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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DOUTORADO
UM NÚMERO NO LAGER: repercussões e ressonâncias a partir da
literatura da Shoah
Natal-RN
Março de 2018
1
Alecrides Jahne Raquel Castelo Branco de Senna
UM NÚMERO NO LAGER: um estudo na literatura da Shoah
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais
como requisito parcial para a obtenção do
título de Doutor em Ciências Sociais.
Orientador: Prof.Dr Orivaldo Pimentel
Lopes Júnior.
Coordenador: Prof. Dr. Alexsandro Araújo
Galeno
Área de Concentração: Ciências Sociais
Linha de pesquisa: Dinâmicas e Práticas
Sociais
Natal-RN
Março de 2018
3
Alecrides Jahne Raquel Castelo Branco de Senna
UM NÚMERO NO LAGER: um estudo na literatura da Shoah
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais, outorgado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.
Área de Concentração: Ciências Sociais
Linha de pesquisa: Dinâmicas e Práticas Sociais
Data da aprovação 28/03/2018
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Orivaldo Pimentel Lopes Júnior - UFRN (Orientador)
Prof. Dr. Victor Hugo Guimarães Rodrigues - FURG (Externo)
Profa. Dra. Ana Laudelina Ferreira Gomes - UFRN (Interno)
Prof. Dr. Hermano Machado Ferreira Lima - UECE (Externo)
Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas - UFRN (Interno)
Prof. Dr. Estevam Dedalus Pereira de Aguiar Mendes - UEPB (Externo)
4
“E força e dor”
e o que me empurrou
impulsionou e sustentou?
Anos de júbilo
bissextos,
rumor de pinheirais,
uma vez,
a caça ilícita da convicção
de que isso deve ser
dito de outra forma
que não assim.
(Paul Celan)
5
AGRADECIMENTOS
Há muito o que agradecer. As leituras dos relatos da Shoah me ensinaram coisas que eu era incapaz de enxergar. Aprendi que a vida que tive sempre foi muito boa e eu não conseguia enxergar o quão boa era e nem a família com que fui presenteada. Esses quatro anos de doutorado também me ensinaram que há mundos que ainda quero descobrir, interesses que nunca imaginei ter algum dia. Descobri que me apaixonei pela Filosofia. Descobri amigos que não imaginava que tinha e conheci pessoas e lugares que não sonhava conhecer. Foram quatro anos de paixão e solidão. Eu finalmente encontrei a pessoa mais importante da minha vida, quando tive coragem de olhar no espelho.
Agradeço à CAPES, não por obrigação, mas por ceder um pouco de confiança a alguém que procura conhecimento, por mim e todos os bolsistas do PPGCS.
Agradeço ao meu orientador, pela bravura em aceitar orientar o projeto que apresentei na seleção para o doutorado. Que coragem! Foram quatro anos com uma pessoa correndo atrás, enviando e-mails e mensagens, enchendo de perguntas e com as ideias mais mirabolantes que vocês podem imaginar. Eu fui abençoada com um orientador paciente, compreensivo, mas igualmente exigente na escrita e no trabalho com a bibliografia. Desculpe-me professor, pelos lapsos e pela bagunça - são coisas que não consigo evitar.
Agradeço, claro, à minha família, que foi meu porto seguro sempre e que, apesar de todas as diferenças, é unida e acolhedora. Uma família ímpar, posso assegurar. O meu agradecimento se estende aos meus amigos que fizeram parte dessa caminhada: minha família de Natal, que eu aprendi a amar; os amigos que conheci nessa minha temporada em terras potiguares - aqueles com quem tive contato, colegas de doutorado, alunos dos estágios, meu muito obrigado por deixar um pouco de vocês comigo. Nesse meu último ano, duas pessoas fizeram toda a diferença para meu equilíbrio emocional e mental: meu amigo Estevam e meu gato Linus. O primeiro me lembrando sempre que preciso me esforçar, mas que vai dar tudo certo e o segundo, por dormir em minha mesa ou aos meus pés e ser onipresente entre os meus livros e textos, inclusive tentando digitar algumas linhas com suas belas patinhas.
Ufa! Eu queria ser mais poética nos agradecimentos, mas, ainda há muito o que conquistar.
6
RESUMO
O estudo é uma proposição, como nas palavras do poeta Celan, dizer de outra forma que não assim. Dizer o quê? Como se pode pensar a literatura da Shoah sem cair numa análise de formas e números? O ponto de partida foi uma citação de Primo Levi, que despertou a questão: o que significou para o judeu a substituição do nome pelo número no campo de concentração nazista? Assumindo que não seria um caminho tão simples, optei por uma escrita que viabilizasse o uso das imagens do Lager trazidas pela leitura dos relatos. As escolhas teóricas após as leituras iniciais foram Walter Benjamin e Gaston Bachelard. Após verificar nos textos sobre o nome e a alma no judaísmo que a questão do mal estava entrelaçada, Hannah Arendt deixou de ser uma opção para comentar a questão judaica e entrou como leitura fundamental. Entre as leituras sobre a questão judaica entraram Giorgio Agamben e Léon Poliakov. Surgiu com isso a necessidade de pensar sobre a alteridade, por entender que a questão levantada pelo trecho de Primo Levi implicava a pessoa não apenas do ponto de vista político - por isso a discussão sobre o nome e alma. O resultado é o entrelaçamento desses autores: Walter Benjamin, Hannah Arendt, Emmanuel Lévinas, Gaston Bachelard, Gershom Scholem com os relatos. Juntos, numa escrita em constelação esses grandes pensadores judeus formam a minha estrela de seis pontas, uma leitura sobre a literatura da Shoah .
Palavras-Chave: Literatura da Shoah ; Judaísmo; Misticismo; Fenomenologia; Sociologia.
7
ABSTRACT
The following study is a proposition; as in the words of Paul Celan, to say something, only putting it in different ways. What would one dare to say? How would it be possible to think about the Shoah withouth an analysys of forms and numbers? The starting point was a quote from Primo Levi, who raised the question: what was it like for a jewish to have his or her name changed for a number in the nazi camps? As I assumed it was not an easy route to take, I opted for a kind of writing that would allow the use of images from the Lager brought from my readings of the source material. Initial readings started with Walter Benjamin and Gaston Bachelard, but after verifying that the concept of evil was deeply entwined in the jewish texts about name and soul, Hannah Arendt soon became another fundamental entry in my theoretical framework; Giorgio Agamben and Léon Poliakov also helped with the issues on judaism. The need to think about alterity became an imperative when I realized that Primo Levi was not referring to the human being only in a political level; thus the discussion about name and soul. The result is an amalgam of different authors: Walter Benjamin, Hannah Arendt, Emmanuel Lévinas, Gaston Bachelard, Gershom Scholem, as well as the reports and narratives. Therefore, this work stands as a type of "constellation writing", as the result of following the trail of thought of this six-pointed star: a reading on the Shoah Literature.
Keywords: shoah literature; judaism; mysticism; phenomenology; sociology
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………. 8
01 - A Literatura da Shoah: questões de história e memória……………. 29
1.1. O movimento das imagens do Lager …………………………………... 31
1.2. O tempo em espiral ………………………………………………………. 39
1.3. Lembrar, Esquecer ……………………………………………………… 45
1.4. Tempo e memória em Emmanuel Lévinas …………………………….. 51
1.5. No Lager com Gaston Bachelard …………………….…………………. 58
02 - A “palavra da vida”: Nome e alma no judaísmo; memória,
esquecimento e a morte ………………………………………………………... 61
2.1. Morte e Tempo ……………………………………………………………….. 62
2.2. Morte na tradição judaica: o Kadish ……………………………………….. 70
2.2. Memória e Esquecimento …………………………………………………... 80
03 - A Zona Cinzenta: questões éticas do Tempo e o Outro …………….. 89
3.1. Uma questão de números? …………………………………………………. 91
3.2. O mal em Hannah Arendt e no Judaísmo ………………………………… 96
3.3. O Rosto, a alteridade, o Outro ……………………………………………… 99
CONSIDERAÇÕES FINAIS …………………………………………………….. 112
BIBLIOGRAFIA ………………………………………………………………….. 127
ANEXOS ………………………………………………………………………….. 136
9
INTRODUÇÃO
Enquanto faço os apontamentos para a introdução, num trabalho de
refazer constante do texto, muitas coisas acontecem mundo afora que me
chamam a atenção, não apenas por se referirem ao meu tema. Dezenas de
atentados e muitas questões políticas aparecem nos noticiários ao longo dos
quatro anos de elaboração da minha tese de doutorado que me lembram de
alguma forma do elemento fundamental sobre o que pretendi refletir: a
alteridade, o Outro, a alma e o Eu. Enfim, uma ética do Tempo e da Morte.
Vou elencar alguns desses acontecimentos.
Em Setembro de 2015, uma mulher agride homens senegaleses
chamando-os de macacos, ladrões, etc. Para completar seu rol de ofensas,
atira-lhes bananas e agride Ngale Ndiaye com uma tapa. As ofensas que 1
denigrem o ser humano provenientes de milhares de séculos, e, utilizada
enfaticamente pela propaganda nazista, ainda persiste na mentalidade humana
em pleno século XXI. O que nos leva a questionar o quão necessário é – e por
quanto tempo ainda o será – lutar contra o ódio e o preconceito derivados da
ideia de raça.
Um rabino foi espancado na Ucrânia, dias após o Rosh Hashaná – o
ano novo judaico, em 2016 . Em abril de 2017, a Rússia anuncia um míssil 2
chamado ‘Satã 2’ em resposta provocativa à mãe das bombas, lançada pelos
EUA contra o grupo Estado Islâmico no Afeganistão . 3
Em 17 de abril de 2014 aconteceu, organizada pela Federação Israelita
de São Paulo, a 11ª Marcha da Vida Regional, e seu cartaz de divulgação na
rede social Facebook dizia: “Será que o Holocausto realmente existiu?”, uma
1 Veja a matéria da revista Exame, publicada em 10 de setembro de 2014: http://exame.abril.com.br/brasil/mulher-ofende-e-joga-bananas-em-senegaleses-no-parana/ 2 O rabino Mendel Deitsch foi vítima de espancamento em 17 de outubro de 2016. Veja notícia no site, que não confirma a hipótese da ação ter motivação antissemita, publicada em 17 de abril de 2017 https://www.menorahnet.com.br/8636-2/ 3 Veja notícia publicada no site da BBC em 13 de abril de 2017 http://www.bbc.com/portuguese/internacional-39596695
10
caminhada de dois quilômetros e meio até o cemitério Israelita de São Paulo , 4
em homenagem à marcha realizada pelos prisioneiros de Auschwitz e Birkenau
quando os nazistas evacuaram os campos fugindo dos Aliados. Marcha da qual
participaram Elie Wiesel e seu pai . 5
Enquanto todas essas coisas se desenrolam dentre todos os
problemas que o mundo possui, cientistas se preocupam com desenvolvimento
tecnológico que, quiçá em um ou dois séculos, a humanidade possa ser
beneficiada. Uma matéria publicada pelo jornal El País , em fevereiro de 2017,
anuncia que a NASA encontrou matéria orgânica em um planeta anão próximo
à terra , chamado Ceres. 6
Estão todos mais preocupados com guerras intergalácticas do que com
guerras que acontecem nas esquinas de qualquer país, nas esquinas das vidas
cotidianas de todo cidadão, lutando todos para manterem sua condição de
seres humanos. A profusão de notícias que são lançadas sobre as pessoas a
cada segundo, provoca uma insensibilidade tal, que não se presta mais uma
atenção reflexiva, senão uma atenção evasiva (SONTAG, 2010, p.55).
Mas, se os nossos super-heróis travam imensas batalhas 7
intergalácticas, também os seres humanos se colocam na posição de vencer
alienígenas. A Ciência se ocupa de pesquisas espaciais, pois, já no século XIX
a literatura previa grandes ataques . E se Leonardo da Vinci construiu um 8
protótipo de submarino no século XV, melhor levar as especulações a sério.
Esse assunto nunca foi tão popular e tão pensado em detalhes na história do
cinema como os que vieram após Star Wars . 9
4 Postagem da página da Federação Israelita de São Paulo em 17 de Abril de 2014. Ver página https://www.facebook.com/federacaosp/ 5 WIESEL, 2006, p.90. 6 Veja o site http://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/15/ciencia/1487186292_978397.html 7 Tenho como referência os filmes da Marvel e da DC Comics. 8 Guerra dos Mundos de H. G. Wells, publicado em 1898. 9 Refiro-me aos filmes de George Lucas, na década de 1970. Retomados na década passada, Star Wars faz hoje muito sucesso entre jovens e crianças – não apenas ao público adulto, nostálgico.
11
A falsa tranquilidade que é apregoada reside dentre outras coisas,
numa simples questão: urge semear uma ilusão de segurança. Ideia essa que
reside no desejo do controle com o qual o ser humano parece nascer. E nasce,
pois todo o processo do parto acontece dentro de padrões de controle de
saúde. Todo o crescimento de uma pessoa nos países ditos ocidentais seguem
rigorosos ensinamentos. Controle é a palavra de ordem. Não se pode ser um
selvagem, não se pode ser um bárbaro. Entretanto, pessoas se matam pelos
motivos mais esdrúxulos. Pessoas se agridem e ofendem pelos motivos mais
irracionais que não são sequer pessoais.
OS JUDEUS, AUSCHWITZ, SHOAH
‘Auschwitz’: para alguns, assim como para os judeus de Sighet, em
1944 , esse nome não diz nada. Pode referir-se a qualquer coisa como um 10
lugar ‘tão, tão distante’ dos contos de fadas e, para outros, ele é um lugar
‘silencioso como num aquário’. Os primeiros, ainda que por sua ignorância, não
deixam de estar certos sobre esse lugar distante, tão distante que é “silencioso
como num aquário, e como em certas cenas nos sonhos” (LEVI, 2010a, p.18),
pareciam lançar as bases de uma memória que futuramente não reconheceria
aqueles acontecimentos enquanto parte da vida real.
O silêncio de aquário, para aqueles que o sentem, é um ‘inferno
povoado de demônios’. Um lugar onde os gritos não cessam, onde se está
sempre subjugado à repetição, onde as palavras se contorcem exprimindo
sangue, virando cinzas. Mas Auschwitz é tão distante, não pelos quilômetros
que separam os mundos nem pelo tempo que correu na velocidade da luz. Na
água a vida é diferente, tempo e som diferem do ar e da superfície da terra.
A distância que separa Auschwitz daqueles que o ignoram, hoje, é de
outra espécie. Não está classificada no tempo e no espaço de uso corrente,
mas naqueles ‘tempo’ e ‘espaço’ que poucos acessam pelos motivos mais
diversos. É um tempo que exige olhos especiais e outra perspectiva. Auschwitz
exige o tempo da literatura e os olhos de quem sonha. Ele exige que
10 “- Auschwitz. Ninguém jamais ouvira esse nome.” (WIESEL, 2006, p.34).
12
desejemos vê-lo, que sejamos capazes de estar nele. E quem não mais, senão
aquele que hoje olha com os olhos do passado nas palavras dos
sobreviventes. Lê-se com a consciência presente o que é refletido pelos olhos
do passado.
Para ver é preciso mais que simplesmente olhar. Para estar, é preciso
disposição para enfrentar a si mesmo. Porque para a leitura do Lager, é exigido
descer a um poço profundo e enxergar o Lager é olhar a face da humanidade,
refletida em águas escuras e frias. A forma escolhida para fazê-lo, nesse
estudo, é me inspirando nos caminhos de Benjamin e Bachelard. Combinando
uma leitura constelar em repercussão e ressonâncias, opto em expor minha 11
condição de pesquisadora, mas também de pessoa, leitora dos relatos da
Shoah .
Elisabeth Roudinesco (2008), em sua história dos perversos, afirma
que a perversão é própria de seres humanos e não de animais (p.178). Ao
atribuir aos perversos do Lager o título de bestas, afrontamos aos animais.
Afrontamos com insultos os carrascos, na verdade, quando os chamamos de
humanos, pois isso é que diz o que são capazes de fazer. Todo ser humano é
passível de empunhar a arma no Lager , direta ou indiretamente: “Já se falou
muito, apoiando-se na noção de banalidade do mal, que, nessas
circunstâncias, qualquer um podia tornar-se nazista, até mesmo genocida”
(ROUDINESCO, 2008, p.155).
Barbárie não é algo que diz respeito à aproximação com um nível
menos civilizado ou aproximado ao animal. Uma acusação muito bem
conhecida pelos historiadores, sociólogos e antropólogos, da qual a Ciência se
utilizou durante muito tempo. Ao contrário, o ‘outro lado da moeda’ do que
chamamos de civilização é a barbárie . Mas, não será o outro lado por se 12
tratar de algo que desejamos negar? Pois que, o europeu não chamou ao
ameríndio de bárbaro? Não era assim que os gregos se referiam aos outros?
11 “... a leitura do texto constelar se caracterizaria pela liberdade de estabelecer ligações entre partes dispersas.” (OTTE; VOLPE, 2000, p.39) 12 Theodor Adorno “Educação após Auschwitz”.
13
Os ameríndios também não se referem eles mesmos a si como “Os Homens”?
Aparentemente é apenas um caso de uma disputa de egos: “mais vale menos
barbárie que mais barbárie” (CLASTRES, 2015, p.79).
Em janeiro de 2017, por ocasião do dia em memória das vítimas do
Holocausto, muitas reportagens lembraram eventos diversos relacionados a
crimes nazistas e ao que têm sido feito para lembrar, para que ‘Auschwitz’ não
se repita. Uma dessas reportagens me chamou particularmente a atenção:
falava sobre as Stolpersteine (pedras de tropeçar). Um artista coloca os nomes
das vítimas dos campos de concentração – com referências sobre em qual
campo morreram e em que ano – na calçada da casa onde vivam. Essas
pedras de tropeçar estão espalhadas por vários países da Europa.
A primeira menção às Stolpersteine me levou imediatamente à ideia
das imagens da Shoah . As imagens de memória, imagens nas quais
tropeçamos que nos remetem às memórias endurecidas no fundo do rio do
esquecimento. Em cada pedra há uma referência à pessoa que vivia naquela
residência “Vivo aqui...”. No site do artista há ainda uma referência a uma 13
frase do Talmude: “Uma pessoa só é esquecida quando seu nome é
esquecido”.
O que será lembrar-se daqueles que silenciaram nos campos senão
um sonhar? “Se de fato um morto, para o inconsciente, é um ausente, só o
navegador da morte é um morto com o qual se pode sonhar indefinidamente.”
(Bachelard, 1989, p.77). Os que estiveram em procissão através da Europa em
direção às câmaras silenciadoras são os ‘fantasmas que antevimos ontem à
noite’ (LEVI, 2010a, p.25) na penumbra da razão. Quando uma densa neblina
embotou os sentimentos dos homens que entregaram seus semelhantes - que
não reconheciam - aos trilhos que os levavam até as portas que se abriam para
o outro lado.
13Seu nome é Gunter Demnig, nasceu em Berlim, em 1947. Ele faz esse trabalho há mais de 20 anos. http://www.stolpersteine.eu/en/home/ (acessado em 13/02/2017).
14
Em minha dissertação de mestrado optei por uma reflexão sobre o 14
uso do cinema no ensino de sociologia. O filme escolhido para a discussão foi
O Pianista (Roman Polanski, 2003). Havia algo nesse filme que resgatava
elementos de minha própria trajetória de vida. E, ao ler o relato de Wladislaw
Szpilman, deparei ao fim com uma angústia que mais tarde veria refletida nos
relatos de vários sobreviventes da Shoah : “A partir de amanhã terei de
começar uma vida nova. Como recomeçar a viver tendo apenas a morte atrás
de mim? Que energia vital poderia tirar da morte?” (SZPILMAN, 2008, p.181).
Na tese, após a leitura de alguns relatos dos quais tive conhecimento,
optei por uma seleção de relatos que priorizasse aqueles de sobreviventes dos
maiores campos de concentração: Auschwitz e Treblinka. Houve também a
intenção de incluir relatos de mulheres. Assim, foram escolhidos os seguintes
textos: Primo Levi ( Se isto é um homem, A trégua ); Chil Rajchman ( Treblinka:
Eu sou o último judeu ); Viktor Frankl ( Em busca de sentido ); Elie Wiesel ( A
noite ); Jorge Semprún ( A escrita ou a vida ); Noemi Jaffe ( O que os cegos estão
sonhando? O diário de Lili Jaffe ); Bella Herson ( Almas Tatuadas ). Acrescentei a
eles os textos de Janusz Korczak, Diário do Gueto e, O pianista de Wladislaw
Szpilman - já utilizado em minha dissertação.
UMA JUSTIFICATIVA?
O interesse por esse tema vem de muito tempo e gostaria de resgatar
um pouco, pois, acredito que, de alguma forma, ele justifica as escolhas dos
trechos dos relatos que aparecerão nos capítulos subsequentes. Antes, uma
citação de Gaston Bachelard merece destaque: “Do homem, o que amamos
acima de tudo é o que dele se pode escrever. O que não pode ser escrito
merece ser vivido?” (1989, p. 11).
O que leva uma pessoa, na América Latina, a empreender reflexões
sobre a Shoah ? Sem ter conhecido um sobrevivente sequer ou travado
conhecimento com filhos de sobreviventes? O que encontrou nos livros de
14 SENNA, Alecrides J. R. C. B. Diálogos com o homem imaginário: pensando o uso de imagens no ensino de Sociologia. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Natal, Fevereiro de 2012.
15
história da escola? Não, por certo. As informações repassadas cruas por livros
didáticos de dezenas de anos atrás não eram suficientemente instigantes.
Quando a guerra parece acontecer longe demais, ou quando é apenas um
dado histórico de um passado longínquo, é necessário preocupar-se ou pensar
sobre ela.
Durante muito tempo, deixei esquecida a memória dos meus primeiros
contatos com a questão da luta pela sobrevivência dos judeus na Segunda
Guerra Mundial (1939-1945). Isso porque não passou inicialmente pelos livros
de história da escola. Eu estava com quatorze anos e tinha encontrado
casualmente algumas revistas antigas, em uma de minhas férias escolares em
Salvador, na Bahia. Meu pai, empolgado pelo meu interesse na leitura, chegou
um dia com uma daquelas revistas.
