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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História Comparada Fabrício Nascimento de Moura Práticas de sacrifícios humanos em Cartago: exercício de experimentação comparada com a civilidade romana no século III a. C. Rio de Janeiro 2013

Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

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Page 1: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Instituto de História

Programa de Pós-Graduação em História Comparada

Fabrício Nascimento de Moura

Práticas de sacrifícios humanos em Cartago: exercício de experimentação comparada com

a civilidade romana no século III a. C.

Rio de Janeiro

2013

Page 2: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

Fabrício Nascimento de Moura

Práticas de sacrifícios humanos em Cartago: exercício de experimentação comparada com

a civilidade romana no século III a. C.

Dissertação apresentada à Coordenação do Programa

de Pós-Graduação em História Comparada da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, visando a

obtenção do título de Mestre em História

Comparada. Linha de Pesquisa: poder e discurso.

Professora- Orientadora: Profa. Dra. Maria Regina Cândido

Rio de Janeiro

2013

Page 3: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

M929p Moura, Fabrício Nascimento de

Práticas de sacrifícios humanos em Cartago: exercício de

experimentação comparada com a civilidade romana no século III a. C. /

Fabrício Nascimento de Moura – 2013.

179 f. ; il.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto

de História, PPGHC, Rio de Janeiro, 2013.

Orientadora: Maria Regina Cândido

1. Cartago 2. Roma – História a.C. 3. Sacrifícios Humanos 4. Comparação

I. Cândido, Maria Regina (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

III. Título

CDD 937.01

Page 4: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

Fabrício Nascimento de Moura

Práticas de sacrifícios humanos em Cartago: exercício de experimentação comparada com

a civilidade romana no século III a. C.

Dissertação apresentada à Coordenação do Programa

de Pós-Graduação em História Comparada da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, visando a

obtenção do título de Mestre em História

Comparada. Linha de Pesquisa: poder e discurso.

Aprovado em 21 de Outubro de 2013.

Professora- Orientadora: Profa. Dra. Maria Regina Cândido – PPGHC/UFRJ

Profa. Dra. Gracilda Alves – PPGHC/UFRJ

Prof. Dr. Paulo Roberto Gomes Seda - UERJ

Rio de Janeiro

2013

Page 5: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

“Quem é como o Senhor nosso Deus, que habita nas alturas;

Que se curva, para ver o que está nos céus e na terra;

Que do pó levanta o pequeno, e do monturo ergue o necessitado,

Para fazê-lo assentar com os príncipes, sim, com os príncipes do seu povo;”

Salmos 113, 5-8.

Page 6: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar a Deus que me concedeu a oportunidade de caminhar

mais este passo em direção ao sonho da carreira acadêmica. Quero deixar registrado ainda um

agradecimento à minha família, em especial a minha esposa Ana Cleia pela paciência, pelo

incentivo e pela dedicação à minha formação. Agradeço também por seu amor incondicional.

Agradeço à minha mãe pelo encorajamento, pela força e pelo apoio. Dedico aqui um especial

agradecimento para a minha orientadora, a professora Maria Regina Cândido pelo incentivo,

apoio, pelas cobranças que me fizeram crescer e principalmente pela paciência que tem

dispensado a mim em todos esses anos.

Não posso deixar de citar meus agradecimentos aos meus queridos orientandos que

sempre me incentivaram a continuar o meu trabalho e que sempre foram para mim uma

grande fonte de inspiração. Agradeço enfim a todos que contribuíram de forma direta ou

indireta para a realização deste sonho, que foi possível graças ao apoio de pessoas que

dedicaram parte do seu tempo a me incentivar e encorajar. Muito obrigado a todos!

Page 7: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

RESUMO

MOURA, Fabrício Nascimento de. Práticas de Sacrifícios Humanos em Cartago: exercício

de experimentação comparada com a civilidade romana no século III a. C. Rio de Janeiro,

2013. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em

História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

O estudo da civilidade cartaginesa esteve sempre ligado ao da civilidade romana, sobretudo

em virtude das Guerras Púnicas. A partir deste contexto da produção historiográfica púnica

nos questionamos sobre a possibilidade de escrever uma História de Cartago a partir das

práticas de sacrifícios humanos. Práticas estas que também estiveram presentes no arcabouço

religioso da civilidade romana. Desta forma propomos um exercício de experimentação

comparada dos ritos de sangue entre romanos e cartagineses a partir do uso da documentação

textual e dos relatórios das escavações arqueológicas. O desenvolvimento desta pesquisa põe

em perspectiva o diálogo entre a História, a Antropologia Histórica e a Arqueologia.

Palavras-Chave: Cartago; Roma; Sacrifícios Humanos; Comparação.

Page 8: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

ABSTRACT

MOURA, Fabrício Nascimento de. Práticas de Sacrifícios Humanos em Cartago: exercício

de experimentação comparada com a civilidade romana no século III a. C. Rio de Janeiro,

2013. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em

História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

The study of the Carthaginian civilization has always been linked to the Roman civilization,

mainly because of the Punic Wars. From this context of historical production Punic we

inquired about the possibility of writing a history of Carthage from the practice of human

sacrifice. These practices also attended the religious framework of Roman civilization. Thus

we propose an exercise trial compared the rites of blood between the Romans and

Carthaginians from the use of textual documentation and reporting of archaeological

excavations. The development of this research puts into perspective the dialogue between

History, Historical Anthropology and Archaeology.

Keywords: Carthage, Rome; Human Sacrifices; comparison.

Page 9: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Apud Citado por

CIS Corpus Inscriptionum Semiticarum

Et. Alii E outros.

Et seq. que se segue

HTTP HiperTextTransferProtocol

Ibid. na mesma obra

Id. o mesmo autor

In Em.

KAI Kanaanäische und Aramäische Inschriften

n. p. Não paginado

Op. Cit. Da Obra Citada.

p. Página.

PPGHC Programa de Pós-Graduação em História Comparada

RES Repertoire d’épigraphie Semitique

s. d. Sem data

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNESCO United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization

www World Wide Web

Page 10: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

LISTA DE QUADROS COMPARATIVOS E GRÁFICOS

Quadro Comparativo 1: Análise comparada dos suportes de informação acerca da prática de

sacrifícios infantis em Cartago ................................................................................................ 86

Gráfico 1: Gráfico com a distribuição etária da amostra de esqueletos humanos do Tophet

cartaginês ................................................................................................................................ 95

Quadro Comparativo 2: Análise comparada da teoria do Sacrifício .................................... 102

Quadro Comparativo 3: Análise comparada da religião romana e cartaginesa .................... 112

Quadro Comparativo 4: Análise comparada do sacrifício humano em Cartago e em

Roma...................................................................................................................................... 124

Page 11: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Ilustração de Salammbô de Gustave Flaubert ......................................................... 26

Figura 2: A fundação de Cartago ............................................................................................ 28

Figura 3: Sítio arqueológico do Tophet cartaginês ................................................................. 78

Figura 4: Estela com desenho de sacerdote cartaginês ........................................................... 80

Figura 5: Ruínas de Cartago com símbolo da deusa Tanit ..................................................... 83

Figura 6: Santuário da deusa Tanit ......................................................................................... 85

Figura 7: Urna contendo ossos calcinados de crianças ........................................................... 94

Figura 8: Táticas de Aníbal na batalha de Canas .................................................................. 126

Figura 9: Táticas de Aníbal na batalha de Canas .................................................................. 126

Figura 10: Estela votiva de Cartago ...................................................................................... 134

Figura 11: Ânfora do Tanit I ................................................................................................. 138

Figura 12: Ânfora do Tanit II ................................................................................................ 139

Figura 13: Ânfora do Tanit III .............................................................................................. 139

Page 12: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

LISTA DE MAPAS

Mapa 1: Rotas comerciais fenícias no Mediterrâneo .............................................................. 38

Mapa 2: Regiões sob o domínio cartaginês até as guerras púnicas ........................................ 41

Mapa 3: Mapa da Região da Sicília no contexto da primeira guerra púnica .......................... 47

Mapa 4: Alterações territoriais de Cartago ao longo das guerras púnicas .............................. 48

Mapa 5: Península Ibérica durante a ocupação cartaginesa .................................................... 53

Mapa 6: Região da Campânia ................................................................................................. 55

Mapa 7: Mediterrâneo no contexto da terceira guerra púnica ................................................. 58

Mapa 8: Visão aérea do Golfo de Tunis ................................................................................. 76

Mapa 9: Localização das cidades gregas e cartaginesas na Magna Grécia ............................. 88

Page 13: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

SUMÁRIO

Introdução: ............................................................................................................................ 14

1. Os Regimes de Historicidade: as representações de Cartago na Historiografia Antiga

e na Historiografia francesa e anglo-americana Contemporâneas ............................ 20

1.1. Regimes de Historicidade e a Construção da Memória de Cartago: ................................ 20

1.2. Cartago entre os historiadores antigos e contemporâneos: .............................................. 27

2. Práticas sacrificiais: uma análise comparada da teoria do Sacrifício e suas aplicações

ao ritual cartaginês .......................................................................................................... 62

2.1. Do diálogo entre História e Antropologia: ....................................................................... 62

2.2. Do conceito de Ritual: ...................................................................................................... 67

2.3. O debate historiográfico acerca do Tophet Cartaginês: ................................................... 72

2.4. A teoria sacrificial em René Girard e Marcel Mauss & Henri Hubert: uma análise

comparada ......................................................................................................................... 85

3. O ritual de sacrifício humano em Cartago: análise comparada com o ritual romano e

significado....................................................................................................................... 107

3.1. História e Arqueologia: .................................................................................................. 107

3.2. Religião cartaginesa e romana: uma comparação .......................................................... 111

3.3. Sacrifício humano em Cartago: uma análise comparada com o ritual romano

.......................................................................................................................................... 123

Conclusão:............................................................................................................................. 145

Referências: .......................................................................................................................... 151

Anexos: Análise do Conteúdo .............................................................................................. 163

Page 14: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

14

INTRODUÇÃO

O tema sobre o sacrifício humano na Antiguidade, especificamente em Cartago, torna-

se um desafio instigante ao suscitar o debate sobre esta sociedade no século III a. C., período

em que fazia uso de seres humano na celebração de rituais em honra aos deuses. Nas mais

variadas sociedades onde eram empregados, os sacrifícios humanos parecem ter

especificidades simbólicas distintas, mas objetivando geralmente a alcançar manutenção da

ordem e da coesão social.

Como o nosso objeto de pesquisa está relacionado à região de Cartago, informamos

que os dados sobre o tema serão provenientes do seguinte Corpus Documental, a saber: as

narrativas de Diodoro da Sicília (Biblioteca Histórica, XXII, 14) e Plutarco (De Superstitione,

13), além das descrições arqueológicas presentes no Relatório das Escavações do Tophet de

Salammbô em Cartago, publicado nos anais da revista Antiquités africaines em 1995 e no

Relatório de Estudos Interdisciplinares das Urnas do Tophet Cartaginês e seu Conteúdo,

publicado em 2003 pelo Departamento de Arqueologia da Universidade de Ghent, na Bélgica.

Recorreremos ainda à obra História, do historiador grego Políbios (História – I, III, VI), à

obra Política (Política II – VII), do filósofo estagirita Aristóteles e à narrativa mítica acerca da

fundação da cidade de Cartago através das descrições elaboradas por Virgílio, na obra Eneida

(Eneida I – V. 369-388). Para o caso romano, selecionamos como documento as narrativas de

Tito Lívio (História de Roma, XXII – 57.4), Dionisios de Alicarnassos (Antiguidades

Romanas I, 19, 38), Plínio, o velho (História Natural, XXX – 3.12) e Plutarco (Questões

Romanas, 83 e Vida de Marcellus, 3.4).

As informações arqueológicas nos permitem redescobrir as atividades ritualizadas que

eram realizadas durante a cerimônia, incluindo a construção de fogueiras individuais, a

imobilização e instalação das crianças na pira sacrificial, a imolação das vítimas, a extinção

das brasas ou o resfriamento das cinzas. É possível, portanto, estabelecer uma reconstrução

parcial dos procedimentos seguidos durante esta celebração através dos dados provenientes da

Arqueologia. A documentação textual revela a prática de sacrifícios humanos em Roma e em

Cartago, deixando transparecer detalhes dos rituais, a conjuntura de sua celebração e a

tipologia das vítimas expiatórias empregadas.

Em razão das Guerras Púnicas, a História de Cartago sempre esteve atrelada à de

Roma. Em função disso, parte das principais temáticas abordadas envolviam sempre as

questões políticas e militares. A historiografia em geral negligenciou diversos aspectos da

Page 15: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

15

cultura e da sociedade cartaginesa. Diante deste quadro atual da historiografia contemporânea

sobre a civilidade1 cartaginesa, nos questionamos se é possível construir uma História de

Cartago, evitando o lugar comum em que ela foi inserida ao longo do tempo, a saber: um rival

digno a fazer da Cidade Eterna a senhora do mundo mediterrâneo.

Desta forma nosso olhar se deslocará para a sociedade cartaginesa a partir de sua

religiosidade, sobretudo aquela que se refere à prática de sacrifícios de crianças. Observamos

que a maioria dos relatos historiográficos que atravessaram o século XX até os dias atuais

envolvem a discussão acerca da existência ou não de práticas de sacrifícios humanos em

Cartago. Contudo esta mesma historiografia não apresenta análises sistemáticas acerca das

especificidades destes rituais. O estudo da documentação textual ao lado das informações

arqueológicas nos permite levantar um conjunto de questionamentos, a saber: a comparação

entre a documentação textual e as evidências arqueológicas nos permite falar de práticas

sacrificais? De que maneira a dimensão espacial da necrópole cartaginesa nos ajuda a

compreender as especificidades dos ritos realizados? Quais condições sociais favoreciam ao

desenvolvimento de tais atividades? Quais as especificidades do uso de crianças como vítimas

expiatórias? Qual o significado dos elementos rituais presentes nestas práticas?

As relações beligerantes entre Cartago e Roma contribuíram para a criação de uma

identidade cartaginesa quase diametralmente oposta à dos romanos. O historiador grego

radicado em Roma Políbios consagrou esta oposição ao elaborar sua narrativa comparada

entre as citadas cidades-estados. Nesta análise comparada, Políbios dedica-se a colocar em

perspectiva a constituição e os costumes dos romanos e dos cartagineses. De acordo com o

antigo historiador, durante a segunda guerra púnica a constituição romana era bastante

superior à de Cartago:

“De fato, na mesma proporção em que o poderio e a prosperidade de

Cartago eram mais antigos que os de Roma, Cartago já havia começado a declinar,

enquanto Roma estava justamente no apogeu, pelo menos em relação ao seu sistema

de governo”.2

Para Políbios, até mesmo na maneira de conduzir a guerra, os romanos eram

superiores. As razões dessa superioridade residiriam no fato de que as tropas cartaginesas

eram constituídas em sua maioria por soldados mercenários, ao passo em que as romanas

1 O termo civilidade é usado aqui em substituição ao conceito de civilização. A ideia de civilização remete ao

positivismo ao estabelecer critérios de diferenciação entre grupos sociais, nações ou países a partir da

bipolaridade civilização x barbárie. A ideia de civilidade é defendida por Marcel Detienne e se aproxima do

conceito de cultura desenvolvido pelos antropólogos, no qual não se estabelece hierarquia entre as mais diversas

formações sociais. 2 Historia, VI – 51.

Page 16: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

16

eram compostas de cidadãos que combatiam por suas famílias e por seu próprio território.3

Quanto aos costumes, Polibios aponta as seguintes características:

“As leis e os costumes pertinentes ao enriquecimento são também melhores

entre os romanos que entre os cartagineses. Em Cartago, nada que proporcione lucro

é considerado ignóbil; em Roma, nada é considerado mais ignóbil do que deixar-se

subornar, ou procurar o ganho por meios impróprios, pois não menos forte que sua

aprovação ao ganho por meios respeitáveis é o seu repúdio ao ganho inescrupuloso

oriundo de fontes interditas. Eis uma prova disso: em Cartago, os candidatos a

funções públicas recorrem abertamente ao suborno, enquanto em Roma essa prática

é punida com a pena de morte. [...] Parece-me, porém, que a superioridade maior

do povo romano está em suas concepções religiosas; na minha opinião o que

entre outros povos constitui um defeito reprovável – refiro-me à superstição – é

o sustentáculo da coesão de Roma”.4

Estas digressões influenciaram os debates da historiografia contemporânea. A partir da

documentação acima citada, estabeleceremos um Exercício de Experimentação Comparada

acerca das perspectivas religiosas dos cartagineses e dos romanos, tomando como objeto de

estudo as práticas de sacrifícios humanos. A atividade sacrificial esteve presente em diversas

sociedades antigas, apresentando diferenças sutis entre si. Estas atividades buscam, por vezes,

construir ou reforçar identidades, promover a coesão social e a construção de comunidades. A

quebra de velhos paradigmas que influenciam a construção de identidades e a formação do

etnocentrismo é um dos objetivos do emprego do método comparativo.

O historiador Marc Bloch desenvolveu sua concepção de comparativismo a partir da

ótica da sociologia, cuja herança remete aos estudos de E. Durkheim. Sua proposta consistia

em buscar as semelhanças e as diferenças que dois fenômenos apresentam em meios sociais

diferentes.5 Ao analisar a proposta de Marc Bloch, as pesquisadoras Neide Theml e Regina

Maria da Cunha Bustamante acrescentam que para o autor, a comparação possuía os seguintes

objetivos, a saber: pesquisar e entender as características singulares e comuns dos fenômenos

sociais e prestar auxílio na compreensão das causas e das origens destes fenômenos. Sua

proposta de análise direcionava-se para sociedades próximas e contemporâneas, que sofreriam

a influência direta umas das outras.6

Por outro lado, o historiador Marcel Detienne aponta um caminho alternativo para o

emprego do método comparativo ao aproximar suas questões metodológicas àquelas

propostas pela Antropologia. De acordo com o autor, o comparativismo experimental dos

primeiros antropólogos objetiva comparar as civilidades em seus vários aspectos, deslocando

3 Historia, VI – 52.

4 Historia, VI-56.

5 BLOCH, M. Pour une histoire comparée des sociétés européennes. In: Revue de Synthèse historique. 46,

1928, p. 15-50. 6 BUSTAMANTE, R. M ; THEML, N. História Comparada : olhares Plurais. Revista de História Comparada.

Vol. 1. N. 1. Jun/2007, p. 3.

Page 17: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

17

seu olhar entre as sociedades do presente e do passado.7 Ao contrário de Marc Bloch, o autor

defende um comparativismo a partir da análise do conjunto de representações culturais entre

as sociedades, sem levar em conta as noções de tempo e lugar.8

Nossa análise será orientada a partir da perspectiva do comparativismo experimental

com a civilidade romana, onde é possível perceber que a prática de sacrifícios humanos

também estivera presente em sua religião. Nosso recorte temporal pretende abarcar o século

III a. C. A escolha deste recorte temporal justifica-se em virtude da presença de vestígios

arqueológicos que atravessam este período, notadamente o Tanit III, conjunto de urnas

funerárias encontradas na necrópole cartaginesa neste período, e das descrições dos

historiadores gregos antigos, além de ser o contexto no qual tiveram início as hostilidades

entre romanos e cartagineses.

Esta estruturação do trabalho integra a perspectiva do campo de experimentação

comparada9, defendida por Marcell Detienne, na qual o uso induz à construção de problemas

que atravessam diversas realidades sociais em diversas temporalidades e espacialidades.

Trata-se de uma ferramenta metodológica voltada para a experimentação na qual se colocam

em perspectiva as diferenças sociais e históricas a partir de um conjunto de problemas.10

A seguir veremos como o autor apresenta as potencialidades do método comparativo,

sobretudo destacando a relação da História com a Antropologia, uma vez que nossa

abordagem se insere no campo da História Antropológica. A comparação é inerente ao

trabalho do antropólogo. Este põe em contato grupos de relações destacadas internamente em

diversas culturas. A Antropologia nasce como ciência utilizando o método comparativo e

entre suas preocupações encontra-se a ideia de comparar nações entre si, analisando seus

costumes sociais, religiosos e morais.11

De acordo com Marcel Detienne, o encontro da História com a Antropologia ocorreu

por volta da década de 1960, quando os historiadores passaram a se interessar pelo cotidiano,

pelos hábitos alimentares e religiosos, pelo vestuário e pelas formas de habitação dos mais

variados grupos sociais. O trabalho em conjunto entre antropólogos e historiadores, entre

História e Antropologia, surge a partir da necessidade de se conhecer a totalidade das

sociedades dos homens e todas as civilidades. As vantagens deste diálogo permitem uma

7 DETIENNE, M. Comparar o incomparável. Aparecida – SP: Ideias & Letras, 2004, p. 23.

8 DETIENNE, op. Cit., p. 47.

9 O termo Campo de experimentação comparada aparece no artigo “História Comparada: olhares plurais” das

professoras doutoras Neide Theml e Regina Maria da Cunha Bustamante, publicado na Revista de História

Comparada, V. 1 – N. 1 de Jun. 2007. 10

DETIENNE, op. Cit., p. 43-53. 11

Ibid., p. 22-23

Page 18: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

18

abordagem contrastante que possibilita ressaltar os detalhes, aqueles traços que escapavam à

percepção do observador.12

A partir desta perspectiva, Marcel Detienne irá defender a sua

proposta de uma História Comparada, ou um Comparativismo Construtivo. Trata-se de um

campo de exercício de experimentação do conjunto de representações culturais entre as

sociedades cartaginesa e romana, sem levar em conta as noções de tempo e lugar.13

Os comparáveis entre historiadores e antropólogos, entre História e Antropologia, são

mecanismos de pensamento observáveis, placas de encadeamento causal. São relações em

cadeia que se caracterizam como escolhas realizadas pelos grupos sociais. Quando uma

sociedade elege um mecanismo de pensamento, ela faz uma escolha, dentre muitas que

poderia fazer.14

A partir destas escolhas decorre o choque do incomparável, ou seja, a atitude

metodológica que permite comparar traços semelhantes entre sociedades, mas que apresentam

certas diferenças entre si. Não se compara temas, mas maneiras de ver o mundo, ou as

maneiras como as sociedades veem a si mesmas, fatores que são distintos por natureza.15

A Construção de Comparáveis entre historiadores e antropólogos não visa à criação de

leis e modelos do comportamento social. Busca-se, antes de tudo, analisar os mecanismos de

pensamento, os encadeamentos decorrentes das escolhas realizadas pelas civilidades que em

muitos casos não se conhecem. A utilidade do método reside na sua eficácia em se colocar os

valores e as escolhas das sociedades em perspectiva. Trata-se de um olhar crítico sobre a

tradição. Objetiva-se compreender diversas culturas da mesma forma que elas se

compreendiam para depois analisá-las entre si, reconhecendo as diferenças em relação às

outras.16

Essas definições metodológicas comparativas nos permitem colocar em perspectiva a

sociedade cartaginesa em relação à sociedade romana, no que tange às práticas de sacrifício

humano. De uma forma ou de outra, a historiografia especializada tratou a história da

sociedade cartaginesa vinculada à romana, e é através das Guerras Púnicas e seus resultados

que a Historiografia mundial normalmente situa Cartago.

A partir de um conjunto de conceitos definidos por Marcel Detienne, podemos ainda

analisar de forma comparada as Historiografias que, sejam elas antigas ou modernas,

ajudaram a construir a memória17

de Cartago. Trata-se da análise dos Regimes de

12

DETIENNE, op. Cit., p. 46 13

Ibid., p. 47 14

Ibid., p. 57 15

Ibid., p. 49-52 16

Ibid., p. 65-67 17

Ibid., p. 74. Marcel Detienne defende a ideia de memória como apreensão no tempo a partir de um

distanciamento de si mesmo e não como um estoque de informações.

Page 19: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

19

Historicidade, como o estudo de uma “consciência histórica”. Mas não de uma consciência de

si mesmo, já que não chegaram até nós vestígios escritos realizados pelos cartagineses sobre

eles mesmos. Analisamos uma “consciência” construída, elaborada de fora, por historiadores

antigos e por historiadores modernos, que não eram de Cartago. Neste sentido, se faz

necessário questionar os regimes historiográficos e analisar seus componentes.18

O diálogo entre a História e a Antropologia se estende a uma abordagem comparativa

das diversas formas de experiência da História, no espaço e no tempo. Trata-se de colocar em

perspectiva os modelos de escritura da historicidade, analisando suas construções, suas

estruturas lógicas, as distâncias aparentes entre si, a sua circulação, seus encontros e

desencontros.19

Ainda que a memória desempenhe um papel importante na construção da História, ela

não provoca instantaneamente as representações do passado. Para que haja consciência

historiográfica é preciso que se estabeleça a organização do passado do grupo social, onde se

faz necessário tornar presentes e reviver acontecimentos anteriores, como as práticas de

sacrifícios humanos em Cartago e em Roma.20

18

DETIENNE, op. cit., p. 71 19

Ibid., p. 72 20

Ibid., p. 74-76

Page 20: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

20

1: OS REGIMES DE HISTORICIDADE: AS REPRESENTAÇÕES DE CARTAGO NA

HISTORIOGRAFIA ANTIGA E NA HISTORIOGRAFIA FRANCESA E ANGLO-

AMERICANA CONTEMPORÂNEAS.

Neste capítulo partiremos da concepção teórica proposta por Marcel Detienne acerca

da análise comparada dos Regimes de Historicidade e sua consequente construção da

Memória. Ainda que não tenham chegado até nós os vestígios de uma consciência de si

mesmo produzida pelos cartagineses, encontramos dados destas representações entre os

historiadores antigos e também na historiografia francesa e anglo-americana contemporâneas.

O estudo comparado destas correntes historiográficas envolverá análises acerca do processo

mítico de fundação da cidade-estado cartaginesa, sua origem fenícia, seu desenvolvimento

mercantil, suas estruturas e dinâmicas sociais e suas relações políticas com as demais

civilidades do Mediterrâneo, em especial aquelas estabelecidas com Roma, seja por meio de

tratados de cooperação econômica e militar, seja por meio de embates bélicos pela conquista

da hegemonia na região. Ao final deste capítulo pretendemos responder à seguinte questão: é

possível escrever uma História de Cartago?

1.1: Regimes de Historicidade e construção da Memória de Cartago

“Fiquei chocado ao saber que fenícios possivelmente sacrificavam jovens

crianças no Tophet cartaginês. A ideia é horrível. Eu sempre pensei que os Fenícios

eram uma raça civilizada.”21

A história de Cartago sempre esteve, invariavelmente, ligada à de Roma. São raras as

obras editadas em língua portuguesa que tratam especificamente da civilidade cartaginesa, o

que conduz o pesquisador a buscar informações sobre esta sociedade nas obras dedicadas à

história de Roma, sobretudo nos capítulos que tratam do fim da República e formação do

Principado. Por outro lado, as informações da documentação textual de que dispomos são

oriundas das narrativas de historiadores antigos de origem grega ou romana, o que torna

questionável muitos dos aspectos por eles descritos, em virtude das rivalidades entre Cartago,

Grécia e Roma. Os historiadores contemporâneos basearam-se nestas descrições ao tentar

21 Roberts P. D. Forum Archaeology Odyssey, 2001: p. 10-11 Apud, GARNAND, B. K. From Infant Sacrifice

To The Abc’s: Ancient Phoenicians And Modern Identities. Stanford Journal of Archaeology. Vol 1. p. 1-82

Page 21: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

21

descrever os aspectos gerais da civilidade cartaginesa, o que nos leva a analisar de forma

comparada os principais eixos temáticos abordados por esta historiografia.

De acordo com Marcel Detienne algumas sociedades acreditam possuir um passado e

que a sua consciência histórica é clara e objetiva. Em muitos aspectos, determinadas

civilidades buscam, a partir de uma análise reflexiva, desconstruir a “História Oficial”,

denunciando suas incorreções e questionando sua veracidade. Este processo que objetiva

reconstruir a imagem de si mesmo no passado, embora seja, na opinião do autor, aceitável,

permanece de maneira incerta. Nesse sentido, determinadas sociedades são levadas a construir

para si mesmo uma nova História identitária, de acordo com novos critérios, revisitando o seu

próprio passado.22

A análise comparada dos regimes de historicidade busca compreender os aspectos de

uma consciência histórica. Mas não de uma consciência de si mesmo, já que não chegaram até

nós vestígios escritos realizados pelos cartagineses sobre eles mesmos. Analisamos uma

“consciência construída”, elaborada de fora, por historiadores antigos e por historiadores

modernos, que não eram de Cartago. Neste sentido, se faz necessário questionar os regimes

historiográficos, analisar seus componentes, suspeitar de sua aparente unicidade. De acordo

com Marcel Detienne, as reflexões sobre a “consciência histórica” envolve a análise de duas

questões, a saber: o debate sobre a memória e a sua relação com a História e o estudo da

mudança.23

Ainda que a memória tenha desempenhado uma ação relevante para a História, não

podemos dizer que esta cria espontaneamente as representações sobre o passado. De acordo

com Pierre Nora a História caminha a passos cada vez mais apressados. Vivemos uma

oscilação cada vez mais acelerada de um passado morto relacionado a uma consciência de si

mesmo que se constrói a partir de aspectos definitivamente terminados. Para o autor, a

memória não existe mais e este seria o motivo pelo qual se fala tanto nela. O interesse pelos

lugares de memória é uma consequência deste contexto em que vivemos. Contexto esse

marcado pela consciência de uma ruptura com o passado que se imiscui com o sentimento de

um esfacelamento da memória, ainda que esta desintegração possa suscitar a questão de sua

materialização, agregando um sentimento de continuidade residual a determinados lugares. Os

lugares de memória existem porque os meios de memória desapareceram.24

22

DETIENNE, op. Cit., p. 70 23

Ibid., p. 71-73 24

NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo, nº 10, p. 7-

28, dez. 1993.

Page 22: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

22

Para Marcel Detienne a organização da memória não se refere ao domínio espacial de

um conjunto de informações, mas a uma apreensão no tempo de uma consciência de si mesmo

em relação a si mesmo.25

Nosso estudo, como vimos, será constituído por uma “consciência

construída”, uma vez que não chegou até nós os vestígios de uma consciência de si mesmo

produzida pelos cartagineses.

A mudança, segundo aspecto apontado por Marcel Detienne, está vinculada ao

processo de construção do pensamento histórico. O domínio político é o espaço de excelência

das reformas que traduzem as razões que levam às transformações. As ações políticas estão

acompanhadas das teorias da mudança. O contexto dos embates, das guerras torna-se um

lócus privilegiado para o estudo da mudança.26

Nesse sentido, entendemos que o debate da

historiografia acerca das Guerras Púnicas torna-se pertinente para a compreensão do regime

de historicidade de Cartago, a partir do conjunto de mudanças por ela provocado.

A seguir, veremos algumas das características históricas do processo de construção do

Regime de Historicidade dos fenícios e em especial de Cartago. Em primeiro lugar

observando o contexto da produção historiográfica cartaginesa, e depois, o conteúdo abordado

pela mesma historiografia. De acordo com Brian Garnand, os fenícios sempre mostraram

talento para o comércio e para as comunicações ao colonizar o Mediterrâneo Ocidental à

frente dos gregos e ao divulgar uma de suas mais relevantes invenções: a escrita

alfabética. Ao mesmo tempo, contudo, eles receberam reputação de piratas e fraudadores,

revelando um caráter “depravador” extremo ao praticar o sacrifício de crianças e a

prostituição sagrada ritualizada, de acordo com a descrição das fontes clássicas e

bíblica. “Civilizador depravado”, ou “depravador civilizado”, o fenício apresentou um modelo

de paradoxo. Durante o século XIX, e durante boa parte do século XX, os artistas europeus,

escritores e estudiosos resolveram este paradoxo, suprimindo o aspecto civilizador,

minimizando a questão do desenvolvimento do alfabeto fenício, mantendo apenas o caráter de

civilidade oriental depravada e exótica. Formado em um ambiente de racismo27

,

25

DETIENNE, op. Cit., p. 74 26

Ibid., p. 77-78 27

SEYFERTH, G. Racismo no Brasil. São Paulo: ABONG, 2002, p. 28. O conceito de raça foi criado para

interpretar a história das nações. No início do século XX tonou-se um conceito biológico, influenciado por ideias

políticas e relacionado aos antagonismos entre raças distintas, cujo fundamento ideológico encontrava apoio na

expressão “sobrevivência do mais forte”. O termo “racismo” surge na década de 1930 para criticar os postulados

que afirmaram ser a raça o aspecto determinante da cultura. Em seus desdobramentos o conceito de “racismo” se

refere ainda às práticas que objetivam desqualificar e subordinar socialmente determinados grupos ou

indivíduos, influenciando as relações sociais.

Page 23: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

23

imperialismo28

e do nacionalismo29

, a influência de tais interpretações dos fenícios foi

superada atualmente, sendo substituídas por “pós” interpretações, a saber: pós-moderna30

,

pós-colonial31

e pós-estrutural32

. Contudo, recentemente, alguns estudiosos têm abandonado

o paradigma do sacrifício infantil convencional em favor de uma narrativa que enfatiza as

contribuições dos fenícios para a civilidade ocidental.33

Ainda de acordo com Brian Garnand, o ano de 1987 foi um momento decisivo para a

aceitação desta revisão dos estudos acerca dos fenícios. Citando as pesquisas do historiador

Martin Bernal, o autor destaca que neste período verificou-se que os estudos da civilidade

fenícia haviam sido influenciados pelo racismo e pelo antissemitismo34

, suprimindo as suas

28

DÖPCKE, W. Imperialismo. In: SARAIVA, J. P. (Org.) Relações Internacionais – Dois séculos de História.

Vol. I. São Paulo: FUNAC, 2010, p. 143-144. O debate acerca do conceito de Imperialismo surgido no final do

século XIX provocou o surgimento de uma grande variedade de teorias e modelos. De acordo com Wolfgang

Döpcke, o termo imperialismo é amplo e relaciona-se ao domínio das potências europeias e dos E.U.A e Japão

sobre o hemisfério sul do planeta, através de ações diretas – conquista territorial – e indiretas – relações

econômicas e políticas assimétricas. Não é possível determinar uma única causa para este fenômeno, uma vez

que os interesses das potências imperialistas eram múltiplos e diferentes entre si. 29

REMEDIOS, M. L. R. Sujeito, etnia e nação nas literaturas lusófonas. In: AGUIAR, V. T.; PEREIRA, V. W.

(Orgs.) Pesquisa em Letras. Porto Alegre: PUCRS, 2007, p. 34. Para além de uma ideologia ou forma política,

os conceitos de nação e nacionalismo são compreendidos como fenômenos culturais. O nacionalismo é um

conceito que está ligado à ideia de identidade nacional, se relacionando a sentimentos, valores simbólicos e uma

linguagem específica. A identidade nacional é, portanto, um fenômeno cultural coletivo. A ideia de nação

presente no Ocidente revela uma concepção espacial, onde a comunidade e o território pertencem um ao outro. A

memória e a identidade do grupo social são construídas a partir de uma associação histórica com o local onde

vive. 30

TEIXEIRA, C. Moderno Pós-Moderno: modos e versões. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 56-57. O conceito

de “pós-moderno” está relacionado a uma conjuntura das culturas dos países desenvolvidos após as

transformações da ciência, das artes e da literatura a partir do final do século XIX; SANFELICE, J. L. Pós-

modernidade, globalização e educação. In: LOMBARDI, J. C. (Org.) Globalização, Pós-Modernidade e

Educação. Caçador-SC: Autores Associados, 2003, p. 6-7. Associado às questões econômicas, o conceito

assumiu, a partir da década de 1980, uma relação com a democracia liberal, ao apregoar que não poderia haver

nada mais definitivo que o Capitalismo. Nesse sentido, o pós-moderno passou a se considerado uma sentença

definitiva contra quaisquer alternativas ao sistema econômico vigente. 31

AUGEL, M. P. O desafio do escombro: nação, identidade e pós-colonialismo na literatura da Guiné-Bissau.

Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p. 140-141. O campo semântico do conceito de pós-colonial relaciona-se a uma

ideia de embate nas representações das culturas nativas frente à cultura imposta pelo dominador estrangeiro. Em

sua variante política e ideológica, o termo pós-colonial é usado para revelar um conjunto de correntes

aticoloniais, nacionalistas, antiimperialistas e anticapitalistas, ligados à máxima da “libertação do terceiro

mundo”. 32

PECI, A. Além da dicotomia objetividade-subjetividade. In : VIEIRA, M. M. ; ZOUAIN, D. M. (Orgs.)

Pesquisa qualitativa em Administração. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 31. Pós-estruturalismo é um conceito

polissêmico que inclui a contribuição de diversos autores, como Jacques Derrida, Roland Barthes, Jacques

Lacan, Julia Kristeva. Michel Foucault, Jean F. Lyotard e Jean Baudrillard. O pós-estruturalismo é caracterizado

por uma politização da crítica e considera as dicotomias, como corpo – espírito, objetividade - subjetividade,

fenômenos históricos e o legado da ideia de razão presente nos postulados modernistas. 33 GARNAND, op. cit. p. 3 34 AQUINO, R. S. L. de. Antissemitismo. In: SILVA, F. C. T. da. (Org.) Enciclopédia de guerras e revoluções

do século XX: as grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 37.

Termo criado pelo publicista alemão Wilhelm Marr em 1879 para designar um novo tipo de antijudaísmo

surgido na Alemanha no final do século XIX. O termo semita tem origem nos estudos bíblicos de finais do

século XVIII, usado pela linguística para diferenciar o caráter e o espírito entre os povos semitas e os arianos.

Aos semitas foram atribuídas características negativas e aos arianos, positivas. A expressão semita aponta para

Page 24: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

24

contribuições para a formação da civilidade ocidental. Além disso, o romance de Gustave

Flaubert, intitulado Salammbô (1862) havia inspirado uma repulsa geral e a condenação da

sociedade cartaginesa, influenciando as análises dos historiadores no século XX. Contudo, o

autor acrescenta que a influência da novela de Flaubert continua viva até os dias atuais,

através de exibições de operas de Salammbô e dos guias turísticos tunisinos baseados em sua

narrativa. Não há um turista que, ao visitar as ruínas de Cartago, não ouça de seu guia a

história de sacrifício de crianças, com riqueza de detalhes, elaborados talvez a partir das

páginas de Salammbô de Gustave Flaubert. Da mesma forma, não existe um manual histórico

que, ao falar de fenícios e cartagineses, não se refira ao ritual de sacrifício que objetivava

oferecer vítimas humanas na necrópole comumente chamada de Tophet.35

Em suas análises acerca das influências contemporâneas sobre os estudos fenícios,

Brian Garnand considera três diferentes contextos históricos, a saber: o período do

lançamento da obra de Gustave Flaubert, em 1862, no momento da criação de uma identidade

francesa36

, formada em parte, a partir da vitória sobre os árabes, após a invasão napoleônica

do Egito para a conquista e colonização da Argélia; e, depois, o filme mudo de Giovanni

Pastrone de 1914, intitulado Cabiria, situado no contexto da formação de uma identidade

imperial italiana37

a partir do momento das primeiras vitórias sobre os turcos e os árabes da

Tripolitânia e Cirenaica (Atual Líbia); e, finalmente, a questão do “fenicianismo38

” no

uma visão secularizada do Judeu, não mais definido pela religião, mas pelo pertencimento a uma determinada

reaça ou nação. 35

GARNAND, op. Cit., p.4-5 36 Ibid., p. 24 et. Seq. O primeiro passo para o ordenamento ocidental do Mundo Árabe ocorreu durante a

expedição de Napoleão ao Egito (1798-1801) e a inauguração quase simultânea de um Orientalismo acadêmico

com o estabelecimento de estudos árabes na École des Langues Orientales. A França napoleônica foi concebida

como Roma, desvendando os mistérios do Oriente. Era a oportunidade para representar livremente as batalhas

sangrentas, o canibalismo desesperado, ritos de sacrifício de crianças e, sobretudo, o sexo, encontrando no

mundo árabe uma “Alternativa visionária”, em contraste com a “tonalidade acinzentada da França”. A França

testemunhou debates entre arabophobes e arabophiles que dizia respeito aos papéis desempenhados pelas

concorrentes militares, pelos colonos e pelos árabes na Argélia, e como o francês poderia cumprir melhor o seu

papel paternal de “civilizar” os nativos, cumprindo sua missão civilizadora. 37

Ibid., p. 36, 40. O filme Cabiria (baseado, em parte, na obra Salammbô ) valoriza os romanos “civilizados” em

relação aos fenícios “depravados”. Estas narrativas colonialistas caracterizavam-se por uma exaltação do próprio

passado, desqualificando os povos que por eles eram subjugados e suplantados. Na verdade, procura-se enfatizar

o primitivismo e a falta de realizações desses povos para justificar seu próprio tratamento sobre eles. O Filme

mudo de Giovanni Pastroni foi lançado dois anos após a captura italiana da Tripolitania. O cinema não é apenas

um instrumento para a representação da realidade, como um documentário, mas também serve como um modo

de escrita histórica que pode transmitir visualmente uma consciência histórica para o público com muito mais

eficiência do que o valor educativo dos livros de história convencionais. A narrativa de Cabiria defendeu o

Imperialismo italiano contemporâneo. Era um filme sobre a Roma antiga, mas direcionado para a Itália moderna.

O cinema italiano emergente valorizou as correntes ideológicas ligadas à origem de uma nação recém-unificada. 38

Ibid., p. 56,58. Nos anos que se seguiram ao fim da administração egípcia da Síria, o clero Maronita promoveu

um “Libanismo” como um movimento paroquial, conservador, voltado para uma identidade cristã. Contudo, o

movimento desapareceu após 1861. O componente cultural fenício só foi empregado em um “Libanismo”

revivido no final virada do século, entre a elite letrada, e foi fomentado em grande parte a partir do estrangeiro,

por comunidades de imigrantes nos Estados Unidos e no Egito. No lugar de mitos faraônicos de origem, os

Page 25: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

25

desenvolvimento de identidades no Líbano, em 1920. Para o autor, em todas estas três

situações, os antigos fenícios estavam envolvidos com ideologias contemporâneas, e estas

questões revelam muito mais sobre cada um de seus contextos históricos do que as pesquisas

realizadas nos dias atuais.39

Apesar destas conexões, o autor adverte que embora seja possível

sugerir as relações entre os contextos europeus do século XX e as representações construídas

sobre os fenícios, a comprovação efetiva de tais evidências é um espaço aberto à pesquisa.40

Por outro lado, o processo de consolidação da memória de Cartago teve uma de suas

etapas mais recentes em Novembro de 2007 quando o Instituto do Mundo Árabe inaugurou

uma exposição no Museu do Louvre cujo título era “O Mediterrâneo Fenício: de Tiro a

Cartago”, refletindo o crescente interesse por um período do mundo antigo relativamente

desconhecido. De acordo com Clementine Gutron, o campo das crenças e das práticas

religiosas e funerárias dos fenícios ainda traz consigo muitos mistérios a serem solucionados,

e se houve algum progresso nos últimos anos, isso se deve à descoberta do sítio arqueológico

da necrópole cartaginesa no início do século XX. As peças exibidas em 2007 foram produto

das escavações arqueológicas realizadas na região da Tunísia entre as décadas de 1920 e

1970. De acordo com a autora, a Arqueologia é um conhecimento político e as pesquisas

realizadas na necrópole cartaginesa foram influenciadas pela ocupação francesa daquela

região de 1881 a 1956. Haveria, portanto um legado colonial sobre as escolhas operadas pela

Arqueologia, que teve suas descobertas utilizadas pelo turismo nacional tunisino no processo

de construção da memória daquele país.41

A cada nova escavação da necrópole cartaginesa surgia a questão que instigava os

arqueólogos e historiadores: os cartagineses de fato haviam praticado sacrifícios de crianças?

Para Clementine Gutron, este debate ganhou implicações relativas à identidade e a Tunísia

iniciou um processo de construção dos seus antepassados “aventureiros” na busca pela

construção de uma história nacional única que remontava há muitos séculos e, neste processo,

o conhecimento sobre o passado e o contexto contemporâneo se misturam. Por outro lado, a

autora alerta que o desenvolvimento das escavações arqueológicas pôs em perspectiva a

imigrantes do Líbano traçaram suas próprias origens até a civilidade fenícia. Em um esforço para avançar até a

sua civilidade original, os sírio-americanos estabeleceram centros culturais, os “Clubes fenícios", em todo o país,

onde os seus filhos tinham contato com sua herança cultural fenícia, estudavam árabe, e aprendiam a história do

Líbano. O novo “fenicianismo” descartava o paradigma do “Árabe passivo", promovendo um modelo

fenício/libanês "dinâmico". Este paradigma revertido descreveu o fenício/libanês compartilhando seu instinto

comercial e descreveu sua diáspora como uma colonização moderna. 39

GARNAND, op. Cit., p. 7 40

Ibid., p. 59 41

GUTRON, C. La mémoire de Carthage en chantier: les fouilles du tophet Salammbô et la question des

sacrifices d’enfants. L'Année du Maghreb, IV- p. 3.

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26

representação dos cartagineses, uma vez que os textos dos historiadores clássicos e a obra de

Gustave Flaubert moldaram a imagem de Cartago e do mundo púnico em geral. A obra de

Flaubert, ao descrever o sacrifício de crianças, tem influenciado a construção da memória da

Tunísia até os dias atuais.42

“As crianças subiram lentamente, e com a fumaça em forma de imponentes

redemoinhos, elas pareciam, a certa distância, desaparecer em uma nuvem. Não se

mexeram. Seus pulsos e tornozelos foram amarrados, e a roupagem escura as

impedia de ver qualquer coisa e de serem reconhecidas. Toda vez que uma criança

era apresentada, os sacerdotes de Moloch estendiam as mãos sobre ela para imputar-

lhe os crimes do povo, vociferando: “Elas não são homens, mas bois”! e multidão

repetia: "Os bois, os bois"! Um devoto exclamou: "Senhor coma"! e os sacerdotes

de Prosérpina, respondendo às necessidades de Cartago através do terror,

murmuraram a fórmula de Elêusis: "Derrama, traga a chuva”! As vítimas, colocadas

na base da abertura [da estátua de Moloch], desapareceram como uma gota de água

sobre uma placa quente e uma fumaça branca subiu no meio da grande fumaça de

cor escarlate”.43

Figura 1: Ilustração da obra de Gustve Flaubert representando a estátua de Moloch e o sacrifício de crianças em

Cartago - Fonte: http://www.mediterranees.net/romans/salammbo/sommaire.html - Acesso em 08/02/2013

As últimas escavações sistemáticas na necrópole cartaginesa ocorreram como parte da

campanha internacional organizada pela United Nation Educational, Scientific and Cultural

Organization (UNESCO) na década de 1970 para preservar o patrimônio cultural daquela

região. De acordo com Clementine Gutron, na década de 1960 a Tunísia, recém -

independente do domínio francês, optou pelo turismo como um instrumento de

42

GUTRON, op. Cit., p. 5 43

Gustave Flaubert – Salammbô – Cap. XIII

Page 27: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

27

desenvolvimento social, quando iniciou então uma política de investigação do potencial

econômico do patrimônio arqueológico. Procurada, a UNESCO organizou uma série de

missões em todo o país, tornando prioritárias as investigações na região do golfo de Túnis,

onde se localiza o sítio arqueológico cartaginês. A magnitude do empreendimento e a

elaboração de um relatório sobre os estudos nesta área foram possíveis apenas a partir de uma

cooperação internacional, uma vez que a Arqueologia nacional tunisina não dispunha de

recursos suficientes.44

Os principais objetivos destas pesquisas arqueológicas eram identificar e classificar os

objetos encontrados. Ainda de acordo com Clementine Gutron, foram realizadas doze

missões, que envolveram nacionalidades diferentes, organizadas em dezoito equipes de

trabalho de pesquisa arqueológica sobre os vestígios identificados, a fim de conhecer a

história de Cartago. Mais de 600 especialistas, entre arqueólogos, historiadores e arquitetos se

dedicaram, por mais de uma década, a salvaguardar este sitio, finalmente considerado

Patrimônio natural e cultural da humanidade pela UNESCO em 26 de outubro de 1979.45

Veremos a seguir, após este breve percurso do contexto histórico das influências sobre

a construção das representações de Cartago, como os historiadores antigos e a historiografia

contemporânea contribuíram para a construção de sua memória.

