cartagineses, durante um conflito armado contra os gregos no século V a. C.
teriam enviado um número elevado de ofertas votivas ao templo de Héracles que, de acordo
com Diodoro, era cultuado em Tiro, sua cidade natal. Ademais, o historiador grego destaca
que os cartagineses acreditavam que os insucessos nas batalhas eram provocados pela
insatisfação do Titã Cronus, a quem rendiam adorações há muito tempo. Outro aspecto
apontado por Diodoro é o de que a narrativa mítica sobre as ações da divindade supracitada
deveria ocupar um lugar importante no imaginário dos cartagineses.234
Após esta exposição do contexto das descrições de Diodoro da Sicília e seus
desdobramentos, poderemos verificar as condições apontadas pela Arqueologia acerca da
frequência com que os cartagineses teriam praticado o sacrifício humano.
De acordo com o arqueólogo Roald F. Docter, a cronologia convencional do Tophet
cartaginês é tripartida e foi adotada pela primeira vez por arqueólogos britânicos e norte-
americanos na década de 1920. Esta cronologia é baseada em três níveis estratigráficos gerais
chamados de Tanit I, Tanit II e Tanit III, que atravessam todo o período de existência da
cidade-estado cartaginesa. Esta divisão baseou-se na datação inferida a partir da importação,
por parte dos cartagineses, de grande número de vasos de cerâmica oriundos da Grécia,
comparados com as urnas encontradas em diferentes sepulturas ao longo da necrópole púnica.
A Estratigrafia apresenta, portanto, a seguinte cronologia, a saber: Tanit I (750 – 600 a. C.),
Tanit II (600 – 400 a. C.) e Tanit III (300/250 – 146 a. C.).235
Vejamos a seguir a tipologia das vítimas empregadas no ritual. De acordo com a
narrativa de Diodoro da Sicília as vítimas sacrificiais eram crianças. Contudo, o autor não
acrescenta detalhes acerca da faixa etária ou do sexo das mesmas:
“[...] mas, mais recentemente, secretamente compravam e nutriam as
crianças, que enviavam para o sacrifício, e quando uma investigação foi feita,
alguns dos que haviam sacrificado foram descobertos e dissimularam. [...] em seu
zelo para reparar a sua omissão, eles selecionaram 200 dos mais nobres filhos e os
sacrificaram publicamente, e outras pessoas supostamente sacrificaram
voluntariamente, em número não inferior a 300."236
As análises da Antropologia Forense nos fornecem detalhes sobre a vítima expiatória.
O relatório do Departamento de Antropologia da Universidade de Pittsburgh na Pensilvânia,
publicado em 2010, revela informações sobre as características das vítimas. O estudo de uma
amostra de 348 urnas, provenientes de uma escavação realizada em Cartago entre 1976 e
234
Biblioteca Histórica, 14 – 1-7 235
DOCTER, R. (et. Alli). Interdisciplinary Research on Urns From the Carthaginian Tophet and Their Contents.
Palaeohistoria (haarlem) 43-44-2001-2002: p. 417–433. Department of Archaeology and Ancient History of
Europe, Ghent, Belgium. 236
Biblioteca Histórica 22, 14
94
1979, destaca o seu conteúdo, a determinação do sexo e a estimativa da idade dos indivíduos
empregados no ritual.237
Figura 7: Urna contendo ossos calcinados de crianças.
Fonte: Schwartz JH, Houghton F, Macchiarelli R, Bondioli L (2010) Skeletal Remains from Punic Carthage Do
Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoSONE 5(2): e9177 doi:10.1371/journal.pone.0009177
No que tange ao conteúdo, as urnas continham ossos queimados, dentes humanos e
ossos de pequenos animais (principalmente cordeiro ou cabrito) ou ambos, em alguns casos.
Além disso, algumas urnas continham um único indivíduo ou dois, no máximo. Quanto à
identificação do sexo, as análises revelaram que, de um total de 72 indivíduos pesquisados,
58,33% eram meninas e 37,5% meninos. Em outros 4,17% das amostras não foi possível
identificar o sexo do indivíduo em virtude do seu estado de deterioração.238
Outra questão
importante foi a determinação da faixa etária dos indivíduos encontrados nas urnas, que varia
da condição de fetos à idade aproximada de 6 anos. Para este estudo foi analisado um total de
480 indivíduos, conforme gráfico abaixo:
237
SCHWARTZ, J. H.; HOUGHTON, F.; MACCHIARELLI, R.; BONDIOLI, L. Skeletal Remains from Punic
Carthage Do Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoSONE 5(2): e9177.
doi:10.1371/journal.pone.0009177, 2010, p. 10. 238
Ibid., p. 16.
95
Figura 8: Gráfico com a distribuição etária da amostra do Tophet cartaginês
Fonte: Schwartz JH, Houghton F, Macchiarelli R, Bondioli L (2010) Skeletal Remains from Punic Carthage Do
Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoS ONE 5(2): e9177. doi:10.1371/journal.pone.0009177
Outra questão relevante é aquela que se refere à causa da morte das vítimas
expiatórias. O historiador grego Plutarco a descreveu assim:
"[...] e aqueles que não tiveram filhos compravam os pequeninos de pessoas
pobres e cortavam suas gargantas como se fossem cordeiros ou pequenas aves,
enquanto a mãe permanecia junta sem uma lágrima ou lamúria;"239
O também historiador grego Diodoro da Sicília descreveu a execução do ritual:
"Havia em sua cidade uma imagem de bronze de Cronos, estendendo suas
mãos, palmas para cima e inclinada em direção ao chão, de modo que cada uma das
crianças, quando colocada nela, rolava e caía em uma espécie de cova aberta
cheia de fogo."240
Em ambas as descrições é possível inferir que as crianças ainda estavam vivas e eram,
portanto, mortas durante a execução do ritual. Entretanto, o relatório publicado pelo
Departamento de Antropologia da Universidade de Pittsburgh na Pensilvânia destaca que a
presença de indivíduos ainda não totalmente formados e outros indivíduos que não
sobreviveram além de uma ou até duas semanas após o parto, permite concluir que um
número significativo de crianças não poderia ter sido sacrificada, porque elas não estavam
vivas ou não tinham idade suficiente para serem consideradas entidades viáveis para o
sacrifício. Para os pesquisadores, a identificação de fetos não completamente formados na
amostra do Tophet cartaginês é consistente com a incidência de morte fetal e aborto
espontâneo como os principais contribuintes para um quadro de mortalidade infantil,
239
De Superstitione, 13 240
Biblioteca Histórica 22, 14
96
provocado por doenças como varíola, infecções virais, malária e doenças renais. Além disso,
ainda de acordo com o relatório, os cartagineses poderiam estar sujeitos a estas e outras
doenças, como a cólera, disenteria, gastroenterite, hepatite infecciosa, leptospirose, febre
tifoide e parasitas intestinais, a maioria dos quais resultam em desidratação grave,
consideradas causas comuns em situações de mortalidade infantil. Em suma, para os
pesquisadores, não é possível determinar se todas as crianças encontradas no Tophet
cartaginês foram vítimas de sacrifícios.241
Estudos realizados pelo Departamento de Arqueologia e História Antiga da Europa da
Universidade de Ghent, na Bélgica, e publicados em 2003, revelaram resultados semelhantes
aos descritos acima. Os pesquisadores analisaram uma amostra com 19 urnas, onde todas as
crianças, exceto uma, eram recém-nascidas e em todos os casos não foi possível determinar a
causa da sua morte: se estas crianças morreram em decorrência de causas naturais ou se foram
mortas durante o ritual de sacrifício, as análises osteológicas não puderam revelar.242
A arqueóloga Helene Benichou-Safar afirma que as urnas do Tophet cartaginês foram
analisadas à luz da Arqueologia Comparada, da Antropologia e da Medicina Legal, mas não
foi possível determinar se as crianças estavam mortas ou vivas no momento da cremação,
ainda que permitam inferir determinados aspectos que caracterizam o processo como um
ritual. Para este estudo foram analisados 11 lotes com 147 urnas, contendo restos humanos,
restos de pequenos cordeiros, esqueletos não totalmente queimados de outros pequenos
animais, pequenos objetos e restos orgânicos do solo. A pesquisa voltou-se para a posição
sucessivamente repetida do corpo durante a cremação e as características das piras e do ritual
da cremação.243
Ainda de acordo com Helene Benichou-Safar os postulados da Antropologia Forense
determinam que na cremação aleatória, ou seja, aquela em que o indivíduo é capturado em
qualquer posição, os vestígios osteológicos tendem a ser também aleatórios. Por outro lado, se
os resultados de várias cremações são semelhantes, podemos deduzir que os corpos foram
queimados sob as mesmas condições e, em particular, nas mesmas posições. As análises das
cinzas e dos restos osteológicos das urnas do Tophet cartaginês revelaram que as crianças
foram queimadas nas mesmas posições, o que refuta a descrição de Diodoro da Sicília citada
anteriormente que sugere que as mesmas cairiam a esmo dos braços de uma estátua. Ao
241
SCHWARTZ, et. Alli, op. cit., p. 10. 242
DOCTER, R. et. Alli. Interdisciplinary Research on Urns From the Carthaginian Tophet and Their Contents.
Palaeohistoria (haarlem) 43-44-2001-2003: 417–433. Department of Archaeology and Ancient History of
Europe, Ghent, Belgium, p. 424. 243
BENICHOU-SAFAR, H. Sur l'incinération des enfants aux tophets de Carthage et de Sousse. In: Revue de
l'histoire des religions. Tome 205 n°1, 1988. pp. 57-67.
97
contrário, o padrão de queima encontrado nos ossos sugere que as partes do corpo
encontravam-se equidistantes da fonte de calor, o que é consistente com a disposição sobre
uma pira, onde as crianças estavam provavelmente sentadas.244
Alguns objetos como joias, partes de tecido, amuletos e grampos de metal, também
foram encontrados no interior das urnas funerárias. Ainda de acordo com Helene Benichou-
Safar, os grampos de metal eram utilizados para garantir a vedação de uma roupa ou uma
mortalha, o que sugere que as crianças não eram colocadas nuas nas piras, mas envoltas em
tecidos.245
Outra questão relacionada ao padrão das marcas encontradas nos restos humanos
analisados permite identificar o local onde a pira funerária estava localizada. Para Helene
Benichou-Safar, as cremações incompletas permitem inferir que o ritual era realizado em
locais abertos e os vestígios de terra e areia no interior das urnas não apresentaram indícios de
queima, o que pode indicar que foram depositados sobre os indivíduos após a execução do
ritual, provavelmente para apagar o fogo.246
A partir do conjunto de informações levantadas acima, a arqueóloga Helene Benichou-
Safar descreve os elementos que comporiam o ritual cartaginês: na área do Tophet, ou em sua
proximidade imediata, uma pequena fogueira, feita de galhos entrelaçados de madeira maciça
é feita ao ar livre, sob o fundo de uma pira de Terracota. Uma criança é depositada sobre a
pira forrada com ramos, ou talvez, com pedaços de palha. Ela está vestindo ou está envolta em
um pano fechado com grampos. Não é possível dizer se ela está viva ou morta, mas, no
primeiro caso, seus membros seriam provavelmente danificados, porque a sua posição na pira
é constante. A fogueira é então acesa. Antes do processo de cremação estar concluído, por
vezes, uma parte ou a totalidade de um pequeno animal é depositado ao lado da criança. O
fogo não é fraco, de modo a garantir a combustão total dos indivíduos depositados sobre a
pira. Quando a calcinação é considerada suficiente, um punhado de terra ou areia é usado para
apagar o fogo. Chega o momento de preencher as urnas. As cinzas e as brasas são esfriadas
com água, se necessário e, depois retiradas da pira e depositadas nas urnas. Os ossos longos
das crianças também são quebrados, se necessário, e algumas joias, colares de contas e
amuletos são espalhados sobre a superfície das cinzas da urna que é, depois, fechada com uma
fina camada de argila.247
244
BENICHOU-SAFAR, op. cit., p. 59. 245
Ibid., p. 61. 246
Ibid., p. 62. 247
Ibid., p. 67.
98
Em síntese, temos, nas urnas do Tophet Cartaginês, crianças de ambos os sexos cuja
faixa etária varia de meses até os 6 anos de idade e cuja causa da morte é de difícil
identificação. Além disso, a quantidade de urnas e a sua periodização nos permitem inferir
que se trata de uma prática habitual, que esteve presente ao longo de toda a história de
Cartago. A posição regular do corpo e o padrão da queima permitem inferir também que se
trata de um ritual.
Entretanto, como vimos, há certa contradição entre as descrições dos historiadores
antigos e as descobertas arqueológicas que apontam para a presença do ritual de sacrifício
entre os cartagineses. Neste sentido, é possível falar em práticas de sacrifícios humanos
naquela região, ainda que não saibamos exatamente a causa da morte das vítimas? A
primeira questão a se considerar é se os vestígios arqueológicos refletem a prática de
sacrifícios humanos ou se revelam os costumes funerários dos cartagineses, uma vez que, de
acordo com Barbara Ehrenreich, os registros arqueológicos costumam apresentar uma grande
variedade de interpretações possíveis e é preciso diferenciar os restos de um sacrifício ritual
de uma execução ou de uma simples cerimônia fúnebre.248
O pesquisador Donald Harden revela que o principal rito funerário dos fenícios era a
inumação, mas é possível encontrar também vestígios que demonstram a prática da cremação.
Para o autor, é possível definir os períodos em que a cremação ritual esteve mais presente na
civilidade cartaginesa: esta prática teria sido introduzida naquela região por volta do século
VII a. C., tendo sido abandonada no século VI a. C. e reintroduzida em meados do século III
a. C. Entretanto, ainda assim, a inumação manteve-se predominante em Cartago até a invasão
romana em 146 a. C. A presença concomitante destes ritos pode ser o resultado da origem
heterogênea da população cartaginesa.249
O historiador e arqueólogo Serge Lancel concorda com a hipótese da coexistência
entre a inumação e a cremação ritual nas práticas funerárias dos cartagineses. Para o autor, o
recurso à cremação reflete a fidelidade de parte da população de Cartago às práticas mais
recorrentes na Fenícia. O autor adverte, no entanto, que as escavações arqueológicas
demonstram que a cremação tornou-se mais frequente em Cartago a partir do século VI a. C.
No período helenístico (séculos IV ao II a. C.) a sepultura se generalizou na forma de
pequenos túmulos de pedra calcária cobertos com uma tampa, possuindo duas câmaras, sendo
uma delas destinada aos restos mortais incinerados.250
248
EHRENREICH, op. cit., p. 67. 249
HARDEN, op. cit., p. 104-105. 250
LANCEL, op. cit., p. 241.
99
Ainda de acordo com Serge Lancel as práticas funerárias não estão desvinculadas do
desenvolvimento urbano. Nas grandes cidades-estados do mundo antigo, o crescimento
urbano se realiza em detrimento das necrópoles, abandonadas na medida em que as vilas
crescem. Cartago também praticou essa reconquista do território dos mortos em proveito dos
vivos. A coexistência parcial dos vivos e dos mortos limita a ocupação do solo, o que era
problemático para Cartago que atravessara um longo período de crescimento da sua densidade
populacional desde sua fundação em 814 a. C. Neste sentido, para o autor, o crescimento
demográfico levou os cartagineses a abandonar a inumação e a adotar a cremação em meados
do século IV a. C.251
A historiadora Glen Markoe também analisa as características da celebração dos ritos
fúnebres entre os fenícios. Segundo a autora, a iconografia funerária fenícia revela que havia
entre eles a crença na ideia de vida após a morte. A adoção de símbolos egípcios sugere esta
hipótese, como o Ankh (símbolo da vida) e a Flor de Lótus, símbolo da regeneração. A Flor de
Lótus aparece em uma variedade de contextos religiosos, associada à proteção e renovação do
morto. A proximidade do vale do Nilo justifica a influência dos ritos funerários egípcios sobre
os fenícios. A Arqueologia tem tido relativo sucesso em reconstruir tais ritos, uma vez que a
documentação textual pouco nos revela a respeito.252
As evidências arqueológicas encontradas em Cartago sugerem que um banquete ou
refeição cerimonial era encenado sobre a sepultura, por ocasião de seu fechamento. A
conclusão da cerimônia de sepultamento era acompanhada por libações e pela queima de
incensos. O ritual de preparação do morto era realizado de acordo com o segmento social a
que pertencia. O corpo era lavado, recebia óleos aromáticos e depois era envolto por
bandagens de tecido. Os mortos eram sepultados com vários utensílios, como potes de óleo,
pratos, taças e etc. As cerimônias de cremação foram introduzidas pelos fenícios no
Mediterrâneo Central e Ocidental por volta do século VIII a. C. Esta prática foi predominante
naquela região durante três séculos, sendo substituída gradualmente pelo sepultamento. Em
Cartago, o sepultamento era o método mais comum, especialmente entre os grupos sociais
predominantes.253
Estas características das práticas funerárias em Cartago levaram o arqueólogo Claude
Frédéric Armand Schaeffer a defender a hipótese de que as urnas encontradas no Tophet
251
LANCEL, op. cit., p. 242. 252
MARKOE. G. The Phoenicians. Berkeley: University of California Press, 2000, p. 137-140. 253
Ibid., p. 140.
100
cartaginês estavam relacionadas a um tipo particular de sepultamento, destinado apenas para
as crianças, e instalado nas proximidades de um santuário254
.
Entretanto, ao examinarmos de forma comparada as inscrições localizadas próximas às
urnas funerárias e as inscrições dos túmulos, observamos uma sensível diferença entre elas.
As inscrições funerárias fenícias foram traduzidas a partir do semita e estão disponíveis no
Kanaanäische und Aramäische Inschriften (KAI), no Repertoire d’épigraphie Semitique
(RES) e no Corpus Inscriptionum Semiticarum (CIS). Vejamos a primeira citação:
"Eu Tabnit, sacerdote de Astarte, rei dos sidônios, filho de Eshmunazor, sacerdote
de Astarte, rei dos sidônios, descanso neste sarcófago [...]”255
Abaixo podemos perceber que algumas inscrições funerárias eram elaboradas, por
vezes, ainda durante a vida do indivíduo:
"Eu, [...] filho de Shipitbaal, rei de Byblos, fiz para mim este lugar de descanso
[...] sarcófago [...] Então eu fiz [...] neste lugar de descanso onde o descanso [...]."256
Nas urnas funerárias dos adultos que foram submetidos ao ritual de cremação também
são verificadas inscrições:
“Urna para os ossos de Abdmelqart, conselheiro, homem livre, servo (?) de
Abdmelqart. Ele construiu esta urna para ele, no comando da [...] Por toda a
eternidade.”257
Abaixo, podemos verificar que a prática da cremação coexistiu com a prática da
inumação.
“Então meu corpo foi queimado em uma pira e foi sepultado junto com os corpos da
minha família: cremado e enterrado no mesmo túmulo, urnas ao lado dos caixões,
cinzas perto dos ossos, para os homens que tinham imaginado quase o mesmo
mundo dos mortos [...]”258
Em algumas inscrições é possível observar a preocupação dos cartagineses em relação
à violação de túmulos:
254
SCHAEFFER, C. F. A. Ugaritica IV: Decouvertes Des XVII Et XIX Campagnes, 1954-1955; Fondements
Prehistoriques D'Ugarit Et Nouveaux Sondages; etudes Anthropologiques; Poteries Grecques Et Monnaies
Islamiques De Ras Shamra Et Environs: Tome XV, Mission De Ras Shamra. Paris: Librairie Orientalise Paul
Geuthner, 1962, p. 64. 255
KAI 128- Inscrição neopúnica. 256
KAI 9 – Inscrição encontrada em Byblos – Séc. V a. C. 257
RES 906 - Inscrição em duas linhas gravada em uma ânfora com duas alças encontrada na necrópole de
Sousse. 258
Transcrição de epitáfio em túmulo cartaginês – RIBICHINI, S. Il Morto. In: ZAMORA, J. A. El hombre
fenicio. Estudios y materiales. Roma, Madrid, 2003, p. 259-278
101
“Túmulo de Zaybaqat, sacerdotisa de [...], filha de ‘Abdesmoun, filho de
Ba‘alyatôn, filho de ‘Abdesmoun, mulher de Ba ‘alhanno maqam elim (?), filho de
‘Abdmelqart, filho de Hamilkat, filho de ‘Abdesmoun. – Não abra.”259
Os textos das urnas funerárias do Tophet cartaginês revelam um conteúdo diferente
daqueles citados acima. Vejamos as inscrições:
“O senhor, o deus Baal Hammon, oferenda dedicada por Hannon, filho de
Magon, porque ele ouviu a sua voz e o abençoou.”260
“Ao Senhor Baal Addir e à grande Tanit face de Baal, o voto dedicado.”261
“Ao senhor Baal Hammon, o voto dedicado por Bodmelqart, filho de Magon,
para que ouça a sua voz, e seja bem-aventurado, no dia do favor [...] da benção.”262
Nas inscrições acima podemos perceber que há a indicação da relação entre o ofertante
das urnas funerárias e a divindade através das expressões “voto” e “oferenda”. Neste caso o
objeto consagrado, ou seja, a criança, atua como intermediário entre o ofertante e as
divindades. Mas é preciso distinguir a oferenda, ritual no qual um objeto se interpõe entre o
individuo e os deuses num processo de comunicação, do ritual de sacrifício. Todo sacrifício é,
em certa medida, uma oferenda, mas nem todas as oferendas são sacrifícios.263
Veremos esta
diferença a seguir, ao analisarmos de forma comparada as teorias sacrificiais pertinentes à
Antropologia, a partir da obra de René Girard e dos estudos de Henri Hubert e Marcel Mauss.