A revista tinha uma matéria sobre uma jovem polonesa que, como a 15
grande maioria durante o conflito, havia perdido a família e vivia sozinha com
uma irmã pequena. Essa jovem escondeu, por conta própria, mais de cinco
pessoas. Seu nome era Estefania Podgórska, uma garota de dezesseis anos.
Ao término da guerra, casou-se com um rapaz que estava entre o grupo que
abrigou.
Aos dezesseis, assisti ao filme do diretor Steven Spielberg, A lista de
Schindler (1993). O efeito desse filme foi devastador em mim. Fui invadida por
ideias pessimistas sobre a bondade no ser humano e, por outro, havia o próprio
Schindler que mesmo sem ter a intenção inicialmente, seus atos salvaram mais
de mil pessoas. E tinha Itzhak Stern e a amizade entre os dois. Fiquei
literalmente entre a cruz e a espada.
A escola não me satisfez com suas explicações simplistas sobre o
assunto. Não podia entender como algumas páginas e a informação de que a
morte de seis milhões de judeus em um evento chamado Holocausto poderia
dizer muita coisa. Cada vez que ouvia a palavra Holocausto, lembrava-me das
15 O nome da revista é “Seleções”, do grupo Reader’s Digest (janeiro de 1995).
16
fogueiras do filme de Spielberg. Por algum motivo a garotinha de vermelho do
filme sinalizava para mim algo que era preciso entender. Ela me inquietava.
De alguma forma e, sob muitas nuances, a tese está entrelaçada à
questões que me perseguiram e me perseguem por toda a vida. Antes mesmo
do contato com esse assunto, a questão de quanta dor alguém é capaz de
infligir a outro sempre foi como uma sombra a me seguir sorrateira - questão
generalista, talvez. Por diversos motivos relacionados à minha própria vida isso
se tornou uma questão de vida ou morte. Precisava entender, queria entender.
O que leva alguém a sentir-se no direito sobre a vida do outro? Quais os limites
disso?
Com os anos percebi que, independentemente dos meus esforços,
algumas dessas inquietações nunca seriam respondidas da forma como
gostaria. Não tinha entendido ainda o problema do contexto. As ações
humanas precisam ser contextualizadas, caso contrário, se idealizadas, podem
ofuscar o entendimento. Não se pode pensar o ser humano sob as luzes do
modelo ideal, como se ele pudesse alcançar esse ideal.
As coisas incompreensíveis da minha pequena vida tornaram-se
medíocres diante de um grande incompreensível: a Shoah . Olhar para esse
complexo de eventos era como olhar para um panorama de destruição.
Destruição de tudo, não apenas de casas e prédios. Mas, de vidas, sonhos e
futuros. É o destino do homem, destruir-se e destruir aos outros?
Essa pergunta não pode ser respondida, sob o risco de produzir uma
grande mentira: quanto sofrimento o ser humano é capaz de suportar? Toda
tese ou trabalho acadêmico começa com uma pergunta e toda problemática
posterior é construída a partir dela.
PERCURSO E ESCOLHAS TEÓRICAS
Mas, pela impossibilidade de responder a tal questionamento do que se
pode suportar em matéria de sofrimento – generalista demais - seguiu-se outra:
como suportar o sofrimento do Lager e ainda ser capaz de continuar a viver, ter
17
filhos, trabalhar, etc? Quem pode responder a isso? Os relatos dos
sobreviventes dos campos de concentração tem a capacidade de levantar essa
questão em especial. Pode ser uma pergunta de partida, mas, ainda assim,
não se trata de uma problematização científica. E é, ainda assim, uma questão
relevante. Ou seja: é mais que uma questão para Europeus, é um problema
para toda a humanidade. A problemática é que será, em cada momento ou
lugar, diferente.
Ao pensar uma discussão do uso de imagens no ensino (SENNA,
2012), por exemplo, há que se ter em mente que o interesse não é induzir,
mas, propor imagens; essas mesmas que, em algum momento, podem
encontrar-se com as ressonâncias nos alunos, ou mesmo, provocar
repercussões. Discutir isso em outro momento despertou-me para a
importância de aprofundar a questão sobre a relação repercussão/ressonância
com o rio da vida que nos arrasta mundo afora e que aqui pode ser
tangenciado com Benjamin, através dos conceitos de Experiência/Vivência.
A Shoah, como nas palavras de muitos importantes pensadores da
época, é um evento que veio pôr à prova toda a humanidade e como bem
enfatiza a filósofa judia-alemã Hannah Arendt. Não pela quantidade de mortos,
como apresentam os livros de história das escolas , mas, pela capacidade de 16
transformar o mal em uma indústria do horror. A humanidade chegou a um
patamar de civilização que transforma dor e sofrimento em produtos fabris e
espólios para investimento, que joga álcool nas feridas e alega que a ardência
é o fator da cura. O mal que produz o sofrimento, nada mais é que um motor
para o desenvolvimento, dos quais não se pode obter uma resposta, senão
justificativas particulares e até obscenas. As cenas e eventos do Holocausto
são isso: obscenidades.
Toda essa discussão sobre a Shoah não é ‘uma tagarelice idealista’
(LÉVINAS, 2009, p. 261) e nem pretendo um discurso politicamente correto.
Não é difícil encontrar pessoas que não saibam o que é a Shoah , nem ao
menos se indicarmos esse evento sob o nome mais conhecido: Holocausto.
16 Ao falar dos livros escolares, tenho em mente os livros nos quais estudei na década de 1990.
18
Em algum lugar do mundo se repete a cena em que a professora diz “levante a
mão quem sabe o que foi o Holocausto” . Quem vai levantar a mão? Um ou 17
dois. Muitos não sabem, apenas fazem alguma ideia: Segunda Guerra Mundial,
milhões de judeus mortos, campos de concentração, Europa destruída, bomba
de Hiroshima e Nagasaki, nazistas, guerra fria.
E o que isso tem a ver com o que as pessoas vivem hoje? Quem sai de
casa e volta todos os dias após o trabalho, a escola, a faculdade, a ida ao
supermercado ou shopping Center, não pensa que isso estaria relacionado a
ela de alguma forma. O censo foi aperfeiçoado para atender as necessidades
dos nazistas em identificar os judeus e seus bens, pelos países ocupados. A
Estatística ganha eficiência de blitzkrieg (BLACK, 2001, p.255). O que isso tem
a ver com os dias atuais? Os governos têm necessidades de questionários
censitários mais específicos para a realização de suas políticas sociais e
controle estatístico da população.
É como Susan Sontag mostrou em seu livro Diante da dor dos outros
(2003): não está aqui, não acontece aqui, não diz respeito aos que estão aqui.
Portanto, não há com o que se preocupar, pensar ou sentir. É um drama
insolúvel quando o objetivo é trazer a dor para perto daqueles que não a
identificam como sua. Não se trata, então, de fazer sentir a dor, mas
reconhecê-la como possibilidade, como realidade ignorada.
Primo Levi diz “O meu nome é 174.517” (2010a, p.26). Recorrente
questão nos relatos. Mas, quantas vezes não perguntam o seu número de
identidade antes de perguntarem o seu nome, ao fazer um cadastro qualquer?
O que é para um judeu o nome que carrega? O nome está relacionado ao seu
judaísmo, a pertencer a um povo. Com o desenvolvimento das reflexões, o
significado da perda do nome deixou de ser ‘a questão’ que deveria ser
respondida, pois não se tratava de uma resposta objetiva. Várias questões
17 Do filme Escritores da Liberdade (Richard LaGravenese, EUA, 2007). O filme é baseado no Diário dos Escritores da Liberdade (Freedom Writers Diary) publicado nos EUA em 1999, que conta a experiência de vários adolescentes com a guerra de gangues em Los Angeles, no início dos anos 1990. Após o sucesso da professora Erin Gruwell e seus alunos, juntos fundaram a Freedom Writers Foundation: http://www.freedomwritersfoundation.org/.
19
emergiram da literatura relacionadas à pergunta de partida: o nome para o
judeu está ligado à sua alma judaica. Mas, o que é a alma? Muitas respostas
podem ser encontradas em várias fontes. No judaísmo, algumas possibilidades
deixaram o tema ainda mais complexo.
Mas, não se trata apenas do número, ou nome, da alma, do Rosto, do
Outro, da destruição de uma pessoa. E, sim, disso tudo. Trata-se de contar, de
testemunhar, de exteriorizar aquilo que não parece inteligível, para lançar ao
mundo questões em qualquer tempo que talvez se tornem compreensíveis para
alguém em qualquer lugar. É um horror que pode ser compreendido? E o que é
compreender?
Paira no ar uma sensação de que a humanidade está eternamente (de
forma mascarada ou aberta) envolta na penumbra da lógica dos campos de
concentração, onde mesmo “nas democracias modernas é possível dizer
publicamente o que os biopolíticos nazistas não ousavam dizer” (AGAMBEN,
2014, p.161). A civilização Ocidental, mas, com certeza não a humanidade
inteira. Corre-se o risco de generalizar eventos diversos na “História” . Talvez 18
se pegarmos os fatos por esse prisma, mas, ao inverter a moeda, veremos a
cara dessa estrutura recursiva e insana. As “centelhas entorpecidas” . 19
Não é difícil encontrar pessoas que afirmam não gostar de assistir
filmes que retratem os campos de concentração ou a Segunda Guerra mundial.
É possível entrar em uma sala de aula e ver meia dúzia de alunos levantarem a
mão, em resposta afirmativa à pergunta “Quem aqui já assistiu algum filme
sobre a segunda guerra que mostre os campos de concentração?”, não apenas
uma ou duas vezes deparei-me com tal situação.
O Lager é acessível para os que hoje não enxergam? Para os
sobreviventes ele foi experiência, mas o foi também no sentido benjaminiano
do termo? Como essa experiência aparece nos relatos e podem ser acessadas
18 Tenho um pequeno artigo que trata sobre a questão da alteridade e da modernidade, dentro das visões de Bruno Latour e Walter Mignolo. Ver: https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/12943 19 A discussão sobre centelhas caídas aparece no primeiro capítulo, especificamente.
20
pelo leitor. Será este capaz de compreender as palavras que lhe são ditas e as
imagens que foram confiadas à posteridade? O sofrimento de outrem é algo
compreensível? “Compreender é infindável” diz Arendt (2008, p. 331).
Como experiência e vivência estão relacionadas ao Lager e os relatos?
Em algum momento Benjamin diz que a viagem é experiência porque é algo
extraordinário – e a memória da experiência não se insere no caráter linear da 20
noção de tempo cronológico. É aqui onde se encaixa a experiência do Lager ,
como experiência e não vivência. Evidentemente não é como uma memória
agradável como uma viagem.
O “canto das profundezas da terra”, canto do pó da terra – que não é
apenas pó, mas também sangue, o líquido vermelho e viscoso, vomitado pelo
solo de Treblinka (Rajchman). Terra sob a qual corre o Lete – terra que não
aceita o mal arbitrário perpetrado na Shoah . Terra que devolve a voz liquefeita
dos mortos – mortos que não querem e não podem ser esquecidos. O Kadish é
a voz dos que emudeceram, um louvor a Deus, louvor póstumo, obrigação de
elevação das centelhas divinas.
A experimentação das palavras, das vozes do Lager só pode ser
sentida subjetivamente. Não se transmite conhecimento como não se transmite
experiência. Esta tese é uma tentativa de, como diz o poeta, dizer de outra
maneira aquilo que ecoa da literatura da Shoah . No pensamento de Walter 21
Benjamin, a experiência ( Erfahrung ) possui um tempo diferente da vivência
( Erlebnis) , é um tempo dentro de outro, mas que funciona de maneira
descolada um do outro. Para ele, a viagem é um tempo de experiência. E não
seria o tempo do Lager um tempo descolado? Um tempo entremeios da
vivência? Não fizeram os sobreviventes uma viagem da morte? “A morte é uma
viagem e a viagem é uma morte.” (BACHELARD, 1989, p. 77). Então vejo um
Cronos como o sentido da vivência e a experiência como sentido do Instante ,
um instante desperto? Possivelmente.
20 “Experiência e pobreza” (2012a). 21 Refiro-me ao poema de Paul Celan, citado no início do trabalho.
21
Faço minhas as palavras de Bachelard: “Pouco a pouco sinto-me autor
do que vejo sozinho, do que vejo do meu ponto de vista” (1989, p.52). Pois, é
certo que a viagem pelo universo dos campos de concentração só pode ser
feita sozinho. Não por ser o Lager , não apenas por se tratar de literatura, mas
porque toda a experiência ( Erfahrung ) é individual, é subjetiva.
A proposta neste estudo é mostrar que há uma forma de fazer a leitura
através das lentes da fenomenologia bachelardiana. É com essa
fenomenologia que se pretende mergulhar no tempo do Lager , é esse o
primeiro movimento. E, o movimento de ressonâncias, ou seja, o movimento de
reflexão será intercalado por conceitos benjaminianos, levinasianos e
arendtianos. O que é apresentado no corpo da tese não é senão o resultado
desses dois movimentos, feitos em períodos intercalados, seguidos de uma
reflexão sobre a estilística a ser adotada para apresentar a leitura.
Como diz Bachelard:
a imaginação tem uma necessidade incessante de dialética. Para uma imaginação bem dualizada, os conceitos não são centros de imagens que se acumulam por semelhança; os conceitos são pontos de cruzamentos de imagens, cruzamentos em ângulos retos, incisivos, decisivos. (1989, p.54)
Assumindo que a estilística é um processo criativo intrínseco ao
objetivo do estudo, os conceitos são também imagens que se intercruzam às
imagens do Lager . Tudo isso é feito por intermédio do pesquisador. Ou seja, há
aqui uma subjetividade latente. Por isso o recurso à teoria não apenas como
ponto de referência, mas como ponto de encontro dessas imagens. Ainda
Bachelard: “A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de
formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que
ultrapassam a realidade, que contam a realidade. É a faculdade de
sobre-humanidade” (1989, p.47-8). E isso não pode ser negado ou subtraído
ao texto da pesquisa, mas admitido, aceito como auxiliar do pensamento.
Afinal, porque trocamos a memória de lugar? Porque as imagens de
memória são acionadas a partir do presente. Essa claridade momentânea é
22
mobilizada por elementos do presente, da vida, o conteúdo da vida – esse é o
que resgata pulsões de memória, pois, como diz Lévinas, a “relação da vida
com as próprias condições da sua vida torna-se o alimento e conteúdo dessa
vida” (2008, 102).
As imagens que pulsam nos relatos da Shoah que são trazidos para
esse estudo repercutem no pesquisador-leitor, proporcionam ressonâncias que
estão associadas não apenas à vida do pesquisador, mas também às suas
escolhas teóricas. A estrela guia para manter o rumo, através dos altos e
baixos ditados pelo ritmo dos textos, foi a pergunta de partida, a princípio “O
que significou para o judeu a perda do nome no Lager ?”, parecia um tanto
ampla e até mesmo vaga. Como responder a essa questão a partir da leitura
dos relatos? Ou, como eles me responderiam?
Seguindo o significado do nome de uma pessoa no judaísmo, a
caminhada desembocou numa preocupação do que seria a alma dentro das
doutrinas judaicas. Então, escolher o Hassidismo como ponto de sustentação
foi importante para perceber, mais à frente, que os pontos que me
interessavam eram gerais dentro do judaísmo. É um movimento que cresceu
muito após a segunda guerra, e, além do mais, seus principais centros de
estudo foram massacrados no plano de extermínio nazista - sendo a Polônia o
lugar onde nasceu e onde foi estabelecido o campo de Auschwitz ( Oswiecim,
em Polonês).
Além da estilística, trata-se de deixar às claras as motivações advindas
da leitura dos relatos e sua ligação com os temas em discussão. Não há como
apresentar a proposta da tese sem esse desnudamento. Mover-se por esse
pântano já é por si algo extremamente complicado para o pesquisador. Os
conceitos bachelardianos entram como diretrizes para a escolha dos trechos,
pois não há como levar em consideração apenas o assunto do trecho, mas
como ele aparece no decorrer do relato.
Ainda que permaneçam como estilhaços, os relatos poderiam ser
resgatados como testemunhas da história. O ‘trapeiro’ carrega consigo
23
elementos capazes de fazê-lo. O pesquisador então, faz as vezes do trapeiro,
de catador dos estilhaços. Durante algum tempo, foi difícil atinar quais
questões estariam saltando das páginas dos relatos, solicitando respostas.
Ficou evidente que a questão da relação indivíduo-indivíduo era algo
fundamental.
É comum ouvir perguntas desta natureza, quando o assunto é o campo
de concentração nazista: “Como eles puderam fazer isso com aquelas
pessoas?”. Não dá para ignorar as inúmeras imagens dos campos que foram
gravadas. Mas, um professor de história ou sociologia já terá ouvido na escola,
em suas salas de aula, os comentários de alunos perplexos. Como explicar
algo assim? Não se pode explicar. O que não significa que não se possa tentar
compreender. E isso depende do caminho que se escolhe para isso.
A literatura é um caminho que se percorre de forma mais profunda
oscilando entre subjetivação e objetivação. É um percurso que se faz sozinho
no diálogo com as palavras e as imagens. As distrações simbólicas ao redor
diminuem. Não há como fazer uma leitura do Lager sem se submeter a esse
processo, pois se trata de uma leitura de imagens. Informação é algo que se
pode ler superficialmente, em meio às distrações simbólicas impostas pela
correria do cotidiano. Mas, realizar um mergulho nas águas escuras do Lager
exige uma postura temporal diferenciada.
A tese tem a pretensão, ainda que ousada, de levar os conceitos de
encontro às imagens . Fazendo a leitura com pontos referenciais para criar 22
uma constelação interpretativa. Mas, isso de uma forma que não ‘cristalize’ as
imagens em imagens-conceitos, como se estas fossem instrumentos que, por
si mesmas, fixassem uma interpretação que pudesse ser repetidamente
utilizada. Atualização pressupõe que a cada leitura haja uma nova
interpretação. Então, a leitura constelar da tese pretende ‘explodir’ leituras,
engendrar polifonias.
O Lager aparece como um incômodo quando pensado como ícone
para o mal que um ser humano é capaz de infligir a outro; o quanto se pode ser
22 Fazer o movimento vertical de que fala Bachelard, na citação feita anteriormente.
24
inclinado ao mal, mesmo quando se quer acreditar que é bom. Até onde uma
pessoa é capaz de ir pelo outro? Pelo familiar? Pelo ente amado? Surpreende
as possibilidades de trair, mentir e sobrepujar em benefício próprio. Quem é
você dentro do campo de concentração?
Mas, o que é o mal? Quem é o outro? Quem define que atitudes tomar
diante de determinadas situações, ainda mais quanto fantasmagóricas?
Fantasmagóricas? A sombra que segue fielmente toda pessoa não é senão as
suas possibilidades, aquilo que ela pode ser, quando pensa que não . Tudo 23
isso é apenas uma sombra da relação entre o número e o Rosto.
Não existe um fato, existem fatos: uma explosão de encontros que, por
isso, não produz um fato, mas fatos. O sobrevivente resgata um ‘clarão’, uma
fagulha de imagem – através da imaginação o transforma em linguagem,
produzindo memória e história (história com ‘h’ minúsculo). Para acessar essa
história, o leitor tem que usar da imaginação, servindo-se dos códigos da
linguagem (dando significado aos códigos da linguagem).
É, portanto, preciso construir (abrir) o caminho que vai acessando aos
poucos a literatura da Shoah . E isso, a partir de certos ‘constructos’. É um
“caminho que se faz ao caminhar”, como diz o poeta – ele é reverso feito pelo
leitor, quando que, para o sobrevivente, é sempre reverso. Memória/história,
imaginação, linguagem são três pilares para acessar a literatura da Shoah , três
caminhos que se interligam para uma compreensão.
O filme “X-Men: Apocalipse” apresentou ao público uma cena 24
interessante: Magneto, um dos vilões, destrói o que sobrou de Auschwitz. O
Lager símbolo da Segunda Guerra Mundial é transformado em inúmeros
pedacinhos. A cena é emocionante em termos de magnitude.
Magneto é eminentemente um personagem do mal – é ambíguo, mas é
um vilão. Amigo de Charles Xavier, ambos são sobreviventes de Auschwitz e lá
perderam suas famílias. Xavier escolhe o caminho do bom moço, enquanto seu
amigo escolhe o caminho da vingança, da fúria. A causa que ele defende é a
23 Ver o texto do Morin “A noção de sujeito” em A cabeça bem-feita . E, o texto de Zizek em Lacrimae Rerum , sobre Matrix. 24 Lançado em 2016 pela Marvel, sob direção de Bryan Singer.
25
dos mutantes, mas seu ‘poder’ se manifestou em Auschwitz. Lá ele descobriu o
que era capaz de fazer. É necessário passar por situações-limite para se
descobrir, para saber do que é capaz de fazer. Os dois principais mutantes são
judeus e sobreviventes do Lager . Escolhem lados opostos. No Lager
descobre-se o que é capaz de suportar e qual caminho seguir.
A cena do Magneto fala de um profundo desejo de destruir um passado
insuportável, que persiste no sobrevivente (apenas para eles, ou para toda a
humanidade?), mas a destruição externa não é capaz de dirimir o que cada um
traz dentro de si. E, o que eles trazem dentro de si mesmos? Como acessar os
signos da dor? Do horror? O arcabouço simbólico dos que não presenciaram
esse ‘estar lá’, comporta sentidos para acessar esses signos?
O Totalitarismo é ainda hoje algo surpreendente e nesse estudo ele
tem o seu lugar a partir de Arendt. A discussão sobre o indivíduo e o mal
desbanca na questão aparentemente incrível de Eichmann. Como se muitos
‘Eichmanns’ andassem por aí à solta. E andam. Em um texto que discute a
natureza do totalitarismo, Arendt demonstra que existem princípios de ação
que regem a conduta dos governantes e governados na República, Monarquia
e Tirania. Ela também enfatiza a diferença entre Tirania e Totalitarismo:
Portanto, o domínio totalitário não precisa de um princípio de ação, e sim, de um meio para preparar igualmente os indivíduos para os dois papéis, o de carrasco e o de vítima. Essa dupla preparação, que substitui o princípio de ação, é a ideologia (2008, p.368).
Então, ao invés de um princípio de ação, existe uma ideologia que
movimenta todo o processo (socialismo ou nazismo, nos casos analisados no
texto), e a finalidade é apressar o processo já definido pela Natureza e pela
História. Os homens apenas movimentam isso, fazem acontecer mais
rapidamente aquilo que acreditam que é inevitável. Por isso, quem em um
momento for carrasco, noutro, se torna vítima. No fim, todos serão vítimas de
um destino.