1.2: Cartago entre os historiadores antigos e contemporâneos

Selecionamos, para este estudo, as análises da Historiografia Francesa e da

Historiografia Anglo-Americana, uma vez que grande parte das pesquisas realizadas sobre a

cidade-estado fenícia está concentrada nestas correntes historiográficas. Os aspectos da

religião cartaginesa serão discutidos no terceiro capítulo desta dissertação, quando

analisaremos de forma comparada as especificidades do ritual de sacrifício humano em

relação à civilidade romana.

Iniciaremos nossas digressões a partir dos estudos acerca do processo de fundação de

Cartago. A narrativa mítica acerca desta fundação pode ser observada na obra Eneida do

poeta romano Virgílio. Vejamos a descrição:

“[...] O império atem-se a Dido, Que por fugir do irmão, fugiu de Tiro [...]

Siqueu, fenício em lavras opulento, foi da mísera esposo, e muito amado: com bom

presságio o pai lha dera intacta. Pigmalião façanhoso entre os malvados, bárbaro

44

GUTRON, op. cit., p. 6 45

Ibid., p. 7

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28

irmão, do estado se empossara. Interveio o furor: de fome de ouro. Cego, e à paixão

fraterna sem respeito, pérfido, ímpio, a Siqueu nas aras mata. [...] Da casa o crime e

trama desenleia; a Ara homicida os retalhados peitos desnuda, e à pátria intima-lhe

que fuja: Prata imensa e ouro velho, soterrados, Para o exílio descobre. Ela, inquieta,

Apressa a fuga, e atrai os descontentes; Que ou rancor ao Tirano ou medo instiga;

Acaso prestes naus, manda assaltá-las; Dos Tesouros do avaro carregadas;

Empegam-se: a mulher conduz a empresa! Chegam d'Alta Cartago onde o castelo

verás medrando agora e ingentes muros: mercam solo (do feito o alcunham Birsa);

Quanto um coiro taurino abranja em tiras.”46

Figura 2: A fundação de Cartago.

Fonte: http://www.mundos-fantasticos.com/mitologia - Acesso em 30-04-2013.

A narrativa mítica acerca da fundação de Cartago nos remete à ideia de

territorialidade, defendida por Marcel Detienne. De acordo com o autor, o conceito de

territorialização traduz as mais diversas maneiras de se estabelecer um território. Nesse

sentido, é preciso analisar as variadas formas de se conceber um território, de territorializar a

partir do emprego de rituais com suas representações simbólicas. O estabelecimento de um

território está diretamente ligado à ideia de fundação, que exige um início significativo que

segue um processo histórico. A categoria “fundar” faz referência a um ato, a gestos, a um

46

Eneida I – v. 358 -388

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29

ritual ou um cerimonial diretamente ligado a um indivíduo que está na origem do lugar que é

ao mesmo tempo único.47

Os arqueólogos Gilbert & Collete Charles-Picard descartam a explicação mitológica

para a fundação de Cartago e atribuem a motivação principal à expansão dos Assírios por

volta do século IX a. C. Para os pesquisadores, após ter sua cidade cercada e saqueada, os

habitantes de Tiro procuram por um lugar em que poderiam manter a salvo parte da riqueza

que ainda lhes restava. Chegaram primeiro a Chipre, e mais tarde, seguiram para o norte da

África.48

O pesquisador Sege Lancel49

acrescenta que a fundação da cidade não foi um ato

isolado, mas um evento inscrito num vasto movimento de viagens exploradoras e comerciais

vindas do oriente em direção ao Mediterrâneo50

.

O historiador Pierre Grimal não descarta a narrativa mítica da fundação de Cartago,

revelando que a origem da cidade deve-se a uma princesa da cidade-estado fenícia de Tiro,

chamada Dido, que por força de problemas internos, fora obrigada a partir em busca de um

novo lugar para habitar. A princesa, ao lado de membros da aristocracia de Tiro, teria

negociado uma vasta extensão territorial nas proximidades da atual Tunísia.51

Uma questão que parece resolvida é a da origem fenícia de Cartago. Os historiadores

Andre Aymard e Jeannine Ayboyer acrescentam que a colonização de Cartago suscita um

duplo paradoxo, a saber: em primeiro lugar, enquanto os cartagineses se desenvolviam

rapidamente, seus colonizadores de Tiro atravessavam um período de desestruturação política

e econômica; em segundo lugar, Cartago conservava seus traços culturais fenícios enquanto

sua cidade de origem era assimilada e influenciada diretamente pela cultura grega,

principalmente a partir do século IV a. C. com a expansão de Alexandre Magno.52

A questão acerca da fundação cartaginesa também foi debatida pela Historiografia

Anglo-Americana. B. H. Warmington salienta que é difícil definir a data de fundação de

Cartago, uma vez que as informações arqueológicas deste período não são precisas. Além

47

DETIENNE, op. Cit., p.46-52 48

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. A vida quotidiana em Cartago no Tempo de Aníbal.

Lisboa: LB, 1964, p. 16. 49

LANCEL, S. Carthage. Paris: Fayard, 1992, p. 13 50

É importante acrescentar que com a destruição de Cartago pelos romanos em 146 a. C., poucas informações

produzidas pela cidade sobreviveram e grande parte do que sabemos hoje é proveniente dos avanços das

escavações arqueológicas ou das narrativas dos antigos historiadores gregos e romanos. 51

GRIMAL, P. História de Roma. São Paulo: UNESP, 2005, p. 59 52

AYMARD, A.; AYBOYER, J. História Geral das Civilizações. – Vol. III – Roma e Seu Império. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1993, p. 51.

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30

disso, o pesquisador rejeita qualquer possibilidade de extração de informações históricas nos

registros míticos transmitidos por gregos e romanos acerca da fundação da cidade-estado.53

De acordo com Chester G. Starr, Cartago – em fenício Kart-hadast ou “Nova Cidade”

– foi fundada em meados do século VIII a. C. e eventualmente adquiriu o controle sobre todos

os demais centros fenícios do Mediterrâneo Ocidental.54

Donald Harden acrescenta que a

tradição que situa a fundação de Cartago por volta de 814 a. C. parece corresponder às

informações arqueológicas e à documentação textual. De acordo com o pesquisador, os

personagens descritos por Virgílio em sua Eneida não são figuras míticas no sentido usual da

palavra, tendo todos eles existido historicamente.55

O historiador Michael Grant destaca que em meados da segunda metade do século

VIII a. C., período em que grande parte do comércio mediterrânico estava concentrado nas

mãos dos fenícios, uma de suas principais cidades fundou uma colônia no norte da África, a

qual nomearam Cartago. De acordo com o autor, a escolha do lugar para o estabelecimento da

Nova Cidade se deveu à proximidade dos bancos de púrpura e à localização estratégica para a

proteção das rotas comerciais ocidentais.56

A seguir, veremos de que maneira os cartagineses se organizavam política e

socialmente. A questão política de Cartago foi descrita pelo filósofo estagirita Aristóteles em

sua obra Política. Vejamos a citação:

"Os Cartagineses em particular possuem instituições excelentes, e o que

prova o grande mérito de sua constituição é que, a pesar da grande parte de poder

que concede ao povo, nunca houve em Cartago mudanças de governo, e, o que é

mais estranho, jamais conheceram nem as revoltas, nem a tirania. [...] a magistratura

cartaginesa é preferível, uma vez que seus membros, em lugar de sair das classes

obscuras, são escolhidos entre os homens mais virtuosos. [...] mas Cartago é mais

prudente e não toma seus reis de uma única família, tampouco os toma a todas

indistintamente, e remete a eleição e não a idade e que seja o mérito o que ocupe o

poder. O reinado e o senado, quando há consenso, podem decidir certos negócios e

subtrair outros ao conhecimento do povo, que só tem direito a decidir em caso de

desentendimento. Mas quando este caso chega, podem não só fazer com que os

magistrados exponham suas razões, mas também falar como soberano, e cada

cidadão pode tomar a palavra sobre o objeto em discussão; prerrogativa que não há

em outras constituições. [os cartagineses] Creem que as funções públicas devem

confiar-se não só aos homens distintos, mas também à riqueza, e que um cidadão

pobre não pode abandonar seus negócios e gerir com propriedade os do estado.

Cartago se salva dos perigos do seu governo oligárquico enriquecendo

continuamente uma parte do povo, que envia às colônias.”57

53

WARMINGTON, B. H. O período Cartaginês. In: MOKTAR, G. (coord.). Historia Geral da África. V. 2.

São Paulo – Paris: Ática – UNESCO, 1983, p. 476. 54

STARR, C. G. The Ancient Romans. New York: Oxford Press, 1971, p. 21. 55

HARDEN, D. Os Fenícios. Lisboa: Editorial Verbo, 1971, p. 64. 56

GRANT, M. História de Roma. São Paulo: Civilização Brasileira, 1987, p. 90. 57

Política II – VIII

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31

O historiador grego radicado em Roma, Políbios, também teceu descrições acerca da

constituição dos cartagineses, realizando uma comparação com a constituição dos romanos no

contexto da segunda guerra púnica:

"Entretanto na época em que os cartagineses entraram na Guerra Anibálica

sua constituição já havia degenerado e a de Roma lhe era superior.

Consequentemente o povo em Cartago já havia obtido a preponderância nas

deliberações, enquanto em Roma ela ainda era do Senado. Em Cartago, nada que

proporcione lucro é considerado ignóbil; em Roma, nada é considerado mais ignóbil

do que deixar-se subornar, ou procurar o ganho por meios impróprios [...] em

Cartago, os candidatos a funções públicas recorrem abertamente ao suborno,

enquanto em Roma essa prática é punida com pena de morte."58

Vejamos como a questão da organização social cartaginesa foi tratada pela

Historiografia Francesa. Inspirado talvez pelas descrições elaboradas por Políbios, o filósofo

francês Montesquieu também teceu sua comparação entre romanos e cartagineses. De acordo

com o autor, Cartago havia se tornado uma cidade-estado rica antes dos romanos, e, em

consequência disso, teria se corrompido também mais cedo. Nesse sentido, Montesquieu

destaca que em Roma os cargos públicos eram conquistados através da virtude do indivíduo,

lhe proporcionando prestígio e em Cartago, por sua vez, os cargos públicos eram vendidos e

os magistrados exerciam sua função mediante um pagamento. O autor revela ainda que, se por

um lado a pobreza que era cultivada em Roma tornava todos os homens relativamente iguais,

em Cartago a riqueza acentuava as diferenças entre os cidadãos. Esta situação levou a uma

divisão da oligarquia que governava a cidade: dos dois grupos que governavam Cartago, um

buscava a paz e o outro, a guerra. Se por um lado, em Roma, a guerra unificava os interesses,

em Cartago ela os dividia ainda mais. Ao contribuir para a construção da memória de Cartago,

Montesquieu a concebeu quase como uma cidade diametralmente oposta à Roma, no que

tange às instituições e aos valores. Para o filósofo, a rica cidade-estado de Cartago se opunha

à pobreza e à virtude romanas. Nesse sentido, os romanos seriam ambiciosos por orgulho, e os

cartagineses por avareza.59

Politicamente os cartagineses se organizavam a partir de uma constituição mista,

agregando características comuns a vários sistemas de governo. De acordo com Serge Lancel,

Cartago se organizava em torno de um poder mais ou menos centralizado nas mãos dos

Sufetas, magistrados eleitos anualmente responsáveis pela administração da cidade, cujo

poder era limitado por um Conselho de Anciãos e cujas ações eram julgadas pelo Tribunal dos

Cento e Quatro. Outro aspecto da estrutura política cartaginesa que merece destaque é a

existência da Assembleia do Povo, que detinha a prerrogativa de avaliar todos os assuntos

58

História, VI – 56 59

MONTESQUIEU. Grandeza e decadência dos romanos. São Paulo: Paumape, 1995, p. 29-30.

Page 32: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

32

referentes à comunidade cívica.60

Gilbert e Collete Charles-Picard destacam que politicamente

os cartagineses guardavam semelhanças com romanos e gregos, uma vez que se organizavam

socialmente em torno da ideia de cidadania.61

A sociedade cartaginesa era composta por uma população muito diversa em sua

origem e bastante desigual em termos de riqueza e participação política. Contudo não

chegaram até nos vestígios de graves conflitos de grupos sociais que tenham agitado a cidade.

De acordo com Gilbert e Collete Charles-Picard, as ameaças à ordem social pareciam vir dos

agricultores líbios circunvizinhos, que teriam se revoltado em 396 e 379 a. C. A sua condição

social degradante teria causado o motim que pôs em risco a própria sobrevivência da cidade.

Outro fator de risco era constituído pelos mercenários que compunham seu exército. A revolta

de 240 a. C. pode ser considerada um dos grandes embates sociais que abalaram o mundo

antigo.62

Os pesquisadores Andre Aymard e Jeannine Ayboyer destacam que havia em Cartago

três tendências políticas desiguais, de acordo com as circunstâncias. A cidade foi inicialmente

administrada a partir de um regime monárquico, que desapareceu por volta do século VI a. C.

sendo substituído por vários colégios de magistrados eleitos anualmente, no qual um deles era

composto por dois Sufetas, que seriam juízes, embora os gregos traduzissem essa palavra

como reis. A magistratura cartaginesa se concentrava nas mãos de uma oligarquia pouco

numerosa em relação ao conjunto da comunidade cívica. A riqueza desta oligarquia era

proveniente da atividade mercantil da cidade-estado que se desenvolveu a partir de sua

expansão territorial, com a exportação de produtos manufaturados e agrícolas. Havia ainda

uma aristocracia guerreira de onde provinham os generais que, ao longo da história de

Cartago, ameaçou a situação privilegiada da oligarquia emergente das atividades comerciais e

mercantis. Estes generais eram eleitos pelos cidadãos e, no comando das forças militares,

possuíam autonomia absoluta, não tendo que contar com a interferência de conselheiros ou

inspetores designados pelas autoridades locais, administrando, de acordo com seus desígnios

os territórios que porventura ocupassem.63

O historiador M. Sznycer alerta, no entanto, que a tarefa de reconstruir a história

interna de Cartago, como os historiadores contemporâneos têm objetivado fazer, isto é,

analisando seus problemas sociais, as disputas internas e as mudanças de regimes políticos é

bastante complicada. A dificuldade do trabalho do historiador contemporâneo tem origem na

60

LANCEL, op. Cit., p. 133. 61

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. op. cit., p. 59. 62

Ibid., p. 129. 63

AYMARD; AYBOYER, op. Cit., p. 58-59.

Page 33: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

33

inexistência de informações produzidas pelos próprios cartagineses acerca de suas questões

sociais internas. A arqueologia pouco descobriu até agora para que pudéssemos possuir

informações seguras acerca do cotidiano cartaginês e a documentação textual disponível até

então sobre seus hábitos e costumes é necessariamente questionável, por sua origem grega ou

latina, povos que historicamente mantiveram relações de hostilidade com os cartagineses.64

A temática da constituição cartaginesa também atravessou a Historiografia Anglo-

Americana. Dexter Hoyos revela que Cartago era uma República, isto é, uma comunidade

com magistrados eleitos anualmente por seus concidadãos. Contudo, o autor acrescenta que

ao longo de sua história os cartagineses foram controlados por uma elite aristocrática, baseada

na ancestralidade, mas também aberta à capacidade guerreira e aos recursos monetários

provenientes da intensa atividade mercantil.65

Alfred Church acrescenta que parte do conhecimento que temos acerca das instituições

políticas dos cartagineses se deve a um capítulo da Política do filósofo estagirita Aristóteles.

Segundo o autor, a cidade era governada por reis, mas seu poder era bastante limitado e sua

posição na hierarquia social era um pouco mais elevada que o sumo sacerdote e os generais

do exército. Outra questão que merece destaque é que em Cartago os reis eram eleitos, ainda

que não houvesse eleições anuais. Uma vez eleito, o mandato dos reis era vitalício, porém não

hereditário. Os reis eram dois magistrados chamados sufetas, uma derivação da palavra

Shophetim, que significa juízes. Abaixo dos reis na escala social estavam os generais. Os dois

ofícios poderiam ser exercidos pela mesma pessoa, mas ao que parece, isso raramente

aconteceu. Os reis normalmente não comandavam o exército ou a marinha. Depois dos

generais, havia um corpo legislativo que podemos chamar de Senado. Este órgão era dividido,

por sua vez, em dois subgrupos, a saber: um menor e mais poderoso, escolhido entre seus

membros em períodos de grave agitação social ou conflitos que ameaçassem a cidade, e um

maior, composto pelos demais membros. Outra parte da estrutura administrativa da cidade era

a Pentarquia. Não existem muitas informações acerca deste conselho, mas é provável entre

suas funções estavam a supervisão das finanças, do comércio e dos assuntos militares.66

De acordo com Chester G. Starr, a constituição cartaginesa era bastante similar à de

Roma. Havia uma assembleia de cidadãos, um conselho aristocrático formado por 300

integrantes e dois chefes da magistratura eleitos anualmente. As famílias aristocráticas de

Cartago possuíam vasta extensão de terras nas regiões circunvizinhas à cidade, mas também

64

SZNYCER, M. Carthage et la civilisation punique. In : NICOLET, C. (Org.) Rome et la conquête du monde

Méditerranéen. Paris: Press Université De France, 1995, p. 550. 65

HOYOS, D. The Carthaginians. New York: Routledge, 2010, p. 20. 66

CHURCH, A. The History of Carthage. Cheshire: Biblo-Moser, 1998, p. 102-104.

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34

se dedicavam às questões comerciais, estabelecendo trocas no norte da África, no sul da

Península Ibérica, no oeste da Sicília, além das ilhas da Córsega e da Sardenha. A manutenção

do império cartaginês se dava mediante o emprego de uma força militar composta por

mercenários e por uma numerosa frota, além do uso de artifícios diplomáticos a partir do

estabelecimento de tratados com as cidades-estados vizinhas, com o objetivo de delimitar as

esferas de influência e atividade mercantil. A população nos domínios cartagineses chegava a

3.000.000 de pessoas aproximadamente. Ainda de acordo com o autor, não conhecemos

amplamente a história de Cartago e algumas questões ainda permanecem obscuras como sua

produção artística e sua Literatura, por exemplo. É possível dizer, contudo que os cartagineses

foram influenciados pela cultura helênica a partir do século IV a. C.67

A seguir, veremos os principais aspectos da economia cartaginesa. Antes, contudo, é

preciso verificar os aspectos econômicos da Antiguidade. De acordo com Moses I. Finley, a

palavra economia possui origem grega, sendo composta pelo termo oikos, “casa ou unidade

doméstica”, e pela raiz semântica nem-, com o sentido de “regulamentar, administrar,

organizar”. Em linhas gerais o oikonomikos, significa a “administração da casa”.68

Max Weber destaca que a cultura antiga é essencialmente urbana, sendo a cidade

portadora de vida política, assim como da arte e da Literatura. Economicamente a cidade

antiga se baseia na troca, nos mercados locais, de produtos de origem nas manufaturas

urbanas com os frutos da área de produção agrícola circundante. Essa troca direta local, entre

produtores e consumidores, atende às necessidades da região sem a necessidade de

importação de produtos do exterior. Esta característica estaria assentada no princípio da

autarquia, ou da autossuficiência. Para o sociólogo, embora haja um comércio marítimo entre

cidades-estados a sua intensidade é bastante limitada, restringindo-se apenas aos produtos de

luxo que buscavam atender a uma aristocracia cada vez mais exigente. O tráfico de

mercadorias não interessava à população em geral, com suas necessidades cotidianas.69

Ao comentar sobre a estrutura econômica das cidades antigas M. I. Finley destaca que

esta incluía o interior rural e um centro urbano, onde residia a aristocracia e onde estavam

instalados os cultos públicos e a administração da comunidade. Para o autor, a relação

econômica entre a cidade e o campo pode ir do parasitismo à completa simbiose. Os

residentes de uma cidade que não estão diretamente envolvidos na produção dos alimentos

vão buscar no campo os meios de sua subsistência. Assim, M. I. Finley defende a ideia de que

67

STARR, op. Cit., p. 21-22. 68

FINLEY, M. A economia Antiga. São Paulo: Afrontamento, 1986, p. 19. 69

WEBER, M. História Agrária romana. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 40.

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35

as cidades são centros consumidores. Entretanto, estendendo a perspectiva de M. Weber, o

autor questiona se as cidades antigas eram essencialmente consumidoras. Em outras palavras,

como a cidade pagava ao campo pelos produtos que consumia? Para M. I. Finley não existe

uma resposta segura a esta pergunta, já que cada cidade ou região possuía suas

especificidades. Contudo, em linhas gerais, a capacidade de pagar pelos escravos, alimentação

e outros artigos repousava, na opinião do autor, sobre quatro variáveis, a saber: a quantidade

de produção agrícola local, a presença ou ausência de recursos minerais ou a produção de

vinhos ou de plantas produtoras de óleos, as exportações de comércio e turismo e o

rendimento da propriedade e domínio de terras, rendas, impostos e doações.70

Na contramão destas concepções teóricas observamos o paradigma defendido por M.

Rostovtzeff. Para o autor, as cidades antigas não eram apenas exploradoras das riquezas

produzidas pelo campo. Eram, além de tudo, centros de produção manufatureira voltados para

a obtenção de lucro e para a ampliação do consumo.71

Para Jean Andreau esta análise

privilegia concepções marxistas ao interpretar a economia antiga como uma economia de

mercado e o comércio e suas transformações em função das noções de concorrência e leis de

oferta e procura.72

Karl Polany refuta esta concepção ao afirmar que a economia de mercado,

como uma estrutura institucional, esteve presente, mesmo que de forma parcial, apenas em

nossa época, rejeitando sua aplicabilidade ao mundo antigo.73

(POLANY, 1980: 55).

Contudo, a análise de M. Rostovtzeff mereceu o destaque daqueles que discordam dos

modelos de M. I. Finley por sua ênfase na Arqueologia e o estudo da cultura material das

cidades antigas.74

Os seguidores de M. Rostovtzeff foram denominados “modernistas”, enquanto os

defensores dos postulados inerentes à cidade “consumidora” receberam a designação de

“primitivistas”.

Para Karl Polany, no mundo antigo, as questões econômicas atraíam menos a atenção

dos homens que a maioria dos outros setores da vida em sociedade. Entre os antigos não

existiu nenhum vocábulo que designasse o conceito de “econômico”. De acordo com o autor,

a razão para esta falta de conceito era a dificuldade que o homem da Antiguidade possuía para

70

FINLEY, op. Cit., p. 171-174. 71

ROSTOVTZEFF, M. Historia Social y Económica Del Imperio Romano. Tomo II. Madrid: Espasa-Calpe,

1972, p. 178-222. 72

ANDREAU, J. L’économie antique. In: Annales: histoire, sciences sociales. 50 Année – N. 5. Paris: Armand

Colin, 1995, p. 950. 73

POLANY, K. A grande transformação. – As origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 55. 74

FUNARI, P. P.; GARRAFFONI, R. S. Economia romana no início do principado. In: MENDES, N. M.;

SILVA, G. V. da. (Orgs.) Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural.

Vitória: Mauad, 2002, p. 53.

Page 36: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

36

identificar o processo econômico em uma situação em que este estava integrado com outras

instituições sociais extraeconômicas. As causas deste fenômeno são passíveis de explicação

através do uso de determinados conceitos75

defendidos pela Antropologia Econômica, dentre

os quais destacamos o cenário físico da vida do homem, em que seu habitat não possui

nenhuma significação econômica, já que suas relações sociais são complexas e as questões de

economia encontram-se confundidas com as ações cotidianas. Por outro lado, em

comunidades organizadas sobre a base do parentesco, muito dificilmente surgem transações

econômicas. Isso significa que as trocas eram atos públicos realizados de acordo com o lugar

social do indivíduo e, por maiores que fossem estas transações, o mais importante era o fato

de que marcavam a posição dos indivíduos evolvidos em um determinado contexto social.

Contudo, o autor adverte que, o que não existiu na Antiguidade foi o conceito de economia e

não a própria economia.76

Ainda de acordo com M. I. Finley, a ausência de um conceito de economia entre os

antigos estaria relacionada ao fato de que esta sociedade nunca possuiu um sistema

econômico que fosse um grande conglomerado de mercados interdependentes. Para o autor,

não havia ciclos de negócios na Antiguidade e nenhuma cidade cujo desenvolvimento possa

ser atribuído ao estabelecimento de uma manufatura. E por esta razão nenhum modelo de

investimento moderno pode ser aplicado às maneiras de conduzir a vida econômica do

homem na Antiguidade.77

Outra questão a se destacar, a da autossuficiência, não era comum a todas as cidades, o

que as obrigava a conseguir, no exterior, os produtos necessários à manutenção de sua

sobrevivência.78

E esta suposição predomina entre os autores que analisaram a estrutura

econômica cartaginesa.

Iniciaremos o debate acerca dos aspectos econômicos de Cartago a partir da

Historiografia Francesa. Para os pesquisadores Andre Aymard e Jeaninne Ayboyer o

comércio era o principal motor da economia cartaginesa, já que estes não desenvolveram uma

75

POLANY, op. Cit., p. 118-124. Karl Polany destaca outras hipóteses para a ausência de um conceito de

economia entre os antigos, a saber: a ausência de quantitatividade como um fator desagregador da economia; a

inaplicabilidade de um conceito de propriedade como o direito de dispor de determinados objetos; em muitas

sociedades antigas a riqueza não está constituída por bens, mas sim por serviços prestados por escravos, criados

e trabalhadores livres; na Filosofia de Aristóteles os três prêmios da fortuna eram a honra e o prestígio, a

segurança de vida e a integridade física e a riqueza, esta última relacionada à felicidade da propriedade que

permitia ao indivíduo desfrutar do lazer, sinônimo de liberdade; a autossuficiência do grupo humano, postulado

da sobrevivência, está assegurada quando é possível fisicamente o abastecimento daquilo que é necessário para a

subsistência. 76

Ibid., p. 114-121. 77

FINLEY, op. Cit., p. 26-27. 78

Ibid., p. 174.

Page 37: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

37

manufatura consistente que pudesse atender a todas as suas necessidades e nem tampouco

eram reconhecidos pela qualidade de suas mercadorias. Quanto aos objetos manufaturados, os

cartagineses não chegaram a criar um estilo próprio. A produção de artigos de luxo acabou

por não satisfazer às exigências da aristocracia local e não deu margem à exportação. Por

outro lado, os cartagineses produziram muitos objetos de uso cotidiano e mesmo essa

manufatura desenvolveu-se tardiamente. Durante muito tempo esses produtos foram

importados da Grécia e até mesmo do Egito. Os cartagineses dedicaram-se ainda a exportar

seus produtos para aquelas cidades do Mediterrâneo Ocidental onde exercia a sua hegemonia,

e vestígios arqueológicos apontam para a presença de cerâmica, joias e outros produtos nestas

localidades. Após ter importado vinho da Grécia e da Sicília, pôde, nos últimos séculos de sua

existência, vender seu azeite e seus frutos para as ilhas da península itálica. Por outro lado, o

frete foi o essencial de sua atividade comercial: os cartagineses, experientes navegadores,

desde muito tempo colocavam sua frota à disposição daquelas cidades que oferecessem

maiores recursos econômicos. Em suma, foi do comércio e não da produção manufatureira,

que Cartago conquistou sua riqueza. A cidade foi um grande entreposto de redistribuição de

mercadorias: centralizava as matérias-primas ocidentais a fim de exportá-las ao Oriente, além

de distribuir os produtos orientais por diversas cidades do Mediterrâneo Ocidental.79

Fernand

Braudel complementa, afirmando que os portos fenícios, lotados de navios, efetuavam vastas

trocas, desde o Mar Vermelho e o Oceano Índico até o Atlântico, além do estreito de

Gibraltar. Todo o Mediterrâneo se inclui neste sistema de longo alcance.80

De acordo com Pierre Grimal, Cartago se desenvolveu rapidamente, adquirindo grande

prosperidade. Ao herdar a tradição comercial fenícia, os cartagineses mantiveram relações

comerciais com os mercadores sírios, além de possuírem navios que garantiam a comunicação

marítima entre sua cidade e o Oriente. Os cartagineses trocavam ainda suas mercadorias,

principalmente joias, mobiliários e tecidos, com as populações do interior do continente

africano, que ofereciam elefantes, madeira, peles e cavalos. Em pouco tempo, Cartago já

havia controlado todo o comércio naquela região. Ao descobrirem novas rotas comerciais, os

cartagineses buscavam protegê-las das investidas estrangeiras, seja mantendo-as em sigilo,

seja atacando embarcações não autorizadas a trafegar nestas regiões. Aos poucos, toda a

região do Mediterrâneo Ocidental foi se tornando área sob o controle cartaginês, repleta de

feitorias e estaleiros para o reparo de suas naus. No interior do continente africano os

79

AYMARD; AYBOYER, op. Cit., p. 63-69. 80

BRAUDEL, F. Memórias do Mediterrâneo: pré-história e Antiguidade. Rio de Janeiro: Multinova, 2001, p.

212.

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38

cartagineses exploraram os territórios com o estabelecimento de propriedades onde

cultivavam trigo, oliveiras e videiras. Os cartagineses eram reconhecidos pelo

desenvolvimento de suas técnicas agrícolas entre os antigos.81

Mapa 1: Rotas comerciais fenícias no Mediterrâneo.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fen%C3%ADcia – Acesso em 30-04-2013

As características da economia cartaginesa tiveram consequências em suas estruturas

sociais. De acordo com Pierre Grimal, as riquezas de Cartago se concentravam nas mãos dos

grandes proprietários e o trabalho na terra era deixado a cargo de uma mão de obra escrava

numerosa. O crescimento da cidade e sua riqueza levaram os cartagineses a ditar as regras

comerciais no Mediterrâneo Ocidental. Nesse percurso, Cartago estabeleceu alianças com os

Etruscos, por meio de tratados, contra os gregos de Marselha, impedindo-os de realizar trocas

comerciais com as tribos gaulesas da Península Ibérica.82

A arqueóloga Véronique Krings afirma que o século VI a. C. ocupa um lugar à parte

na história de Cartago por se tratar de um século de problemas e ao mesmo tempo de transição

que coincide com o domínio cartaginês sobre as colônias fenícias do Mediterrâneo Ocidental.

81

GRIMAL, op. Cit., p. 59-60. 82

Ibid., p. 61.

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39

Ao se firmar no cenário ocidental os cartagineses substituíram os fenícios, de maneira

contundente, com destaque para o seu antagonismo comercial, político e em certa medida

cultural com o mundo grego.83

André Aymard e Jeannine Ayboyer destacam que havia em Cartago um apoio intenso

das instituições governamentais à expansão comercial que pode ser constatado pelo uso

constante de artifícios diplomáticos nas relações com as civilidades vizinhas.84

O historiador Claude Nicolet revela que as representações mais comuns, construídas

pela historiografia sobre Cartago a descrevem como um poder essencialmente comercial, ao

passo que negligenciam sua agricultura e seu exército. A hegemonia cartaginesa envolve, de

fato, três regiões estratégicas: uma na África, que a cidade conservou até 201 a. C., a segunda,

nas ilhas da Sicília, Córsega e Sardenha, que serão perdidas para os romanos entre 241 e 234

a. C., e a terceira, localizada na Península Ibérica, cujo controle irá exercer até o fim da

Segunda Guerra Púnica. Para o autor, a agricultura cartaginesa, que em solo africano produzia

azeite, vinho e variados tipos de frutos, juntamente com uma relativa produção manufatureira

e artesanal, poderia nos levar a pensar que a exportação era a principal característica de sua

economia. Entretanto, o autor adverte que, pelo contrário, o comércio púnico era bem

particular: tratava-se, na verdade de um comércio de intermediários e de entrepostos de

transporte, principalmente. O controle da bacia ocidental do Mediterrâneo e dos numerosos

centros fenícios ao longo desta região dinamizava as trocas comerciais cartaginesas,

fortalecendo sua economia.85

A temática da economia púnica também pode ser verificada na Historiografia Anglo-

Americana. Os dois primeiros séculos da história de Cartago permanecem envoltos em

mistérios. Quase nada se sabe acerca deste período. Alfred Church acredita que foi neste

período os cartagineses estabeleceram as primeiras relações com seus vizinhos na África, na

Sicília e na Península Ibérica, seja por intermédio de alianças, seja por meio de disputas pelo

controle de rotas comerciais.86

Donald Harden revela que a partir de sua fundação, Cartago

teria se desenvolvido rapidamente, tornando-se a cidade mais importante do Mediterrâneo em

consequência do controle que exercia sobre as principais rotas comerciais da região e também

por possuir a mais poderosa frota naval do período.87

83

KRINGS, V. La civilization Phénicienne et Punique. Leiden: Brill, 1994, p. 9. 84

AYMARD; AYBOYER, op. Cit., p. 63. 85

NICOLET, C. (Org.) Rome et la conquête du monde Méditerranéen. Paris : Press Univ. De France, 1995,

p. 594-595. 86

CHURCH, op. Cit., p. 12. 87

HARDEN, op. Cit., p. 64-65.

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40

O pesquisador Dexter Hoyos destaca que por volta da segunda metade do século VI a.

C. os cartagineses foram assegurando o domínio sobre a costa africana.88

De acordo com A. V. Mishulin, até o século III a. C. Cartago era a cidade-estado mais

rica do Mediterrâneo. Os comerciantes cartagineses possuíam colônias em toda a costa

africana, na Sicília, na Córsega, na Sardenha e na Península Ibérica e suas viagens

exploratórias os haviam levado até o Oceano Atlântico. Para garantir o controle de suas rotas

comerciais, os cartagineses empregavam uma numerosa frota, bem como um grande exército

de mercenários.89

Donald Harden adverte, no entanto, que Cartago não exerceu um poder de império90

no sentido usual do termo. Os cartagineses subjugaram as demais cidades da Fenícia por sua

força comercial e guerreira, mas nunca trataram essas regiões como suas possessões e nem

tampouco atribuíram aos cidadãos desta região o status de cartagineses. Desta forma, o autor

lembra que as cidades da Sicília e da Península Ibérica cunhavam suas próprias moedas. Além

disso, todas as cidades sob a sua área de influência possuíam seu próprio exército, mas

recorriam a Cartago sempre que se viam ameaçadas por ataques estrangeiros. No início de sua

história, Cartago possuía apenas um pequeno território, que se alargou gradualmente,

atingindo quase a totalidade da região norte da África. A expansão territorial não transformou

Cartago em um império, mas concedeu-lhe a administração direta de uma grande extensão de

terras férteis que forneciam gêneros alimentícios que afastavam qualquer risco de

desabastecimento. Em linhas gerais, os cartagineses buscavam cultivar cereais, explorar as

minas de chumbo e prata, e manter os comerciantes afastados de suas possessões nas ilhas da

Sicília, da Córsega e da Sardenha, regiões estratégicas para o controle das rotas comerciais no

Mediterrâneo Ocidental. Para Donald Harden, o poderio cartaginês nestas regiões era

sustentado por uma influência moral, não havendo destacamentos militares para impor sua

autoridade direta. Desta forma, por não haver uma coesão em seus domínios, os cartagineses

assistiram à desintegração gradual do seu império no momento que iniciaram os conflitos

contra os romanos.91

88

HOYOS, op. Cit., p. 40. 89

MISHULIN, A. V. Historia de La Antigüedad. Buenos Aires: Futuro, 1960, p. 182. 90

GUARINELLO, N. L. Imperialismo Greco-romano. Rio de Janeiro: Atica, 1988, p. 14. Os termos império e

imperialismo, embora próximos, apresentam realidades distintas. Imperialismo é uma ação política ou

econômica de dominação de uma cidade-estado sobre outras. Império é um Estado, geralmente resultante de uma

ação imperialista, mas que não se confunde com esta. No mundo antigo, diferentemente do mundo

contemporâneo, podemos acompanhar a transformação de uma ação imperialista em um grande império. 91

HARDEN, op. Cit., 74-76.

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41

Mapa 2: Regiões sob o domínio cartaginês até as guerras púnicas.

Fonte: http://www.historiadomundo.com.br/cartagines/mapa-do-imperio-cartagines.htm – Acesso em

30-04-2013

Para o historiador Michael Grant, foi a busca por metais preciosos que levou os

cartagineses a conquistar as ilhas do Mediterrâneo Ocidental. A região da Península Ibérica

era reconhecida por possuir grande quantidade de minas, mas navegar até aquela região sem

escalas intermediárias significava submeter-se aos riscos de um litoral africano hostil por

conta de suas fortes correntes marítimas. Assim, a Sicília ocupava uma posição estratégica

privilegiada, onde Cartago assumiu a liderança dos colonos fenícios locais, construindo portos

e explorando as terras férteis do interior. Na Sardenha, os cartagineses construíram quatro

portos, o que também lhes permitiu assumir o controle e desenvolver colônias ao sul da

Península Ibérica. Além disso, a conquista desta ilha ofereceu aos cartagineses o acesso a uma

segunda fonte de metais preciosos, ou seja, as minas de prata da Etrúria.92

Para o historiador Ernle Bradford, os cartagineses seguiram a tradição herdada dos

fenícios, se dedicando principalmente à atividade mercantil e seu poderio econômico os

tornava suficientemente fortes para manter o controle das tribos líbias e das ilhas da Córsega e

Sardenha e de uma pequena extensão territorial na Sicília93

.

92

GRANT, op. Cit., p. 92. 93

BRADFORD, E. Aníbal: um desafio aos romanos. São Paulo: Ars Poética, 1992, p. 22-26.

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42

Em seu processo de expansão os cartagineses também se viram em conflitos contra os

gregos, motivados principalmente pelo controle das rotas comerciais. Para Ernle Bradford, o

resultado deste embate foi uma espécie de empate combinado. Após quase dois séculos de

combate, os gregos passaram a controlar a região oriental da Sicília, enquanto os cartagineses

ocuparam a Sardenha e toda a área costeira localizada na parte norte do continente africano. A

partir deste momento surge uma nova força neste jogo de poder. O recém-chegado era Roma,

que acabara de expulsar os Etruscos, constituindo sua República. O autor afirma ainda que

Cartago havia firmado dois tratados com Roma nos séculos VI e IV a. C., ambos destinados a

assegurar aos romanos que eles, os cartagineses, não tinham interesse sobre a Península

Itálica, enquanto os romanos concordavam com a presença cartaginesa na Sicília.94

Os

tratados com os romanos foram ratificados entre os anos de 509, 309 e 279 a. C. O historiador

grego Políbios também descreveu o conteúdo destes documentos.

Tratado ratificado em 509 a. C.:

“Quem vier comerciar não deverá concluir negócio algum sem a presença

de uma arauto ou escrivão, e a efetivação de qualquer negócio feito na presença

destes será garantida ao vendedor pelo estado, se a transação ocorrer na Líbia ou em

Sardó.”95

Tratado ratificado em 309 a. C.:

“Nenhum Romano poderá comerciar ou fundar uma cidade em Sardó ou na

Líbia, nem permanecer em uma localidade sardônia ou líbia por um período mais

longo que o estritamente necessário para reabastecer ou reparar sua nau.”96

Tratado ratificado em 279 a. C.:

“Para possibilitar a qualquer das duas partes a prestação de assistência à

outra no lugar onde esta se encontre em guerra, seja qual for a parte que peça ajuda,

os cartagineses fornecerão as naus para o transporte das tropas, tanto na ida quanto

na volta, mas cada parte deverá pagar o soldo de seus homens.”97

A ratificação destes tratados envolve contextos bastante particulares. Os dois

primeiros acordos, firmados em 509 e 309 a. C. destacam as regras estabelecidas para a

realização de trocas comerciais. Vejamos inicialmente como a Historiografia Francesa

analisou estes contextos. De acordo com Pierre Grimal, em meados do século V a. C.,

segundo a tradição, Roma declarou-se independente da realeza etrusca. Ao mesmo tempo

94

BRADFORD, op. cit., p. 24. 95

História, III, 25 96

Ibid. III, 25 97

Ibid., III, 25

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43

observa-se uma acentuada retração do poder etrusco, que os levaria a recolherem-se outra vez

na Etrúria, perdendo parte de seus domínios na Península Itálica. E, juntamente com os

etruscos, Roma também perde parte de sua hegemonia e talvez até de seu poder na região. A

razão para este fenômeno seria, entre outras, a de que a Liga Latina, até então controlada por

uma forte e etrusquizada Roma, retoma sua independência. Neste período, os romanos

alcançam algumas vitórias contra as cidades etruscas, mas a cidade permanecia em constante

estado de sítio. Os romanos assistiram à elaboração de alianças entre diversas civilidades do

Lácio e a paz era sempre precária. Além disso, no plano interno, é possível constatar uma

sucessão de embates entre os principais segmentos sociais de Roma: patrícios e plebeus. A

oposição entre estes grupos pôs em risco a própria sobrevivência da cidade-estado.98

Os romanos herdaram uma tradição de boas relações entre etruscos e cartagineses,

onde aos últimos interessava, ao nosso entender, manter livre o acesso às ilhas da Córsega e

da Sardenha. O contexto apresentado em 309 a. C. aponta algumas mudanças no cenário

político do Mediterrâneo. O século IV a. C. marca o início do contundente avanço de Roma

ao longo da península itálica, em direção ao Mediterrâneo.

Neste período, Roma era a maior potência de toda a região peninsular. Estava em

contato com as colônias gregas ao sul e aliviava a pressão etrusca sobre Marselha ao norte.99

Este fato certamente não seria ignorado pela maior potência de todo o Ocidente nesta ocasião.

Os cartagineses, talvez impressionados com o movimento expansionista romano, buscaram

métodos para proteger suas rotas de comércio. E parte destes métodos é o que podemos

observar na já citada mudança de atitude dos fenícios em relação aos romanos, no que diz

respeito às transações comerciais na região da Sardenha e da Líbia.

Assim, observando o surgimento de outra potência que pudesse rivalizar consigo, os

cartagineses se anteciparam, com o uso da astúcia, através do instrumento diplomático,

interditando aos romanos o acesso às suas rotas comerciais. Para o historiador Pierre Grimal é

provável ainda que, além de proteger seus domínios, os cartagineses tivessem a intenção de

provocar obstáculos ao desenvolvimento comercial de Roma. E, muito embora os romanos

não tenham criado instantaneamente uma frota comercial, neste período já havia se tornado

uma potência costeira, assegurando o patrulhamento do litoral sob seu controle na Península

itálica.100

98

GRIMAL, P. A civilização romana. Lisboa: Edições 70, 1984, p. 33-34. 99

Ibid., p. 38. 100

Ibid., p. 38.

Page 44: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

44

Além disso, podemos notar a localização estratégica das regiões citadas na

documentação. De acordo com S. Giammellaro, a Sardenha, bem como a Líbia, a Sicília e até

mesmo a Península Ibérica eram regiões voltadas para a produção agrícola de Cartago durante

o período que compreende desde o século IV a. C. até a conquista romana, ou seja, durante

todo o período em que a cidade-estado controlou a navegação mediterrânica. A Sardenha,

bem como as demais regiões citadas, também era um estratégico polo de produção cerealífera,

geralmente controlada por regiões periféricas que dispunham de recursos próprios e que

funcionavam à margem dos centros principais. Além disso, a região servia, muito

provavelmente, de porto de reabastecimento das naus que partiam ou retornavam da Ibéria,

área onde se encontravam Cardos, cujo consumo era muito apreciado pelas aristocracias

ocidentais e por isso a maior parte de sua produção era destinada à exportação. Além disso, a

Ibéria era grande produtora de azeite e principal centro de pesca controlado por Cartago e, ao

lado da Sardenha, da Sicília e da Líbia, explorava salinas para a salga dos peixes. Na Líbia

observamos a presença de hortas e jardins exuberantes, e na região do Promontório Belo,

ainda na área norte da África, citam-se um grande número de produtos hortícolas, como

couve, alcachofra e alho, além dos figos. As oliveiras eram bastante comuns nesta região e

teriam sido introduzidas pelos cartagineses, assim como a produção do azeite.101

Estas

regiões, como vimos, eram centros produtores de alimentos utilizados para consumo e para

exportação. É muito provável que Cartago pretendesse proteger estas localidades contra o

crescente poderio romano.

A Historiografia Anglo-Americana também analisou os contextos dos acordos

ratificados entre Roma e Cartago. O tratado de aliança militar fora ratificado em 279 a. C. por

ocasião da invasão do general epirota Pirro à Península Itálica, atendendo a um pedido de

socorro da cidade-estado de Tarento, na Magna Grécia102

. O impasse gerado pelo desenrolar

do conflito levaria o general epirota a pedir a paz aos romanos. Entretanto, um evento de

ordem política influenciou a decisão de Roma: uma frota cartaginesa surgiu na foz do rio

Tibre e os seu general fora propor um tratado de aliança contra Pirro. Aos cartagineses

interessava conquistar as cidades da Sicília que ainda não estavam sob seu domínio e para isso

era necessário reter, na Itália, as tropas do general epirota. De acordo com Carl Grimberg, no

contexto da conclusão do tratado entre romanos e cartagineses, os sicilianos já haviam

101

GIAMMELLARO, A. S. Os fenícios e os cartagineses. In: FLANDRIN, J-L.; MONTANARI, M. (Orgs.).

História da Alimentação – 1 – Dos primórdios à Idade Média. Lisboa: Terramar, 2000, p. 81-86. 102

GRIMAL, op. cit., 1984, p. 39. O Pretexto para o embate fora o fato de os romanos terem enviado uma frota

para a região litorânea da cidade. Este ato contrariava as cláusulas de um tratado ratificado entre tarentinos e

romanos por volta de 303 a. C. Na verdade os tarentinos sentiam-se ameaçados pelo avanço romano, que

fundava colônias nas proximidades de sua costa.

Page 45: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

45

solicitado ajuda a Pirro. As escolhas do general eram claras: se os cartagineses dominassem a

Sicília sua posição na Itália seria insustentável frente à aliança entre estes e os romanos, e por

outro lado, se ele conquistasse a ilha, ficaria numa posição extremamente vantajosa contra os

romanos.103

O epirota escolheu a segunda alternativa e, durante três anos, combateu e liderou

os sicilianos. Contudo, os gregos da ilha, insatisfeitos com seu governo rigoroso, revoltaram-

se e o expulsaram. Pirro retornou para Tarento, onde foi derrotado definitivamente.

Para Carl Grimberg a vitória dos romanos sobre Pirro os tornou hegemônicos em toda

a Itália, surgindo assim uma nova peça no jogo político mediterrânico naquele período da

história.104

Estes eventos concorreriam, em breve, para o embate entre os antigos aliados:

romanos e cartagineses lutariam até a morte pelo domínio do Mediterrâneo.