Analisaremos, portanto, os conjuntos de problemas inseridos no campo de
experimentação comparada que se referem às questões relativas à definição do conceito de
sacrifício. A partir desta análise experimental objetivamos selecionar o modelo teórico que
nos permita interpretar as informações arqueológicas de que dispomos a respeito do ritual
cartaginês, observando as seguintes questões, conforme a grade de comparação abaixo: o que
significa sacrificar e qual a função social da prática sacrificial? De que maneira se
caracteriza a vítima expiatória?
259
CIS I, 97 – Inscrição funerária proveniente de Cartago – Original disponível no Museu Borely em Marseille. 260
RES 326 – Estela funerária do Tophet Cartaginês - Original disponível no Museu do Louvre. 261
RES 326 – Estela funerária do Tophet cartaginês – Original disponível no Museu do Louvre. 262
RES 326 – Estela funerária do Tophet cartaginês – Original disponível no Museu do Louvre. 263
MAUSS, M; HUBERT, H. Sobre o Sacrifício. São Paulo: CosacNaify, 2005, p. 17.
102
Quadro Comparativo 2: Análise comparada da teoria do sacrifício
Iniciaremos nosso estudo a partir da seguinte questão: o que significa sacrificar? O
antropólogo e literato René Girard destaca que nos mais diversos rituais, em variadas
sociedades, o sacrifício apresenta duas características principais, a saber: algo extremamente
sagrado do qual não se pode evitar, sob pena de incorrer em negligência, ou um crime no qual
a ação implica riscos à sociedade. Para o autor, a violência ocupa uma posição de destaque na
atividade sacrificial, fato que faz dela um importante elemento de análise. Os elementos
fisiológicos da violência variam pouco de sociedade para sociedade, e uma vez despertado, o
seu desejo produz reações corporais que preparam os homens para o embate. Existem diversas
causas que motivam a irradiação da violência, mas estas razões não devem ser consideradas
de modo absoluto, uma vez que a própria violência vai descartá-las no momento em que o seu
objeto inicial deixar o seu alcance. A violência que não pôde ser saciada irá procurar outra
vítima que não atraía sobre si a ira do violento, mas que torna-se alvo por estar vulnerável e
ao seu alcance, o que revela a capacidade humana de encontrar objetos alternativos. Para o
autor, o sacrifício ritual se baseia em uma substituição do objeto que desencadeou o desejo
violento. Esta substituição objetiva proteger o alvo inicial da violência.264
Assim, para René Girard, as sociedades buscam desviar para uma vítima indiferente,
uma violência que pudesse colocar em risco sua própria sobrevivência. É uma ação que
objetiva iludir a violência, oferecendo a ela uma válvula de escape, na qual se perde de vista o
objeto inicialmente visado. Entretanto, este aspecto da atividade sacrificial não pode ser
revelado: a substituição requer desconhecimento, ainda que o objeto desencadeador da
violência não possa ser completamente esquecido. É neste processo de desconhecimento que a
teologia do sacrifício é aplicada. A partir desta perspectiva acredita-se que uma divindade
264
GIRARD, R. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 11-13.
Conceito Vítimas Ritual Função Social
René Girard x x x x
Marcel Mauss
& Henri Hubertx x x x
Teoria Sacrificial
T
e
ó
r
i
c
o
103
solicita as vítimas e em princípio apenas a ela se direciona a fumaça dos holocaustos. É para
apaziguar sua cólera que o ritual do sacrifício é praticado pelas sociedades. Há, portanto, um
esforço coletivo para organizar uma instituição social em torno de uma entidade simbólica.
Metodologicamente, o autor destaca que podemos negligenciar os aspectos teológicos do
sacrifício ritual, mas buscar as relações conflituosas por eles dissimuladas e apaziguadas.265
O sacrifício tem uma função social real. Para René Girard, a substituição operada pela
vítima abrange a totalidade da sociedade e não apenas alguns indivíduos. A vítima substitui e
é oferecida a todos os membros da comunidade. É a comunidade que o sacrifício protege de
sua própria violência. A violência apaziguada pelo sacrifício é oriunda do interior da
comunidade: são as rivalidades, as desavenças, os ciúmes, as disputas entre os próximos. O
sacrifício, em qualquer civilidade onde é aplicado, procura restaurar a harmonia da
comunidade, reforçando sua unidade social.266
No que tange à vítima sacrificial, René Girard acrescenta que não há nenhuma
distinção entre animais e seres humanos. A substituição sacrificial baseia-se no princípio da
semelhança entre a vítima atual, aquela imolada no altar, e a vítima potencial, aquela
substituída durante o ritual. Assim, para que determinado tipo de indivíduo seja considerado
sacrificável, é preciso que haja entre ele e as categorias não sacrificáveis uma semelhança
possível, mas não total, sob o risco de gerar uma grande confusão. No caso de sacrifícios de
animais esta diferença é notável. No caso dos sacrifícios humanos encontram-se os indivíduos
que apresentam vínculo bastante frágil com a coletividade social, a saber: os prisioneiros de
guerra, os escravos e as crianças. O autor acrescenta que as crianças e até mesmo os
adolescentes tornam-se vítimas sacrificáveis por não pertencerem à comunidade, uma vez que
seus diretos e deveres cívicos são quase inexistentes.267
O tema da semelhança e a fragilidade do vínculo social, no entanto, não justificam
completamente a escolha de determinadas categorias como vítimas expiatórias. Entre todos os
indivíduos passíveis de serem sacrificados e a comunidade na qual estão inseridos há a
ausência de uma relação social que provoque o desejo de vingança sobre o sacrificante em
relação à vítima. O sacrifício é uma violência sem riscos de vingança.268
Em resumo, podemos observar que, para René Girard, a função social do sacrifício é a
de purificar a violência, tornando-a sagrada, deslocando-a para vítimas que não possam ser
vingadas. Por outro lado, o ritual compreende sua própria eficácia recorrendo a elementos e
265
GIRARD, op. cit., 14-18. 266
Ibid., p. 19-20. 267
Ibid., p. 24. 268
Ibid., p. 25.
104
objetos simbólicos. Neste processo, o sangue ocupa um lócus privilegiado em toda operação
da violência. Mas este sangue não é o mesmo da violência impura que envelhece sobre a
vítima. Trata-se do sangue fluido das vítimas recém - sacrificadas que o rito só utiliza no
instante em que é derramado, sendo imediatamente removido. O sangue é um elemento que
traz consigo um duplo aspecto, a saber: é, ao mesmo tempo, puro e impuro. É um elemento
que leva o homem à morte, mas também o apazigua e o faz reviver. Na perspectiva de René
Girard o sangue derramado no altar é um objeto simbólico essencial do ritual, no qual a
violência purificadora se manifesta.269
Por outro lado, os antropólogos Marcel Mauss e Henri Hubert apresentam perspectiva
diversa acerca da instituição sacrificial e sua função social. Os autores afirmam que a noção
de consagração está diretamente vinculada à de sacrifício, chegando por vezes a confundir
uma com a outra. Em toda atividade sacrificial determinado objeto passa do plano comum ao
domínio do religioso. Esta é uma consagração de grande alcance, afetando inclusive os
indivíduos responsáveis pela execução do ritual. Aquele que ofereceu a vítima não é mais o
mesmo após o ritual, alcançando um estado religioso distinto ou acautelando-se de algo que o
prejudicava.270
Há, no entanto, um traço distintivo entre o sacrifício e as demais consagrações. Para
Marcel Mauss e Henri Hubert, no sacrifício o objeto consagrado deve servir de intermediário
entre aquele que realiza o ritual e a divindade para quem o sacrifício é destinado. Os homens e
os deuses encontram-se separados e o sacrifício é uma das vias de comunicação entre ambos.
Mas esta característica ainda é insuficiente para distinguir o sacrifício das demais oferendas.
A característica distintiva do sacrifício em relação às outras oferendas é a destruição do objeto
apresentado. A finalidade do ritual só é atingida quando a vítima é degolada, esquartejada ou
consumida pelo fogo. No sacrifício as forças religiosas são mais devastadoras do que na
maioria das oferendas. Assim, é possível dizer que o sacrifício é toda consagração, mesmo
que de um vegetal, na qual a oferenda ou uma parte dela é destruída, ainda que por
convenção o termo tenha sido aplicado apenas aos rituais em que o sangue da vítima é
derramado no altar. O instrumento da consagração é o mesmo em ambos os casos, não
havendo, na perspectiva dos autores, motivo para qualquer distinção.271
As especificidades da vítima sacrificial também foram tema da análise de Marcel
Mauss e Henri Hubert. Algumas vítimas possuem um caráter sagrado por sua natureza, na
269
GIRARD, op. cit., p. 52-53. 270
MAUSS; HUBERT, op. cit., p. 15-16. 271
Ibid., p. 18-19.
105
qual aparece ligada à divindade por ocasião do seu nascimento. Nestes casos, por ter um
caráter divino não é necessário que o adquira para o ritual. Por outro lado, no entanto,
algumas vítimas precisam adquirir esta característica antes da execução do ritual, para
prepará-la para a função sagrada que irá exercer. Estas vítimas, em geral, devem possuir
determinados aspectos que as tornam aptas a receber a consagração, a saber: não apresentar
doenças, pertencer a determinada faixa etária ou possuir determinado sexo. Estes aspectos
variam de cultura para cultura. Em outros casos, a vítima deve ser enfeitada, adornada com
determinados objetos ou ter sua pele pintada e as suas qualidades reveladas. Através destes
elementos, a vítima vai progressivamente sendo divinizada. Esta divinização possui um duplo
aspecto: torná-la propriedade da divindade e garantir que a mesma não se vingará após o
ritual. Estes costumes, na opinião dos autores, se justificam em função de que a vítima possui
um espírito que o ritual pretende libertar. Mas é preciso estar em comunhão com este espírito,
que de outra forma poderia se tornar perigoso, motivo que justifica os elogios e adornos
endereçados à vítima.272
Ao analisarmos as características acima podemos relacioná-las ao ritual cartaginês.
Sabemos que a vítima cartaginesa era depositada na pira sacrificial vestida unicamente com
uma mortalha e as joias e amuletos encontrados nas urnas foram ali depositados após o ritual.
A partir destas informações, podemos inferir que a ausência de ritos mais elaborados antes da
execução do sacrifício é um indicador de que a vítima colocada sobre a pira já possuía um
caráter sagrado, adquirido provavelmente após a sua morte natural, antes de alcançarem o
status de integrantes daquela comunidade.
Para Marcel Mauss e Henri Hubert, chama-se sacrifício toda ação religiosa que, a
partir da consagração da vítima, transforma o estado do indivíduo que o efetua ou de
determinados objetos pelos quais este indivíduo se interessa.273
Assim, podemos inferir que,
ainda que não possamos determinar a causa da morte das vítimas expiatórias, o ritual
praticado pelos cartagineses era de fato um sacrifício. A criança, estando ela provavelmente
morta, é colocada intacta na pira sacrificial, tendo seu estado físico alterado pelo fogo que é
posteriormente aceso. O ritual tem seu objetivo alcançado quando o fogo a consome em sua
totalidade. No final, quando as chamas se apagam ela está, portanto, sacrificada.
Entretanto, a execução do ritual sacrificial produz e é portadora de um valor simbólico
que traz consigo uma objetividade imanente. Uma vez decompostos os elementos que
compõem o ritual, torna-se imperioso avaliar o sentido por ele produzido, buscando
272
MAUSS; HUBERT, op. cit., p. 34-37. 273
Ibid., p. 19.
106
identificar os motivos pelos quais os cartagineses recorriam a estas práticas. Este será o
assunto do próximo capítulo, no qual analisaremos os principais aspectos da religião em
Cartago e suas práticas sacrificiais em comparação com a civilidade romana, destacando a
especificidade do caso cartaginês.
107
3. O RITUAL DE SACRIFÍCIO HUMANO EM CARTAGO: ANÁLISE
COMPARADA COM O RITUAL ROMANO E SIGNIFICADO
Neste capítulo analisaremos as interações entre a História e a Arqueologia e o seu
valor para o estudo da cultura material. As informações arqueológicas nos permitem inferir
questões acerca do ritual de sacrifícios de crianças em Cartago, a saber: os gestos feitos
durante a cerimônia, a construção das fogueiras individuais, a imobilização e instalação das
crianças, a imolação das vítimas e a extinção das brasas. Esta reconstrução parcial dos
procedimentos seguidos durante a celebração religiosa nos permite analisar seus componentes
em busca do seu significado simbólico a partir de uma perspectiva comparada com a
civilidade romana, onde a documentação textual deixa transparecer a presença de rituais
semelhantes de sacrifícios humanos. A comparação aqui empregada nos permitirá estabelecer
a singularidade do caso cartaginês, onde incluiremos a análise da sua religião e de sua
organização sacerdotal em perspectiva com as estruturas religiosas romanas. Ao final deste
capítulo pretendemos responder ao seguinte conjunto de questões, a saber: quais condições
sociais favoreciam ao desenvolvimento das atividades sacrificiais? Quais as especificidades
do uso de crianças como vítimas expiatórias? Qual o significado simbólico dos elementos
rituais presentes nestas práticas?
3.1: História e Arqueologia
A História, como disciplina moderna nascida no século XIX, manteve seu aspecto de
gênero literário herdeiro da tradição dos historiadores antigos, como Heródoto e Tucídides.
No entanto, a influência cristã agregou à História certo cunho moralista e teológico que a
distanciava dos modelos Greco-romanos274
. De acordo com Pedro Paulo Funari, a moralidade
cristã impôs à História um começo (a criação do mundo), um meio (a chegada do Messias) e
um fim (o julgamento final). A História moderna surge no contexto do embate iluminista
contra as concepções religiosas do mundo, representado pela crítica da Filologia ao privilégio
da gramática latina como centro do conhecimento275
. Os primeiros historiadores foram os
274
FUNARI, P. P. A. Os Historiadores e a Cultura Material. In: PINSKY, C. Fontes Históricas. São Paulo:
Contexto, 2006, p. 82. A história escrita pelos historiadores antigos também tinha um caráter ético, de cunho
moral, mas no sentido de impulsionar os homens a agirem numa determinada direção. 275
Ibid., p. 83. A Filologia definia um estudo positivo das línguas, com a análise de suas estruturas e relações,
como um sistema. Nesse sentido, os filólogos dedicaram-se ao estudo de línguas ainda não analisadas, buscando
reconstituir suas possíveis origens comuns.
108
filólogos que buscavam conhecer os fatos que realmente aconteceram, e para isso precisavam
conhecer as fontes, essencialmente documentos escritos, em sua língua original. Na opinião
do autor, trata-se de uma mudança epistemológica, na medida em que defende a ideia de que a
História se faz com documentos. Em virtude de sua origem filológica, a História mantém uma
relação estreita com a documentação escrita. Entretanto, para os historiadores da tradição
Greco-romana, a História se fazia com testemunhos, objetos e paisagens, ou seja, com o uso
de fontes276
materiais.277
A Arqueologia teve origem na própria História, como uma ferramenta para
disponibilizar a documentação escrita sobre o passado e para complementar as informações
disponíveis com evidências materiais sem escrita. Ainda de acordo com Pedro Paulo Funari, a
preocupação dos pesquisadores com a documentação textual provocou inúmeras iniciativas
arqueológicas de coleta e publicação de objetos, edifícios e outros aspectos da cultura
material. O culto ao antigo se constituiu, em certo sentido, como uma atividade precursora da
Arqueologia. Para o autor, foi no século XIX, através da História e da Filologia, que a cultura
material deixou de ser um objeto artístico para se integrar ao corpus documental histórico.278
O historiador Moses I. Finley acrescenta que todos os documentos originais escritos da
Antiguidade que chegaram até nós estão disponíveis em virtude da atividade arqueológica.279
Para o pesquisador José D’Assunção Barros, a História da Cultura Material
incorporou a comunidade de arqueólogos na comunidade historiadora, uma vez que até então
a Arqueologia vinha sendo tratada como disciplina distinta da História. De acordo com o
autor, todo arqueólogo é também um historiador da Cultura Material, não se limitando a
coletar dados de civilidades.280
O historiador Jean-Marie Pesez revela que o desenvolvimento das ciências humanas
no final do século XIX esteve ligado às correntes evolucionistas281
. As mesmas correntes que
influenciaram a nova Arqueologia, a partir da tomada de consciência acerca da cultura
material. Esta nova Arqueologia objetivou, em primeiro lugar, analisar os aspectos materiais
276
FUNARI, op. cit., p. 85. O termo fonte é uma metáfora, cujo sentido inicial remete a uma “bica d’água”.
Trata-se do uso figurado da palavra de origem latina fons, da expressão “fonte de alguma coisa”, com o sentido
de origem. Para os historiadores do século XIX , assim como as fontes de água, dos documentos jorrariam
informações a serem utilizadas por eles. 277
Ibid., p. 81-84. 278
Ibid., p. 85. 279
FINLEY, M. I. História Antiga: testemunhos e modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 43. 280
BARROS, op. cit., p. 32. 281
PESSEZ, J-M. História da Cultura Material. In: LE GOFF, J.; CHARTIER, R.; REVEL, J. (Orgs.) A
História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 238. Em meados do século XIX rompeu-se com o marco das
belas letras com os quais o humanismo encarava o estudo do homem com a instauração das ciências humanas, a
Sociologia, a Antropologia e a abordagem natural proposta por Charles Darwin. On the Origin of Species (1859)
de Charles Darwin foi decisiva neste processo.
109
das civilidades, baseando-se neles para construir a própria definição das culturas e sua
“evolução”: a Arqueologia pré-histórica. Ainda de acordo com o autor, a cultura material282
é
domínio dos arqueólogos cuja atividade no novo campo se define a partir de suas fontes: as
fontes materiais são aquelas pelas quais os arqueólogos estudam as sociedades do passado.
Durante muito tempo a Arqueologia buscou compreender as manifestações das representações
mentais sob todos os aspectos religiosos ou artísticos. A Arqueologia só atingiu a cultura
material a partir do exemplo da “pré-história” e da renovação das ciências humanas.283
(PESEZ, 2005: 240-241).
Ainda que não tenha sido ignorada por completo, a cultura material teve alcance
limitado entre os historiadores durante o século XIX. De acordo com Jean-Marie Pesez esse
cenário modificou-se a partir da escola dos Annales284
, que ampliou o domínio do historiador
acrescentando-lhe a cultura material. Por outro lado, a vida material ingressou efetivamente
na História a partir do destaque alcançado pela História Econômica que tomou o lugar da
narrativa fatual comum do século XIX. Para o autor, no entanto, a história da cultura material
continua procurando forjar seus conceitos e suas implicações teóricas até os dias atuais.285
De acordo com José D’ Assunção Barros a cultura material estuda os objetos materiais
em sua interação com diversos aspectos da vida cotidiana, desdobrando-se por temas que vão
dos estudos dos utensílios ao estudo da alimentação, vestuário, moradia e das condições
materiais do trabalho. O estudo dos objetos da cultura material faz com que esta
especificidade da História esteja ligada à Arqueologia. Entretanto, para o historiador, a
Arqueologia remete aos métodos que serão empregados para o levantamento de dados sobre
os quais irá incidir um determinado enfoque, que pode ser o da História da Cultura Material
ou outro campo específico do conhecimento histórico286
.
Para Jean-Marie Pesez o historiador da Antiguidade, por tratar de temporalidades
muito distantes, muitas vezes aborda as civilidades que estuda através de questões relativas ao
vestuário, à alimentação, às técnicas, crenças religiosas e costumes. Em muitos casos,
determinadas civilidades antigas só permitem seu estudo a partir da Arqueologia. E a
282
PESSEZ, op. cit., p. 242. Há um debate recorrente acerca do uso dos termos cultura material ou civilização
material. A palavra civilização se refere a um sistema de valores que opõe os civilizados aos bárbaros e aos
primitivos. Já o termo cultura pode ser mais facilmente utilizado no plural e não implica hierarquia. 283
Ibid., p. 240-241. 284
Destaque para os trabalhos de Marc Bloch (Les caracteres originaux de L’histoire rurale française, 1931) e
Fernand Braudel (La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II, 1949). 285
PESSEZ, op. cit., p. 247. 286
BARROS, op. cit., p. 32.
110
Arqueologia, por sua natureza, transmite mais informações sobre os aspectos da cultura
material do que acerca das mentalidades e dos acontecimentos.287
O historiador Moses I. Finley acrescenta que os pesquisadores da Antiguidade durante
muito tempo relegaram à Arqueologia a condição de atividade subsidiária, de menor
importância, que fornecia informações sobre curiosidades acerca da vida cotidiana,
objetivando complementar a “verdadeira” história, obtida através dos documentos escritos.