Uma característica do totalitarismo, a de que “podemos criar a verdade
na medida em que podemos criar a realidade” (ARENDT, 2008, p.373), essas
26
modificações da realidade podiam ser vistas também na linguagem usada para
se referir às pessoas enquanto peças, cães, ratos, piolhos, pulgas, etc. Mas,
uma distinção feita por Arendt é muito importante para pensar a ação dessas
pessoas ora carrascos, ora vítimas. As pessoas convivem com uma
ambiguidade irrevogável: são homens cidadãos e homens indivíduos.
Transitam nessas duas esferas continuamente em suas ações/relações diárias.
Assim, podemos entender suas ações enquanto cidadãos, mas, como pessoas,
suas motivações outras só podem ser percebidas se olhadas mais de perto.
Aqui, a relação com Outrem, pensada com Emmanuel Lévinas, entra
como contraponto. Não há como impor uma mudança radical naquilo que se
tornou intrínseco às sociedades dominadas pelo império do Mesmo. Não se
trata aqui de iniciar uma campanha de mudança. Não. É um convite à imersão
na reflexão. Uma provocação, talvez, caso se consiga ser realmente
provocativo.
Entender? Há que se entender o que foram esses escritos pós- Lager .
Porque uma situação extraordinária precisa ser contada com palavras que não
conseguem explicar o que aconteceu nos campos de extermínio, nos campos
de concentração, nos guetos? Existiram e existem outros guetos, mas não são
os mesmos guetos. Existiram e existem campos de concentração, mas não são
os mesmos campos de concentração. Existiram e existem outros campos de
extermínio, mas não são os mesmos campos de extermínio. Equipará-los é
cometer uma blasfêmia contra si mesmo. É transformar experiências distintas
em iguais. É banalizar o mal cometido.
Igualdade que retira a humanidade do Outro. Igualdade que é
propagada pelo regime totalitário, fundindo a todos, amarrados a um anel de
ferro (ARENDT, 2008). Aquela vil História que seria contada pelos alemães
após vencerem a guerra. História essa que só pode servir a propósitos
ideológicos, quando menos, a fins didáticos. Eis aí o seu perigo.
“A relação com o rosto não é conhecimento de objeto” (LÉVINAS,
2008), e não se trata de apreender o Outro num laço de empatia. Não existe
empatia que não sucumba à tentação de fazer do Outro o Mesmo. Mas, o que
27
esse Outro me diz sobre aquilo que não posso visualizar? O que a minha
limitação impede de enxergar? Até onde sou capaz de enxergar o Outro? A sua
dor? Até onde a dor do Outro pode apontar para uma dor que será a minha,
enquanto possibilidade?
A minha dor, que é só minha não pode ser atribuída à alma do Outro.
Nem a deste à minha alma. Enquanto sujeitos, o que se pode compartilhar não
é nada menos do que aquilo que se pode mediar. Enquanto indivíduos,
experimentamos os trilhos em comum, dispostos pela sociedade, e que,
enquanto compartilharmos as estações, seremos assim cidadãos deste ou
daquele lugar. “Reconhecer outrem é reconhecer uma fome” (LÉVINAS, 2008,
p.65) é ser capaz de perceber que à sua frente existe um mundo estranho, que
não pode compreender, mas que ensina. É esse ensinamento que nos
preparam, enquanto sujeitos, para ler os escritos das experiências da Shoah .
Trata-se aqui de repetir, enfatizar que a literatura da Shoah traz
imagens estranhas que apontam para a humanidade do Outro. Outro ao qual
preciso estar atento, por mais que esperemos que os outros ajam como
cidadãos, eles também são sujeitos. São mundos estranhos nos quais não
posso adentrar, mas que, através da linguagem, posso tocar. Assim é
compreender o Lager : não é encontrar respostas, mas, enxergar questões. A
provocação que é quase um lamento do escritor russo Vassili Grossman, tem
seu lugar garantido ainda por muitas gerações: “Será que temos força dentro
de nós para imaginar o que sentiram, o que experimentaram em seu últimos
minutos as pessoas que estavam nessas câmaras?” (GROSSMAN, 2015, p.
155).
O que leva a uma importante observação ouvida em um dos inúmeros 25
eventos científicos: as Ciências Sociais não devem abrir mão de uma escrita
poética. E é tomando posse desse brevê, que ouso usar uma escrita o mais
poética possível, pretendendo ainda manter um rigor científico necessário a um
trabalho acadêmico. Como nas palavras do poeta, numa “caça ilícita da
25 Ver Peter Trawny, sobre os Cadernos Negros de Heidegger (conferência realizada no Ciclo de eventos Heidegger, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN, em novembro de 2016).
28
convicção/de que isso deve ser/dito de outra forma/que não assim” (Paul
Celan).
Entretanto, a escrita poética da dor e do sofrimento não é algo fácil. Foi
um grande desafio buscar a bibliografia que estivesse de acordo com o tom
desse desafio. Isso porque a primeira preocupação consistia em deixar que as
imagens se fizessem presentes à medida que a leitura corria fluida. Após as
primeiras repercussões – especialmente o recorte do texto em que Primo Levi
observa:
Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos não nos escutarão, e se nos escutassem não nos perceberiam. Tirar-nos-ão também o nome: se quisermos conservá-lo, teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como éramos, ainda sobreviva. (2010, p. 25-6)
Antes de Se isto é um homem (2010), as leituras foram O Pianista
(SZPILMAN, 2008), seguida de Eu sou o último judeu (RAJCHMAN, 2010).
Essas três primeiras definiram o caminho subsequente. Szpilman
apresentou-me a questão da vida após o caos, Rajchman, a sobrevivência em
meio ao caos e Levi o que, ao fim de tudo, resta do homem que fora, que ainda
pôde sobreviver ao caos. É na verdade um caminho inverso, ou seja: o homem
após, o homem durante e, o que do antigo homem ainda sobreviverá após.
Em Szpilman o homem que conta sua trajetória no gueto de Varsóvia, é
aquele que está diante de uma situação degradante. Mas, ainda um homem,
com aquilo que ele sabe que é: um pianista. A única vez em que ele aparece
questionando aquilo que pensa de si é quando encontra o oficial alemão (na
casa onde se escondia, e que foi descoberto por esse oficial). No encontro, o
capitão Hosenfeld lhe pergunta o que ele faz – “Eu era pianista” – foi a 26
resposta. Ele “era”, quando ainda não era o que havia se tornado. Mas, ao
ensaiar de forma imaginária seu repertório nos escombros do gueto ele não era
pianista? O confronto com o Outro o fez questionar a si mesmo. Eu “era”. A
consciência do que vivia trazia à tona mais uma desagregação de si.
26 A edição do livro O pianista que indiquei nas referências, traz uns anexos que inclui o diário do capitão Wilm Hosenfeld.
29
Chil Rajchman (2010), por sua vez, traz em seu relato uma carga de
consciência dos atos impulsionada pela turbulência emocional dos eventos. Ele
percorreu sua estadia no Lager de Treblinka como na cena que narra o
carregamento dos corpos das câmaras para as valas, sob a chuva forte e a
ponta do chicote das SS – “o dia chora conosco” (p.112). Esse homem
enquanto inserido na turbulência dos acontecimentos traz em si uma
consciência de ação, ou da ação requerida pelo momento, que faltou àqueles
que chegaram às estações esperando serem deslocados para campos de
trabalho.
Sobreviver ao campo de extermínio de Treblinka possui um significado
particular. Não apenas isso, mas, ver entre as roupas que se escolhe o vestido
de um ente querido e em um ato de emoção rasgar um pedaço desse vestido e
conservá-lo consigo até o final da guerra é, em si, uma demonstração daquilo
que pode subsistir independente do caos. É certo que só indicar não é
suficiente. Essa é uma imagem de repercussão. O que são as ressonâncias?
As imagens que acompanhamos ao longo das trajetórias relatadas e que
podemos, com isso, construir um campo de compreensão e de relação.
Aqui, neste texto, ressoa mais uma vez a voz de Bachelard: “Pouco a
pouco sinto-me autor do eu vejo sozinho, do que vejo do meu ponto de vista”
(1989, p.52).
30
CAPÍTULO 01
A Literatura da Shoah: questões de história e memória
No Lager , toda a população do campo não é senão “um imenso
turbilhão que gira obsessivamente em torno de um centro sem rosto”
(AGAMBEN, 2008, p.59). O trajeto até o campo de concentração é o caminho
para a perda desse rosto, onde todos se reconhecem, como diz Agamben.
Mas, enquanto o quê se reconhecem? É preciso traçar um percurso do qual já
se obteve, na introdução, um certo vislumbre.
Em História, Memória, Literatura – o Testemunho na Era das
Catástrofes (2003), nos diversos artigos que compõem esse livro e por onde
iniciei os estudos sobre a literatura da Shoah , Seligmann-Silva (2008) afirma
que a questão do trauma é imprescindível para entender a fragmentação dos
relatos. Tomando isso como ponto de partida, não me propus, a princípio,
refletir sobre a estrutura dos relatos, dentro da perspectiva desse autor.
O que obscureceu consideravelmente o seu próprio conteúdo dentro da
proposta na pergunta de partida. Afinal, como procurar respostas na pergunta
“O que significou para o judeu a substituição do nome pelo número no Lager ”
partindo da idéia de trauma? É como se a resposta já estivesse pronta: foi uma
ruptura, tornaram-se homines saceri . E o que mais?
Ao olhar para os textos em busca de algo que me ajudasse a
compreender o que significava a substituição do nome pelo número no campo
de concentração, especialmente os judeus religiosos, encontrei uma cilada.
Primeiro, porque interrogar os judeus religiosos implicaria escolher uma
vertente do judaísmo para refletir o que chamava de ‘religiosos’. Escolhi o
Hassidismo, que entendia como judeus ortodoxos . 27
27 Vim depois a entender que Ortodoxo se refere, na verdade, aquele que se fundamenta no Tanach e no Talmud – ou seja, aquele que tem o estudo como base, e não apenas alguns costumes. Não seria, portanto, apenas o judeu seguidor do Hassidismo considerado ortodoxo.
31
Em segundo, a perda do nome pode significar muita coisa, mas,
entendi principalmente que se tratava de algo além da condição de cidadão.
Estava relacionado à sua condição de pessoa, que no judaísmo nome e alma
coincidem e a literatura mística está aí repleta de labirintos para essa questão.
Ficou de fora a possibilidade de mergulhar na literatura mística, pois, como
dizia o meu orientador, deveria evitar a criação de um golem . Não pretendo 28
buscar a verdade do que foi o sofrimento do Lager , mas buscar nas vozes uma
imagem para reflexão do que os homens são capazes de suportar e ainda se
manterem homens.
A perda do nome significa a perda da sua condição de homem, até
onde essa linha tênue pode ser vista das imagens do Lager legada à história
da humanidade pelos relatos dos sobreviventes da Shoah ? Sobreviveram a um
processo de desumanização, mas, o que eles conseguiram guardar, como
guardaram e como falaram, daquilo que eram antes da experiência no campo
de concentração? No texto sobre Marcel Proust, Benjamin observa:
Sem dúvida, a maioria das recordações que buscamos aparecem à nossa frente sob a forma de imagens visuais. Mesmo as formações espontâneas da mémoire involontaire são ainda imagens visuais, em grande parte isoladas, apesar do caráter enigmático da sua presença. Mas, justamente por isso, se quisermos captar com pleno conhecimento de causa a vibração mais íntima dessa literatura, temos que mergulhar numa camada especial dessa memória involuntária, a mais profunda, na qual os momentos de recordação anunciam-nos, não mais isoladamente, com imagens, mas desformes, não visuais, indefinidos e densos, como o peso da rede anuncia sua pesca ao pescador. (BENJAMIN, 2012a, p.50)
Deixando à parte a discussão sobre o trauma, recolhi o que me parecia
significativo dos primeiros estudos e resolvi olhar para os relatos enquanto
imagens – considerando a perspectiva Benjaminiana de História, como eu a
entendia então e buscando imagens que me proporcionassem as reflexões
necessárias para o grande desafio, com o auxilio de uma metodologia inspirada
28 Boneco de barro, que carrega na testa o nome Emet (Verdade) e um rolo com inscrições dentro da boca. O rabi que o criou o utilizava para realizar diversos serviços e, no Shaba, ele retirava o rolo para que o Golem ficasse imóvel. A história mais famosa é a do Golem de Praga, sobre isso ver: SCHOLEM, Gershom. O Golem, Benjamin, Buber e outros justos: Judaica I . Tradução de Ruth Joanna Solon. São Paulo: Perspectiva, 1994.
32
em leituras bachelardianas, que se desenrola ao longo dos três capítulos da
tese: 1 – Tempo e Memória: como entender essa memória trazida pelos
relatos?; 2 – Tempo e Morte: como pensar as imagens de memória trazidas
pelos relatos?; 3 – Tempo e o Outro: quem e como se reconhece o Outro no
Lager e, o sobrevivente, escritor do relato, é, afinal, o meu Outro?
Decidi que deveria considerar os relatos dentro de uma perspectiva de
história e definindo um método de reconhecimento das imagens, parti para o
projeto de reflexão. Imbuída de uma problemática intrincadamente filosófica,
enveredando pela obra de Hannah Arendt e Emmanuel Lévinas, em busca do
Outro, do mal, da compreensão e, finalmente, do pensar e sua relação com a
vida ativa. Pensando, por fim, que na linha tênue entre o mundo interior e o
exterior equilibram-se as faculdades que fundamentam o humano e dão o tom
à Ética que envolve os homens em suas relações consigo e com os outros.
Entendendo que é isso que sustenta o edifício do homem que resiste às
tempestades.
1.1. O movimento das imagens do Lager
Nunca me esquecerei daquela noite, a primeira noite de campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada. Nunca me esquecerei daquela fumaça.
Nunca me esquecerei dos rostos das crianças cujos corpos eu vi se transformarem em volutas sob um céu azul e mudo.
Nunca me esquecerei daquelas chamas que consumiram minha fé para sempre. Nunca me esquecerei daquele silêncio noturno que me privou por toda a eternidade do desejo de viver.
Nunca me esquecerei daqueles momentos que assassinaram meu Deus, minha alma e meus sonhos, que se tornaram deserto.
Nunca me esquecerei daquilo, mesmo que eu seja condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca. (WIESEL, 2006, p.42)
O tempo da memória é como o som do silêncio. Como uma música que
se repete ininterruptamente, fechando um círculo; as cadências definem as
33
subidas e descidas em espiral. As imagens de memória estão sempre à
espreita, como uma sombra protegida; pela escuridão. Como uma música que,
constantemente repetida, deixa de ser ouvida.
Sobre a chegada a Auschwitz, diz Primo Levi, “Tudo era silencioso
como num aquário, e como em certas cenas dos sonhos” (LEVI, 2010a, p.18).
A primeira impressão era a de um sonho, de algo irreal. Haviam passado para
o outro lado. E, deste, os primeiros sons são de ‘latidos bárbaros’, uma babel,
de onde a única coisa inteligível é a violência gratuita – ainda assim,
incompreensível.
A imagem que vem das profundezas não possui voz inteligível à
primeira escuta. Ela produz sentimento. Damos voz a ela quando precisamos
descrevê-la, transliterar o sentimento por ela produzido. Ela vai adquirindo voz
à medida que produz ressonâncias em nossa atualidade. Atualizamos as vozes
à medida que reproduzimos os ecos. De repercussão em repercussão, as
espirais constroem novos “eus” que precisam suas imagens , atualizando-se 29
continuamente.
Esse constante refazer-se tem por base a Experiência ( Erfahrung ).
Mergulhado no curso do rio da Vivência ( Erlebnis ), vai à tona para respirar vez
ou outra, ou quando esbarra em algo no fundo do rio. Não existe regra,
fórmula, palavra-chave, as circunstâncias definem o agora, o Jetztzeit . Não é 30
algo que possa ser controlado ou induzido. É um encontro de instantes,
esquecidos nas sombras da memória. Que escritos e reescritos, tomam
diferentes formatos e ganham reflexões imbuídas de outros discursos (como o
caso de Levi).
Olhar para os relatos, é como olhar para momentos, uma constelação
reluzente de instantes, deslindar um diálogo com as imagens de memória.
Diálogo este que proporcionará a outros um contato e possível diálogo. Como
assistir ao filme O pianista , me levou a reflexões mais diversas sobre mim.
29 No sentido de aperfeiçoar. 30 Jetzt : agora - Zeit : tempo. Já vi textos que o traduzem como “tempo do agora”, ou “tempo já”. Mas, prefiro pensar no significado do português para Instante .
34
Essa cadeia não necessita de uma narrativa linear, mas uma constante
atualização de imagens.
A transliteração desses textos em filmes é o exemplo de uma forma de
atualização. A leitura feita por Roman Polanski do texto de Szpilman (2008)
levou à produção do filme que, entrementes, carrega consigo a voz do próprio
Polanski, que ouço na voz da personagem Dorota: “eu não queria vir, não
queria ver isso”. Repercute no pesquisador como “não queria ver tudo isto”.
Pois, mais que o filme, a leitura proporciona um período mais alongado de
reflexão (SONTAG, 2003). “Ler é sonhar pela mão de outrem” , diz o poeta, 31
ainda que de forma depreciativa, aqui, a frase tem outro significado: ler é
sonhar através dos sonhos de outrem.
Inicialmente, repercussão/ressonância parecem referir-se ao plano da
Erfahrung e não, da Erlebnis . A imagem que nos joga nas profundezas da
repercussão marca a Erfahrung – essa espiral que outra experiência poderá
remeter a si. A Erlebnis perde-se na escuridão do esquecimento, é jogada ao
Lete distraidamente, como algo tão óbvio que sequer tangencia a alma, uma
“vivência imediata” típico de sociedades urbanas e industriais (LÖWY, 2005,
p.28).
Não se trata aqui de retomar a discussão sobre modernidade e
pós-modernidade e sua relação com a memória e o Holocausto. Mas, de 32
reportar a uma concepção de história específica, em que os relatos da Shoah
não se desloquem apenas como material ilustrativo. São imagens, mas,
também, momentos/eventos históricos que possuem um peso moral
importante. O peso dessa importância pode ser sentido na capacidade de
repercussão dessas imagens. O elemento moral da questão se reflete no que
Arendt chama de banalidade do mal.
Em seu texto “Experiência e Pobreza” (o título inicialmente seria
“Pobreza de experiência”), Benjamin refere-se à primeira guerra mundial, onde
“Não se tinha, naquela época, a experiência de que os homens voltavam
mudos dos campos de batalha?” (2012b, p.86). Não falavam não porque não
31 PESSOA, 2006, p.233. 32 Sobre isso ver “Modernidade e Holocausto” de Zygmunt Bauman (1998).
35
se tinha o que falar, mas por não possuírem “experiências partilháveis” (idem).
As experiências dos campos de concentração seriam partilháveis? Qual a
diferença entre as épocas que as tornam partilháveis em alguma medida? A
experiência da primeira guerra, a compreensão de uma mudança radical
operada no mundo pela consciência das guerras bélicas, talvez?
As duas grandes guerras modificaram a forma de ver e sentir o
sofrimento. Susan Sontag (2003) diz que os meios de comunicação levaram a
guerra para dentro das casas e isso insensibilizou o olhar para o sofrimento do
outro. A frequência das tragédias, as imagens de sofrimento ao lado de
anúncios de produtos e outras propagandas, colocou em evidência a realidade
da dor enfrentada em outras partes do globo.
Mas, isso não inviabiliza a necessidade dessa discussão, ao contrário,
intensifica. Os relatos em si, já possuem imagens potentes, capazes de
mobilizar o pensamento e a reflexão sobre o sofrimento, sobre os atos de
guerra e a capacidade humana de empreender tragédias. A Shoah , a
catástrofe não é a irrupção de algo que vem de fora da humanidade – mas, a
quebra de uma corrente simbiótica que faz o humano. 33
Jorge Semprún fala em seu A escrita ou a vida (1995), que sentia-se
imortal. Havia alcançado a imortalidade pelas experiências do Lager. Não
fisicamente, mas, em seus sentimentos mais profundos. Sua condição moral o
fazia sentir-se fora do mundo, acima do humano. Ler Semprún afirmar isso,
ergue uma cadeia de juízos: mas, ele agora teria o direito de se vingar
agredindo a quem o desagradasse? Ele poderia roubar, pois estaria no direito,
já que foi espoliado da própria vida? 34
33 Lembro-me do filme “O óleo de Lorenzo” (Kennedy Miller, 1992) e da discussão sobre a ALD ( Adrenoleucodistrofia ), em que as moléculas de gordura que danificavam o organismo eram fabricadas pela mesma enzima. A questão, em suma, era um desequilíbrio das funções que provocavam o aumento da gordura ruim. Então, civilização e barbárie estando ligadas, o que ocorreria seria nada mais que um subterrâneo emergindo, devido a elementos que o favorecem. 34 Temos o receio de fazer certas perguntas que poderiam parecer politicamente incorretas – ou, ainda, que levem à questão a outro nível. Mas, trata-se justamente disso: em quais níveis deveríamos discutir as imagens do Lager? Pois, a repercussão se dá, de fato – mas, a quê ela remete?
36
A experiência do lager o fazia sentir-se acima do mundo real. Quando
Sontag (2003) diz que o sofrimento do Outro deixou de ser o meu sofrimento,
tudo isso se desfaz quando o sentimento de injustiça recai sobre a minha
cabeça. Sofrer uma agressão por alguém que sofreu num campo de
concentração nazista provoca uma discussão que coloca a nu questões morais
superficiais. O problema da injustiça nos faz questionar o que é justiça. Como
diz o poeta: “quando está com raiva, tem o direito de estar com raiva, mas isso
não dá a você o direito de ser cruel” . 35
Ser cruel? Abolir a justiça sob o disfarce da dádiva. O “mais perigoso
dos sedutores é aquele que arrasta com palavras piedosas à violência e ao
desprezo de outro homem” (LÉVINAS, 2014, p.37) e com isso criar uma
mentalidade distorcida que pensa fazer o bem, enquanto deleita-se
secretamente na miséria alheia.