De acordo com Michael Grant a guerra contra Pirro intensificou os contatos romanos

com Cartago, a maior potência do Ocidente até então. A partir deste momento, as questões

que ameaçavam a coexistência pacífica das duas cidades-estados multiplicaram-se

rapidamente.105

Robert Palmer acrescenta que é possível perceber a intenção dos tratados púnico-

romanos, revelando o menosprezo romano e sua falta de interesse na atividade comercial,

ressaltando o formato Helênico e Semita dos tratados cartagineses como pactos feitos

indiscriminadamente, por conta dos interesses dos comerciantes diante de uma boa

oportunidade de negócio.106

Quando os romanos assinaram tratados com Cartago não suspeitavam que este ato se

tornasse a causa das três guerras que colocaria em risco a própria sobrevivência de sua cidade,

mas que ao mesmo tempo também seria a origem da sua maior riqueza. O ano de 264 a. C.

marcou o início do embate entre as cidades, que ficou conhecido como “Guerras Púnicas”.

O historiador grego Políbios narrou os motivos que levaram romanos e cartagineses a

entrarem em conflito naquela que ficou conhecida como primeira guerra púnica:

“Os romanos estavam, portanto extremamente apreensivos e receosos de que, se

os cartagineses se tornassem igualmente senhores da Sicília, pudessem causar

maiores dificuldades e ser mais perigosos aos vizinhos, hostilizando-os por todos os

lados e ameaçando todas as regiões da Itália. [...] O povo, porém, embora exausto

por causa das guerras recentes, e necessitando de qualquer maneira de um estímulo,

ouviu prontamente os comandantes militares, que além de alegarem as razões

mencionadas acima para justificar a conveniência da guerra do ponto de vista do

103

GRIMBERG, C. História Universal. 4- Das Origens de Roma à Formação do Império. Lisboa: Europa-

América, 1969, p. 74. 104

Ibid., p. 76. 105

GRANT, op. cit., p. 90. 106

PALMER, R. Rome and Carthage at peace. New York: F. Steiner, 1997, p. 25.

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46

interesse do Estado, aludiram também aos grandes benefícios em termos de captura

de despojos de guerra, dos quais cada um e todos tirariam proveito.”107

Ao descrever a situação de ambas as cidades, Políbios revela que havia certo equilíbrio de

forças no início do embate:

"[...] naquela época os dois povos ainda estavam moralmente impolutos, eram

moderadamente afortunados e suas forças equilibravam-se, sendo maiores, portanto

as possibilidades de fazer uma apreciação melhor das qualidades peculiares a cada

um deles mediante a comparação de sua conduta nessa guerra do que em qualquer

das outras."108

Veremos a seguir, como a Historiografia Francesa abordou a questão da Primeira

Guerra Púnica. A arqueóloga Véronique Krings afirma que a disputa pelo controle do

Mediterrâneo ocidental é, em geral, a primeira das causas das Guerras Púnicas, ainda que as

duas potências tivessem mantido relações de cooperação e reciprocidade durante vários

séculos por meio de tratados. A causa da primeira guerra foi a ocupação de Messina pelos

mamertinos, um grupo social localizado ao sul da Península itálica. Ameaçados, os habitantes

de Messina receberam a ajuda dos cartagineses e depois, dos romanos. Em 264 a. C.

desembarcou na Sicília uma armada romana, que acabou aprisionando os cartagineses que lá

estavam. Este primeiro conflito terminou com a derrota de Cartago e a perda de parte do seu

território no Mediterrâneo, como as ilhas da Córsega e da Sardenha e as suas colônias na

Sicília.109

107

História, I – 10,11 108

Ibid., I – 13 109

KRINGS, op. cit., p. 244-245

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47

Mapa 3: Mapa da região da Sicília no contexto da Primeira Guerra Púnica.

Fonte: http://www. xenohistorian.faithweb.com/europe/eu03a.html- Acesso em 30-04-2013.

De acordo com Serge Lancel foi a primeira vez na história do mundo mediterrânico

que um embate decisivo opôs duas cidades-estados igualmente prósperas: Roma, em posição

central naquela região, e Cartago, localizada marginalmente no norte da África, mas com a

vantagem de possuir colônias em ambas as margens da bacia mediterrânea.110

110

LANCEL, op. cit., p. 379

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48

Mapa 4: Mapa com as alterações territoriais cartaginesas ao longo das Guerras Púnicas e a localização de

Messina e da Numídia. Fonte: http://usuarios.multimania.es – Acesso em 07-10-12

De acordo com Pierre Grimal, o exército romano alcançou rápidas vitórias na Sicília,

obtendo assim uma aliança com o tirano de Siracusa, Hierão II. Além disso, os romanos já

haviam derrotado os cartagineses na batalha naval de Mylae, em 260 a. C. Incentivados por

estes sucessos iniciais, os romanos decidiram transferir para a África o palco das batalhas

contra Cartago. Entretanto, após um começo favorável, os romanos foram derrotados naquela

região, sendo obrigados a retonar à Sicília. De acordo com o autor, essa derrota prolongou a

guerra e uma série de derrotas romanas devolveu aos cartagineses a supremacia no mar. A

partir desse momento os conflitos se concentraram na região de Palermo, onde o exército

cartaginês era liderado pelo general Amílcar Barca. Com a reconquista do domínio sobre o

mar, os cartagineses passaram a dirigir pequenas campanhas ao longo da costa da Península

Itálica. A situação do conflito parecia indefinida até que os romanos reorganizaram sua frota,

obtendo uma vitória decisiva sobre os cartagineses na batalha de Égatas, em 241 a. C.

Esgotada economicamente por uma guerra que já durava há vinte e três anos, Cartago não

insistiu e pediu a paz. Entre as condições estipuladas pelos romanos para o fim do conflito

estavam a retirada dos cartagineses da Sicília e o pagamento de uma indenização de guerra.

Page 49: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

49

Os romanos rapidamente acrescentaram outra exigência, a saber: os cartagineses deveriam

abandonar suas posições nas ilhas da Córsega e na Sardenha111

.

O pesquisador Marcel Le Glay acrescenta que após serem obrigados a pagar a

indenização de guerra, os cartagineses viram-se sem recursos para pagar seus soldados

mercenários, que se revoltaram, colocando em risco a sobrevivência da cidade. Aproveitando-

se da situação, os romanos exigiram que os cartagineses abandonassem as ilhas da Córsega e

da Sardenha – o que fizeram prontamente.112

O tema da primeira guerra púnica também perpassou a Historiografia Anglo-

Americana. O historiador Michael Grant questiona sobre quem seria o responsável por este

conflito. Segundo ele, ambas as potências tiveram sua responsabilidade para o

desencadeamento da guerra. Os romanos haviam estendido seus territórios a tal ponto que

qualquer suposta ameaça, dirigida contra eles ou seus aliados, poderia servir de pretexto para

a guerra. Por outro lado, havia em Cartago uma oligarquia que não hesitava diante da

possibilidade de conquistar novos entrepostos comerciais. Qualquer que tenha sido o

responsável é certo que Roma e Cartago, por suas diferenças culturais irreconciliáveis, não

poderiam resolver suas divergências por meios diplomáticos.113

Carl Grimberg lembra que o embate entre Roma e Cartago pôs em disputa elementos

muitos mais relevantes que o estreito de Messina. Para o autor, o Ocidente observava o

choque entre duas grandes potências e que mais cedo ou mais tarde, uma delas deveria se

tornar hegemônica em toda a bacia do Mediterrâneo Ocidental.114

Para Chester G. Starr, um dos principais eventos da primeira guerra púnica foi a

revolta dos mercenários em Cartago. Insatisfeitos com a falta do pagamento prometido, os

soldados declararam guerra contra os cartagineses, recebendo apoio de parte da população que

habitava as colônias do norte da África.115

O historiador Ernle Bradford assinala que a partir do final da primeira guerra púnica

teve início outro grande conflito, que pôs em risco a sobrevivência de Cartago: a guerra

inexpiável, ou a guerra dos mercenários. Após assinar os tratados de paz com os romanos,

Amílcar Barca, general que havia liderado as tropas cartaginesas na Sicília, retornou para

Cartago, ao lado de seus soldados mercenários – algo em torno de vinte mil, que aguardavam

por seu pagamento. As despesas com a guerra e a indenização a que fora obrigada a pagar

111

GRIMAL, op. cit., 1984, p. 40. 112

LE GLAY, M.; LE BOHEC, Y.; VOISIN, J.-L. Histoire romaine. Paris: PUF, 1991, p. 84. 113

GRANT, op. cit., p. 93. 114

GRIMBERG, op. cit., p. 80. 115

STARR, op. cit., p. 24.

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50

esvaziaram o erário público cartaginês. A demora em solucionar o problema do pagamento

dos mercenários suscitou a revolta. Duas tentativas de conter a revolta malograram e apenas

após três anos de combates, os cartagineses conseguiram finalmente derrotar os

mercenários.116

Michael Grant acrescenta que os romanos se aproveitaram da rebelião dos mercenários

para anexar a Córsega e a Sardenha, elevando ainda mais a indenização de guerra imposta aos

cartagineses. Para o autor, não havia justificativas convincentes para esta postura adotada

pelos romanos. Nem mesmo as questões econômicas estariam implicadas nessa ação, uma vez

que, embora o cereal da Sardenha fosse usado, não houve qualquer esforço para desenvolver

seus recursos minerais durante muitos séculos. Os romanos agiram, portanto, aproveitando-se

da oportunidade para proteger-se contra um possível reaparecimento do sentimento

beligerante do inimigo que acabara de derrotar. Esta medida teve pouco alcance e mais tarde

provocou a renovação de um espírito de revanchismo entre os cartagineses.117

Alguns anos mais tarde, Cartago e Roma voltariam a entrar em conflito. Desta vez a

guerra se desenvolveria em território romano. Políbios descreveu as causas deste segundo

embate:

[...] devemos ver como sua causa primeira a indignação de Amílcar,

cognominado Barca, o verdadeiro pai de Aníbal. Com o espírito em nada abatido

pela guerra da Sicília, sentindo que havia mantido o exército sob o seu comando em

Êrix combativo e resoluto até o fim, e que havia concordado com a paz premido

pelas circunstâncias após a derrota dos cartagineses na batalha naval, ele

permaneceu decidido e ficou na expectativa de uma oportunidade para atacar.118

O historiador romano Tito Lívio também teceu digressões acerca das causas da

segunda guerra púnica:

Nunca antes estados reuniram-se dotados de recursos mais amplos, nem a sua

própria força e poder nunca foram tão grandes. Eles não eram estranhos em relação

aos modos de combate uns dos outros, porque a Primeira Guerra Púnica os fizera

compreender. E assim, variáveis foram as fortunas da guerra e incertos eram os seus

resultados e aqueles que finalmente venceram foram os que estiveram mais perto da

ruína. A animosidade, também, com a qual eles lutaram era quase maior do que a

sua força: os romanos ficaram furiosos porque o vencido deve reconhecer realmente

a espada dos seus conquistadores; e os fenícios, porque acreditavam que o

conquistador os havia tratado com arrogância dominadora e com ganância. [...] A

perda da Sicília e da Sardenha era uma tortura contínua ao espírito orgulhoso de

Amílcar. Ele afirmou que tinham entregado a Sicília em desespero prematuro, e que

os romanos haviam indevidamente se apropriado da Sardenha, além de uma

indenização imposta sobre eles durante seus distúrbios na África.119

116

BRADFORD, op. cit., p. 26-27. 117

GRANT, op. cit., p. 98. 118

História, III – 9 119

História de Roma, 21 – 1

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51

A historiografia francesa analisou os aspectos da Segunda Guerra Púnica. Para Pierre

Grimal, a guerra de Aníbal, como o conflito ficou conhecido entre os romanos, não foi grave

apenas em virtude da ameaça à existência de Roma, mas porque a própria cidade teve seu

pensamento e sua civilidade modificados após este embate. Para o autor, os romanos

iniciaram as hostilidades contra os cartagineses com o objetivo de proteger os interesses do

helenismo120

ocidental. Entretanto, terminou como inimiga dos reinos helênicos do Oriente.121

Os cartagineses, por sua vez, buscavam reorganizar sua economia após a perda de suas

ilhas estratégicas na bacia do Mediterrâneo Ocidental. De acordo com Claude Nicolet a busca

pela restauração do seu império levou os cartagineses, sob a liderança de Amílcar Barca, a

intensificar a conquista do território da península Ibérica a partir da cidade de Gades, em 237

a. C.122

O historiado grego Políbios descreveu os eventos ocorridos na Ibéria após a chegada

da aristocracia guerreira cartaginesa liderada pela família dos Bárcidas:

“Logo após o restabelecimento da situação anterior na Líbia, os cartagineses

despacharam Amílcar para o território da Ibéria, confiando-lhe forças adequadas à

missão. Levando consigo esse exército e seu filho Aníbal, cuja idade na época era de

oito anos, ele atravessou as colunas de Héracles e começou a submeter a Ibéria aos

cartagineses. Nesse território ele demorou-se aproximadamente doze anos, durante

os quais sujeitou numerosas tribos ao jugo dos cartagineses, em parte pela força das

armas e em parte pela diplomacia, e teve lá uma morte digna dos feitos praticados ao

longo de sua vida [...]. Os cartagineses confiaram então o comando do exército a

Asdrúbal, genro de Amílcar e almirante de sua frota. [...]. Com efeito, essa época

assinala o início da administração de Asdrúbal, sensata e pragmática; a fundação

pelo mesmo da cidade chamada Cartago por algumas pessoas e Nova Cartago por

outras, contribuiu sobremaneira para melhorar a posição dos cartagineses,

especialmente por sua localização muito vantajosa com vistas a ações tanto na Ibéria

quanto na Líbia. [...] Asdrúbal, após governar esse território por oito anos, foi

assassinado à noite por um certo celta em decorrência de ofensas de caráter privado.

[...] Os cartagineses escolheram Aníbal para ser o comandante-em-chefe na Ibéria,

apesar de sua pouca idade, tendo em vista a argúcia e coragem demonstrada por ele

em suas ações. [...] A partir da entrega do comando a Aníbal as relações entre os

cartagineses e os romanos passaram a caracterizar-se por suspeitas recíprocas e

atritos; os primeiros, desejosos de vingar-se dos reveses sofridos na Sicília, deram

prosseguimento aos seus planos hostis, enquanto os últimos, percebendo tais planos,

demonstravam profunda desconfiança. Era portanto evidente a todos os

observadores competentes que a guerra entre os dois lados não tardaria muito a ser

deflagrada.”123

120

SCHÜLER, A. Dicionário enciclopédico de Teologia. Canoas: ULBRA, 2002, p. 227. Termo criado no

século XIX pelo historiador alemão Johann Gustave Droysen (Gerschichte Alexanders des Grossen). Designa

todo o movimento de assimilação da cultura helênica por outras civilidades, desde as guerras de Alexandre

Magno até o advento do Cristianismo, época durante a qual a cultura grega se tornou o ideal da formação

artística e intelectual. Contudo, séculos antes de Alexandre já temos o helenismo como consequência da

colonização grega da região da Magna Grécia. 121

GRIMAL, op. cit., 1984, p. 41. 122

NICOLET, op. cit., p. 611. 123

História II, 1, 13, 36

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52

Com sua chegada ao poder na Ibéria, Aníbal iniciou os preparativos para a guerra

contra Roma. De acordo com Claude Nicolet, após a morte de Asdrúbal, o general cartaginês,

que era considerado o “segundo em comando”, foi aclamado por seus soldados como seu

novo líder. Entretanto, seu primeiro gesto político foi o de solicitar sua investidura oficial ao

senado e à comunidade cívica de Cartago, tornando-se desta forma um strategos regularmente

nomeado pelas autoridades da cidade.124

A partir do reconhecimento oficial de sua liderança na Ibéria, Aníbal promoveu as

primeiras ações militares. De acordo com Pierre Grimal, em 219 a. C. o general cartaginês

atravessou o rio Jucar e atacou a cidade-estado de Sagunto, aliada de Roma. O senado romano

solicitou a Cartago que reparasse esta violação de um tratado assinado com Asdrúbal, no qual

se comprometiam a não atacar nenhum de seus aliados. Os cartagineses apoiaram as ações de

Aníbal, que continuou em marcha, à frente de um numeroso exército. A partir desta recusa de

Cartago, os romanos declaram-lhe a guerra.125

Para Marcel Le Glay, a segunda guerra púnica pode ser dividida em três fases

distintas, a saber: a primeira, de 218 a 210 a. C. a intervenção cartaginesa na península

itálica, na qual os cartagineses, que contavam com o apoio dos gauleses, conquistaram

algumas vitórias contra os romanos. A segunda fase, que atravessa o período de 210 a 206 a.

C., é caracterizada como a recuperação da Itália arrasada, na qual os romanos buscaram

reconquistar o apoio das cidades da região que haviam declarado apoio à Cartago. A terceira

fase, de 206 a 201 a. C., pode ser considerada como o período da ofensiva romana, no qual os

cartagineses perderam sua posição na Ibéria e foram definitivamente derrotados na batalha de

Zama, nas proximidades da muralha da cidade.126

As questões da Segunda Guerra Púnica também foram objeto da historiografia Anglo-

Americana. De acordo com Chester G. Starr, após a primeira guerra púnica, os cartagineses

buscaram restaurar seu poderio econômico a partir da conquista da Ibéria, garantindo o livre

acesso às minas de ouro e prata da região. A expansão cartaginesa na região provocou a

reação da cidade grega de Marselha que, vendo seus interesses comerciais ameaçados,

solicitou ajuda dos seus aliados romanos. Desta forma, em 226 a. C., os romanos e os

cartagineses assinaram um tratado limitando a hegemonia de Cartago à região ao sul do rio

Ebro. De acordo com o autor, a historiografia antiga considera o ataque de Aníbal à cidade de

Sagunto, aliada dos romanos e localizada na margem oposta do rio Ebro, como a causa da

124

NICOLET, op. cit., p. 614-615. 125

GRIMAL, op. cit., 1984, p. 42. 126

LEGLAY, op. cit., p. 87-90.

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segunda guerra púnica. Para o autor, no entanto, foi a constante suspeita romana em relação à

Cartago o fator decisivo para a eclosão do conflito.127

Mapa 5: Mapa da Península Ibérica durante a ocupação cartaginesa.

Fonte: http:// www.allworldwars.com/Hannibal-by-Dodge-Volume-I.html - Acesso em 30-04-2013

Para Michael Grant, o motivo pelo qual os romanos declararam guerra aos

cartagineses foi exatamente a desconfiança que sentiam em relação a Aníbal, a quem

suspeitavam estar planejando uma campanha militar do outro lado das margens do rio Ebro.

De acordo com o autor, após conquistar a cidade de Sagunto, Aníbal transferiu o seu exército

para o outro lado do rio Ródano e, no Outono de 218 a. C., atravessou os Alpes. O general

cartaginês iniciou sua marcha ao lado de aproximadamente quarenta mil homens e trinta e

sete elefantes, chegando à planície do vale do Pó, no entanto, com um numero total de vinte e

seis mil soldados. Após dois meses e algumas vitórias contra as legiões romanas, o exército

cartaginês já havia dominado toda a região norte da Península Itálica. Um ano mais tarde,

outra batalha decisiva na região do lago Trasimeno com vitória de Cartago, abriu para Aníbal

a estrada que levava a Roma. Entretanto, o general púnico não se valeu desta oportunidade.

Para o autor, a destruição total do poderio romano não parecia ser o principal interesse dos

cartagineses, uma vez que tal situação abriria espaço para a ocupação daquele território por

outras potências orientais. Além disso, faltava ao exército de Cartago um equipamento para

127

STARR, op. cit., p. 25-26.

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sitiar a cidade, cujas muralhas não poderiam ser transpostas sem uma base de abastecimento

nas proximidades. Esta base nunca existiu, porque nenhuma cidade-estado da região central

da Península Itálica aliou-se ao exército cartaginês.128

O historiador A. H. McDonald, acrescenta que o destacamento militar cartaginês

conseguiu vencer os exércitos romanos em diversas batalhas, mas da mesma forma que o

epirota Pirro, o general cartaginês Aníbal não conseguiu desfazer a organização política

romana na Itália Central.129

Quais foram os principais erros estratégicos de Aníbal? Para Michael P. Fronda, o

ponto de partida para qualquer discussão sobre esta questão deve residir sobre a vantagem

romana em relação à sua disponibilidade de mão de obra. É geralmente aceite que estas

reservas de mão de obra e a capacidade romana de organizar exércitos modelou o curso da

Segunda Guerra Púnica, tornando este, o fator crítico na determinação do resultado do

embate. Na verdade, os romanos possuíam uma vantagem significativa em recursos humanos

em relação às forças sob o comando de Aníbal desde o início da guerra e manteve essa

vantagem durante todo o curso do conflito. Em resumo, a disparidade relativa ao número de

tropas disponíveis significava que Aníbal tinha uma margem de erro muito menor do que os

romanos. No entanto, também devemos lembrar que a estratégia adotada por Aníbal na Itália

teve o potencial para neutralizar, pelo menos parcialmente, a vantagem da mão de obra

romana. Aníbal pode ter planejado que os aliados rebeldes, insatisfeitos com o domínio

romano, iriam fornecer reforços para seu próprio exército, uma vez que ele havia adquirido

rapidamente milhares de soldados gauleses. Ainda que os aliados descontentes não

fornecessem tropas para o seu exército, as cidades-estados rebeldes teriam privado os

romanos de potenciais soldados para as suas legiões. A estratégia de Aníbal pareceu

funcionar, pelo menos nos primeiros anos da guerra. De 218 a 216 a. C. Aníbal era o líder

inconteste da Itália, tendo obtido uma série de vitórias sobre os exércitos romanos e, depois de

Canas130

, inspirando uma série de aliados italianos de Roma à deserção. Com efeito, todos ou

a maioria das comunidades na Campânia, como Apúlia, Bruttium, Samnium, Lucania, Magna

Grécia e a península de Sallentine havia se revoltado em algum momento durante a guerra, e

128

GRANT, op. cit., p. 110-111. 129

MACDONALD, A. H. Roma Pré-Revolucionária. In: BALSDON J. P. V. D. (org.). O Mundo Romano. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 1971, p. 60. 130

GRANT, op. cit., p. 112. A batalha de Canas foi a maior derrota sofrida pelo exército romano em sua história,

e constituiu-se de um exemplo sem igual de uma força menor envolver uma força maior pelos dois lados.

Estima-se que o exército cartaginês contava com um numero não superior a 40 mil soldados, enquanto as legiões

romanas somavam pouco mais de 90 mil homens. O saldo da batalha foi a perda de quase dois mil soldados do

exército de Aníbal e a morte de 80 mil romanos. Poucos latinos conseguiram escapar e os cartagineses fizeram

cerca de 10 mil prisioneiros.

Page 55: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

55

muitos já haviam desertado por volta de 215 a. C. Contudo, depois de 216 a. C., embora ainda

fosse capaz de derrotar os exércitos romanos, a guerra entrou num impasse, e por volta de 211

a. C. a conjuntura do conflito começou a se voltar contra Aníbal. O general cartaginês nunca

convocou os romanos à mesa de negociações, e nem tampouco provocou uma desintegração

total do acordo de alianças entre Roma e as cidades- estados a ela subordinadas na Itália.131

Mapa 6: Mapa da região da Câmpania.

Fonte: http://larrythewineguy.net – Acesso em 30-04-2013

Ainda de acordo com Michael P. Fronda é preciso compreender por que as cidades

aliadas à Roma não se revoltaram com maior intensidade após o período crítico de Canas. A

resposta militar e diplomática de Roma depois de Canas foi a principal responsável pela

derrota de Aníbal. Para o autor, há certo consenso entre os pesquisadores de que após a

derrota inicial, Roma adotou estratégias que se basearam na força dos seus recursos humanos,

limitando as oportunidades de Aníbal, que não conseguiu tirar proveito de sua superioridade

tática aparente. Por outro lado, há aqueles que creditam que a causa da vitória romana esteve

apoiada nos seus comandantes e magistrados, ou nas suas estruturas sociais que lhes

permitiram suportar a guerra por quase duas décadas.132

De acordo com Michael Grant, a conquista romana da Península Ibérica nos anos que

se seguiram aos combates foi outro fator decisivo para a derrota de Cartago, uma vez que os

recursos que abasteciam as tropas de Aníbal eram provenientes desta região. Após a conquista

131

FRONDA, M. P. Between Rome and Carthage: southern Italy during second punic war. Cambridge:

University Press, 2010, p. 34-37. 132

Ibid., p. 40.

Page 56: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

56

da Ibéria, os romanos mudaram o espaço das batalhas, desembarcando suas tropas na África,

objetivando atacar Cartago diretamente. A proximidade das legiões romanas das muralhas da

cidade levou os cartagineses a iniciarem um processo de paz com os latinos. Entretanto,

Aníbal convenceu as autoridades da sua cidade de que ainda era possível vencer a guerra e,

abandonando a Itália, se dirigiu à Cartago. Os romanos avançaram com suas tropas para o

interior da África, com o objetivo de cortar as ligações da capital inimiga com as suas fontes

de abastecimento agrícola. No ano de 202 a. C., travou-se a batalha final da guerra. As forças

militares de Aníbal, já debilitadas em virtude do longo período de batalha na Itália, foram

derrotadas. Cartago, que já havia perdido suas colônias da bacia ocidental do Mediterrâneo,

agora perdera suas minas de ouro e prata da Ibéria, deixando definitivamente de ser uma

potência. A partir de então os romanos completaram uma etapa decisiva no seu processo de

conquista e dominação do Ocidente. Para o autor, a Segunda Guerra Púnica foi, para o

Ocidente, à exceção dos conflitos do século XX, o mais importante conflito de todos os

tempos.133

Carl Grimberg acrescenta que as condições de paz impostas aos cartagineses foram

bastante rigorosas. Os fenícios foram obrigados a pagar uma indenização anual de 200

talentos, não poderiam declarar a guerra contra nenhuma cidade sem o consentimento de

Roma e deveriam ainda entregar seus elefantes e seus navios de guerra. Na prática, estas

condições colocavam Cartago sob o domínio político e econômico de Roma.134

Para Michael

Grant, o principal êxito de Cartago na segunda guerra púnica foi o de confirmar e aumentar a

confiança e o poder de Roma.135

Entretanto, o desfecho das relações entre romanos e cartagineses ainda estava por vir.

Em 143 a. C. foi declarada a terceira e última guerra entre as cidades-estados. Os romanos

buscavam um pretexto para esse conflito, como atesta Políbios:

“Os romanos já tinham tomado havia muito tempo a decisão de agir dessa

maneira, mas estavam aguardando uma oportunidade conveniente e um pretexto

honroso aos olhos dos estrangeiros. Os romanos davam com muita razão a maior

importância a esse assunto [...].” E acrescenta: “em verdade, os cartagineses agora

não haviam sido culpados de qualquer ofensa irremediável contra Roma, porém os

romanos trataram-nos com uma severidade irremediável, embora os primeiros

tivessem aceitado a totalidade das suas condições e concordado em obedecer a todas

as suas ordens.”136

133

GRANT, op. cit., p. 115-117. 134

GRIMBERG, op. cit., p. 114. 135

GRANT, op. cit., p. 120. 136

História, XXXVI – 9

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57

As análises da Terceira Guerra Púnica também podem ser encontradas no debate da

Historiografia Anglo-Americana. Para Chester G. Starr, a suspeita romana da força de

Cartago após a Segunda Guerra Púnica era expressa nos discursos ao senado proferidos por

Catão, o velho, que, qualquer que fosse o assunto em pauta, sempre encerrava sua fala com a

expressão “Cartago deve ser destruída!”. A terceira guerra púnica, travada entre 149 e 146 a.

C. foi deliberadamente provocada pelos romanos, encorajados por uma disputa entre os

cartagineses e seus vizinhos no norte da África. Cartago foi destruída em 146 a. C., após um

cerco de três anos.137

De acordo com Dexter Hoyos, Cartago recuperou sua prosperidade rapidamente após

a Segunda Guerra Púnica, especialmente depois que Aníbal, eleito Sufeta em 196 a. C.,

realizou reformas políticas, financeiras e econômicas. Entretanto, Masinissa, rei da Numídia,

cidade vizinha a Cartago, buscou anexar áreas sob o domínio cartaginês naquela região,

alegando que tais terras eram sua propriedade ancestral. Entre os anos de 160 e 150 a. C.,

quando Masinissa tomou grandes regiões ao lado de suas fronteiras, Roma decidiu em seu

favor: a sua antipatia pelo reavivamento de Cartago estava crescendo. Os cartagineses

declararam a guerra contra a Numídia, montando um grande exército em 151 a. C. Contudo,

seus esforços não foram suficientes, sendo forçada a se render. O pior para Cartago foi o fato

de ter rompido o tratado de paz de 201 a. C., ratificado com os romanos, que a impedia de

declarar a guerra contra quem qualquer cidade sem a sua autorização. Após os debates em

Roma, nos quais Catão, o velho, argumentou pela destruição Cartago, os romanos declararam

a guerra. Para o autor, Cartago não intimidava Roma, mas os romanos podem ter-se

convencido de que os cartagineses pudessem tornar-se uma ameaça no futuro. A busca pela

riqueza de Cartago, que levou milhares de voluntários para a guerra, provavelmente também

influenciou a elite romana, embora essa não fosse a única razão para o conflito. A partir do

desembarque das tropas romanas nas proximidades de suas muralhas, os cartagineses foram

obrigados a oferecer submissão total, entregando todas as suas armas. Contudo, os romanos os

ordenaram a deixar sua cidade, obrigando-os a buscar reassentamento no interior da África.

Entretanto, os cartagineses se recusaram a partir e iniciaram uma grande resistência. Os

romanos se encontraram em um cerco longo e prolongado que durante dois anos não produziu

nenhum progresso. Entretanto os romanos destruíram as fontes de abastecimento da cidade,

que foi acometida pela fome generalizada. Cerca de cinquenta mil homens e mulheres se

renderam após três anos de cerco. Cartago fora incendiada e teve seus prédios públicos e

137

STARR, op. cit., p. 39.

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58

demais construções destruídos. Os territórios restantes de Cartago foram anexados pelos

romanos como província da África.138

Mapa 7: Mapa do Mediterrâneo no contexto da terceira guerra púnica.

Fonte: http://www.penfield.edu – Acesso em 30-04-2013

O Historiador Nigel Bagnall destaca que a causa da Terceira Guerra Púnica pode ser

atribuída à perda da influência de Cipião Africano, que foi vítima de uma política de

enfrentamento, sendo substituído por Catão, o velho, com sua defesa de um confronto contra

Cartago. Para o autor, ao observarmos os eventos das três guerras púnicas, podemos notar a

questão do ajuste das estruturas políticas com as necessidades militares e, em seguida, a

realização da guerra com um objetivo estratégico proposital.139

Vejamos a seguir como a Historiografia Francesa tratou os últimos anos da República

cartaginesa. De acordo com Ernest Mercier, Masinissa, príncipe da Numída, acreditava que

poderia satisfazer aos interesses dos romanos, intensificando seus ataques aos cartagineses.

Cartago, por sua vez, renovava suas queixas à Roma, agindo em conformidade com os

tratados ratificados por ocasião do fim da segunda guerra púnica. Na busca por uma solução

dos romanos para este impasse, os cartagineses chegaram a enviar navios e trigo para ajudar

os seus inimigos em suas guerras na Ásia e na Macedônia. Por estas ações, os cartagineses

138

HOYOS, D. Punic Wars: 262-241, 218-201, 149-146 BCE. [Online] Disponível na Internet

via:http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781444338232.wbeow506/pdf, p. 9-10. - Acesso em 23-03-

2013. 139

BAGNALL, N. The Punic Wars: 264-146 B.C. Oxford: Osprey Publications, 2002, p. 84.

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59

haviam obtido apenas recompensas insignificantes. Masinissa, com o mesmo objetivo de

demonstrar sua fidelidade, também enviava ajuda aos romanos quando necessário, seja em

soldados, cavalos, trigo e até mesmo em elefantes. Aos poucos, a Numídia submeteu à sua

autoridade muitas tribos nativas estabelecidas no norte da África, restringindo cada vez mais o

território cartaginês.140

Ainda de acordo com Ernest Mercier, a fragilidade cartaginesa neste período residia

em suas disputas políticas internas. Havia em Cartago três correntes políticas que disputavam

o poder: a aristocracia, aliada de Roma, que estava sempre disposta a fazer o que fosse

necessário para manter a paz; os herdeiros e aliados da família dos Bárcidas, que buscavam

preservar as tradições e a independência da cidade; e, finalmente, os aliados de Masinissa,

muito dispostos a abrir as portas da cidade ao príncipe da Numídia. Apesar destas desavenças,

a experiência comercial dos fenícios devolveu à cidade alguma prosperidade material.

Entretanto, de acordo com o autor, a última espoliação de Masinissa levou os cartagineses

mais uma vez a Roma, em sua busca em obter justiça. Novos comissários romanos foram

enviados para a África, e entre eles estava Marcos Catão, veterano das guerras contra Aníbal.

Catão, ao observar o crescente progresso comercial de Cartago, incentivou a manutenção do

ataque de Masinissa àquela cidade. Ao perceber a reação militar de Cartago contra a Numídia,

Catão fez chegar a notícia à Roma, que obtinha, dessa maneira, o pretexto necessário para

iniciar a campanha contra os fenícios.141

Após dois anos de cerco, Cipião Emiliano procurou asfixiar a cidade cartaginesa. De

acordo com Gilbert e Collete Charles - Picard, a primeira medida romana foi barrar

hermeticamente o istmo da baía de Cartago com uma vasta área de trincheiras. Os romanos

utilizaram uma grande corda para fechar a entrada do porto, onde os bloqueadores eram

capazes de deslizar através dos ventos favoráveis. Os cartagineses abriram um novo porto,

que ligava diretamente o porto naval ao mar, e enviaram uma frota improvisada que tentou,

sem sucesso, destruir a barreira romana. Cipião, no entanto, conseguiu ganhar uma posição

nas proximidades da necrópole cartaginesa, de onde comandou a entrada das tropas pelo

porto. Na primavera de 146 a. C., Cipião reuniu todas as suas forças para o assalto decisivo.

Antes de iniciar o ataque, ele solenemente, pronunciou as tradicionais fórmulas ritualísticas

que estimulavam os deuses protetores da cidade a protegerem-no e a libertarem os poderes do

mundo dos mortos. Os romanos deixaram a fortificação que haviam construído na entrada da

140

MERCIER, E. Histoire de L’Afrique Septentrionale (Berbérie) depuis les temps les plus reculés jusqu’à

la conquête française. Vol. 1. Paris: Ernest Leroux, 2007, p. 38. 141

Ibid., p. 38-47.

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60

muralha, forçando a área do porto de guerra. Os legionários invadiram a área central da

cidade, saqueando o templo de Apolo e o seu tabernáculo de ouro. Em seguida, eles lançaram

seu ataque ao interior da cidade, através de ruas estreitas, ladeadas por edifícios de até seis

andares, queimando tudo o que encontravam pela frente. Assim terminava a existência de

Cartago, em conflito que combinava a piedade e o horror.142

O historiador grego Políbios descreveu a reação do general romano Emiliano Cipião

ante a cidade cartaginesa em chamas:

“Voltando-se para mim e segurando-me pela mão Cipião me disse: ‘este é

um belo momento, Políbios, mas tenho o pressentimento funesto de que algum dia a

mesma sentença será pronunciada contra a minha pátria’. [...] Segundo consta,

Cipião, vendo a cidade completamente arrasada e nos últimos estertores da

destruição total, deixou caírem lágrimas e chorou à vista de todos pelo infortúnio do

inimigo.”143

Para os arqueólogos Gilbert e Collete Charles-Picard os últimos cinquenta anos de

Cartago foram de intensa agonia. Não dispondo de capacidade para se reerguer por si mesma,

poderia ter se entregado à Masinissa, tornando-se a capital de um vasto reino africano capaz

de rivalizar com Roma, que talvez por prever este cenário, preferiu destruí-la. O território

cartaginês sobreviveu como uma província onde a civilidade púnica esteve sob a

administração indiferente da aristocracia romana. O governo imperial romano, que substituiu

a República, fez os herdeiros dos cartagineses participarem do desenvolvimento da África,

mantendo seu idioma e suas práticas religiosas, até as transformações que iriam se abater

sobre o Ocidente nos séculos IV e V da nossa era.144

Segundo Pierre Grimal, os despojos de Cartago fizeram de Roma a grande potência

econômica do Mediterrâneo. Todas as rotas comerciais daquela região caíram sob seu

controle. Além disso, os romanos passaram a controlar todas as minas de prata e ouro da

Península Ibérica.145

. Ainda de acordo com o autor, os romanos saíram das guerras contra

Cartago fortalecidos e com um prestígio bastante reconhecido no mundo mediterrânico. Não

iria tardar até que voltassem seus olhos para o Oriente em semelhante impulso por conquistas.

A expansão, iniciada contra os cartagineses, provocou transformações na política interna de

Roma, conduzindo ao fim da República e do regime oligárquico e inaugurando o

principado.146

142

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. Vie et mort de Carthage. Paris: Hachette, 1970, p. 294-

295. 143

História XXXVIII, 21-22 144

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. Op. cit., 1965, p. 21. 145

GRIMAL, op. cit., 2005, p. 77. 146

Id, op. cit., 1984, p. 44.

Page 61: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

61

Finalmente, como vimos as informações oriundas da documentação textual de que

dispomos foram descritas por romanos e gregos, cuja rivalidade sempre esteve latente contra

os cartagineses. Desta forma, a memória de Cartago foi sendo construída a partir do olhar do

outro, estrangeiro e rival e estas digressões acabaram incorporadas pela historiografia

contemporânea. Nesse sentido, a escrita de uma História de Cartago passa necessariamente

pelo diálogo da História com a Arqueologia. Falamos de uma História de Cartago que

destaque aspectos de sua sociedade, suas relações sociais, seus usos e seus hábitos cotidianos.

Tratar-se-ia de uma análise voltada para a compreensão do pensamento religioso cartaginês,

em sua interação com o sobrenatural a partir do uso corrente da atividade de sacrifícios

humanos. O debate acerca da existência ou não de tais atividades entre os cartagineses esteve

no centro da produção historiográfica desta civilidade a partir do século XIX. No capítulo a

seguir, veremos as principais questões deste debate, analisando a atividade ritual do sacrifício

de sangue à luz da teoria antropológica.

Page 62: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

62

2: PRÁTICAS SACRIFICIAIS: UMA ANÁLISE COMPARADA DA TEORIA DO

SACRIFÍCIO E SUAS APLICAÇÕES AO RITUAL CARTAGINÊS.

Neste capítulo apontaremos as potencialidades do diálogo entre a História e a

Antropologia, analisando seu percurso histórico, seus temas e seus problemas, destacando a

questão em torno da definição do conceito de ritual e suas especificidades. Outra questão

abordada neste capítulo é a que trata do debate realizado ao longo do século XX acerca da

existência ou não da prática de sacrifícios humanos em Cartago e como a teoria antropológica

pode nos ajudar a resolver este dilema. Procuramos analisar comparativamente a teoria

sacrificial do antropólogo René Girard que fundamenta suas análises na relação entre a

violência e o sagrado, onde o ritual visa reestabelecer a estabilidade social e a teoria sacrificial

dos também antropólogos Marcel Mauss e Henri Hubert que partem do princípio teológico da

consagração aos deuses a partir de um estado de alteração da vítima sacrificial realizado após

o ritual. Ao final deste capítulo esperamos responder ao seguinte questionamento: a partir das

evidências arqueológicas e da documentação textual é possível falar em prática de sacrifício

humano em Cartago?

2.1: Do diálogo entre a História e a Antropologia:

Uma das características da Antropologia é o seu empenho constante no uso do método

comparativo. De acordo com E. Hoebel e Everett Frost, para estabelecer as normas gerais do

comportamento humano, os antropólogos culturais analisam, de forma comparada, as mais

diversas sociedades do mundo, no presente e no passado. Os autores destacam ainda a questão

da relação entre a Antropologia e a História, sobretudo a partir de sua dimensão temporal

como unidade básica da experiência humana. Entretanto, este reconhecimento não é unânime.

Os arqueólogos são os mais propensos a defender a relevância da História para a

Antropologia, enquanto os antropólogos sociais destacam que basta a análise comparada das

sociedades existentes hoje, uma vez que as informações arqueológicas nem sempre trazem os

detalhes capazes de satisfazer as necessidades da atividade científica. Entretanto, os autores

apontam o que seria para eles uma saída possível, ou um ponto de vista equilibrado sobre a

relação da Antropologia com a História, afirmando que a comparação entre sociedades

diretamente observáveis não coloca o estudo da humanidade numa base científica mais firme

em termos de resultados verificáveis e válidos. Porém, também concordam que é

cientificamente importante estudar os processos do crescimento e das mudanças das culturas.

Page 63: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

63

A cultura e a sociedade não são fatores momentâneos, mas saíram do passado, existem no

presente e continuam no futuro. Podemos dizer que são o produto do que foram sob a ação de

condições e influências que encontram no momento. Os autores concluem, afirmando que

nem o presente, nem o futuro poderão ser totalmente compreendidos sem o estudo, ainda que

impreciso, do passado.147

Os pesquisadores Don Kalb e Herman Tak destacam a chamada “virada cultural”

como um marco decisivo no encontro entre a História e a Antropologia. De acordo com os

autores, esta “virada cultural” é um movimento multifacetado que tem influenciado as

universidades ocidentais no que tange aos métodos do conhecimento social, desde os meados

da década de 1980. Foi neste período em que houve uma maior aproximação entre a História

e a Antropologia. Muitos antropólogos se voltaram para a História em busca de novos estudos

analíticos que pudessem ajudá-los a superar os modelos estáticos de comunidades produzidos

pelo trabalho de campo e pela descrição cultural. Por outro lado, muitos historiadores

passaram a apoiar suas pesquisas sobre as interpretações culturais dos antropólogos-

historiadores.148

A pesquisadora Lynn Hunt questiona o programa desta Nova História Cultural que

emerge a partir da década de 1980, advertindo contra o desenvolvimento deste campo do

conhecimento histórico como delimitação de temas de pesquisa. Para a autora, a História

Cultural definida apenas por categorias temáticas poderia engendrar uma procura por

diferentes práticas culturais a serem analisadas. Lynn Hunt acrescenta ainda que, na

atualidade, o modelo da Antropologia é o padrão principal das abordagens da História

Cultural, através de estudos sobre os rituais, os festivais e os ritos de passagem. Hoje, o

objetivo principal da História Cultural, influenciada pela Antropologia, é o de decifrar e

interpretar os significados das mais variadas práticas culturais.149

Desta aproximação entre a História e a Antropologia, emergiram duas questões de

ordem teórico-metodológicas, a saber: a Antropologia Histórica de um lado, e a História

Antropológica, de outro. De acordo com Don Kalb e Herman Tak a História Antropológica

tende a estudar as épocas históricas como blocos estáticos e temporais, carregados de

significados, exatamente como os antropólogos fizeram ao eleger a aldeia como o seu maior

universo semiótico. A Antropologia Histórica, por outro lado, parecia estar em busca das

147

HOEBEL, E. A.; FROST, E. L. Antropologia cultural e social. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 5-12. 148

KALB, D.; TAK, H. Critical Junction – Anthropology and History beyond the cultural turn. New York:

Bergham Books, 2005, p. 1-2. 149

HUNT, L. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 11-16.

Page 64: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

64

práticas evolutivas – incluindo as práticas discursivas – no interior das redes de poder e

contrapoder, no passado, no presente e no futuro.150

O historiador Peter Burke também analisou a historicidade das relações entre a

História e a Antropologia. Para o autor, a “virada antropológica” foi um dos fatores mais

característicos da prática da História Cultural entre as décadas de 1960 e 1990. Entretanto,

este novo olhar, voltado para a Antropologia, influenciou outros campos do conhecimento

histórico, como a História Política e a História Econômica. Essa mudança significou também

uma ampliação do uso do termo “cultura” 151

e contribuiu para a construção de uma

abordagem que viria a ser conhecida como “Antropologia Histórica”, que na visão do autor

deveria ser chamada de “História Antropológica”. Para Peter Burke não há uma diferença

substancial entre as duas expressões. Umas das características desta abordagem, a utilização

do termo cultura, antes empregado para se referir à “alta cultura”, passou a incluir o cotidiano,

os valores, os costumes e as maneiras de viver das mais diversas sociedades, aproximado dos

historiadores uma visão que era, antes de tudo, antropológica. Assim, os historiadores

passaram a recorrer à teoria antropológica para explicar seus objetos e entre os antropólogos

mais estudados estão Macel Mauss, sobre o fenômeno da dádiva, Edward Evans-Pritchard,

sobre bruxaria, Mary Douglas, sobre pureza, e Clifford Geertz, sobre Bali.152

O pesquisador José d’Assunção Barros acrescenta que a História Antropológica

privilegia problemas relativos à “alteridade”, voltando seu interesse para as populações de

tradição oral, para comportamentos não usuais, para os grupos familiares e para as relações de

parentesco. Para o autor, de certo modo, o que funda a História Antropológica como um

campo novo, mais específico que a História Cultural, é a utilização da Antropologia como

modelo, mais do que os objetos antropológicos propriamente ditos. Os historiadores

descobriram nas últimas décadas do século XX a possibilidade de uso de conceitos e

procedimentos oriundos da vertente antropológica.153

O historiador André Burguière vincula à escola dos Annales o renascimento de uma

História Antropológica que, para ele, remonta ao século XVIII. De acordo com o autor, neste

período, à margem do Iluminismo, viajantes, médicos eruditos ou administradores locais

voltaram seu olhar etnológico sobre diversas sociedades. Este modelo, considerado um

150

KALB; TAK, op. cit., p. 4. 151

BURKE, P. O que é história cultural ? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 52. Peter Burke faz uso da

definição de cultura desenvolvida pelo antropólogo Clifford Geertz que define o conceito como “um padrão

historicamente transmitido, de significados incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas,

expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu

conhecimento e suas atitudes acerca da vida”. 152

Ibid., p. 44-48. 153

BARROS, J. D’A. O campo Histórico. Rio de Janeiro: CELA, 2002, p. 90.

Page 65: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

65

subproduto das Luzes, sobreviveu a partir de obras que se intitulavam “História Natural”, cujo

objeto se concentrava em províncias ou unidades nacionais, onde, ao definir a identidade de

um grupo social, buscava-se reconstruir a história dos seus costumes e de seus hábitos de

vida. Entretanto, esta perspectiva tornou-se ultrapassada, ainda que não tenha deixado de

existir completamente, a partir do momento em que os Estados-Nações recém-construídos

tomaram para si a tarefa de construir a memória coletiva, com o objetivo de legitimar sua

dominação e sua maneira de organizar a sociedade. Esta nova abordagem aconteceu sob a

égide do Positivismo que não é completamente independente da pressão política que exerce

sobre o saber histórico. Para atender aos critérios de cientificidade que se atribuiu, a pesquisa

histórica confundiu a memória social com a memória do Estado.154

A escola dos Annales irá constituir seu discurso contra essa concepção. De acordo com

Andre Burguière, os fundadores desta escola irão conclamar os historiadores a uma

abordagem mais profunda de cada sociedade. Neste sentido, se faz necessário rever até

mesmo o recurso à documentação, como propõem os fundadores da Escola dos Annales ao

defender o uso das tabelas de preços ou dos pagamentos de dízimos para estudar as variações

da produção agrícola, ou o uso dos arquivos dos cartórios para estabelecer a variedade das

fortunas e a transformação dos patrimônios familiares.155

Contudo, na medida em que registram as informações seriais, os historiadores são

convidados a reconstruir os conjuntos a partir de uma análise estatística. Para André

Burguière, este procedimento pode levar a uma reflexão antropológica. Como o antropólogo

que utiliza a distância entre sua cultura e a de seu objeto de observação para se afastar de suas

próprias categorias e reconstituir o sistema social que analisa, o historiador pode explorar a

característica fragmentada, não construída, destas fontes, para encontrar, além da realidade

revelada, a lógica que explica determinada conjuntura ou determinada transformação. O

mesmo procedimento pode ser aplicado às fontes qualitativas ou literárias, na medida em que

leva o historiador a interessar-se sistematicamente pelo que os discursos dominantes de uma

sociedade dissimulam ou desprezam.156

A partir deste quadro geral é possível definir a Antropologia Histórica como a história

dos hábitos, a saber: físicos, gestuais, alimentares, afetivos, religiosos, mentais. Entretanto,

154

BURGUIÈRE, A. A antropologia Histórica. In: LE GOFF, J.; CHARTIER, R.; REVEL, J. (Orgs.) A História

Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 171. 155

Ibid., p. 174. 156

Ibid., p. 175.