Para o autor, os historiadores da Antiguidade nos dias de hoje devem compreender a
variedade de testemunhos que estão à disposição de suas pesquisas e que muitas vezes
parecem mutuamente contraditórios. O aumento do corpus documental deve-se, em grande
medida, à quantidade de informações arqueológicas disponíveis e à quantidade de publicações
acerca da História Antiga.288
A natureza da maioria das informações à disposição do historiador da Antiguidade é
questionável. Segundo Moses I. Finley os historiadores antigos, como Herodoto, Tito Lívio,
Dionísio de Halicarnasso, entre outros, não admitiam lacunas em suas narrativas e as
preenchiam recorrendo à invenção. Para o autor a habilidade dos antigos historiadores em
inventar e sua capacidade de acreditar nestas invenções são persistentemente subestimadas
pelos estudiosos modernos. Ao escrever a história do seu mundo, gregos e romanos se
depararam com grandes lacunas nas informações sobre o seu passado, ou ainda grande
quantidade de dados que incluíam ficção misturada aos eventos mencionados.289
As peculiaridades da produção da documentação textual colocam em questão o lugar
do indício arqueológico no corpus de informações disponíveis para o pesquisador da História
Antiga. Moses I. Finley acredita que não podemos falar da relação entre História e
Arqueologia como disciplinas distintas. Para o autor, trata-se, na verdade, de dois tipos de
testemunhos históricos. O estudo de determinados objetos, muitas vezes requer a combinação
de dois tipos de testemunhos, a saber: o escrito e o material. Nos casos em que os tipos de
testemunho estão em conflito direto, um dos dois deve ceder lugar ao outro e, normalmente,
quem cede é o testemunho escrito.290
O pesquisador Anthony Snodgrass acrescenta que a independência das evidências
arqueológicas reside no fato de que a hipótese e os argumentos do arqueólogo são parte de um
nexo de teoria arqueológica geral e prática, o que é algo independente da teoria histórica, uma
vez que ela se desenvolveu, em parte, a partir dos resultados do trabalho de arqueólogos em
287
PESEZ, op. cit., p. 244. 288
FINLEY, op. cit., 1994, p. 12. 289
Ibid., 1994, p. 20-23. 290
Ibid., 1994, p. 24.
111
áreas que não são historicamente documentadas. A objetividade das evidências arqueológicas
revela um contraste com a qualidade de alguns dos outros elementos documentais utilizados
em História Antiga, que nem sempre é reconhecido por seus praticantes. Os historiadores da
Antiguidade usam a palavra fonte com uma latitude muito grande: Heródoto é a fonte para o
estudo da sociedade egípcia e Tucídides é a fonte para o estudo da Guerra do Peloponeso. O
problema deste uso excessivo, na opinião do autor, é que não há distinção entre a
documentação textual e outros registros contemporâneos a partir dos quais esses historiadores
antigos derivaram seus relatos e que podem, em alguns casos, ainda sobreviver. É esta
circunstância que fornece às evidências arqueológicas parte de seu valor para os estudos
antigos: os vestígios físicos escavados, pelo menos no momento de sua descoberta, nos
aproximam de um tipo de realidade histórica que nem sempre estamos propensos a acessar
por qualquer outro meio. Mas este momento é efêmero: o material escavado não possui um
significado histórico até que tenha sido submetido a uma série de processos e análises.291
A qualidade experimental da Arqueologia está ligada ao fornecimento de novas
evidências acerca de determinados objetos de estudo. De acordo com Anthony Snodgrass é
isso que permite à Arqueologia proceder, às vezes, pelo tipo de experimentação que é mais
frequentemente associada com as ciências naturais. O arqueólogo pode formular hipóteses,
variando de proposições históricas simples para modelos complexos do comportamento
humano, e, em seguida, testá-los, buscando novas evidências. Ou ele pode levantar questões
ou problemas em aberto e igualmente procurar a evidência que irá fornecer-lhe uma resposta.
O historiador, trabalhando apenas com informações não arqueológicas, normalmente não
pode recorrer a este procedimento, muito menos em História Antiga, uma vez que as
descobertas de material novo, embora não tão raras como se acredita, são quase inteiramente
imprevisíveis.292
A seguir, analisaremos de maneira comparada os principais aspectos da religião
cartaginesa e romana.
3.3: Religião cartaginesa e romana: uma comparação.
Ao tecer sua comparação entre as instituições romanas e cartaginesas, o historiador
grego Políbios destaca aquela que seria, em sua opinião, a maior superioridade dos romanos:
291
SNODGRASS, A. Archaeology. In: CRAWFORD, M. (Org.) Sources for Ancient History. Cambridge:
University Press, 1984, p. 138-139. 292
Ibid., p. 140.
112
“[...] Parece-me, porém, que a superioridade maior do povo romano está em
suas concepções religiosas; em minha opinião, o que entre outros povos constitui
um defeito reprovável – refiro-me à superstição – é o sustentáculo da coesão de
Roma”.293
Diante destas considerações, analisaremos, a partir de um exercício de experimentação
comparada, a religião romana e a cartaginesa, objetivando destacar suas semelhanças e
diferenças, assinalando as escolhas feitas pelas respectivas civilidades. Adotaremos a tabela
abaixo com o objetivo de organizar o nosso conjunto de problemas, a saber: quais os
princípios religiosos de romanos e cartagineses? Quais as respectivas formas de contato com
os deuses? De que maneira se organizavam os sacerdotes e as celebrações rituais?
Quadro Comparativo 3: Análise comparada da religião romana e cartaginesa
Iniciaremos nossas análises a partir da interpretação acerca dos princípios religiosos
dos romanos. Para Pierre Grimal, a tradição atribui a Numa Pompílio, um Sabino que teria
governado entre 717 e 673 a. C., a organização da religião romana. Este monarca simbolizava
as formas de religiosidade desvinculadas das questões políticas e militares, conduzindo o
romano a um conhecimento mais desinteressado do sobrenatural. Foi durante o reinado de
Numa Pompílio que os romanos ergueram um templo à Fides, fundamento da vida social e
das relações que os romanos mantinham com as civilidades vizinhas, na medida em que este
conceito implicava a substituição das relações de força por relações baseadas na confiança
mútua. Este era o nascimento das instituições jurídicas romanas, cujo objetivo consistia em
regulamentar, de acordo com a ordem do mundo, toda a vida da cidade-estado.294
De acordo com Andre Aymard & Jeannine Ayboyer, um dos principais aspectos da
cultura religiosa romana foi a influência do helenismo que atravessou todos os períodos da sua
293
História, VI – 56 294
GRIMAL, op. cit., 1984, p. 24.
Os Princípios O Culto Os deuses Os Sacerdotes
Roma x x x x
Cartago x x x x
Aspectos Religiosos
R
e
l
i
g
i
ã
o
113
história, desde a monarquia até os primeiros anos do principado. Desde os primeiros séculos
da sua cidade, os romanos divinizavam a força vital, a energia que comanda todas as ações,
humanas ou naturais. Desta forma, os romanos conheciam diversos numina (forças),
concedendo-lhes um gesto de veneração, uma oferenda e algumas fórmulas rituais. Assim, era
através da ação de um numen que uma criança bebia e comia e era outro numen o responsável
pela fertilidade do solo. Esta relação com o sobrenatural levou os romanos a divinizarem um
incontável numero de abstrações e atributos alegóricos, caracterizando sua religião a partir da
fragmentação e generalização do divino. Esses traços da religião romana levaram ao culto de
diversas divindades, como os variados epítetos de Júpiter295
.
De acordo com Raymond Bloch, muitos rituais foram desenvolvidos a partir do
período monárquico. Eram as práticas religiosas que mantinham unidas as tribos dos montes
albanos, sobretudo aquelas dedicadas a Júpiter Latiaris e à Diana. Durante muito tempo Roma
associou-se às cerimônias que uniam as civilidades da região do Lácio. A partir do
estabelecimento da res publique, em 509 a. C., Roma adquiriu a capacidade de impor suas
prerrogativas religiosas às demais cidades da região circunvizinha. Contudo, uma das
características mais peculiares da religião romana foi a sua abertura em relação aos cultos
estrangeiros, quer realizados por aliados, quer por inimigos. Uma consequência desta atitude
foi a introdução, em Roma, de muitos cultos oriundos das demais cidades latinas. Todos os
anos os magistrados romanos visitavam a cidade de Lavínio para realizar o sacrifício à deusa
Vesta e aos Penates, situação que não impedia que as mesmas divindades fossem cultuadas
em Roma. Os romanos veneravam assim os mesmos deuses duas vezes.296
Os romanos não possuíam qualquer objeção em acolher uma nova divindade. De
acordo com Andre Aymard e Jenninne Ayboyer em 390 a. C. uma voz desconhecida teria
anunciado a um cidadão a chegada dos Gauleses e os romanos edificaram um templo a Aius
Loquens (“que fala”). A adoção de divindades estrangeiras, no entanto, passava pela
interpretação romana, isto é, pelo reconhecimento, nestas divindades, de características
semelhantes àquelas já conhecidas e cultuadas na urbe, ainda que em certas ocasiões
295
AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 256-257. Havia os deuses Júpiteres políticos, como o Latial, divindade da
cidade e da Confederação de cidades latinas e o Júpiter Capitolino, cujo templo fora erguido pelos etruscos no
Capitólio. Havia os celestes, como o Júpiter Lucétio (Brilhante), Elício (da chuva), Fulgur (raio), Sumano (clarão
noturno), Tonans (do trovão). Havia ainda os deuses fetichistas, como o Júpiter Ferétrio, o da árvore na qual se
suspendiam os despojos do inimigo e o Júpiter Lápis, representado pelo machado Sílax e protetor das “relações
internacionais” dos romanos, entre outros. 296
BLOCH, R. Origens de Roma. Lisboa: Editorial Verbo, 1966, p. 125-126.
114
adotassem determinadas divindades sem analisar seu próprio panteão, a fim de descobrir esta
equivalência.297
Para a pesquisadora Marilda Corrêa Ciribelli, uma das principais características da
religião romana é a sua circularidade com a política, que se constituiu uma dualidade
indissociável desde os primórdios de sua história até o fim do Império. Ainda de acordo com
a autora, nos primeiros séculos da cidade não se pode falar em deuses, nem das relações entre
vontade e ação. Para o romano, todo ser e todo ato eram divinos, cujo conjunto de vontades
era conhecido como numen. Estas forças colocavam o homem à sua mercê, sendo preciso
torná-las favoráveis, rendendo-lhes preces e oferendas para obter o desejado. Fora do domínio
do sagrado estas forças poderiam tocar um objeto ou pessoa, provocando impureza ou um
piaculum. As impurezas eram classificadas de diversas formas, a saber: os fenômenos da
natureza inanimada eram conhecidos como ostenta, e os de natureza humana ou animal eram
chamados de monstra ou miraculo.298
Outra questão que merece destaque é a relação que os romanos mantinham com as
suas divindades. De acordo com Andre Aymard e Jeannine Ayboyer, os latinos temiam as
forças sobrenaturais que controlavam a natureza, mas nutriam por elas qualquer tipo de
adoração afetiva. A religião romana se reduzia ao cumprimento de um cerimonial cujas regras
deveriam ser rigorosamente obedecidas. A “devoção” é concebida como a justiça para com os
deuses, ou seja, a execução de tudo o que lhes era devido e que os romanos julgavam ser do
seu agrado, com o objetivo de obrigá-los a conceder o que lhes pediam. Para os autores, essa
atitude não era exclusiva dos romanos e em diversas civilidades da Antiguidade os cidadãos
recorriam a todos os meios para defenderem-se dos poderes sobrenaturais.299
Para o historiador Paul Veyne, a interação dos romanos com as suas divindades
constituía-se como duas esferas de poder, nas quais se esperavam a realização de trocas, apoio
e benefícios, principalmente em momentos de disputas políticas. Por vezes, a documentação
deixa transparecer que se criticava a inoperância dos deuses da mesma forma que se criticam
as instituições políticas nos dias de hoje.300
O historiador e arqueólogo Raymond Bolch destaca, no entanto, que não devemos nos
deixar enganar pelo aparente caráter metódico da religião romana. Para o autor, em todas as
religiões há uma oposição entre a vida natural e outro campo, dominado pelo temor e pela
297
AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 258. 298
CIRIBELLI, M. C. História e Religião em Roma Antiga. In: LIMA, L. L. G.; HONORATO, C. T,;
CIRIBELLI, M. C.; SILVA, F. C. T. da. (Orgs.) História & Religião. Rio de Janeiro: FAPERJ – Mauad, 2002,
p. 28-32. 299
AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 258-259. 300
VEYNE, P. A sociedade romana. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 229.
115
esperança e a oposição entre eles é uma ideia fundamental, onde a realização do sagrado é
uma forma de emotividade. Esta concepção dialética estava presente no pensamento, nos ritos
e no vocabulário religioso dos romanos. Neste sentido, merece destaque a palavra sacer.
Aquilo que é sacrum pertence ao reino dos deuses e difere essencialmente daquilo que
pertence à vida cotidiana dos homens. Um objeto que é caracterizado como sacer não pode
tocar ou ser tocado sem contaminar ou ser contaminado. Assim, em Roma, o criminoso que
era sacrificado aos deuses também se tornava um sacer esto. Em outras palavras, todo
criminoso que, por seus atos, expusesse a cidade à cólera divina era declarado sacer e podia
ser morto por qualquer cidadão. Desta forma, a maldição suprema (o sacer esto) era lançada
sobre um pater famílias que defraudasse seu cliente e, de igual modo, um homem que
roubasse os produtos do campo era sacrificado a Ceres.301
A palavra sacer está na origem de uma serie de ideias e termos da vida religiosa de
Roma. De acordo com Raymond Bloch havia sacrare, que significava consagrar; exsecrare,
profanar, amaldiçoar; obsecrare, pedir em nome dos deuses; a própria etimologia da palavra
sacrifício tem origem na palavra Sacrificare, que deriva de sacrum facere, significando, a
princípio, realizar uma cerimônia sagrada. Outras palavras derivadas de sacer tiveram
influência também no direito romano, como o sacramentum, que era um depósito de valores
monetários, feito aos deuses como garantia em causas judiciais. O termo sacerdos designava o
homem que realizava as cerimônias sagradas; o sacrilegus era o homem que roubava objetos
considerados sagrados; sanctus deriva de sancire, significando tornar sagrado ou
inviolável.302
A religião romana possuía também um duplo aspecto, a saber: doméstico e público.
Andre Aymard e Jeannine Ayboyer revelam que as manifestações do culto doméstico eram as
mais importantes para os romanos e compreendiam basicamente a adoração à deusa Vesta303
,
cujo altar era formado por uma lareira permanentemente acesa. O culto doméstico
compreendia também as celebrações ao “Gênio” da família, representado por uma serpente
pintada numa parede próxima ao altar de Vesta. Havia ainda as celebrações em honra aos
variados numen da casa, como os penates, cujo nome deriva do vocábulo penus, que significa
301
BLOCH, op. cit., p. 121-122. 302
Ibid., p. 123. 303
GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 305.
Vesta, a mais antiga das divindades romanas é, como a sua homóloga grega Héstia, a deusa da chama (o radical
sânscrito vas exprime o brilho luminoso). Ela é a protetora do lar. O seu culto era celebrado por um colégio de
"vestais", sacerdotisas que velavam pelo fogo sagrado e que desempenhavam um papel importante na vida
religiosa romana. Elas eram votadas ao celibato durante trinta anos e aquelas que faltavam ao seu juramento
eram enterradas vivas.
116
provisões. Além disso, as cerimônias fúnebres e o culto aos mortos também integravam este
aspecto da religião romana.304
Fustel de Coulanges acrescenta que a religião doméstica foi a base sobre a qual todas
as religiões se assentaram na Antiguidade. O culto doméstico destinava-se à celebração dos
antepassados, que após a sua morte eram divinizados. Uma das regras distintivas desta
celebração religiosa era a de que o ritual poderia ser celebrado apenas em honra aos mortos de
cada gen pelos seus próprios familiares. O autor revela ainda que nestas celebrações havia
uma relação de troca entre os vivos e os mortos de cada família. Os antepassados recebiam
dos seus familiares uma série de banquetes fúnebres e os familiares, por sua vez, recebiam dos
seus antepassados o auxílio e a força que necessitavam nesta vida. Da mesma forma que o
vivo não poderia passar sem o morto, este também não poderia passar sem o vivo, e por este
motivo criava-se um laço que unia todas as gerações da família, constituindo uma instituição
inseparável.305
Além da religião doméstica, outra questão que merece destaque é a participação
política nos ritos oficiais do estado políade romano. De acordo com Odile Wattel, cabia ao
senado romano o controle da autoridade em relação à religião pública, uma vez que
oficializava os cultos estrangeiros e consultava os Augures antes de reunir os comícios ou
promulgar as leis. Os Augures formavam um colégio sacerdotal que tinha por função
principal consultar os Livros Sibilinos, uma coleção de antigos oráculos. Esta convergência
entre o sagrado e a política foi também a motivação de vários embates entre patrícios e
plebeus. Um exemplo desta questão foi a Secessão do Monte Sacro, que ocorreu por volta de
493 a. C. Este evento, que deu início à participação política da plebe, provocou um
separatismo religioso constatado através da construção de um templo dedicado à deusa
Ceres306
para contrabalançar o controle patrício sobre a tríade capitolina307
. O ápice deste
embate foi a implantação de duas leis tribunícias dos anos 149 e 145 a. C. sobre a eleição dos
sacerdotes.308
304
AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 260. 305
COULANGES, F. A cidade Antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. São
Paulo: HEMUS, 1975, p. 28-29. 306
GRIMAL, op. cit., 1996, p. 92-93. A divindade itálica Ceres, originária da Campânia, foi assimilada, pelos
romanos, a Deméter, que desde então se tornou numa divindade de primeiro plano. Deméter, a Terra-Mãe, é a
mais importante das divindades gregas da fecundidade. Ela encarna a terra cultivada, mais particularmente, a
cultura do trigo. 307
LEEMING, A. D. Do Olimpo a Camelot: um panorama da mitologia européia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004, p. 65. Os etruscos substituíram a tríade arcaica romana, formada por Júpiter, Marte e Quirino, pela Tríade
composta por Júpiter, Juno e Minerva. Esta tríade era representada por um templo localizado no Monte
Capitolino. 308
WATTEL, O. As religiões grega e romana. Lisboa: Europa-América, 1992, p. 84.
117
O historiador Fustel de Coulanges acrescenta que o culto público era um vínculo
unificador de toda e qualquer sociedade na Antiguidade. Em Roma não existiu nada mais
sagrado que o templo de Vesta onde, no altar, ardia constantemente o fogo sagrado. Os
romanos sempre acreditaram que o destino de sua cidade estava ligado a este fogo sagrado
que representava seus deuses. Assim como a religião doméstica, o culto público não admitia a
participação de estrangeiros.309
Os aspectos da religião pública romana nos conduzem a uma de suas principais
funções: os sacerdotes. Auxiliados pelo senado, os sacerdotes detinham o direito sagrado, cuja
administração e desenvolvimento só eram possíveis por seu intermédio. De acordo com John
Scheid, o sacerdócio era a prática de uma autoridade religiosa, na qual o poder de iniciativa
comportava os aspectos rituais do culto ou o controle do sistema religioso. Apenas os
cidadãos romanos podiam ocupar o cargo de sacerdote durante a magistratura na res publique.
Assim, esta função estava vedada a alguns indivíduos e o sacerdócio não era uma questão de
vocação, mas uma questão de estatuto social. Apenas aqueles que estavam destinados por seu
nascimento ou por sua descendência familiar poderiam exercer as funções sacerdotais. Assim,
ainda de acordo com o autor, o cargo de sacerdote era confiado a todos que eram ou tinham
sido eleitos magistrados pelo populus romanum. Contudo, os sacerdotes diferiam dos demais
magistrados por certa divisão de tarefas rituais e pela competência jurídica. Por suas
atividades rituais, os sacerdotes representavam os poderes, as qualidades e a função dos
deuses evocados, ação esta que os magistrados só faziam excepcionalmente, e em especial
quando encarnavam a plenitude do poder público e sagrado na celebração do triunfo
decorrente de uma grande vitória militar.310
É importante salientar que as atividades religiosas não impediam que o sacerdote
levasse uma vida normal de cidadão, sem que fosse necessária a interrupção de sua carreira
política. De acordo com Andre Aymard e Jennine Ayboyer, ao contrário do que podemos
imaginar, as funções sagradas não faziam dos sacerdotes intermediários entre a cidade-estado
e os deuses. Os sacerdotes eram, em grande parte, administradores e conselheiros religiosos
junto aos poderes públicos. Os sacerdócios romanos representavam um calendário religioso
com uma série de instituições justapostas, surgidas em datas diferentes e correspondendo a
preocupações diversas, em suas origens, seus princípios e sua organização.311
309
COULANGES, op. cit., p. 120-121. 310
SCHEID, J. O sacerdote. In: GIARDINA, A. (Org.) O Homem Romano. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p.
53-56. 311
AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 263.
118
A seguir, analisaremos os principais aspectos da religião cartaginesa. A partir da
formação cultural fenícia da cidade-estado de Cartago, os historiadores Corine Bonnet e P.
Xella questionam sobre a possibilidade de se falar regularmente em uma religião fenícia ou
púnica. A fenícia jamais foi uma organização política unificada e o “mundo púnico” é uma
constelação de situações históricas e culturais diferentes. Constituídos de grupos geopolíticos
autônomos, os cultos exerceram uma função de diferenciação cultural nestas regiões. Era
através da identidade específica de seus deuses e deusas políades e de seu panteão que as
comunidades se distinguiam entre si. No Mediterrâneo ocidental, Cartago exerceu hegemonia
sobre as demais colônias fenícias, com uma influência cultural que penetrou o conjunto de
crenças de uma maneira original, se a compararmos com a Fenícia no Oriente. Sobre o
conjunto das práticas religiosas entre os fenícios, cerca de ¾ das fontes são epigráficas e
provenientes de Cartago, contendo, geralmente, fórmulas estereotipadas, lacônicas e muitas
vezes incompreensíveis.312
De acordo com o historiador Werner Huss, muitas vezes não é possível fazer análises
suficientemente detalhadas acerca do panteão cartaginês, suas ideias e comportamentos
religiosos e sobre a organização dos seus ritos sagrados, uma vez que a documentação textual
é rara e os testemunhos epigráficos pouco nos ajudam em termos de conteúdo a ser
estudado.313
O arqueólogo e historiador Serge Lancel, ao analisar o conjunto de crenças em
Cartago, afirma que, de maneira geral, a religião é, naquela cidade, um dos seus principais
elementos de identidade cultural, uma vez que esta fora bastante influenciada pelo Helenismo
e pela civilidade egípcia, a partir da introdução de divindades e da organização sacerdotal.