Libertadas, Herson (2006) e suas primas seguiam num trem cheio de
mulheres para a Suécia; durante todo o trajeto, quando percebiam que se
tratava de sobreviventes dos campos de concentração, as pessoas jogavam
chocolates, dinheiro, entre outras coisas, para as garotas.
Outro trem que seguia levando os prisioneiros para os campos mais
distantes do front , vagões de gado abertos, com figuras esqueléticas – ‘uma
carga que as pessoas nunca tinham visto’ – os faziam jogar pedaços de pão
para dentro dos vagões:
Um grupo de operários e de curiosos se reunira ao longo do trem. Sem dúvida nunca tinham visto um trem com um carregamento daqueles. Logo, aqui e acolá, pedaços de pão caíram nos vagões. Os espectadores contemplavam aqueles homens esqueléticos atracando-se por um bocado de pão.
Um pedaço caiu em nosso vagão. (...) Vi, não longe de mim, um velho que se arrastava, engatinhando. Estava saindo da briga. (...)
Uma sombra acabara de se projetar ao seu lado. E essa sombra se jogou em cima dele. Apanhando, tonto de pancadas, o velho gritava:
35 Atribuído a Shakespeare – mas, trata-se de um poema da americana Verônica Shoffsftall, publicado em 1971 e intitulado After a While .
37
- Meir, meu pequeno Meir! Não está me reconhecendo? Sou eu, seu pai… Você está me machucando… Está matando seu pai… Tenho pão… para você também… para você também...
O velho ainda murmurou alguma coisa, deu um suspiro e morreu, em meio à indiferença geral. O filho o revistou, pegou o pedaço e começou a devorá-lo. Dois homens o tinham visto e se atiraram em cima dele. Outros se juntaram a eles. Quando se retiraram, havia perto de mim dois mortos lado a lado, pai e filho. Eu tinha quinze anos. (WIESEL, 2006, p.p. 105-6)
Após a libertação de Buchenwald, Jorge Semprún ficou com os
exércitos aliados apenas o tempo necessário para a recuperação física ou, o
suficiente para viajar. Juntou-se ao grupo que seguiu em um caminhão para a
cidade de Paris. Lá, passou anos perambulando. Dormia na rua, em
apartamentos vazios, em casa de amigos. Como Levi, Semprún observa que
algumas pessoas sentiam-se desconfortáveis com a sua imagem – e o que ela
evocava. Não conseguia falar sobre o campo. Seu relato foi escrito quase
quarenta anos depois. Ele teve pesadelos constantes durante anos. Uma dor
que só podia ser expressa com um grito vindo do fundo da alma. Ao escrever
seu relato, diz “Tornei-me mortal outra vez” (WEINRICH, 2001, p.267).
O problema da experiência na modernidade, para Benjamin, está
relacionada à interioridade. Esse é o elo da questão: muitos vivem “Mais no
seu interior do que na sua interioridade – e é isso que as torna bárbaras”
(2012b, p.87), expresso nas pinturas de Paul Klee - que são bárbaras porque
mostram o seu interior. Essa distinção aparece mais claramente quando ele
diz:
Na verdade, de que nos serve toda a cultura se não houver uma experiência que nos ligue a ela? A detestável mistura de estilos e de visões do mundo do século passado mostrou-nos tão claramente aonde leva o uso hipócrita e simulado da experiência, que é uma questão de honra confessar hoje a nossa pobreza. (BENJAMIN, 2012b, p.86)
Michael Löwy (2005) citando Benjamin, fala sobre a importância dos
dias de festa, pois eles permitem o “reencontro com uma ‘ vida interior’” (p.29).
No lager, os judeus religiosos preocupavam-se com o cumprimento das mitsvot
38
. Na lei judaica, a Halachá , apenas algumas infrações são permitidas para 36
salvar uma vida. Entretanto, manter-se firme no cumprimento das mitsvot é
uma forma de elevar o mundo, de elevação da alma, necessário para a vinda
do Mashiach .
Dez mil homens tinham vindo assistir ao ofício solene, chefes de blocos, kapos , funcionários da morte.
- Bendigam o Eterno...
A voz do oficiante mal acabava de ser ouvida. Pensei, a princípio, que fosse o vento.
- Bendito seja o nome do Eterno!
Milhares de bocas repetiam a bênção, prosternavam-se como árvores na tempestade. (WIESEL, 2006, p.p.73-4)
Um rabino mantém-se firme em sua decisão de jejuar no Yom Kipur : o
dia do perdão é um dia de jejum. Não se pode comer ou beber. Deve-se passar
o dia em oração. A celebração é longa e leva em conta os pecados do ano
inteiro. O oficial que recebe a recusa de comida do rabino admira-se como
alguém naquela situação ainda recusa-se a comer: “O ano inteiro era Yom
Kipur . Mas outros diziam que devíamos jejuar, justamente porque era um
perigo fazê-lo. Era preciso mostrar a Deus que mesmo aqui, neste inferno
cercado, éramos capazes de cantar Seus louvores” (WIESEL, 2006, p.76).
É o momento de confrontar-se consigo mesmo para o jovem Elie
Wiesel, quando o Yom kipur , a celebração tão conhecida e repetida passa por
ele como o som do silêncio, levada pelo vento:
Eu não jejuei. Em primeiro lugar, para agradar ao meu pai, que me proibira de fazê-lo. Depois, eu não via nenhuma razão para jejuar. Não aceitava mais o silêncio de Deus. Engolindo minha tigela de sopa, via naquele gesto um ato de revolta e de protesto contra Ele.
E eu roia o meu pedaço de pão.
No fundo do meu coração, sentia que se abrira um grande vazio. (WIESEL, 2006, p.76)
36 Conjunto de 613 leis básicas do judaísmo, que se dividem entre preceitos positivos e negativos.
39
Um manuscrito encontrado em parte dos espólios de Benjaminm
apresenta um conjunto de teses que trazem algumas ideias elucidativas e o
que é mais significativo aqui é: “A imagem dialética é um relâmpago em forma
de cone que atravessa todo o horizonte do passado” (2012b, p.179). Ele
atravessa o horizonte na medida em que o tempo é momento. Um momento
que pode ser apreendido, tocado, tangenciado, visualizado. Ele diz: “Na
medida em que o passado se concentra no instante – na imagem dialética -,
ele entra na memória involuntária da humanidade” (idem, p.179). Essa
memória não é senão a cultura.
A Shoah entra na cultura judaica no momento em que lembrar é
preciso e o Yom HaShoah (GORODOVITS, 2008. p.141) é o rastro, a marca, a
cicatriz no corpo para a qual se olha e remete à lembrança. A cultura ídiche,
destroçada pela tempestade nazista, estava carregada dos traços da memória,
do judaísmo europeu. Cabe aqui um trecho de Hannah Arendt:
Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar os fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que nosso século colocou sobre nós – sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja. (ARENDT, 1989, p.12)
A Shoah é a sombra por trás da Vivência, a barbárie que corre pelo
subsolo em que a humanidade renasce, vive, morre. Em seus relatos, as
vítimas do horror nos lembram de algo para o qual fechamos os olhos:
sabemos, secretamente, que em algum momento estaremos empunhando a
arma. O que me remete a Janusz Korczak, quando diz “É preciso, amigo, ouvir
pacientemente o discurso oficial da História sobre a página que acaba de ser
aberta” (1986, p.121).
Mergulhar nas imagens da Shoah é enfrentar a barbárie dentro de cada
pessoa. Enfrentar o momento histórico é uma forma de produzir um
conhecimento mais aproximado possível de uma imagem dialética, esta que,
40
por sua vez, “deve ser definida como a memória involuntária da humanidade
redimida” (2012b, p.179). É ela mesma a imagem de um instante.
O “relâmpago em forma de cone que atravessa todo o horizonte do
passado” (BENJAMIN, 2012b, p. 179), é o momento histórico, o encontro
oportuno com o passado desmistificado da linguagem do tempo cronológico. É
o instante ainda não desvirtuado. A meu entender, o acesso a esse cone é um
movimento em vertical que só pode ser acessado em espiral, não em uma
ascensão contínua – pois esta estaria assemelhada à linha retilínea do tempo
cronológico. É uma questão pura e simples de palavras? Não, e vou tentar
mostrar o porquê.
1.2. O tempo em espiral
Através das barras, viam-se nomes conhecidos e desconhecidos de cidades austríacas, Salzburgo, Viena; a seguir, tchecas, finalmente polacas. Na noite do quarto dia, o frio tornou-se intenso: o comboio percorria intermináveis pinhais negros, subindo de forma perceptível. A neve estava alta. Devia tratar-se de uma linha secundária, as estações eram pequenas e quase desertas. Já ninguém tentava, durante as paragens, comunicar com o mundo exterior: agora sentíamos que estávamos “do outro lado”. Houve uma longa paragem em campo aberto, depois a marcha recomeçou com extrema lentidão, até que o comboio parou, em plena noite, no meio de uma planície escura e silenciosa. (LEVI, 2010a , p.17).
Escrever, contar é “criar lugares comuns” (Lévinas, 2008, p.66). A
linguagem é lugar comum. Acessar os relatos é acessar outro mundo.
Entretanto, não há neles senão uma tentativa de ordem cronológica. Como nos
poemas, os relatos são acessados como imagens. Como a memória, eles
surgem como clarões que sobem à consciência. Existem imagens reluzentes
que guiam os relatos. Cada sobrevivente enfatiza momentos específicos que
não podem ser encaixados uns nos outros como peças de quebra-cabeças,
mas postos lado a lado. Os fios que os ligam, são realmente invisíveis a olho
nu.
41
Seja pela leitura do pesquisador/leitor, seja pelos elementos da
cultura/pensamento judaico que perpassam a vida dessas pessoas, a
lembrança em bloco de um tempo congelado parece petrificar as imagens.
Como se, voltando à imagem, volta-se a algo que está sempre lá, estagnado.
Mas não é bem assim e, ao término desse estudo, a pretensão é conseguir
mostrar isso com as imagens trazidas para essa leitura.
Szpilman (2008) diz que o tempo que passou no gueto é como um
bloco de memória. Ele não consegue organizar em ordem cronológica. Durante
seu relato, aparecem várias tentativas de ‘localizar’ as memórias dentro da
linha do tempo, especialmente na época em que esteve solitário:
Chegaram o natal e o ano-novo de 1945: o sexto período das festas de fim de ano desta guerra, o pior de todos que já passara até agora e, provavelmente, o mais difícil de sobreviver. Passei-o deitado no escuro, ouvindo o uivar do vento nos restos dos telhados (...). Lembrava-me das festas anteriores, as de antes da guerra e mesmo as dos primeiros anos de ocupação alemã: eu tinha uma casa, meus pais e meus irmãos. (SZPILMAN, 2008, p.176)
A espaço/localização dos momentos são as festividades de final de
ano: natal e ano-novo; o elemento que, na visão de Benjamin, religa o homem
atual ao homem anterior. É o tempo dos calendários, e não dos relógios. O
tempo que é passível de fixar na memória, pois ele se fixa em imagens, em
instantes. É composta de ressonância e repercussões.
A lógica do texto constelar de inspiração benjaminiana não permite, por
isso, uma descrição linear: “a leitura do texto constelar se caracterizaria pela
liberdade de estabelecer ligações entre partes dispersas” (OTTE, 2000, p.39).
Essas mesmas partes dispersas são evidenciadas nos relatos. É como “nos
sonhos”:
Hoje, quando tento me lembrar de tudo que passei no gueto de Varsóvia durante quase dois anos, de novembro de 1940 a junho de 1942, as lembranças se fundem numa só imagem, como se tudo tivesse durado apenas um dia. Por mais que tente, não consigo desdobrá-las em partes e arrumá-las em ordem cronológica, como normalmente se faz quando se escreve um diário. (SZPILMAN, 2008, p.51)
42
Como nas memórias de Wiesel (2006, p.76), as festas são relatadas
como grandes momentos. A praça de chamada era o local das grandes
memórias. Na praça de chamada, o ‘anjo de olhos tristes’ é enforcado (idem,
p.72). É lá que o Lager iguala a todos enquanto ‘fantasmas de pijamas
listrados’ (LEVI, 2010a, p.19). Sombras passeiam pela praça de chamada.
Sombras declamam à luz do dia seus infortúnios e indignações em forma de
poemas. É possível imaginar e difícil não sonhar pela mão de Semprún. Diz o
poema:
Ela chegou por essa linha branca...
Ela chegou por essa linha branca que tanto podia significar a vinda da aurora quanto o lusco-fusco do crepúsculo...
Ela passou pelas praias maquinais; ela passou pelos cumes estripados.
Concluíam-se a renúncia de aparência covarde; a santidade da mentira; o álcool do verdugo... (SEMPRÚN, 1995, p.76)
Na praça de chamada, também o olhar de uma jovem da missão
francesa, o olhar de um vivo, encontra o olhar de um morto:
Observei os olhos azuis de uma delas. Olhei-a nos olhos. Martine D. fez um gesto com a mão, como para se proteger. Depois, sua mão caiu. Seu olhar sustentou o meu. Ficamos sozinhos no mundo, um instante, olhos nos olhos. Sozinhos na praça de chamada de Buchenwald, entre as faias centenárias. Havia sol, vento nas árvores e ficamos sozinhos. Durante uns longos segundos, pelo menos. (SEMPRÚN, 1995, p.121)
Essa verticalização entra num processo de constelação – ressonâncias
– que cria um contexto de compreensão desses aspectos particulares da
experiência dos sobreviventes no Lager . Cada leitor é capaz de promover
constelações, a partir das imagens que verticaliza. Nenhuma compreensão é
capaz de se referir a uma imagem que não seja a um momento histórico em
constelação.
O caminho reverso que o leitor faz em direção às imagens dos relatos
– reverso de um caminho percorrido pelo sobrevivente na representação das
suas imagens da memória. Prospecção e retrospecção (LÉVINAS, 2008,
43
p.113) - atualização constante de si, imagem do instante, perpassados pela
imaginação e linguagem.
A verticalidade está imbuída de ambiguidade no instante poético: “Ora,
o tempo é uma ordem, e nada mais que uma ordem” (BACHELARD, 2010,
p.95). Como no exemplo da lamentação risonha, ele diz que “as
simultaneidades acumuladas são simultaneidades ordenadas ” (idem, p.95).
Afinal, como é possível lamentar e rir? Em Szpilman, Levi e Semprún, algumas
imagens estão imersas num instante poético. Uma atualização revitalizada por
um “olhar de fora”, um olhar para um sonho, o olhar do sobrevivente. Essa é a
ordem do instante: “A meta é a verticalidade , a profundidade ou a altura; é o
instante estabilizado em que as simultaneidades, ordenando-se provam que o
instante poético tem uma perspectiva metafísica” (idem, p. 94).
Isto é o inferno. Hoje, nos nossos dias, o Inferno deve ser assim, um local grande e vazio, e nós, cansados de estar de pé, com uma torneira a pingar água que não se pode beber, esperamos algo sem dúvida terrível e nada acontece e continua a não acontecer nada. Como pensar? Já não se pode pensar, é como estar já morto. Alguns sentam-se no chão. O tempo passa gota após gota. (LEVI, 2010a , p.21)
Vazio de acontecimentos, de profundidade, de decisões. Vazio de
pensamentos. O inferno é a repetição surda do nada. Um nada que ainda não
é a morte, mas também não é a vida. Um nada que mantém em suspenso, que
corre pelo subsolo e não inflige mudanças à superfície. Afundar no Lager é
mergulhar numa profusão de ‘nadas’, é ser confrontado com a indecisão de ser
ou não homem, quando o veredito já foi dado. A quem se pode largar? Ao
futuro ou ao passado?
Surgiram entretanto, iluminados pelos faróis, dois grupos de estranhos indivíduos. avançavam em formação, em filas de três, com um curioso passo arrastado, a cabeça descaída para a frente e os braços rígidos. Na cabeça traziam um boné ridículo e vestiam um casaco comprido às riscas, que mesmo de noite e de longe se via estar sujo e rasgado. Desenharam um amplo círculo à nossa volta, de forma a não se aproximarem e, em silêncio, começaram a mexer nas nossas bagagens e a subir e descer dos vagões vazios.
44
Olhávamos-nos uns aos outros sem uma palavra. Tudo era incompreensível e louco, mas uma coisa tínhamos percebido: era esta a metamorfose que nos esperava. Amanhã também nós seríamos como eles. (LEVI, 2010a , p.19)
“Essencialmente, o instante poético é a relação harmônica de dois
contrários” (2010, p.94). Não seria o encontro do “eu” com o “eu” construído no
relato – diante do qual o sobrevivente se coloca como que diante do espelho, o
encontro de um “eu” com um “eu-outro”? O encontro de dois opostos? Um Eu
que não sou Eu. Um não-eu ao qual, de alguma forma, pertenço por imagens
de memória, numa relação ambígua?
Benjamin na tese V, diz: “O passado só pode ser apreendido como
imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu
reconhecimento” (2012b, p.11). Mesmo essa memória não é exatamente como
aconteceu. Ela é perpassada pelo presente e só é resgatada pelo olhar do
presente:
Quando acabamos, cada um ficou no seu cantinho, e não ousávamos levantar o olhar uns para os outros. Não há espelhos para nos vermos, mas o nosso aspecto está diante de nós, refletido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos. Estamos transformados nos fantasmas que entrevimos ontem à noite. (LEVI, 2010a, p.25)
A memória se dá apenas a partir do presente. O agora é o momento
para essa ruptura, para o reconhecimento do passado, para juntar os
fragmentos. É preciso despertar o passado: “As “Teses”, portanto, não
recorrem apenas à teologia para mostrar que o verdadeiro conceito de história
consiste no despertar do passado e de suas vítimas” (OTTE, 2010, p.50).
O passado está “no ar”, ou seja, está presente, basta sentir, escutar e ver. Nas “Teses”, há uma continuidade que não é aquela do continuum do tempo “homogêneo e vazio”. A “explosão” deste último, aparentemente um ato destrutivo, apenas acaba com um conceito “catastrófico” de história, possibilitando que as ruínas dispersas, o sopro no ar e as vozes perdidas se juntem novamente para a sua “redenção”. (OTTE, 2010, p.49-50)
Para Otte, a noção do presente em Benjamin é como se dá a imagem
da rememoração: “As partes da narrativa, que, na superfície linear aparecem
45
como fragmentos desconexos de um discurso onírico, tornam-se significativas
quando lidas “verticalmente”, ou seja, como “ruínas” manifestas de uma
experiência latente” (OTTE; VOLPE, 2000, p.45). Os pontos da constelação só
formam uma imagem à medida que são verticalizados. A narrativa linear
quebra-os e os desfaz em fragmentos desconexos, que não podem ser
reconhecidos, pela leitura/concepção linear, mas pela vertical eles recebem
novo significado. Em ambos, os significados se transformam.
Por isso a comparação ao tempo dos calendários: “É como se cada
ano fosse o anel de uma espiral, sendo que os dias de festa se repetiriam, na
superposição dos anéis, sempre no mesmo ponto” (OTTE; VOLPE, 2000,
p.44-5). O passado é uma imagem que chega até nós de uma forma “fugidia”:
“À maneira dos sinais luminosos que chegam após muito tempo de emitidos
pelas estrelas, a recuperação do passado se daria em forma de recordações
que cintilam em um momento atual de perigo” (idem, p.44). Como um
sobressalto. Um momento de choque. Ou, como um instante.
É criar mundos comuns. Como diz Lévinas: “Representar não é apenas
tornar “de novo” presente, é reconduzir ao próprio presente uma percepção
atual que se esvai” (2008, p.118) e é nesse contexto que se criam os mundos
comuns, no campo da linguagem, intermediada por imagens que repercutem e
produzem ressonâncias – caminhos reversos. Caminhos com tempo de
eternidade: “A representação é puro presente. A posição de um puro presente
sem ligação, mesmo tangencial com o tempo, é a maravilha da representação.
Vazio do tempo que se interpreta como eternidade” (idem, p. 116).
“Permanecer o mesmo é representar-se” (LÉVINAS, 2008, p. 117),
numa tentativa de manter as ligações da memória, dos instantes, pode,
também, tornar-se um ciclo, um retorno à memória. Entretanto, esse retorno é
feito em espiral. Um ciclo de ida e volta na horizontal: “A eternidade dos
castigos do inferno talvez tenha quebrado a mais terrível das pontas da ideia
antiga do eterno retorno. Coloca a eternidade dos tormentos no lugar onde
antes estava a eternidade de um movimento cíclico” (2012b, p.179).
46
É estar no inferno, revivendo o Lager : “Nunca me esquecerei daquela
noite, a primeira noite de campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete
vezes aferrolhada” (WIESEL, 2006, p.42), ouvir ‘ krematorium ausmachen’ a 37
cada noite, a cada sono turbulento, a cada palavra que remete ao Lager , que
abre um caminho perene de subida em espiral. E, como diz Bachelard em “A
poética do espaço: “E nós estamos no inferno, e uma parte de nós está sempre
no inferno, emparedados que estamos no mundo das más intenções” ( A
poética do espaço) . Para Benjamin, a quintessência do inferno é a repetição: o
immergleichen . 38
1.3. Lembrar, Esquecer.
Sua pele está mais flácida, mais enrugada e o número vai se enrugando com ela. A cor da tinta esmaeceu; de roxa, ficou azulada. O número envelheceu com ela. Mas, no número, de alguma forma, ela ainda está lá e em 1944. Ela ainda tem 19 anos; ainda é iugoslava; ainda fala outra língua e acabou de chegar ao campo. Quando a filha olha o número, vê a mãe com os olhos que ela ainda tem, de quase total inocência, mas imagina como eram aqueles olhos na chegada ao campo, na certeza da perda dos pais. Ela vê aqueles olhos procurando coisas ao redor, observando o entorno e tenta imaginar exatamente como terá sido a sua expressão. Imagina resignação e alguma curiosidade. Será que ela chorou? A filha nunca viu a mãe chorar. Viu o pai chorando tantas vezes. A outra filha também nunca a viu chorar. Tiraram as lágrimas dela ou ela já não chorava antes? Tudo é fato para quem já foi tatuado? Depois que se recebe um número, ninguém mais se assusta com os acontecimentos? Eles imediatamente se transformam em fatos da vida? “Fiquei muito durona, né? Acho que é porque para mim não fazia diferença viver ou morrer. Nós até pedimos para os alemães nos matarem. (JAFFE, 2012, p.170)
Lembrar e esquecer são as duas faces da memória, segundo Harald
Weinrich (2001). Sua obra “Lete: arte e crítica do esquecimento” é um extenso
ensaio sobre a relação do homem com a memória e o esquecimento ao longo
de séculos. Citando Simônides, Homero, Dante, Cervantes, Helvécio, Kant,
37 Semprún, 1995, p. 152. Em alemão, e significa “Apagar o crematório”. 38 Em alemão, que traduzido é “sempre o mesmo”.
47
Casanova (!), Chamisso, Nietzsche, Freud, Pirandello, Jesus (!), Celan, Primo
Levi, Jorge Semprún, Saul Bellow, Bernhard, e Borges, ele tenta mostrar que
memória e esquecimento nem sempre foram entendidos como nas concepções
atuais e nem tiveram a mesma importância ou insignificância.