Page 66: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

66

para André Burguière, a Antropologia Histórica estaria muito mais vinculada a um contexto

da produção do conhecimento histórico do que a um campo específico propriamente dito.157

O historiador Marcel Detienne, destaca a importância do diálogo entre a História e a

Antropologia no emprego do método comparativo. De acordo com o autor, a Antropologia,

que surge em meados do século XIX, nasce comparativa, buscando comparar entre si as

nações que emergiam neste período, a partir da análise de seus costumes e símbolos. Era um

campo do conhecimento que tinha por objetivo comparar as comunidades cívicas, os hábitos e

a mitologia. Os primeiros estudos antropológicos surgem a partir da observação das

sociedades da Antiguidade Clássica em comparação com as civilidades nativas do continente

americano. A História parecia anunciar, após o seu surgimento, um tipo de conhecimento

comum aos historiadores e aos antropólogos, que buscavam classificar e arquivar as novas

culturas em relação às antigas. Entretanto, essa comparação, que classificava as culturas numa

escala da mais “primitiva” às mais “evoluídas”, tomou os moldes de uma comparação pautada

em valores. O comparativismo experimental dos primeiros antropólogos cedeu à pressão dos

valores ocidentais que buscavam a transmissão, em linha direta, da universalidade grega, com

o predomínio da razão, da ciência e do seu aspecto incomparável. Rapidamente as demais

sociedades antigas foram marginalizadas. Logo, as sociedades antigas do mundo Greco-

romano foram interditadas ao comparativismo.158

Neste sentido, se por um lado a Antropologia descobria nas civilidades clássicas um

campo de estudo no qual o antigo e o novo se combinavam, a História, por outro, via-se

impedida de comparar as sociedades antigas com as da América ou com outras quaisquer.

Para Marcel Detienne, um dos resultados advindos deste processo foi a aparente separação

entre a História, ciência que em sua origem privilegiou os estudos nacionais, e a

Antropologia, que sempre foi comparativa. Este cenário só iria se modificar a partir da década

de 1960, quando um grupo de antropólogos, oriundos da Filosofia, verificou que certos

objetos de estudo, como a guerra, a caça e as relações com a terra, integravam seus interesses

comuns e que, portanto, era possível caminharem juntos. Abria-se um espaço para um campo

de experimentação comparada entre duas áreas das ciências humanas mais preocupadas com

os objetos em comum do que com os elementos que pudessem afastá-las. Estas mudanças

afetariam todos os pesquisadores do social na década de 1960, período a partir do qual os

historiadores admitem que, ao se interessarem pelo cotidiano e pelos hábitos das sociedades

no tempo, eles contribuem para a ampliação do conhecimento sobre o homem da mesma

157

BURGUIÈRE, op. Cit., p. 178. 158

DETIENNE, op. cit., p. 22-25.

Page 67: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

67

maneira que os antropólogos que buscam territórios não totalmente estudados, se

questionando sobre as mudanças e a historicidade. Os historiadores redescobriram, de uma

maneira diferente, um domínio que outros pesquisadores atentos não tinham deixado de

estudar: o dos usos e costumes com seus contextos.159

A nossa pesquisa se insere no campo da História Antropológica por basear-se na

análise das práticas de sacrifícios humanos que se encontram presentes na sociedade

cartaginesa. A seguir veremos como a Antropologia definiu o conceito de ritual, destacando

sua raiz etimológica e suas implicações sociais. Essa definição torna-se relevante, uma vez

que as práticas sacrificiais se inserem nesta perspectiva ligada ao campo do religioso.

2.2: Do Conceito de Ritual:

Uma vez definidas as características da História Antropológica, passaremos a análise

do campo semântico do termo ritual e suas implicações teóricas. Veremos a seguir as

definições presentes nas obras de Marcel Maus & Henri Hubert, René Girard, Jean Pierre

Vernant, Martine Segalen e Jean Maisonneuve.

O antropólogo Jean Maisonneuve revela que o termo rito define práticas que visam

prescrever ou interditar ações, associadas a crenças religiosas, tendo como constituinte

determinadas cerimônias e festividades, a partir da oposição entre o sagrado e o profano, entre

o puro e o impuro. Em todas as circunstâncias, os ritos preceituam determinados

comportamentos relacionados a situações e normas específicas, onde a repetição é uma das

suas principais características, mas cuja função quase nunca é evidente.160

O autor analisa

ainda outras noções adjacentes ao termo, a saber: costume, código, cerimônia e símbolo.

O rito, em geral, se relaciona a determinados usos ou padrões de conduta, que são

cobertos de um caráter ligado à rotina e ao estereótipo. Entretanto, para Jean Maisonneuve,

esta ideia extensiva do rito, que o liga a um costume, permanece sem sentido, com um valor

simbólico relacionado apenas a uma determinada utilidade. Assim, nem toda atividade

rotineira é considerada um ritual. Os rituais constituem, portanto, um sistema de códigos, que

favorecem o contato entre as pessoas e um poder sobrenatural, oculto e divino. Ainda que o

conjunto de códigos possa sofrer alterações, o rito permanece imutável ao longo de extensos

períodos temporais. E é neste aspecto que o rito se distingue do simples costume, ou seja,

através da sua ligação com as forças do sagrado. Por outro lado, a expressão cerimônia deve

159

DETIENNE, op. cit., p. 24 et seq. 160

MAISONNEUVE, J. Os Rituais. Porto: RÉS, 2000, p. 10.

Page 68: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

68

estar ligada às práticas coletivas organizadas ou teatralizadas, que se refira a um rito fundador

e a todo rito que contenha algum tipo de encenação. Esta perspectiva nos aproxima de outro

caráter distintivo do rito: o seu valor simbólico. Trata-se de algo que não pode ser percebido

imediatamente e cuja representação se faz por meio de algo figurado pelo objeto portador de

um símbolo. Este objeto estabelece uma ligação com o sobrenatural, acionando o imaginário.

As práticas simbólicas se fazem representar por meio de atitudes, gestos ou palavras que

mediatizam a relação com uma “entidade” não apenas ausente, mas impossível de ser

percebida sem o emprego do símbolo, tornando-o solidário ao rito.161

Outras noções subjacentes estão ligadas ao rito e, na perspectiva de Jean Maisonneuve,

tornam possível sua existência e seu funcionamento: a fé, o sagrado e os gestos corporais. Fé

é um elemento dirigido a um ser supremo, a forças ocultas e a determinados valores que se

revestem de uma natureza sagrada. Neste sentido, o autor afirma que não existem ritos sem fé

ou fé sem rituais. O sagrado, por outro lado, se relaciona àquilo que se encontra separado e

circunscrito, em um lugar reservado, destinado apenas aos iniciados em determinados cultos.

Além disso, o sagrado depende muito mais da emoção do que da representação, sendo,

portanto, uma categoria de sensibilidade. Por outro lado, não existem rituais que não utilizem

o corpo como suporte direto de sua ação e de sua eficácia, seja para nele fixar sinais e marcas

ou para praticar intervenções, como fonte de energia e influência.162

A partir destas análises, Jean Maisonneuve define o rito como um “sistema codificado

de práticas, mediante certas condições de lugar e tempo, que possui um sentido vivido e um

valor simbólico para os seus atores e os seus testemunhos, implicando a ação do corpo e

certa relação com o sagrado”.163

Os rituais trazem consigo ainda determinadas funções que estão relacionadas entre si e

que nem sempre são conscientes para os grupos que os empregam. De acordo com Jean

Maisonneuve os ritos possuem a Função de contenção da mutação e de segurança contra a

angústia, permitindo que as emoções humanas sejam canalizadas. A mediação com o divino

ou com certas formas e valores ocultos ou ideais é outra função desempenhada pelo rito. Esta

função busca a conciliação com os poderes que escapam à nossa compreensão: deuses e

espíritos. Ao se colocar diante de forças que não são acessíveis ou controláveis, o homem

lança mão de práticas simbólicas. Por fim, os ritos possuem a Função de comunicação e de

regulação, mediante o atestado e o reforço do vínculo social. Esta perspectiva é, na opinião

161

MAISONNEUVE, op. cit., p. 11-13. 162

Ibid., p. 14-16. 163

Ibid., p. 16.

Page 69: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

69

do autor, a menos consciente, embora passível de percepção aos observadores mais atentos:

todas as comunidades que compartilham um sentimento de identidade coletiva recorrem a

mecanismos que reforcem os sentimentos fundamentais de sua unidade.164

Para Jean Maisonneuve, as funções dos rituais situam-nos na convergência entre a

natureza e os domínios da cultura, entre o sensível e o espiritual, assegurando uma regulação

social e moral aliadas a uma satisfação consagrada de determinados desejos: união,

abundância, perdão e consolo.165

Outra vertente teórica relaciona a narrativa mítica à definição conceitual do ritual. O

historiador Jean Pierre Vernant acrescenta que thámbos é a palavra em grego que designa o

temor reverencial, base sobre a qual se apoiaram os cultos mais antigos, as diversas formas

assumidas pelo rito, para corresponder à pluralidade das necessidades humanas. Além disso,

por trás da grande variedade de nomes e características dos deuses, acredita-se que o rito

aciona a experiência do divino como uma realidade supra-humana. Agregando à religião a sua

dimensão mitológica, o autor revela que o mito integra as práticas rituais e as maneiras de

representação do divino: mito, rito e representação figurada são as três formas de expressão –

verbal, gestual e imagética – através das quais a experiência religiosa se manifesta.166

Jean Pierre Vernant destaca ainda que uma cerimônia ritual desenvolve-se de acordo

com um roteiro de episódios estritamente ordenados, repletos de significado, tal qual uma

narrativa mítica. Cada detalhe da encenação busca representar sua relação com a divindade,

comportando uma dimensão intelectual. Assim, o ritual implica uma divindade, as condições

de sua abordagem e dos efeitos que os participantes, em função do seu papel, podem esperar

de sua relação simbólica. Portanto, cada forma adquirida pela representação de uma divindade

implica uma maneira diferente de apresentação ao homem, exercendo, através de suas

imagens, o poder sobrenatural que ela possui.167

Seguindo na mesma perspectiva de análise, o antropólogo René Girard destaca a

questão das religiões antigas e nos remete à duas hipóteses fundamentais, a saber: a mais

antiga, que liga o ritual ao mito, buscando no mito um acontecimento real ou um conjunto de

crenças que deu origem às práticas rituais, e outra mais recente, que remete ao ritual os mitos,

os deuses e as mais diversas tragédias, sobretudo as presentes na cultura grega. Nesta segunda

perspectiva encontramos a ideia de que o sacrifício originou todos os deuses a partir de sua

repetição no interior das sociedades humanas. Por outro lado, o autor acrescenta que há

164

MAISONNEUVE, op. cit., p. 16-18. 165

Ibid., p. 18. 166

VERNANT, J. P. Mito e religião na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 22-24. 167

Ibid., p. 27-28.

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70

semelhanças entre as mais diversas formas rituais praticadas em várias culturas. Desta forma,

o autor desloca sua análise do rito para o mito fundador das sociedades antigas que apontam

em quase sua totalidade para a presença da atividade sacrificial. Assim, a violência fundadora

reside na origem de tudo aquilo que os homens possuem de mais valioso e que buscam

preservar com bastante atenção, onde todos os mitos de origem que se remetem ao assassinato

de uma personagem mítica por outras personagens míticas reforçam esta ideia. Para o autor, a

violência situa-se na formação do pensamento religioso. A presença do religioso na origem de

todas as sociedades humanas é inquestionável e o seu objeto é o sacrifício, cuja função é

perpetuar ou reforçar os efeitos do próprio sacrifício, ou seja, manter a violência afastada da

comunidade.168

De acordo com René Girard, a violência é o elemento fundador da ordem cultural. É a

partir da divindade morta no rito de fundação que todos os demais ritos são originados e é a

partir deste assassinato inicial que se formam as regras matrimoniais, as proibições, as

sanções e todas as formas culturais que dão ao homem seu caráter humano. Em qualquer vida

religiosa, em qualquer prática ritual ou elaboração mítica, o tema da unanimidade aparece

com bastante frequência. Em suas análises, René Girard pretende estabelecer uma teoria dos

mitos e dos ritos, abarcando, portanto, a totalidade dos sistemas religiosos. 169

O rito é a repetição de um primeiro assassinato que trouxe a ordem de volta à

comunidade, por refazer a unidade dissolvida na violência recíproca. Entretanto, ainda de

acordo com René Girad, nenhum rito irá reproduzir todos os detalhes da operação que o

coloca na origem de todos os ritos, revelando assim que o desconhecimento é uma das

dimensões mais fundamentais de todo o pensamento religioso.170

Por outro lado, os antropólogos Henri Hubert e Marcel Mauss deslocam a análise do

ritual para valorizar a do sacrifício. Para os autores, a noção de sagrado e de sacrifício são os

operadores do conhecimento dos ritos e dos mitos. Neste sentido, a definição de sacrifício está

no centro da definição de rito. Para os autores, além de ser uma instituição, o sacrifício é um

fenômeno social, onde o rito não é uma forma de renúncia moral, com sua autonomia e

espontaneidade. Existem poucos ritos que sejam mais sociais que o sacrifício, e se a crença

nesta atividade subsiste em sua eficácia é por conta de sua natureza social.171

Marcel Maus e Henri Hubert acrescentam ainda que a palavra sacrifício está associada

etimologicamente à noção de consagração, objetivo final de todo ritual ligado à prática

168

GIRARD, R. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 17, 21. 169

Ibid., p. 122. 170

Ibid., p. 134. 171

MAUSS, M; HUBERT, H. Sobre o Sacrifício. São Paulo: CosacNaify, 2005, p. 69-70.

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71

religiosa. Mas diferentemente de outras consagrações, no sacrifício tudo o que está

relacionado ao ritual altera a sua personalidade após a sua execução.172

Por outro lado, a antropóloga Martine Segalen destaca que o caráter repetitivo de uma

ação é condição necessária, mas não suficiente para definir um rito. A autora acrescenta ainda

que não há uma definição que possa incluir a diversidade das manifestações sociais sobre as

quais a Antropologia se debruça há séculos. Para a autora, uma das características mais

fundamentais do rito é a sua flexibilidade, sua polissemia e sua capacidade para adaptar-se às

transformações sociais. O Conceito de ritual se forjou no campo religioso e passou a formar

parte do estudo das religiões.173

Martine Segalen, citando o linguista E. Benveniste, revela ainda que a etimologia de

rito está associada a formas gregas como o “Artus” (ordenação), “Ararisko” (harmonizar) e

“Arthmos” que invoca o vínculo, a união. Com a raiz indoeuropéia védica “ar”, a etimologia

leva a análise do termo até a ordem do cosmos, para a ordem das relações entre os deuses e os

homens e a ordem dos homens entre si.174

Entretanto, o campo semântico do termo ritual é bastante fértil. De acordo com

Martine Segalen, o termo cerimônia, por exemplo, nos remete aos ritos seculares solenes, de

origem profana. Contudo, os termos cerimônia, cerimonial e ritual se sobrepõem no campo do

religioso. A autora destaca ainda, certos aspectos da análise do rito relacionados à Sociologia,

a partir dos estudos de E. Durkheim, que vincula o rito à religião. Para a autora, nesta

perspectiva, o aspecto mais significativo do religioso é a distinção entre o sagrado e o

profano. A religião se caracteriza por uma divisão do universo em dois gêneros que incluem

tudo o que existe, mas que se excluem de maneira absoluta. As coisas sagradas são aquelas

que protegem e isolam as interdições. As coisas profanas são aquelas a que se aplicam as

interdições e que devem permanecer à distância das primeiras. Entretanto, o profano não pode

existir sem o sagrado.175

Ainda de acordo com Martine Segalen, a abordagem sociológica elabora a associação

entre rito e religião por outra via, a saber: as crenças e os ritos. As crenças religiosas são

representações que expressam a naturalidade das coisas sagradas e as relações que mantêm

umas com as outras, bem como com as coisas profanas. Os ritos, neste sentido, são normas de

conduta que prescrevem como o homem deve se comportar diante de coisas sagradas.176

172

MAUSS, M; HUBERT, H, op. cit., p. 15. 173

SEGALEN, M. Ritos e Rituais. Lisboa: Europa-América, 2000, p. 8-9. 174

Ibid., p. 13. 175

Ibid., p. 17. 176

Ibid., p. 17-18.

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72

Uma vez definidos os aspectos sociológicos do rito, Martine Segalen parte para a sua

própria definição de ritual. Para a autora, o rito ou ritual é um agrupamento de atos revestidos

de formalidade, com expressões portadoras de uma dimensão simbólica. Assim, o rito se

caracteriza por uma configuração espaço-temporal específica, pelo recurso a uma série de

objetos, por sistemas de comportamentos e linguagens específicas e por alguns signos

emblemáticos, cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns de determinada

sociedade.177

A partir da definição dos preceitos teóricos do termo ritual, passaremos a seguir ao

estudo dos principais aspectos do debate acerca da existência ou não de sacrifícios

sistemáticos de crianças em Cartago. Seguiremos as definições teóricas de Marcel Mauss e

Henri Hubert que aproximam o conceito de ritual ao de sacrifício.

2.3: O debate historiográfico acerca do Tophet cartaginês

“Qualquer hipótese e todos os argumentos que tecemos em torno da morte tenta

contornar um obstáculo: assim como o sol, nós não podemos olhar diretamente para

a morte. O sol, porque brilha intensamente, a morte porque é muito escura,

impenetrável. O que sabemos sobre a morte tem como base aquilo que nós não

sabemos.”178

O debate da historiografia contemporânea acerca do sacrifício humano em Cartago

esteve quase sempre ligado à questão sobre a existência ou não do ritual de sangue humano

naquela sociedade. A temática do sacrifício humano, durante muitos séculos, foi considerada

por muitos estudiosos como uma excentricidade antropológica ou, em muitos casos, como

produto de imaginações férteis. A antropóloga Barbara Ehrenreich revela que a repugnância

que os pesquisadores hoje sentem pela prática do sacrifício de seres humanos impediu que se

construíssem investigações objetivas acerca desta temática. Muitas vezes o conquistador

europeu atribuiu o sacrifício humano às civilidades conquistadas, com o objetivo de

desvalorizar a cultura local. A autora lembra que um dos argumentos mais utilizados no

século XIX para justificar a escravidão era o de libertar os prisioneiros de um destino pior nas

mãos de sua própria sociedade. Por outro lado, os pesquisadores buscavam corrigir as

distorções imperialistas negando ou ignorando as práticas de sacrifícios humanos na

Antiguidade ou no período Moderno. A partir de então, se tornou prática comum destes

estudiosos classificarem o sacrifício humano como um instrumento sensacionalista de injúria

177

SEGALEN, op. cit., p. 30. 178

Santo Piazzese - Il soffio della valanga.

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73

de uma cultura sobre a outra. Entretanto, nos dias atuais acumulam-se evidências que não

permitem negar esta prática, e o sacrifício humano, longe de ser uma excentricidade

antropológica, foi uma atividade muito difundida em variadas culturas e teve participação em

quase todas as formas de religiosidade.179

Negar a prática sistemática de sacrifícios humanos em diversas épocas e lugares reflete

a dificuldade do pesquisador contemporâneo em admitir que um evento “moralmente

repugnante” para nós tenha sido “moralmente necessário” para civilidades tão humanas

quanto a nossa. A pesquisadora Barbara Ehrenreich destaca que grande parte da história do

sacrifício humano permanece obscura, sobretudo a partir da sua relação com a prática mais

aceitável do sacrifício animal. Em muitos aspectos da narrativa mítica180

as formas do

sacrifício humano e do sacrifício animal parecem intercambiáveis. Para o leitor moderno a

prática do sacrifício humano parece ser bastante perturbadora por levá-lo a pensar em si

mesmo ou em seus semelhantes como alimento sagrado.181

Este contexto contemporâneo em relação à prática de sacrifícios humanos pode estar

relacionado ao polêmico debate acerca de sua pertinência à sociedade cartaginesa. Estes

questionamentos atravessaram a historiografia italiana, árabe, francesa e Anglo-Americana.

Iniciaremos nosso debate a partir das considerações pertinentes à Historiografia

Francesa182

. De acordo com os arqueólogos Gilbert e Collete Charles-Picard, apesar de viver

num mundo repleto de encadeamentos sobrenaturais, os homens não estão desprovidos de

meios de ação, no qual o mais poderoso é o sacrifício, que renova e restaura a energia divina.

Entretanto, para os autores, não se trata de uma simples oferenda e o sacrificador imola a ele

mesmo, sendo a vítima seu substituto. Por outro lado a persistência do rito é explicada por sua

eficácia: quanto mais elevado o valor da vítima expiatória, mas eficiente é a prática ritual. Tal

é a situação do ritual cartaginês, onde a imolação de crianças é a sua forma mais eficaz,

revelando a manutenção da tradição herdada dos fenícios do Oriente. Para os autores, a

objetividade do sacrifício cartaginês buscava expiar alguma falta cometida, algum desvio de

conduta em relação às divindades, consideradas causas das calamidades a que a cidade-estado

179

EHRENREICH, B. Ritos de Sangue. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 67. 180

Ibid., p. 68. A mitologia grega apresenta algumas referências relacionadas às práticas de sacrifícios humanos,

a saber: o Titã Cronus, que exigia carne humana; as bacantes, adoradoras de Dionísio, que destroçavam pessoas

e as devoravam vivas; e os doze troianos que, na Ilíada, foram sacrificados no funeral de Pátroclo. 181

Ibid., p. 71-73. 182

KORNIS, M. A. Cinema, televisão e história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21. A Nova História,

movimento de renovação da Historiografia francesa, teve como uma de suas características o levantamento de

novos objetos e métodos, ampliando os domínios da Historiografia tradicional. Esta renovação relativizou a

predominância da documentação escrita. É no bojo destas mudanças que a Historiografia Francesa irá deslocar

seu olhar para as questões relativas ao sacrifício de crianças em Cartago.

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74

esteve sujeita ao longo de sua história. Neste sentido, as famílias mais abastadas de Cartago

tinham a obrigação de oferecer seus filhos primogênitos à Baal Hammon e Tanit como

instrumento de restauração da aliança com os deuses.183

De acordo com Serge Lancel, o infanticídio ritual também pode atuar como um

mecanismo de controle de natalidade, ainda que estas práticas sejam consideradas

inconcebíveis nos dias atuais. Poderia ser também um sistema de regulação econômica. O

estudo de inscrições votivas descobertas na necrópole cartaginesa revela uma predominância

de dedicatórias relativamente ricas sobre estes ex-votos. Restringir sua prole era também uma

maneira que muitas famílias cartaginesas encontravam para evitar a dispersão da riqueza,

ainda que a regra da primogenitura já limitasse esse risco. E, por outro lado, menos indivíduos

para alimentar provavelmente livravam muitas famílias da pobreza. Há ainda a hipótese

funerária, teoria que defende a ideia de que a necrópole cartaginesa era um local onde se

realizavam os sepultamentos de crianças vítimas de mortalidade infantil ou vítimas de aborto.

De acordo com o autor, esta hipótese é viável do ponto de vista sociológico e religioso, mas

não resolve todos os questionamentos acerca do assunto, a saber: se todas as crianças

encontradas no sítio arqueológico cartaginês foram de fato vítimas de doenças ligadas à

mortalidade infantil, como explicar a presença de ossos de pequenos animais nas mesmas

urnas funerárias? Para o autor, somente a partir de uma melhor analise osteológica poderemos

saber objetivamente quando e sob qual circunstância ocorreu a morte dessas crianças, e então

concluir uma questão que permita negar categoricamente a realidade do sacrifício humano em

Cartago.184

Na opinião de Serge Lancel, os historiadores do mundo antigo se encontram diante de

dificuldades irredutíveis quando têm a necessidade de unir documentação textual e evidências

arqueológicas, completando umas pelas outras.185

Auguste Pavy afirma que era para a divindade Baal Hammon que os cartagineses

ofereciam vítimas humanas, durante um longo período. Ele revela que as vítimas expiatórias

eram escolhidas entre os filhos das mais importantes famílias daquela cidade.186

O historiador

Arthur Pellegrin, escrevendo quase vinte anos após as descobertas do Tophet, afirmou que

Tanit e Baal eram conhecidos por seu culto “bárbaro”, que exigia sacrifícios humanos.

Segundo ele, Baal Hammon fora representado por uma estátua de bronze cujas mãos

183

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. op. cit., 1964, p. 67. 184

LANCEL, op. cit., p. 271-273. 185

Ibid., p. 276. 186

PAVY, A. Histoire de la Tunisie. Tunis: Bouslama, [s.d.], p. 21.

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75

articuladas recebiam e deixavam cair as crianças sobre o fogo, e as descobertas arqueológicas

confirmavam essa afirmação, embora esta estátua nunca tenha sido encontrada.187

Vejamos a seguir como parte da Anglo-Americana188

tratou o assunto. Os

pesquisadores Lawrence E. Stager e Samuel R. Wolff revelam que a palavra Tophet é de

origem bíblica e se refere a uma região ao sul da antiga cidade de Jerusalém, no vale de Ben-

Hinom, onde os israelitas tinham o costume de sacrificar os seus filhos.189

As descrições

destes ritos encontram-se no texto bíblico do profeta Jeremias:

“E edificaram os altos de Tofete, que está no Vale do Filho de Hinom, para

queimarem no fogo a seus filhos e a suas filhas, o que nunca ordenei, nem me subiu

ao coração. Portanto, eis que vêm dias, diz o Senhor, em que não se chamará mais

Tofete, nem Vale do Filho de Hinom, mas o Vale da Matança; e enterrarão em

Tofete, por não haver outro lugar.”190

Estas práticas sacrificiais são comumente associadas à divindade Baal Hamom:

“E deixaram todos os mandamentos do Senhor seu Deus, e fizeram imagens

de fundição, dois bezerros; e fizeram um ídolo do bosque, e adoraram perante todo o

exército do céu, e serviram a Baal. Também fizeram passar pelo fogo a seus filhos e

suas filhas, e deram-se a adivinhações, e criam em agouros; e venderam-se para

fazer o que era mau aos olhos do Senhor, para o provocarem à ira.”191

Há ainda outra referência bíblica a estes ritos sacrificiais dedicados a uma divindade

não israelita, conhecida pelo epíteto de Moloque, cujas práticas teriam sido abolidas por volta

do século VII a. C.:

“Também profanou a Tofete, que está no vale dos filhos de Hinom, para

que ninguém fizesse passar a seu filho, ou sua filha, pelo fogo a Moloque.”192

Estas descrições bíblicas citadas acima levaram os arqueólogos e historiadores a

denominarem de Tophet o santuário onde foram descobertas urnas contendo ossos calcinados

de crianças, localizado em Cartago. De acordo com Lawrence E. Stager e Samuel R. Wolff, o

Tophet cartaginês é a maior necrópole destinada às vítimas de sacrifícios humanos já

descoberta até hoje, reforçando a ideia de que os cartagineses sacrificaram suas crianças de

forma sistemática por mais de 600 anos. A área total da necrópole está situada em torno de

187

PELLEGRIN, A. Histoire de la Tunisie. Tunis: La Rapide, 1944, p. 42. 188

SILVA, F. C. da. Em diálogo com os tempos modernos: o pensamento político e social de G. H. Mead. Rio

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p. 40. O ambiente intelectual anglo-americano assistiu a uma mudança

historiográfica na década de 1960. Estas transformações caracterizaram-se principalmente pela atitude cética dos

pesquisadores quanto à perspectiva progressista da História normalmente associada ao Positivismo, aproximando

seus estudos de uma abordagem sociológica. 189

STAGER, L. E.; WOLFF, S. R. Child Sacrifice at Carthage—Religious Rite or Population Control?

Archaeological evidence provides basis for a new analysis. Biblical Archaeology Review 10: 31–51, p. 31. 190

Jeremias 7: 31-32 191

2 Reis 17:16-17 192

2 Reis 23:10

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76

16,5 a 19,5 km2, ainda que os limites não possam ser seguramente fixados em virtude da

moderna ocupação urbana da região.193

Mapa 8: Mapa aéreo do Golfo de Túnis com destaque para localização da necrópole cartaginesa. – Fonte:

BENICHOU-SAFAR, H. Les fouilles du tophet de Salammbô à Carthage (première partie) In: Antiquités

africaines, 31,1995. pp. 81-199.

Para Lawrence E. Stager e Samuel R. Wolff as evidências arqueológicas descobertas

no Tophet cartaginês ao longo do século XX comprovam a existência das práticas sacrificiais

naquela região, descritas pelos historiadores antigos, como Diodoro da Sicília e Plutarco.

Entre estas evidências há a presença massiva de estelas funerárias votivas que revelam as

promessas feitas pelo ofertante do sacrifício, algo que não se observa em inscrições funerárias

comuns. As fórmulas mais comuns trazem as seguintes inscrições: “à nossa senhora, à Tanit,

face de Baal e ao nosso senhor, à Baal Hammon, aquilo que foi prometido (...) filho de

[descrição do nome], filho de [descrição do nome], porque ele (...) ouviu a sua voz e o

abençoou.” Além disso, há, em alguns casos, a presença de ossos de pequenos animais

193

STAGER; WOLF, op. cit., p. 33.

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77

juntamente com os ossos de crianças no interior das urnas, descobertas através das escavações

arqueológicas realizadas no local.194

De acordo com as análises apontadas pelos autores, não parece haver dúvidas quanto à

prática sacrificial exercida pelos cartagineses. Mas quais seriam as razões que os levavam a

tais práticas? De acordo com Lawrence E. Stager e Samuel R. Wolff, os cartagineses

utilizaram os animais como vítimas expiatórias nos primeiros anos após sua fundação no

século VIII a. C., mas na medida em que a cidade se desenvolveu, expandindo sua influência

ao longo do Mediterrâneo ocidental, sua população cresceu bastante, chegando quase à marca

de um milhão de pessoas. Esse crescimento demográfico teria provocado a substituição dos

animais pelas crianças na celebração dos ritos de sacrifício. Assim, objetivando estabelecer

um controle da sua densidade demográfica, Cartago viu multiplicarem-se os sacrifícios de

crianças, que foi, provavelmente incentivado pelas elites locais que buscavam a manutenção

de sua riqueza, evitando assim a divisão do seu patrimônio em diversas partes entre os seus

herdeiros. Para os autores, esta atividade religiosa foi muito importante para os cartagineses e

contou ainda com o apoio das instituições políticas locais.195

194

SATAGER; WOLF, op. cit., 34. 195

Ibid., p. 45

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78

Figura 3: Sítio arqueológico do Tophet cartaginês. – Fonte: Schwartz JH, Houghton F, Macchiarelli R, Bondioli

L (2010) Skeletal Remains from Punic Carthage Do Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoS ONE

5(2): e9177. doi:10.1371/journal.pone.0009177.

De acordo com o historiador Dexter Hoyos, a prática religiosa mais bem conhecida

sobre Cartago é aquela que se refere ao sepultamento de urnas funerárias dedicadas à Tanit e

Baal Hammon no santuário chamado de Tophet, onde os primeiros rituais teriam sido

realizados por volta do século VIII a. C e os mais recentes em meados de 146 a. C., data da

destruição da cidade pelos romanos. As evidências que apontam para a existência destes

rituais, no entanto, apresentam certas divergências entre si. A análise das urnas contendo

ossos humanos revela que a maioria pertence a crianças natimortos ou a fetos, com raras

exceções que incluem crianças entre dois e quatro anos e uma única com doze anos de idade.

As análises da medicina legal revelaram ainda que muitas crianças poderiam estar mortas no

momento em que foram cremadas. De acordo com o autor, não existe, até o momento,

nenhuma evidência arqueológica que comprove a cremação em massa de várias centenas de

vítimas como a que o historiador Diodoro da Sicília relatou ter ocorrido em 310 a. C. As

investigações acadêmicas acerca da prática de sacrifícios humanos em Cartago se encontram

em andamento, mas é possível levantar algumas questões. A primeira delas é a de que, como

Page 79: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

79

vimos acima, o Tophet cartaginês era uma necrópole destinada a crianças que morriam ao

nascer ou que eram vítimas de abortos. Por outro lado, as características dos sepultamentos,

verificadas a partir das descobertas arqueológicas, em quase nada coincidem com as

descrições de historiadores gregos ou romanos, que afirmaram estar descrevendo os ritos

habituais de sacrifícios de crianças em Cartago.196

As contradições entre as informações arqueológicas e a documentação textual são

visíveis e usar uma para reforçar ou comprovar a outra é praticamente impossível. Ainda de

acordo com Dexter Hoyos, uma estela funerária do século II a. C. oriunda da região da

Numídia (atual Argélia), na região norte do continente africano, registra o sacrifício de um

cordeiro sacrificado a Saturno, nome latino de Baal Hammon, com o objetivo de salvar a vida

de uma criança. A estela se refere ao cordeiro como um “substituto” (pro vikario) e ao rito,

como “molchomor”, versão transliterada de mr mlk’, que significa “o senhor da cidade”. Além

disso, a estela revela a seguinte inscrição: “respiração por respiração, sangue para a vida,

para a vida”. Embora esta estela seja interpretada geralmente como o sacrifício de um

cordeiro em substituição ao sacrifício da criança, parece provável, na opinião do autor, que o

animal foi entregue a Baal Hammon porque a divindade teria poupado a vida dela, ou seja,

que ela teria se recuperado de uma grave doença ou de um acidente. Esta questão

demonstraria que os ossos de animais encontrados no Tophet cartaginês juntamente com os

ossos de outras crianças são, na verdade, um agradecimento pelo fato de a divindade não tê-

las tomado também.197

Outra evidência que influenciou a interpretação dos pesquisadores é a estela abaixo,

que representaria um sacerdote conduzindo uma criança em posição sacrificial.

196

HOYOS, op. cit., p. 103. 197

Ibid., p. 103.

Page 80: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

80

Figura 4: Estela com desenho de sacerdote cartaginês.

Fonte: http://www.diggingsonline.com – Acesso em 07/02/2013

De acordo com Dexter Hoyos, esta estela não retrata um sacrifício e não se deve usá-la

como correspondente das descrições dos historiadores antigos. Trata-se, na verdade, de uma

figura masculina portando uma criança, com um gesto de benção ou oração, que pode

significar a solicitação da proteção divina. Para o autor, os ritos de sacrifícios generalizados

dos próprios filhos seriam notáveis, embora não totalmente impensáveis, em uma sociedade

na qual muitas crianças morriam durante o parto ou até mesmo antes de atingir a idade adulta.

As crianças estavam, provavelmente, mais vulneráveis a epidemias do que os adultos. Se os

cartagineses e os colonos fenícios da região norte do continente africano e da Sicília e da

Sardenha recorressem à prática sistemática de sacrifícios de crianças, colocariam em risco a

sua própria sobrevivência. As contradições verificadas entre as informações arqueológicas e a

documentação textual torna questionável a crença nestes eventos.198

De acordo com o pesquisador George Rawlinson não havia grande diferença entre o

sistema religioso dos fenícios e as demais cidades-estados orientais, exceto pelo nome das

198

HOYOS, op. cit., p. 105.

Page 81: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

81

divindades, a complexidade ou simplicidade de determinados ritos e o maior ou menor

prestígio ligado à função sacerdotal. Entretanto, um aspecto diferenciava os fenícios das

demais civilidades orientais: o sacrifício envolvendo seres humanos. De acordo com a

mitologia fenícia, o deus El, na época em que reinava sobre a terra como soberano da cidade-

estado de Byblos, havia, em uma situação de extremo perigo, sacrificado seu filho

primogênito Ieoud, como uma oferenda expiatória. A partir desta narrativa mítica, este rito

passou a ser reproduzido entre os fenícios sempre que algum tipo de calamidade social

ameaçava a sobrevivência das cidades. Tornou-se habitual ainda selecionar as vítimas

expiatórias entre os filhos das famílias mais nobres que tinham suas vidas oferecidas para

apaziguar a ira dos deuses, em uma relação de custo e benefício. Os rituais eram realizados a

partir da cremação das vítimas, que, de acordo com os sacerdotes locais, eram colocadas nos

braços de uma estátua de Moloque, que era, por sua vez, representada como uma figura

humana com cabeça de touro. De acordo com o autor, os cartagineses teriam, portanto,

herdado estas práticas e esta questão estaria evidenciada a partir das descrições do historiador

grego Diodoro da Sicília.199

Para Brent Shaw, o ritual do sacrifício era o principal meio de comunicação entre os

cartagineses e suas divindades, e o núcleo destas práticas era o sacrifício de sangue realizado

em honra ao deus Baal Hammon. Para o autor, este rito assumiu uma forma exagerada, porém

mais significativa e poderosa, na qual mais do que a imolação de animais, sacrificava-se

também seres humanos. Estes ritos, que envolviam a imolação de crianças vivas, tem

fomentado o debate sobre o assunto nos dias atuais.200

Na África, a principal evidência acerca da prática de sacrifícios humanos provém da

necrópole em Cartago. Brent Shaw revela que estes rituais possuem origem oriental, ainda

que não tenha sido descoberta nenhuma evidência de um Tophet na região da Fenícia, atual

costa sírio-libanesa. Entretanto, a descoberta de outros sítios arqueológicos no Mediterrâneo

ocidental, como o norte da África, a Sicília e a Sardenha, indica nomeadamente a distribuição

da hegemonia política, militar e cultural exercida pelos cartagineses. Assim, para o autor,

parece evidente que este tipo de sacrifício ocupou um lugar central e permanente na religião

púnica, tendo por objetivo oferecer votos às divindades como forma de promessa por algo

previamente recebido.201

199

RAWLINSON, G. History of Phoenicia. Oxford, 1990, p. 145. 200

SHAW, B. Cult and Belief in Punic and Roman Africa. In: M. R. SALZMAN; SWEENEY, M. A. (Org.) The

Cambridge History of Religions in the Ancient World. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press,

2003, p. 12. 201

Ibid., p. 13-14.

Page 82: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

82

Para Brent Shaw, no entanto, não há um debate consistente sobre as razões pelas quais

os cartagineses realizavam estas práticas, sobretudo por conta de um regime demográfico

bastante marcado pela mortalidade infantil. Entretanto, o autor considera que as evidências

encontradas até o momento sugerem que as crianças estavam vivas durante a execução do

ritual.202

O debate acerca das práticas sacrificiais em Cartago também perpassou a

Historiografia Árabe203

. De acordo com Mahmed Hassine Fantar, se não fossem as descrições

dos historiadores clássicos, os pesquisadores modernos dificilmente atribuiriam o Tophet

cartaginês ao sacrifício de crianças. Assim, o autor questiona se estas informações são

confiáveis e se os dados extraídos das escavações arqueológicas são, de alguma forma,

conclusivos.204

O primeiro questionamento feito pelo autor se refere à existência da estátua de Baal

Hammon, descrita por Diodoro da Sicília como o local onde as crianças eram sacrificadas.

Para Mahmed Hassine Fantar este relato não é verdadeiro, tendo Diodoro da Sicília

relacionado relatos cartagineses com antigos mitos sicilianos, especificamente o mito do

Touro de Bronze, no qual o tirano siciliano Phalaris, queimava seus inimigos. Por outro lado,

estas práticas estão ausentes nos relatos de outros historiadores, como Políbios, que participou

diretamente das campanhas militares dos romanos contra os cartagineses no período da

terceira guerra púnica, resultando na destruição de Cartago em 146 a. C. Além disso, Tito

Lívio, outro historiador romano relativamente bem informado sobre Cartago, também não

descreve o sacrifício de crianças realizado pelos cartagineses. Portanto, para o autor, não está

claro, a partir das fontes clássicas, que os cartagineses sacrificavam seus filhos. Quanto às

descrições bíblicas, o autor revela que os trechos não falam claramente em sacrifícios, mas

que as crianças não deveriam “passar” pelo fogo.205

E quanto aos vestígios físicos? O que eles podem nos revelar? De acordo com

Mahmed Hassine Fantar, o Tophet era o local sagrado onde as urnas contendo ossos

calcinados de crianças foram encontradas. Estes restos eram sepultados ritualmente de acordo

202

SHAW, op. cit., p. 15. 203

CHOUEIRI, Y. Modern Arab Historiography. London: Routledge Curzon, 2003, p. 66, 85. A década de

1920 representou um marco para a historiografia árabe. Este período representou uma ruptura com as velhas

tradições historiográficas vigentes até então por basear a produção do conhecimento histórico na análise

documental. A História deixou de ser uma mera descrição dos fatos. Além disso, a ocupação francesa da Tunísia,

já na segunda metade do século XIX, provocou o desenvolvimento de uma História baseada na construção de

uma identidade nacional, voltando a atenção dos historiadores para o estudo da civilidade cartaginesa. 204

FANTAR, M. H. The Tophet was the final resting place for the still-born and for children who died in

early infancy. [Online] Disponível na Internet Via: http://phoenicia.org/childsacrifice.html#ixzz2idnvICoO –

Acesso em 24-03-2013., n. p. 205

FANTAR, op. cit., n. p.

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83

com as práticas religiosas púnicas, reveladas pela presença de estelas decoradas com o

símbolo triangular da deusa Tanit. Em algumas urnas foram encontrados restos incinerados de

crianças muito pequenas ou fetos em alguns casos, juntamente com ossos de animais. Para o

autor, o Tophet cartaginês era o local onde os cartagineses faziam votos e solicitações

endereçados a Baal Hammom e Tanit, de acordo com a fórmula ritual Ut Des (dou para que

você dê), evidenciando mais uma vez a relação custo e benefício. Cada voto era acompanhado

de uma oferta. Algumas estelas sugerem de fato que os animais eram sacrificados aos deuses.

Contudo, se o Tophet não é uma necrópole, mas um santuário, como explicar a presença de

ossos calcinados de crianças nesta região? Para o autor, em muitas culturas antigas, a morte de

crianças não era tida como algo natural, e o seu local de sepultamento deveria ser em um setor

separado e distinto daquele usado pelos adultos. Da mesma forma, as crianças púnicas que

morriam precocemente possuíam um estatuto especial.206

Figura 5: Ruínas de uma residência em Cartago com o símbolo de Tanit – HOYOS, D. The Cathaginians.

London: Routledge, 2010, p. 109.

As crianças eram, portanto, cremadas e sepultadas em um recinto reservado ao culto

de Baal Hammon e Tanit. De acordo com Mahmed Hassine Fantar, as crianças não estavam

mortas no sentido usual da palavra, tendo sofrido, na verdade, um “retrocesso”. Os

cartagineses acreditavam que, por razões misteriosas, Baal Hammon havia decidido tomá-las

206

FANTAR, op. cit., n. p.

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84

para si mesmo e, submetendo-se à vontade divina, os pais devolviam-lhe as crianças, de

acordo com um ritual que envolvia, entre outras opções, a incineração e o sepultamento.207

Os cartagineses não sacrificaram seus filhos no Tophet. Para Mahmed Hassine Fantar,

este local, ao ar livre, acessível a todos que o visitavam, era um santuário sagrado presidido

por Baal Hammon e Tanit. Para este santuário se dirigiam pais em luto, que procuravam

devolver seus filhos às citadas divindades.208

O historiador Chedii Klibi, citado por S. E.

Tlatli, questiona o rótulo de “bárbaros”, herdado pelos cartagineses em virtude das práticas de

sacrifícios humanos. Para ele a história antiga de diversas civilizações está repleta de

exemplos destas atividades sagradas, como Israel e Grécia. Neste sentido, os cartagineses não

seriam mais “bárbaros” que estas civilidades da Antiguidade.209

O pesquisador Baruch Margalit destaca ainda que parte da atribuição aos cartagineses

das práticas de sacrifícios humanos é proveniente dos relatos de historiadores cristãos

posteriores ao século III da nossa era, como Filon de Biblos, Porfírio e Eusébio de Cesaréia.

De acordo com estes relatos, os fenícios tinham por hábito, em tempos de extrema agitação

social, sacrificar suas crianças aos deuses protetores da cidade.210

Por último, veremos de que maneira a Historiografia Italiana211

tratou o tema do

sacrifício de crianças em Cartago. O historiador Federico Mazza destaca que estudos recentes

revelam que os historiadores antigos, como Diodoro da Sicília e Plutarco, não tinham

conhecimento objetivo acerca dos relatos que produziram sobre sacrifícios de crianças em

Cartago. Além disso, outros historiadores do período como Herodoto, Polibios, Tucídides e

Tito Lívio não fazem menção a esta prática. Para o autor, as descrições que chegaram até nós

são, na verdade, ecos de narrativas míticas combinadas com propaganda negativa, que

produziram um quadro distorcido de um fenômeno cultural estrangeiro.212

De acordo com Ida Oggiano e Paolo Xella, os ritos realizados no santuário de Tanit

eram, ao mesmo tempo, privados e públicos, tendo sido importantes para toda a coletividade

cívica de Cartago. Para os autores, o Tophet - com suas estelas, símbolos e palavras - é o

retrato de uma civilidade em oração. Trata-se do testemunho de um lugar destinado ao diálogo

207

FANTAR, op. cit., n. p. 208

Ibid., n. p. 209

KLIBI, C. Apud, TLATLI, S. E. La Carthage punique. Étude urbaine. Paris: Mainsonneuve, 1978, p. 8. 210

MARGALIT, B. Why King Mesha of Moab Sacrificed His Oldest Son. Biblical Archaeology Society.

[Online] Disponível na Internet via: www.bib-arch.org/publication - Acesso em 23-06-2012, n. p. 211

A historiografia italiana esteve marcada, desde a década de 1970 por uma virada em direção à Micro-História,

que representou uma reação contra a história social impregnada pelas análises marxistas e contra as grandes

narrativas do progresso e da ascensão da civilidade ocidental. Neste processo, os micro- historiadores

enfatizaram os valores das culturas regionais e dos conhecimentos locais. (BURKE, 2008:61). 212

MAZZA, F. The Phoenicians as Seen by the Ancient World. In: MOSCATI, S. (org.) The Phoenicians. New

York: Abbeville Press, 1988, n. p.

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85

entre os homens e as divindades, criado para solicitar ou para agradecer por algum pedido

alcançado. Entretanto, os autores lembram que resta saber ainda quais os motivos conduziam

os cartagineses a estas práticas sacrificiais.213

Figura 6: Santuário de Tanit. Necrópole onde foram encontradas as urnas contendo ossos calcinados de crianças.