Entre os cartagineses a atividade ritual era regulamentada pelos poderes públicos e os
santuários eram construídos pelos governantes.314
Outra questão que merece destaque é que,
em Cartago, o favor da divindade não era conquistado a partir de uma conduta moral
estabelecida, mas pelo rigor das práticas rituais. Para Gilbert e Collete Charles-Picard, os
cartagineses regulamentavam suas relações com os deuses de maneira bem semelhante àquela
que utilizavam nas transações comerciais e vangloriavam-se quando conseguiam enganá-los.
Além disso, a própria divindade não podia ser considerada depositária de uma moral absoluta
e mais perfeita do que a comunidade de cidadãos.315
312
BONNET, C.; XELLA, P. La Religion. In: KRINGS, V. La civilisation Phenicienne et Punique. Leiden:
Brill, 1995, p. 317. 313
HUSS, W. Los Cartagineses. Madrid: Gredos, 1990, p. 339. 314
LANCEL, op. cit., p. 213. 315
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C., op. cit., p. 69.
119
Corine Bonnet acrescenta que, do ponto de vista religioso, os cartagineses possuíam
diversas maneiras de estabelecer contato com as divindades, a saber: a criação de espaços
sagrados, os festivais, os símbolos religiosos e as práticas sacrificiais. As práticas religiosas
unificavam a comunidade e mostravam, ao mesmo tempo, sua diversidade com a
implementação de elementos gregos, africanos e itálicos.316
Werner Huss destaca que a
finalidade do comportamento religioso cartaginês era a de conquistar o apoio das divindades
mediante a entrega de oferendas, o cumprimento das prescrições rituais, a celebração das
festas, a construção de templos e a realização de atitudes moralmente éticas.317
Serge Lancel afirma que divindades estrangeiras foram introduzidas de forma oficial
em Cartago a partir do IV século a. C. Os cultos às deusas helênicas Deméter e Koré passam a
ser regulamentados pelos poderes públicos que detêm ainda a prerrogativa da construção e
manutenção dos templos.318
Entretanto, para Gilbert e Collete Charles-Picard, a influência
helênica em Cartago teria se iniciado em meados do século VI a. C. A partir desta data, teria
ocorrido uma reforma religiosa na cidade fenícia, demonstrada pela liderança ocupada pela
deusa Tanit em seu panteão. Esta divindade era a personificação da cidade, da mesma maneira
que Palas era representada em Atenas. Os autores acrescentam ainda que os cartagineses
atribuíam aos deuses as razões de suas desgraças, doenças, guerras e animosidades e o
sacrifício humano buscava restaurar a pax deorum, rompida por eventuais desvios rituais.319
Para Corine Bonnet, o Tophet é uma das maiores inovações da religião cartaginesa.
Outra inovação aparece na esfera do culto através da presença das divindades Tanit e Baal
Hammon, também cultuadas no Oriente Próximo, mas muito mais importantes em Cartago e
suas colônias. A presença massiva destas divindades em santuários ocidentais, especialmente
nas áreas do Tophet, é motivada provavelmente pelo fato de que desempenhavam uma função
na vida social das comunidades e, mesmo tendo origem oriental, apareciam como deuses
púnicos tradicionais.320
Por outro lado, Gilbert e Collete Charles-Picard revelam que a originalidade da
religião em Cartago residia na sua perspectiva em relação à natureza a qual consideravam
incompreensível ao homem, no qual as origens de todas as coisas encontravam explicações no
mundo dos deuses. O mundo, nesse caso, é um encadeamento de forças sobrenaturais onde o
316
BONNET, C. On God and Earth – The Tophet and construction of a new identity in punic Carthage. In:
GRUEN, E. S. Cultural Identity in the Ancient Mediterranean. Los Angeles: Getty Publications, 2011, p.
376. 317
HUSS, op. cit., p. 347. 318
LANCEL, op. cit., p. 213. 319
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C., op. cit., p. 68. 320
BONNET, op. cit., p. 378.
120
homem dispõe de poucos meios de ação dos quais podemos destacar as práticas sacrificiais.
Estas práticas eram organizadas segundo seus objetivos, a saber: havia o Holocausto321
, o
Sacrifício Expiatório322
e o Sacrifício da Comunhão323
. Estas categorias são descritas no Tarif
Sacrificial de Mareseille, uma plaqueta de bronze contendo as taxas a serem pagas aos
sacerdotes e as tipologias das vítimas expiatórias em cada uma delas. Neste documento, no
entanto, não há menção ao sacrifício de crianças. Assim, o sacrifício, para os cartagineses,
renovava a energia divina e estava bastante presente no seu cotidiano religioso.324
O conteúdo
do Tarif Sacrificial pode ser observado abaixo:
“O templo de Baal ... Taxas fixadas sobre os pagamentos, no tempo de nossos
senhores, Halats-Baal, o Suffeta, filho de Abd-Tanith, filho de Abd-Esmun, e de
Halats-Baal, os Suffetas, filho de Abd-Esmun, filho de Halats-Baal, e de seus
colegas: para um boi, seja como holocausto, ou oferta expiatória, ou oferta de
gratidão, aos sacerdotes [deve ser dado] [10 dinheiros] de prata para cada um, e, se
for um holocausto, eles terão, além deste pagamento 300 medidas da carne, e se o
sacrifício for expiatório, [eles receberão] a gordura e as adições e o ofertante do
sacrifício receberá a pele, e as entranhas, e os pés, e o resto da carne. Para um
bezerro sem chifres e inteiro, ou para um carneiro, seja como holocausto, ou oferta
expiatória, ou oferta de gratidão, aos sacerdotes [será dado] cinco [dinheiros] de
prata para cada um, e se for um holocausto, terão, além do pagamento, um peso de
100 medidas e metade da carne e, se o sacrifício for expiatório, eles devem receber a
gordura e as adições, e da pele, e as entranhas, e os pés, e o resto da carne deve ser
dada para o ofertante do sacrifício. Por um bode, ou uma cabra, se em um
holocausto, ou oferta expiatória, ou oferta de gratidão, aos sacerdotes [será dado] um
[dinheiro] e dois [...] de prata para cada um, e se for um sacrifício expiatório, devem
receber, além do pagamento, a gordura e os acréscimos, e a pele, e entranhas, e os
pés, e o resto da carne deve ser dada para o ofertante do sacrifício. Por uma ovelha,
ou um cabrito, ou (?) uma corça, seja como holocausto, ou oferta expiatória, ou
oferta de gratidão, aos sacerdotes [será dado] três quartos de um ciclo de prata e [...],
para cada um, e se for um sacrifício expiatório, terão, além do pagamento, a gordura
e os acréscimos, e a pele, e as entranhas, e os pés, e o resto da carne [será dado] para
o ofertante do sacrifício. Para uma ave, doméstica ou selvagem, seja como oferta de
gratidão, ou para um augúrio, ou para a adivinhação, aos sacerdotes [será dado] três
quartos de um ciclo de prata e dois [...] para cada um, e a carne deve ser dada para o
ofertante do sacrifício. Para um pássaro, ou para os sagrados primeiros frutos, ou
para a oferta de um bolo, ou para uma oferta de óleo, para os sacerdotes [será dado]
10 [...] de prata para cada um, e ... Em cada sacrifício expiatório que deve ser
oferecido para as divindades, aos sacerdotes [será dado] a gordura e os acréscimos, e
com o sacrifício de ... Para uma oferta de alimentos, ou leite, ou gordura, ou para
qualquer sacrifício que qualquer homem deve oferecer como uma oblação, aos
sacerdotes [será dado] ... Para cada oferta que um homem deve oferecer, se for pobre
321
GERARDI, R. Memorial. In: Lexicon: dicionário teológico enciclopédico. São Paulo: Edições Loyola, 2003,
p. 480. Uma das três formas de sacrifício, de acordo com a tradição bíblica. O Holocausto é o sacrifício em que a
vítima é inteiramente queimada sobre o altar, representando o caráter irrevogável do dom total. A fumaça que
emerge do ritual representa a aceitação da oferenda sacrificial por parte da divindade. 322
Ibid., p. 480. No sacrifício expiatório dá-se grande importância ao sangue, que representa a alma da vítima, e
com o qual se fazem inúmeras aspersões. 323
Ibid., p. 480. Trata-se de um sacrifício que objetiva restabelecer a aliança com a divindade, e nele não se
queima totalmente o animal, cuja carne, após o ritual, era dividida em três partes, a saber: entre a divindade, o
sacerdote e o ofertante. A refeição da comunhão selava a paz entre a divindade e a comunidade ou indivíduo
implicado no ritual. 324
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C., op. cit., p. 69 e 80.
121
em ovinos, ou pobre em aves, não [será dado] nada para os sacerdotes. Todo nativo,
e cada habitante, e cada festeiro à mesa dos deuses, e todos os homens os que
sacrificam ... os homens devem fazer um pagamento para todos os sacrifícios, de
acordo com o que está prescrito nesta escrita ... Cada pagamento que não está
prescrito neste tablete será feito proporcionalmente à taxa fixada por aquele conjunto
sobre os pagamentos no tempo de nossos senhores, Halats-Baal, o filho de Abd-
Tanith, e Halats-Baal, filho de Abd-Esmun, e seus companheiros. Cada sacerdote
que receber um pagamento além do montante estabelecido no este tablete será
multado ... E cada ofertante de um sacrifício não deve pagar [o montante] prescrito,
além do pagamento, que [é aqui fixado]”.325
Um dos grupos sociais mais importantes em Cartago era aquele formado pelos
sacerdotes. Gilbert e Collete Charles-Picard revelam que o conjunto sacerdotal cartaginês era
composto, ao mesmo tempo, por membros submetidos à mais rigorosa disciplina religiosa,
aos quais estavam interditados muitos aspectos da vida profana e os dignatários oriundos da
aristocracia política, isentos das limitações impostas pelo conjunto da religiosidade da cidade.
Em seu interior, este grupo social também era organizado a partir de uma hierarquia bem
definida. Cada templo estava submetido à autoridade de um chefe dos sacerdotes, chamado
Rab Kohanim. A seguir vinham os assistentes das celebrações, responsáveis pela atividade
sacrificial ou pela tonsura dos sacerdotes ou daqueles que desejassem se tornar iniciados nos
ritos religiosos. Para o autor, sua atividade principal era a organização dos sacrifícios,
elemento essencial da religião cartaginesa.326
Entretanto, para Werner Huss, a administração
da religião em Cartago não estava sob a responsabilidade dos sacerdotes. Havia, naquela
cidade, uma instituição central de controle formada por dez componentes, provavelmente
eleita pelo senado, chamada ‘srt h’sm ’s‘l hmqdsm ou “os dez homens que estão postos à
frente das questões sagradas”. Os membros desta comissão deveriam supervisionar toda a
construção e restauração de templos e monumentos. Havia ainda outra comissão, chamada de
h’s ’s ‘l hms’tt ou “Os trinta varões que estão à frente dos tribunais”, que se ocupava de todas
as questões materiais dos templos, como as quantidades que deveriam ser retidas a partir da
concessão de oferendas, sem levar em conta a opinião dos sacerdotes. Ainda de acordo com o
autor, havia também as mrzh’lm, ou “irmandades” que eram responsáveis pelas festas anuais e
pelos banquetes rituais.327
No campo da atividade religiosa os cartagineses não se diferenciavam muito dos seus
vizinhos gregos e romanos. Dexter Hoyos afirma que o panteão cartaginês era composto por
um grande número de deuses e deusas, a maior parte deles oriundos da Fenícia, sua terra
natal. O autor acrescenta ainda que a origem da deusa Tanit é incerta, pois sua representação
325
Tarif Sacrificial de Marseille Apud HAWLLINSON, op. cit., p. 193. 326
CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C., op. cit., p. 79-80. 327
HUSS, op. cit., p. 355-356.
122
apresenta traços possivelmente oriundos da fenícia, agregando aspectos talvez assimilados das
culturas presentes na região norte do continente africano. Esta divindade aparece em estelas
votivas em Cartago datadas pela Arqueologia entre o final do século V e início do IV a. C.,
geralmente acompanhada de outra divindade conhecida pelo nome de Baal. Em algumas
ocasiões as inscrições mencionam Tanit Pene Baal, ou Tanit face de Baal. Ainda de acordo
com Dexter Hoyos, esta divindade possui uma simbologia bem característica composta
geralmente por um triângulo com um círculo no seu ápice e uma linha traçada
horizontalmente entre os dois, de modo que o “signo de Tanit” sugere um contorno
geométrico de uma mulher com uma longa túnica e com os braços estendidos, acompanhado
de uma meia-lua. A interpretação destes signos permanece incerta.328
Nigel Bagnall revela que as referências documentais acerca da religião cartaginesa são
fragmentadas e contraditórias. Entretanto sabemos que a religião púnica era politeísta,
caracterizada pela adoração a um grande número de divindades que controlavam a totalidade
das necessidades humanas e sociais. Segundo o autor, cada cidade-estado fenícia desenvolveu
uma diversidade de interpretações religiosas. Estas cidades organizavam a sua forma de
adoração, criando tradições individuais, agregando preeminência a certas divindades
cuidadosamente escolhidas, criando seus próprios costumes. Assim, a partir do século V a. C.
Cartago começou a adotar uma Teologia e liturgia independente dos fenícios do Oriente.
Quando as relações com Tiro, sua cidade de origem, se romperam, a adoração a Melkart,
senhor da cidade, foi substituída por Baal Hammon, e a deusa Astarte recebeu o nome de
Tanit.329
David Wright acrescenta que, entre os fenícios, os sacrifícios e festivais eram
oferecidos às divindades em benefício da comunidade. Além destas, a comunidade cívica
possuía outras maneiras de estabelecer contato com as divindades, como as orações por
exemplo. A liturgia fenícia, que previa sacrifícios a Baal Hammon e outros deuses,
recomendava que se reproduzisse um conjunto de palavras e fórmulas rituais após a
celebração. Por outro lado, os deuses poderiam se comunicar com as pessoas através de
sonhos, da adivinhação, do exame das vísceras de animais, do nascimento de crianças mal
formadas fisicamente e dos fenômenos astrológicos. Em Cartago, outro traço religioso
característico era que a religião integrava a ideologia que justificava o poder dos reis. Estes
eram legitimados através de sua descrição como “sagrados diante dos deuses”. Os deuses
328
HOYOS, op. cit., p. 95. 329
BAGNAL, op. cit., p. 12-13.
123
faziam dos reis governantes. E alguns destes governantes chegavam a acumular a função de
sacerdotes.330
De acordo com George Rawlinson, os Fenícios adoravam seus deuses através de
festivais, orações, ofertas votivas e sacrifícios. Não sabemos ao certo de que maneira se
organizava seu calendário litúrgico, mas cada templo possuía seus festivais que atraíam
muitas pessoas, onde os deuses eram homenageados a partir de práticas sacrificiais que
poderiam durar dias. Os grandes festivais eram uma responsabilidade dos sacerdotes da
cidade, mas no âmbito doméstico, as pessoas também faziam suas celebrações, sobretudo no
que se refere ao sacrifício. Nestas celebrações as vítimas expiatórias eram animais,
principalmente o gado, as cabras, as ovelhas e os cordeiros. Os sacerdotes se organizavam em
colégios e vestiam normalmente uma túnica branca e um lenço que deveria cobrir toda a sua
cabeça. Nas celebrações sacrificais, os sacerdotes se dividiam em funções bem definidas, a
saber: uns matavam a vítima sacrifical, um segundo grupo fazia as libações, outros
preparavam o incenso e um quarto grupo prestava assistência ao ritual nos altares. No início
da Primavera um sacrifício era realizado com a presença da comunidade. Grandes árvores
eram arrancadas pela raiz e lavadas para a porta do templo onde as vítimas eram suspensas em
seus galhos e queimadas juntamente com objetos de ouro e prata, após uma solene procissão
com imagens dos deuses. Esta celebração demonstrava o agradecimento dos homens pela
bondade divina manifesta pela renovação dos campos e pela prosperidade da produção
agrícola.331
3.3: Sacrifício humano em Cartago: uma análise interpretativa comparada com o ritual
romano.
Uma vez analisados os aspectos da religião cartaginesa e da religião romana,
passaremos ao estudo comparativo dos respectivos rituais de sacrifícios humanos. Com o
objetivo de aplicar o exercício de experimentação comparada, definimos na tabela abaixo os
conjuntos de problemas a serem analisados: quando sacrificar? Quem sacrificar? Como
sacrificar? Onde sacrificar? O que significa sacrificar para romanos e cartagineses?
330
WRIGHT, D. P. Syria and Canaan. In: JOHNSTON, S. I. Religions of the Ancient World: a guide. Havard:
University Press, 2004, p. 175-177. 331
RAWLINSON, op. cit., p. 147-150.
124
Quadro Comparativo 4: Análise comparada dos rituais de sacrifícios humanos em Roma e Cartago.
A descrição da documentação textual deixa transparecer a presença da atividade de
sacrifícios humanos entre os romanos. Vejamos as citações:
“Um homem e uma mulher gauleses e um homem e uma mulher gregos
foram enterrados vivos no mercado de gado.”332
“Para enterrar vivos dois gregos, um homem e uma mulher, e também dois
gauleses, no lugar chamado Fórum Boarium, ou mercado do gado.”333
Para o caso cartaginês utilizaremos nestas análises a descrição elaborada pela
arqueologia:
Na área do Tophet, ou em sua proximidade imediata, uma pequena fogueira
feita de galhos entrelaçados de madeira maciça é feita ao ar livre, sob o fundo de
uma pira de Terracota. Uma criança é depositada sobre a pira forrada com ramos, ou
talvez com pedaços de palha. Ela está vestindo ou está envolta em um pano fechado
com grampos. Não é possível dizer se ela está viva ou morta, mas, no primeiro caso,
seus membros seriam provavelmente danificados, porque a sua posição é
constante. A pira é acesa. Antes do processo de cremação estar concluído, por vezes,
uma parte ou a totalidade de um pequeno animal é depositado ao lado da criança. O
fogo não é fraco, de modo a garantir a combustão total dos indivíduos depositados
sobre a pira. Quando a calcinação é considerada suficiente, um punhado de terra ou
areia é usado para apagar o fogo. Chega o momento de preencher as urnas. As cinzas
e as brasas são esfriadas com água, se necessário e, depois retiradas da pira e
depositadas nas urnas. Os ossos longos das crianças também são quebrados, se
necessário, e algumas joias, colares de contas e amuletos são espalhados sobre a
superfície das cinzas da urna que é depois fechada com uma fina camada de
argila.334
De acordo com Pedro Paulo Funari, o historiador que utiliza as informações
arqueológicas deve tomá-las como documentos, separando as interpretações dos dados
332
Tito Lívio 22, 57 333
Plutarco - Vida de Marcellus, 3 334
BENICHOU-SAFAR, op. cit., p. 67.
Contexto Divindades Área Sacrificial Instrumentos Valor simbólico
Roma x x x x x
Cartago x x x x x
R
i
t
u
a
i
s
Sacrifícios Humanos
125
primários, da mesma forma como faz o tratamento da documentação de arquivo ou com os
textos de autores antigos.335
A primeira questão que devemos considerar é o contexto no qual os rituais, o romano e
o cartaginês, acima descritos, foram realizados. Iniciaremos pelo caso romano. A atividade
sacrificial em Roma foi verificada durante a segunda guerra púnica contra os cartagineses e
em particular após a derrota romana na batalha de Canas. Depois de muitos insucessos contra
os cartagineses a partir da invasão de Aníbal à Península Itálica, os romanos decidiram acabar
com a guerra numa única batalha. De acordo com S. I. Kovaliov, neste embate as forças
romanas chegavam a 80.000 infantes e 6.000 cavaleiros enquanto os cartagineses possuíam
em torno de 40.000 infantes e 10.000 cavaleiros.336
O historiador Michael Grant acrescenta
que os romanos atacaram acreditando que a superioridade numérica lhes faria vencer o
conflito. Entretanto, Aníbal deixou que sua linha de infantaria, em forma convexa, se tornasse
côncava sob a pressão do ataque romano. Após derrotar a cavalaria inimiga, os cavaleiros
cartagineses atacaram a retaguarda da infantaria romana. O cerco estava completo.337
Amontoados em um pequeno espaço, sem possibilidade de manobrar, os romanos haviam se
tornado presa fácil. S. I. Kovaliov destaca que a partir de então nenhuma pedra, nenhuma
flecha e nenhuma espada cartaginesa deixava de acertar o golpe. Cerca de 70.000 soldados
romanos caíram no campo de batalha. Os demais foram feitos prisioneiros ou fugiram. Os
cartagineses, por outro lado, perderam cerca de 6.000 soldados ao todo, dos quais cerca de
4.000 eram gauleses.338
A sequência de imagens abaixo ilustra o desenvolvimento da tática de
Aníbal.
335
FUNARI, op. cit., p. 108. 336
KOVALIOV, S. I. Historia de Roma. Buenos Aires: Futuro, 1960, p. 74. 337
GRANT, op. cit., p. 112. 338
KOVALIOV, op. cit., p. 75.
126
Figuras 8 e 9: Táticas de Aníbal na batalha de Canas.