A memória era associada a conhecimento num período em que
conhecimento era algo que se acumulava. Era preciso desenvolver uma boa
memória. Para Juan de Vives (1492-1540), é preciso saber de cor – Weinrich
comenta o seu “manual para estudantes”, havendo mesmo um conselho para
que se procurassem lugares tranquilos para memorizar as lições – incluindo até
mesmo cemitérios (!). Ao que Weinrich comenta: “No cemitério a memória
também se aproxima singularmente do esquecimento” (2001, p.71).
Entretanto, à medida que o conhecimento alcança limites e
complexidades nunca vistos, o problema do esquecimento aparece. Com
Montaigne, é melhor uma cabeça bem formada do que cheia. São pensadores,
que também atuam como educadores, que vão questionar o sentido dessa
memória acumuladora. Em Montaigne “Saber de cor não é saber” (WEINRICH,
2001, p.75): é preciso entender o que se está a ler. É preciso refletir sobre a
substância das coisas. Não é mais uma memória mecânica que interessa, mas
uma memória engenhosa. Essa é próxima de uma memória criativa e, portanto,
relacionada com a imaginação. Comentando Huarte, diz: “na medida que a
imaginação fornece imagens para a memória, que esta “im-prime” em si
mesma, e a memória preserva tais imagens o maior tempo possível para a
razão” (idem, p.83).
Entretanto, Huarte faz relações interessantes e um tanto arcaicas sobre
a memória. Associa a frio e calor, seco e úmido. E, ademais, para ele, a
memória é macia, enquanto a razão é dura. A partir dessas conjecturas, ele
interpreta o “tipo” de determinados gentílicos. Para ele, os alemães possuem
muita memória e pouca razão (por serem de uma região úmida e fria).
Claude Adrien Helvétius (1715-1771) diz que o espírito (gênio) faz uso
da memória e, para ele existem dois tipos de memória (relaciona-se de alguma
48
forma com ideias como a de Huarte): memória comum e uma grande memória.
Esta última é um estorvo, na medida em que, quem possui muita memória, não
consegue espaço para desenvolver o espírito. Para Helvétius: “É a atenção que
ilumina especialmente esse ou aquele território da memória, de acordo com a
situação. Com isso, por outro lado, o que não é iluminado pela memória cai na
escuridão do esquecimento” (WEINRICH, 2001, p.88). Em Bachelard, os
instantes que ‘retornam’, só o fazem por serem de alguma maneira ‘tocados’
por algum instante do presente que a eles remetem, e, só assim, reluzem.
Lembrar ou esquecer? “Muitas coisas então foram ditas e feitas entre
nós; mas é bom que delas não se guarde memória.” (LEVI, 2010a, p.14).
Alguns acontecimentos daqueles momentos foram considerados como de
necessária lembrança, outros, designados ao esquecimento. Enquanto ‘jamais
esquecer’ era prioridade para Wiesel, Semprún observa: "Só o esquecimento
poderia me salvar” (1995, p.160). Ele se detém na intenção de interromper,
quebrar o ciclo. Entretanto, é jogado diariamente na espiral através dos
pesadelos que repetem: krematorium ausmachen !
Escrever era um imperativo para muitos sobreviventes, como forma de
‘dar testemunho’, de contar, de deixar por escrito, expor a nudez da barbárie
nazista. Uma espécie de vingança com desejo de justiça, que domina os seres
humanos em face de humilhações, tanto quanto a si, como em relação aos
outros. Mas, para Semprún, esse desejo de escrita foi tolhido pela
profundidade do sofrimento que o dominava: “A felicidade da escrita, a essa
altura eu já começava a saber, jamais apagava essa desgraça da memória.
Muito pelo contrário: aguçava-a, escavava-a, reativava-a. Tornava-a
insuportável" (SEMPRÚN, 1995, p.160).
Ao contrário de Semprún que evitou o Lager por anos, Levi e Wiesel
escreveram várias obras. Para o italiano Levi, escrever era um esforço de
extirpar da memória sua característica fundamental: estar na escuridão. Era
preciso falar, escrever, para compartilhar, para vingar, para esquecer: Esquecer
não é opção e o tempo do esquecimento é o nunca. É a ordem imperiosa do
49
fim, forçado pelas sombras da noite, pela ameaça da não existência: “Nunca
me esquecerei daquelas chamas que consumiram minha fé para sempre.
Nunca me esquecerei daquele silêncio noturno que me privou por toda a
eternidade do desejo de viver” (WIESEL, 2006, p.42).
“Tudo é fato para quem já foi tatuado?” É a pergunta que fica na mente
da filha de Lili Jaffe. Nada mais pode chocar ou desestabilizar, desequilibrar,
derrubar, quem esteve no Lager . O Lager é a provação máxima da
humanidade. É o horror máximo. O além da linguagem. O Lager tem o poder
de destruir os espíritos mais vivazes ou transformá-los em espíritos
inabaláveis. Serão esses inacessíveis ou, falta um elo, uma ponte, uma brecha
para acessá-los? Auschwitz não parou de acontecer. Ele acontece todos os
dias, em todos os lugares. Os relatos levantam redemoinhos na linha histórica
definida por alhures e algures, sobre a Shoah .
A espiral está presente, em resistência às tentativas generalizantes. As
imagens de memória de Lili, fazem inúmeras voltas em torno do medo:
“Aqueles, porém, que não haviam sofrido, ainda não tinham medo” (JAFFE,
2012, p. 25). Ela repete duas vezes algumas páginas antes: eu não tinha medo
da morte. E mais à frente, que no relato implicam alguns meses: “Era tanto
medo que eu sentia” (p.28). Era um período intenso de seleções e os
crematórios estavam repletos: “Já havia crematórios por toda parte, as chamas
altas eram visíveis nas chaminés” (p. 28). Ela estava diante do crematório e
sentia medo.
Mas, e o sofrimento que produzira o medo?
E começou a me espancar. Acertou-me três vezes: uma na cabeça, outra, nas costas e, pela terceira vez, no peito. Mas isso não lhe bastou. Seguia-me constantemente, mas não as outras. Elas passeavam e ela nem ligava. Nós cinco, que já sofremos juntas, sim. Amputaram a perna de uma, operaram a segunda, a terceira; eu tinha feridas até os ossos, que tentava curar sozinha, o tempo todo. (JAFFE, 2012, p.25)
Antes, a Lili não tinha medo. Roubava comida da cozinha e distribuía
para os conhecidos. Passava o roubo através da cerca de arame eletrificado.
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Lili que assumiu o roubo de um quilo de margarina – roubo que não cometeu,
mas queria poupar as quatro amigas da punição, “quatro devem pagar, se eles
ficariam satisfeitos com uma só? Eu não tinha medo da morte” (2012, p.23). Ela
pagou e o roubo seguinte resultou na surra que impingiu o medo que ela antes
afirmava não sentir. Como um relato escrito após a libertação, não seria essa
uma tentativa de saber quando o medo entrou no seu coração? Mas, no Brasil
a filha não entende como a mãe pode dizer para tudo: “Você aguenta”.
Noemi Jaffe (2012) comentou o diário de Lili Jaffe e a relação que
tinham em casa com a mãe. O trecho acima não é do diário de Lili Jaffe, mas,
reflexões de sua filha e também constam no livro os comentários da neta. Ou
seja: é um questionamento de gerações posteriores, dos sobreviventes. O livro
expõe uma tentativa de entendê-la, porque ela agia como agia. O pai, também
sobrevivente, ela entendia, mas não a mãe. Seria devido à sua experiência no
campo de concentração? Toda a tentativa de explicação de Noemi Jaffe passa
por esse aspecto.
Lili, como muitos sobreviventes, não falava sobre o campo. Mas suas
atitudes sempre apontavam para esse horizonte de sua vida. “Você aguenta”,
era a frase de sua mãe para situações difíceis, diz Noemi. Não importasse a
gravidade da situação a resposta era sempre: “Você aguenta”. Apenas isso e
uma tapinha no ombro.
Lembrar ou esquecer? Mais uma vez ressoa a pergunta. A decisão não
é apenas da consciência: “a dor do recordar, o antigo e feroz sofrimento de me
sentir homem, que me assalta como um cão no instante em que a consciência
sai da escuridão.” (LEVI, 2010a, p.145); diante das garotas do laboratório no
Lager, as lembranças de ser humano o enchem de vergonha. Não apenas
pós- Lager , como se pode ver no comportamento de Lili Jaffe, Vladek
Spiegelman, entre outros . 39
39 Não se trata de buscar emoções reprimidas, mas imagens que emergem no processo de escrita desses relatos e, a forma como elas são expressas.
51
“Estamos em Kummelnäs faz dez dias. Sinto-me bem. Todos os
instantes passo com alegria, como se estivesse com os pais e o irmão. Não me
dói mais, diria, e é como se estivesse até esquecido. O destino é estranho:
esquecemos com rapidez. Não esquecemos somente aquilo que é bonito e
bom. Como seria bom se tudo fosse alegria; poder desfrutar da bela liberdade.
Mas não é assim: o que carrego dentro do coração nunca vai passar e nunca
mais conseguirei me alegrar” (JAFFE, 2012, p.67).
Em Auschwitz, a fé é um desafio, um dilema. É o jejum do velho rabino,
é a indignação roída de Wiesel. É a afirmação da necessidade de manter a fé
até mesmo vindo da boca do kapo (WIESEL, 2006, p.77), dor da perda da fé e
a decisão de extirpá-la diante da morte de um ente querido: “Naquele
momento, senti que comecei o enterro do meu Deus. Enterrei o meu Adonai
para o qual eu sempre rezava” (HERSON, 2006, p.113). Lembra-se que se é
homem ao lembrar-se de esquecer a fé, ou de reafirmá-la: Ainda perdido em
seus sonhos cabalísticos, Akiba Drumer encontrou um versículo da Bíblia cujo
conteúdo, decifrado, lhe permitia predizer a Libertação para as próximas
semanas (WIESEL, 2006, p.58).
No Lager o estômago é o único homem, é o tempo do relógio, é
caminho entre o tempo e a vida: “O pão, a sopa... eram toda a minha vida. Eu
era um corpo. Talvez menos ainda: eu era um estômago faminto. Só o
estômago sentia o tempo passar” (WIESEL, 2006, p.60). É homem pelo
estômago, que lembra a existência do tempo.
A vivacidade da vida deve ser interpretada a partir da consciência? Não será ela apenas, sob o título do erleben , uma consciência confusa ou obscura, somente prévia à distinção do sujeito e do objeto, uma pré-tematização, um pré-saber? Não será preciso dizer de outro modo seu psiquismo? (LÉVINAS, 2009, p.121)
Não será preciso, como no poema de Celan, “dizer de outra forma que
não assim”? O título de literatura não retira em nada e nem diminui a força da
imagem, pois, sendo uma ‘necessidade de contar’, é uma forma de dizer que,
para ler, não se pode pensar como quem lê, mas pensar como quem enxerga.
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Pensar num movimento constante de objetivação e subjetivação. O ritmo do
pensamento é oscilante.
“Para viver, é preciso sempre trair os fantasmas...” (BACHELARD,
2010, p.97), para ver, tem-se que descer nas simultaneidades do pensamento,
do instante, que é sempre vertical:
É no tempo vertical – descendo – que se escalonam as piores dores, as dores sem causalidade temporal, as dores agudas que atravessam um coração para nada, sem jamais enlanguescer. É no tempo vertical – subindo - que se estabiliza a consolação sem esperança, essa estranha consolação autóctone, sem protetor. (BACHELARD, 2010, p.p.97-8)
A Erfahrung (Experiência) é como ponte para as imagens de memória
que ficam obscurecidas pela Erlebnis (Vivência) – que são acionadas ao
sermos lançados nos instantes profundos da repercussão, provocando
ressonâncias, necessidades de “representação”, pois, para “permanecer o
mesmo é preciso representar-se” (LÉVINAS, 2008, p.117), a fim de atingir uma
“inteligibilidade do ser”. As imagens de memória funcionam como se a Vivência
fosse interrompida por “clarões” na consciência.
1.4. Tempo e memória em Emmanuel Lévinas
Quando Levi tem a consciência da sua condição de Häftling e que seu
nome é 174.517, ele pensa sobre o nome, o seu nome de batismo, pelo qual
era chamado pelos pais, parentes, amigos, ele diz: “Tirar-nos-ão também o
nome: se quisermos conservá-lo, teremos de encontrar dentro de nós a força
para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como
éramos, ainda sobreviva” (LEVI, 2010a, p. 25-6). O nome pelo qual ele se
reconhecia como pessoa. Além do simbólico, tudo o que é sentido como sendo
parte de si: “Ninguém consegue acreditar que de fato tiram literalmente tudo da
gente” (FRANKL, 2008, p.28).
Ao pensar em preservar “algo de nós, de nós tal como éramos”, Levi
olha para trás. Ele enxerga uma ruptura no tempo. Uma mudança de ventos,
53
um redefinir do fluxo de sua vida. Percebe que a mudança não é apenas no
nome. Ele não se torna apenas Häftling , ele se torna um número, torna-se um 40
vulto. Mas, ainda um vulto com lembranças. Está no mundo das sombras, mas
ainda não se tornou uma delas por completo. Entretanto, é uma mudança
reconhecível, como pode-se ver em Rajchman:
O amigo que trabalhava na triagem ao meu lado me diz em voz baixa:
- Como você mudou! Não te reconheço!
Não respondo, e ele não insiste. (2010, p.54)
Olhar para trás significa estar ainda atrelado às referências – àquelas
do qual ainda sofrem o processo de espoliação. A chegada ao Lager não é o
fim do percurso: “Somos fulminados por esta ideia: ontem os nossos viviam,
hoje estão todos mortos” (RAJCHMAN, 2010, p.47). Só a memória do
muselman parece ter sido lançada em um buraco negro de uma consciência 41
velada.
Olhar para trás é “voltar atrás na aventura da existência para ser no
infinito” (LÉVINAS, 2008, p. 279). É virar o rosto para o finito, mergulhar de
novo no fluxo do infinito. “Ser no infinito - a infinição – significa existir sem
limites e, sob o aspecto de uma origem, de um começo, ou seja, ainda como
um ente” (idem, p. 278), esse infinito refere-se à possibilidade de refazer-se, às
possibilidades.
Por isso, o ‘olhar para trás’ é olhar a partir de algum lugar – nisso
confluem as concepções sobre a memória como sendo espacial. Penso que
essa espacialidade não se encontre apenas numa forma física, mas, parte
também de um lugar na espiral da memória. É preciso pensar a partir de, e,
neste caso: “a infinição produz-se pelo ente que existe em verdade” (LÉVINAS,
2008, p.278).
40 Do alemão e significa ‘Prisioneiro’. 41 Muselman ou Muçulmano, era o nome dados pelos prisioneiros àqueles que, vergados sob o sofrimento, adotavam uma atitude de prostração: não reagiam sequer à agressão. Mais adiante essa figura é mais claramente inserida no contexto da tese.
54
A mutação para a condição de ‘sombras’ do Lager não alteraria a
percepção do tempo? Quando as imagens aparecem, elas estão relacionadas
a eventos específicos com indivíduos aos quais se reconhece ainda a
alteridade? O que agride não possui rosto, mas o que agride um companheiro?
Como acontece com Rajchman e Finkelstein:
Um dia, quando eu enxaguava dentes em companhia de outro dentista, chamado Finkelstein, Ivan aproximou-se da piscina munido de um atiçador de ferro. Deu ordens para Finkelstein deitar no chão e enfiou-lhe o espeto de ferro no ânus. O pobre rapaz nem berrou, apenas gemeu, Ivan ria. Não parava de gritar:
- Fique deitado, senão leva uma bala!
Esse tipo de ato heroico era corriqueiro por parte dos fiéis servos ucranianos. Jamais esquecerei um que tinha o apelido de Tsake-tsake. Quando chicoteava, não parava de gritar: “tsake”, “tsake”. Sua chibata era maior que a de todos os outros. (RAJCHMAN, 2010, p.124)
Reconheço a alteridade, então me reconheço como pessoa. “A
estrutura da consciência ou da temporalidade – da distância e da verdade –
está ligada a um gesto elementar do ser que rejeita a totalização” (LÉVINAS,
2008, p. 279), a rejeição da totalização tem em seu cerne a vontade de
prolongar, o desejo do infinito. A consciência do tempo enquanto finito embota
e desesperança os sentidos: “O rosto imobiliza a totalização” (idem, p.279).
Outro é aquele que me lembra da minha finitude.
Lévinas encontra eco no Instante Bachelardiano ao afirmar que “No
retorno do novo instante ao instante antigo reside, de facto, o caráter salutar da
sucessão” (2008, p. 280). O que, a princípio, parece uma contradição, ele
emenda mais adiante que o passado e todo seu peso está contido nesse
movimento: “instante presente ‘com o peso de todo passado’, ainda que esteja
prenhe de todo futuro” (idem, p.280).
Nesse encontro de passado e futuro, mediada pelo presente,
encontram-se intersecções nos pensamentos, “simultaneidades acumuladas
[que] são simultaneidades ordenadas” (BACHELARD, 2010, p p.95), em
sentido sempre vertical, para a altura ou a profundidade. Viktor Frankl, um
55
psiquiatra – já citado algumas vezes neste estudo – analisa a questão do
sofrimento em suas memórias do Lager, da seguinte maneira:
Na experiência da decepção, a pessoa sente-se à mercê do destino. Durante anos a fio a pessoa acreditou ter chegado ao ponto mais baixo possível do sofrimento, mas constata agora que, de alguma forma, o sofrimento não tem fundo, que aparentemente não existe o ponto mais baixo absoluto, e as coisas podem piorar cada vez mais, descer cada vez mais... (FRANKL, 2008, p.118)
“O tempo é o não-definitivo do definitivo, alteridade que está sempre a
recomeçar o realizado – o ‘sempre’ do recomeço” (LÉVINAS, 2008, p.281), o
tempo retoma sempre, e uma vez mais, aquilo que foi, refazendo, perdoando,
remindo a memória. “O instante na sua continuação encontra uma morte e
ressuscita” (idem, p. 282). Mas, a ‘origem’, no caso de Semprún, se via
ameaçada:
De repente, não só tornava-se evidente, claramente legível, que eu não estava em casa, como também não estava em lugar nenhum. Ou em qualquer lugar, o que dá no mesmo. Minhas raízes, doravante, estaria, sempre em lugar nenhum, em qualquer lugar: no desenraizamento, em todos os casos. (SEMPRÚN, 1995, p.150).
Para ele, o tempo efêmero, ainda que sentido como eternidade:
Dois anos de eternidade glacial, de intolerável morte separavam-se de mim mesmo. Será que eu regressaria a mim mesmo, um dia? À inocência, fosse qual fosse a preocupação de viver, de uma presença transparente para si mesmo? Seria eu para sempre aquele outro que atravessara a morte? que dela se nutrira? Que nela desmanchara, se evaporara, se perdera? (SEMPRÚN, 1995, p.108)
E se Experiência/Vivência são distintos e complementares, e, se a
Repercussão está na ordem do sentimento e não da reflexão, terá ela relação
com a fruição, a meu ver. Mas, esses conceitos de Totalidade e Infinito (2008)
encontram eco no par conceitual de Gaston Bachelard? Supondo que essa
perspectiva seja viável, necessária se faz uma busca através de alguns textos
do filósofo.
56
Entender o movimento entre repercussão/ressonância – similares ao
que Bachelard diz: “é preciso sempre refletir num ritmo oscilatório de
objetivação e de subjetivação” (2008, p.78). É o encontro – e também
desencontro – entre fruição e representação que está a primeira ruptura entre
repercussão e ressonância. “Na fruição, sou absolutamente para mim” (idem,
p.126), diz Lévinas. A fruição não está atrelada a nenhuma reflexão, ela não se
põe em direção ao infinito. Ela é finita, não existe nela duração, continuidade.
Apenas momento, pois, “Sensibilidade é fruição” (idem, p.128).
Um elemento importante é a tigela de sopa. Os Häftlinge possuíam 42
uma relação especial com a tigela de sopa. Não apenas enquanto questão da
mera sobrevivência. Mas, à medida que a fome grassava e se instalava, como
uma espécie de “fome psíquica” , a tigela de sopa e a lembrança de comida 43
ocupava os pensamentos durante boa parte do dia.