Fonte: Schwartz JH, Houghton F, Macchiarelli R, Bondioli L (2010) Skeletal Remains from Punic Carthage Do

Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoSONE 5(2): e9177. doi:10.1371/journal.pone.0009177

Sergio Ribichini concorda com esta perspectiva ao afirmar que o Tophet cartaginês

possuía certo grau de multifuncionalidade de adoração, revelando o aspecto particular de um

santuário situado no limite entre o público e o privado, um santuário social e comunitário que

era também uma réplica de uma devoção doméstica e íntima.214

2.4: A teoria sacrificial em René Girard e Marcel Mauss: uma análise comparada

Como vimos, a polêmica em torno da questão do sacrifício humano em Cartago

envolve quase sempre a sua própria existência. Estas discussões estão relacionadas à causa da

morte das vítimas expiatórias. Este debate é importante para a compreensão do valor

simbólico do ritual, no qual a análise desta atividade em Cartago nos impele ao estudo das

213

OGGIANO, I.; XELLA, P. Comunicare con gli dei. Parole e simboli sulle stele del tofet. Bollettino di

Archeologia on line I 2010/ Volume speciale. p. 55. 214

RIBICHINI, S. Il Sacello Nel “Tofet”. In: GUZZO, A.; LIVERANI, M.; MATTHIAE, P. (Org.) Da Pyrgi a

Mozia: studi sull’archeologia del Mediterraneo in memória di Antonia Ciasca (Vicino Oriente, Quaderno 3/2),

Roma 2002, p. 425-439.

Page 86: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

86

teorias antropológicas acerca do sacrifício. Para este estudo selecionamos duas modalidades

de abordagem a serem comparadas, a saber: o estudo da consagração mediante o ritual de

sacrifício, defendido pelos antropólogos Marcel Mauss e Henri Hubert e a análise da violência

primordial defendida pelo literato e antropólogo René Girard. Antes, porém é necessário

comparar os suportes de informação que apontam para a existência da prática de sacrifícios

humanos em Cartago. Para isso selecionamos a documentação textual e as análises realizadas

pela Antropologia Forense215

nos vestígios encontrados no interior das urnas funerárias, a

partir dos quais podemos inferir os seguintes Conjuntos de Problemas, conforme a grade de

comparação abaixo: em que contexto o ritual era praticado? Quais as vítimas empregadas?

Qual a causa da morte das vítimas?

Quadro Comparativo 1: Análise comparada dos suportes de informação acerca da prática de sacrifícios

humanos em Cartago.

Esta estruturação do trabalho liga-se, ao nosso entender, à perspectiva do campo de

experimentação comparada, defendida por Marcel Detienne, em que o uso induz à construção

de problemas que atravessam diversas realidades sociais em diversas temporalidades e

espacialidades. Trata-se de uma ferramenta metodológica voltada para a experimentação na

215 TIMMS, R. F. Princípios de Arqueologia Forense. San Rose (Costa Rica): EUNED, 1993, p. 20. A

Antropologia Forense é uma área especializada da Antropologia Física e se baseia nos estudos dos ossos

(Osteologia), tendo por objetivo produzir identificações médico-legais. Por identificação entende-se a descrição

dos mais variados aspectos físicos do indivíduo, como sexo, idade, altura e causa da morte, entre outros, a partir

da análise científica de sua redução esquelética. Esse ramo de atividade da Antropologia teve sua origem nos

Estados Unidos em meados do século XIX.

Ritual VítimasCausa da

MorteContexto

Antropologia

Forensex x Ausente Ausente

Documentação

Textualx x x x

Sacrifícios Humanos em Cartago

S

u

p

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o

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87

qual se colocam em perspectiva as diferenças sociais e históricas a partir de um conjunto de

problemas. 216

Os comparáveis entre historiadores e antropólogos, entre História e Antropologia, são

mecanismos de pensamento observáveis, placas de encadeamento causal. De acordo com

Marcel Detienne, são relações em cadeia que se caracterizam como escolhas realizadas pelos

grupos sociais. Quando uma sociedade elege um mecanismo de pensamento, ela faz uma

escolha, dentre muitas que poderia fazer. Disso decorre o choque do incomparável. Trata-se

da atitude metodológica que permite comparar traços semelhantes entre sociedades, mas que

apresentam certas diferenças entre si. Não se compara temas, mas maneiras de ver o mundo,

ou as maneiras como as sociedades veem a si mesmas, fatores que são distintos por

natureza.217

A Construção de Comparáveis entre historiadores e antropólogos não visa à criação de

leis e modelos do comportamento social. De acordo com Marcel Detienne, busca-se, antes de

tudo, analisar os mecanismos de pensamento, os encadeamentos decorrentes das escolhas

realizadas pelas civilidades que em muitos casos não se conhecem. A utilidade do método

reside na sua eficácia em se colocar os valores e as escolhas das sociedades em perspectiva.

Trata-se de um olhar crítico sobre a tradição. Objetiva-se compreender diversas culturas da

mesma forma que elas se compreendiam para depois analisá-las entre si, reconhecendo as

diferenças em relação às outras218

.

Assim, iniciaremos nossas análises a partir do questionamento sobre as

especificidades do Ritual de sacrifício. Vejamos como a documentação textual e a

Antropologia Forense descreveram os rituais de sacrifícios humanos em Cartago. O

historiador grego Diodoro da Sicília (90 a. C. – 30 a. C.) narrou os acontecimentos no

contexto de um dos vários embates entre cartagineses e gregos pelo controle de rotas

comerciais na região do Mediterrâneo, em meados do século III a. C.

"Quando eles refletiram sobre essas coisas e viram seu inimigo

[Agatócles] acampado diante de seus muros, eles estavam cheios de temor

supersticioso, pois acreditavam que tinham negligenciado a honra dos deuses, que

tinha sido estabelecida por seus antepassados. Eles [os cartagineses] também

alegaram que Cronus tinha se voltado contra eles na medida em que, em tempos

antigos, estavam acostumados a sacrificar a este deus o mais nobre dos seus

filhos"219

216

DETIENNE, op. cit., p. 45-53. 217

Ibid., p. 45 et. seq. 218

Ibid., p. 65-67. 219

Biblioteca Histórica 22, 14

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88

Por outro lado, Plutarco (46 – 120 d. C.), também historiador grego, ratificou estas

práticas, ao afirmar que:

"Mais uma vez, não teria sido muito melhor para os cartagineses ter

tomado Crítias ou Diagoras para elaborar seu código de legislação no início, e assim

não ter acreditado em qualquer poder divino ou deus, oferecendo sacrifícios a

Cronus? Não, mas foi com pleno conhecimento e compreensão que eles mesmos

ofereceram os seus próprios filhos;"220

O embate entre gregos e cartagineses remonta a períodos bastante anteriores a este, no

qual Diodoro da Sicília revela a prática de sacrifícios humanos. O pesquisador B. H.

Warmington revela que a partir do século VI a. C. Cartago tornou-se uma cidade-estado

autônoma, passando a exercer sua hegemonia sobre as demais colônias fenícias no

Mediterrâneo Ocidental. Estas mudanças foram provocadas pelo enfraquecimento de Tiro e

das demais cidades da Fenícia, em razão da expansão do Império Babilônico. Foi neste

contexto que se iniciaram as hostilidades entre gregos e cartagineses, sobretudo em virtude da

disputa pela região da Sicília.221

Mapa 9: Mapa com a localização das cidades gregas e cartaginesas na região da Magna Grécia.

Fonte: http:// www.de.wikipedia.org/wiki/Magna_Graecia - Acesso em 29-01-2013

220

De Superstitione, 13 221

WARMINGTON, op. cit., p. 477.

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89

Ainda de acordo com B. H. Warmington, por volta de 580 a. C. os habitantes de

Salinunte (Silenous) e de outras cidades-estados tentaram expulsar os fenícios de Mórcia

(Motya) e Palermo (Panormos). Para defender sua posição na região, os cartagineses

dirigiram campanhas militares defensivas contra os gregos. Os objetivos dos gregos eram os

de alcançar as cidades fenícias da Sardenha, abrindo acesso às rotas comerciais em direção à

Península Ibérica. Alguns anos mais tarde, os cartagineses firmaram alianças com os Etruscos,

impedindo que os gregos se fixassem na Córsega. Em 405 a. C. a cidade-estado de Siracusa

iniciou uma campanha militar para conquistar as colônias fenícias na Sicília, derrotando os

cartagineses e seus aliados na região. Ainda que vitoriosos, os siracusanos não avançaram

suas tropas, optando pelo recebimento de indenizações de guerra. Nos setenta anos seguintes,

os cartagineses evitaram os combates diretos contra os gregos, buscando ampliar seu domínio

no continente africano, ainda que mantivessem o controle sobre as principais rotas comerciais

do Mediterrâneo.222

O historiador A. G. Woodhead acrescenta que por volta do século VI a. C. as colônias

gregas do Mediterrâneo iniciaram um período de prosperidade, particularmente na região da

Sicília. Foi nessa ilha que se consolidaram as relações de conflito entre gregos e cartagineses,

a partir dos entraves criados por Cartago à expansão grega. A marinha cartaginesa aliada à da

Etrúria dominava as principais rotas comerciais daquela região, e os etruscos realizavam uma

oposição aos gregos em terra, ao longo do sul da Península Itálica. Para o autor, a expedição

do espartano Dorieus, em 514 a. C. foi a última tentativa grega de conquistar a região

ocidental da Sicília. Esta expedição objetivou fundar uma colônia grega na costa africana, e

seu iminente fracasso levou os invasores a voltar sua atenção para a região siciliana, onde

foram novamente derrotados.223

Alguns anos depois, as hostilidades entre gregos e cartagineses voltariam à tona. De

acordo com A. G. Woodhead, em 397 a. C., e após conquistar a parte oriental da Sicília, os

gregos de Siracusa lançaram-se numa batalha pela conquista da cidade púnica de Motya. Uma

grande epidemia atingiu o exército cartaginês e toda a região ficou sob o controle dos

siracusanos. Aos cartagineses restava a região mais ao norte, na cidade de Palermo, e mesmo

com algumas tentativas posteriores, não conseguiriam recuperar os territórios perdidos. Para o

222

WARMINGTON, op. cit., p. 478. 223

WOODHEAD, A. Os gregos do Ocidente. Lisboa: Verbo, 1972, p. 73-75.

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90

autor, em 339 a. C., Cartago havia se conformado com a perda de quase toda a região da

Sicília.224

Entretanto, a situação mudou a partir de 312 a. C., com a chegada de Agátocles ao

poder em Siracusa. Ainda de acordo com A. G. Woodehead, o tirano de Siracusa conquistou a

cidade-estado de Messina e outras pequenas cidades da região, despertando a atenção dos

cartagineses que temiam perder suas últimas colônias na ilha. Após algumas batalhas,

Agátocles fora derrotado e os cartagineses puseram cerco à Siracusa. A partir desta derrota, o

tirano de Siracusa decidiu mudar de estratégia, atacando a própria Cartago, onde, com o

auxilio de um pequeno exército, obteve algumas vitórias. Apesar de algumas disputas internas

junto à sua elite, os cartagineses conseguiram se reorganizar e expulsar os invasores da costa

africana.225

Foi no contexto do cerco implementado por Agátocles que os cartagineses teriam

realizado as práticas de sacrifícios de crianças, conforme as digressões de Plutarco e Diodoro

da Sicília reveladas acima.

Ao ser derrotado na África, o exército de Agátocles sofreu outras derrotas na Sicília,

sobretudo contra outras cidades gregas da região que se sublevaram contra ele. A. G.

Woodhead acrescenta que a paz assinada com Cartago restaurou as antigas fronteiras da

Sicília aos moldes do que era em meados do século V a. C.226

Os arqueólogos Gilbert e C. Charles-Picard acrescentam que entre 750 e 500 a. C. os

gregos se aproveitaram do declínio das cidades da Fenícia para formar suas colônias ao longo

do Mediterrâneo. Estabeleceram-se na Sicília oriental, expulsando a população fenícia local

que havia se estabelecido ali há quase um século. Cartago encontrava-se sozinha na tentativa

de conter o avanço grego na região, e com o auxílio dos refugiados expulsos de Tiro, na

Fenícia, e de outras colônias recém - ocupadas no Mediterrâneo, ofereceu resistência comum

a todos os colonos dispersos na Península Ibérica, na Sicília, na Córsega e na Sardenha. Em

troca de apoio militar contra os gregos, os cartagineses exigiram às antigas colônias fenícias

da região a renúncia, em seu proveito, de toda autonomia política e econômica.227

De acordo

com os autores, foi desta maneira que os cartagineses construíram seu império: no contexto

dos embates contra os gregos.

Antes da fundação de Cartago, fenícios, etruscos e gregos começaram a ocupação das

regiões estratégicas que compunham o Mediterrâneo ocidental. De acordo com Gilbert e C.

Charles-Picard, um acordo não declarado definiu as áreas de influência dos três grupos que

224

WOODHEAD, op. cit., p. 94-99. 225

Ibid., p. 103-105. 226

Ibid., p. 106. 227

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. op. cit., p. 16-17.

Page 91: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

91

ocupavam a região: os etruscos conquistaram a costa da Península Itálica, ao passo que os

gregos permaneceram na parte sul da mesma península. Para os fenícios, oriundos de Tiro, o

objetivo era o de manter o controle sobre as rotas comerciais que conduziam à Península

Ibérica, ladeando a costa norte do continente africano, chamado de Líbia pelos antigos. Estas

rotas eram compostas ainda pela parte ocidental da Sicília e pelas ilhas da Córsega e da

Sardenha, cuja ocupação parece coincidir com a fundação de Cartago. Entretanto, apenas em

meados do século VI a. C. os fenícios estiveram em condições de fazer oposição aos gregos e

outros grupos que navegavam pelo Mediterrâneo, a partir da consolidação de sua posição na

Ibéria. Aproveitando-se da crescente rivalidade entre gregos e etruscos, os fenícios

concluíram com estes últimos uma aliança na qual ficava reservado à Cartago todo o

comércio marítimo com a Península Ibérica.228

Outra aliança nos mesmos moldes entre gregos e fenícios parecia improvável. Gilbert

e C. Charles-Picard acrescentam que no final do século VI a. C. os Jônios, motivados pela

expansão Persa, emigraram em larga escala para o Ocidente, ocupando a Sardenha. Este

movimento migratório coincidiu com a tomada de Tiro por Nabucodonosor em 574 a. C., o

que transferiu para Cartago a posição de liderança sobre todas as colônias fenícias do

Ocidente. Entretanto, esta posição ocupada pelos cartagineses se revelou frágil mais tarde,

quase os conduzindo à destruição. Um dos motivos que concorreram para esta situação foi o

controle exercido pelos atenienses sobre a região oriental do Mediterrâneo, impedindo o livre

fluxo das mercadorias cartaginesas. Outro motivo apontado pelos autores foi a queda do

poderio etrusco na Península Itálica, com a sua expulsão de Roma e o consequente

estabelecimento da República. Esta situação levou os cartagineses a buscar novas regiões

onde pudessem continuar mantendo suas trocas comerciais, ampliando sua influência entre os

habitantes do continente africano, fazendo-os ressurgir economicamente.229

O historiador Hedi Slim concorda com esta perspectiva e acrescenta que a ascensão

cartaginesa chocou-se contra o poderio da Grécia, que estava no auge no século V a. C. As

forças gregas chegaram a expulsar os púnicos da cidade-estado de Himera, na Sicília em 480

a. C., o que assinalou uma data importante no processo de expansão marítima de Cartago.

Esta crescente rivalidade com os gregos provocou, na opinião do autor, uma série de

mudanças no modo de vida dos cartagineses. Até este momento, o isolamento da cidade

fenícia havia provocado dificuldades comerciais e problemas de abastecimento de alimentos.

Com o objetivo de restabelecer sua hegemonia mercantil e de novamente se colocar em

228

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. op. cit., p. 17. 229

Ibid., p. 18.

Page 92: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

92

condições de resistir às eventuais agressões dos gregos, Cartago ampliou seu domínio sobre as

populações africanas por meio de embates e acordos diplomáticos. Esta ação representou o

enriquecimento econômico para os cartagineses, a partir do controle de uma produção

agrícola em larga escala, e de um aumento do efetivo militar com a cooptação dos

contingentes locais recém-conquistados.230

Contudo, nem todas as relações entre gregos e cartagineses foram de hostilidades. O

pesquisador Mhamed Hassine Fantar revela que o estudo da epigrafia púnica oferece muitas

informações acerca de uma colônia grega estabelecida no interior da sociedade cartaginesa.

Na perspectiva do autor, este grupo seria heterogêneo, formado principalmente por artesãos,

filósofos e militares. Os casamentos mistos, bastante comuns entre os cartagineses, podem ter

sido uma das vias de assimilação com os gregos imigrantes. O autor destaca ainda que o

estudo das consequências destas relações sociais toma como objeto algumas estelas funerárias

votivas encontradas no santuário do Tophet cartaginês. O exame destas estelas permite

verificar que o santuário era bastante frequentado pelos gregos, uma vez que grande número

de dedicatórias encontra-se escrito em seu idioma. Além de indicar a numerosa presença dos

gregos em Cartago, as estelas funerárias permitem inferir que estes estavam integrados àquela

comunidade, sendo a eles permitido praticar seus cultos em acordo com as autoridades

locais.231

Entretanto, para os arqueólogos Gilbert e Collete Charles - Picard, as escavações

arqueológicas na região de Cartago revelaram algumas estelas semelhantes aos ritos

celebrados pelos gregos em honra aos seus heróis míticos, que eram muitas vezes

considerados os fundadores das cidades-estados antigas. Também é possível observar outros

vestígios materiais desta influência cultural, a saber: a arquitetura de Cartago, por exemplo,

possuía características muito semelhantes às dos gregos, que iam desde a estética dos prédios

às técnicas utilizadas para a sua construção.232

Os historiadores antigos também reconheceram a aproximação cultural entre gregos e

cartagineses. Polibios, ao descrever as características da organização política de Cartago,

revela que esta foi bem concebida desde suas origens e, em seu conjunto, assemelhava-se

consideravelmente à de Roma e à de Esparta.233

Por outro lado, o historiador grego Diodoro

da Sicília aponta semelhanças entre gregos e cartagineses no plano do sagrado. Segundo a

230

SLIM, H. Grandeur and decline of the punic city-state. Carthage must not be destroyed. The UNESCO

courier. 1970, p. 9-14. 231

FANTAR, M. H. À propos de la présence des Grecs à Carthage. In: Antiquités africaines, 34,1998. p. 11-19. 232

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C. Op. cit., p. 17. 233

História,VI – 51

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93

narrativa, os cartagineses, durante um conflito armado contra os gregos no século V a. C.

teriam enviado um número elevado de ofertas votivas ao templo de Héracles que, de acordo

com Diodoro, era cultuado em Tiro, sua cidade natal. Ademais, o historiador grego destaca

que os cartagineses acreditavam que os insucessos nas batalhas eram provocados pela

insatisfação do Titã Cronus, a quem rendiam adorações há muito tempo. Outro aspecto

apontado por Diodoro é o de que a narrativa mítica sobre as ações da divindade supracitada

deveria ocupar um lugar importante no imaginário dos cartagineses.234

Após esta exposição do contexto das descrições de Diodoro da Sicília e seus

desdobramentos, poderemos verificar as condições apontadas pela Arqueologia acerca da

frequência com que os cartagineses teriam praticado o sacrifício humano.

De acordo com o arqueólogo Roald F. Docter, a cronologia convencional do Tophet

cartaginês é tripartida e foi adotada pela primeira vez por arqueólogos britânicos e norte-

americanos na década de 1920. Esta cronologia é baseada em três níveis estratigráficos gerais

chamados de Tanit I, Tanit II e Tanit III, que atravessam todo o período de existência da

cidade-estado cartaginesa. Esta divisão baseou-se na datação inferida a partir da importação,

por parte dos cartagineses, de grande número de vasos de cerâmica oriundos da Grécia,

comparados com as urnas encontradas em diferentes sepulturas ao longo da necrópole púnica.

A Estratigrafia apresenta, portanto, a seguinte cronologia, a saber: Tanit I (750 – 600 a. C.),

Tanit II (600 – 400 a. C.) e Tanit III (300/250 – 146 a. C.).235

Vejamos a seguir a tipologia das vítimas empregadas no ritual. De acordo com a

narrativa de Diodoro da Sicília as vítimas sacrificiais eram crianças. Contudo, o autor não

acrescenta detalhes acerca da faixa etária ou do sexo das mesmas:

“[...] mas, mais recentemente, secretamente compravam e nutriam as

crianças, que enviavam para o sacrifício, e quando uma investigação foi feita,

alguns dos que haviam sacrificado foram descobertos e dissimularam. [...] em seu

zelo para reparar a sua omissão, eles selecionaram 200 dos mais nobres filhos e os

sacrificaram publicamente, e outras pessoas supostamente sacrificaram

voluntariamente, em número não inferior a 300."236

As análises da Antropologia Forense nos fornecem detalhes sobre a vítima expiatória.

O relatório do Departamento de Antropologia da Universidade de Pittsburgh na Pensilvânia,

publicado em 2010, revela informações sobre as características das vítimas. O estudo de uma

amostra de 348 urnas, provenientes de uma escavação realizada em Cartago entre 1976 e

234

Biblioteca Histórica, 14 – 1-7 235

DOCTER, R. (et. Alli). Interdisciplinary Research on Urns From the Carthaginian Tophet and Their Contents.

Palaeohistoria (haarlem) 43-44-2001-2002: p. 417–433. Department of Archaeology and Ancient History of

Europe, Ghent, Belgium. 236

Biblioteca Histórica 22, 14

Page 94: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

94

1979, destaca o seu conteúdo, a determinação do sexo e a estimativa da idade dos indivíduos

empregados no ritual.237

Figura 7: Urna contendo ossos calcinados de crianças.

Fonte: Schwartz JH, Houghton F, Macchiarelli R, Bondioli L (2010) Skeletal Remains from Punic Carthage Do

Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoSONE 5(2): e9177 doi:10.1371/journal.pone.0009177

No que tange ao conteúdo, as urnas continham ossos queimados, dentes humanos e

ossos de pequenos animais (principalmente cordeiro ou cabrito) ou ambos, em alguns casos.

Além disso, algumas urnas continham um único indivíduo ou dois, no máximo. Quanto à

identificação do sexo, as análises revelaram que, de um total de 72 indivíduos pesquisados,

58,33% eram meninas e 37,5% meninos. Em outros 4,17% das amostras não foi possível

identificar o sexo do indivíduo em virtude do seu estado de deterioração.238

Outra questão

importante foi a determinação da faixa etária dos indivíduos encontrados nas urnas, que varia

da condição de fetos à idade aproximada de 6 anos. Para este estudo foi analisado um total de

480 indivíduos, conforme gráfico abaixo:

237

SCHWARTZ, J. H.; HOUGHTON, F.; MACCHIARELLI, R.; BONDIOLI, L. Skeletal Remains from Punic

Carthage Do Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoSONE 5(2): e9177.

doi:10.1371/journal.pone.0009177, 2010, p. 10. 238

Ibid., p. 16.

Page 95: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

95

Figura 8: Gráfico com a distribuição etária da amostra do Tophet cartaginês

Fonte: Schwartz JH, Houghton F, Macchiarelli R, Bondioli L (2010) Skeletal Remains from Punic Carthage Do

Not Support Systematic Sacrifice of Infants. PLoS ONE 5(2): e9177. doi:10.1371/journal.pone.0009177

Outra questão relevante é aquela que se refere à causa da morte das vítimas

expiatórias. O historiador grego Plutarco a descreveu assim:

"[...] e aqueles que não tiveram filhos compravam os pequeninos de pessoas

pobres e cortavam suas gargantas como se fossem cordeiros ou pequenas aves,

enquanto a mãe permanecia junta sem uma lágrima ou lamúria;"239

O também historiador grego Diodoro da Sicília descreveu a execução do ritual:

"Havia em sua cidade uma imagem de bronze de Cronos, estendendo suas

mãos, palmas para cima e inclinada em direção ao chão, de modo que cada uma das

crianças, quando colocada nela, rolava e caía em uma espécie de cova aberta

cheia de fogo."240

Em ambas as descrições é possível inferir que as crianças ainda estavam vivas e eram,

portanto, mortas durante a execução do ritual. Entretanto, o relatório publicado pelo

Departamento de Antropologia da Universidade de Pittsburgh na Pensilvânia destaca que a

presença de indivíduos ainda não totalmente formados e outros indivíduos que não

sobreviveram além de uma ou até duas semanas após o parto, permite concluir que um

número significativo de crianças não poderia ter sido sacrificada, porque elas não estavam

vivas ou não tinham idade suficiente para serem consideradas entidades viáveis para o

sacrifício. Para os pesquisadores, a identificação de fetos não completamente formados na

amostra do Tophet cartaginês é consistente com a incidência de morte fetal e aborto

espontâneo como os principais contribuintes para um quadro de mortalidade infantil,

239

De Superstitione, 13 240

Biblioteca Histórica 22, 14

Page 96: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

96

provocado por doenças como varíola, infecções virais, malária e doenças renais. Além disso,

ainda de acordo com o relatório, os cartagineses poderiam estar sujeitos a estas e outras

doenças, como a cólera, disenteria, gastroenterite, hepatite infecciosa, leptospirose, febre

tifoide e parasitas intestinais, a maioria dos quais resultam em desidratação grave,

consideradas causas comuns em situações de mortalidade infantil. Em suma, para os

pesquisadores, não é possível determinar se todas as crianças encontradas no Tophet

cartaginês foram vítimas de sacrifícios.241

Estudos realizados pelo Departamento de Arqueologia e História Antiga da Europa da

Universidade de Ghent, na Bélgica, e publicados em 2003, revelaram resultados semelhantes

aos descritos acima. Os pesquisadores analisaram uma amostra com 19 urnas, onde todas as

crianças, exceto uma, eram recém-nascidas e em todos os casos não foi possível determinar a

causa da sua morte: se estas crianças morreram em decorrência de causas naturais ou se foram

mortas durante o ritual de sacrifício, as análises osteológicas não puderam revelar.242

A arqueóloga Helene Benichou-Safar afirma que as urnas do Tophet cartaginês foram

analisadas à luz da Arqueologia Comparada, da Antropologia e da Medicina Legal, mas não

foi possível determinar se as crianças estavam mortas ou vivas no momento da cremação,

ainda que permitam inferir determinados aspectos que caracterizam o processo como um

ritual. Para este estudo foram analisados 11 lotes com 147 urnas, contendo restos humanos,

restos de pequenos cordeiros, esqueletos não totalmente queimados de outros pequenos

animais, pequenos objetos e restos orgânicos do solo. A pesquisa voltou-se para a posição

sucessivamente repetida do corpo durante a cremação e as características das piras e do ritual

da cremação.243

Ainda de acordo com Helene Benichou-Safar os postulados da Antropologia Forense

determinam que na cremação aleatória, ou seja, aquela em que o indivíduo é capturado em

qualquer posição, os vestígios osteológicos tendem a ser também aleatórios. Por outro lado, se

os resultados de várias cremações são semelhantes, podemos deduzir que os corpos foram

queimados sob as mesmas condições e, em particular, nas mesmas posições. As análises das

cinzas e dos restos osteológicos das urnas do Tophet cartaginês revelaram que as crianças

foram queimadas nas mesmas posições, o que refuta a descrição de Diodoro da Sicília citada

anteriormente que sugere que as mesmas cairiam a esmo dos braços de uma estátua. Ao

241

SCHWARTZ, et. Alli, op. cit., p. 10. 242

DOCTER, R. et. Alli. Interdisciplinary Research on Urns From the Carthaginian Tophet and Their Contents.

Palaeohistoria (haarlem) 43-44-2001-2003: 417–433. Department of Archaeology and Ancient History of

Europe, Ghent, Belgium, p. 424. 243

BENICHOU-SAFAR, H. Sur l'incinération des enfants aux tophets de Carthage et de Sousse. In: Revue de

l'histoire des religions. Tome 205 n°1, 1988. pp. 57-67.

Page 97: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

97

contrário, o padrão de queima encontrado nos ossos sugere que as partes do corpo

encontravam-se equidistantes da fonte de calor, o que é consistente com a disposição sobre

uma pira, onde as crianças estavam provavelmente sentadas.244

Alguns objetos como joias, partes de tecido, amuletos e grampos de metal, também

foram encontrados no interior das urnas funerárias. Ainda de acordo com Helene Benichou-

Safar, os grampos de metal eram utilizados para garantir a vedação de uma roupa ou uma

mortalha, o que sugere que as crianças não eram colocadas nuas nas piras, mas envoltas em

tecidos.245

Outra questão relacionada ao padrão das marcas encontradas nos restos humanos

analisados permite identificar o local onde a pira funerária estava localizada. Para Helene

Benichou-Safar, as cremações incompletas permitem inferir que o ritual era realizado em

locais abertos e os vestígios de terra e areia no interior das urnas não apresentaram indícios de

queima, o que pode indicar que foram depositados sobre os indivíduos após a execução do

ritual, provavelmente para apagar o fogo.246

A partir do conjunto de informações levantadas acima, a arqueóloga Helene Benichou-

Safar descreve os elementos que comporiam o ritual cartaginês: na área do Tophet, ou em sua

proximidade imediata, uma pequena fogueira, feita de galhos entrelaçados de madeira maciça

é feita ao ar livre, sob o fundo de uma pira de Terracota. Uma criança é depositada sobre a

pira forrada com ramos, ou talvez, com pedaços de palha. Ela está vestindo ou está envolta em

um pano fechado com grampos. Não é possível dizer se ela está viva ou morta, mas, no

primeiro caso, seus membros seriam provavelmente danificados, porque a sua posição na pira

é constante. A fogueira é então acesa. Antes do processo de cremação estar concluído, por

vezes, uma parte ou a totalidade de um pequeno animal é depositado ao lado da criança. O

fogo não é fraco, de modo a garantir a combustão total dos indivíduos depositados sobre a

pira. Quando a calcinação é considerada suficiente, um punhado de terra ou areia é usado para

apagar o fogo. Chega o momento de preencher as urnas. As cinzas e as brasas são esfriadas

com água, se necessário e, depois retiradas da pira e depositadas nas urnas. Os ossos longos

das crianças também são quebrados, se necessário, e algumas joias, colares de contas e

amuletos são espalhados sobre a superfície das cinzas da urna que é, depois, fechada com uma

fina camada de argila.247

244

BENICHOU-SAFAR, op. cit., p. 59. 245

Ibid., p. 61. 246

Ibid., p. 62. 247

Ibid., p. 67.

Page 98: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

98

Em síntese, temos, nas urnas do Tophet Cartaginês, crianças de ambos os sexos cuja

faixa etária varia de meses até os 6 anos de idade e cuja causa da morte é de difícil

identificação. Além disso, a quantidade de urnas e a sua periodização nos permitem inferir

que se trata de uma prática habitual, que esteve presente ao longo de toda a história de

Cartago. A posição regular do corpo e o padrão da queima permitem inferir também que se

trata de um ritual.

Entretanto, como vimos, há certa contradição entre as descrições dos historiadores

antigos e as descobertas arqueológicas que apontam para a presença do ritual de sacrifício

entre os cartagineses. Neste sentido, é possível falar em práticas de sacrifícios humanos

naquela região, ainda que não saibamos exatamente a causa da morte das vítimas? A

primeira questão a se considerar é se os vestígios arqueológicos refletem a prática de

sacrifícios humanos ou se revelam os costumes funerários dos cartagineses, uma vez que, de

acordo com Barbara Ehrenreich, os registros arqueológicos costumam apresentar uma grande

variedade de interpretações possíveis e é preciso diferenciar os restos de um sacrifício ritual

de uma execução ou de uma simples cerimônia fúnebre.248

O pesquisador Donald Harden revela que o principal rito funerário dos fenícios era a

inumação, mas é possível encontrar também vestígios que demonstram a prática da cremação.

Para o autor, é possível definir os períodos em que a cremação ritual esteve mais presente na

civilidade cartaginesa: esta prática teria sido introduzida naquela região por volta do século

VII a. C., tendo sido abandonada no século VI a. C. e reintroduzida em meados do século III

a. C. Entretanto, ainda assim, a inumação manteve-se predominante em Cartago até a invasão

romana em 146 a. C. A presença concomitante destes ritos pode ser o resultado da origem

heterogênea da população cartaginesa.249

O historiador e arqueólogo Serge Lancel concorda com a hipótese da coexistência

entre a inumação e a cremação ritual nas práticas funerárias dos cartagineses. Para o autor, o

recurso à cremação reflete a fidelidade de parte da população de Cartago às práticas mais

recorrentes na Fenícia. O autor adverte, no entanto, que as escavações arqueológicas

demonstram que a cremação tornou-se mais frequente em Cartago a partir do século VI a. C.

No período helenístico (séculos IV ao II a. C.) a sepultura se generalizou na forma de

pequenos túmulos de pedra calcária cobertos com uma tampa, possuindo duas câmaras, sendo

uma delas destinada aos restos mortais incinerados.250

248

EHRENREICH, op. cit., p. 67. 249

HARDEN, op. cit., p. 104-105. 250

LANCEL, op. cit., p. 241.

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99

Ainda de acordo com Serge Lancel as práticas funerárias não estão desvinculadas do

desenvolvimento urbano. Nas grandes cidades-estados do mundo antigo, o crescimento

urbano se realiza em detrimento das necrópoles, abandonadas na medida em que as vilas

crescem. Cartago também praticou essa reconquista do território dos mortos em proveito dos

vivos. A coexistência parcial dos vivos e dos mortos limita a ocupação do solo, o que era

problemático para Cartago que atravessara um longo período de crescimento da sua densidade

populacional desde sua fundação em 814 a. C. Neste sentido, para o autor, o crescimento

demográfico levou os cartagineses a abandonar a inumação e a adotar a cremação em meados

do século IV a. C.251

A historiadora Glen Markoe também analisa as características da celebração dos ritos

fúnebres entre os fenícios. Segundo a autora, a iconografia funerária fenícia revela que havia

entre eles a crença na ideia de vida após a morte. A adoção de símbolos egípcios sugere esta

hipótese, como o Ankh (símbolo da vida) e a Flor de Lótus, símbolo da regeneração. A Flor de

Lótus aparece em uma variedade de contextos religiosos, associada à proteção e renovação do

morto. A proximidade do vale do Nilo justifica a influência dos ritos funerários egípcios sobre

os fenícios. A Arqueologia tem tido relativo sucesso em reconstruir tais ritos, uma vez que a

documentação textual pouco nos revela a respeito.252

As evidências arqueológicas encontradas em Cartago sugerem que um banquete ou

refeição cerimonial era encenado sobre a sepultura, por ocasião de seu fechamento. A

conclusão da cerimônia de sepultamento era acompanhada por libações e pela queima de

incensos. O ritual de preparação do morto era realizado de acordo com o segmento social a

que pertencia. O corpo era lavado, recebia óleos aromáticos e depois era envolto por

bandagens de tecido. Os mortos eram sepultados com vários utensílios, como potes de óleo,

pratos, taças e etc. As cerimônias de cremação foram introduzidas pelos fenícios no

Mediterrâneo Central e Ocidental por volta do século VIII a. C. Esta prática foi predominante

naquela região durante três séculos, sendo substituída gradualmente pelo sepultamento. Em

Cartago, o sepultamento era o método mais comum, especialmente entre os grupos sociais

predominantes.253

Estas características das práticas funerárias em Cartago levaram o arqueólogo Claude

Frédéric Armand Schaeffer a defender a hipótese de que as urnas encontradas no Tophet

251

LANCEL, op. cit., p. 242. 252

MARKOE. G. The Phoenicians. Berkeley: University of California Press, 2000, p. 137-140. 253

Ibid., p. 140.

Page 100: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

100

cartaginês estavam relacionadas a um tipo particular de sepultamento, destinado apenas para

as crianças, e instalado nas proximidades de um santuário254

.

Entretanto, ao examinarmos de forma comparada as inscrições localizadas próximas às

urnas funerárias e as inscrições dos túmulos, observamos uma sensível diferença entre elas.

As inscrições funerárias fenícias foram traduzidas a partir do semita e estão disponíveis no

Kanaanäische und Aramäische Inschriften (KAI), no Repertoire d’épigraphie Semitique

(RES) e no Corpus Inscriptionum Semiticarum (CIS). Vejamos a primeira citação:

"Eu Tabnit, sacerdote de Astarte, rei dos sidônios, filho de Eshmunazor, sacerdote

de Astarte, rei dos sidônios, descanso neste sarcófago [...]”255

Abaixo podemos perceber que algumas inscrições funerárias eram elaboradas, por

vezes, ainda durante a vida do indivíduo:

"Eu, [...] filho de Shipitbaal, rei de Byblos, fiz para mim este lugar de descanso

[...] sarcófago [...] Então eu fiz [...] neste lugar de descanso onde o descanso [...]."256

Nas urnas funerárias dos adultos que foram submetidos ao ritual de cremação também

são verificadas inscrições:

“Urna para os ossos de Abdmelqart, conselheiro, homem livre, servo (?) de

Abdmelqart. Ele construiu esta urna para ele, no comando da [...] Por toda a

eternidade.”257

Abaixo, podemos verificar que a prática da cremação coexistiu com a prática da

inumação.

“Então meu corpo foi queimado em uma pira e foi sepultado junto com os corpos da

minha família: cremado e enterrado no mesmo túmulo, urnas ao lado dos caixões,

cinzas perto dos ossos, para os homens que tinham imaginado quase o mesmo

mundo dos mortos [...]”258

Em algumas inscrições é possível observar a preocupação dos cartagineses em relação

à violação de túmulos:

254

SCHAEFFER, C. F. A. Ugaritica IV: Decouvertes Des XVII Et XIX Campagnes, 1954-1955; Fondements

Prehistoriques D'Ugarit Et Nouveaux Sondages; etudes Anthropologiques; Poteries Grecques Et Monnaies

Islamiques De Ras Shamra Et Environs: Tome XV, Mission De Ras Shamra. Paris: Librairie Orientalise Paul

Geuthner, 1962, p. 64. 255

KAI 128- Inscrição neopúnica. 256

KAI 9 – Inscrição encontrada em Byblos – Séc. V a. C. 257

RES 906 - Inscrição em duas linhas gravada em uma ânfora com duas alças encontrada na necrópole de

Sousse. 258

Transcrição de epitáfio em túmulo cartaginês – RIBICHINI, S. Il Morto. In: ZAMORA, J. A. El hombre

fenicio. Estudios y materiales. Roma, Madrid, 2003, p. 259-278

Page 101: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

101

“Túmulo de Zaybaqat, sacerdotisa de [...], filha de ‘Abdesmoun, filho de

Ba‘alyatôn, filho de ‘Abdesmoun, mulher de Ba ‘alhanno maqam elim (?), filho de

‘Abdmelqart, filho de Hamilkat, filho de ‘Abdesmoun. – Não abra.”259

Os textos das urnas funerárias do Tophet cartaginês revelam um conteúdo diferente

daqueles citados acima. Vejamos as inscrições:

“O senhor, o deus Baal Hammon, oferenda dedicada por Hannon, filho de

Magon, porque ele ouviu a sua voz e o abençoou.”260

“Ao Senhor Baal Addir e à grande Tanit face de Baal, o voto dedicado.”261

“Ao senhor Baal Hammon, o voto dedicado por Bodmelqart, filho de Magon,

para que ouça a sua voz, e seja bem-aventurado, no dia do favor [...] da benção.”262

Nas inscrições acima podemos perceber que há a indicação da relação entre o ofertante

das urnas funerárias e a divindade através das expressões “voto” e “oferenda”. Neste caso o

objeto consagrado, ou seja, a criança, atua como intermediário entre o ofertante e as

divindades. Mas é preciso distinguir a oferenda, ritual no qual um objeto se interpõe entre o

individuo e os deuses num processo de comunicação, do ritual de sacrifício. Todo sacrifício é,

em certa medida, uma oferenda, mas nem todas as oferendas são sacrifícios.263

Veremos esta

diferença a seguir, ao analisarmos de forma comparada as teorias sacrificiais pertinentes à

Antropologia, a partir da obra de René Girard e dos estudos de Henri Hubert e Marcel Mauss.

Analisaremos, portanto, os conjuntos de problemas inseridos no campo de

experimentação comparada que se referem às questões relativas à definição do conceito de

sacrifício. A partir desta análise experimental objetivamos selecionar o modelo teórico que

nos permita interpretar as informações arqueológicas de que dispomos a respeito do ritual

cartaginês, observando as seguintes questões, conforme a grade de comparação abaixo: o que

significa sacrificar e qual a função social da prática sacrificial? De que maneira se

caracteriza a vítima expiatória?

259

CIS I, 97 – Inscrição funerária proveniente de Cartago – Original disponível no Museu Borely em Marseille. 260

RES 326 – Estela funerária do Tophet Cartaginês - Original disponível no Museu do Louvre. 261

RES 326 – Estela funerária do Tophet cartaginês – Original disponível no Museu do Louvre. 262

RES 326 – Estela funerária do Tophet cartaginês – Original disponível no Museu do Louvre. 263

MAUSS, M; HUBERT, H. Sobre o Sacrifício. São Paulo: CosacNaify, 2005, p. 17.

Page 102: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

102

Quadro Comparativo 2: Análise comparada da teoria do sacrifício

Iniciaremos nosso estudo a partir da seguinte questão: o que significa sacrificar? O

antropólogo e literato René Girard destaca que nos mais diversos rituais, em variadas

sociedades, o sacrifício apresenta duas características principais, a saber: algo extremamente

sagrado do qual não se pode evitar, sob pena de incorrer em negligência, ou um crime no qual

a ação implica riscos à sociedade. Para o autor, a violência ocupa uma posição de destaque na

atividade sacrificial, fato que faz dela um importante elemento de análise. Os elementos

fisiológicos da violência variam pouco de sociedade para sociedade, e uma vez despertado, o

seu desejo produz reações corporais que preparam os homens para o embate. Existem diversas

causas que motivam a irradiação da violência, mas estas razões não devem ser consideradas

de modo absoluto, uma vez que a própria violência vai descartá-las no momento em que o seu

objeto inicial deixar o seu alcance. A violência que não pôde ser saciada irá procurar outra

vítima que não atraía sobre si a ira do violento, mas que torna-se alvo por estar vulnerável e

ao seu alcance, o que revela a capacidade humana de encontrar objetos alternativos. Para o

autor, o sacrifício ritual se baseia em uma substituição do objeto que desencadeou o desejo

violento. Esta substituição objetiva proteger o alvo inicial da violência.264

Assim, para René Girard, as sociedades buscam desviar para uma vítima indiferente,

uma violência que pudesse colocar em risco sua própria sobrevivência. É uma ação que

objetiva iludir a violência, oferecendo a ela uma válvula de escape, na qual se perde de vista o

objeto inicialmente visado. Entretanto, este aspecto da atividade sacrificial não pode ser

revelado: a substituição requer desconhecimento, ainda que o objeto desencadeador da

violência não possa ser completamente esquecido. É neste processo de desconhecimento que a

teologia do sacrifício é aplicada. A partir desta perspectiva acredita-se que uma divindade

264

GIRARD, R. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 11-13.

Conceito Vítimas Ritual Função Social

René Girard x x x x

Marcel Mauss

& Henri Hubertx x x x

Teoria Sacrificial

T

e

ó

r

i

c

o

Page 103: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

103

solicita as vítimas e em princípio apenas a ela se direciona a fumaça dos holocaustos. É para

apaziguar sua cólera que o ritual do sacrifício é praticado pelas sociedades. Há, portanto, um

esforço coletivo para organizar uma instituição social em torno de uma entidade simbólica.

Metodologicamente, o autor destaca que podemos negligenciar os aspectos teológicos do

sacrifício ritual, mas buscar as relações conflituosas por eles dissimuladas e apaziguadas.265

O sacrifício tem uma função social real. Para René Girard, a substituição operada pela

vítima abrange a totalidade da sociedade e não apenas alguns indivíduos. A vítima substitui e

é oferecida a todos os membros da comunidade. É a comunidade que o sacrifício protege de

sua própria violência. A violência apaziguada pelo sacrifício é oriunda do interior da

comunidade: são as rivalidades, as desavenças, os ciúmes, as disputas entre os próximos. O

sacrifício, em qualquer civilidade onde é aplicado, procura restaurar a harmonia da

comunidade, reforçando sua unidade social.266

No que tange à vítima sacrificial, René Girard acrescenta que não há nenhuma

distinção entre animais e seres humanos. A substituição sacrificial baseia-se no princípio da

semelhança entre a vítima atual, aquela imolada no altar, e a vítima potencial, aquela

substituída durante o ritual. Assim, para que determinado tipo de indivíduo seja considerado

sacrificável, é preciso que haja entre ele e as categorias não sacrificáveis uma semelhança

possível, mas não total, sob o risco de gerar uma grande confusão. No caso de sacrifícios de

animais esta diferença é notável. No caso dos sacrifícios humanos encontram-se os indivíduos

que apresentam vínculo bastante frágil com a coletividade social, a saber: os prisioneiros de

guerra, os escravos e as crianças. O autor acrescenta que as crianças e até mesmo os

adolescentes tornam-se vítimas sacrificáveis por não pertencerem à comunidade, uma vez que

seus diretos e deveres cívicos são quase inexistentes.267

O tema da semelhança e a fragilidade do vínculo social, no entanto, não justificam

completamente a escolha de determinadas categorias como vítimas expiatórias. Entre todos os

indivíduos passíveis de serem sacrificados e a comunidade na qual estão inseridos há a

ausência de uma relação social que provoque o desejo de vingança sobre o sacrificante em

relação à vítima. O sacrifício é uma violência sem riscos de vingança.268

Em resumo, podemos observar que, para René Girard, a função social do sacrifício é a

de purificar a violência, tornando-a sagrada, deslocando-a para vítimas que não possam ser

vingadas. Por outro lado, o ritual compreende sua própria eficácia recorrendo a elementos e

265

GIRARD, op. cit., 14-18. 266

Ibid., p. 19-20. 267

Ibid., p. 24. 268

Ibid., p. 25.

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104

objetos simbólicos. Neste processo, o sangue ocupa um lócus privilegiado em toda operação

da violência. Mas este sangue não é o mesmo da violência impura que envelhece sobre a

vítima. Trata-se do sangue fluido das vítimas recém - sacrificadas que o rito só utiliza no

instante em que é derramado, sendo imediatamente removido. O sangue é um elemento que

traz consigo um duplo aspecto, a saber: é, ao mesmo tempo, puro e impuro. É um elemento

que leva o homem à morte, mas também o apazigua e o faz reviver. Na perspectiva de René

Girard o sangue derramado no altar é um objeto simbólico essencial do ritual, no qual a

violência purificadora se manifesta.269

Por outro lado, os antropólogos Marcel Mauss e Henri Hubert apresentam perspectiva

diversa acerca da instituição sacrificial e sua função social. Os autores afirmam que a noção

de consagração está diretamente vinculada à de sacrifício, chegando por vezes a confundir

uma com a outra. Em toda atividade sacrificial determinado objeto passa do plano comum ao

domínio do religioso. Esta é uma consagração de grande alcance, afetando inclusive os

indivíduos responsáveis pela execução do ritual. Aquele que ofereceu a vítima não é mais o

mesmo após o ritual, alcançando um estado religioso distinto ou acautelando-se de algo que o

prejudicava.270

Há, no entanto, um traço distintivo entre o sacrifício e as demais consagrações. Para

Marcel Mauss e Henri Hubert, no sacrifício o objeto consagrado deve servir de intermediário

entre aquele que realiza o ritual e a divindade para quem o sacrifício é destinado. Os homens e

os deuses encontram-se separados e o sacrifício é uma das vias de comunicação entre ambos.

Mas esta característica ainda é insuficiente para distinguir o sacrifício das demais oferendas.