Fonte: www.pt.wikipedia.org – Acesso em 09-07-2013
Após a derrota do seu exército, os cidadãos romanos foram acometidos por um pânico
generalizado. O historiador Tito Lívio descreveu parte do cenário em Roma após a batalha de
Canas:
“Os medos dos homens foram aumentados pelos prodígios relatados
simultaneamente a partir de muitos lugares: na Sicília os dardos de vários soldados
tinham tomado fogo; na Sardenha, um cavaleiro estava fazendo a ronda quando a
mesma coisa aconteceu com o cassetete que ele segurava na mão; muitos incêndios
haviam iluminado a costa; que dois escudos tinham suado sangue; que certos
soldados haviam sido atingidos por um raio; que pedras brilhantes tinham caído do
céu em Praeneste; que em Arpi, escudos tinham aparecido no céu e o sol parecia
estar lutando com a lua; que em Capena duas luas tinham subido durante o dia; que
as águas do Caere fluíram misturadas com sangue; e que manchas de sangue
surgiram na água que escorria da fonte do próprio Hércules; que em Antium, quando
alguns homens estavam colhendo, espigas sangrentas de milho haviam caído em sua
cesta; que em Falerii o céu parecia estar rompido como uma grande fissura, e através
da abertura, uma luz tinha brilhado; [...] que em Capua houve o aparecimento de um
céu em chamas e de uma lua que caiu no meio de uma tempestade. Prodígios menos
memoráveis também receberam crédito: certa gente tinha encontrado cabras que
produziam lã; que uma galinha tinha se transformado em um galo e um galo, em
uma galinha.”339
De acordo com S. I. Kovaliov neste período em Roma uma multidão de mulheres se
reuniu, desesperada, na frente do Fórum e nas entradas da cidade, para ouvir as notícias que
chegavam do campo de batalha. Com o objetivo de conter esta situação, o Senado proibiu as
mulheres de se manterem em lugares públicos e de chorar em público pelos seus mortos e em
todas as portas foram colocados soldados que impediam que qualquer pessoa deixasse a
cidade.340
Para os romanos estes sinais implicavam o rompimento da pax deorum. Tratava-se,
portanto, de sinais de prodigium que precisavam ser expiados. De acordo com Marília Corrêa
Ciribelli, o prodigium significava que as forças sobrenaturais haviam sido liberadas e,
339
Tito Lívio 22, 1 – 8-13 340
KOVALIOV, op. cit., p. 76.
127
portanto, poderiam tocar em objetos ou pessoas, provocando o piaculum. Esta situação
poderia generalizar-se, indo atingir toda a urbe. Todas estas alterações na ordem do
sobrenatural traziam consigo um sentimento de horror. Para combatê-las, os romanos
utilizavam a procuratio, cerimônia de expiação que objetivava isolar o restante da natureza e
do mundo dos traços do fenômeno que rompera o curso natural da vida.341
Os historiadores Andre Aymard e Jeannine Ayboyer revelam que o senado romano
proibiu inicialmente toda e qualquer coleção de profecias, livros de orações e tratados de
sacrifícios. Proibiu ainda as práticas sacrificiais em local público ou consagrado, segundo um
ritual novo ou estrangeiro. Ainda assim as imagens emotivas se multiplicavam e aos
governantes só restou o recurso de tentar canalizá-las. Desta forma, o historiador Fábio Pictor
foi enviado a Delfos para consultar o oráculo de Apolo. De acordo com as exigências deste
oráculo, o “melhor” homem de Roma deveria trazer a deusa Cibele342
, mãe dos deuses, até a
costa de Óstia, de onde as matronas343
deveriam conduzi-la até a cidade, onde fora instalada
no pomerium344
. Foi a primeira vez que se instituiu um culto oriental em Roma.345
Além do oráculo de Delfos, o senado romano mandou consultar os Livros Sibilinos346
:
"Os Decênviros foram ordenados a consultar os Livros, e Quintus Fabius Pictor foi
despachado para Delfos para consultar o oráculo sobre quais as preces e súplicas
poderiam oferecer aos deuses para pôr fim a todas as suas calamidades. Enquanto
isso, seguindo a orientação dos Livros do Destino, alguns sacrifícios incomuns
foram feitos.”347
341
CIRIBELLI, op. cit., p. 31-33. 342
GRIMAL, Op. Cit., 1996, p. 77-78. O culto da Deusa Mãe é um dos mais antigos cultos da bacia do mar
Egeu. Quer se trate da deusa cretense da fecundidade, quer se trate da Grande Mãe, adorada na Frígia, estas
divindades irão confundir-se com a deusa grega Reia, esposa de Cronos, mãe de Zeus e dos grandes deuses do
Olimpo. 343
POMEROY, S. B. Diosas, rameras, esposas y esclavas: mujeres en la antigüedad clásica. Madrid: AKAL,
1999, p. 171. Mulheres da aristocracia romana, que participavam de salões literários e chegavam a discutir os
assuntos da alta política da cidade-estado. 344
BEARD, M.; NORTH, J.; PRICE, S. R. F. Religions of Rome. Vol. 1. A History. Cambridge: University
Press, 1998, p. 177-179. Fronteira sagrada definida por uma linha simbólica traçada por Rômulo durante a
fundação da cidade. A distinção entre o território interno e externo desta fronteira pode ser percebida em sua
relação com as atividades militares: a autoridade militar (Imperium) de um general romano era válida apenas
fora do pomerium e todos os afazeres militares eram excluídos deste território. Era a área onde os magistrados
consultavam os auspícios e estabeleciam suas relações rituais com os deuses da cidade. 345
AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 274-275. 346
MORESCHINI, C.; NORELI, E. História da Literatura Cristã Antiga Grega e Latina. Vol. I: de Paulo à
Era Constantiniana. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 306. Livros que continham um conjunto de profecias
oraculares prescritas pela Sibila de Cumas que eram consultadas em momentos nos quais a sobrevivência da
urbe estava ameaçada. 347
Tito Lívio, 22- 57
128
De acordo com S. I. Kovaliov para satisfazer o “temor supersticioso” da multidão, os
romanos recorreram a um rito antigo: no Fórum Boarium foram sepultados vivos um casal de
gauleses e um casal de gregos.348
Após esta breve exposição do contexto do ritual romano, varemos a seguir a
conjuntura na qual os sacrifícios humanos eram praticados em Cartago. Para Serge Lancel, o
levantamento estratigráfico do tophet cartaginês revelou que esta atividade religiosa esteve
presente ao longo de quase toda história daquela civilidade, não correspondendo, portanto, a
um contexto específico. A data inicial da prática sacrificial, chamada de Tanit I, é definida
pela Arqueologia a partir de 730 a. C. – deixando um hiato de aproximadamente três gerações
desde a fundação da cidade, em 824 a. C. Esta primeira fase, bem caracterizada pela sua
clareza estratigráfica, revela urnas votivas, feitas em cerâmica e depositadas de modo esparso
na camada mais baixa do Tophet. O segundo período, inaugurado por volta de 600 a. C. e
conhecido como Tanit II, apresenta as urnas funerárias acompanhadas de estelas votivas em
forma de L, esculpidas em arenito extraído da região do campo bom, terras férteis ao norte da
cidade de Cartago. Ainda nesta fase é possível perceber que estas estelas mais rudimentares
são substituídas por monumentos maciços revestidos de estuque branco e com vestígios
cromáticos bem preservados, revelando pigmentos de amarelo, vermelho e azul claro. Além
disso, algumas figuras aparecem em relevo nestes monumentos: trata-se possivelmente de
uma divindade feminina, reconhecida como Tanit, com uma silhueta em pé e às vezes com os
braços cruzados sobre o peito. Na segunda fase do Tanit II (séculos IV e III a. C.) podemos
perceber que as estelas de calcário são substituídas por outras de arenito, apresentando um
frontão triangular com diferentes símbolos: o disco e a lua crescente. Além disso, vemos, pela
primeira vez, aparecer as inscrições “Tanit face de Baal”, que se tornarão mais frequentes no
período posterior. No Tanit III (até 146 a. C.), cujas camadas superiores ficaram achatadas e
cortadas em virtude da ocupação romana, as estelas de pedra calcária são cada vez mais finas
e esbeltas. Estas também possuem frontão triangular, esculpidas com incisão e decoração
diferentes. Os símbolos religiosos estão sempre presentes, com uma iconografia diversa em
seu repertório. Trata-se de uma das melhores fontes de nosso conhecimento sobre a arte
Púnica.349
A seguir, veremos as características das divindades para as quais eram celebrados
estes rituais. Em primeiro lugar veremos a divindade romana, descrita por Dionísio de
Halicarnasso:
348
KOVALIOV, op. cit., p. 77. 349
LANCEL, op. cit., p. 234.
129
“Diz-se que os antigos [itálicos] também sacrificavam vítimas humanas a Saturno
[...] desde a sua fundação até os dias de hoje, como também entre os gauleses e em
outras cidades orientais.”350
(Dionísio de Halicarnasso I, 8).
De acordo com Pierre Grimal, Saturno foi assimilado ao deus grego Cronos351
, e era,
entre os latinos, um deus da vida agrícola, ceifeiro e vinhateiro, cujo nome (que está ligado a
satur, que significa saciar ou sator, que pode ser traduzido como semear) evoca a abundância.
De acordo com a narrativa mítica, afastado do céu por seu filho Júpiter, Saturno refugiou-se
na região da Itália, mais tarde chamada Lácio (palavra que significa o Refúgio) que, para os
poetas latinos, era a terra consagrada à divindade. Nesta região a divindade exerceu a
soberania e deu início à idade do ouro. Criou uma família e uma conduta novas, tornando-se
pai de Pico352
, antepassado de Latino353
. Os Romanos que segundo outras tradições, atribuem
a origem de Roma a Saturno, ergueram-lhe um templo e um altar na entrada do Fórum
Boarium, no Capitólio. Atribui-se ainda a Saturno a criação de divindades como Janus354
ou
Hércules e de heróis como Rômulo. Os Romanos, com receio que a divindade abandonasse o
seu lugar - na República depositava-se no seu templo o erário público da Cidade-Estado -
prenderam a sua estátua com faixas de lã e a libertavam apenas quando se realizavam as
Saturnais. Com efeito, estas festas populares, celebradas anualmente por volta do solstício de
inverno, pretendiam restaurar, por um tempo, a época em que os homens tinham vivido sem
contrariedades e sem distinções sociais, numa paz inviolada. Tratava-se de uma semana de
repouso livre, durante a qual todas as atividades laborativas eram suspensas, inclusive as
campanhas militares, e se realizavam inúmeros banquetes, onde os cidadãos substituíam a
toga pela túnica e serviam os seus escravos que, desobrigados das suas funções habituais,
poderiam falar o que pensavam, sem restrições. O culto à Saturno não se propagou com a
mesma amplitude em todo o mundo romano, tendo ganhado mais destaque junto às
populações da África. O "Dominus Saturnus" representava para estas civilidades a divindade
da fertilidade da terra, assim como o sol e a lua. Tratava-se de uma divindade suprema do céu,
350
Dionísio de Halicarnasso I, 8 351
GRIMAL, op. cit., 1996, p. 81. Cronos, o "dos pensamentos pérfidos", é o mais novo dos Titãs, filho de Geia,
a Terra, e de Urano, o céu estrelado. Foi o único a escutar o pedido de sua mãe, quando Geia, a fim de pôr termo
à sua própria escravatura e à dos seus filhos, decidiu armá-lo para que ele vencesse Urano. Com efeito, este,
horrorizado com a sua descendência, a mantinha prisioneira no ventre de sua mãe, a Terra. Então Cronos, com
um golpe de foice, cortou o órgão sexual de seu pai, afastou-o do poder e apoderou-se do Universo. A partir de
então, o mundo foi governado pela linhagem dos Titãs que, segundo Hesíodo, constituía a segunda geração
divina. Foi durante o reinado de Cronos que a humanidade (recém-nascida) viveu a sua idade de ouro. 352
Ibid., p. 116. Mítico rei da região da Península Itálica. 353
Ibid., p. 115. Mítico rei do Lácio, que na Eneida, oferece sua filha Lavínia em casamento a Enéas. 354
OLIVA, A.; GUERREIRO, M. Pré-socraticos: a invenção da Filosofia. Campinas, SP: Papirus, 2000, p. 121.
Janus Bifrontis, deus romano do tempo, representado por duas faces de perfil, uma olhando para o futuro e outra,
para o passado.
130
instalada muitas vezes em substituição aos deuses fenícios. Era ao Saturno africano que se
realizavam sacrifícios humanos. Estas práticas cessaram sob o Império e foram substituídas
por libações e por sacrifícios de touros e de carneiros.355
As divindades associadas ao culto do sacrifício humano em Cartago são Tanit e Baal
Hammon, destinatários das estelas encontradas na região do Tophet. De acordo com Segue
Lancel, esta presença não se limita à metrópole púnica: a divindade Baal Hammon aparece
também em diversas estelas descobertas na África púnica, na Sicilia, na Sardenha e na ilha de
Malta. Todos estes territórios estiveram submetidos à autoridade dos cartagineses. Apesar
destas ocorrências, esta divindade permanece misteriosa. Baal, no idioma semita significa
“mestre”, “senhor” ou perfeito “cidadão”, em um sentido político. A palavra se situa assim em
um espaço semântico muito amplo, que vai do registro divino ao uso laico e profano.356
Por outro lado a interpretação da parte pessoal do seu nome, “Hammon”, continua
incerta. Ainda de acordo com Serge Lancel, há certo consenso que associa o radical *hmm à
ideia semita de “calor”. Outra proposta aponta Baal Hammon como o “mestre dos altares com
incensos”. Para o autor, a hipótese mais provável, no entanto, é a de que o radical * hmm,
possa ser traduzido como quente. Se não for o mestre de altares de incensos, Baal Hammon
poderia ser o mestre dos incêndios, e a possibilidade que reforça esta ideia foi a descoberta,
em 1922, do Tophet, onde o nome da divindade estava relacionado ao ritual de sacrifícios
humanos. Além disso, os símbolos solares são frequentemente associados à Baal Hammon, e
algumas estelas púnicas do período romano dedicadas a Saturno, seu sucessor, reforçam a
ideia de retorno ao fogo solar e aos sacrifícios de fogo. A presença de Baal Hammon,
associado à Tanit, respondeu a muitos questionamentos e contribuiu para justificar a região do
Tophet como área destinada aos sacrifícios humanos. As fórmulas rituais que foram gravadas
nas estelas funerárias não fornecem detalhes sobre as virtudes e os poderes desta divindade.
357
Tanit, por sua vez, também é uma divindade cuja interpretação ainda permanece
problemática. Entretanto, nos chama a atenção o fato de os cartagineses se referirem à Tanit
como face de Baal. A transcrição da estela funerária abaixo denota esta questão:
“à Grande, à Tanit face de Baal e ao senhor, à Baal Hammon. [Esta é] a que amava
Hmlkt, filho de ‘bdmlqrt, filho de Jtnsd, filho de ‘bdmlqrt, filho de Mhrb’l” 358
355
GRIMAL, op. cit., 1996, p. 259-260. 356
LANCEL, op. cit., p. 234. 357
Ibid., p. 235-236. 358
KAI – 85.
131
De acordo com Werner Huss, a expressão “face de” se expressa, da mesma maneira
que “a imagem”, a essência de Baal Hammon. O rosto da divindade é a parte que se volta para
o homem e o homem só pode existir se a divindade faz refletir seu rosto sobre ele. Ainda de
acordo com o autor, este contexto aponta para o theoyprósopon fenício (“rosto da divindade”).
Neste lugar se encontrava um templo, cujo centro formava a “casa da dividade”, um baítylos,
uma pedra sagrada. De acordo com estes princípios, Baal Hammon, na pedra sagrada, teria
voltado seu rosto ao homem fenício. Em outras palavras: o culto de Tanit, ao menos a partir
do momento em que fora designada como face de Baal, foi um culto betílico.359
A questão relativa à origem da deusa tem sido pouco discutida entre os especialistas.
Para Werner Huss, como não há vestígios de Tanit na fenícia, muitos pesquisadores
supuseram que esta foi uma divindade da Líbia assimilada pelos cartagineses. Além disso, o
caráter da deusa é bastante plural: parece ter sido uma donzela e também uma mãe. Em
grande parte era responsável pela fertilidade da natureza e pela proteção dos mortos. 360
A seguir veremos as descrições dos locais e instrumentos utilizados nos rituais dos
romanos e dos cartagineses. De acordo com Marcel Mauss e Henri Hubert, o sacrifício não se
realiza em qualquer época ou qualquer lugar. O local da cena deve ser sagrado: fora deste
local, a imolação seria simples assassinato. Nos casos em que o ritual era celebrado em um
templo, lugar sagrado por natureza, as consagrações prévias eram bastante reduzidas.361
A
documentação textual não deixa transparecer os rituais que foram realizados antes da
execução do sacrifício humano em Roma, mas nos permite analisar as especificidades do
local onde era praticado:
"[...] para enterrar vivos dois gregos, um homem e uma mulher, e também
dois gauleses, no lugar chamado Fórum Boarium [Grifo meu], ou mercado do
gado."362
(Plutarco, Vida de Marcellus, 3).
O historiador Pierre Grimal destaca que a narrativa mítica nos revela a aventura de
Hércules ao roubar a manada de Gérion, um monstro com três corpos, na Ibéria. De acordo
com o autor, o herói viajou pela Península Itálica e, ao atravessar a Etrúria, exatamente no
local do futuro surgimento de Roma, foi convidado pelo rei Evandro a descansar por algum
tempo. Contudo, durante a noite, Caco, um gigante com três cabeças, meio-sátiro363
, meio-
359
HUSS, op. cit., p. 340. 360
Ibid., p. 341. 361
MAUSS; HUBERT, op. cit. P. 72. 362
Plutarco, Vida de Marcellus, 3. 363
GRIMAL, op. cit., 1996, p. 260. Os Sátiros são gênios das florestas e das montanhas representados, na
origem, com um corpo peludo, dotado de um rabo e de duas patas de bode e com uma cabeça com orelhas
132
homem, filho de Vulcano364
, que cuspia fogo, lhe roubou alguns animais, escondendo-os nas
cavernas do monte Aventino. Pela manhã os touros de Hércules começaram a mugir de
maneira sofredora e, de longe, aqueles que tinham sido roubados responderam-lhes com a
mesma força. Hércules descobriu, assim, o roubo de Caco e o esconderijo dos seus animais.
Dirigiu-se ao local, retirando as pedras que tapavam a entrada e, apesar das chamas expelidas
por Caco, libertou os animais e matou o seu raptor. O local deste combate, nas margens do rio
Tibre, conservou, a partir de então, o nome de Forum Boarium: fórum dos bois.365
De acordo com John Scheid, a área do Fórum Boarium é bastante peculiar. Os deuses
e festivais relacionados a esta região estão ligados à formação da identidade política e social
de Roma. Esta área é limitada a oeste pelo rio Tibre, pelo Forum Holitorium ao norte, pelo
Circus Maximus a leste e pelo monte Aventino ao sul. De tempos em tempos, principalmente
nos últimos três séculos da República, as procissões do Triunfo cruzavam esta área, seguidas
pela celebração de grandes banquetes. O Fórum Boarium foi um espaço oficial da cidade-
estado e a coletividade de cultos ali realizados estão diretamente ligados à identidade
romana.366
O arqueólogo Gilbert Charles-Picard revela que as narrativas míticas dizem que a
região do Fórum Boarium teria sido visitada por navegadores gregos e a recente descoberta de
cerâmica geométrica grega datada do século VIII a. C., talvez provenientes de Micenas,
confirma a persistência dessas navegações, além da instalação ao longo do rio Tibre, de
templos para adoração de deuses gregos como Apolo, Heracles e Demeter.367
Pierre Grimal acrescenta que há muito tempo, este lugar foi dedicado ao tráfego de
Roma com o estrangeiro e era aí que os condutores de bois seminômades acampavam com
seus rebanhos. Deste santuário foram excluídas as mulheres e também se procurava garantir
que os cães nunca o penetrassem. O culto de Hércules, importado por Roma desde muito
cedo, deu origem a vários santuários, além do altar principal. Sabe-se, por exemplo, que ali
pontiagudas, um nariz achatado e um olhar lúbrico. Estes gênios ocupam os seus tempos livres perseguindo as
ninfas ou os viajantes. 364
GRIMAL, op. cit., 1996, p. 306. Um dos mais antigos deuses dos Latinos é, na origem, a única divindade do
solo fecundante e do fogo devastador. Ele é adorado, quer como deus do lar, quer como deus dos combates. Este
deus do fogo é, por vezes, confundido com o deus do rio Tibre. 365
Ibid., p. 161. 366
The festivals of the Forum Boarium area: Reflections on the construction of complex representations of
roman identity. In: BRANDT, J. R.; IDDENG, J. W. (Orgs.) Greek and roman festivals: content, meaning and
pratice. Cambridge: University Press, 2012, p. 290-291. 367
CHARLES-PICARD, G. Rome et Les Villes D’Italie: Des Gracques A La Mort D’Auguste. Paris : SEDES,
1978, p. 33.