Observemos os prisioneiros de um modo geral quando estão juntos no lugar de trabalho, num momentos em que não estão sendo tão rigorosamente vigiados. A primeira coisa de que começam a falar é comida. Imediatamente alguém começará por perguntar ao colega que trabalha a seu lado na vala qual seu prato favorito. Começam a trocar receitas e compor menus para o dia em que pretendem convidar-se mutuamente para um reencontro, futuramente, depois de libertos e de volta em casa. (FRANKL, 2011, p.45)
A sopa era motivação mesmo para a ocupação com atividades
artísticas, em intervalos, seja para aqueles que a deixavam para ouvir as
cantorias, ou para receber mais uma ração:
Quem fosse privilegiado com uma voz realmente boa era alvo de inveja, e não pouca. Durante a meia hora de intervalo do meio-dia, nos primeiros tempos de nosso internamento no campo de concentração, era distribuída uma sopa no próprio local da obra (a sopa era providenciada pela firma construtora, que não tinha interesse em investir muito na mesma). Durante esse intervalo podíamos nos reunir na sala de máquinas, ainda em construção; na entrada, cada um recebia uma concha de sopa rala. Enquanto a sorvíamos sequiosamente, um companheiro subia num tonel e cantava árias italianas. Enquanto para nós isso representava um deleite musical, ele
42 Plural de Häftling. 43 Ver “Parceiros do Rio Bonito”, de Antonio Candido.
57
tinha garantida uma ração dupla de sopa, do “fundo”, ou seja, até com ervilhas. (FRANKL, 2008, p.60)
A ração era um elemento que mediava as negociações sobre favores,
objetos, privilégios. Mas, também era um fator que importava nas situações de
honra. Um prisioneiro rouba comida e,
Quando a direção do campo deu pela coisa, exigiu a entrega do delinquente, caso contrário o campo inteiro teria que ficar de jejum durante um dia. Naturalmente os dois mil e quinhentos companheiros preferiram jejuar a entregar o companheiro para ser enforcado. (FRANKL, 2011, p.106)
Fruição se dissipa com as ressonâncias. Não no sentido de que elas
possuem uma ponte exata. Ao contrário. A fruição não resiste à duração. Como
o instante, que não se repete e que não se prolonga. É apenas como uma vaga
sensação. Ela aprofunda aquilo que o caminho não designa, não pode
desenrolar:
A qualidade não resiste à identificação, porque representaria um escoamento e uma duração; o seu caráter Elemental, a sua vinda a partir do nada, constitui, pelo contrário, a sua fragilidade, o seu esboroamento de devir, esse tempo anterior à representação – que é ameaça e destruição. (LÉVINAS, 2008, p.134)
É de se pensar a impossibilidade da escrita de imagens. Escrever é um
exercício impossível quando a imagem ainda repercute:
Quando acordava às duas horas da manhã, com a voz do oficial SS no meu ouvido, com a chama alaranjada do crematório cegando-me a vista, a harmonia sutil e sofisticada do meu plano explodia em dissonâncias brutais. Só um grito vindo do fundo das entranhas, só um silêncio de morte poderia expressar o sofrimento. (SEMPRÚN, 1995, p.158)
Semprún encontra-se ainda no plano da sensibilidade, não da reflexão.
Durante anos foi incapaz de falar sobre o Lager e escrever sobre ele. Evitava
como tentativa de enterrar suas imagens de memória. Aquilo de que desejava
se livrar, apoderava-se dele em momentos de distração.
Quando Lévinas fala sobre fruição, ele aponta para o que chama de
‘elemento’. É o azul do céu. O elemento “não tem formas que o contenham” e
“A relação adequada à sua essência descobre-o precisamente como meio:
58
mergulhamos nele” (2008, p. 123). O canto dos pássaros ouvido por Semprún
após a libertação. Elemento. Fruição. O sentimento que o recobre e aprofunda
na dor. Despertar da sensação de homem liberto. Deixa-se de ser häftling e se
torna homem ao ouvir o som do canto dos pássaros:
De repente, assalta-me uma aflição. Não é agonia, menos ainda angústia. Muito pelo contrário, a alegria é que perturba: um excesso de alegria.
Paro, com fôlego curto.
O tenente americano se vira, intrigado ao me ver nesse estado.
- Os passarinhos! – digo-lhe. (SEMPRÚN, 1995, p.83)
A fruição se eleva às alturas, mas também desce às profundezas. É
assim como descreve Semprún, a sensação ao ouvir o que ele denomina “o
canto das profundezas da terra”:
- Está ouvindo?
Não era uma pergunta, a bem da verdade. Eu não podia deixar de ouvir. Ouvia aquela voz desumana, aquele soluço entrecortado, aquele estertor estranhamente ritmado, aquela rapsódia do além.
(...)
Era a morte que cantarolava, com certeza, em algum lugar no meio amontoado de cadáveres. A vida da morte, em suma, que se fazia ouvir. A agonia da morte, sua presença fulgurante e funebremente loquaz.
- Ídiche! – exclamou. – Ela fala ídiche!
Assim, a morte falava ídiche. (SEMPRÚN, 1995, p.p37-8)
A morte cantava em ídiche a prece dos mortos: o Kadish . “O elemento
em que habito está na fronteira de uma noite” (LÉVINAS, 2008, p.135), pois se
relaciona a um futuro, um devir. Um ‘ainda não é’. O ex- Häftling e ainda não
homem Semprún frui o canto dos pássaros. Esse canto o lembra a vida, um
ainda foi e uma possibilidade de vir a ser. Uma lembrança de fronteira. Entre o
ser e o devir, ele coloca-se uma impossível tarefa que é aprender a arte do
esquecimento: "Só o esquecimento poderia me salvar” (SEMPRÚN, 1995,
p.160).
59
1.5. No Lager com Gaston Bachelard
O que está na fronteira de uma noite? Onde está, portanto, a ruptura
entre fruição e representação? Lévinas aponta a questão: “Mas por que meio o
mundo da fruição resiste a uma descrição que tenderia a apresentá-lo como
correlativo da representação?” (2008, p.122). Se fruição não é correlativo de
representação, seria autônomo, independente. E, no entanto, repercussão e
ressonância possuem ligação entre si. Qual seria o sentido de pensar essa
discussão sobre fruição e representação, senão sentir a ultrapassagem da
fronteira sob a forma escrita? Não sendo possível precisá-la, talvez o seja
indicá-la.
A essa altura uma questão se evidencia: Não se pode contar sobre
algo que não se pode conceber, e não se pode discorrer sobre algo indizível. É
de convir que a transliteração dessas memórias em linguagem já contém em si
uma semente de compreensão, não somente pela decodificação do código
linguístico - mas essencialmente, pelo sentido do que é dor, sofrimento,
privação, fome, morte. Isso fortalece a ideia de que as imagens são o ponto
essencial para leitura dos relatos da Shoah . Considerá-los relatos de indizíveis,
inenarráveis, etc, só me parece uma tentativa de neutralizá-los enquanto parte
importante do humano – como reprimir a barbárie que não se deseja enxergar,
mas que passa cotidianamente diante dos olhos.
Ao transliterar suas memórias os sobreviventes deixam sementes de
instantes, catalisadores de repercussões. Observe também que a discussão
dos sobreviventes no caminhão relatada por Semprún, era essa: se
perguntavam como haveriam de contar, qual seria a melhor forma de dizer o
que havia acontecido ali. Quando falo em transliteração, refiro-me à tentativa
de colocar imagens de uma língua para outra – usar os caracteres da língua
formal para expressar memórias do Lager . É transformar significados formais, é
‘dizer de outra forma, que não assim’ . 44
44 Aqui, refiro-me mais uma vez ao poema de Celan.
60
Compartilhar um sentido, para que ele deixe de ser apenas uma
verdade individual, e possa fazer parte das verdades alheias. Só assim a
experiência do Lager deixa-se de viver entre a realidade e o sonho. É desta
forma que ela desanuvia e torna-se uma imagem que pode ser visualizada, e,
transliterada. Ela é presentificada: “A felicidade da escrita, a essa altura eu já
começava a saber, jamais apagava essa desgraça da memória. Muito pelo
contrário: aguçava-a, escavava-a, reativava-a. Tornava-a insuportável."
(SEMPRÚN, 1995, p.160)
Diz Bachelard: “As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos
da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da
nossa própria existência” (2008, p.07). Inicialmente, esse par conceitual de
Bachelard permeia toda a leitura feita. O segundo capítulo enseja com mais
profundidade essa tentativa: uma leitura. Uma proposta de resumo do que é
dito nos relatos seria algo inviável, tendo em vista que eles são entendidos
como instantes, ou, pontos resgatados de uma constelação. Não há resumo
porque não há uma história linear.
Esses pontos são entendidos aqui como imagens. Imagens que
questionam, interrogam. O leitor é interpelado pelas imagens nebulosas do
Lager . Atingem “as profundezas antes de emocionar a superfície”
(BACHELARD, 2008, p.07) e que precisam encontrar um ponto em que seja
reflexo na mente daquele que lê, para só então proporcionar um leque de
possibilidades.
É em A intuição do instante (2010) que Bachelard indica três passos
para uma ruptura com o tempo horizontal: “romper os contextos sociais da
duração”; “romper os contextos fenomênicos da duração” e, finalmente,
“romper os contextos vitais da duração” (idem, p.96). É preciso não atribuir-se
tempo a si e aos outros, às coisas e ao tempo da vida: “Somente então se
alcança a referência auto sincrônica no centro de si mesmo, sem a vida
periférica. De repente toda a horizontalidade plena se desfaz. O tempo já não
corre. Ele jorra” (idem, p.96).
61
Ao evidenciar alguns trechos, tentei fazer luzir alguns dos instantes da
memória, a fim de seguir algumas linhas de questionamento. Ou seja, a partir
das repercussões (fazer luzir), deixar que produzam as ressonâncias
(questionamentos e associações). Fazer luzir os instantes, sem desligá-los de
seus contextos.
Ao final, a mão fria da morte, não é senão a garra fria da desrazão,
barbárie de uma razão, que é fruto de uma modernidade nascida da opressão
e exploração do homem pelo homem. Contra essa mão fria, há elementos no
humano que lutam:
Na terceira noite de viagem eu acordei de repente, sentindo duas mãos em minha garganta, tentando me estrangular. Só tive tempo de gritar: “Pai!” Só essa palavra. Sentia-me sufocar. Mas meu pai tinha acordado e agarrado o meu agressor. Fraco demais para vencê-lo, chamou Meir Katz: - Venha, venha rápido! Estão estrangulando o meu filho! (WIESEL, 2006, p.106)
Contra ela, também a voz do poeta se insurge: “Uma mão fria
aperta-me a garganta e não me deixa respirar a vida” . Debaixo de um frio 45
intenso, as horas cinzentas desassossegam o tempo, que envolve o mais
desperto dos corações em ‘mãos gélidas’ : 46
A última noite em Buna. Mais uma vez, a última noite. A última noite em casa, a última noite no gueto, a última noite no vagão e, agora, a última noite em Buna. Por quanto tempo ainda nossa vida se arrastaria de uma “última noite” a outra? (WIESEL, 2006, p. 89)
E transforma uma vida em ‘uma noite mil vezes aferrolhada’.
45 PESSOA, 2006, p. 159. 46 Idem.
62
CAPÍTULO 02
A “palavra da vida”: Nome e alma no judaísmo; Memória,
Esquecimento e a Morte.
No conto Angústia , Iona está sentado sobre o trenó em uma noite fria 47
e com muita neve – encurvado e silencioso, como os flocos que percorrem o
caminho no ar até o chão. A égua, presa ao trenó, solidariza-se com seu amo e
mantém a cabeça inclinada. Ambos cobertos com uma espessa camada de
neve. A angústia de Iona origina-se na morte de seu filho e toda a história
margeia o sofrimento causado pela perda. Para Tchekov, ambos são a própria
imagem da angústia: imóveis, por um tempo longo, ao relento, sob um frio
intenso.
- Bendigam o Eterno...
A voz do oficiante mal acabava de ser ouvida. Pensei, a princípio, que fosse o vento.
- Bendito seja o nome do Eterno!
Milhares de bocas repetiam a bênção, prosternavam-se como árvores na tempestade. (WIESEL, 2006, p.p.73-4)
A humilhação conhecida pelos que se decidem pelo cumprimento de
mitsvot é prosternar-se e não apenas prostrar-se. Diante dos ‘oficiais da morte’,
milhares de árvores na tempestade, curvam-se por dor, por sofrimento, por
indignação, por dedicação. Curvam-se por fé.
A angústia é uma ‘porta de ferro’ que se fecha atrás de cada um. Mais
que um suspiro ou um lamento, “Só um grito vindo do fundo das entranhas, só
um silêncio de morte poderia expressar o sofrimento” , o silêncio do cocheiro 48
Iona, ou o grito de um animal ferido no comboio da morte:
47 TSCHECOV, Anton. O malfeitor e outros contos da velha Rússia. Tradução de Tatiana Belinky. Ediouro, 1994 (Não saberia explicar o porquê da escrita do nome do autor constar nessa edição dessa forma. Seu nome aparece com outra grafia na maioria das publicações. Entretanto, trata-se do mesmo escritor: Anton Pavlovitch Tchekhov). 48 SEMPRÚN, 1995, p.158
63
De repente, um grito soou no vagão, o grito de um animal ferido. Alguém acabava de expirar.
Outros, que também se sentiam à beira da morte, imitaram seu grito. E seus gritos pareciam vir de um além-túmulo. Lamentos, gemidos. Gritos de desespero lançados através do vento e da neve.
O contágio atingiu outros vagões. E centenas de gritos se elevavam ao mesmo tempo. Sem saber contra quem. Sem saber por quê. O estertor de todo um comboio que sentia o fim se aproximar. Iam todos acabar aqui. Todos os limites haviam sido ultrapassados. Ninguém mais tinha força. E a noite ia ser longa. (WIESEL, 2006, p.107)
Há aqueles que expressam um sofrimento que se prolonga ao infinito:
“Gememos em voz alta, mas as nossas vozes não podem ser ouvidas de
longe” (JAFFE, 2012, p.38). Os gemidos dos Häftlinge , outrora homens, agora
mortos-vivos em vagões de gado, não podem ser ouvidos, senão entre si
mesmos. Diante de tal imagem, a pergunta de Levi não soa deslocada: É isto
um homem? Era o grito de um animal ferido.
A libertação prevista por Akiba Drumer para algumas semanas veio
após meses e ele não resistiu para fazer parte. Nem para o grito da morte, ou
para uma resistência à imposição desumana sofrida, o brado da libertação:
“Agora grito a plenos pulmões, sozinho na praça de chamada, o fim do poema
de René Char. O soldado americano pega o binóculo e me olha” (SEMPRÚN,
1995, p.76).
2.1. Morte e Tempo
O contato com um morto é sempre um choque perfeitamente suficiente para lembrar a própria morte em sua negatividade sem discernimento nem exceção: a morte já é sempre a minha morte. (LÉVINAS, 2002, p.87)
Pensar o tempo da memória não está dissociado de pensar a morte.
Tempo, memória e morte são elementos indissociáveis do ser. Em Deus, a
morte e o tempo (2015), livro composto por textos de dois cursos ministrados
64
pelo filósofo. No primeiro curso ele traz um programa de discussões para
pensar o tempo a partir da morte. É aqui que será iniciado o percurso.
Em O idiota , Fiódor Dostoiévski leva o seu personagem a uma reflexão
sobre a pena de morte com a guilhotina. Para o príncipe Léon Míchkin, que
assistiu a uma execução, foi interessante observar a fisionomia do condenado.
Este estava muito pálido ao subir ao cadafalso, e ficava ainda mais, quando
chegava o momento de ser colocado na engenhoca. A perspicácia da
observação de Léon consiste no seguinte (de acordo com um exemplo dado
por ele): o condenado está preparado sabendo quantos dias ainda tem, mas
sendo isso alterado, ele perde debaixo de si o chão. Disso deriva que a
preocupação não é saber que vai morrer, mas quando isso vai acontecer.
O kapo quis vendar os olhos do condenado, mas este recusou. Após um longo momento de espera, o carrasco pôs-lhe a corda em volta do pescoço. Quando ia fazer um sinal para que seus ajudantes retirassem a cadeira sob os pés do condenado, este bradou, com uma voz forte e calma: - Viva a liberdade! Eu amaldiçoo a Alemanha! Eu amaldiçoo! Amal... (WIESEL, 2006, p. 70)
Lévinas (2015) discute a concepção de Heidegger sobre o Dasein e a
sua relação com a morte: “É pela morte que há tempo e Dasein ” (p.79). Como
na história de Léon, não é a questão de estar a ponto de se ver aniquilado que
é significante, mas o momento da morte. É o Sein zum Tode , o
ser-para-a-morte: “A morte não é o instante da morte, mas o facto de se
reportar ao possível enquanto possível” (p.78). No Lager , olhar o rosto da
morte não assusta, é algo diário, banal?
Diante dos meus olhos, um corpo balança: um homem enforcou-se durante a noite. Aponto-o para o meu vizinho, e ele estica o braço para outros dois enforcados um pouco mais adiante. Isso não tem nada de excepcional. Há inclusive menos que de costume. Ele me conta que diariamente alguns são evacuados e ninguém dá bola para aqueles detalhes. Observo os enforcados, desejo que tenham alcançado a paz. (RAJCHMAN, 2010, p.71)
“Alguém que morre: rosto que se torna máscara...” (p.40), é o que diz
Lévinas. Mas a fisionomia do condenado expressava a sua comoção à hora da
65
sua morte. “Ninguém ia olhar o que os homens faziam quando sabiam que iam
morrer...” diz Levi (2010a, p.13). O que pensam os homens quando sabem que
vão morrer? O que pensava o condenado, da história de Dostoiévski? O que
pensavam os Häftlinge ? Desejavam a morte sossegada, lutando dia a dia para
estar ali, mesmo diante da morte iminente. Cada dia vivido era uma
suplantação do maior inimigo do homem: a morte. Será ela, de fato, o maior
inimigo?
“Noite. Ninguém rezava para que a noite passasse rápido. As estrelas
eram apenas fagulhas do grande fogo que nos devorava. Se esse fogo um dia
se apagasse, não haveria mais nada no céu, só estrelas apagadas, olhos
mortos” (WIESEL, 2006, p. 28): muselman , de acordo com os sobreviventes
tinha a expressão vazia, os olhos vazios. Não reagiam nem em expressões
faciais, menos ainda o faziam com atitudes. Agamben (2008) cita o relato de
W.Sofsky (p.55), que fala do muçulmano como um homem que é uma figura
sem nome. Eram máscaras, bonecos. Mas, antes, já eram peças transportadas
em vagões de gado lacrados. Homens sem nome, rostos que não emitiam
mensagem alguma. Mesmo após a libertação, sobreviventes inquietavam-se,
no mesmo assunto que a filha de Lili Jaffe:
À noitinha, quando voltam a se reunir os companheiros em seu velho barracão, um chega para o outro e lhe pergunta às escondidas: “Diga-me uma coisa - você chegou a ficar contente hoje?”. O outro responde: “Para ser franco, não!”. E fica envergonhado, porque não sabe que com todos é assim. Literalmente, desaprendemos o sentimento de alegria. Será necessário aprender de novo a alegrar-se. (FRANKL, 2011, p. 114)
A relação com o relato é sempre uma relação com a negatividade da
morte, pois é a morte do Outro, e é “na relação com o outro que pensamos a
morte na sua negatividade” (LÉVINAS, 2015, p.37). Por essa resistência em
pensar o relato, fica em relevo a rejeição da morte como presença, como
Rosto. Entretanto, a “primeira característica do ser é estar já em questão”
(LÉVINAS, 2015, p. 53), e isso inclui a morte, pois sem ela e o tempo, não se
pode pensar o Dasein .
66
De toda essa discussão com Heidegger advém uma indicação que é
esta: “A minha morte é a minha parte na morte de outrem e, na minha morte,
eu morro esta morte que é minha falta” (LÉVINAS, 2015, p. 66). No Lager não
está em questão o Ser, mas o Rosto. Uma nova perspectiva que se fecha
diante de si, pois a morte não é mais uma possibilidade, mas, sim, uma
certeza, com a qual se precisa conviver. “Ter de ser é ter de morrer” (LÉVINAS,
2015, p.68), e ser Häftling é, também, já estar morto.
Existe aí uma inversão: morrer para ser? A morte não é mais vista e
sentida como antes, pois não se trata ‘ser talvez’, mas de já ser parte dela.
Estar morto para quem? Para o Outro, também morto, ou para o mundo do
qual não se faz mais parte? Abandonar o mundo que estavam era já
abandonar a vida:
Conseguiu me encontrar e deu uns passos na minha direção, mas logo em seguida hesitou e se deteve. Estava muito pálido e seus lábios tremiam. Tentou sorrir, de uma forma desamparada e dolorosa, levantou o braço e acenou para mim, como se eu estivesse voltando ao mundo dos vivos e ele se despedia de mim, já do outro lado. Deu meia-volta e se voltou para os vagões. (SZPILMAN, 2008, p.105-6)
Entretanto, deixar o mundo para trás e ingressar no mundo dos mortos
– isso conduz à tão conhecida citação de Dante, escritor ao qual Levi se refere
muitas vezes em seu Se isto é um homem (2010a): “Deixai toda a esperança, ó
vós que entrais”.
Para além de tudo isso está uma questão substancial: eles estavam
face a face com a morte, não apenas enquanto possibilidade, mas na própria
convicção de que já estavam mortos: “já não sou bastante vivo para ser capaz
de pôr termo à minha vida” (LEVI, 2010a, p.147) e Rajchman que, entre
chicotadas, dá-se conta da face da morte no Lager : “Estou nu e olho à minha
volta. Não tenho mais nenhuma ilusão, estamos perdidos” (RAJCHMAN, 2010,
p. 31). Longe de ser uma ruptura no ser, é na verdade, o ser em questão.
Por quê? Porque “A morte não é um momento, mas uma maneira de
ser...” (LÉVINAS, 2015, p.70). A possibilidade que seria uma ruptura, um
mergulho no nada, entendido como vazio é, na verdade, uma imersão num
67
contexto complexo distinto daquilo que se vivia anteriormente. Distinto em
proporção daquilo que se enfatiza. Ou seja: elementos do ‘mundo dos vivos’
ressalvados em suas magnitudes que transformam naqueles antes vivos a sua
condição de mortos. Mortos em condicional e não apenas em potencial.
Potencialmente todo vivo é já um morto (possibilidade). Estar morto em
condicional é já ser morto, ainda que andando sobre as próprias pernas.
Estar morto em condicional é estar adiante-de-si:
Mesmo o desespero, o sem-esperança, não é senão um modo próprio de ser em relação às suas possibilidades. Do mesmo modo que estar pronto para tudo, sem distância em relação ao seu futuro, sem ilusões, encerra ainda um adiante-de-si. (LÉVINAS, 2015, p. 58)
Quando se remete à discussão arendtiana de banalidade do mal,
alguns fios interligam ambas as questões: o pensar a própria morte, a morte do
outro. O que é desconexa é a consideração dessa possibilidade. Como
banalidade se caracteriza por uma ausência de reflexão sobre as próprias
atitudes, sobre as consequências de ações relativas ao Outro. Outro que não
se reconhece, quando se não reconhece a si mesmo enquanto responsável:
“Um grito, um apelo urgente, lacinante e infinito que solicita o nosso cuidado, a
nossa atenção, a nossa vigília, a nossa obrigação de lhe responder e de
responder por ele, pela sua inelutável e irremediável mortalidade” (LÉVINAS,
2015, p.27).