A característica distintiva do sacrifício em relação às outras oferendas é a destruição do objeto

apresentado. A finalidade do ritual só é atingida quando a vítima é degolada, esquartejada ou

consumida pelo fogo. No sacrifício as forças religiosas são mais devastadoras do que na

maioria das oferendas. Assim, é possível dizer que o sacrifício é toda consagração, mesmo

que de um vegetal, na qual a oferenda ou uma parte dela é destruída, ainda que por

convenção o termo tenha sido aplicado apenas aos rituais em que o sangue da vítima é

derramado no altar. O instrumento da consagração é o mesmo em ambos os casos, não

havendo, na perspectiva dos autores, motivo para qualquer distinção.271

As especificidades da vítima sacrificial também foram tema da análise de Marcel

Mauss e Henri Hubert. Algumas vítimas possuem um caráter sagrado por sua natureza, na

269

GIRARD, op. cit., p. 52-53. 270

MAUSS; HUBERT, op. cit., p. 15-16. 271

Ibid., p. 18-19.

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105

qual aparece ligada à divindade por ocasião do seu nascimento. Nestes casos, por ter um

caráter divino não é necessário que o adquira para o ritual. Por outro lado, no entanto,

algumas vítimas precisam adquirir esta característica antes da execução do ritual, para

prepará-la para a função sagrada que irá exercer. Estas vítimas, em geral, devem possuir

determinados aspectos que as tornam aptas a receber a consagração, a saber: não apresentar

doenças, pertencer a determinada faixa etária ou possuir determinado sexo. Estes aspectos

variam de cultura para cultura. Em outros casos, a vítima deve ser enfeitada, adornada com

determinados objetos ou ter sua pele pintada e as suas qualidades reveladas. Através destes

elementos, a vítima vai progressivamente sendo divinizada. Esta divinização possui um duplo

aspecto: torná-la propriedade da divindade e garantir que a mesma não se vingará após o

ritual. Estes costumes, na opinião dos autores, se justificam em função de que a vítima possui

um espírito que o ritual pretende libertar. Mas é preciso estar em comunhão com este espírito,

que de outra forma poderia se tornar perigoso, motivo que justifica os elogios e adornos

endereçados à vítima.272

Ao analisarmos as características acima podemos relacioná-las ao ritual cartaginês.

Sabemos que a vítima cartaginesa era depositada na pira sacrificial vestida unicamente com

uma mortalha e as joias e amuletos encontrados nas urnas foram ali depositados após o ritual.

A partir destas informações, podemos inferir que a ausência de ritos mais elaborados antes da

execução do sacrifício é um indicador de que a vítima colocada sobre a pira já possuía um

caráter sagrado, adquirido provavelmente após a sua morte natural, antes de alcançarem o

status de integrantes daquela comunidade.

Para Marcel Mauss e Henri Hubert, chama-se sacrifício toda ação religiosa que, a

partir da consagração da vítima, transforma o estado do indivíduo que o efetua ou de

determinados objetos pelos quais este indivíduo se interessa.273

Assim, podemos inferir que,

ainda que não possamos determinar a causa da morte das vítimas expiatórias, o ritual

praticado pelos cartagineses era de fato um sacrifício. A criança, estando ela provavelmente

morta, é colocada intacta na pira sacrificial, tendo seu estado físico alterado pelo fogo que é

posteriormente aceso. O ritual tem seu objetivo alcançado quando o fogo a consome em sua

totalidade. No final, quando as chamas se apagam ela está, portanto, sacrificada.

Entretanto, a execução do ritual sacrificial produz e é portadora de um valor simbólico

que traz consigo uma objetividade imanente. Uma vez decompostos os elementos que

compõem o ritual, torna-se imperioso avaliar o sentido por ele produzido, buscando

272

MAUSS; HUBERT, op. cit., p. 34-37. 273

Ibid., p. 19.

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106

identificar os motivos pelos quais os cartagineses recorriam a estas práticas. Este será o

assunto do próximo capítulo, no qual analisaremos os principais aspectos da religião em

Cartago e suas práticas sacrificiais em comparação com a civilidade romana, destacando a

especificidade do caso cartaginês.

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107

3. O RITUAL DE SACRIFÍCIO HUMANO EM CARTAGO: ANÁLISE

COMPARADA COM O RITUAL ROMANO E SIGNIFICADO

Neste capítulo analisaremos as interações entre a História e a Arqueologia e o seu

valor para o estudo da cultura material. As informações arqueológicas nos permitem inferir

questões acerca do ritual de sacrifícios de crianças em Cartago, a saber: os gestos feitos

durante a cerimônia, a construção das fogueiras individuais, a imobilização e instalação das

crianças, a imolação das vítimas e a extinção das brasas. Esta reconstrução parcial dos

procedimentos seguidos durante a celebração religiosa nos permite analisar seus componentes

em busca do seu significado simbólico a partir de uma perspectiva comparada com a

civilidade romana, onde a documentação textual deixa transparecer a presença de rituais

semelhantes de sacrifícios humanos. A comparação aqui empregada nos permitirá estabelecer

a singularidade do caso cartaginês, onde incluiremos a análise da sua religião e de sua

organização sacerdotal em perspectiva com as estruturas religiosas romanas. Ao final deste

capítulo pretendemos responder ao seguinte conjunto de questões, a saber: quais condições

sociais favoreciam ao desenvolvimento das atividades sacrificiais? Quais as especificidades

do uso de crianças como vítimas expiatórias? Qual o significado simbólico dos elementos

rituais presentes nestas práticas?

3.1: História e Arqueologia

A História, como disciplina moderna nascida no século XIX, manteve seu aspecto de

gênero literário herdeiro da tradição dos historiadores antigos, como Heródoto e Tucídides.

No entanto, a influência cristã agregou à História certo cunho moralista e teológico que a

distanciava dos modelos Greco-romanos274

. De acordo com Pedro Paulo Funari, a moralidade

cristã impôs à História um começo (a criação do mundo), um meio (a chegada do Messias) e

um fim (o julgamento final). A História moderna surge no contexto do embate iluminista

contra as concepções religiosas do mundo, representado pela crítica da Filologia ao privilégio

da gramática latina como centro do conhecimento275

. Os primeiros historiadores foram os

274

FUNARI, P. P. A. Os Historiadores e a Cultura Material. In: PINSKY, C. Fontes Históricas. São Paulo:

Contexto, 2006, p. 82. A história escrita pelos historiadores antigos também tinha um caráter ético, de cunho

moral, mas no sentido de impulsionar os homens a agirem numa determinada direção. 275

Ibid., p. 83. A Filologia definia um estudo positivo das línguas, com a análise de suas estruturas e relações,

como um sistema. Nesse sentido, os filólogos dedicaram-se ao estudo de línguas ainda não analisadas, buscando

reconstituir suas possíveis origens comuns.

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108

filólogos que buscavam conhecer os fatos que realmente aconteceram, e para isso precisavam

conhecer as fontes, essencialmente documentos escritos, em sua língua original. Na opinião

do autor, trata-se de uma mudança epistemológica, na medida em que defende a ideia de que a

História se faz com documentos. Em virtude de sua origem filológica, a História mantém uma

relação estreita com a documentação escrita. Entretanto, para os historiadores da tradição

Greco-romana, a História se fazia com testemunhos, objetos e paisagens, ou seja, com o uso

de fontes276

materiais.277

A Arqueologia teve origem na própria História, como uma ferramenta para

disponibilizar a documentação escrita sobre o passado e para complementar as informações

disponíveis com evidências materiais sem escrita. Ainda de acordo com Pedro Paulo Funari, a

preocupação dos pesquisadores com a documentação textual provocou inúmeras iniciativas

arqueológicas de coleta e publicação de objetos, edifícios e outros aspectos da cultura

material. O culto ao antigo se constituiu, em certo sentido, como uma atividade precursora da

Arqueologia. Para o autor, foi no século XIX, através da História e da Filologia, que a cultura

material deixou de ser um objeto artístico para se integrar ao corpus documental histórico.278

O historiador Moses I. Finley acrescenta que todos os documentos originais escritos da

Antiguidade que chegaram até nós estão disponíveis em virtude da atividade arqueológica.279

Para o pesquisador José D’Assunção Barros, a História da Cultura Material

incorporou a comunidade de arqueólogos na comunidade historiadora, uma vez que até então

a Arqueologia vinha sendo tratada como disciplina distinta da História. De acordo com o

autor, todo arqueólogo é também um historiador da Cultura Material, não se limitando a

coletar dados de civilidades.280

O historiador Jean-Marie Pesez revela que o desenvolvimento das ciências humanas

no final do século XIX esteve ligado às correntes evolucionistas281

. As mesmas correntes que

influenciaram a nova Arqueologia, a partir da tomada de consciência acerca da cultura

material. Esta nova Arqueologia objetivou, em primeiro lugar, analisar os aspectos materiais

276

FUNARI, op. cit., p. 85. O termo fonte é uma metáfora, cujo sentido inicial remete a uma “bica d’água”.

Trata-se do uso figurado da palavra de origem latina fons, da expressão “fonte de alguma coisa”, com o sentido

de origem. Para os historiadores do século XIX , assim como as fontes de água, dos documentos jorrariam

informações a serem utilizadas por eles. 277

Ibid., p. 81-84. 278

Ibid., p. 85. 279

FINLEY, M. I. História Antiga: testemunhos e modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 43. 280

BARROS, op. cit., p. 32. 281

PESSEZ, J-M. História da Cultura Material. In: LE GOFF, J.; CHARTIER, R.; REVEL, J. (Orgs.) A

História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 238. Em meados do século XIX rompeu-se com o marco das

belas letras com os quais o humanismo encarava o estudo do homem com a instauração das ciências humanas, a

Sociologia, a Antropologia e a abordagem natural proposta por Charles Darwin. On the Origin of Species (1859)

de Charles Darwin foi decisiva neste processo.

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109

das civilidades, baseando-se neles para construir a própria definição das culturas e sua

“evolução”: a Arqueologia pré-histórica. Ainda de acordo com o autor, a cultura material282

é

domínio dos arqueólogos cuja atividade no novo campo se define a partir de suas fontes: as

fontes materiais são aquelas pelas quais os arqueólogos estudam as sociedades do passado.

Durante muito tempo a Arqueologia buscou compreender as manifestações das representações

mentais sob todos os aspectos religiosos ou artísticos. A Arqueologia só atingiu a cultura

material a partir do exemplo da “pré-história” e da renovação das ciências humanas.283

(PESEZ, 2005: 240-241).

Ainda que não tenha sido ignorada por completo, a cultura material teve alcance

limitado entre os historiadores durante o século XIX. De acordo com Jean-Marie Pesez esse

cenário modificou-se a partir da escola dos Annales284

, que ampliou o domínio do historiador

acrescentando-lhe a cultura material. Por outro lado, a vida material ingressou efetivamente

na História a partir do destaque alcançado pela História Econômica que tomou o lugar da

narrativa fatual comum do século XIX. Para o autor, no entanto, a história da cultura material

continua procurando forjar seus conceitos e suas implicações teóricas até os dias atuais.285

De acordo com José D’ Assunção Barros a cultura material estuda os objetos materiais

em sua interação com diversos aspectos da vida cotidiana, desdobrando-se por temas que vão

dos estudos dos utensílios ao estudo da alimentação, vestuário, moradia e das condições

materiais do trabalho. O estudo dos objetos da cultura material faz com que esta

especificidade da História esteja ligada à Arqueologia. Entretanto, para o historiador, a

Arqueologia remete aos métodos que serão empregados para o levantamento de dados sobre

os quais irá incidir um determinado enfoque, que pode ser o da História da Cultura Material

ou outro campo específico do conhecimento histórico286

.

Para Jean-Marie Pesez o historiador da Antiguidade, por tratar de temporalidades

muito distantes, muitas vezes aborda as civilidades que estuda através de questões relativas ao

vestuário, à alimentação, às técnicas, crenças religiosas e costumes. Em muitos casos,

determinadas civilidades antigas só permitem seu estudo a partir da Arqueologia. E a

282

PESSEZ, op. cit., p. 242. Há um debate recorrente acerca do uso dos termos cultura material ou civilização

material. A palavra civilização se refere a um sistema de valores que opõe os civilizados aos bárbaros e aos

primitivos. Já o termo cultura pode ser mais facilmente utilizado no plural e não implica hierarquia. 283

Ibid., p. 240-241. 284

Destaque para os trabalhos de Marc Bloch (Les caracteres originaux de L’histoire rurale française, 1931) e

Fernand Braudel (La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II, 1949). 285

PESSEZ, op. cit., p. 247. 286

BARROS, op. cit., p. 32.

Page 110: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

110

Arqueologia, por sua natureza, transmite mais informações sobre os aspectos da cultura

material do que acerca das mentalidades e dos acontecimentos.287

O historiador Moses I. Finley acrescenta que os pesquisadores da Antiguidade durante

muito tempo relegaram à Arqueologia a condição de atividade subsidiária, de menor

importância, que fornecia informações sobre curiosidades acerca da vida cotidiana,

objetivando complementar a “verdadeira” história, obtida através dos documentos escritos.

Para o autor, os historiadores da Antiguidade nos dias de hoje devem compreender a

variedade de testemunhos que estão à disposição de suas pesquisas e que muitas vezes

parecem mutuamente contraditórios. O aumento do corpus documental deve-se, em grande

medida, à quantidade de informações arqueológicas disponíveis e à quantidade de publicações

acerca da História Antiga.288

A natureza da maioria das informações à disposição do historiador da Antiguidade é

questionável. Segundo Moses I. Finley os historiadores antigos, como Herodoto, Tito Lívio,

Dionísio de Halicarnasso, entre outros, não admitiam lacunas em suas narrativas e as

preenchiam recorrendo à invenção. Para o autor a habilidade dos antigos historiadores em

inventar e sua capacidade de acreditar nestas invenções são persistentemente subestimadas

pelos estudiosos modernos. Ao escrever a história do seu mundo, gregos e romanos se

depararam com grandes lacunas nas informações sobre o seu passado, ou ainda grande

quantidade de dados que incluíam ficção misturada aos eventos mencionados.289

As peculiaridades da produção da documentação textual colocam em questão o lugar

do indício arqueológico no corpus de informações disponíveis para o pesquisador da História

Antiga. Moses I. Finley acredita que não podemos falar da relação entre História e

Arqueologia como disciplinas distintas. Para o autor, trata-se, na verdade, de dois tipos de

testemunhos históricos. O estudo de determinados objetos, muitas vezes requer a combinação

de dois tipos de testemunhos, a saber: o escrito e o material. Nos casos em que os tipos de

testemunho estão em conflito direto, um dos dois deve ceder lugar ao outro e, normalmente,

quem cede é o testemunho escrito.290

O pesquisador Anthony Snodgrass acrescenta que a independência das evidências

arqueológicas reside no fato de que a hipótese e os argumentos do arqueólogo são parte de um

nexo de teoria arqueológica geral e prática, o que é algo independente da teoria histórica, uma

vez que ela se desenvolveu, em parte, a partir dos resultados do trabalho de arqueólogos em

287

PESEZ, op. cit., p. 244. 288

FINLEY, op. cit., 1994, p. 12. 289

Ibid., 1994, p. 20-23. 290

Ibid., 1994, p. 24.

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111

áreas que não são historicamente documentadas. A objetividade das evidências arqueológicas

revela um contraste com a qualidade de alguns dos outros elementos documentais utilizados

em História Antiga, que nem sempre é reconhecido por seus praticantes. Os historiadores da

Antiguidade usam a palavra fonte com uma latitude muito grande: Heródoto é a fonte para o

estudo da sociedade egípcia e Tucídides é a fonte para o estudo da Guerra do Peloponeso. O

problema deste uso excessivo, na opinião do autor, é que não há distinção entre a

documentação textual e outros registros contemporâneos a partir dos quais esses historiadores

antigos derivaram seus relatos e que podem, em alguns casos, ainda sobreviver. É esta

circunstância que fornece às evidências arqueológicas parte de seu valor para os estudos

antigos: os vestígios físicos escavados, pelo menos no momento de sua descoberta, nos

aproximam de um tipo de realidade histórica que nem sempre estamos propensos a acessar

por qualquer outro meio. Mas este momento é efêmero: o material escavado não possui um

significado histórico até que tenha sido submetido a uma série de processos e análises.291

A qualidade experimental da Arqueologia está ligada ao fornecimento de novas

evidências acerca de determinados objetos de estudo. De acordo com Anthony Snodgrass é

isso que permite à Arqueologia proceder, às vezes, pelo tipo de experimentação que é mais

frequentemente associada com as ciências naturais. O arqueólogo pode formular hipóteses,

variando de proposições históricas simples para modelos complexos do comportamento

humano, e, em seguida, testá-los, buscando novas evidências. Ou ele pode levantar questões

ou problemas em aberto e igualmente procurar a evidência que irá fornecer-lhe uma resposta.

O historiador, trabalhando apenas com informações não arqueológicas, normalmente não

pode recorrer a este procedimento, muito menos em História Antiga, uma vez que as

descobertas de material novo, embora não tão raras como se acredita, são quase inteiramente

imprevisíveis.292

A seguir, analisaremos de maneira comparada os principais aspectos da religião

cartaginesa e romana.

3.3: Religião cartaginesa e romana: uma comparação.

Ao tecer sua comparação entre as instituições romanas e cartaginesas, o historiador

grego Políbios destaca aquela que seria, em sua opinião, a maior superioridade dos romanos:

291

SNODGRASS, A. Archaeology. In: CRAWFORD, M. (Org.) Sources for Ancient History. Cambridge:

University Press, 1984, p. 138-139. 292

Ibid., p. 140.

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112

“[...] Parece-me, porém, que a superioridade maior do povo romano está em

suas concepções religiosas; em minha opinião, o que entre outros povos constitui

um defeito reprovável – refiro-me à superstição – é o sustentáculo da coesão de

Roma”.293

Diante destas considerações, analisaremos, a partir de um exercício de experimentação

comparada, a religião romana e a cartaginesa, objetivando destacar suas semelhanças e

diferenças, assinalando as escolhas feitas pelas respectivas civilidades. Adotaremos a tabela

abaixo com o objetivo de organizar o nosso conjunto de problemas, a saber: quais os

princípios religiosos de romanos e cartagineses? Quais as respectivas formas de contato com

os deuses? De que maneira se organizavam os sacerdotes e as celebrações rituais?

Quadro Comparativo 3: Análise comparada da religião romana e cartaginesa

Iniciaremos nossas análises a partir da interpretação acerca dos princípios religiosos

dos romanos. Para Pierre Grimal, a tradição atribui a Numa Pompílio, um Sabino que teria

governado entre 717 e 673 a. C., a organização da religião romana. Este monarca simbolizava

as formas de religiosidade desvinculadas das questões políticas e militares, conduzindo o

romano a um conhecimento mais desinteressado do sobrenatural. Foi durante o reinado de

Numa Pompílio que os romanos ergueram um templo à Fides, fundamento da vida social e

das relações que os romanos mantinham com as civilidades vizinhas, na medida em que este

conceito implicava a substituição das relações de força por relações baseadas na confiança

mútua. Este era o nascimento das instituições jurídicas romanas, cujo objetivo consistia em

regulamentar, de acordo com a ordem do mundo, toda a vida da cidade-estado.294

De acordo com Andre Aymard & Jeannine Ayboyer, um dos principais aspectos da

cultura religiosa romana foi a influência do helenismo que atravessou todos os períodos da sua

293

História, VI – 56 294

GRIMAL, op. cit., 1984, p. 24.

Os Princípios O Culto Os deuses Os Sacerdotes

Roma x x x x

Cartago x x x x

Aspectos Religiosos

R

e

l

i

g

i

ã

o

Page 113: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

113

história, desde a monarquia até os primeiros anos do principado. Desde os primeiros séculos

da sua cidade, os romanos divinizavam a força vital, a energia que comanda todas as ações,

humanas ou naturais. Desta forma, os romanos conheciam diversos numina (forças),

concedendo-lhes um gesto de veneração, uma oferenda e algumas fórmulas rituais. Assim, era

através da ação de um numen que uma criança bebia e comia e era outro numen o responsável

pela fertilidade do solo. Esta relação com o sobrenatural levou os romanos a divinizarem um

incontável numero de abstrações e atributos alegóricos, caracterizando sua religião a partir da

fragmentação e generalização do divino. Esses traços da religião romana levaram ao culto de

diversas divindades, como os variados epítetos de Júpiter295

.

De acordo com Raymond Bloch, muitos rituais foram desenvolvidos a partir do

período monárquico. Eram as práticas religiosas que mantinham unidas as tribos dos montes

albanos, sobretudo aquelas dedicadas a Júpiter Latiaris e à Diana. Durante muito tempo Roma

associou-se às cerimônias que uniam as civilidades da região do Lácio. A partir do

estabelecimento da res publique, em 509 a. C., Roma adquiriu a capacidade de impor suas

prerrogativas religiosas às demais cidades da região circunvizinha. Contudo, uma das

características mais peculiares da religião romana foi a sua abertura em relação aos cultos

estrangeiros, quer realizados por aliados, quer por inimigos. Uma consequência desta atitude

foi a introdução, em Roma, de muitos cultos oriundos das demais cidades latinas. Todos os

anos os magistrados romanos visitavam a cidade de Lavínio para realizar o sacrifício à deusa

Vesta e aos Penates, situação que não impedia que as mesmas divindades fossem cultuadas

em Roma. Os romanos veneravam assim os mesmos deuses duas vezes.296

Os romanos não possuíam qualquer objeção em acolher uma nova divindade. De

acordo com Andre Aymard e Jenninne Ayboyer em 390 a. C. uma voz desconhecida teria

anunciado a um cidadão a chegada dos Gauleses e os romanos edificaram um templo a Aius

Loquens (“que fala”). A adoção de divindades estrangeiras, no entanto, passava pela

interpretação romana, isto é, pelo reconhecimento, nestas divindades, de características

semelhantes àquelas já conhecidas e cultuadas na urbe, ainda que em certas ocasiões

295

AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 256-257. Havia os deuses Júpiteres políticos, como o Latial, divindade da

cidade e da Confederação de cidades latinas e o Júpiter Capitolino, cujo templo fora erguido pelos etruscos no

Capitólio. Havia os celestes, como o Júpiter Lucétio (Brilhante), Elício (da chuva), Fulgur (raio), Sumano (clarão

noturno), Tonans (do trovão). Havia ainda os deuses fetichistas, como o Júpiter Ferétrio, o da árvore na qual se

suspendiam os despojos do inimigo e o Júpiter Lápis, representado pelo machado Sílax e protetor das “relações

internacionais” dos romanos, entre outros. 296

BLOCH, R. Origens de Roma. Lisboa: Editorial Verbo, 1966, p. 125-126.

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114

adotassem determinadas divindades sem analisar seu próprio panteão, a fim de descobrir esta

equivalência.297

Para a pesquisadora Marilda Corrêa Ciribelli, uma das principais características da

religião romana é a sua circularidade com a política, que se constituiu uma dualidade

indissociável desde os primórdios de sua história até o fim do Império. Ainda de acordo com

a autora, nos primeiros séculos da cidade não se pode falar em deuses, nem das relações entre

vontade e ação. Para o romano, todo ser e todo ato eram divinos, cujo conjunto de vontades

era conhecido como numen. Estas forças colocavam o homem à sua mercê, sendo preciso

torná-las favoráveis, rendendo-lhes preces e oferendas para obter o desejado. Fora do domínio

do sagrado estas forças poderiam tocar um objeto ou pessoa, provocando impureza ou um

piaculum. As impurezas eram classificadas de diversas formas, a saber: os fenômenos da

natureza inanimada eram conhecidos como ostenta, e os de natureza humana ou animal eram

chamados de monstra ou miraculo.298

Outra questão que merece destaque é a relação que os romanos mantinham com as

suas divindades. De acordo com Andre Aymard e Jeannine Ayboyer, os latinos temiam as

forças sobrenaturais que controlavam a natureza, mas nutriam por elas qualquer tipo de

adoração afetiva. A religião romana se reduzia ao cumprimento de um cerimonial cujas regras

deveriam ser rigorosamente obedecidas. A “devoção” é concebida como a justiça para com os

deuses, ou seja, a execução de tudo o que lhes era devido e que os romanos julgavam ser do

seu agrado, com o objetivo de obrigá-los a conceder o que lhes pediam. Para os autores, essa

atitude não era exclusiva dos romanos e em diversas civilidades da Antiguidade os cidadãos

recorriam a todos os meios para defenderem-se dos poderes sobrenaturais.299

Para o historiador Paul Veyne, a interação dos romanos com as suas divindades

constituía-se como duas esferas de poder, nas quais se esperavam a realização de trocas, apoio

e benefícios, principalmente em momentos de disputas políticas. Por vezes, a documentação

deixa transparecer que se criticava a inoperância dos deuses da mesma forma que se criticam

as instituições políticas nos dias de hoje.300

O historiador e arqueólogo Raymond Bolch destaca, no entanto, que não devemos nos

deixar enganar pelo aparente caráter metódico da religião romana. Para o autor, em todas as

religiões há uma oposição entre a vida natural e outro campo, dominado pelo temor e pela

297

AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 258. 298

CIRIBELLI, M. C. História e Religião em Roma Antiga. In: LIMA, L. L. G.; HONORATO, C. T,;

CIRIBELLI, M. C.; SILVA, F. C. T. da. (Orgs.) História & Religião. Rio de Janeiro: FAPERJ – Mauad, 2002,

p. 28-32. 299

AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 258-259. 300

VEYNE, P. A sociedade romana. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 229.

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115

esperança e a oposição entre eles é uma ideia fundamental, onde a realização do sagrado é

uma forma de emotividade. Esta concepção dialética estava presente no pensamento, nos ritos

e no vocabulário religioso dos romanos. Neste sentido, merece destaque a palavra sacer.

Aquilo que é sacrum pertence ao reino dos deuses e difere essencialmente daquilo que

pertence à vida cotidiana dos homens. Um objeto que é caracterizado como sacer não pode

tocar ou ser tocado sem contaminar ou ser contaminado. Assim, em Roma, o criminoso que

era sacrificado aos deuses também se tornava um sacer esto. Em outras palavras, todo

criminoso que, por seus atos, expusesse a cidade à cólera divina era declarado sacer e podia

ser morto por qualquer cidadão. Desta forma, a maldição suprema (o sacer esto) era lançada

sobre um pater famílias que defraudasse seu cliente e, de igual modo, um homem que

roubasse os produtos do campo era sacrificado a Ceres.301

A palavra sacer está na origem de uma serie de ideias e termos da vida religiosa de

Roma. De acordo com Raymond Bloch havia sacrare, que significava consagrar; exsecrare,

profanar, amaldiçoar; obsecrare, pedir em nome dos deuses; a própria etimologia da palavra

sacrifício tem origem na palavra Sacrificare, que deriva de sacrum facere, significando, a

princípio, realizar uma cerimônia sagrada. Outras palavras derivadas de sacer tiveram

influência também no direito romano, como o sacramentum, que era um depósito de valores

monetários, feito aos deuses como garantia em causas judiciais. O termo sacerdos designava o

homem que realizava as cerimônias sagradas; o sacrilegus era o homem que roubava objetos

considerados sagrados; sanctus deriva de sancire, significando tornar sagrado ou

inviolável.302

A religião romana possuía também um duplo aspecto, a saber: doméstico e público.

Andre Aymard e Jeannine Ayboyer revelam que as manifestações do culto doméstico eram as

mais importantes para os romanos e compreendiam basicamente a adoração à deusa Vesta303

,

cujo altar era formado por uma lareira permanentemente acesa. O culto doméstico

compreendia também as celebrações ao “Gênio” da família, representado por uma serpente

pintada numa parede próxima ao altar de Vesta. Havia ainda as celebrações em honra aos

variados numen da casa, como os penates, cujo nome deriva do vocábulo penus, que significa

301

BLOCH, op. cit., p. 121-122. 302

Ibid., p. 123. 303

GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 305.

Vesta, a mais antiga das divindades romanas é, como a sua homóloga grega Héstia, a deusa da chama (o radical

sânscrito vas exprime o brilho luminoso). Ela é a protetora do lar. O seu culto era celebrado por um colégio de

"vestais", sacerdotisas que velavam pelo fogo sagrado e que desempenhavam um papel importante na vida

religiosa romana. Elas eram votadas ao celibato durante trinta anos e aquelas que faltavam ao seu juramento

eram enterradas vivas.

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116

provisões. Além disso, as cerimônias fúnebres e o culto aos mortos também integravam este

aspecto da religião romana.304

Fustel de Coulanges acrescenta que a religião doméstica foi a base sobre a qual todas

as religiões se assentaram na Antiguidade. O culto doméstico destinava-se à celebração dos

antepassados, que após a sua morte eram divinizados. Uma das regras distintivas desta

celebração religiosa era a de que o ritual poderia ser celebrado apenas em honra aos mortos de

cada gen pelos seus próprios familiares. O autor revela ainda que nestas celebrações havia

uma relação de troca entre os vivos e os mortos de cada família. Os antepassados recebiam

dos seus familiares uma série de banquetes fúnebres e os familiares, por sua vez, recebiam dos

seus antepassados o auxílio e a força que necessitavam nesta vida. Da mesma forma que o

vivo não poderia passar sem o morto, este também não poderia passar sem o vivo, e por este

motivo criava-se um laço que unia todas as gerações da família, constituindo uma instituição

inseparável.305

Além da religião doméstica, outra questão que merece destaque é a participação

política nos ritos oficiais do estado políade romano. De acordo com Odile Wattel, cabia ao

senado romano o controle da autoridade em relação à religião pública, uma vez que

oficializava os cultos estrangeiros e consultava os Augures antes de reunir os comícios ou

promulgar as leis. Os Augures formavam um colégio sacerdotal que tinha por função

principal consultar os Livros Sibilinos, uma coleção de antigos oráculos. Esta convergência

entre o sagrado e a política foi também a motivação de vários embates entre patrícios e

plebeus. Um exemplo desta questão foi a Secessão do Monte Sacro, que ocorreu por volta de

493 a. C. Este evento, que deu início à participação política da plebe, provocou um

separatismo religioso constatado através da construção de um templo dedicado à deusa

Ceres306

para contrabalançar o controle patrício sobre a tríade capitolina307

. O ápice deste

embate foi a implantação de duas leis tribunícias dos anos 149 e 145 a. C. sobre a eleição dos

sacerdotes.308

304

AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 260. 305

COULANGES, F. A cidade Antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. São

Paulo: HEMUS, 1975, p. 28-29. 306

GRIMAL, op. cit., 1996, p. 92-93. A divindade itálica Ceres, originária da Campânia, foi assimilada, pelos

romanos, a Deméter, que desde então se tornou numa divindade de primeiro plano. Deméter, a Terra-Mãe, é a

mais importante das divindades gregas da fecundidade. Ela encarna a terra cultivada, mais particularmente, a

cultura do trigo. 307

LEEMING, A. D. Do Olimpo a Camelot: um panorama da mitologia européia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2004, p. 65. Os etruscos substituíram a tríade arcaica romana, formada por Júpiter, Marte e Quirino, pela Tríade

composta por Júpiter, Juno e Minerva. Esta tríade era representada por um templo localizado no Monte

Capitolino. 308

WATTEL, O. As religiões grega e romana. Lisboa: Europa-América, 1992, p. 84.

Page 117: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

117

O historiador Fustel de Coulanges acrescenta que o culto público era um vínculo

unificador de toda e qualquer sociedade na Antiguidade. Em Roma não existiu nada mais

sagrado que o templo de Vesta onde, no altar, ardia constantemente o fogo sagrado. Os

romanos sempre acreditaram que o destino de sua cidade estava ligado a este fogo sagrado

que representava seus deuses. Assim como a religião doméstica, o culto público não admitia a

participação de estrangeiros.309

Os aspectos da religião pública romana nos conduzem a uma de suas principais

funções: os sacerdotes. Auxiliados pelo senado, os sacerdotes detinham o direito sagrado, cuja

administração e desenvolvimento só eram possíveis por seu intermédio. De acordo com John

Scheid, o sacerdócio era a prática de uma autoridade religiosa, na qual o poder de iniciativa

comportava os aspectos rituais do culto ou o controle do sistema religioso. Apenas os

cidadãos romanos podiam ocupar o cargo de sacerdote durante a magistratura na res publique.

Assim, esta função estava vedada a alguns indivíduos e o sacerdócio não era uma questão de

vocação, mas uma questão de estatuto social. Apenas aqueles que estavam destinados por seu

nascimento ou por sua descendência familiar poderiam exercer as funções sacerdotais. Assim,

ainda de acordo com o autor, o cargo de sacerdote era confiado a todos que eram ou tinham

sido eleitos magistrados pelo populus romanum. Contudo, os sacerdotes diferiam dos demais

magistrados por certa divisão de tarefas rituais e pela competência jurídica. Por suas

atividades rituais, os sacerdotes representavam os poderes, as qualidades e a função dos

deuses evocados, ação esta que os magistrados só faziam excepcionalmente, e em especial

quando encarnavam a plenitude do poder público e sagrado na celebração do triunfo

decorrente de uma grande vitória militar.310

É importante salientar que as atividades religiosas não impediam que o sacerdote

levasse uma vida normal de cidadão, sem que fosse necessária a interrupção de sua carreira

política. De acordo com Andre Aymard e Jennine Ayboyer, ao contrário do que podemos

imaginar, as funções sagradas não faziam dos sacerdotes intermediários entre a cidade-estado

e os deuses. Os sacerdotes eram, em grande parte, administradores e conselheiros religiosos

junto aos poderes públicos. Os sacerdócios romanos representavam um calendário religioso

com uma série de instituições justapostas, surgidas em datas diferentes e correspondendo a

preocupações diversas, em suas origens, seus princípios e sua organização.311

309

COULANGES, op. cit., p. 120-121. 310

SCHEID, J. O sacerdote. In: GIARDINA, A. (Org.) O Homem Romano. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p.

53-56. 311

AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 263.

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A seguir, analisaremos os principais aspectos da religião cartaginesa. A partir da

formação cultural fenícia da cidade-estado de Cartago, os historiadores Corine Bonnet e P.

Xella questionam sobre a possibilidade de se falar regularmente em uma religião fenícia ou

púnica. A fenícia jamais foi uma organização política unificada e o “mundo púnico” é uma

constelação de situações históricas e culturais diferentes. Constituídos de grupos geopolíticos

autônomos, os cultos exerceram uma função de diferenciação cultural nestas regiões. Era

através da identidade específica de seus deuses e deusas políades e de seu panteão que as

comunidades se distinguiam entre si. No Mediterrâneo ocidental, Cartago exerceu hegemonia

sobre as demais colônias fenícias, com uma influência cultural que penetrou o conjunto de

crenças de uma maneira original, se a compararmos com a Fenícia no Oriente. Sobre o

conjunto das práticas religiosas entre os fenícios, cerca de ¾ das fontes são epigráficas e

provenientes de Cartago, contendo, geralmente, fórmulas estereotipadas, lacônicas e muitas

vezes incompreensíveis.312

De acordo com o historiador Werner Huss, muitas vezes não é possível fazer análises

suficientemente detalhadas acerca do panteão cartaginês, suas ideias e comportamentos

religiosos e sobre a organização dos seus ritos sagrados, uma vez que a documentação textual

é rara e os testemunhos epigráficos pouco nos ajudam em termos de conteúdo a ser

estudado.313

O arqueólogo e historiador Serge Lancel, ao analisar o conjunto de crenças em

Cartago, afirma que, de maneira geral, a religião é, naquela cidade, um dos seus principais

elementos de identidade cultural, uma vez que esta fora bastante influenciada pelo Helenismo

e pela civilidade egípcia, a partir da introdução de divindades e da organização sacerdotal.

Entre os cartagineses a atividade ritual era regulamentada pelos poderes públicos e os

santuários eram construídos pelos governantes.314

Outra questão que merece destaque é que,

em Cartago, o favor da divindade não era conquistado a partir de uma conduta moral

estabelecida, mas pelo rigor das práticas rituais. Para Gilbert e Collete Charles-Picard, os

cartagineses regulamentavam suas relações com os deuses de maneira bem semelhante àquela

que utilizavam nas transações comerciais e vangloriavam-se quando conseguiam enganá-los.

Além disso, a própria divindade não podia ser considerada depositária de uma moral absoluta

e mais perfeita do que a comunidade de cidadãos.315

312

BONNET, C.; XELLA, P. La Religion. In: KRINGS, V. La civilisation Phenicienne et Punique. Leiden:

Brill, 1995, p. 317. 313

HUSS, W. Los Cartagineses. Madrid: Gredos, 1990, p. 339. 314

LANCEL, op. cit., p. 213. 315

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C., op. cit., p. 69.

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119

Corine Bonnet acrescenta que, do ponto de vista religioso, os cartagineses possuíam

diversas maneiras de estabelecer contato com as divindades, a saber: a criação de espaços

sagrados, os festivais, os símbolos religiosos e as práticas sacrificiais. As práticas religiosas

unificavam a comunidade e mostravam, ao mesmo tempo, sua diversidade com a

implementação de elementos gregos, africanos e itálicos.316

Werner Huss destaca que a

finalidade do comportamento religioso cartaginês era a de conquistar o apoio das divindades

mediante a entrega de oferendas, o cumprimento das prescrições rituais, a celebração das

festas, a construção de templos e a realização de atitudes moralmente éticas.317

Serge Lancel afirma que divindades estrangeiras foram introduzidas de forma oficial

em Cartago a partir do IV século a. C. Os cultos às deusas helênicas Deméter e Koré passam a

ser regulamentados pelos poderes públicos que detêm ainda a prerrogativa da construção e

manutenção dos templos.318

Entretanto, para Gilbert e Collete Charles-Picard, a influência

helênica em Cartago teria se iniciado em meados do século VI a. C. A partir desta data, teria

ocorrido uma reforma religiosa na cidade fenícia, demonstrada pela liderança ocupada pela

deusa Tanit em seu panteão. Esta divindade era a personificação da cidade, da mesma maneira

que Palas era representada em Atenas. Os autores acrescentam ainda que os cartagineses

atribuíam aos deuses as razões de suas desgraças, doenças, guerras e animosidades e o

sacrifício humano buscava restaurar a pax deorum, rompida por eventuais desvios rituais.319

Para Corine Bonnet, o Tophet é uma das maiores inovações da religião cartaginesa.

Outra inovação aparece na esfera do culto através da presença das divindades Tanit e Baal

Hammon, também cultuadas no Oriente Próximo, mas muito mais importantes em Cartago e

suas colônias. A presença massiva destas divindades em santuários ocidentais, especialmente

nas áreas do Tophet, é motivada provavelmente pelo fato de que desempenhavam uma função

na vida social das comunidades e, mesmo tendo origem oriental, apareciam como deuses

púnicos tradicionais.320

Por outro lado, Gilbert e Collete Charles-Picard revelam que a originalidade da

religião em Cartago residia na sua perspectiva em relação à natureza a qual consideravam

incompreensível ao homem, no qual as origens de todas as coisas encontravam explicações no

mundo dos deuses. O mundo, nesse caso, é um encadeamento de forças sobrenaturais onde o

316

BONNET, C. On God and Earth – The Tophet and construction of a new identity in punic Carthage. In:

GRUEN, E. S. Cultural Identity in the Ancient Mediterranean. Los Angeles: Getty Publications, 2011, p.

376. 317

HUSS, op. cit., p. 347. 318

LANCEL, op. cit., p. 213. 319

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C., op. cit., p. 68. 320

BONNET, op. cit., p. 378.

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120

homem dispõe de poucos meios de ação dos quais podemos destacar as práticas sacrificiais.

Estas práticas eram organizadas segundo seus objetivos, a saber: havia o Holocausto321

, o

Sacrifício Expiatório322

e o Sacrifício da Comunhão323

. Estas categorias são descritas no Tarif

Sacrificial de Mareseille, uma plaqueta de bronze contendo as taxas a serem pagas aos

sacerdotes e as tipologias das vítimas expiatórias em cada uma delas. Neste documento, no

entanto, não há menção ao sacrifício de crianças. Assim, o sacrifício, para os cartagineses,

renovava a energia divina e estava bastante presente no seu cotidiano religioso.324

O conteúdo

do Tarif Sacrificial pode ser observado abaixo:

“O templo de Baal ... Taxas fixadas sobre os pagamentos, no tempo de nossos

senhores, Halats-Baal, o Suffeta, filho de Abd-Tanith, filho de Abd-Esmun, e de

Halats-Baal, os Suffetas, filho de Abd-Esmun, filho de Halats-Baal, e de seus

colegas: para um boi, seja como holocausto, ou oferta expiatória, ou oferta de

gratidão, aos sacerdotes [deve ser dado] [10 dinheiros] de prata para cada um, e, se

for um holocausto, eles terão, além deste pagamento 300 medidas da carne, e se o

sacrifício for expiatório, [eles receberão] a gordura e as adições e o ofertante do

sacrifício receberá a pele, e as entranhas, e os pés, e o resto da carne. Para um

bezerro sem chifres e inteiro, ou para um carneiro, seja como holocausto, ou oferta

expiatória, ou oferta de gratidão, aos sacerdotes [será dado] cinco [dinheiros] de

prata para cada um, e se for um holocausto, terão, além do pagamento, um peso de

100 medidas e metade da carne e, se o sacrifício for expiatório, eles devem receber a

gordura e as adições, e da pele, e as entranhas, e os pés, e o resto da carne deve ser

dada para o ofertante do sacrifício. Por um bode, ou uma cabra, se em um

holocausto, ou oferta expiatória, ou oferta de gratidão, aos sacerdotes [será dado] um

[dinheiro] e dois [...] de prata para cada um, e se for um sacrifício expiatório, devem

receber, além do pagamento, a gordura e os acréscimos, e a pele, e entranhas, e os

pés, e o resto da carne deve ser dada para o ofertante do sacrifício. Por uma ovelha,

ou um cabrito, ou (?) uma corça, seja como holocausto, ou oferta expiatória, ou

oferta de gratidão, aos sacerdotes [será dado] três quartos de um ciclo de prata e [...],

para cada um, e se for um sacrifício expiatório, terão, além do pagamento, a gordura

e os acréscimos, e a pele, e as entranhas, e os pés, e o resto da carne [será dado] para

o ofertante do sacrifício. Para uma ave, doméstica ou selvagem, seja como oferta de

gratidão, ou para um augúrio, ou para a adivinhação, aos sacerdotes [será dado] três

quartos de um ciclo de prata e dois [...] para cada um, e a carne deve ser dada para o

ofertante do sacrifício. Para um pássaro, ou para os sagrados primeiros frutos, ou

para a oferta de um bolo, ou para uma oferta de óleo, para os sacerdotes [será dado]

10 [...] de prata para cada um, e ... Em cada sacrifício expiatório que deve ser

oferecido para as divindades, aos sacerdotes [será dado] a gordura e os acréscimos, e

com o sacrifício de ... Para uma oferta de alimentos, ou leite, ou gordura, ou para

qualquer sacrifício que qualquer homem deve oferecer como uma oblação, aos

sacerdotes [será dado] ... Para cada oferta que um homem deve oferecer, se for pobre

321

GERARDI, R. Memorial. In: Lexicon: dicionário teológico enciclopédico. São Paulo: Edições Loyola, 2003,

p. 480. Uma das três formas de sacrifício, de acordo com a tradição bíblica. O Holocausto é o sacrifício em que a

vítima é inteiramente queimada sobre o altar, representando o caráter irrevogável do dom total. A fumaça que

emerge do ritual representa a aceitação da oferenda sacrificial por parte da divindade. 322

Ibid., p. 480. No sacrifício expiatório dá-se grande importância ao sangue, que representa a alma da vítima, e

com o qual se fazem inúmeras aspersões. 323

Ibid., p. 480. Trata-se de um sacrifício que objetiva restabelecer a aliança com a divindade, e nele não se

queima totalmente o animal, cuja carne, após o ritual, era dividida em três partes, a saber: entre a divindade, o

sacerdote e o ofertante. A refeição da comunhão selava a paz entre a divindade e a comunidade ou indivíduo

implicado no ritual. 324

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C., op. cit., p. 69 e 80.

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em ovinos, ou pobre em aves, não [será dado] nada para os sacerdotes. Todo nativo,

e cada habitante, e cada festeiro à mesa dos deuses, e todos os homens os que

sacrificam ... os homens devem fazer um pagamento para todos os sacrifícios, de

acordo com o que está prescrito nesta escrita ... Cada pagamento que não está

prescrito neste tablete será feito proporcionalmente à taxa fixada por aquele conjunto

sobre os pagamentos no tempo de nossos senhores, Halats-Baal, o filho de Abd-

Tanith, e Halats-Baal, filho de Abd-Esmun, e seus companheiros. Cada sacerdote

que receber um pagamento além do montante estabelecido no este tablete será

multado ... E cada ofertante de um sacrifício não deve pagar [o montante] prescrito,

além do pagamento, que [é aqui fixado]”.325

Um dos grupos sociais mais importantes em Cartago era aquele formado pelos

sacerdotes. Gilbert e Collete Charles-Picard revelam que o conjunto sacerdotal cartaginês era

composto, ao mesmo tempo, por membros submetidos à mais rigorosa disciplina religiosa,

aos quais estavam interditados muitos aspectos da vida profana e os dignatários oriundos da

aristocracia política, isentos das limitações impostas pelo conjunto da religiosidade da cidade.

Em seu interior, este grupo social também era organizado a partir de uma hierarquia bem

definida. Cada templo estava submetido à autoridade de um chefe dos sacerdotes, chamado

Rab Kohanim. A seguir vinham os assistentes das celebrações, responsáveis pela atividade

sacrificial ou pela tonsura dos sacerdotes ou daqueles que desejassem se tornar iniciados nos

ritos religiosos. Para o autor, sua atividade principal era a organização dos sacrifícios,

elemento essencial da religião cartaginesa.326

Entretanto, para Werner Huss, a administração

da religião em Cartago não estava sob a responsabilidade dos sacerdotes. Havia, naquela

cidade, uma instituição central de controle formada por dez componentes, provavelmente

eleita pelo senado, chamada ‘srt h’sm ’s‘l hmqdsm ou “os dez homens que estão postos à

frente das questões sagradas”. Os membros desta comissão deveriam supervisionar toda a

construção e restauração de templos e monumentos. Havia ainda outra comissão, chamada de

h’s ’s ‘l hms’tt ou “Os trinta varões que estão à frente dos tribunais”, que se ocupava de todas

as questões materiais dos templos, como as quantidades que deveriam ser retidas a partir da

concessão de oferendas, sem levar em conta a opinião dos sacerdotes. Ainda de acordo com o

autor, havia também as mrzh’lm, ou “irmandades” que eram responsáveis pelas festas anuais e

pelos banquetes rituais.327

No campo da atividade religiosa os cartagineses não se diferenciavam muito dos seus

vizinhos gregos e romanos. Dexter Hoyos afirma que o panteão cartaginês era composto por

um grande número de deuses e deusas, a maior parte deles oriundos da Fenícia, sua terra

natal. O autor acrescenta ainda que a origem da deusa Tanit é incerta, pois sua representação

325

Tarif Sacrificial de Marseille Apud HAWLLINSON, op. cit., p. 193. 326

CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD, C., op. cit., p. 79-80. 327

HUSS, op. cit., p. 355-356.