133
havia, entre outros, um templo de Hércules Vencedor, onde os conquistadores praticavam
sacrifícios.368
A pesquisadora Colette Bémont acrescenta que a região do Fórum Boarium é
extremamente desconhecida. Não sabemos, por exemplo, se o sacrifício foi celebrado intra ou
extramuros. O nosso desconhecimento se deve à falta de escavações arqueológicas
sistemáticas nesta área, que destacariam a localização do local da cerimônia ou, pelo menos,
os edifícios, entre os quais ele teria tido lugar.369
O ritual cartaginês, por sua vez, era realizado num santuário, chamado de Tophet e
cuja origem do nome abordamos no capítulo anterior. Santuários semelhantes aos do Tophet
cartaginês são encontrados ainda em outras localidades ao longo do Mediterrâneo. Os
pesquisadores Bruno D’Andrea e Sara Giardino analisam a localização do Tophet, buscando
entender por que é possível encontrá-lo apenas em algumas áreas da colonização fenícia ao
longo do Mediterrâneo. De acordo com os autores, existe a hipótese de que o Tophet tenha
sido uma área típica de centros urbanos característicos de populações que alcançaram
desenvolvimento substancial, algo que explicaria a sua ausência no interior de Cartago e nas
colônias fenícias da Córsega. Sobre esta perspectiva os autores acrescentam duas
informações, a saber: o santuário do Tophet é instalado em sincronia com o estabelecimento
dos centros urbanos onde ele está localizado, ou seja, ele faz parte do processo de
“urbanização”, sobretudo da região do Mediterrâneo Central, destinada à formação de
colônias. Esta característica explicaria, por outro lado, a ausência destes santuários em áreas
voltadas para a exploração comercial, como a região da Península Ibérica. Assim, o Tophet
seria, portanto, o símbolo de uma vontade política e de reafirmação da iniciativa de expansão
territorial. Para os autores, estas propostas reforçam o papel de Cartago tanto na questão do
surgimento quanto na difusão do Tophet. Ainda que não tenha sido uma produção original, os
cartagineses, após desenvolverem o seu santuário, procuraram expandi-lo entre os
assentamentos urbanos de suas colônias ao longo do Mediterrâneo.370
De acordo com Sergio Ribichini, os Tophet Ocidentais apresentam algumas
características constantes: a maior parte é formada por uma área separada do terreno
circundante de uso profano, onde foram recolhidos e depositados restos de ossos ritualmente
queimados nos sacrifícios. Os edifícios, utilizados em alguma parte do culto ou em algumas
368
GRIMAL, P. Rome. Paris: Université de France, 1962, p. 58-59. 369
BÉMONT, C. Les enterrés vivants du Forum Boarium : essai d'interprétation. In: Mélanges d'archéologie et
d'histoire. T. 72, 1960. p. 133-146. [Online] Disponível em:
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/mefr_0223-4874_1960_num_72_1_7462, p. 136. 370
D’ANDREA, B.; GIARDINO, S. Il Tophet: dove e perché: alle origine dell’identitá fenicia. Vicino & medio
oriente XV (2011), p. 133-157.
134
atividades rituais, quando existem, geralmente são muito pequenos, como a presença de um
pequeno templo localizado na parte ocidental do santuário, conhecido como “capela A”,
descrito em relatórios de escavação. Assim, a construção de pequenas edificações, bem como
a elaboração de estelas, não é, portanto, um elemento da natureza essencial deste lugar
sagrado, que é, em vez disso, um lugar destinado à deposição de urnas contendo os ossos
calcinados de crianças e pequenos animais. Esta consideração pode ser aplicada a
outros Tophet do mundo Púnico. Em resumo, do ponto de vista arqueológico, não há provas
suficientes para declarar com convicção a presença de um templo dentro de cada
Tophet, ainda que a hipótese seja permitida e provável, a partir de outras evidências, como a
estela que veremos a seguir. Contudo, em qualquer situação, quando ele aparece nestes
santuários é interpretado como um lugar sagrado, mas sua eventual destruição ou o seu
abandono não afetava a funcionalidade do Tophet, que continuava a ser utilizado para
deposição de urnas, para a construção de estelas e para outras ofertas votivas destinadas aos
deuses.371
A presença de uma estela em Cartago, no entanto, parece revelar a existência deste
templo.
Figura 10: Estela votiva de Cartago – (CIS I, 4947).
Quais são as características que faziam deste pequeno templo um santuário? Ainda de
acordo com Sergio Ribichini, as pesquisas arqueológicas sugerem que, no Monte Sirai, o
templo do Tophet era o local destinado à queima dos corpos que eram depositados nas urnas.
Contudo, o caso do Monte Sirai permanece isolado. Sabemos que em Cartago a combustão
das vítimas expiatórias era realizada ao ar livre, talvez em um recipiente ou em uma pira e o
pequeno templo possuía uma função diferente da de um local destinado à cremação de
371
RIBICHINI, op. cit., p. 425-426.
135
corpos. A iconografia da estela acima, por outro lado, revela uma cena de oferta de sacrifício
e, possivelmente outras liturgias, celebradas fora do templo e na frente dele, demonstrando
um altar ao ar livre, a certa distância desta construção. Como vimos, o templo não é um dos
elementos originais da construção do Tophet, de modo que, quer antes da sua construção ou
após o seu abandono, a atividade sacrificial continuou a ocorrer igualmente, em outro
lugar. Acredita-se então que estes templos tivessem a função de repositório do mobiliário do
culto e dos ex-votos, ou mesmo a função de um santuário interior, como um abrigo de
efígies (ou imagens) das divindades. Nesta linha de argumentação podemos dizer que os
vários templos localizados nos diferentes Tophet foram destinados a abrigar as estátuas das
divindades, provavelmente colocadas sobre um altar, utilizado para caracterizar o templo
como “a habitação divina”.372
Resulta de todas estas considerações, a conclusão de que a função prioritária, e muitas
vezes a única, deste pequeno templo era a de reunir os objetos do culto e algumas estelas
votivas, de acordo com uma organização estabelecida pela cidade-estado de origem do culto.
Para Sergio Ribichini, a partir desta hipótese segue uma primeira observação sobre a
correlação entre as estelas e o templo-santuário: quando este é construído para os fins citados
acima, a paisagem do Tophet é repleta de pedras e estelas, erguidas por iniciativa de
adoradores individuais, sobre ou perto das urnas. Este templo pode, portanto, representar um
aspecto comunitário para a celebração ritual. Portanto, a área em torno do templo e no seu
interior, foi organizada para a celebração de uma pluralidade de liturgias que não se limitavam
à passagem das crianças e dos animais através do fogo e sua posterior deposição nas urnas. De
acordo com os textos epigráficos, eles foram uma área sagrada destinada à queima das
crianças e dos cordeiros, mas também destinada ao sacrifício, e provavelmente ao consumo
em um banquete sacrificial, de outros animais, além de depósito para as ofertas realizadas sem
o derramamento de sangue, para o ritual das libações ou para a queima de incenso e outras
resinas perfumadas. O templo coincide no Ocidente com a estela, o que, portanto, qualifica-se
como uma habitação “cultural” da divindade. Neste sentido, a ligação com Baal Hammon
torna-se direta, porque a divindade é a “proprietária” da estela e do “residente” no
templo. Não tanto em razão do ritual que se realizava no Tophet, mas pela estela votiva, Baal
Hammon é especificamente convocado a comparecer neste local.373
Podemos perceber que, em ambos os casos, os rituais de sacrifícios humanos eram
celebrados em locais consagrados aos deuses, o que pode indicar que os ritos iniciais tenham
372
RIBICHINI, op. cit., p. 430-433. 373
Ibid., p. 432-439.
136
sido bastante reduzidos. A seguir analisaremos os instrumentos utilizados nos rituais. Pouco
ou quase nada sabemos acerca dos instrumentos do ritual romano, a não ser a ação de sepultar
vivas as vítimas expiatórias. A prática de sacrifícios humanos por sepultamento não era
desconhecida dos romanos, sendo aplicada como punição às virgens vestais eventualmente
acusadas de romper com suas obrigações sacerdotais.
De acordo com Andre Aymard e Jeannine Ayboyer, ainda que organizadas em
colégio, as Vestais possuíam função ativa como sacerdotisas. Em número de seis e sob a
direção de uma delas, a Vestialis Maxima, tinham a função de velar pela manutenção do fogo
sagrado, símbolo da vida da cidade, que deveria crepitar permanentemente no templo de
Vesta. Estas sacerdotisas eram retiradas ainda meninas de importantes famílias aristocráticas e
passavam a viver no templo, onde nenhum homem poderia entrar. Além disso, faziam voto de
castidade, cuja violação imputava-lhes um ritual expiatório no qual eram sepultadas vivas.
Contudo, ao final de trinta anos poderiam voltar à vida comum e casar-se.374
O historiador Fustel de Coulanges acrescenta que em Roma nada havia de mais
sagrado que o altar sobre o qual ardia o fogo sagrado. De acordo com o autor, o respeito
demonstrado pelos romanos ao sacerdócio das vestais é a prova de sua importância. Se um
cônsul encontrava uma vestal no seu caminho abaixava suas armas diante dela. Por outro
lado, se uma delas deixasse o fogo extinguir-se ou se negligenciasse o seu dever de castidade,
os romanos, julgando perder o apoio de seus deuses, vingavam-se da vestal enterrando-a
viva.375
A documentação textual deixa transparecer que, ainda no contexto da segunda guerra
púnica, uma virgem vestal teria sido sacrificada:
“Eles ficaram com muito medo, não só pelos grandes desastres que tinham
sofrido, mas também por uma série de prodígios e, em particular porque duas
vestais, Opimia e Floronia, foram condenadas nesse ano por falta de castidade.
Destas, uma foi enterrada viva, como é o costume, perto do Portão da Colina, e a
outra se matou. Cantilius Lúcio, um auxiliar dos Pontífices, daqueles que são
chamados agora Pontífices menores, culpado com Floronia, morreu sob os golpes do
Pontifex Maximus que lhe tinha severamente açoitado no Comitium.”376
Por outro lado, a questão dos instrumentos utilizados pelos cartagineses pode ser
revelada através dos levantamentos arqueológicos realizados ao longo do século XX na região
do Tophet. Neste sentido podemos destacar o uso do fogo, das urnas funerárias e das joias e
amuletos depositados sobre os ossos calcinados das crianças após o ritual. Iniciaremos nossas
análises pelo valor simbólico do fogo.
374
AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 263-264. 375
COULANGES, op. cit., p. 116-117. 376
Tito Lívio 22, 57; 1-3
137
De acordo com Fustel de Coulanges, o homem antigo via no fogo o deus benfazejo,
que conservava a sua vida. Tratava-se do deus que o alimentava com os seus dons. Era
também o deus forte, que protegia a casa e a família. Em presença de algum perigo,
procurava-se abrigo junto dele. Era o fogo que enriquecia as famílias. Ofereciam-lhe
sacrifícios e a divindade recebia as oferendas e as devorava. Ainda de acordo com o autor, a
religião do fogo sagrado é bastante comum na região mediterrânea, existindo ali muito antes
da formação das antigas civilidades orientais e ocidentais. Para Fustel de Coulanges, não se
trata de um fogo de natureza material. Nele não vemos o elemento puramente físico que
aquece ou queima, transforma os corpos, funde os metais e se torna instrumento da
manufatura humana. Trata-se, acima de tudo, de um fogo puro, só podendo ser produzido
quando auxiliado por certos ritos e somente podendo alimentar-se com determinadas espécies
de madeira. É aquele que aquece e coze o alimento sagrado e que tem ao mesmo tempo um
espírito, uma consciência. É um elemento que dita deveres e vela para que sejam cumpridos.
Possui do homem sentimentos e afetos, concede sua pureza, ordena o bem e o mal, e alimenta
a sua alma. Pode-se dizer que o fogo mantém a vida humana na dupla sucessão das suas
manifestações: representa ao mesmo tempo a origem da riqueza, da saúde e da virtude. É
ainda a divindade da natureza humana. É o intermediário do homem junto aos deuses de
natureza física, encarregando-se de transmitir ao céu a prece e a sua oferenda e de trazer-lhe
as concessões divinas.377
De acordo com Marcel Mauss e Henri Hubert, nos rituais de sacrifício, em geral, o
fogo chega a ser aceso por fricção, a fim de que seja inteiramente novo. Nessas condições ele
possui uma virtude mágica que afasta os gênios maus, os malefícios e os demônios. O fogo é
matador de demônios e, além disso, ele é a própria divindade. O fogo é Agni378
em sua forma
completa. Do mesmo modo, o fogo do sacrifício simboliza a própria divindade que devora a
vítima ou o sinal da consagração que a inflama.379
Outros objetos observados nos rituais cartagineses são a ânfora funerária e as joias e
amuletos que eram utilizados após a execução do ritual. Cada fase do ritual cartaginês
apresenta um diferente tipo de ânfora utilizada. Para Roald F. Docter, dado o fato de que a
cerâmica presente no Tophet serviu a fins muito particulares, o repertório de formas é bastante
limitado, consistindo principalmente de ânforas, jarros, “panelas” e todas as formas que
poderiam ter sido utilizadas com uma tampa. Embora algumas das formas de cerâmica no
377
COULANGES, op. cit., p. 22-25. 378
Agni é a palavra em Sânscrito que significa fogo. É também uma divindade do panteão hindu para a qual se
dirigiam os sacrifícios de fogo. 379
MAUSS; HUBERT, op. cit., p. 44.
138
tophet devem ter sido feitas especialmente para o ritual de sepultamento dos restos cremados,
a sua maioria é encontrada em contextos funerários. Com o objetivo de observar o
desenvolvimento das formas ovoides e carenadas no repertório de ânforas fenícias, algumas
das urnas do tophet foram recentemente analisadas. Ao longo de uma série destas urnas, uma
mudança geral na decoração pôde ser distinguida, a qual é baseada no desaparecimento
gradual de um dos cinco diferentes esquemas de decoração: bicromática ou com decoração
vermelha por zonas e com padrões geométricos na área da alça, decoração bicromática por
zonas, decoração em linha horizontal e utensílios simples sem decoração. A ocorrência desses
esquemas é cronologicamente distinta, embora certa sobreposição seja evidente.380
Abaixo
podemos verificar a tipologia destas urnas, a partir de uma comparação cronológica. Uma
análise mais aprofundada acerca destas urnas funerárias e suas respectivas tipologias
permanece ainda em aberto.
Ânfora bicromática do Tanit I:
Figura 11: Período: Séculos VIII e VII a. C. / Região: Cartago
Dimensões: Altura: 22,1 cm; Diâmetro (boca): 11,1 cm, (barriga) 21,6 cm, (base) 7,1 cm.
Argila: amarelo avermelhada. / Superfície: marrom pálido; pigmentos vermelhos no aro, ombro, região da
barriga e na zona da alça; e linhas horizontais nas alças em vermelho fraco; e tinta preta nas linhas que fazem
fronteira com zonas de deslizamento vermelhas no ombro e na barriga. Superfície alisada.
Bibliografia: Docter, 1997: table 62.A, No. 10.
380
DOCTER, et. Alli, op. cit., p. 420.
139
Ânfora do Tanit II:
Figura 12: Período: Séculos VII e V a. C. / Região: Cartago
Dimensões: Altura: 20,0 cm. Diâmetro: (boca) 9,4 cm, (barriga) 15,7 cm, (base) 7,6 cm.
Argila: amarelo avermelhada. / Superfície: Simples, amarelo-avermelhada; traços de deslizamento vermelho na
base, incrustação calcária na metade inferior do corpo (pós-depositada).
Bibliografia: Amphora Tanit II, Amsterdam APM 12. 499/1
Ânfora do Tanit III:
Figura 13: Período: Séculos IV e II a. C. / Região: Cartago
Dimensões: Altura: 17,1 cm. Diâmetro (boca) 5,8 cm, (barriga) 11,0 cm, (base) 6,7 cm.
Argila: Branca. / Superfície: Lisa. Branca, com manchas mais escuras, cinza acastanhado.
Bibliografia: Amphora Tanit III, Leiden RMO G 1952/2.12a
Marcel Mauss e Henri Hubert destacam que as precauções tomadas após o ritual de
sacrifício, as quais inferimos o uso das ânforas, dos amuletos e das joias, destinavam-se a
140
impedir que os restos da vítima, sendo sagrados, entrassem em contato com as coisas
profanas. Inutilizados, os restos deviam ser, se não destruídos, pelo menos guardados e
vigiados. Mesmo os resíduos da cremação que não pudessem ser destruídos nem utilizados
não eram lançados ao acaso: eram depositados em locais especiais, protegidos por interdições
religiosas.381
Uma vez analisados os aspectos componentes do ritual romano e do ritual cartaginês
podemos buscar a compreensão do significado simbólico destas práticas. Iniciaremos com as
práticas de sacrifícios humanos em Roma. A prática sacrificial romana fora empregada em um
contexto de conflitos que ameaçavam a sobrevivência da urbe, fator que nos aproxima da
proposta de interpretação teórica indicada por René Girard, como vimos no capítulo anterior.
Neste caso, os romanos procuraram desviar para vítimas relativamente “sacrificáveis”
uma violência que golpeava sua própria civilidade, que ela procurava proteger a qualquer
custo. As vítimas, o casal grego e o casal gaulês, substituíram toda a coletividade do populus
romanum e o ritual do sacrifício objetivou protegê-la da violência consequente dos embates
contra o exército cartaginês. Desta forma, o sacrifício polarizou sobre as vítimas exteriores os
germens de desavença espalhados por toda parte, proporcionando-lhes uma saciedade parcial.
Para que haja eficácia na prática sacrificial, a vítima expiatória deve assemelhar-se com as
categorias que substitui, sem que a distinção perca a nitidez. No ritual romano esta
semelhança fica evidente a partir do emprego de vítimas humanas estrangeiras. De acordo
com René Girard, a categoria dos estrangeiros frequentemente presentes em ritos sacrificiais
envolvendo seres humanos justifica-se pelo impedimento de plena integração à comunidade,
ou seja, são incapazes de tecer com a citada comunidade os mesmos laços sociais que ligam
seus membros entre si. A justificativa para a escolha de tal tipologia de vítimas é a de que
sobre estas não recairia nenhum desejo de vingança dos membros da comunidade dos
romanos.382
A prática sacrificial empregada pelos cartagineses, por outro lado, sugere uma
interpretação simbólica diversa daquela a qual inferimos sobre a atividade análoga romana.
Neste sentido, utilizaremos como suporte teórico as análises acerca do fenômeno da dádiva
defendidas pelo antropólogo Marcel Mauss. A objetividade da prática ritual em Cartago
procura estabelecer uma troca entre os Sacrificantes, as famílias das crianças, e a divindade,
na qual os primeiros entregam o filho natimorto ou morto antes de atingir o status de cidadão,
buscando receber em seu lugar outra criança, mais saudável, uma vez que neste tipo de
381
MAUSS; HUBERT, op. cit., p. 48. 382
GIRARD, op. cit., p. 18 et seq.
141
Sacrifício Contrato existe a relação custo e benefício. A ideia do sacrifício contrato se insere
num campo teórico mais amplo: o do sistema de prestações totais, ou o potlatch383
.
Neste sistema de prestações totais não se trata de troca entre indivíduos, trata-se, antes
de tudo, de coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam. De acordo com
Marcel Mauss, as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias, que
se atacam e se opõem. Além disso, o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas,
móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de tudo, amabilidades, festins,
ritos, serviços, militares, mulheres, crianças, danças e festas. São trocas rigorosamente
obrigatórias sob o risco da emergência de embates e conflitos privados ou públicos. Este
sistema possui alguns elementos considerados essenciais, a saber: a honra, o prestígio e o
“mana” que confere riqueza, além da obrigação absoluta de retribuir as dádivas recebidas, sob
pena de perder o “mana”, a autoridade, o talismã, a fonte de riqueza que é a própria
autoridade.384
As relações destes contratos de trocas entre homens e destes contratos e trocas entre
homens e deuses complementam uma parte da teoria do sacrifício. Para Marcel Mauss (Op.
Cit. 1960) um dos primeiros grupos de seres com os quais os homens se viram obrigados a
contratar, e que por definição estavam lá para esta finalidade, foram os espíritos dos mortos e
as divindades. De fato, estes são os legítimos proprietários das coisas e dos bens deste mundo.
Era com estes entes sobrenaturais que era mais necessário realizar as trocas e com os quais se
corria mais risco não o fazer. Por outro lado, era com os deuses e espíritos dos mortos que era
mais fácil e mais seguro trocar. Assim, a destruição operada no sacrifício tem por objetivo ser
uma doação necessariamente retribuída.385
Nossa hipótese se baseia no fato de que grande parte dos ossos calcinados encontrados
nas urnas sacrificiais pertencerem a fetos ainda não totalmente formados conforme gráfico
que já exibimos no capítulo anterior.386
Assim, é possível que, vítimas de aborto espontâneo ou mortalidade infantil, as
famílias cartaginesas devolvessem aos deuses os filhos mortos, objetivando reforçar a sua
fertilidade. De acordo com Marcel Mauss, as dádivas trocadas entre homens e deuses têm por
finalidade ratificar a paz uns com os outros. A reafirmação desta relação por meio do
383
MAUSS, M. Ensaio Sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 56-57. Potlatch (alimentar, consumir):
prestações totais de tipo agonístico. 384
Ibid., p. 53-60. 385
Ibid., p. 64. 386
Cap. 2 – p. 95.