Mas, reportando a Benjamin, onde se dá essa ruptura que provoca
uma alienação do outro, e de si mesmo? E, se o chockerlebnis que deveria
manter a ilusão da vivência como algo que tem duração, mas, foi retirada pela
ruptura da normalidade que se inicia com as restrições, seguindo o caminho
dos guetos: “No final da rua escura, via-se o portão de madeira iluminado por
fortes refletores que nos separava dos homens livres, acomodados em amplos
espaços na parte restante desta mesma Varsóvia” (SZPILMAN, 2008 p.50).
E os sonhos que perseguem os sobreviventes, perseguem já os
aprisionados nos guetos:
Que sonhos horrorosos tenho neste momento! Ontem eram os alemães e eu, sem braçadeira, em Praga, na hora do toque de recolher. Acordo. Um novo sonho: um trem, estão me
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transferindo a um compartimento, de um metro por um metro, onde já estão vários judeus. Esta noite sonhei de novo com mortos: cadáveres de crianças; um numa tina, outro esfolado vivo, no necrotério, sobre um catre, ainda respirando. Um novo sonho: estou no alto de uma escada instável enquanto meu pai não pára de introduzir na minha boca grandes pedaços de pão doce com passas. O que não entrou na minha boca, ele enfiou, todo esfarelado, nos bolsos. (KORCZAK, 1986, p.82)
Essa condição de encarcerado se inicia nos gueto e não nos campos
de concentração, em que os sonhos de Korczak já prenunciam elementos que
serão vistos nos relatos de sobreviventes. Entretanto, ele sequer chegou a
estar no Lager , morrendo nas câmaras de gás de Treblinka com as crianças do
orfanato do gueto, pelo qual era responsável. O trecho acima é do seu Diário
do Gueto .
A mesma angústia se revela mais forte e ganha contornos específicos
com o tempo em Szpilman,
Creio que a situação seria mais suportável se nosso confinamento fosse mais evidente – numa cela de prisão, por exemplo. Essa forma de aprisionamento teria deixado clara e inquestionável a relação com o mundo que nos cercava. Saberíamos o que lá nos aguardaria; uma cela de prisão é um mundo em si mesmo, desprovido das ilusões de uma vida normal, com a qual somente poderíamos sonhar. (SZPILMAN, 2008, p.52-3)
A ‘sensação’ de que daria uma cela comum, com grades, é ainda
diferente daquela experimentada pelos prisioneiros do Lager . As palavras de
muitos sobreviventes ecoam em uníssono com as de Rajchman:
Onde estou? Estou no inferno, um inferno povoado de demônios. Esperamos a morte que pode chegar a qualquer instante, no melhor dos casos dentro de alguns dias. E, por alguns dias de sobrevida, temos que suar as mãos e assessorar esses bandidos em sua tarefa. Não, não temos esse direito! (RAJCHMAN, 2010, p.70)
O inferno que anteriormente era angústia, uma angústia refletida num
enclausuramento que iniciara com as restrições e começou a existir fisicamente
na figura do muro:
No entanto, as ruas do gueto não levavam a parte alguma. Terminavam sempre no muro. Frequentemente deparava com
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ele bloqueando o meu caminho. Não havia qualquer explicação lógica para que eu não pudesse continuar a minha caminhada, caso assim o desejasse. A parte restante da rua adquiria para mim uma importância vital, de algo imprescindível, de inestimável valor, onde se deveriam passar coisas pelas quais eu daria tudo o que possuo. Voltava para casa todos os dias, aniquilado – com o mesmo desespero na alma. (SZPILMAN, 2010, p.53)
O muro externo do gueto, após a guerra, torna-se um muro interno, um
aprisionamento no inferno das memórias. Um immergleichen , nos pesadelos e
gritos à noite. Dava-se tudo o que ainda possuía, para resgatar um cheiro, uma
respiração de liberdade, de humanidade. Mas, quando ela chegava, produzia
ainda angústia e desespero:
Tínhamos decidido encontrar-nos, os italianos, todos os domingos à noite num canto do Lager ; mas desistimos imediatamente, porque era demasiado triste voltarmos a encontrar-nos cada vez menos numerosos, mais deformados, mais macilentos. E era tão cansativo dar aqueles poucos passos; e, para além disso, reencontrar-nos significaria recordar e pensar, e era melhor não o fazer. (LEVI, 2010a, p.36)
No Lager é melhor não lembrar, nem pensar. A observação de Levi
contradiz a recomendação dos companheiros de barracão, mais de uma vez
citada por ele: manter a higiene para lembrar e manter a sua condição de
homem, fazer a barba, manter o rosto sem marcas, o vestido limpo, lavar-se.
Recomendações que aparecem nos relatos aqui trabalhados. Como em
Wiesel, que, antes de sair em marcha com os outros prisioneiros, o kapo de
seu bloco exigiu a limpeza:
De repente, o chefe do bloco lembrou-se que tinha esquecido de limpar o bloco. Mandou quatro prisioneiros lavarem o piso... Uma hora antes de deixar o campo! Por quê? Pra quem? - Para o exército da libertação – bradou. – Para que saibam que aqui viviam homens, e não porcos. (WIESEL, 2006, p.90)
“Antes, cada um de nós havia sido “alguém”, ou ao menos julgava
sê-lo. Agora, no entanto, é tratado literalmente como se fosse um ninguém”
(FRANKL, 2011, p. 84) e digladiavam-se constantemente com a vontade de se
sentirem vivos e o desejo de estarem mortos; com as evidências de estarem
70
mortos e as fagulhas de vida que cintilavam em momentos fortuitos. Mas que,
depois de passada a tempestade, ainda restava a questão de como ser
possível: “Mas estamos vivos, e, diante dessa terrível tragédia, somos duros
como pedra, ainda podemos comer e suportar esse sofrimento mortal. Como é
possível ser tão duro, possuir a força sobrenatural para resistir a isso?”
(RAJCHMAN, 2010, p.46).
A ilusão de continuação vivida na ‘vida normal’ e, depois, retomada sob
outros aspectos no Lager , produziu uma espécie de chockerlebnis zum Tode ?
Onde a morte era algo vivenciado e não uma possibilidade? Existiu aí, uma
modificação, uma ressignificação da morte como algo natural, que se reproduz
diariamente, como a produção de comida?
Mas, se ele lança em rosto a morte, permanentemente produzindo uma
angústia e sua relação com o nada, que é pensável na morte, esse fenômeno
produzido não seria o sentimento de estar fora do tempo? Como uma espécie
de consciência de estar morto, num vazio de vida, um ser no nada, no oceano
da angústia? Se o tempo é o outro-no-Mesmo, é como, penso, olhar as
imagens de memória e ver nelas o tempo? Ou, as imagens de memória são,
elas mesmas, o rosto do tempo?
O tempo é, ao mesmo tempo, este Outro-no-Mesmo [ Autre-dans-le-Même ] e este Outro não pode estar conjuntamente com o Mesmo, que não pode ser síncrono. O tempo será então inquietude do mesmo pelo Outro, sem que o Mesmo possa jamais compreender o Outro, englobá-lo. (LÉVINAS, 2015, p.47)
Quando o sobrevivente abre-se no relato, ele joga com o Tempo, com a
abertura da História, pois, “O tempo não é a limitação do ser, mas a sua
relação com o infinito. A morte não é aniquilação, mas questão necessária para
que esta relação com o infinito ou tempo se produza” (LÉVINAS, 2015, p.46).
Assim, quando Semprún ouve falar da morte de Levi, em 1987, encontra-se
novamente com a possibilidade: “A morte não é o instante da morte, mas o fato
de se reportar ao possível enquanto possível” (LÉVINAS, 2015, p.78).
71
2.2. Morte na tradição judaica: o Kadish.
“Vocês sabem que o contato com o morto, no judaísmo, é a fonte da
impureza”, diz Lévinas em um congresso judaico (2001, p.118). Todo judeu
sabe. No Lager , é impossível passar longe do morto como fez o sacerdote da
parábola de Jesus . As regras de purificação são rígidas e duram vários dias . 49 50
Segundo Alfred J. Kolatch (2001) existem duas orações que são
recitadas no período do luto: Tdsiduc Hadin e o Kadish. Ambas falam sobre a 51
grandeza de Deus e sua justiça: “E o Kadish também é uma exaltação a Deus
e da aceitação da Sua vontade pelo enlutado, mesmo quando ele se encontra
fortemente traumatizado e incapaz de racionalizar sua situação aflitiva” (p.54).
Os registros dessa oração, o Kadish , datam do século 12, recitada em
aramaico e não em hebraico. Há regras para a recitação, como doze meses
para os pais, ser recitado pelos filhos – quando não há filhos, uma pessoa é
responsabilizada, entre outras regras. Sobre o período de recitação, segundo
Kolatch, é uma observação do Talmud : “A memória do morto começa a se
obscurecer após doze meses” (2001,p.78).
No guia do enlutado da Chevra Kadisha , aparecem o Kadish Iatom e
Derabanan . A regra para a recitação do Kadish é um quorum de dez homens
(que tenham passado pela brit-milá , portanto, não se conta o minian com
crianças).
No Sidur , o livro de preces (SÊFER, 1997) para todos os ofícios e
festividades, está igualmente o Kadish Iatom , que diz:
Exaltado e santificado seja o Seu grande Nome (Amen), no mundo que Ele criou por Sua vontade. Queira Ele estabelecer o Seu Reino e determinar o ressurgimento da Sua redenção e apressar o advento do Seu Ungido (Amen), no decurso da vossa vida, nos vossos dias e no decurso da vida de toda Casa de Israel, prontamente e em tempo próximo; e dizei Amen. Seja o Seu grande Nome bendito eternamente e para todo o sempre;
49 Lucas 10:29 IN: STERN, David H. (2010). Bíblia judaica completa . São Paulo: Vida. 50 Consultei, para isso, também, um manual disponível na internet para download, no site da Associação religiosa judaica Chevra Kadisha, do Rio de Janeiro. Manual este editado pela Editora e Livraria Sêfer, de São Paulo. Disponível no link: www.chevrakadisha.com.br/guia-do-enlutado.pdf 51 Justiça do julgamento.
72
Seja bendito, louvado, glorificado, exaltado, engrandecido, honrado, elevado e excelentemente adorado o Nome do Sagrado, bendito seja Ele (Amen), acima de todas as bênçãos, hinos, louvores e consolações que possam ser proferidos no mundo; e dizei Amen. Que haja paz abundante emanada do céu, e vida boa para nós e para todo o povo de Israel; e dizei Amen. Aquele que firma a paz nas alturas, com Sua misericórdia, conceda a paz sobre nós e sobre todo o Seu povo Israel; e dizei Amen.
Como se pode observar, na prece não há menção sobre a morte ou o
luto. A intenção da prece não é relembrar constantemente o significado da
morte, mas exaltar aquele que é o dono da vida, o criador, HaShem. A morte
que cantava ídiche no relato de Semprún exaltava a Deus, não a si mesma
(1995, p.p. 37-8). No contato com o morto, a minha morte é algo evidente,
vejo-me no morto como em um espelho: “O contato com um morto é sempre
um choque perfeitamente suficiente para lembrar a própria morte em sua
negatividade sem discernimento nem exceção: a morte já é sempre a minha
morte” (LÉVINAS, 2002a, p.87).
“Vejo judeus correndo com macas vazias, largando-as de qualquer jeito
e se precipitando para um monte de cadáveres” (RAJCHMAN, 2010, p.64). É
preciso fazer a mesma coisa. Correr para o monte de cadáveres, retirar um
corpo, correr com ele para a vala e despejá-lo. “O judeu que alinha os mortos
como arenques grita para eu depositar a maca no chão e desvencilhar a
cabeça do cadáver” (idem, p.66)
Por todos esses meios, as almas são purificadas da escuridão primal e o mundo redimido da confusão original. Somente quando isto é feito, quando todas as viagens forem completadas, somente então, o tempo se estilhaçará e o Reino de Deus terá início. (BUBER, 2000, p.32)
A concepção de alma corrente no mundo ocidental moderno é
predominantemente cristã. A citação de Martin Buber é incompreensível para
todo cristão leigo. Não existe no Novo Testamento bíblico trecho algum que
seja direto para clarear essa observação do filósofo. E ela não está relacionada
à filosofia, mas, sim, ao judaísmo.
73
A primeira surpresa seria a ideia de reencarnação, que se pode inferir
da expressão “quando todas as viagens forem completadas”. O cristianismo é
radicalmente contra a ideia de reencarnação. Cada indivíduo é uma alma e vive
apenas uma vida neste mundo, pois, segundo diz o escritor do livro aos
Hebreus: “os humanos devem morrer uma vez, e depois disso vem o juízo” . A 52
segunda seria “escuridão primal” e confusão original. Referem-se à Criação.
Entretanto, a concepção é absolutamente diferente da cristã, apesar de
estarem fundamentadas nos mesmos referenciais bíblicos.
Essa é ideia da alma que o Zohar apresenta:
A forma do Universo estando já presente em Seu Pensamento, Deus formou também as almas que haviam de pertencer aos homens. Todas apareceram frente a Ele na forma que haveriam de tomar mais tarde no corpo humano. E Ele viu um número de almas cujo caminho seria corrompido na terra. Quando o tempo da alma chega, ela é chamada diante do Eterno, que lhe diz: ‘Vai aonde és chamada e anima o corpo do qual será parte!’ Mas a alma recua e roga: ‘Mestre do universo, tem piedade de mim! Sou tão feliz neste mundo em que me encontro. Não quero deixá-lo por esse outro, onde me exporei a todo tipo de impureza!’ Mas o Santíssimo diz à alma: ‘Desde o momento em que foste criada, não tiveste outro destino senão o de ir aonde eu agora te envio!’ E, cheia de sofrimento, a alma toma seu caminho de descida à terra para viver entre os homens. (ZOHAR, p. 107-8)
É por isso que os judeus rezam todas as manhãs: “A alma que tu me
destes é pura” , e Deus é aquele que “restitui a alma aos corpos mortos”. As 53
almas comparecem diante de Deus periodicamente, para prestar contas (veja
que há no livro de Jó uma referência aos santos que comparecem diante de
Deus - a referência é a mesma).
A discussão do primeiro capítulo já nos dá uma indicação sobre a
terceira parte da citação: “o tempo se estilhaçará e o Reino de Deus terá
início”. A Redenção acontece pela vontade de Deus, embora os homens
tenham a obrigação de elevar-se. Para esse fim, uma pessoa pode ter uma
alma associada à sua, para trabalharem juntas em benefício mútuo: isso é
chamado de metempsicose (BUBER, 2000, p.31-2). Essa era uma concepção
52 Hebreus 9:27. STERN, David H. Bíblia judaica completa . São Paulo: Vida, 2010. 53 Veja o Sidur, editado pela Sêfer, p. 17 “Bênçãos da aurora”.
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do cabalismo posterior ao medievo. Está relacionada à discussão sobre a
redenção em Benjamin (creio que tenha sido aí que ele se inspirou, veja
Scholem).
Afora os conceitos místicos, o judaísmo em geral se concentra em
questões práticas – essas, conhecidas em maior ou menor grau, por pessoas
de origem judaica. Como era o caso de Levi que, não sendo judeu religioso,
conseguiu identificar com facilidade questões referentes às práticas e
observâncias da Lei mosaica e do Talmud.
Buber fala de um evento importante para o judaísmo que chamou de
“mártires da vontade”: “Por volta de 1700, consuma-se a Marcha Ascética dos
Mil e Quinhentos que terminou em morte e miséria” (2000, p.33). O ascetismo,
como um elemento fundamental do Hassidismo, conclamava os seus
seguidores a práticas ascéticas de várias formas, entre elas, o voto de pobreza
(conhecida e praticada entre os católicos). Mas todas tinham também a
finalidade de elevação.
No Lager , o caos instalado pela maldade do sistema urgia a elevação:
À noite, deitados em nossos catres, tentávamos cantar algumas melodias hassídicas, e Akiba Drumer nos cortava o coração com sua voz grave e profunda (...) Hersch Genud, versado na Cabala, por sua vez, falava do fim do mundo e da vinda do Messias. (WIESEL, 2006, p.52)
E Akiba Drumer, lembrava-os:
Deus está nos pondo à prova. Ele quer saber se somos capazes de dominar os maus instintos, de matar Satã em nós. Não temos direito de nos desesperar. E quanto mais impiedosamente nos castiga, mais demonstra que nos ama... (WIESEL, 2006, p.52)
Para o judaísmo palavras são mais do que simples letras coordenadas:
Nós, como judeus crentes, acreditamos que a expressão da alma deve consistir numa harmoniosa ligação entre o sentimento e o intelecto, pois ambas, a alma e a palavra, derivam de D’us, ambas são sagradas, e ambas podem ser profanadas. (DIESENDRUCK, 2011, p.390).
75
Porque Deus criou o mundo com a palavra - essa é uma discussão
muito complexa e que envolve o conhecimento sobre as Sefirot - o que inclui o
homem, e este “é a síntese de todos os nomes santos” (ZOHAR, p.118).
É sabido que entre judeus a discussão não tem fim (OZ, 2015), pois
estão sempre reinterpretando e, os talmudes de Jerusalém e da Babilônia são
matéria para muitos anos de estudos. No judaísmo de Hassidut , e mesmo entre
os reformados, elementos da Torá possuem estatutos que se dirão
incontestáveis. Entretanto, atenho-me especialmente aos livros citados,
utilizados sob várias discussões pelas diversas correntes . Sobre essas, o 54
trabalho de Bernardo Sorj (2010) apresenta sínteses e uma discussão referente
ao judaísmo hoje, em Israel e os conflitos quanto às questões do Estado de
Israel e a Palestina, sobre os quais não pretendo incluir aqui.
Existe algo de místico no Hassidismo que não se pode observar entre
outras, mais seculares, mais filosóficas. Porém, a relação entre razão e fé,
produz um debate mais profícuo no sentido místico do que se entende como
sendo a vida de um piedoso e sua relação com Deus. O cotidiano é o cenário
reinante desses acontecimentos extraordinários, usados como inspiração para
os fiéis. Como é a vida do Baal Shem Tov (1698-1760), do rabi Shneur Zalman
de Liadi (1745-1812), e o último representante maior do Hassidismo de
Chabad-Lubavitch , o Rebe Menahem Mendel Schneerson (1902-1994). A 55
principal fonte sobre o judaísmo e particularmente, o Hassidismo , utilizados
nesse estudo é a obra de Gershom Scholem (1897-1982). Filósofo e historiador
tinha uma profunda amizade com Walter Benjamin. Foi um grande conhecedor
e historiador do judaísmo em geral.
Para Scholem (2008), existe uma grande diferença entre o judaísmo
rabínico, ortodoxo, do judaísmo místico e cabalista. Neste último é que se
encontra o nascedouro do movimento Hassídico, ainda assim, o caminho
percorrido por esse movimento é cheio de nuances. Tem origem nos limites da
54 Como disse, inicialmente parecia mais plausível a utilização das concepções judaicas a partir de correntes. Entretanto, decidi me ater aos livros base mais conhecidos, para não afundar em discussões religiosas específicas. Corro o risco de não agradar a nenhuma delas – o que não seria aqui a intenção, no final das contas. 55 O nome desse movimento judaico refere-se ao local de nascimento dos mesmos.
76
Polônia, e seu fundador foi o Israel Baal Shem Tov (1700-1760). Existem
muitas histórias em torno de sua figura, enquanto rabi, algumas mesmo com
um teor fantástico.
Aparentemente, a raiz desse movimento está no próprio
desenvolvimento e compreensão do que é a Cabala. Esta é alvo do interesse
de muitos especuladores ao longo de séculos e esses interesses se
intensificam no século XIX. Gershom Scholem (2008) mostra que ela foi usada
com a intenção de converter judeus ao Cristianismo.
A partir do século XIX é que houve uma preocupação dentro das
comunidades judaicas em fazer uma história da Cabala e sua relação com o
judaísmo – mas, segundo Scholem (1999), numa tentativa de expurgar o
misticismo medieval. Entretanto, “Grandes parcelas da judiaria russa e
polonesa fora arrastada para a órbita do movimento, particularmente até
meados do século XIX” (SCHOLEM, 2008, p. 361).
Segundo Scholem (2008), antes do movimento liderado pelo Baal
Schem Tov, havia um grupo denominado ‘os Hassidim’ , seguidores do Rabi
Iehudá Hassid que eram seguidores do Sabatianismo. O próprio Besht em 56
certo momento guardava consigo material de um representante importante do
Sabatianismo. E que, segundo o autor, seria uma prova contundente do
cruzamento de ideias desses três movimentos místicos: Sabatianismo
(Shabatai Tzvi, que proclamou-se o Messias), Lurianismo (Isaac de Luria, ) e
Hassidismo (Baal Schem Tov). Eles diferem e ao mesmo tempo se atravessam
(interceptam), devido à atuação dos seus seguidores.
No Hassidismo clássico, a ideia de messianismo é minimizada, e,
quanto à Redenção, só o próprio Deus poderia forjá-la. Esta é em alguns
momentos referida nos relatos – como foi objeto de preocupação de Akiba
Drumer (WIESEL, 2006, p.52). Esse conceito de Redenção possui variações
nos movimentos supracitados, evidentemente com detalhes que eu não seria
56 Acróstico do nome do Baal Schem, correntemente usado para se referir ao rabi. Será utilizado no trabalho por uma questão não apenas de fidelidade aos textos Hassídicos, mas, estilística textual.
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capaz de trabalhar, mas que pretendo colocar algumas indicações - já
salientando a importância da obra de Gershom Scholem, nesse contexto e,
principalmente, por sua ligação com Benjamim.
No contexto Cabala Luriânica, que coincide com a expulsão dos judeus
da Espanha, a ideia de Redenção sofre uma mudança crucial: “A consciência
de que a redenção significava tanto libertação quanto catástrofe impregnou o
novo movimento religioso a tal ponto que ela só pode ser considerada o lado
anverso da disposição apocalíptica predominante na vida judaica” (SCHOLEM,
p. 275), era preciso mais que a disposição de um indivíduo: “Na união - diz um
cabalista do século XIV - está a redenção” (idem, p.274).
É preciso ressaltar que todas essas concepções de Redenção e
messianismo são interpretações de profecias bíblicas - tal como as alegações
de Akiba Drumer, bem indicadas por Wiesel. O que também é compreensível
sua preocupação por se tratar, ele mesmo, de um estudante do Talmud e
Cabala. Por isso os detalhes por ele observados e relacionados ao judaísmo
possuem mais inclinações místicas do que aparecem nos outros, aqui
colocados.