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122

apresenta traços possivelmente oriundos da fenícia, agregando aspectos talvez assimilados das

culturas presentes na região norte do continente africano. Esta divindade aparece em estelas

votivas em Cartago datadas pela Arqueologia entre o final do século V e início do IV a. C.,

geralmente acompanhada de outra divindade conhecida pelo nome de Baal. Em algumas

ocasiões as inscrições mencionam Tanit Pene Baal, ou Tanit face de Baal. Ainda de acordo

com Dexter Hoyos, esta divindade possui uma simbologia bem característica composta

geralmente por um triângulo com um círculo no seu ápice e uma linha traçada

horizontalmente entre os dois, de modo que o “signo de Tanit” sugere um contorno

geométrico de uma mulher com uma longa túnica e com os braços estendidos, acompanhado

de uma meia-lua. A interpretação destes signos permanece incerta.328

Nigel Bagnall revela que as referências documentais acerca da religião cartaginesa são

fragmentadas e contraditórias. Entretanto sabemos que a religião púnica era politeísta,

caracterizada pela adoração a um grande número de divindades que controlavam a totalidade

das necessidades humanas e sociais. Segundo o autor, cada cidade-estado fenícia desenvolveu

uma diversidade de interpretações religiosas. Estas cidades organizavam a sua forma de

adoração, criando tradições individuais, agregando preeminência a certas divindades

cuidadosamente escolhidas, criando seus próprios costumes. Assim, a partir do século V a. C.

Cartago começou a adotar uma Teologia e liturgia independente dos fenícios do Oriente.

Quando as relações com Tiro, sua cidade de origem, se romperam, a adoração a Melkart,

senhor da cidade, foi substituída por Baal Hammon, e a deusa Astarte recebeu o nome de

Tanit.329

David Wright acrescenta que, entre os fenícios, os sacrifícios e festivais eram

oferecidos às divindades em benefício da comunidade. Além destas, a comunidade cívica

possuía outras maneiras de estabelecer contato com as divindades, como as orações por

exemplo. A liturgia fenícia, que previa sacrifícios a Baal Hammon e outros deuses,

recomendava que se reproduzisse um conjunto de palavras e fórmulas rituais após a

celebração. Por outro lado, os deuses poderiam se comunicar com as pessoas através de

sonhos, da adivinhação, do exame das vísceras de animais, do nascimento de crianças mal

formadas fisicamente e dos fenômenos astrológicos. Em Cartago, outro traço religioso

característico era que a religião integrava a ideologia que justificava o poder dos reis. Estes

eram legitimados através de sua descrição como “sagrados diante dos deuses”. Os deuses

328

HOYOS, op. cit., p. 95. 329

BAGNAL, op. cit., p. 12-13.

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123

faziam dos reis governantes. E alguns destes governantes chegavam a acumular a função de

sacerdotes.330

De acordo com George Rawlinson, os Fenícios adoravam seus deuses através de

festivais, orações, ofertas votivas e sacrifícios. Não sabemos ao certo de que maneira se

organizava seu calendário litúrgico, mas cada templo possuía seus festivais que atraíam

muitas pessoas, onde os deuses eram homenageados a partir de práticas sacrificiais que

poderiam durar dias. Os grandes festivais eram uma responsabilidade dos sacerdotes da

cidade, mas no âmbito doméstico, as pessoas também faziam suas celebrações, sobretudo no

que se refere ao sacrifício. Nestas celebrações as vítimas expiatórias eram animais,

principalmente o gado, as cabras, as ovelhas e os cordeiros. Os sacerdotes se organizavam em

colégios e vestiam normalmente uma túnica branca e um lenço que deveria cobrir toda a sua

cabeça. Nas celebrações sacrificais, os sacerdotes se dividiam em funções bem definidas, a

saber: uns matavam a vítima sacrifical, um segundo grupo fazia as libações, outros

preparavam o incenso e um quarto grupo prestava assistência ao ritual nos altares. No início

da Primavera um sacrifício era realizado com a presença da comunidade. Grandes árvores

eram arrancadas pela raiz e lavadas para a porta do templo onde as vítimas eram suspensas em

seus galhos e queimadas juntamente com objetos de ouro e prata, após uma solene procissão

com imagens dos deuses. Esta celebração demonstrava o agradecimento dos homens pela

bondade divina manifesta pela renovação dos campos e pela prosperidade da produção

agrícola.331

3.3: Sacrifício humano em Cartago: uma análise interpretativa comparada com o ritual

romano.

Uma vez analisados os aspectos da religião cartaginesa e da religião romana,

passaremos ao estudo comparativo dos respectivos rituais de sacrifícios humanos. Com o

objetivo de aplicar o exercício de experimentação comparada, definimos na tabela abaixo os

conjuntos de problemas a serem analisados: quando sacrificar? Quem sacrificar? Como

sacrificar? Onde sacrificar? O que significa sacrificar para romanos e cartagineses?

330

WRIGHT, D. P. Syria and Canaan. In: JOHNSTON, S. I. Religions of the Ancient World: a guide. Havard:

University Press, 2004, p. 175-177. 331

RAWLINSON, op. cit., p. 147-150.

Page 124: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

124

Quadro Comparativo 4: Análise comparada dos rituais de sacrifícios humanos em Roma e Cartago.

A descrição da documentação textual deixa transparecer a presença da atividade de

sacrifícios humanos entre os romanos. Vejamos as citações:

“Um homem e uma mulher gauleses e um homem e uma mulher gregos

foram enterrados vivos no mercado de gado.”332

“Para enterrar vivos dois gregos, um homem e uma mulher, e também dois

gauleses, no lugar chamado Fórum Boarium, ou mercado do gado.”333

Para o caso cartaginês utilizaremos nestas análises a descrição elaborada pela

arqueologia:

Na área do Tophet, ou em sua proximidade imediata, uma pequena fogueira

feita de galhos entrelaçados de madeira maciça é feita ao ar livre, sob o fundo de

uma pira de Terracota. Uma criança é depositada sobre a pira forrada com ramos, ou

talvez com pedaços de palha. Ela está vestindo ou está envolta em um pano fechado

com grampos. Não é possível dizer se ela está viva ou morta, mas, no primeiro caso,

seus membros seriam provavelmente danificados, porque a sua posição é

constante. A pira é acesa. Antes do processo de cremação estar concluído, por vezes,

uma parte ou a totalidade de um pequeno animal é depositado ao lado da criança. O

fogo não é fraco, de modo a garantir a combustão total dos indivíduos depositados

sobre a pira. Quando a calcinação é considerada suficiente, um punhado de terra ou

areia é usado para apagar o fogo. Chega o momento de preencher as urnas. As cinzas

e as brasas são esfriadas com água, se necessário e, depois retiradas da pira e

depositadas nas urnas. Os ossos longos das crianças também são quebrados, se

necessário, e algumas joias, colares de contas e amuletos são espalhados sobre a

superfície das cinzas da urna que é depois fechada com uma fina camada de

argila.334

De acordo com Pedro Paulo Funari, o historiador que utiliza as informações

arqueológicas deve tomá-las como documentos, separando as interpretações dos dados

332

Tito Lívio 22, 57 333

Plutarco - Vida de Marcellus, 3 334

BENICHOU-SAFAR, op. cit., p. 67.

Contexto Divindades Área Sacrificial Instrumentos Valor simbólico

Roma x x x x x

Cartago x x x x x

R

i

t

u

a

i

s

Sacrifícios Humanos

Page 125: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

125

primários, da mesma forma como faz o tratamento da documentação de arquivo ou com os

textos de autores antigos.335

A primeira questão que devemos considerar é o contexto no qual os rituais, o romano e

o cartaginês, acima descritos, foram realizados. Iniciaremos pelo caso romano. A atividade

sacrificial em Roma foi verificada durante a segunda guerra púnica contra os cartagineses e

em particular após a derrota romana na batalha de Canas. Depois de muitos insucessos contra

os cartagineses a partir da invasão de Aníbal à Península Itálica, os romanos decidiram acabar

com a guerra numa única batalha. De acordo com S. I. Kovaliov, neste embate as forças

romanas chegavam a 80.000 infantes e 6.000 cavaleiros enquanto os cartagineses possuíam

em torno de 40.000 infantes e 10.000 cavaleiros.336

O historiador Michael Grant acrescenta

que os romanos atacaram acreditando que a superioridade numérica lhes faria vencer o

conflito. Entretanto, Aníbal deixou que sua linha de infantaria, em forma convexa, se tornasse

côncava sob a pressão do ataque romano. Após derrotar a cavalaria inimiga, os cavaleiros

cartagineses atacaram a retaguarda da infantaria romana. O cerco estava completo.337

Amontoados em um pequeno espaço, sem possibilidade de manobrar, os romanos haviam se

tornado presa fácil. S. I. Kovaliov destaca que a partir de então nenhuma pedra, nenhuma

flecha e nenhuma espada cartaginesa deixava de acertar o golpe. Cerca de 70.000 soldados

romanos caíram no campo de batalha. Os demais foram feitos prisioneiros ou fugiram. Os

cartagineses, por outro lado, perderam cerca de 6.000 soldados ao todo, dos quais cerca de

4.000 eram gauleses.338

A sequência de imagens abaixo ilustra o desenvolvimento da tática de

Aníbal.

335

FUNARI, op. cit., p. 108. 336

KOVALIOV, S. I. Historia de Roma. Buenos Aires: Futuro, 1960, p. 74. 337

GRANT, op. cit., p. 112. 338

KOVALIOV, op. cit., p. 75.

Page 126: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

126

Figuras 8 e 9: Táticas de Aníbal na batalha de Canas.

Fonte: www.pt.wikipedia.org – Acesso em 09-07-2013

Após a derrota do seu exército, os cidadãos romanos foram acometidos por um pânico

generalizado. O historiador Tito Lívio descreveu parte do cenário em Roma após a batalha de

Canas:

“Os medos dos homens foram aumentados pelos prodígios relatados

simultaneamente a partir de muitos lugares: na Sicília os dardos de vários soldados

tinham tomado fogo; na Sardenha, um cavaleiro estava fazendo a ronda quando a

mesma coisa aconteceu com o cassetete que ele segurava na mão; muitos incêndios

haviam iluminado a costa; que dois escudos tinham suado sangue; que certos

soldados haviam sido atingidos por um raio; que pedras brilhantes tinham caído do

céu em Praeneste; que em Arpi, escudos tinham aparecido no céu e o sol parecia

estar lutando com a lua; que em Capena duas luas tinham subido durante o dia; que

as águas do Caere fluíram misturadas com sangue; e que manchas de sangue

surgiram na água que escorria da fonte do próprio Hércules; que em Antium, quando

alguns homens estavam colhendo, espigas sangrentas de milho haviam caído em sua

cesta; que em Falerii o céu parecia estar rompido como uma grande fissura, e através

da abertura, uma luz tinha brilhado; [...] que em Capua houve o aparecimento de um

céu em chamas e de uma lua que caiu no meio de uma tempestade. Prodígios menos

memoráveis também receberam crédito: certa gente tinha encontrado cabras que

produziam lã; que uma galinha tinha se transformado em um galo e um galo, em

uma galinha.”339

De acordo com S. I. Kovaliov neste período em Roma uma multidão de mulheres se

reuniu, desesperada, na frente do Fórum e nas entradas da cidade, para ouvir as notícias que

chegavam do campo de batalha. Com o objetivo de conter esta situação, o Senado proibiu as

mulheres de se manterem em lugares públicos e de chorar em público pelos seus mortos e em

todas as portas foram colocados soldados que impediam que qualquer pessoa deixasse a

cidade.340

Para os romanos estes sinais implicavam o rompimento da pax deorum. Tratava-se,

portanto, de sinais de prodigium que precisavam ser expiados. De acordo com Marília Corrêa

Ciribelli, o prodigium significava que as forças sobrenaturais haviam sido liberadas e,

339

Tito Lívio 22, 1 – 8-13 340

KOVALIOV, op. cit., p. 76.

Page 127: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

127

portanto, poderiam tocar em objetos ou pessoas, provocando o piaculum. Esta situação

poderia generalizar-se, indo atingir toda a urbe. Todas estas alterações na ordem do

sobrenatural traziam consigo um sentimento de horror. Para combatê-las, os romanos

utilizavam a procuratio, cerimônia de expiação que objetivava isolar o restante da natureza e

do mundo dos traços do fenômeno que rompera o curso natural da vida.341

Os historiadores Andre Aymard e Jeannine Ayboyer revelam que o senado romano

proibiu inicialmente toda e qualquer coleção de profecias, livros de orações e tratados de

sacrifícios. Proibiu ainda as práticas sacrificiais em local público ou consagrado, segundo um

ritual novo ou estrangeiro. Ainda assim as imagens emotivas se multiplicavam e aos

governantes só restou o recurso de tentar canalizá-las. Desta forma, o historiador Fábio Pictor

foi enviado a Delfos para consultar o oráculo de Apolo. De acordo com as exigências deste

oráculo, o “melhor” homem de Roma deveria trazer a deusa Cibele342

, mãe dos deuses, até a

costa de Óstia, de onde as matronas343

deveriam conduzi-la até a cidade, onde fora instalada

no pomerium344

. Foi a primeira vez que se instituiu um culto oriental em Roma.345

Além do oráculo de Delfos, o senado romano mandou consultar os Livros Sibilinos346

:

"Os Decênviros foram ordenados a consultar os Livros, e Quintus Fabius Pictor foi

despachado para Delfos para consultar o oráculo sobre quais as preces e súplicas

poderiam oferecer aos deuses para pôr fim a todas as suas calamidades. Enquanto

isso, seguindo a orientação dos Livros do Destino, alguns sacrifícios incomuns

foram feitos.”347

341

CIRIBELLI, op. cit., p. 31-33. 342

GRIMAL, Op. Cit., 1996, p. 77-78. O culto da Deusa Mãe é um dos mais antigos cultos da bacia do mar

Egeu. Quer se trate da deusa cretense da fecundidade, quer se trate da Grande Mãe, adorada na Frígia, estas

divindades irão confundir-se com a deusa grega Reia, esposa de Cronos, mãe de Zeus e dos grandes deuses do

Olimpo. 343

POMEROY, S. B. Diosas, rameras, esposas y esclavas: mujeres en la antigüedad clásica. Madrid: AKAL,

1999, p. 171. Mulheres da aristocracia romana, que participavam de salões literários e chegavam a discutir os

assuntos da alta política da cidade-estado. 344

BEARD, M.; NORTH, J.; PRICE, S. R. F. Religions of Rome. Vol. 1. A History. Cambridge: University

Press, 1998, p. 177-179. Fronteira sagrada definida por uma linha simbólica traçada por Rômulo durante a

fundação da cidade. A distinção entre o território interno e externo desta fronteira pode ser percebida em sua

relação com as atividades militares: a autoridade militar (Imperium) de um general romano era válida apenas

fora do pomerium e todos os afazeres militares eram excluídos deste território. Era a área onde os magistrados

consultavam os auspícios e estabeleciam suas relações rituais com os deuses da cidade. 345

AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 274-275. 346

MORESCHINI, C.; NORELI, E. História da Literatura Cristã Antiga Grega e Latina. Vol. I: de Paulo à

Era Constantiniana. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 306. Livros que continham um conjunto de profecias

oraculares prescritas pela Sibila de Cumas que eram consultadas em momentos nos quais a sobrevivência da

urbe estava ameaçada. 347

Tito Lívio, 22- 57

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128

De acordo com S. I. Kovaliov para satisfazer o “temor supersticioso” da multidão, os

romanos recorreram a um rito antigo: no Fórum Boarium foram sepultados vivos um casal de

gauleses e um casal de gregos.348

Após esta breve exposição do contexto do ritual romano, varemos a seguir a

conjuntura na qual os sacrifícios humanos eram praticados em Cartago. Para Serge Lancel, o

levantamento estratigráfico do tophet cartaginês revelou que esta atividade religiosa esteve

presente ao longo de quase toda história daquela civilidade, não correspondendo, portanto, a

um contexto específico. A data inicial da prática sacrificial, chamada de Tanit I, é definida

pela Arqueologia a partir de 730 a. C. – deixando um hiato de aproximadamente três gerações

desde a fundação da cidade, em 824 a. C. Esta primeira fase, bem caracterizada pela sua

clareza estratigráfica, revela urnas votivas, feitas em cerâmica e depositadas de modo esparso

na camada mais baixa do Tophet. O segundo período, inaugurado por volta de 600 a. C. e

conhecido como Tanit II, apresenta as urnas funerárias acompanhadas de estelas votivas em

forma de L, esculpidas em arenito extraído da região do campo bom, terras férteis ao norte da

cidade de Cartago. Ainda nesta fase é possível perceber que estas estelas mais rudimentares

são substituídas por monumentos maciços revestidos de estuque branco e com vestígios

cromáticos bem preservados, revelando pigmentos de amarelo, vermelho e azul claro. Além

disso, algumas figuras aparecem em relevo nestes monumentos: trata-se possivelmente de

uma divindade feminina, reconhecida como Tanit, com uma silhueta em pé e às vezes com os

braços cruzados sobre o peito. Na segunda fase do Tanit II (séculos IV e III a. C.) podemos

perceber que as estelas de calcário são substituídas por outras de arenito, apresentando um

frontão triangular com diferentes símbolos: o disco e a lua crescente. Além disso, vemos, pela

primeira vez, aparecer as inscrições “Tanit face de Baal”, que se tornarão mais frequentes no

período posterior. No Tanit III (até 146 a. C.), cujas camadas superiores ficaram achatadas e

cortadas em virtude da ocupação romana, as estelas de pedra calcária são cada vez mais finas

e esbeltas. Estas também possuem frontão triangular, esculpidas com incisão e decoração

diferentes. Os símbolos religiosos estão sempre presentes, com uma iconografia diversa em

seu repertório. Trata-se de uma das melhores fontes de nosso conhecimento sobre a arte

Púnica.349

A seguir, veremos as características das divindades para as quais eram celebrados

estes rituais. Em primeiro lugar veremos a divindade romana, descrita por Dionísio de

Halicarnasso:

348

KOVALIOV, op. cit., p. 77. 349

LANCEL, op. cit., p. 234.

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129

“Diz-se que os antigos [itálicos] também sacrificavam vítimas humanas a Saturno

[...] desde a sua fundação até os dias de hoje, como também entre os gauleses e em

outras cidades orientais.”350

(Dionísio de Halicarnasso I, 8).

De acordo com Pierre Grimal, Saturno foi assimilado ao deus grego Cronos351

, e era,

entre os latinos, um deus da vida agrícola, ceifeiro e vinhateiro, cujo nome (que está ligado a

satur, que significa saciar ou sator, que pode ser traduzido como semear) evoca a abundância.

De acordo com a narrativa mítica, afastado do céu por seu filho Júpiter, Saturno refugiou-se

na região da Itália, mais tarde chamada Lácio (palavra que significa o Refúgio) que, para os

poetas latinos, era a terra consagrada à divindade. Nesta região a divindade exerceu a

soberania e deu início à idade do ouro. Criou uma família e uma conduta novas, tornando-se

pai de Pico352

, antepassado de Latino353

. Os Romanos que segundo outras tradições, atribuem

a origem de Roma a Saturno, ergueram-lhe um templo e um altar na entrada do Fórum

Boarium, no Capitólio. Atribui-se ainda a Saturno a criação de divindades como Janus354

ou

Hércules e de heróis como Rômulo. Os Romanos, com receio que a divindade abandonasse o

seu lugar - na República depositava-se no seu templo o erário público da Cidade-Estado -

prenderam a sua estátua com faixas de lã e a libertavam apenas quando se realizavam as

Saturnais. Com efeito, estas festas populares, celebradas anualmente por volta do solstício de

inverno, pretendiam restaurar, por um tempo, a época em que os homens tinham vivido sem

contrariedades e sem distinções sociais, numa paz inviolada. Tratava-se de uma semana de

repouso livre, durante a qual todas as atividades laborativas eram suspensas, inclusive as

campanhas militares, e se realizavam inúmeros banquetes, onde os cidadãos substituíam a

toga pela túnica e serviam os seus escravos que, desobrigados das suas funções habituais,

poderiam falar o que pensavam, sem restrições. O culto à Saturno não se propagou com a

mesma amplitude em todo o mundo romano, tendo ganhado mais destaque junto às

populações da África. O "Dominus Saturnus" representava para estas civilidades a divindade

da fertilidade da terra, assim como o sol e a lua. Tratava-se de uma divindade suprema do céu,

350

Dionísio de Halicarnasso I, 8 351

GRIMAL, op. cit., 1996, p. 81. Cronos, o "dos pensamentos pérfidos", é o mais novo dos Titãs, filho de Geia,

a Terra, e de Urano, o céu estrelado. Foi o único a escutar o pedido de sua mãe, quando Geia, a fim de pôr termo

à sua própria escravatura e à dos seus filhos, decidiu armá-lo para que ele vencesse Urano. Com efeito, este,

horrorizado com a sua descendência, a mantinha prisioneira no ventre de sua mãe, a Terra. Então Cronos, com

um golpe de foice, cortou o órgão sexual de seu pai, afastou-o do poder e apoderou-se do Universo. A partir de

então, o mundo foi governado pela linhagem dos Titãs que, segundo Hesíodo, constituía a segunda geração

divina. Foi durante o reinado de Cronos que a humanidade (recém-nascida) viveu a sua idade de ouro. 352

Ibid., p. 116. Mítico rei da região da Península Itálica. 353

Ibid., p. 115. Mítico rei do Lácio, que na Eneida, oferece sua filha Lavínia em casamento a Enéas. 354

OLIVA, A.; GUERREIRO, M. Pré-socraticos: a invenção da Filosofia. Campinas, SP: Papirus, 2000, p. 121.

Janus Bifrontis, deus romano do tempo, representado por duas faces de perfil, uma olhando para o futuro e outra,

para o passado.

Page 130: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

130

instalada muitas vezes em substituição aos deuses fenícios. Era ao Saturno africano que se

realizavam sacrifícios humanos. Estas práticas cessaram sob o Império e foram substituídas

por libações e por sacrifícios de touros e de carneiros.355

As divindades associadas ao culto do sacrifício humano em Cartago são Tanit e Baal

Hammon, destinatários das estelas encontradas na região do Tophet. De acordo com Segue

Lancel, esta presença não se limita à metrópole púnica: a divindade Baal Hammon aparece

também em diversas estelas descobertas na África púnica, na Sicilia, na Sardenha e na ilha de

Malta. Todos estes territórios estiveram submetidos à autoridade dos cartagineses. Apesar

destas ocorrências, esta divindade permanece misteriosa. Baal, no idioma semita significa

“mestre”, “senhor” ou perfeito “cidadão”, em um sentido político. A palavra se situa assim em

um espaço semântico muito amplo, que vai do registro divino ao uso laico e profano.356

Por outro lado a interpretação da parte pessoal do seu nome, “Hammon”, continua

incerta. Ainda de acordo com Serge Lancel, há certo consenso que associa o radical *hmm à

ideia semita de “calor”. Outra proposta aponta Baal Hammon como o “mestre dos altares com

incensos”. Para o autor, a hipótese mais provável, no entanto, é a de que o radical * hmm,

possa ser traduzido como quente. Se não for o mestre de altares de incensos, Baal Hammon

poderia ser o mestre dos incêndios, e a possibilidade que reforça esta ideia foi a descoberta,

em 1922, do Tophet, onde o nome da divindade estava relacionado ao ritual de sacrifícios

humanos. Além disso, os símbolos solares são frequentemente associados à Baal Hammon, e

algumas estelas púnicas do período romano dedicadas a Saturno, seu sucessor, reforçam a

ideia de retorno ao fogo solar e aos sacrifícios de fogo. A presença de Baal Hammon,

associado à Tanit, respondeu a muitos questionamentos e contribuiu para justificar a região do

Tophet como área destinada aos sacrifícios humanos. As fórmulas rituais que foram gravadas

nas estelas funerárias não fornecem detalhes sobre as virtudes e os poderes desta divindade.

357

Tanit, por sua vez, também é uma divindade cuja interpretação ainda permanece

problemática. Entretanto, nos chama a atenção o fato de os cartagineses se referirem à Tanit

como face de Baal. A transcrição da estela funerária abaixo denota esta questão:

“à Grande, à Tanit face de Baal e ao senhor, à Baal Hammon. [Esta é] a que amava

Hmlkt, filho de ‘bdmlqrt, filho de Jtnsd, filho de ‘bdmlqrt, filho de Mhrb’l” 358

355

GRIMAL, op. cit., 1996, p. 259-260. 356

LANCEL, op. cit., p. 234. 357

Ibid., p. 235-236. 358

KAI – 85.

Page 131: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

131

De acordo com Werner Huss, a expressão “face de” se expressa, da mesma maneira

que “a imagem”, a essência de Baal Hammon. O rosto da divindade é a parte que se volta para

o homem e o homem só pode existir se a divindade faz refletir seu rosto sobre ele. Ainda de

acordo com o autor, este contexto aponta para o theoyprósopon fenício (“rosto da divindade”).

Neste lugar se encontrava um templo, cujo centro formava a “casa da dividade”, um baítylos,

uma pedra sagrada. De acordo com estes princípios, Baal Hammon, na pedra sagrada, teria

voltado seu rosto ao homem fenício. Em outras palavras: o culto de Tanit, ao menos a partir

do momento em que fora designada como face de Baal, foi um culto betílico.359

A questão relativa à origem da deusa tem sido pouco discutida entre os especialistas.

Para Werner Huss, como não há vestígios de Tanit na fenícia, muitos pesquisadores

supuseram que esta foi uma divindade da Líbia assimilada pelos cartagineses. Além disso, o

caráter da deusa é bastante plural: parece ter sido uma donzela e também uma mãe. Em

grande parte era responsável pela fertilidade da natureza e pela proteção dos mortos. 360

A seguir veremos as descrições dos locais e instrumentos utilizados nos rituais dos

romanos e dos cartagineses. De acordo com Marcel Mauss e Henri Hubert, o sacrifício não se

realiza em qualquer época ou qualquer lugar. O local da cena deve ser sagrado: fora deste

local, a imolação seria simples assassinato. Nos casos em que o ritual era celebrado em um

templo, lugar sagrado por natureza, as consagrações prévias eram bastante reduzidas.361

A

documentação textual não deixa transparecer os rituais que foram realizados antes da

execução do sacrifício humano em Roma, mas nos permite analisar as especificidades do

local onde era praticado:

"[...] para enterrar vivos dois gregos, um homem e uma mulher, e também

dois gauleses, no lugar chamado Fórum Boarium [Grifo meu], ou mercado do

gado."362

(Plutarco, Vida de Marcellus, 3).

O historiador Pierre Grimal destaca que a narrativa mítica nos revela a aventura de

Hércules ao roubar a manada de Gérion, um monstro com três corpos, na Ibéria. De acordo

com o autor, o herói viajou pela Península Itálica e, ao atravessar a Etrúria, exatamente no

local do futuro surgimento de Roma, foi convidado pelo rei Evandro a descansar por algum

tempo. Contudo, durante a noite, Caco, um gigante com três cabeças, meio-sátiro363

, meio-

359

HUSS, op. cit., p. 340. 360

Ibid., p. 341. 361

MAUSS; HUBERT, op. cit. P. 72. 362

Plutarco, Vida de Marcellus, 3. 363

GRIMAL, op. cit., 1996, p. 260. Os Sátiros são gênios das florestas e das montanhas representados, na

origem, com um corpo peludo, dotado de um rabo e de duas patas de bode e com uma cabeça com orelhas

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132

homem, filho de Vulcano364

, que cuspia fogo, lhe roubou alguns animais, escondendo-os nas

cavernas do monte Aventino. Pela manhã os touros de Hércules começaram a mugir de

maneira sofredora e, de longe, aqueles que tinham sido roubados responderam-lhes com a

mesma força. Hércules descobriu, assim, o roubo de Caco e o esconderijo dos seus animais.

Dirigiu-se ao local, retirando as pedras que tapavam a entrada e, apesar das chamas expelidas

por Caco, libertou os animais e matou o seu raptor. O local deste combate, nas margens do rio

Tibre, conservou, a partir de então, o nome de Forum Boarium: fórum dos bois.365

De acordo com John Scheid, a área do Fórum Boarium é bastante peculiar. Os deuses

e festivais relacionados a esta região estão ligados à formação da identidade política e social

de Roma. Esta área é limitada a oeste pelo rio Tibre, pelo Forum Holitorium ao norte, pelo

Circus Maximus a leste e pelo monte Aventino ao sul. De tempos em tempos, principalmente

nos últimos três séculos da República, as procissões do Triunfo cruzavam esta área, seguidas

pela celebração de grandes banquetes. O Fórum Boarium foi um espaço oficial da cidade-

estado e a coletividade de cultos ali realizados estão diretamente ligados à identidade

romana.366

O arqueólogo Gilbert Charles-Picard revela que as narrativas míticas dizem que a

região do Fórum Boarium teria sido visitada por navegadores gregos e a recente descoberta de

cerâmica geométrica grega datada do século VIII a. C., talvez provenientes de Micenas,

confirma a persistência dessas navegações, além da instalação ao longo do rio Tibre, de

templos para adoração de deuses gregos como Apolo, Heracles e Demeter.367

Pierre Grimal acrescenta que há muito tempo, este lugar foi dedicado ao tráfego de

Roma com o estrangeiro e era aí que os condutores de bois seminômades acampavam com

seus rebanhos. Deste santuário foram excluídas as mulheres e também se procurava garantir

que os cães nunca o penetrassem. O culto de Hércules, importado por Roma desde muito

cedo, deu origem a vários santuários, além do altar principal. Sabe-se, por exemplo, que ali

pontiagudas, um nariz achatado e um olhar lúbrico. Estes gênios ocupam os seus tempos livres perseguindo as

ninfas ou os viajantes. 364

GRIMAL, op. cit., 1996, p. 306. Um dos mais antigos deuses dos Latinos é, na origem, a única divindade do

solo fecundante e do fogo devastador. Ele é adorado, quer como deus do lar, quer como deus dos combates. Este

deus do fogo é, por vezes, confundido com o deus do rio Tibre. 365

Ibid., p. 161. 366

The festivals of the Forum Boarium area: Reflections on the construction of complex representations of

roman identity. In: BRANDT, J. R.; IDDENG, J. W. (Orgs.) Greek and roman festivals: content, meaning and

pratice. Cambridge: University Press, 2012, p. 290-291. 367

CHARLES-PICARD, G. Rome et Les Villes D’Italie: Des Gracques A La Mort D’Auguste. Paris : SEDES,

1978, p. 33.

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133

havia, entre outros, um templo de Hércules Vencedor, onde os conquistadores praticavam

sacrifícios.368

A pesquisadora Colette Bémont acrescenta que a região do Fórum Boarium é

extremamente desconhecida. Não sabemos, por exemplo, se o sacrifício foi celebrado intra ou

extramuros. O nosso desconhecimento se deve à falta de escavações arqueológicas

sistemáticas nesta área, que destacariam a localização do local da cerimônia ou, pelo menos,

os edifícios, entre os quais ele teria tido lugar.369

O ritual cartaginês, por sua vez, era realizado num santuário, chamado de Tophet e

cuja origem do nome abordamos no capítulo anterior. Santuários semelhantes aos do Tophet

cartaginês são encontrados ainda em outras localidades ao longo do Mediterrâneo. Os

pesquisadores Bruno D’Andrea e Sara Giardino analisam a localização do Tophet, buscando

entender por que é possível encontrá-lo apenas em algumas áreas da colonização fenícia ao

longo do Mediterrâneo. De acordo com os autores, existe a hipótese de que o Tophet tenha

sido uma área típica de centros urbanos característicos de populações que alcançaram

desenvolvimento substancial, algo que explicaria a sua ausência no interior de Cartago e nas

colônias fenícias da Córsega. Sobre esta perspectiva os autores acrescentam duas

informações, a saber: o santuário do Tophet é instalado em sincronia com o estabelecimento

dos centros urbanos onde ele está localizado, ou seja, ele faz parte do processo de

“urbanização”, sobretudo da região do Mediterrâneo Central, destinada à formação de

colônias. Esta característica explicaria, por outro lado, a ausência destes santuários em áreas

voltadas para a exploração comercial, como a região da Península Ibérica. Assim, o Tophet

seria, portanto, o símbolo de uma vontade política e de reafirmação da iniciativa de expansão

territorial. Para os autores, estas propostas reforçam o papel de Cartago tanto na questão do

surgimento quanto na difusão do Tophet. Ainda que não tenha sido uma produção original, os

cartagineses, após desenvolverem o seu santuário, procuraram expandi-lo entre os

assentamentos urbanos de suas colônias ao longo do Mediterrâneo.370

De acordo com Sergio Ribichini, os Tophet Ocidentais apresentam algumas

características constantes: a maior parte é formada por uma área separada do terreno

circundante de uso profano, onde foram recolhidos e depositados restos de ossos ritualmente

queimados nos sacrifícios. Os edifícios, utilizados em alguma parte do culto ou em algumas

368

GRIMAL, P. Rome. Paris: Université de France, 1962, p. 58-59. 369

BÉMONT, C. Les enterrés vivants du Forum Boarium : essai d'interprétation. In: Mélanges d'archéologie et

d'histoire. T. 72, 1960. p. 133-146. [Online] Disponível em:

http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/mefr_0223-4874_1960_num_72_1_7462, p. 136. 370

D’ANDREA, B.; GIARDINO, S. Il Tophet: dove e perché: alle origine dell’identitá fenicia. Vicino & medio

oriente XV (2011), p. 133-157.

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134

atividades rituais, quando existem, geralmente são muito pequenos, como a presença de um

pequeno templo localizado na parte ocidental do santuário, conhecido como “capela A”,

descrito em relatórios de escavação. Assim, a construção de pequenas edificações, bem como

a elaboração de estelas, não é, portanto, um elemento da natureza essencial deste lugar

sagrado, que é, em vez disso, um lugar destinado à deposição de urnas contendo os ossos

calcinados de crianças e pequenos animais. Esta consideração pode ser aplicada a

outros Tophet do mundo Púnico. Em resumo, do ponto de vista arqueológico, não há provas

suficientes para declarar com convicção a presença de um templo dentro de cada

Tophet, ainda que a hipótese seja permitida e provável, a partir de outras evidências, como a

estela que veremos a seguir. Contudo, em qualquer situação, quando ele aparece nestes

santuários é interpretado como um lugar sagrado, mas sua eventual destruição ou o seu

abandono não afetava a funcionalidade do Tophet, que continuava a ser utilizado para

deposição de urnas, para a construção de estelas e para outras ofertas votivas destinadas aos

deuses.371

A presença de uma estela em Cartago, no entanto, parece revelar a existência deste

templo.

Figura 10: Estela votiva de Cartago – (CIS I, 4947).

Quais são as características que faziam deste pequeno templo um santuário? Ainda de

acordo com Sergio Ribichini, as pesquisas arqueológicas sugerem que, no Monte Sirai, o

templo do Tophet era o local destinado à queima dos corpos que eram depositados nas urnas.

Contudo, o caso do Monte Sirai permanece isolado. Sabemos que em Cartago a combustão

das vítimas expiatórias era realizada ao ar livre, talvez em um recipiente ou em uma pira e o

pequeno templo possuía uma função diferente da de um local destinado à cremação de

371

RIBICHINI, op. cit., p. 425-426.

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135

corpos. A iconografia da estela acima, por outro lado, revela uma cena de oferta de sacrifício

e, possivelmente outras liturgias, celebradas fora do templo e na frente dele, demonstrando

um altar ao ar livre, a certa distância desta construção. Como vimos, o templo não é um dos

elementos originais da construção do Tophet, de modo que, quer antes da sua construção ou

após o seu abandono, a atividade sacrificial continuou a ocorrer igualmente, em outro

lugar. Acredita-se então que estes templos tivessem a função de repositório do mobiliário do

culto e dos ex-votos, ou mesmo a função de um santuário interior, como um abrigo de

efígies (ou imagens) das divindades. Nesta linha de argumentação podemos dizer que os

vários templos localizados nos diferentes Tophet foram destinados a abrigar as estátuas das

divindades, provavelmente colocadas sobre um altar, utilizado para caracterizar o templo

como “a habitação divina”.372

Resulta de todas estas considerações, a conclusão de que a função prioritária, e muitas

vezes a única, deste pequeno templo era a de reunir os objetos do culto e algumas estelas

votivas, de acordo com uma organização estabelecida pela cidade-estado de origem do culto.

Para Sergio Ribichini, a partir desta hipótese segue uma primeira observação sobre a

correlação entre as estelas e o templo-santuário: quando este é construído para os fins citados

acima, a paisagem do Tophet é repleta de pedras e estelas, erguidas por iniciativa de

adoradores individuais, sobre ou perto das urnas. Este templo pode, portanto, representar um

aspecto comunitário para a celebração ritual. Portanto, a área em torno do templo e no seu

interior, foi organizada para a celebração de uma pluralidade de liturgias que não se limitavam

à passagem das crianças e dos animais através do fogo e sua posterior deposição nas urnas. De

acordo com os textos epigráficos, eles foram uma área sagrada destinada à queima das

crianças e dos cordeiros, mas também destinada ao sacrifício, e provavelmente ao consumo

em um banquete sacrificial, de outros animais, além de depósito para as ofertas realizadas sem

o derramamento de sangue, para o ritual das libações ou para a queima de incenso e outras

resinas perfumadas. O templo coincide no Ocidente com a estela, o que, portanto, qualifica-se

como uma habitação “cultural” da divindade. Neste sentido, a ligação com Baal Hammon

torna-se direta, porque a divindade é a “proprietária” da estela e do “residente” no

templo. Não tanto em razão do ritual que se realizava no Tophet, mas pela estela votiva, Baal

Hammon é especificamente convocado a comparecer neste local.373

Podemos perceber que, em ambos os casos, os rituais de sacrifícios humanos eram

celebrados em locais consagrados aos deuses, o que pode indicar que os ritos iniciais tenham

372

RIBICHINI, op. cit., p. 430-433. 373

Ibid., p. 432-439.

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136

sido bastante reduzidos. A seguir analisaremos os instrumentos utilizados nos rituais. Pouco

ou quase nada sabemos acerca dos instrumentos do ritual romano, a não ser a ação de sepultar

vivas as vítimas expiatórias. A prática de sacrifícios humanos por sepultamento não era

desconhecida dos romanos, sendo aplicada como punição às virgens vestais eventualmente

acusadas de romper com suas obrigações sacerdotais.

De acordo com Andre Aymard e Jeannine Ayboyer, ainda que organizadas em

colégio, as Vestais possuíam função ativa como sacerdotisas. Em número de seis e sob a

direção de uma delas, a Vestialis Maxima, tinham a função de velar pela manutenção do fogo

sagrado, símbolo da vida da cidade, que deveria crepitar permanentemente no templo de

Vesta. Estas sacerdotisas eram retiradas ainda meninas de importantes famílias aristocráticas e

passavam a viver no templo, onde nenhum homem poderia entrar. Além disso, faziam voto de

castidade, cuja violação imputava-lhes um ritual expiatório no qual eram sepultadas vivas.

Contudo, ao final de trinta anos poderiam voltar à vida comum e casar-se.374

O historiador Fustel de Coulanges acrescenta que em Roma nada havia de mais

sagrado que o altar sobre o qual ardia o fogo sagrado. De acordo com o autor, o respeito

demonstrado pelos romanos ao sacerdócio das vestais é a prova de sua importância. Se um

cônsul encontrava uma vestal no seu caminho abaixava suas armas diante dela. Por outro

lado, se uma delas deixasse o fogo extinguir-se ou se negligenciasse o seu dever de castidade,

os romanos, julgando perder o apoio de seus deuses, vingavam-se da vestal enterrando-a

viva.375

A documentação textual deixa transparecer que, ainda no contexto da segunda guerra

púnica, uma virgem vestal teria sido sacrificada:

“Eles ficaram com muito medo, não só pelos grandes desastres que tinham

sofrido, mas também por uma série de prodígios e, em particular porque duas

vestais, Opimia e Floronia, foram condenadas nesse ano por falta de castidade.

Destas, uma foi enterrada viva, como é o costume, perto do Portão da Colina, e a

outra se matou. Cantilius Lúcio, um auxiliar dos Pontífices, daqueles que são

chamados agora Pontífices menores, culpado com Floronia, morreu sob os golpes do

Pontifex Maximus que lhe tinha severamente açoitado no Comitium.”376

Por outro lado, a questão dos instrumentos utilizados pelos cartagineses pode ser

revelada através dos levantamentos arqueológicos realizados ao longo do século XX na região

do Tophet. Neste sentido podemos destacar o uso do fogo, das urnas funerárias e das joias e

amuletos depositados sobre os ossos calcinados das crianças após o ritual. Iniciaremos nossas

análises pelo valor simbólico do fogo.

374

AYMARD; AYBOYER, op. cit., p. 263-264. 375

COULANGES, op. cit., p. 116-117. 376

Tito Lívio 22, 57; 1-3

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137

De acordo com Fustel de Coulanges, o homem antigo via no fogo o deus benfazejo,

que conservava a sua vida. Tratava-se do deus que o alimentava com os seus dons. Era

também o deus forte, que protegia a casa e a família. Em presença de algum perigo,

procurava-se abrigo junto dele. Era o fogo que enriquecia as famílias. Ofereciam-lhe

sacrifícios e a divindade recebia as oferendas e as devorava. Ainda de acordo com o autor, a

religião do fogo sagrado é bastante comum na região mediterrânea, existindo ali muito antes

da formação das antigas civilidades orientais e ocidentais. Para Fustel de Coulanges, não se

trata de um fogo de natureza material. Nele não vemos o elemento puramente físico que

aquece ou queima, transforma os corpos, funde os metais e se torna instrumento da

manufatura humana. Trata-se, acima de tudo, de um fogo puro, só podendo ser produzido

quando auxiliado por certos ritos e somente podendo alimentar-se com determinadas espécies

de madeira. É aquele que aquece e coze o alimento sagrado e que tem ao mesmo tempo um

espírito, uma consciência. É um elemento que dita deveres e vela para que sejam cumpridos.

Possui do homem sentimentos e afetos, concede sua pureza, ordena o bem e o mal, e alimenta

a sua alma. Pode-se dizer que o fogo mantém a vida humana na dupla sucessão das suas

manifestações: representa ao mesmo tempo a origem da riqueza, da saúde e da virtude. É

ainda a divindade da natureza humana. É o intermediário do homem junto aos deuses de

natureza física, encarregando-se de transmitir ao céu a prece e a sua oferenda e de trazer-lhe

as concessões divinas.377

De acordo com Marcel Mauss e Henri Hubert, nos rituais de sacrifício, em geral, o

fogo chega a ser aceso por fricção, a fim de que seja inteiramente novo. Nessas condições ele

possui uma virtude mágica que afasta os gênios maus, os malefícios e os demônios. O fogo é

matador de demônios e, além disso, ele é a própria divindade. O fogo é Agni378

em sua forma

completa. Do mesmo modo, o fogo do sacrifício simboliza a própria divindade que devora a

vítima ou o sinal da consagração que a inflama.379

Outros objetos observados nos rituais cartagineses são a ânfora funerária e as joias e

amuletos que eram utilizados após a execução do ritual. Cada fase do ritual cartaginês

apresenta um diferente tipo de ânfora utilizada. Para Roald F. Docter, dado o fato de que a

cerâmica presente no Tophet serviu a fins muito particulares, o repertório de formas é bastante

limitado, consistindo principalmente de ânforas, jarros, “panelas” e todas as formas que

poderiam ter sido utilizadas com uma tampa. Embora algumas das formas de cerâmica no

377

COULANGES, op. cit., p. 22-25. 378

Agni é a palavra em Sânscrito que significa fogo. É também uma divindade do panteão hindu para a qual se

dirigiam os sacrifícios de fogo. 379

MAUSS; HUBERT, op. cit., p. 44.

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138

tophet devem ter sido feitas especialmente para o ritual de sepultamento dos restos cremados,

a sua maioria é encontrada em contextos funerários. Com o objetivo de observar o

desenvolvimento das formas ovoides e carenadas no repertório de ânforas fenícias, algumas

das urnas do tophet foram recentemente analisadas. Ao longo de uma série destas urnas, uma

mudança geral na decoração pôde ser distinguida, a qual é baseada no desaparecimento

gradual de um dos cinco diferentes esquemas de decoração: bicromática ou com decoração

vermelha por zonas e com padrões geométricos na área da alça, decoração bicromática por

zonas, decoração em linha horizontal e utensílios simples sem decoração. A ocorrência desses

esquemas é cronologicamente distinta, embora certa sobreposição seja evidente.380

Abaixo

podemos verificar a tipologia destas urnas, a partir de uma comparação cronológica. Uma

análise mais aprofundada acerca destas urnas funerárias e suas respectivas tipologias

permanece ainda em aberto.

Ânfora bicromática do Tanit I:

Figura 11: Período: Séculos VIII e VII a. C. / Região: Cartago

Dimensões: Altura: 22,1 cm; Diâmetro (boca): 11,1 cm, (barriga) 21,6 cm, (base) 7,1 cm.

Argila: amarelo avermelhada. / Superfície: marrom pálido; pigmentos vermelhos no aro, ombro, região da

barriga e na zona da alça; e linhas horizontais nas alças em vermelho fraco; e tinta preta nas linhas que fazem

fronteira com zonas de deslizamento vermelhas no ombro e na barriga. Superfície alisada.

Bibliografia: Docter, 1997: table 62.A, No. 10.

380

DOCTER, et. Alli, op. cit., p. 420.

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139

Ânfora do Tanit II:

Figura 12: Período: Séculos VII e V a. C. / Região: Cartago

Dimensões: Altura: 20,0 cm. Diâmetro: (boca) 9,4 cm, (barriga) 15,7 cm, (base) 7,6 cm.

Argila: amarelo avermelhada. / Superfície: Simples, amarelo-avermelhada; traços de deslizamento vermelho na

base, incrustação calcária na metade inferior do corpo (pós-depositada).

Bibliografia: Amphora Tanit II, Amsterdam APM 12. 499/1

Ânfora do Tanit III:

Figura 13: Período: Séculos IV e II a. C. / Região: Cartago

Dimensões: Altura: 17,1 cm. Diâmetro (boca) 5,8 cm, (barriga) 11,0 cm, (base) 6,7 cm.

Argila: Branca. / Superfície: Lisa. Branca, com manchas mais escuras, cinza acastanhado.

Bibliografia: Amphora Tanit III, Leiden RMO G 1952/2.12a

Marcel Mauss e Henri Hubert destacam que as precauções tomadas após o ritual de

sacrifício, as quais inferimos o uso das ânforas, dos amuletos e das joias, destinavam-se a

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140

impedir que os restos da vítima, sendo sagrados, entrassem em contato com as coisas

profanas. Inutilizados, os restos deviam ser, se não destruídos, pelo menos guardados e

vigiados. Mesmo os resíduos da cremação que não pudessem ser destruídos nem utilizados

não eram lançados ao acaso: eram depositados em locais especiais, protegidos por interdições

religiosas.381

Uma vez analisados os aspectos componentes do ritual romano e do ritual cartaginês

podemos buscar a compreensão do significado simbólico destas práticas. Iniciaremos com as

práticas de sacrifícios humanos em Roma. A prática sacrificial romana fora empregada em um

contexto de conflitos que ameaçavam a sobrevivência da urbe, fator que nos aproxima da

proposta de interpretação teórica indicada por René Girard, como vimos no capítulo anterior.

Neste caso, os romanos procuraram desviar para vítimas relativamente “sacrificáveis”

uma violência que golpeava sua própria civilidade, que ela procurava proteger a qualquer

custo. As vítimas, o casal grego e o casal gaulês, substituíram toda a coletividade do populus

romanum e o ritual do sacrifício objetivou protegê-la da violência consequente dos embates

contra o exército cartaginês. Desta forma, o sacrifício polarizou sobre as vítimas exteriores os

germens de desavença espalhados por toda parte, proporcionando-lhes uma saciedade parcial.