142
sacrifício afasta os maus espíritos, as más influências, mesmo aquelas não personalizadas.387
É possível que os cartagineses interpretassem a morte prematura do indivíduo como um sinal
de maldição, algo que escapava à ordem natural das coisas. Nesta relação de troca, a
divindade retribuiria através de uma nova gestação, desta vez trazendo ao mundo uma criança
mais resistente aos desafios que poderiam pôr termo à sua vida. A origem desta hipótese
reside no fato de que o rito sacrificial implica uma relação de troca realizada no mais elevado
grau, porque os deuses que dão e retribuem estão lá para dar uma dádiva grande no lugar de
uma coisa pequena. É talvez por este motivo que as duas formas solenes do contrato: em latim
do ut des, em sânscrito dadami se, dehi me, foram conservadas também pelos textos
religiosos.388
A troca de uma criança morta por outra mais saudável revela-se, neste sistema de
ideias, uma vez que é necessário retribuir a outrem aquilo que é, na realidade, parcela da sua
própria natureza e substância. De acordo com Marcel Mauss, aceitar qualquer dádiva de
alguém é aceitar uma parte da sua essência espiritual, da sua alma. A conservação dessa
dádiva seria perigosa e mortal, porque a dádiva que vem do ofertante tem poder mágico e
religioso sobre a divindade. Enfim, a dádiva, ou seja, a criança morta antes de atingir o status
de cidadão, não é algo inerte. Animada e frequentemente individualizada, ela tende a entrar no
“seu lar de origem” e a produzir, para a família de onde saiu um equivalente que a
substitua.389
Neste sistema, as trocas de dádivas não são facultativas. De acordo com Marcel
Mauss, recusar-se a dar equivale a declarar a guerra contra a divindade. É recusar a aliança e
a comunhão. Assim, as famílias cartaginesas entregavam seus filhos natimortos porque eram
forçadas a isso, porque Baal Hammom tem uma espécie de direito sobre tudo o que pertence a
elas. Por outro lado, o que, no presente recebido, trocado, obriga, é o fato de não ser inerte.390
Para Marcel Mauss, mesmo abandonado pelo doador, a dádiva é ainda uma parte deste.
Através dela, o doador tem domínio sobre a divindade.391
Além disso, neste sistema, ninguém
tem a liberdade de recusar um presente oferecido e é a própria dádiva que regressa.392
A certeza da retribuição é baseada na virtude da dádiva que é ela mesma, essa
segurança. O “tempo” é necessário para se executar qualquer contraprestação. A dádiva
387
MAUSS, op. cit., p. 75. 388
Ibid., p. 83. 389
Ibid., p. 66. 390
Ibid., p. 68. 391
Ibid., p. 64. 392
Ibid., p. 81.
143
implica necessariamente a noção de crédito.393
Trata-se da obrigação de dar, a essência do
Potlatch. O sacrificante cartaginês tinha a noção de que a divindade possuía a obrigação de
retribuir e essa noção era expressa nas fórmulas votivas descritas nas estelas funerárias,
conforme reveladas no capítulo anterior:
“Ao Senhor Baal Addir e à grande Tanit face de Baal, o voto dedicado.”394
Neste caso, nos chama a atenção a expressão “Face de Baal”. Trata-se de um
elemento importante do sistema de prestações totais: o que obriga a retribuir é o risco de
perder o prestígio, de perder a alma: é realmente a face, é a máscara, o direito de encarnar um
espírito, de usar um brasão, um totem395
, é realmente a persona, que são postos em disputa,
que se perdem no potlatch, no sistema das dádivas. Tanit, a “face de Baal”, é o próprio
prestígio da divindade entre os cartagineses. O potlatch é um ato fundamental do
“reconhecimento” religioso.396
Além disso, a divindade não tem o direito de recusar a dádiva, nesse caso a criança
que passou pelo fogo. Trata-se da obrigação de receber. Recusar uma dádiva é manifestar que
se tem medo de retribuir, é recear ser rebaixado quando não se retribui. Na realidade é estar
humilhado.397
Para a divindade seria perder o peso do seu nome, seu prestígio junto aos
ofertantes do sacrifício.
Ao receber uma dádiva, a divindade se compromete. De acordo com Marcel Mauss, ao
receber uma dádiva, faz-se mais do que se beneficiar de uma coisa e de um ritual. Se aceita
um desafio. Para o autor, abster-se de dar, como abster-se de receber, é faltar a um dever,
como abster-se de retribuir.398
Assim, a obrigação de retribuir é parte fundamental do potlatch na medida em que
este não consiste em pura destruição. De acordo com Marcel Mauss, essas destruições, em si,
muitas vezes sacrificiais e beneficiadas em homenagem aos deuses, não têm necessidade de
serem todas retribuídas sem condições. Contudo, normalmente, qualquer dádiva deve ser
retribuída de forma acrescida. A obrigação de retribuir dignamente é imperativa. Perde-se a
393
MAUSS, op. cit., p. 108-109. 394
RES 326 – Estela funerária do Tophet cartaginês – Original disponível no Museu do Louvre 395
KUPER, A. Reinvenção da Sociedade Primitiva - Transformações de um Mito. Recife: Editora universitária
da UFPE, 2008, p. 157. Totem é um emblema, um símbolo de identidade que caracteriza a origem de um clã, de
uma família. Os aspectos religiosos do totem, como os rituais, as interdições e as crenças, têm origem na
identificação da unidade social. 396
MAUSS, op. cit., p. 116 et seq. 397
Ibid., p. 121. 398
Ibid., p. 122.
144
“face” para sempre se não se retribuir. Nas dádivas trocadas pelo potlatch existe uma virtude
que as obriga a circular, a serem dadas e a serem retribuídas.399
Observamos então que a prática de sacrifícios humanos em Roma e em Cartago possui
objetividade semelhante: em ambos os casos o que está em questão é a própria sobrevivência
da cidade. Para o romano, o ritual procura restabelecer a pax deorum consagrando a própria
urbe, garantindo-lhe a vitória contra o inimigo que a ameaça de destruição total. Para o
cartaginês é possível que a devolução da criança morta aos deuses lhe garantisse a fertilidade
continuada através do retorno desta à cidade e a consequente continuação da vida em
comunidade.
399
MAUSS, op. cit., p. 123-125.
145
CONCLUSÃO
A Historiografia responsável pela construção da memória acerca da civilidade púnico-
fenícia sofreu influência do contexto de transformações ocorridas na Europa a partir
principalmente do século XIX. Neste ambiente, marcado pela expansão imperial europeia, a
identidade púnico-fenícia foi construída a partir do estereotipo de “depravadores”,
“saqueadores” e “fraudadores” em virtude de práticas religiosas como a prostituição sagrada e
o sacrifício de seres humanos. Esta característica influenciou boa parte dos artistas, escritores
e estudiosos europeus que suprimiram o aspecto civilizador dos fenícios, valorizando apenas o
caráter de civilidade oriental exótica. Um exemplo desta questão foi a publicação do romance
de Gustave Flaubert, intitulado Salammbô (1862) que suscitou uma aversão à sociedade
cartaginesa, influenciando as pesquisas historiográficas do século XX. O alcance da obra de
Flaubert continua presente até os dias atuais, através de exibições de operas de Salammbô e
dos guias turísticos da Tunísia baseados em sua narrativa. Hoje é difícil encontrar um manual
histórico que, ao falar de Cartago não faça referência ao ritual de sacrifício que objetivava
oferecer vítimas humanas às divindades em sua necrópole.
Por outro lado, o desenvolvimento das escavações arqueológicas pôs novamente em
perspectiva a representação dos cartagineses, uma vez que parecia confirmar os textos dos
historiadores clássicos e a obra de Gustave Flaubert. Entretanto, o que se seguiu a estas
descobertas foi um intenso debate na historiografia contemporânea cuja temática buscava
abordar a existência ou não de sacrifícios humanos em Cartago. Milhares de urnas contendo
ossos calcinados de crianças foram descobertas em uma região que ficou conhecida como
Tophet, em referência ao local, descrito pela Bíblia, onde crianças eram sacrificadas ao sul da
cidade de Jerusalém.
A partir de então duas hipóteses principais estiveram em discussão ao longo do século
XX. A primeira delas defendia que as evidências arqueológicas confirmavam a realidade do
sacrifício humano em Cartago tal qual descrita por Diodoro da Sicília. A segunda propunha
que as urnas do Tophet cartaginês não representavam nada além de um processo de cremação
ritual ligado às práticas funerárias comuns aos fenícios.
Entretanto, as análises osteológicas posteriores não confirmaram as narrativas dos
historiadores da Antiguidade, como Plutarco e Diodoro da Sicília. O padrão regular da queima
dos ossos e a presença de grande numero de fetos não completamente formados nas urnas
funerárias eram incompatíveis com um ritual no qual as crianças vivas seriam depositadas nos
braços de uma estátua, caindo posteriormente em uma fenda em chamas. Por outro lado, as
146
análises da Antropologia Forense não puderam determinar a causa da morte das crianças
cartaginesas, ou seja, não foi possível determinar se as mesmas estavam vivas ou mortas
durante o processo de queima ritual. A prática da cremação dos mortos de fato integrava o
conjunto de práticas funerárias dos fenícios, ao lado do sepultamento. Contudo, a comparação
entre as inscrições funerárias e as inscrições gravadas nas estelas do Tophet revela uma
substancial diferença: as urnas e o seu conteúdo eram oferendas aos deuses Baal Hammon e
Tanit. Entretanto, é preciso diferenciar as oferendas comuns, feitas aos deuses, daquelas
operadas pelo sacrifício.
O diálogo com a Antropologia e seus conceitos nos permitiu inferir que a oferenda
operada no Tophet cartaginês é de fato um sacrifício. Ao longo desta pesquisa nos deparamos
com dois conjuntos de conceitos teóricos distintos acerca da prática sacrificial: de um lado,
observamos os postulados de René Girard para quem um dos elementos fundamentais do rito
é o derramamento do sangue da vítima no altar, o que torna imprescindível que a mesma
esteja viva no momento da execução do ritual. Por outro lado, apresentando uma proposta
diversa, os antropólogos Marcel Mauss e Henri Hubert revelam que o fator essencial do ritual
de sacrifício é a consagração operada por ele mediante a destruição da vítima, que pode ser,
inclusive, um objeto inanimado. Assim, podemos dizer que as crianças, vítimas
provavelmente de mortalidade infantil provocada por doenças comuns na região do
Mediterrâneo naquele período, compatíveis com um sistema irregular de abastecimento de
água e tratamento de resíduos humanos e animais, e também vítimas de abortos, eram
devolvidas aos deuses por meio de um ritual de sacrifício operado pelo processo de queima
dos seus restos mortais.
A temática do sacrifício humano, durante muito tempo, foi considerada por muitos
estudiosos como uma excentricidade antropológica ou, em muitos casos, como reflexo de um
imaginário social. A atitude dos pesquisadores em rejeitar a realidade do sacrifício de seres
humanos impediu que se construíssem investigações sistemáticas acerca desta temática. Em
muitos casos, em consequência talvez do Imperialismo europeu, o sacrifício humano era
apresentado como prática corriqueira das civilidades conquistadas, o que contribuía
significativamente para a desvalorização de suas culturas. A prática de sacrifícios humanos foi
usada inclusive para justificar a escravidão no século XIX, que afirmava seu caráter
“libertador”, no qual os cativos escapariam de um destino pior nas mãos de seus próprios
concidadãos.
Outra atitude adotada pelos pesquisadores foi a de negar totalmente a realidade do
sacrifício humano em sociedades antigas e modernas com o objetivo de corrigir as avaliações
147
consequentes da ação imperialista. Assim, o sacrifício humano passou a ser considerado um
instrumento de depreciação utilizado pelo conquistador para desqualificar o conquistado e o
imperialista tornou-se de certa forma o “civilizador” que libertava certas culturas de sua
própria “barbárie”. Entretanto, nos dias atuais, com o acúmulo de evidências arqueológicas,
não é possível negar a realidade do sacrifício humano e a sua prática sistemática em inúmeras
civilidades como um instrumento presente em diversos aspectos de suas atividades religiosas.
Nos dias atuais, rejeitar a prática do sacrifício humano nas mais diversas
temporalidades e espacialidades torna-se um reflexo da não admissão, por parte dos
pesquisadores, de que uma atividade que hoje possa nos parecer desprezível tenha sido
necessária para civilidades que foram, em certa medida, bastante semelhantes à nossa. Em
última análise, a prática sacrificial contribuía decisivamente para a manutenção da coesão e da
estabilidade social. A temática do sacrifício humano é hoje um campo ainda a ser explorado
pelos pesquisadores que o encaram de forma perturbadora por serem levados a considerar a si
mesmos ou seus iguais como o alimento sagrado de uma divindade em fúria.
Assim, analisamos neste trabalho a prática de sacrifícios humanos em Cartago,
procurando decompor os aspectos característicos do ritual. Observamos que a espacialidade
do Tophet cartaginês aponta para as práticas rituais ali realizadas. É possível que esta área
tenha sido típica de aglomerados urbanos de cidades-estados fenícias que alcançaram certo
desenvolvimento social. Este santuário foi construído durante um processo de “urbanização”,
sobretudo das regiões do Mediterrâneo Central destinadas ao estabelecimento de colônias
cartaginesas. Além disso, os templos construídos no santuário tinham a função de armazenar o
mobiliário do culto, os ex-votos e as imagens das divindades. Neste sentido, podemos dizer
que estes templos localizados nos diferentes Tophet traduziam a ideia de que esta área era a
própria “habitação divina”.
Em comparação, o ritual romano, por sua vez, era realizado no Fórum Boarium, um
espaço consagrado aos deuses da cidade onde, durante muito tempo, celebrava-se a cerimônia
do triunfo, em que se comemorava a vitória sobre o inimigo. Até o presente momento as
escavações arqueológicas pouco avançaram no sentido de descobrir as especificidades dos
rituais praticados, limitando-se apenas a catalogar e classificar os templos ali construídos.
Os levantamentos arqueológicos nos permitiram redescobrir as características do ritual
cartaginês. O sacrificante preparava uma fogueira ao ar livre, depositando a criança sobre uma
pira forrada com ramos e pedaços de palha. Esta criança era envolta com tecido fechado com
certos tipos de grampos de metal. Era provável que estivesse morta, uma vez que sua posição
na pira era constante e regular. A pira era acesa e antes do processo de cremação estar
148
concluído, por vezes, uma parte ou a totalidade de um pequeno animal era depositado ao lado
da criança. O ritual buscava garantir a combustão total dos indivíduos depositados sobre a
pira. O fogo do sacrifício representava a própria divindade que devorava a sua vítima,
simbolizando a própria consagração operada pelo ritual. Quando a calcinação era considerada
suficiente, apagava-se o fogo. A seguir, as urnas eram preenchidas com os ossos das crianças
que eram quebrados, se necessário. Além disso, algumas joias, colares de contas e amuletos
eram depositados sobre a superfície das cinzas da urna que era, depois, fechada com uma
camada de argila. A parte final do ritual destinava-se a impedir que os restos da vítima, que
haviam se tornado sagrados, entrassem em contato com o mundo profano. Por este motivo os
restos do sacrifício eram guardados e os resíduos da cremação eram depositados nas urnas,
locais especiais, protegidos provavelmente por interdições religiosas.
As informações acerca do ritual romano estão descritas na documentação textual, na
qual podemos perceber que dois casais de estrangeiros, gregos e gauleses, foram sepultados
vivos. A prática sacrificial por meio do sepultamento de vítimas ainda vivas não era
desconhecida pelos romanos, que a empregavam para punir as sacerdotisas da deusa Vesta
acusadas de descumprimento de suas obrigações rituais. O recurso à vítimas estrangeiras se
justifica pelo seu frágil vínculo social com a coletividade de cidadãos romanos, o que evitaria
o risco de vingança, eliminado os riscos de uma violência incontrolável.
Percebemos também que algumas condições sociais específicas favoreciam ao
desenvolvimento das práticas sacrificiais envolvendo seres humanos. Em Roma a prática de
sacrifício humano objetivava a restauração da Pax Deorum em um contexto de instabilidade
social provocado pela guerra contra Cartago. A multiplicidade de eventos sobrenaturais
presentes no imaginário do populus romanum evidenciava o descontentamento da divindade
cuja ira deveria ser aplacada através do ritual de sacrifício. Entretanto a objetividade do
sacrifício e sua função real, neste caso, eram bastante diversas. O ritual fora empregado pelos
romanos com o intuito de conter a histeria coletiva instalada na cidade em virtude das derrotas
para o exército de Aníbal no século III a. C., deslocando sobre um grupo de vítimas
relativamente indiferentes uma violência que ameaçava a sobrevivência de sua própria
civilidade. Aqui o mecanismo da vítima expiatória fora utilizado para reforçar a unidade da
cidade frente ao inimigo estrangeiro.
O ritual cartaginês, ao nosso entender, possuía uma objetividade simbólica diversa.
Tratava-se de um sacrifício contrato, estabelecido entre as famílias das crianças e a divindade,
no qual as primeiras ofereciam seus filhos natimortos em troca de crianças mais saudáveis e
resistentes aos problemas impostos pelas condições sociais e naturais daquele contexto. Era
149
natural que se procurasse trocar com os deuses, um dos primeiros grupos de seres com os
quais os homens se viram obrigados a contratar. Para estas famílias os deuses eram os
legítimos proprietários das coisas e dos bens deste mundo. Era com as divindades que era
mais imprescindível realizar as trocas e com as quais se corria mais risco não trocar. A
destruição operada no sacrifício tinha por objetivo ser uma doação necessariamente retribuída.
Desta forma, algumas obrigações estavam implicadas nestas relações entre os cartagineses e
Baal Hammom e Tanit: havia a obrigação de dar, de devolver o filho morto, uma vez que
recusar-se seria o equivale a declarar a guerra contra as divindades, rejeitando a aliança e a
comunhão com elas. Por outro lado, as divindades possuíam a obrigação de receber aquela
oferta, sob o risco de perderem seu prestígio junto aos ofertantes do sacrifício. Além disso, as
divindades tinham a obrigação de retribuir aquela dádiva, que trazia sobre elas um poder
religioso. Esta dádiva deveria ser retribuída de forma acrescida, revelando que a obrigação de
retribuir dignamente é imprescindível. Neste sistema de prestações totais, ninguém possuía a
prerrogativa de recusar um presente oferecido e era a própria dádiva que regressava ao
ofertante do sacrifício. A criança recém-morta produzia no seu local de origem, na sua família
de origem, um equivalente que a substituía.
Romanos e cartagineses buscavam manter a ordem e a estabilidade em suas
respectivas civilidades. Os primeiros dissipando os germens da violência que se espalhavam
com a guerra e os últimos, garantindo a fertilidade das famílias e a continuidade de sua
comunidade.
Em resumo, o exercício de experimentação comparada aqui realizado nos permitiu
observar que, no que tange ao sacrifício humano, romanos e cartagineses realizaram escolhas
rituais distintas, ainda que mantivessem práticas análogas. Quando uma sociedade elege um
mecanismo de pensamento, ela faz uma escolha, dentre muitas que poderia fazer. Assim, foi
possível comparar o incomparável, ou seja, metodologicamente foi possível comparar traços
semelhantes, os sacrifícios humanos, entre Roma e Cartago, que apresentam certas diferenças
entre si, no que tange à execução do ritual, mas com uma mesma objetividade simbólica, o
que os torna iguais, em certa medida, no desenvolvimento de suas atividades religiosas.
Acreditamos que a História Comparada deve fazer justiça à diversidade e ao
pluralismo cultural, contribuindo para evitar os riscos do etnocentrismo. Nesse sentido perde
validade o argumento muitas vezes utilizado pelo vencedor e pelo colonizador para
desqualificar o vencido. Assim, pudemos observar que romanos e cartagineses, vencedores e
vencidos, mantinham práticas religiosas bastante análogas. Aqui a comparação contribuiu
150
para suscitar uma reflexão de que existem alternativas ao discurso oficial daqueles que
durante muitos séculos escreveram a História.
Entretanto, ao final deste trabalho percebemos que muito há ainda a se percorrer nesta
trajetória em busca da construção da História de Cartago. A Arqueologia tem avançado muito
nos últimos anos, o que possibilitou o acesso a informações e objetos produzidos pelos
próprios cartagineses. Neste sentido, os pesquisadores tem a possibilidade de, em certa
medida, analisar criticamente os textos produzidos pelos historiadores da Antiguidade, como
Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso, Plutarco, Políbios, entre outros. Todos eles relacionados
a civilidades que mantiveram relações de hostilidade com os cartagineses ao longo dos
séculos de sua existência. Assim, ao passo em que avançamos no conhecimento acerca da
civilidade púnica, percebemos que muito ainda há que se descobrir, ou ao menos que se
interpretar, tornando o trabalho de pesquisa cada vez mais instigante, principalmente quando
se trata do tema sobre rituais de sacrifícios infantis na região de Cartago.
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163
ANEXOS
Análise do Conteúdo
Diodoro da Sicília – Bibliotheca Historica.
Documentação Textual
Nome da Obra Bibliotheca Historica
Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público
Emissor Diodoro da Sicília
Receptores Os prováveis receptores são os cidadãos gregos da província da
Sicília, região da Magna Grécia.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Grego Koiné
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade
Referências às práticas de sacrifício humano em Cartago podem
ser encontradas ainda na obra De Superstitione de Plutarco e nas
Instituições Romanas de Dionisio de Halicarnasso.
Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:
sacrifício, Cronos, deus e superstição.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Sacrifícios Humanos
"Eles [os cartagineses] também
alegaram que Cronos tinha se
voltado contra eles na medida em
que, em tempos antigos estavam
acostumados a sacrificar a este deus
o mais nobre dos seus filhos" -
Biblioteca Histórica 22, 14.
Tipologia das vítimas sacrificiais e a
descrição da divindade para a qual eram
oferecidas.
Compra de Crianças
"mas, mais recentemente,
secretamente compravam e nutriam
as crianças, que enviavam para o
sacrifício, e quando uma
investigação foi feita, alguns dos
que haviam sacrificado foram
descobertos e dissimularam." -
Biblioteca Histórica 22, 14.
Substituição da vítima sacrificial.
164
Presságios
"Quando eles pensaram nessas
coisas e viram seu inimigo
[Agatócles] acampado diante de
seus muros, eles estavam cheios de
temor supersticioso, pois eles
acreditavam que tinham
negligenciado a honra dos deuses
que tinha sido estabelecida por seus
antepassados." - Biblioteca Histórica
22, 14.
Contexto no qual a crise provocada pela
guerra contra os gregos passa a ser
encarada como sinal da cólera divina.
Ritual
"em seu zelo para reparar a sua
omissão, eles selecionaram 200 dos
mais nobres filhos e sacrificou-os
publicamente, e outras pessoas
supostamente sacrificaram
voluntariamente, em número não
inferior a 300." Biblioteca Histórica
22, 14.
Seleção e número de vítimas
sacrificadas.
Ritual
"Havia em sua cidade uma imagem
de bronze de Cronos, estendendo
suas mãos, palmas para cima e
inclinada em direção ao chão, de
modo que cada uma das crianças,
quando colocado nela rolava e caia
em uma espécie de cova aberta cheia
de fogo." - Biblioteca Histórica 22,
14.
Utilização dos objetos e descrição dos
materiais utilizados no ritual.
Roma e Cartago
“Fenícios e romanos lutaram uma
batalha naval; depois, em
consideração a magnitude da guerra
que estava diante deles, eles
enviaram emissários ao cônsul para
discutir os termos de amizade.
Houve muita discussão, e os dois
lados se mantiveram envolvidos em
um debate acirrado: os fenícios
ficaram maravilhados como os
romanos poderiam se arriscar para
atravessar até a Sicília, na medida
em que os cartagineses tinham o
controle dos mares [...]. Os romanos,
por sua vez, aconselharam aos
cartagineses para não ensiná-los a se
envolver com assuntos do mar,
porque eles afirmavam que eram
alunos que sempre ultrapassavam os
seus mestres.” - Biblioteca
Histórica, 23 – 2
O debate diplomático por ocasião da
primeira guerra púnica.
165
Análise do Conteúdo
Plutarco - De Superstitione
Documentação Textual
Nome da Obra De Superstitione
Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público
Emissor Plutarco
Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Latim Clássico
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade
Referências às práticas de sacrifício humano em Cartago podem
ser encontradas ainda na obra Biblioteca Histórica de Diodoro da
Sicília e na obra Antiguidades Romanas, de Dionísio de
Halicarnasso.
Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:
poder divino, deus, sacrifícios, Cronos.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Sacrifícios
"Mais uma vez, não teria sido muito
melhor para os cartagineses ter
tomado Crítias ou Diagoras para
elaborar seu código de legislação no
início, e assim não ter acreditado em
qualquer poder divino ou deus, ao
invés de oferecer sacrifícios a
Cronos?" - De Superstitione, 13
Atribuição das práticas sacrificiais a
ausência de um código de leis em
Cartago.
Vítimas Expiatórias
"Não, mas foi com pleno
conhecimento e compreensão que
eles mesmos ofereceram os seus
próprios filhos;" - De Superstitione,
13
A descrição das vítimas utilizadas no
ritual
Ritual
"e aqueles que não tiveram filhos
compravam os pequeninos de
pessoas pobres e cortavam suas
gargantas como se fossem cordeiros
ou pequenas aves, enquanto a mãe
permanecia junto, sem uma lágrima
ou lamúria;" - De Superstitione, 13
Descrição do Ritual de Sacrifício
Humano.
166
Sons
"e toda a área ao redor da estátua foi
preenchida com um ruído alto de
flautas e tambores e os gritos de
lamentação não devem ter chegado
aos ouvidos do povo."- De
Superstitione, 13
O uso de instrumentos musicais durante
o ritual.
Roma e Cartago Ausente Ausente
167
Análise do Conteúdo
Tito Lívio – Ab Urbe Condita Libri
Documentação Textual
Nome da Obra Ab Urbe Condita Libri
Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público
Emissor Tito Lívio
Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Latim Clássico
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade Referências às práticas de sacrifício humano em Roma podem ser
encontradas ainda nas obras de Plutarco e Plínio, o velho.
Especificidades
O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:
Vestais, sacrifício, Livros Sibilinos, preces, deuses, oráculo,
profano.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Sacrifício Humano
"Destas [Vestais], uma havia sido
enterrada viva, como é o costume,
próximo ao Portão Colline e, a outra
havia se matado." Tito Lívio, 22 - 57
A punição para a transgressão das
vestais.
Consultas Oraculares
"Os Decênviros foram ordenados a
consultar os Livros, e Quintus
Fabius Pictor foi despachado para
Delfos para consultar o oráculo
sobre quais as preces e súplicas
poderiam oferecer aos deuses para
pôr fim a todas as suas
calamidades." - Tito Lívio, 22 - 57
Ações praticadas para se fazer conhecer
a vontade divina e as medidas para
aplacar sua ira.
Sacrifício Humano
"Enquanto isso, seguindo a
orientação dos Livros do Destino,
alguns sacrifícios incomuns foram
feitos”. Tito Lívio, 22- 57
Práticas adotadas em acordo com a
consulta oracular.
Vítimas Expiatórias
"Um homem e uma mulher gauleses
e um homem e uma mulher gregos
foram enterrados vivos no mercado
de gado" - Tito Lívio, 22 – 57
Descrição das vítimas imoladas no
ritual de sacrifício
168
Área Sacrificial
"em um lugar com paredes de pedra
onde, mesmo antes deste período já
havia sido profanado com vítimas
humanas, em um sacrifício
totalmente alheio ao espírito
romano." Tito Lívio, 22- 57
Descrição da área destinada à
celebração do ritual de sacrifício
humano.
Roma e Cartago
"Neste prefácio à uma parte da
minha história eu posso afirmar que
muitos historiadores declararam no
início de todas as suas obras que a
guerra que vou descrever foi a mais
memorável de todas as guerras já
travadas - ou seja, a guerra que, sob
a liderança de Aníbal, os
cartagineses travaram contra o povo
romano." - Tito Lívio, 21 – 1
Considerações de Tito Livio acerca da
segunda guerra púnica.
Sacrifício Humano em Cartago Ausente Ausente
169
Análise do Conteúdo
Plutarco – Marcellus
Documentação Textual
Nome da Obra Marcellus
Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público
Emissor Plutarco
Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Latim Clássico
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade Referências às práticas de sacrifício humano em Roma podem ser
encontradas ainda nas obras de Tito Lívio e Plínio, o velho.
Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:
oráculos, Livros Sibilinos, Sacrifício, cerimônias.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Oráculos
"No momento em que esta guerra
estourou [Segunda Guerra Púnica]
sobre eles, foram obrigados a
obedecer a certos comandos
oraculares dos Livros Sibilinos" -
Vida de Marcellus, 3
Orientações prescritas pelos Livros
Sibilinos.
Sacrifícios Humanos
"Para enterrar vivos dois gregos, um
homem e uma mulher, e também
dois gauleses, no lugar chamado
Fórum Boarium, ou mercado do
gado." - Vida de Marcellus, 3
A prática sacrificial, a descrição das
vítimas expiatórias e o local da
execução dos rituais.
Rituais
"E, em memória destas vítimas,
ainda hoje, no mês de Novembro,
realizam cerimônias misteriosas e
secretas" - Vida de Marcellus, 3
Celebração em memória das vítimas
expiatórias.
Roma e Cartago
“E quando o desastre de Canas veio,
e muitos milhares de romanos
tinham sido mortos na batalha, e só
uns poucos tinham-se poupado
fugindo para Canusium, e esperava-
se que Aníbal marcharia uma vez
contra a Roma, agora que ele tinha
destruído o melhor de suas forças
[...]” - Vida de Marcellus, 9
O resultado da batalha de Canas,
durante a segunda guerra púnica.
170
Análise do Conteúdo
Plutarco – Quaestiones Romanae
Documentação Textual
Nome da Obra Quaestiones Romanae
Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público
Emissor Plutarco
Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Latim Clássico
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade
Referências às práticas de sacrifício humano em Roma podem ser
encontradas ainda nas obras de Tito Lívio, Plínio, o velho e
Dionísio de Halicarnasso.
Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:
Sacrifício, deuses.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Sacrifício Humano
"Quando os romanos souberam que
os Bletonesii, uma tribo bárbara,
tinha sacrificado um homem aos
deuses, por que eles procuraram os
chefes tribais com a intenção de
puni-los?" - Questões Romanas, 83
Os Romanos buscam punir os
Bletonesii por conta de suas práticas
sacrificiais.
Proibição do Sacrifício Humano
"Mas quando ficou claro que eles [os
Bletonesii] tinham feito, portanto, de
acordo com um correto costume, por
que os romanos os deixaram em
liberdade, mas proibiram que a
prática voltasse a se repetir no
futuro?" - Questões Romanas, 83
Os romanos proíbem a prática de
sacrifícios humanos entre os Bletonesii.
Sacrifício Humano
"No entanto, eles mesmos, [os
romanos] não muitos anos antes,
haviam enterrados vivos dois
homens e duas mulheres, dois deles
gregos e dois gauleses, no lugar
chamado Fórum Boarium." -
Questões Romanas, 83
Os romanos observaram a prática de
sacrifícios humanos.
Roma e Cartago Ausente Ausente
171
Análise do Conteúdo
Plínio, o velho – Naturalis Historia
Documentação Textual
Nome da Obra Naturalis Historia
Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público
Emissor Plínio, o velho
Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi escrito originalmente em Latim Clássico
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade
A temática acerca das práticas de Sacrifícios humanos em Roma
também foi abordada por Tito Lívio, Plutarco e Dionísio de
Halicarnasso.
Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:
Magia, Sacrifícios, Ritos.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Magia
"É claro que há traços ainda
existentes da introdução da magia na
Itália, como em nossas leis das Doze
Tábuas, além de outras provas
convincentes que eu já observei em
um livro anterior." - Plínio, o velho
30, 3
Indícios que comprovam a presença das
práticas de Magia em Roma
Sacrifícios Humanos
"No último ano, no ano da cidade,
sendo cônsules Cneius Cornelius
Lentulus e P. Licínio Crasso, foi
aprovado no Senado, um decreto
proibindo sacrifícios" - Plínio, o
velho 30, 3
A proibição das práticas de sacrifícios
humanos em Roma
Ritos
"A partir deste período a celebração
dos ritos horríveis deixou de ser
praticada em público
completamente, por algum tempo." -
Plínio, o velho 30, 3
Considerações de Plínio acerca dos ritos
relacionados à prática de sacrifícios
humanos
Roma e Cartago Ausente Ausente
172
Análise do Conteúdo
Políbios – Historia
Documentação Textual
Nome da Obra Historia
Natureza do Discurso Trata-se de discurso jurídico e público
Emissor Políbios
Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos gregos.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi escrito originalmente em Grego Koiné
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade A temática acerca da constituição de Cartago também pode ser
observada na obra Política, do filósofo estagirita Aristóteles.
Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como jurídico:
arauto, escrivão, estado, constituição, funções públicas.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Tratado - 509 a. C.
“Quem vier comerciar não deverá
concluir negócio algum sem a
presença de uma arauto ou escrivão,
e a efetivação de qualquer negócio
feito na presença destes será
garantida ao vendedor pelo estado,
se a transação ocorrer na Líbia ou
em Sardó.” Políbios III, 25.
As condições de livre comércio entre
romanos e cartagineses
Tratado - 309 a. C.
“Nenhum Romano poderá comerciar
ou fundar uma cidade em Sardó ou
na Líbia, nem permanecer em uma
localidade sardônia ou líbia por um
período mais longo que o
estritamente necessário para
reabastecer ou reparar sua nau.”
Políbios III, 25
Restrições ao comércio entre romanos e
cartagineses
173
Tratado - 279 a. C.
“Para possibilitar a qualquer das
duas partes a prestação de
assistência à outra no lugar onde esta
se encontre em guerra, seja qual for
a parte que peça ajuda, os
cartagineses fornecerão as naus para
o transporte das tropas, tanto na ida
quanto na volta, mas cada parte
deverá pagar o soldo de seus
homens” (Políbios III, 25).
Aliança Militar por conta da invasão do
epirota Pirro à Península Itálica.
Roma e Cartago
"[...] naquela época os dois povos
ainda estavam moralmente
impolutos, eram moderadamente
afortunados e suas forças
equilibravam-se, sendo maiores,
portanto as possibilidades de fazer
uma apreciação melhor das
qualidades peculiares a cada um
deles mediante a comparação de sua
conduta nessa guerra do que em
qualquer das outras." Políbios I - 13
Comparação entre Roma e Cartago
quanto às relações de força no início
das guerras púnicas.
Constituição Cartaginesa
"Entretanto na época em que os
cartagineses entraram na Guerra
Anibálica sua constituição já havia
degenerado e a de Roma lhe era
superior" Políbios VI – 51
Comparação da Constituição
cartaginesa em relação à romana.
Deliberações
"Consequentemente o povo em
Cartago já havia obtido a
preponderância nas deliberações,
enquanto em Roma ela ainda era do
Senado." Políbios VI – 51
A preponderância da coletividade de
cidadãos cartagineses em relação aos
assuntos públicos.
Riqueza
"Em Cartago, nada que proporcione
lucro é considerado ignóbil; em
Roma, nada é considerado mais
ignóbil do que deixar-se subornar,
ou procurar o ganho por meios
impróprios [...]" Políbios VI- 56
Comparação entre romanos e
cartagineses quanto a sua relação com a
riqueza.
Eleições
"[...] em Cartago, os candidatos a
funções públicas recorrem
abertamente ao suborno, enquanto
em Roma essa prática é punida com
pena de morte." - Plíbios VI – 56
O uso da riqueza para a compra de
votos durante o processo eleitoral.
Religião
"Parece-me, porém, que a
superioridade maior do povo romano
está em suas concepções religiosas."
Políbios VI – 56
Perspectivas religiosas dos romanos em
comparação com as demais cidades-
estados.
Sacrifício Humano em Cartago Ausente Ausente
174
Análise do Conteúdo
Aristóteles – Política (Πολιτικά).
Documentação Textual
Nome da Obra Política (Πολιτικά).
Natureza do Discurso Trata-se de um discurso jurídico
Emissor Aristóteles
Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos gregos.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi escrito originalmente em grego Koiné
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade A temática acerca da constituição de Cartago também pode ser
encontrada na obra História, do historiador grego Políbios.
Especificidades
O uso de termos específicos caracteriza o discurso como jurídico:
instituições, governo, magistratura, reis, senado, cidadãos e
Oligarquia.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Estabilidade Interna
"Os Cartagineses em particular
possuem instituições excelentes,e o
que prova o grande mérito de sua
constituição é que, a pesar da grande
parte de poder que conceda ao povo,
nunca houve em Cartago mudanças
de governo, e, o que é mais
estranho, jamais conheceram nem as
revoltas, nem a tirania." - Política II
– VIII
A relação entre as instituições dos
cartagineses e a sua estabilidade
política.
Magistratura
"[...] a magistratura cartaginesa é
preferível, uma vez que seus
membros, em lugar de sair das
classes obscuras, são escolhidos
entre os homens mais virtuosos."
Política II – VIII
O grupo social que compõe a
magistratura cartaginesa.
Reis
"[...] mas Cartago é mais prudente e
não toma seus reis de uma única
família, tampouco os tomas a todas
indistintamente, e remete a eleição e
não a idade e que seja o mérito o
que ocupe o poder." Política II –
VIII
Os critérios para a escolha dos reis em
Cartago
175
Participação política
"O reinado e o senado, quando há
consenso, podem decidir certos
negócios e subtrair outros ao
conhecimento do povo, que só tem
direito a decidir em caso de
desentendimento" - Política II - VIII
Ocasiões em que a coletividade de
cidadãos é levada a participar das
decisões públicas.
Cidadãos
"Mas quando este caso chega,
podem não só fazer com que os
magistrados exponham suas razões,
mas também falar como soberano, e
cada cidadão pode tomar a palavra
sobre o objeto em discussão;
prerrogativa que não há em outras
constituições." Política II – VIII
Ações a que tinham o direito os
cidadãos por ocasião de sua
participação nas decisões políticas.
Pensamento Político
"Creem que as funções públicas
devem confiar-se não só aos homens
distintos, mas também a riqueza, e
que um cidadão pobre não pode
abandonar seus negócios e gerir com
propriedade os do estado." Política
II – VIII
As ideias dos cartagineses acerca das
necessidades ao ingresso da
magistratura.
Riqueza
"Cartago se salva dos perigos do seu
governo oligárquico enriquecendo
continuamente uma parte do povo,
que envia às colônias." Política II –
VIII
O enriquecimento como elemento de
manutenção ordem social.
Roma e Cartago Ausente Ausente
176
Análise do Conteúdo
Virgílio – Aeneis
Documentação Textual
Nome da Obra Aeneis
Natureza do Discurso Discurso Mítico de caráter público
Emissor Virgílio
Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi escrito originalmente em Latim Clássico
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade A temática acerca da fundação de Cartago também pode ser
visualizada em fragmentos da obra do historiador grego Timaios.
Especificidades Palavras que caracterizam o discurso como mítico: Dido, Tiro,
Siqueu, presságio, Pigmalião, Tirano, Naus, Cartago e Birsa.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Dido
"O império atem-se a Dido, que por
fugir do irmão, fugiu de Tiro" -
Eneida I - v. 358-359
A administração do império cartaginês
e a origem da rainha Dido.
Casamento
"Siqueu, fenício em lavras opulento,
foi da mísera esposo, e muito
amado: com bom presságio o pai lha
dera intacta." Eneida I - v. 362-364
Casamento de Dido e Siqueu
Assassinato
"Pigmalião façanhoso entre os
malvados, bárbaro irmão, do estado
se empossara. Interveio o furor: de
fome de ouro. Cego, e à paixão
fraterna sem respeito, pérfido, ímpio,
a Siqueu nas aras mata." Eneida I -
v. 365-369
Razão da fuga de Dido de Tiro
177
Fuga de Tiro
"Da casa o crime e trama desenleia;
a Ara homicida os retalhados peitos
Desnuda, e à pátria intima-lhe que
fuja: Prata imensa e ouro velho,
soterrados, Para o exílio descobre.
Ela, inquieta, Apressa a fuga, e atrai
os descontentes; Que ou rancor ao
Tirano ou medo instiga; Acaso
prestes naus, manda assaltá-las;
Dos Tesouros do avaro carregadas
Empegam-se: a mulher conduz a
empresa!” " - Eneida I - v. 375-384
A adesão de dissidentes à fuga e a
liderança de Dido.
Fundação de Cartago
"Chegam d'Alta Cartago onde o
castelo verás medrando agora e
ingentes muros: mercam solo (do
feito o alcunham Birsa) Quanto um
coiro taurino abranja em tiras."
Eneida I - v. 385-387
As especificidades do rito de fundação
da cidade-estado.
Roma e Cartago Ausente Ausente
178
Análise do Conteúdo
Dionisio de Halicarnasso – Antiquitates Romanae
Documentação Textual
Nome da Obra Antiquitates Romanae
Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público
Emissor Dionisio de Alicarnasso
Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.
Análise do Texto
Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Grego Koiné
Comunicação Texto apresentado em espaço público
Intertextualidade Referências às práticas de sacrifício humano em Cartago podem
ser encontradas ainda nas obras de Plutarco e Diodoro da Sicília.
Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:
Sacrifícios, Saturno, Hércules, altar, ritos, efígies, sagrado.
Categorias Temáticas
Tema Pertinência Objetividade
Sacrifícios Humanos
"Diz-se que os antigos [itálicos]
também sacrificavam vítimas
humanas a Saturno, como era feito
em Cartago, desde a sua fundação
até os dias de hoje, como também
entre os gauleses e em outras
cidades orientais." Dionisio I, 38
As práticas de sacrifícios humanos
dedicados a Saturno em Cartago, na
Itália, na Gália e no Oriente.
Rituais
"e que Hércules, com o objetivo de
abolir o costume deste sacrifício,
erigiu um altar no alto do monte de
Saturno e realizou os ritos iniciais
com vítimas puras, queimando-as
em fogo puro." - Dionisio I, 38
Abolição da prática ritual de sacrifício
humano.
Substituição Ritual
"E para que as pessoas não se
sentissem constrangidas por ter
negligenciado seus sacrifícios
tradicionais, [Hércules] ensinava-as
a apaziguar a ira do deus [Saturno]
fazendo efígies, representando os
homens que tinham por costume atar
pés e mãos e jogá-los na correnteza
do rio Tibre, vestindo-as da mesma
maneira, jogando-as no rio, no lugar
dos homens." - Dionisio I, 38
Alterações e substituições
implementadas no ritual de sacrifício a
Saturno.
179
Período do Ritual
Os Romanos continuaram a fazer, a
cada ano, um pouco depois do
equinócio da Primavera, no mês de
maio, no que eles chamam de idos (o
dia da metade do mês); - Dionisio I,
38
A prática ritual realizada regularmente
na Primavera.
Participantes do ritual
"neste dia, depois de oferecer os
sacrifícios preliminares de acordo
com as leis, os Pontífices, como o
mais importante dos sacerdotes é
chamado, e com eles a virgens que
guardam o fogo perpétuo, o
Pretores, e os outros cidadãos que
podem estar presentes nos ritos" -
Dionisio I, 38
Descrição dos integrantes e celebrantes
do rito realizado em homenagem a
Saturno entre os romanos.
Ritual
"Jogam da ponte sagrada na
correnteza do rio Tibre, trinta efígies
feitas à semelhança dos homens, que
eles [os romanos] chamam Argei”. -
Dionisio I, 38
A execução do Ritual.
Roma e Cartago Ausente Ausente