Para que haja eficácia na prática sacrificial, a vítima expiatória deve assemelhar-se com as

categorias que substitui, sem que a distinção perca a nitidez. No ritual romano esta

semelhança fica evidente a partir do emprego de vítimas humanas estrangeiras. De acordo

com René Girard, a categoria dos estrangeiros frequentemente presentes em ritos sacrificiais

envolvendo seres humanos justifica-se pelo impedimento de plena integração à comunidade,

ou seja, são incapazes de tecer com a citada comunidade os mesmos laços sociais que ligam

seus membros entre si. A justificativa para a escolha de tal tipologia de vítimas é a de que

sobre estas não recairia nenhum desejo de vingança dos membros da comunidade dos

romanos.382

A prática sacrificial empregada pelos cartagineses, por outro lado, sugere uma

interpretação simbólica diversa daquela a qual inferimos sobre a atividade análoga romana.

Neste sentido, utilizaremos como suporte teórico as análises acerca do fenômeno da dádiva

defendidas pelo antropólogo Marcel Mauss. A objetividade da prática ritual em Cartago

procura estabelecer uma troca entre os Sacrificantes, as famílias das crianças, e a divindade,

na qual os primeiros entregam o filho natimorto ou morto antes de atingir o status de cidadão,

buscando receber em seu lugar outra criança, mais saudável, uma vez que neste tipo de

381

MAUSS; HUBERT, op. cit., p. 48. 382

GIRARD, op. cit., p. 18 et seq.

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141

Sacrifício Contrato existe a relação custo e benefício. A ideia do sacrifício contrato se insere

num campo teórico mais amplo: o do sistema de prestações totais, ou o potlatch383

.

Neste sistema de prestações totais não se trata de troca entre indivíduos, trata-se, antes

de tudo, de coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam. De acordo com

Marcel Mauss, as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias, que

se atacam e se opõem. Além disso, o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas,

móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de tudo, amabilidades, festins,

ritos, serviços, militares, mulheres, crianças, danças e festas. São trocas rigorosamente

obrigatórias sob o risco da emergência de embates e conflitos privados ou públicos. Este

sistema possui alguns elementos considerados essenciais, a saber: a honra, o prestígio e o

“mana” que confere riqueza, além da obrigação absoluta de retribuir as dádivas recebidas, sob

pena de perder o “mana”, a autoridade, o talismã, a fonte de riqueza que é a própria

autoridade.384

As relações destes contratos de trocas entre homens e destes contratos e trocas entre

homens e deuses complementam uma parte da teoria do sacrifício. Para Marcel Mauss (Op.

Cit. 1960) um dos primeiros grupos de seres com os quais os homens se viram obrigados a

contratar, e que por definição estavam lá para esta finalidade, foram os espíritos dos mortos e

as divindades. De fato, estes são os legítimos proprietários das coisas e dos bens deste mundo.

Era com estes entes sobrenaturais que era mais necessário realizar as trocas e com os quais se

corria mais risco não o fazer. Por outro lado, era com os deuses e espíritos dos mortos que era

mais fácil e mais seguro trocar. Assim, a destruição operada no sacrifício tem por objetivo ser

uma doação necessariamente retribuída.385

Nossa hipótese se baseia no fato de que grande parte dos ossos calcinados encontrados

nas urnas sacrificiais pertencerem a fetos ainda não totalmente formados conforme gráfico

que já exibimos no capítulo anterior.386

Assim, é possível que, vítimas de aborto espontâneo ou mortalidade infantil, as

famílias cartaginesas devolvessem aos deuses os filhos mortos, objetivando reforçar a sua

fertilidade. De acordo com Marcel Mauss, as dádivas trocadas entre homens e deuses têm por

finalidade ratificar a paz uns com os outros. A reafirmação desta relação por meio do

383

MAUSS, M. Ensaio Sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 56-57. Potlatch (alimentar, consumir):

prestações totais de tipo agonístico. 384

Ibid., p. 53-60. 385

Ibid., p. 64. 386

Cap. 2 – p. 95.

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142

sacrifício afasta os maus espíritos, as más influências, mesmo aquelas não personalizadas.387

É possível que os cartagineses interpretassem a morte prematura do indivíduo como um sinal

de maldição, algo que escapava à ordem natural das coisas. Nesta relação de troca, a

divindade retribuiria através de uma nova gestação, desta vez trazendo ao mundo uma criança

mais resistente aos desafios que poderiam pôr termo à sua vida. A origem desta hipótese

reside no fato de que o rito sacrificial implica uma relação de troca realizada no mais elevado

grau, porque os deuses que dão e retribuem estão lá para dar uma dádiva grande no lugar de

uma coisa pequena. É talvez por este motivo que as duas formas solenes do contrato: em latim

do ut des, em sânscrito dadami se, dehi me, foram conservadas também pelos textos

religiosos.388

A troca de uma criança morta por outra mais saudável revela-se, neste sistema de

ideias, uma vez que é necessário retribuir a outrem aquilo que é, na realidade, parcela da sua

própria natureza e substância. De acordo com Marcel Mauss, aceitar qualquer dádiva de

alguém é aceitar uma parte da sua essência espiritual, da sua alma. A conservação dessa

dádiva seria perigosa e mortal, porque a dádiva que vem do ofertante tem poder mágico e

religioso sobre a divindade. Enfim, a dádiva, ou seja, a criança morta antes de atingir o status

de cidadão, não é algo inerte. Animada e frequentemente individualizada, ela tende a entrar no

“seu lar de origem” e a produzir, para a família de onde saiu um equivalente que a

substitua.389

Neste sistema, as trocas de dádivas não são facultativas. De acordo com Marcel

Mauss, recusar-se a dar equivale a declarar a guerra contra a divindade. É recusar a aliança e

a comunhão. Assim, as famílias cartaginesas entregavam seus filhos natimortos porque eram

forçadas a isso, porque Baal Hammom tem uma espécie de direito sobre tudo o que pertence a

elas. Por outro lado, o que, no presente recebido, trocado, obriga, é o fato de não ser inerte.390

Para Marcel Mauss, mesmo abandonado pelo doador, a dádiva é ainda uma parte deste.

Através dela, o doador tem domínio sobre a divindade.391

Além disso, neste sistema, ninguém

tem a liberdade de recusar um presente oferecido e é a própria dádiva que regressa.392

A certeza da retribuição é baseada na virtude da dádiva que é ela mesma, essa

segurança. O “tempo” é necessário para se executar qualquer contraprestação. A dádiva

387

MAUSS, op. cit., p. 75. 388

Ibid., p. 83. 389

Ibid., p. 66. 390

Ibid., p. 68. 391

Ibid., p. 64. 392

Ibid., p. 81.

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143

implica necessariamente a noção de crédito.393

Trata-se da obrigação de dar, a essência do

Potlatch. O sacrificante cartaginês tinha a noção de que a divindade possuía a obrigação de

retribuir e essa noção era expressa nas fórmulas votivas descritas nas estelas funerárias,

conforme reveladas no capítulo anterior:

“Ao Senhor Baal Addir e à grande Tanit face de Baal, o voto dedicado.”394

Neste caso, nos chama a atenção a expressão “Face de Baal”. Trata-se de um

elemento importante do sistema de prestações totais: o que obriga a retribuir é o risco de

perder o prestígio, de perder a alma: é realmente a face, é a máscara, o direito de encarnar um

espírito, de usar um brasão, um totem395

, é realmente a persona, que são postos em disputa,

que se perdem no potlatch, no sistema das dádivas. Tanit, a “face de Baal”, é o próprio

prestígio da divindade entre os cartagineses. O potlatch é um ato fundamental do

“reconhecimento” religioso.396

Além disso, a divindade não tem o direito de recusar a dádiva, nesse caso a criança

que passou pelo fogo. Trata-se da obrigação de receber. Recusar uma dádiva é manifestar que

se tem medo de retribuir, é recear ser rebaixado quando não se retribui. Na realidade é estar

humilhado.397

Para a divindade seria perder o peso do seu nome, seu prestígio junto aos

ofertantes do sacrifício.

Ao receber uma dádiva, a divindade se compromete. De acordo com Marcel Mauss, ao

receber uma dádiva, faz-se mais do que se beneficiar de uma coisa e de um ritual. Se aceita

um desafio. Para o autor, abster-se de dar, como abster-se de receber, é faltar a um dever,

como abster-se de retribuir.398

Assim, a obrigação de retribuir é parte fundamental do potlatch na medida em que

este não consiste em pura destruição. De acordo com Marcel Mauss, essas destruições, em si,

muitas vezes sacrificiais e beneficiadas em homenagem aos deuses, não têm necessidade de

serem todas retribuídas sem condições. Contudo, normalmente, qualquer dádiva deve ser

retribuída de forma acrescida. A obrigação de retribuir dignamente é imperativa. Perde-se a

393

MAUSS, op. cit., p. 108-109. 394

RES 326 – Estela funerária do Tophet cartaginês – Original disponível no Museu do Louvre 395

KUPER, A. Reinvenção da Sociedade Primitiva - Transformações de um Mito. Recife: Editora universitária

da UFPE, 2008, p. 157. Totem é um emblema, um símbolo de identidade que caracteriza a origem de um clã, de

uma família. Os aspectos religiosos do totem, como os rituais, as interdições e as crenças, têm origem na

identificação da unidade social. 396

MAUSS, op. cit., p. 116 et seq. 397

Ibid., p. 121. 398

Ibid., p. 122.

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144

“face” para sempre se não se retribuir. Nas dádivas trocadas pelo potlatch existe uma virtude

que as obriga a circular, a serem dadas e a serem retribuídas.399

Observamos então que a prática de sacrifícios humanos em Roma e em Cartago possui

objetividade semelhante: em ambos os casos o que está em questão é a própria sobrevivência

da cidade. Para o romano, o ritual procura restabelecer a pax deorum consagrando a própria

urbe, garantindo-lhe a vitória contra o inimigo que a ameaça de destruição total. Para o

cartaginês é possível que a devolução da criança morta aos deuses lhe garantisse a fertilidade

continuada através do retorno desta à cidade e a consequente continuação da vida em

comunidade.

399

MAUSS, op. cit., p. 123-125.

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145

CONCLUSÃO

A Historiografia responsável pela construção da memória acerca da civilidade púnico-

fenícia sofreu influência do contexto de transformações ocorridas na Europa a partir

principalmente do século XIX. Neste ambiente, marcado pela expansão imperial europeia, a

identidade púnico-fenícia foi construída a partir do estereotipo de “depravadores”,

“saqueadores” e “fraudadores” em virtude de práticas religiosas como a prostituição sagrada e

o sacrifício de seres humanos. Esta característica influenciou boa parte dos artistas, escritores

e estudiosos europeus que suprimiram o aspecto civilizador dos fenícios, valorizando apenas o

caráter de civilidade oriental exótica. Um exemplo desta questão foi a publicação do romance

de Gustave Flaubert, intitulado Salammbô (1862) que suscitou uma aversão à sociedade

cartaginesa, influenciando as pesquisas historiográficas do século XX. O alcance da obra de

Flaubert continua presente até os dias atuais, através de exibições de operas de Salammbô e

dos guias turísticos da Tunísia baseados em sua narrativa. Hoje é difícil encontrar um manual

histórico que, ao falar de Cartago não faça referência ao ritual de sacrifício que objetivava

oferecer vítimas humanas às divindades em sua necrópole.

Por outro lado, o desenvolvimento das escavações arqueológicas pôs novamente em

perspectiva a representação dos cartagineses, uma vez que parecia confirmar os textos dos

historiadores clássicos e a obra de Gustave Flaubert. Entretanto, o que se seguiu a estas

descobertas foi um intenso debate na historiografia contemporânea cuja temática buscava

abordar a existência ou não de sacrifícios humanos em Cartago. Milhares de urnas contendo

ossos calcinados de crianças foram descobertas em uma região que ficou conhecida como

Tophet, em referência ao local, descrito pela Bíblia, onde crianças eram sacrificadas ao sul da

cidade de Jerusalém.

A partir de então duas hipóteses principais estiveram em discussão ao longo do século

XX. A primeira delas defendia que as evidências arqueológicas confirmavam a realidade do

sacrifício humano em Cartago tal qual descrita por Diodoro da Sicília. A segunda propunha

que as urnas do Tophet cartaginês não representavam nada além de um processo de cremação

ritual ligado às práticas funerárias comuns aos fenícios.

Entretanto, as análises osteológicas posteriores não confirmaram as narrativas dos

historiadores da Antiguidade, como Plutarco e Diodoro da Sicília. O padrão regular da queima

dos ossos e a presença de grande numero de fetos não completamente formados nas urnas

funerárias eram incompatíveis com um ritual no qual as crianças vivas seriam depositadas nos

braços de uma estátua, caindo posteriormente em uma fenda em chamas. Por outro lado, as

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146

análises da Antropologia Forense não puderam determinar a causa da morte das crianças

cartaginesas, ou seja, não foi possível determinar se as mesmas estavam vivas ou mortas

durante o processo de queima ritual. A prática da cremação dos mortos de fato integrava o

conjunto de práticas funerárias dos fenícios, ao lado do sepultamento. Contudo, a comparação

entre as inscrições funerárias e as inscrições gravadas nas estelas do Tophet revela uma

substancial diferença: as urnas e o seu conteúdo eram oferendas aos deuses Baal Hammon e

Tanit. Entretanto, é preciso diferenciar as oferendas comuns, feitas aos deuses, daquelas

operadas pelo sacrifício.

O diálogo com a Antropologia e seus conceitos nos permitiu inferir que a oferenda

operada no Tophet cartaginês é de fato um sacrifício. Ao longo desta pesquisa nos deparamos

com dois conjuntos de conceitos teóricos distintos acerca da prática sacrificial: de um lado,

observamos os postulados de René Girard para quem um dos elementos fundamentais do rito

é o derramamento do sangue da vítima no altar, o que torna imprescindível que a mesma

esteja viva no momento da execução do ritual. Por outro lado, apresentando uma proposta

diversa, os antropólogos Marcel Mauss e Henri Hubert revelam que o fator essencial do ritual

de sacrifício é a consagração operada por ele mediante a destruição da vítima, que pode ser,

inclusive, um objeto inanimado. Assim, podemos dizer que as crianças, vítimas

provavelmente de mortalidade infantil provocada por doenças comuns na região do

Mediterrâneo naquele período, compatíveis com um sistema irregular de abastecimento de

água e tratamento de resíduos humanos e animais, e também vítimas de abortos, eram

devolvidas aos deuses por meio de um ritual de sacrifício operado pelo processo de queima

dos seus restos mortais.

A temática do sacrifício humano, durante muito tempo, foi considerada por muitos

estudiosos como uma excentricidade antropológica ou, em muitos casos, como reflexo de um

imaginário social. A atitude dos pesquisadores em rejeitar a realidade do sacrifício de seres

humanos impediu que se construíssem investigações sistemáticas acerca desta temática. Em

muitos casos, em consequência talvez do Imperialismo europeu, o sacrifício humano era

apresentado como prática corriqueira das civilidades conquistadas, o que contribuía

significativamente para a desvalorização de suas culturas. A prática de sacrifícios humanos foi

usada inclusive para justificar a escravidão no século XIX, que afirmava seu caráter

“libertador”, no qual os cativos escapariam de um destino pior nas mãos de seus próprios

concidadãos.

Outra atitude adotada pelos pesquisadores foi a de negar totalmente a realidade do

sacrifício humano em sociedades antigas e modernas com o objetivo de corrigir as avaliações

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consequentes da ação imperialista. Assim, o sacrifício humano passou a ser considerado um

instrumento de depreciação utilizado pelo conquistador para desqualificar o conquistado e o

imperialista tornou-se de certa forma o “civilizador” que libertava certas culturas de sua

própria “barbárie”. Entretanto, nos dias atuais, com o acúmulo de evidências arqueológicas,

não é possível negar a realidade do sacrifício humano e a sua prática sistemática em inúmeras

civilidades como um instrumento presente em diversos aspectos de suas atividades religiosas.

Nos dias atuais, rejeitar a prática do sacrifício humano nas mais diversas

temporalidades e espacialidades torna-se um reflexo da não admissão, por parte dos

pesquisadores, de que uma atividade que hoje possa nos parecer desprezível tenha sido

necessária para civilidades que foram, em certa medida, bastante semelhantes à nossa. Em

última análise, a prática sacrificial contribuía decisivamente para a manutenção da coesão e da

estabilidade social. A temática do sacrifício humano é hoje um campo ainda a ser explorado

pelos pesquisadores que o encaram de forma perturbadora por serem levados a considerar a si

mesmos ou seus iguais como o alimento sagrado de uma divindade em fúria.

Assim, analisamos neste trabalho a prática de sacrifícios humanos em Cartago,

procurando decompor os aspectos característicos do ritual. Observamos que a espacialidade

do Tophet cartaginês aponta para as práticas rituais ali realizadas. É possível que esta área

tenha sido típica de aglomerados urbanos de cidades-estados fenícias que alcançaram certo

desenvolvimento social. Este santuário foi construído durante um processo de “urbanização”,

sobretudo das regiões do Mediterrâneo Central destinadas ao estabelecimento de colônias

cartaginesas. Além disso, os templos construídos no santuário tinham a função de armazenar o

mobiliário do culto, os ex-votos e as imagens das divindades. Neste sentido, podemos dizer

que estes templos localizados nos diferentes Tophet traduziam a ideia de que esta área era a

própria “habitação divina”.

Em comparação, o ritual romano, por sua vez, era realizado no Fórum Boarium, um

espaço consagrado aos deuses da cidade onde, durante muito tempo, celebrava-se a cerimônia

do triunfo, em que se comemorava a vitória sobre o inimigo. Até o presente momento as

escavações arqueológicas pouco avançaram no sentido de descobrir as especificidades dos

rituais praticados, limitando-se apenas a catalogar e classificar os templos ali construídos.

Os levantamentos arqueológicos nos permitiram redescobrir as características do ritual

cartaginês. O sacrificante preparava uma fogueira ao ar livre, depositando a criança sobre uma

pira forrada com ramos e pedaços de palha. Esta criança era envolta com tecido fechado com

certos tipos de grampos de metal. Era provável que estivesse morta, uma vez que sua posição

na pira era constante e regular. A pira era acesa e antes do processo de cremação estar

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concluído, por vezes, uma parte ou a totalidade de um pequeno animal era depositado ao lado

da criança. O ritual buscava garantir a combustão total dos indivíduos depositados sobre a

pira. O fogo do sacrifício representava a própria divindade que devorava a sua vítima,

simbolizando a própria consagração operada pelo ritual. Quando a calcinação era considerada

suficiente, apagava-se o fogo. A seguir, as urnas eram preenchidas com os ossos das crianças

que eram quebrados, se necessário. Além disso, algumas joias, colares de contas e amuletos

eram depositados sobre a superfície das cinzas da urna que era, depois, fechada com uma

camada de argila. A parte final do ritual destinava-se a impedir que os restos da vítima, que

haviam se tornado sagrados, entrassem em contato com o mundo profano. Por este motivo os

restos do sacrifício eram guardados e os resíduos da cremação eram depositados nas urnas,

locais especiais, protegidos provavelmente por interdições religiosas.

As informações acerca do ritual romano estão descritas na documentação textual, na

qual podemos perceber que dois casais de estrangeiros, gregos e gauleses, foram sepultados

vivos. A prática sacrificial por meio do sepultamento de vítimas ainda vivas não era

desconhecida pelos romanos, que a empregavam para punir as sacerdotisas da deusa Vesta

acusadas de descumprimento de suas obrigações rituais. O recurso à vítimas estrangeiras se

justifica pelo seu frágil vínculo social com a coletividade de cidadãos romanos, o que evitaria

o risco de vingança, eliminado os riscos de uma violência incontrolável.

Percebemos também que algumas condições sociais específicas favoreciam ao

desenvolvimento das práticas sacrificiais envolvendo seres humanos. Em Roma a prática de

sacrifício humano objetivava a restauração da Pax Deorum em um contexto de instabilidade

social provocado pela guerra contra Cartago. A multiplicidade de eventos sobrenaturais

presentes no imaginário do populus romanum evidenciava o descontentamento da divindade

cuja ira deveria ser aplacada através do ritual de sacrifício. Entretanto a objetividade do

sacrifício e sua função real, neste caso, eram bastante diversas. O ritual fora empregado pelos

romanos com o intuito de conter a histeria coletiva instalada na cidade em virtude das derrotas

para o exército de Aníbal no século III a. C., deslocando sobre um grupo de vítimas

relativamente indiferentes uma violência que ameaçava a sobrevivência de sua própria

civilidade. Aqui o mecanismo da vítima expiatória fora utilizado para reforçar a unidade da

cidade frente ao inimigo estrangeiro.

O ritual cartaginês, ao nosso entender, possuía uma objetividade simbólica diversa.

Tratava-se de um sacrifício contrato, estabelecido entre as famílias das crianças e a divindade,

no qual as primeiras ofereciam seus filhos natimortos em troca de crianças mais saudáveis e

resistentes aos problemas impostos pelas condições sociais e naturais daquele contexto. Era

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149

natural que se procurasse trocar com os deuses, um dos primeiros grupos de seres com os

quais os homens se viram obrigados a contratar. Para estas famílias os deuses eram os

legítimos proprietários das coisas e dos bens deste mundo. Era com as divindades que era

mais imprescindível realizar as trocas e com as quais se corria mais risco não trocar. A

destruição operada no sacrifício tinha por objetivo ser uma doação necessariamente retribuída.

Desta forma, algumas obrigações estavam implicadas nestas relações entre os cartagineses e

Baal Hammom e Tanit: havia a obrigação de dar, de devolver o filho morto, uma vez que

recusar-se seria o equivale a declarar a guerra contra as divindades, rejeitando a aliança e a

comunhão com elas. Por outro lado, as divindades possuíam a obrigação de receber aquela

oferta, sob o risco de perderem seu prestígio junto aos ofertantes do sacrifício. Além disso, as

divindades tinham a obrigação de retribuir aquela dádiva, que trazia sobre elas um poder

religioso. Esta dádiva deveria ser retribuída de forma acrescida, revelando que a obrigação de

retribuir dignamente é imprescindível. Neste sistema de prestações totais, ninguém possuía a

prerrogativa de recusar um presente oferecido e era a própria dádiva que regressava ao

ofertante do sacrifício. A criança recém-morta produzia no seu local de origem, na sua família

de origem, um equivalente que a substituía.

Romanos e cartagineses buscavam manter a ordem e a estabilidade em suas

respectivas civilidades. Os primeiros dissipando os germens da violência que se espalhavam

com a guerra e os últimos, garantindo a fertilidade das famílias e a continuidade de sua

comunidade.

Em resumo, o exercício de experimentação comparada aqui realizado nos permitiu

observar que, no que tange ao sacrifício humano, romanos e cartagineses realizaram escolhas

rituais distintas, ainda que mantivessem práticas análogas. Quando uma sociedade elege um

mecanismo de pensamento, ela faz uma escolha, dentre muitas que poderia fazer. Assim, foi

possível comparar o incomparável, ou seja, metodologicamente foi possível comparar traços

semelhantes, os sacrifícios humanos, entre Roma e Cartago, que apresentam certas diferenças

entre si, no que tange à execução do ritual, mas com uma mesma objetividade simbólica, o

que os torna iguais, em certa medida, no desenvolvimento de suas atividades religiosas.

Acreditamos que a História Comparada deve fazer justiça à diversidade e ao

pluralismo cultural, contribuindo para evitar os riscos do etnocentrismo. Nesse sentido perde

validade o argumento muitas vezes utilizado pelo vencedor e pelo colonizador para

desqualificar o vencido. Assim, pudemos observar que romanos e cartagineses, vencedores e

vencidos, mantinham práticas religiosas bastante análogas. Aqui a comparação contribuiu

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150

para suscitar uma reflexão de que existem alternativas ao discurso oficial daqueles que

durante muitos séculos escreveram a História.

Entretanto, ao final deste trabalho percebemos que muito há ainda a se percorrer nesta

trajetória em busca da construção da História de Cartago. A Arqueologia tem avançado muito

nos últimos anos, o que possibilitou o acesso a informações e objetos produzidos pelos

próprios cartagineses. Neste sentido, os pesquisadores tem a possibilidade de, em certa

medida, analisar criticamente os textos produzidos pelos historiadores da Antiguidade, como

Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso, Plutarco, Políbios, entre outros. Todos eles relacionados

a civilidades que mantiveram relações de hostilidade com os cartagineses ao longo dos

séculos de sua existência. Assim, ao passo em que avançamos no conhecimento acerca da

civilidade púnica, percebemos que muito ainda há que se descobrir, ou ao menos que se

interpretar, tornando o trabalho de pesquisa cada vez mais instigante, principalmente quando

se trata do tema sobre rituais de sacrifícios infantis na região de Cartago.

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Page 163: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

163

ANEXOS

Análise do Conteúdo

Diodoro da Sicília – Bibliotheca Historica.

Documentação Textual

Nome da Obra Bibliotheca Historica

Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público

Emissor Diodoro da Sicília

Receptores Os prováveis receptores são os cidadãos gregos da província da

Sicília, região da Magna Grécia.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Grego Koiné

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade

Referências às práticas de sacrifício humano em Cartago podem

ser encontradas ainda na obra De Superstitione de Plutarco e nas

Instituições Romanas de Dionisio de Halicarnasso.

Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:

sacrifício, Cronos, deus e superstição.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Sacrifícios Humanos

"Eles [os cartagineses] também

alegaram que Cronos tinha se

voltado contra eles na medida em

que, em tempos antigos estavam

acostumados a sacrificar a este deus

o mais nobre dos seus filhos" -

Biblioteca Histórica 22, 14.

Tipologia das vítimas sacrificiais e a

descrição da divindade para a qual eram

oferecidas.

Compra de Crianças

"mas, mais recentemente,

secretamente compravam e nutriam

as crianças, que enviavam para o

sacrifício, e quando uma

investigação foi feita, alguns dos

que haviam sacrificado foram

descobertos e dissimularam." -

Biblioteca Histórica 22, 14.

Substituição da vítima sacrificial.

Page 164: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

164

Presságios

"Quando eles pensaram nessas

coisas e viram seu inimigo

[Agatócles] acampado diante de

seus muros, eles estavam cheios de

temor supersticioso, pois eles

acreditavam que tinham

negligenciado a honra dos deuses

que tinha sido estabelecida por seus

antepassados." - Biblioteca Histórica

22, 14.

Contexto no qual a crise provocada pela

guerra contra os gregos passa a ser

encarada como sinal da cólera divina.

Ritual

"em seu zelo para reparar a sua

omissão, eles selecionaram 200 dos

mais nobres filhos e sacrificou-os

publicamente, e outras pessoas

supostamente sacrificaram

voluntariamente, em número não

inferior a 300." Biblioteca Histórica

22, 14.

Seleção e número de vítimas

sacrificadas.

Ritual

"Havia em sua cidade uma imagem

de bronze de Cronos, estendendo

suas mãos, palmas para cima e

inclinada em direção ao chão, de

modo que cada uma das crianças,

quando colocado nela rolava e caia

em uma espécie de cova aberta cheia

de fogo." - Biblioteca Histórica 22,

14.

Utilização dos objetos e descrição dos

materiais utilizados no ritual.

Roma e Cartago

“Fenícios e romanos lutaram uma

batalha naval; depois, em

consideração a magnitude da guerra

que estava diante deles, eles

enviaram emissários ao cônsul para

discutir os termos de amizade.

Houve muita discussão, e os dois

lados se mantiveram envolvidos em

um debate acirrado: os fenícios

ficaram maravilhados como os

romanos poderiam se arriscar para

atravessar até a Sicília, na medida

em que os cartagineses tinham o

controle dos mares [...]. Os romanos,

por sua vez, aconselharam aos

cartagineses para não ensiná-los a se

envolver com assuntos do mar,

porque eles afirmavam que eram

alunos que sempre ultrapassavam os

seus mestres.” - Biblioteca

Histórica, 23 – 2

O debate diplomático por ocasião da

primeira guerra púnica.

Page 165: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

165

Análise do Conteúdo

Plutarco - De Superstitione

Documentação Textual

Nome da Obra De Superstitione

Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público

Emissor Plutarco

Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Latim Clássico

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade

Referências às práticas de sacrifício humano em Cartago podem

ser encontradas ainda na obra Biblioteca Histórica de Diodoro da

Sicília e na obra Antiguidades Romanas, de Dionísio de

Halicarnasso.

Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:

poder divino, deus, sacrifícios, Cronos.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Sacrifícios

"Mais uma vez, não teria sido muito

melhor para os cartagineses ter

tomado Crítias ou Diagoras para

elaborar seu código de legislação no

início, e assim não ter acreditado em

qualquer poder divino ou deus, ao

invés de oferecer sacrifícios a

Cronos?" - De Superstitione, 13

Atribuição das práticas sacrificiais a

ausência de um código de leis em

Cartago.

Vítimas Expiatórias

"Não, mas foi com pleno

conhecimento e compreensão que

eles mesmos ofereceram os seus

próprios filhos;" - De Superstitione,

13

A descrição das vítimas utilizadas no

ritual

Ritual

"e aqueles que não tiveram filhos

compravam os pequeninos de

pessoas pobres e cortavam suas

gargantas como se fossem cordeiros

ou pequenas aves, enquanto a mãe

permanecia junto, sem uma lágrima

ou lamúria;" - De Superstitione, 13

Descrição do Ritual de Sacrifício

Humano.

Page 166: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

166

Sons

"e toda a área ao redor da estátua foi

preenchida com um ruído alto de

flautas e tambores e os gritos de

lamentação não devem ter chegado

aos ouvidos do povo."- De

Superstitione, 13

O uso de instrumentos musicais durante

o ritual.

Roma e Cartago Ausente Ausente

Page 167: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

167

Análise do Conteúdo

Tito Lívio – Ab Urbe Condita Libri

Documentação Textual

Nome da Obra Ab Urbe Condita Libri

Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público

Emissor Tito Lívio

Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Latim Clássico

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade Referências às práticas de sacrifício humano em Roma podem ser

encontradas ainda nas obras de Plutarco e Plínio, o velho.

Especificidades

O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:

Vestais, sacrifício, Livros Sibilinos, preces, deuses, oráculo,

profano.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Sacrifício Humano

"Destas [Vestais], uma havia sido

enterrada viva, como é o costume,

próximo ao Portão Colline e, a outra

havia se matado." Tito Lívio, 22 - 57

A punição para a transgressão das

vestais.

Consultas Oraculares

"Os Decênviros foram ordenados a

consultar os Livros, e Quintus

Fabius Pictor foi despachado para

Delfos para consultar o oráculo

sobre quais as preces e súplicas

poderiam oferecer aos deuses para

pôr fim a todas as suas

calamidades." - Tito Lívio, 22 - 57

Ações praticadas para se fazer conhecer

a vontade divina e as medidas para

aplacar sua ira.

Sacrifício Humano

"Enquanto isso, seguindo a

orientação dos Livros do Destino,

alguns sacrifícios incomuns foram

feitos”. Tito Lívio, 22- 57

Práticas adotadas em acordo com a

consulta oracular.

Vítimas Expiatórias

"Um homem e uma mulher gauleses

e um homem e uma mulher gregos

foram enterrados vivos no mercado

de gado" - Tito Lívio, 22 – 57

Descrição das vítimas imoladas no

ritual de sacrifício

Page 168: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

168

Área Sacrificial

"em um lugar com paredes de pedra

onde, mesmo antes deste período já

havia sido profanado com vítimas

humanas, em um sacrifício

totalmente alheio ao espírito

romano." Tito Lívio, 22- 57

Descrição da área destinada à

celebração do ritual de sacrifício

humano.

Roma e Cartago

"Neste prefácio à uma parte da

minha história eu posso afirmar que

muitos historiadores declararam no

início de todas as suas obras que a

guerra que vou descrever foi a mais

memorável de todas as guerras já

travadas - ou seja, a guerra que, sob

a liderança de Aníbal, os

cartagineses travaram contra o povo

romano." - Tito Lívio, 21 – 1

Considerações de Tito Livio acerca da

segunda guerra púnica.

Sacrifício Humano em Cartago Ausente Ausente

Page 169: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

169

Análise do Conteúdo

Plutarco – Marcellus

Documentação Textual

Nome da Obra Marcellus

Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público

Emissor Plutarco

Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Latim Clássico

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade Referências às práticas de sacrifício humano em Roma podem ser

encontradas ainda nas obras de Tito Lívio e Plínio, o velho.

Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:

oráculos, Livros Sibilinos, Sacrifício, cerimônias.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Oráculos

"No momento em que esta guerra

estourou [Segunda Guerra Púnica]

sobre eles, foram obrigados a

obedecer a certos comandos

oraculares dos Livros Sibilinos" -

Vida de Marcellus, 3

Orientações prescritas pelos Livros

Sibilinos.

Sacrifícios Humanos

"Para enterrar vivos dois gregos, um

homem e uma mulher, e também

dois gauleses, no lugar chamado

Fórum Boarium, ou mercado do

gado." - Vida de Marcellus, 3

A prática sacrificial, a descrição das

vítimas expiatórias e o local da

execução dos rituais.

Rituais

"E, em memória destas vítimas,

ainda hoje, no mês de Novembro,

realizam cerimônias misteriosas e

secretas" - Vida de Marcellus, 3

Celebração em memória das vítimas

expiatórias.

Roma e Cartago

“E quando o desastre de Canas veio,

e muitos milhares de romanos

tinham sido mortos na batalha, e só

uns poucos tinham-se poupado

fugindo para Canusium, e esperava-

se que Aníbal marcharia uma vez

contra a Roma, agora que ele tinha

destruído o melhor de suas forças

[...]” - Vida de Marcellus, 9

O resultado da batalha de Canas,

durante a segunda guerra púnica.

Page 170: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

170

Análise do Conteúdo

Plutarco – Quaestiones Romanae

Documentação Textual

Nome da Obra Quaestiones Romanae

Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público

Emissor Plutarco

Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Latim Clássico

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade

Referências às práticas de sacrifício humano em Roma podem ser

encontradas ainda nas obras de Tito Lívio, Plínio, o velho e

Dionísio de Halicarnasso.

Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:

Sacrifício, deuses.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Sacrifício Humano

"Quando os romanos souberam que

os Bletonesii, uma tribo bárbara,

tinha sacrificado um homem aos

deuses, por que eles procuraram os

chefes tribais com a intenção de

puni-los?" - Questões Romanas, 83

Os Romanos buscam punir os

Bletonesii por conta de suas práticas

sacrificiais.

Proibição do Sacrifício Humano

"Mas quando ficou claro que eles [os

Bletonesii] tinham feito, portanto, de

acordo com um correto costume, por

que os romanos os deixaram em

liberdade, mas proibiram que a

prática voltasse a se repetir no

futuro?" - Questões Romanas, 83

Os romanos proíbem a prática de

sacrifícios humanos entre os Bletonesii.

Sacrifício Humano

"No entanto, eles mesmos, [os

romanos] não muitos anos antes,

haviam enterrados vivos dois

homens e duas mulheres, dois deles

gregos e dois gauleses, no lugar

chamado Fórum Boarium." -

Questões Romanas, 83

Os romanos observaram a prática de

sacrifícios humanos.

Roma e Cartago Ausente Ausente

Page 171: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

171

Análise do Conteúdo

Plínio, o velho – Naturalis Historia

Documentação Textual

Nome da Obra Naturalis Historia

Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público

Emissor Plínio, o velho

Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi escrito originalmente em Latim Clássico

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade

A temática acerca das práticas de Sacrifícios humanos em Roma

também foi abordada por Tito Lívio, Plutarco e Dionísio de

Halicarnasso.

Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:

Magia, Sacrifícios, Ritos.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Magia

"É claro que há traços ainda

existentes da introdução da magia na

Itália, como em nossas leis das Doze

Tábuas, além de outras provas

convincentes que eu já observei em

um livro anterior." - Plínio, o velho

30, 3

Indícios que comprovam a presença das

práticas de Magia em Roma

Sacrifícios Humanos

"No último ano, no ano da cidade,

sendo cônsules Cneius Cornelius

Lentulus e P. Licínio Crasso, foi

aprovado no Senado, um decreto

proibindo sacrifícios" - Plínio, o

velho 30, 3

A proibição das práticas de sacrifícios

humanos em Roma

Ritos

"A partir deste período a celebração

dos ritos horríveis deixou de ser

praticada em público

completamente, por algum tempo." -

Plínio, o velho 30, 3

Considerações de Plínio acerca dos ritos

relacionados à prática de sacrifícios

humanos

Roma e Cartago Ausente Ausente

Page 172: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

172

Análise do Conteúdo

Políbios – Historia

Documentação Textual

Nome da Obra Historia

Natureza do Discurso Trata-se de discurso jurídico e público

Emissor Políbios

Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos gregos.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi escrito originalmente em Grego Koiné

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade A temática acerca da constituição de Cartago também pode ser

observada na obra Política, do filósofo estagirita Aristóteles.

Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como jurídico:

arauto, escrivão, estado, constituição, funções públicas.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Tratado - 509 a. C.

“Quem vier comerciar não deverá

concluir negócio algum sem a

presença de uma arauto ou escrivão,

e a efetivação de qualquer negócio

feito na presença destes será

garantida ao vendedor pelo estado,

se a transação ocorrer na Líbia ou

em Sardó.” Políbios III, 25.

As condições de livre comércio entre

romanos e cartagineses

Tratado - 309 a. C.

“Nenhum Romano poderá comerciar

ou fundar uma cidade em Sardó ou

na Líbia, nem permanecer em uma

localidade sardônia ou líbia por um

período mais longo que o

estritamente necessário para

reabastecer ou reparar sua nau.”

Políbios III, 25

Restrições ao comércio entre romanos e

cartagineses

Page 173: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

173

Tratado - 279 a. C.

“Para possibilitar a qualquer das

duas partes a prestação de

assistência à outra no lugar onde esta

se encontre em guerra, seja qual for

a parte que peça ajuda, os

cartagineses fornecerão as naus para

o transporte das tropas, tanto na ida

quanto na volta, mas cada parte

deverá pagar o soldo de seus

homens” (Políbios III, 25).

Aliança Militar por conta da invasão do

epirota Pirro à Península Itálica.

Roma e Cartago

"[...] naquela época os dois povos

ainda estavam moralmente

impolutos, eram moderadamente

afortunados e suas forças

equilibravam-se, sendo maiores,

portanto as possibilidades de fazer

uma apreciação melhor das

qualidades peculiares a cada um

deles mediante a comparação de sua

conduta nessa guerra do que em

qualquer das outras." Políbios I - 13

Comparação entre Roma e Cartago

quanto às relações de força no início

das guerras púnicas.

Constituição Cartaginesa

"Entretanto na época em que os

cartagineses entraram na Guerra

Anibálica sua constituição já havia

degenerado e a de Roma lhe era

superior" Políbios VI – 51

Comparação da Constituição

cartaginesa em relação à romana.

Deliberações

"Consequentemente o povo em

Cartago já havia obtido a

preponderância nas deliberações,

enquanto em Roma ela ainda era do

Senado." Políbios VI – 51

A preponderância da coletividade de

cidadãos cartagineses em relação aos

assuntos públicos.

Riqueza

"Em Cartago, nada que proporcione

lucro é considerado ignóbil; em

Roma, nada é considerado mais

ignóbil do que deixar-se subornar,

ou procurar o ganho por meios

impróprios [...]" Políbios VI- 56

Comparação entre romanos e

cartagineses quanto a sua relação com a

riqueza.

Eleições

"[...] em Cartago, os candidatos a

funções públicas recorrem

abertamente ao suborno, enquanto

em Roma essa prática é punida com

pena de morte." - Plíbios VI – 56

O uso da riqueza para a compra de

votos durante o processo eleitoral.

Religião

"Parece-me, porém, que a

superioridade maior do povo romano

está em suas concepções religiosas."

Políbios VI – 56

Perspectivas religiosas dos romanos em

comparação com as demais cidades-

estados.

Sacrifício Humano em Cartago Ausente Ausente

Page 174: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

174

Análise do Conteúdo

Aristóteles – Política (Πολιτικά).

Documentação Textual

Nome da Obra Política (Πολιτικά).

Natureza do Discurso Trata-se de um discurso jurídico

Emissor Aristóteles

Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos gregos.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi escrito originalmente em grego Koiné

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade A temática acerca da constituição de Cartago também pode ser

encontrada na obra História, do historiador grego Políbios.

Especificidades

O uso de termos específicos caracteriza o discurso como jurídico:

instituições, governo, magistratura, reis, senado, cidadãos e

Oligarquia.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Estabilidade Interna

"Os Cartagineses em particular

possuem instituições excelentes,e o

que prova o grande mérito de sua

constituição é que, a pesar da grande

parte de poder que conceda ao povo,

nunca houve em Cartago mudanças

de governo, e, o que é mais

estranho, jamais conheceram nem as

revoltas, nem a tirania." - Política II

– VIII

A relação entre as instituições dos

cartagineses e a sua estabilidade

política.

Magistratura

"[...] a magistratura cartaginesa é

preferível, uma vez que seus

membros, em lugar de sair das

classes obscuras, são escolhidos

entre os homens mais virtuosos."

Política II – VIII

O grupo social que compõe a

magistratura cartaginesa.

Reis

"[...] mas Cartago é mais prudente e

não toma seus reis de uma única

família, tampouco os tomas a todas

indistintamente, e remete a eleição e

não a idade e que seja o mérito o

que ocupe o poder." Política II –

VIII

Os critérios para a escolha dos reis em

Cartago

Page 175: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

175

Participação política

"O reinado e o senado, quando há

consenso, podem decidir certos

negócios e subtrair outros ao

conhecimento do povo, que só tem

direito a decidir em caso de

desentendimento" - Política II - VIII

Ocasiões em que a coletividade de

cidadãos é levada a participar das

decisões públicas.

Cidadãos

"Mas quando este caso chega,

podem não só fazer com que os

magistrados exponham suas razões,

mas também falar como soberano, e

cada cidadão pode tomar a palavra

sobre o objeto em discussão;

prerrogativa que não há em outras

constituições." Política II – VIII

Ações a que tinham o direito os

cidadãos por ocasião de sua

participação nas decisões políticas.

Pensamento Político

"Creem que as funções públicas

devem confiar-se não só aos homens

distintos, mas também a riqueza, e

que um cidadão pobre não pode

abandonar seus negócios e gerir com

propriedade os do estado." Política

II – VIII

As ideias dos cartagineses acerca das

necessidades ao ingresso da

magistratura.

Riqueza

"Cartago se salva dos perigos do seu

governo oligárquico enriquecendo

continuamente uma parte do povo,

que envia às colônias." Política II –

VIII

O enriquecimento como elemento de

manutenção ordem social.

Roma e Cartago Ausente Ausente

Page 176: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

176

Análise do Conteúdo

Virgílio – Aeneis

Documentação Textual

Nome da Obra Aeneis

Natureza do Discurso Discurso Mítico de caráter público

Emissor Virgílio

Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi escrito originalmente em Latim Clássico

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade A temática acerca da fundação de Cartago também pode ser

visualizada em fragmentos da obra do historiador grego Timaios.

Especificidades Palavras que caracterizam o discurso como mítico: Dido, Tiro,

Siqueu, presságio, Pigmalião, Tirano, Naus, Cartago e Birsa.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Dido

"O império atem-se a Dido, que por

fugir do irmão, fugiu de Tiro" -

Eneida I - v. 358-359

A administração do império cartaginês

e a origem da rainha Dido.

Casamento

"Siqueu, fenício em lavras opulento,

foi da mísera esposo, e muito

amado: com bom presságio o pai lha

dera intacta." Eneida I - v. 362-364

Casamento de Dido e Siqueu

Assassinato

"Pigmalião façanhoso entre os

malvados, bárbaro irmão, do estado

se empossara. Interveio o furor: de

fome de ouro. Cego, e à paixão

fraterna sem respeito, pérfido, ímpio,

a Siqueu nas aras mata." Eneida I -

v. 365-369

Razão da fuga de Dido de Tiro

Page 177: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

177

Fuga de Tiro

"Da casa o crime e trama desenleia;

a Ara homicida os retalhados peitos

Desnuda, e à pátria intima-lhe que

fuja: Prata imensa e ouro velho,

soterrados, Para o exílio descobre.

Ela, inquieta, Apressa a fuga, e atrai

os descontentes; Que ou rancor ao

Tirano ou medo instiga; Acaso

prestes naus, manda assaltá-las;

Dos Tesouros do avaro carregadas

Empegam-se: a mulher conduz a

empresa!” " - Eneida I - v. 375-384

A adesão de dissidentes à fuga e a

liderança de Dido.

Fundação de Cartago

"Chegam d'Alta Cartago onde o

castelo verás medrando agora e

ingentes muros: mercam solo (do

feito o alcunham Birsa) Quanto um

coiro taurino abranja em tiras."

Eneida I - v. 385-387

As especificidades do rito de fundação

da cidade-estado.

Roma e Cartago Ausente Ausente

Page 178: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

178

Análise do Conteúdo

Dionisio de Halicarnasso – Antiquitates Romanae

Documentação Textual

Nome da Obra Antiquitates Romanae

Natureza do Discurso Trata-se de um discurso religioso de caráter público

Emissor Dionisio de Alicarnasso

Receptor Os prováveis receptores são os cidadãos romanos.

Análise do Texto

Propriedade do Texto O texto foi originalmente escrito em Grego Koiné

Comunicação Texto apresentado em espaço público

Intertextualidade Referências às práticas de sacrifício humano em Cartago podem

ser encontradas ainda nas obras de Plutarco e Diodoro da Sicília.

Especificidades O uso de termos específicos caracteriza o discurso como religioso:

Sacrifícios, Saturno, Hércules, altar, ritos, efígies, sagrado.

Categorias Temáticas

Tema Pertinência Objetividade

Sacrifícios Humanos

"Diz-se que os antigos [itálicos]

também sacrificavam vítimas

humanas a Saturno, como era feito

em Cartago, desde a sua fundação

até os dias de hoje, como também

entre os gauleses e em outras

cidades orientais." Dionisio I, 38

As práticas de sacrifícios humanos

dedicados a Saturno em Cartago, na

Itália, na Gália e no Oriente.

Rituais

"e que Hércules, com o objetivo de

abolir o costume deste sacrifício,

erigiu um altar no alto do monte de

Saturno e realizou os ritos iniciais

com vítimas puras, queimando-as

em fogo puro." - Dionisio I, 38

Abolição da prática ritual de sacrifício

humano.

Substituição Ritual

"E para que as pessoas não se

sentissem constrangidas por ter

negligenciado seus sacrifícios

tradicionais, [Hércules] ensinava-as

a apaziguar a ira do deus [Saturno]

fazendo efígies, representando os

homens que tinham por costume atar

pés e mãos e jogá-los na correnteza

do rio Tibre, vestindo-as da mesma

maneira, jogando-as no rio, no lugar

dos homens." - Dionisio I, 38

Alterações e substituições

implementadas no ritual de sacrifício a

Saturno.

Page 179: Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de

179

Período do Ritual

Os Romanos continuaram a fazer, a

cada ano, um pouco depois do

equinócio da Primavera, no mês de

maio, no que eles chamam de idos (o

dia da metade do mês); - Dionisio I,

38

A prática ritual realizada regularmente

na Primavera.

Participantes do ritual

"neste dia, depois de oferecer os

sacrifícios preliminares de acordo

com as leis, os Pontífices, como o

mais importante dos sacerdotes é

chamado, e com eles a virgens que

guardam o fogo perpétuo, o

Pretores, e os outros cidadãos que

podem estar presentes nos ritos" -

Dionisio I, 38

Descrição dos integrantes e celebrantes

do rito realizado em homenagem a

Saturno entre os romanos.

Ritual

"Jogam da ponte sagrada na

correnteza do rio Tibre, trinta efígies

feitas à semelhança dos homens, que

eles [os romanos] chamam Argei”. -

Dionisio I, 38

A execução do Ritual.

Roma e Cartago Ausente Ausente