Os efeitos e consequências concretas do desastre de 1492 não se limitaram de modo algum aos judeus que viviam naquela época. Na verdade, o processo histórico desencadeado pela expulsão da espanha requereu várias gerações - quase um século inteiro - para desdobrar completamente seus efeitos. Só gradativamente conseguiram suas tremendas implicações impregnar regiões cada vez mais profundas da existência. Este processo ajudou a fundir os elementos apocalípticos e messiânicos do judaísmo com os aspectos tradicionais do cabalismo. (SCHOLEM, 2008, p.275)
Elementos que aparecem mais adiante no misticismo judaico,
especificamente na Cabala Luriânica. O messianismo que não era elemento de
grande relevância no Zohar, toma agora proporções cada vez maiores,
seguindo a intensidade e frequência das perseguições. Abriu-se a era
Messiânica (idem, p.276) e a repercussão do exílio se fez sentir nas
interpretações bíblicas, nas concepções sobre o caminho da alma, inferno,
reencarnação. “Morte, arrependimento e renascimento eram os três grandes
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acontecimentos na vida humana pelos quais a nova Cabala procurava conduzir
o homem à união bem-aventurada com Deus” (idem, p.279), desenvolveu-se e
popularizou-se a doutrina da metempsicose e do exílio da alma. Na cabala
Luriânica, para entender o que é o mal, é preciso pensar sobre a “ruptura dos
vasos”, que também está relacionada à compreensão das Sefirot (SCHOLEM,
2008, p. 297):
Para Luria, as raízes mais profundas das Klipot , ou “cascas”, isto é, as forças do mal, já existiam antes da Ruptura dos Vasos e foram misturadas, por assim dizer, com as luzes das Sefirot e do supramencionado Reshimu , ou resíduo do En-Sof no espaço primordial. (SCHOLEM, 2008, p.298) 57
Na Criação, o En-Sof se expande e contrai, e, nesse processo
chamado de Tzimtzum , é que se dá essa ruptura. O mundo do Tikun é “o 58
mundo da ação messiânica” (idem, p.306), o “caminho para o fim de todas as
coisas”, que “é também o caminho para o começo” (SCHOLEM, 2008, p.306).
Papel do homem, especificamente do judeu, nesse processo é:
Cada acontecimento e cada domínio da existência tem uma face interna e externa, razão pela qual. ensina Luria, os mundos em seu exterior são determinados por atos de religião, pelo cumprimento dos preceitos da Torá e por ações meritórias. Mas, segundo ele, tudo o que é interno nesses mundos depende de ações espirituais, das quais a mais importante é a prece. (SCHOLEM, 2008, p.306)
Os rituais referentes ao nome no judaísmo são importantes para ajudar
a entrelaçar alguns fios que tecem essa riqueza que é o invólucro e conteúdo
da mística entre a alma e o nome, ou, a pessoa no judaísmo. O rabino Wilhelm
(2009) publicou um manual para oficiantes da Brit-milá , a cerimônia de 59
circuncisão dos meninos judeus, entre outras informações referentes ao nome.
Basilar na vida de qualquer integrante de uma comunidade judaica. Após a
circuncisão, no primeiro serviço de Shabat na sinagoga, o pai é chamado à
57 Reshimu : resíduo da Luz Divina. En-Sof : o princípio fundamental, termo que designa o próprio Deus. 58 Essa palavra significa “contração, concentração”. 59 Literalmente significa “aliança da circuncisão”. Cerimônia de circuncisão, realizada ao sétimo dia de nascimento do bebê do sexo masculino. No Judaísmo as meninas não são circuncidadas.
79
frente, no serviço religioso, para ler um trecho da Torá. É lá que o nome do
garoto é oficialmente pronunciado à comunidade e tem seu nome inscrito nos
livros celestiais, reconhecido diante das hostes celestiais como um membro do
povo de Israel.
O rabino Zushe Wilhelm (2009) detalha didaticamente os vários rituais
referentes ao nome. Como, por exemplo, a mudança do nome de uma pessoa
que deve ser feita por autoridades religiosas, especialmente em caso de
doença. Segundo o autor, ao mudar o nome do indivíduo os registros de sua
vida são alterados e, assim, caso houvesse um decreto de morte (ou algo
semelhante), este seria mudado. Faz-se isso acrescentando ao nome original
algum outro nome de “bom agouro”. Há orientações mesmo sobre bebês
natimortos e, nesses casos, autoridades religiosas são chamadas e, às mães é
prometido que a criança será um nome em Israel. Assim, antes mesmo de
nascer, a criança recebe um nome.
O homem é criado a partir do pó da terra, pela palavra de Deus e é
esse mesmo homem um canal para a Redenção a partir da sua
responsabilidade como indivíduo (ações no mundo):
Foi por meio da Cabala luriana, elaborada em Safed na metade do século XVI, que o misticismo judaico se tornou uma teologia pública, largamente aceita. A Cabala de Luria propunha um mito cósmico de exílio e redenção que espelhava a experiência histórica real dos judeus. Luria descreveu o exílio e a redenção dos judeus como um símbolo de um movimento no interior de Deus mesmo: Deus criara o mundo a fim de purificar-se das sementes do mal. Nessa catarse - tzimtzum (autocontração) e shevirat ha-kelim (quebra dos vasos) -, uma parte de Deus se exilou dele mesmo. O processo de redenção, que na realidade começou no momento da catarse, consiste em restaurar as exiladas e dispersas centelhas da divindade à sua harmonia primordial. O processo de criação tornou-se, assim, sinônimo do exílio cósmico, e a redenção se identificou com a renovação, tikun , da ordem cósmica. (BIALE, 2004, p.91)
“Deus está nos pondo à prova”, dizia Akiba Drumer. Em Auschwitz, em
Birkenau, em Treblinka, a imagem é a mesma de que fala Wiesel: todos
choravam. O Kadish surge entre a multidão. Quem entoaria a oração dos
mortos para si mesmo? “ - Yitgadal veyitkadach chmé raba... Que Seu nome
80
seja engrandecido e santificado... – murmurava meu pai” (WIESEL, 2006,
p.41).
Mas, diante do Lager , a garota Bella Herson, não reza:
Parei de rezar e senti que não existe um Deus. Se existia um Auschwitz e tanta maldade, como podia existir um Deus?! Como podia permitir que um inocente menino de 18 anos, que só queria um “Dicionário de Palavras Estrangeiras”, ser maltratado desse jeito?! Onde estava a justiça Divina?! “ Eifo Haita Adonay Eloheinu, Adonay Echad” ?! Onde estava o “ Din e Dayan ” - o julgamento e o juiz? Que justiça era essa? “ Bli din vebli dayan ” - sem justiça e sem juiz, condenar um menino, só porque nasceu judeu?! (HERSON, 2009, p.138)
O cabalista Akiba Drumer, que estava sempre a exortar a todos, em
uma das incontáveis seleções também fora selecionado. Fraquejou na fé e
perdeu-se. Pediu que rezassem o Kadish por ele. Ninguém lembrou-se de
fazê-lo . Um rabino polonês que rezava constantemente e debatia consigo
mesmo sobre questões do Talmude, disse uma vez:
- Acabou. Deus não está mais conosco. - Eu sei. Não temos o direito de dizer coisas assim. Sei muito bem. O homem é muito pequeno, muito miseravelmente ínfimo para procurar compreender os caminhos misteriosos de Deus. Mas o que posso fazer? Não sou um Sábio, um Justo, não sou um Santo. Sou uma simples criatura de carne e osso. Sofro o inferno em minha alma e em minha carne. Tenho também dois olhos e vejo o que fazem aqui. Onde está a misericórdia divina? Onde está Deus? Como eu posso acreditar? Como se posso acreditar nesse Deus de misericórdia? (WIESEL, 2006, p.83)
A conversa com de Rajchman com Leybl (2010, p. 46) , os ajuda a
compreender a extensão do extermínio: muitos mortos, os 12 mil da cidade de
Leybl. Família, amigos, mortos. Estão todos “fulminados por esta ideia”
(RAJCHMAN, 2010, p.47). Ideia que para Szpilman só chegou depois do sonho
com seu irmão a dizer “Já não estamos mais vivos” (2008, p.115).
É então que, do fundo do galpão, ergue-se um murmúrio: os infelizes sobreviventes desse primeiro dia reuniram-se para a prece do fim do dia. No fim do ofício, recitam, em lágrimas, o kaddish, a oração dos mortos. Ele me desperta. Abro os olhos: sim, todos que estão ali são órfãos, criaturas malditas. (RAJCHMAN, 2010, p.47).
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“A quem se dirige sua prece?” (idem, p.47), grita Rajchman aos que
rezam. Leybl responde a esse questionamento pedindo silêncio. O grito é ainda
mais desesperado. “Esses assassinos nos confiscaram até a razão. Jazemos
em nossos sofrimentos” (idem, p.48). O fogo que devorava os corpos também
devorava as consciências. Yankel foi levado à fogueira. Pela manhã não estava
mais vivo e, muitos desejaram sua sorte. A sorte de uma morte natural, pela
qual lutavam. A luta de cada dia no Lager não era pela vida, mas por uma
morte humana.
2.3. Memória e Esquecimento
“Contemplar a água é escoar-se, é dissolver-se, é morrer”
(BACHELARD, 1989, p.49). É esperar indefinidamente:
Isto é o inferno. Hoje, nos nossos dias, o Inferno deve ser assim, um local grande e vazio, e nós, cansados de estar de pé, com uma torneira a pingar água que não se pode beber, esperamos algo sem dúvida terrível e nada acontece e continua a não acontecer nada. Como pensar? Já não se pode pensar, é como estar já morto. Alguns sentam-se no chão. O tempo passa gota após gota. (LEVI, 2010a, p.21)
Um grande vazio onde o tempo passa ‘gota após gota’. É uma nova
percepção do tempo, e, também, de espaço. Um ‘grande vazio’ é um lugar que
não pode ser capturado pelas pré-concepções de uma vivência ( Erlebnis ). Não
há conceituação para interpretar o contexto que se presencia. Não é, então, a
vida ordinária ao qual se está acostumado. O que seria? “Assim a água, por
seus reflexos duplica o mundo, duplica as coisas. Duplica também o sonhador,
não simplesmente como uma não imagem, mas envolvendo-o numa nova
experiência onírica” (BACHELARD, 1989, p.51). No inferno é proibido beber
água e a placa de aviso não deixa dúvidas: wassertrinken verboten (LEVI,
2010a, p.21).
De repente, andamos devagar, num silêncio glacial. Era noite, terminadas as grandes iluminações wagnerianas. Não percebíamos muito bem onde estávamos, depois de cruzarmos o portão monumental. Os SS e os cachorros tinham ficado do lado de lá. Conduziram-nos até uma construção de dois andares. Depois, no térreo desse edifício, fomos amontoados
82
numa imensa sala com chuveiros, exaustos com os dias e as noites da viagem pelo desconhecido. As horas passaram. a água que corria das torneiras da grande sala era infecta, morna e fétida. Não podíamos matar nossa sede. (SEMPRÚN, 1994, p.87)
A água que desemboca no Lete corre pelo subsolo do Lager , como o
Lete, “Todos os rios desembocam no Rio dos mortos” (BACHELARD, 1989, p.
77). Entretanto, como na história do poeta da Divina Comédia , citada por Levi
(2010a), ela é proibida aos mortos que se arrastam pelos infernos, pois eles
ainda precisam lembrar. Nos versos do poeta, dos seus pecados, no relato de
Levi, de quem eram.
Por que seria proibido se, “Para certas almas, a água é a matéria do
desespero” (BACHELARD, 1989, p.95)? O desespero de estar no inferno onde
não se pode beber água e, onde ela é instrumento de tortura:
Mas a minha ideia agora é que tudo isto é uma grande máquina para se rirem de nós e nos vilipendiarem, depois está claro que nos irão matar, quem pensa sobreviver está louco, quer dizer que caiu no jogo deles; eu não, eu percebi que cedo tudo estará acabado, talvez neste mesmo local, quando se aborrecerem de nos ver nus, passar de um pé para o outro, e experimentarem de vez em quando sentar-nos no chão, mas o chão está coberto por três dedos de água fria e não podemos sentar-nos. Andamos para frente e para trás sem sentido, e falamos, cada um fala com todos os outros, o que provoca um grande barulho. (LEVI, 2010a, p.23)
Moviam-se numa poça de água. “Uma poça contém um universo. Um
instante de sonho contém uma alma inteira” (BACHELARD, 1989, p.53), ainda
continham em si os sonhos que os animavam enquanto homens. O que ainda
lhes restava da vida que possuíam e que os possuía.
Mesmo as câmaras de gás enganam os prisioneiros: água ou gás? Sua
água não é senão um batismo de chegada ao inferno. Não é uma água para
esquecer, mas uma água para lembrar. Uma água que desmancha o homem
que cada um traz consigo do mundo dos vivos:
Chovia forte. Eu tinha uma blusa fina de véu com saia preta. Devíamos ficar em pé. Não podíamos sequer erguer as mãos. Quando terminou a revista, queria me enxugar um pouco com as mãos e, assustada, vi que não havia mais blusa em mim: desfez-se com a chuva. Como não podia ficar em pé ali, nua,
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apanhei o minúsculo cobertor que já tínhamos e fiquei parada assim.
Lamentei muito me separar de minhas primas. Chorei. E pensei: o que poderia fazer? Decidimos não comer nada naquele dia. Trocamos a comida e, com isso, arrumamos um vestido para mim. (JAFFE, 2012, p.p. 18-20)
A chuva que desfaz a falsa dignidade dos farrapos de Lili Jaffe, lamenta
com os membros do sonderkommando o trabalho de carregar o sofrimento em
macas,
Chove sem parar desde a manhã, mas temos que fazer nosso trabalho mesmo assim. Estamos encharcados. Os assassinos abrigaram-se sob um alpendre e gritam para nós “ Schneller ! Tempo! Mais rápido! Mantenham o ritmo!” De vez em quando, um SS acorre e distribui umas chicotadas. O solo está movediço. Não demora a virar um lamaçal. Temos cada vez mais dificuldade para correr. O comandante ordena que espalhemos algumas dezenas de carrinhos de mão de cinzas ao longo de nosso percurso. A lama absorve o sangue humano. De tempos em tempos, temos que acrescentar cinzas, pois a chuva cai cada vez mais forte. O dia chora conosco. (RAJCHMAN, 2010, p.112)
“A água é o túmulo do fogo e dos homens” (BACHELARD, 1989, p.81),
ela afunda na terra com o que restou da chama da vida. Leva consigo os
suspiros dos que ainda se movem:
E quando chega ao fim, quando as trevas estão no coração e na alma, quando os seres amados nos deixaram e todos os sóis da alegria desertaram a terra, então o rio de ébano, inchado de sombras, pesado de desgostos e de remorsos tenebrosos, vai começar sua lenta e surda vida. Agora ele é o elemento que se lembra dos mortos. (BACHELARD, 1989, p.59)
A ducha a cada fase no campo de concentração retira do homem o que
o faz homem, prepara-o para deixar o mundo através das chamas do
crematório. “A água é realmente o elemento transitório. É a metamorfose
ontológica essencial entre o fogo e a terra” (BACHELARD, 1989, p. 07), o
caminho entre a lama e a chuva, entre as lágrimas e o fogo das piras funerárias
de Treblinka.
Vida na morte é uma maré que arrebenta: Wiesel e milhares de
homens chegam a Gleiwitz. Um portão para a vida? Ainda não: “Andávamos
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em cima de corpos machucados. Pisávamos em cima de rostos aflitos.
Nenhum grito; alguns gemidos. Nós mesmos, meu pai e eu, fomos jogados ao
chão por aquela maré que arrebentava” (2006, p.98). Mas, uma voz ressoou
dentre aqueles corpos empilhados. Era Juliek: “É bom descansar, mas o
violino...” (p.99). O violino? “Pensei que ele tivesse enlouquecido. O que o
violino estaria fazendo aqui?” (p.99). Como alguém que arrasta o próprio corpo
leva um violino numa corrida insana de setenta quilômetros pela neve? Alguém
que precisa carregar a própria alma. Em meio aos corpos que ainda se
jogavam uns por cima dos outros e alguns tentavam dormir:
Estava pensando sobre isso quando ouvi o som de um violino. O som de um violino no galpão escuro onde mortos se empilhavam sobre os vivos. Quem era o louco que estava tocando violino aqui, à beira de seu próprio túmulo? Ou era só alucinação? Devia ser Juliek. (...) era como se a alma de Juliek fosse o arco. Ele estava tocando sua vida. (WIESEL, 2006, p.100)
No Lager uma pessoa que antes fosse considerada normal, deveria
agir da maneira mais anormal possível (FRANKL, 2011, p.34). O assombro
inicial dá lugar a uma apatia. Abre-se um abismo entre a normalidade e a
anormalidade. Neste lugar “Os sentidos estavam obstruídos, tudo se dissipava
em uma névoa” (WIESEL, 2006, p.43). O que antes causava horror e
provocava repulsa a Szpilman (2008) não encontrava sentido nas calçadas do
cotidiano no campo de concentração: “Padecentes, moribundos e mortos
constituem uma cena tão corriqueira, depois de algumas semanas num campo
de concentração, que não conseguem sensibilizá-lo mais” (FRANKL, 2011,
p.37). Aqueles que eram companheiros, em poucas horas são esquecidos:
O meu lugar fica em frente à porta, do outro lado da barraca, próximo da única janelinha, um pouco acima do solo. Minhas mãos geladas aconchegam-se à vasilha quente da sopa. Enquanto sorvo seu conteúdo sofregamente, por acaso dou uma espiada para fora da janela. Lá está o cadáver recém-tirado do barracão, a fitar a janela de olhos esbugalhados. Há apenas duas horas eu estava conversando com esse companheiro. Continuo tomando a sopa. (FRANKL, 2011, p.38)
85
Embora uma experiência de trauma, como nas discussões de
Seligmann-Silva (2003), as experiências do Lager aparecem nos relatos, como
se diz nas palavras de Bachelard: “Antes de ser um espetáculo consciente,
toda paisagem é uma experiência onírica” (1989, p.05). A chama devoradora é
uma chama negra: “Uma chama negra se introduzira em minha alma e a
devorava.” (WIESEL, 2006, p.44). É também uma chama que aparece nos
delírios de Semprún: “Krematorium ausmachen! ”. Soa a voz do oficial nos
pesadelos. Será que algum dia esse crematório teve o fogo apagado? A
memória desse fogo esteve na mente dos sobreviventes e nas noites de
Wiesel:
- Infelizes, vocês vão para o crematório. Ele parecia estar dizendo a verdade. Não longe de nós, de uma fossa subiam chamas, chamas gigantescas. Alguma coisa estava sendo queimada ali. Um caminhão se aproximou do buraco e despejou sua carga: eram criancinhas. Bebês! Sim, eu vi, vi com meus olhos... (...) (É de se admirar então que desde aquela época o sono fuja de meus olhos?) (2006, p. 40)
O crematório, entretanto, pode ser para alguns um escape, para algo
que não se quer ou não se pode fazer:
Em Auschwitz, o internado em estado de choque não tem medo algum da morte. Nos primeiros dias de sua estada, a câmara de gás nem de longe representa um horror. Para ele, a câmara de gás é algo que o poupa de cometer suicídio. (FRANKL, 2011, p.33)
“Já havia crematórios por toda parte, as chamas altas eram visíveis nas
chaminés. Apagavam-se a cada cinco minutos e tornavam a acender” (JAFFE,
2012, p.28), fogueiras multiplicadas na terra com um fogo que é instrumento de
morte produz cinzas e fumaça, chama libertadora,
A fogueira tinha sido carregada conforme as instruções. À noite o fogo foi ateado. Um vento forte soprou e o fogo queimava tão forte que se propagou e incendiou a própria vala. O sangue de um quarto de milhão de pessoas inflamou-se e queimou até a noite seguinte. (RAJCHMAN, 2010, p.112)
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O fogo do crematório que produz o odor desagradável: “No ar, aquele
cheiro de carne queimada. Devia ser meia-noite. Tínhamos chegado. Birkenau”
(WIESEL, 2006, p.36).
- Vous n’étes pás à La Maison . – E é este o refrão que ouvimos repetir por toda a gente: já não estão nas vossas casas, isto não é um sanatório, daqui não se sai a não ser pela Chaminé (que é que isto significa? Iremos aprendê-lo bem mais tarde). (LEVI, 2010a, p.28)
Entre as oitenta pessoas do vagão que conduziu Elie Wiesel a
Birkenau, havia alguém que foi capaz de vislumbrar o futuro ainda que
desarrazoadamente, o futuro: era a senhora Schäter. “Fogo! Estou vendo fogo!
Estou vendo fogo!” (WISEL, p.32), ela gritava histericamente, interrompendo o
silêncio da viagem. A justificativa da loucura daquela voz não aplacou a
angústia das almas silenciosas do vagão: “A cada ranger de roda no trilho,
parecia que um abismo se abriria sob nossos corpos” (p.33).
A placa na chegada nada dizia a eles: Auschwitz. Então eles viram: “E
como o trem havia parado, dessa vez vimos, no céu negro, chamas saindo de
uma chaminé alta” (WIESEL, 2006, p.35). As chamas que só podiam ser vistas,
anteriormente, pela pessoa que destilava desrazão, era agora contemplada
pelos olhos sensatos dos condenados. Não apenas o fogo da chaminé, mas
aquilo que ele exalava: “Um cheiro abominável flutuava no ar” (p. 35).
“Era um sonho, certamente” (WIESEL, 2006, p.44), que durava uma
noite até então, no caminho de um dia:
Olho para Leybl, ele olha para mim e as lágrimas rolam pelas nossas faces. Nos perguntamos um ao outro: - Por que está chorando? Sou incapaz de responder, perdi a fala. Tentamos nos consolar mutuamente, na medida do possível. -Leybl, ontem a esta hora minha irmã ainda estava viva... Ele me responde: - E toda a minha família, assim como 12.000 judeus da minha cidade. (RAJCHMAN, 2010, p.p. 45-6)
Era um sonho? Outro fogo também invadia os corações, enquanto
centenas de prisioneiros observavam um homem que rastejava até os
87
caldeirões de sopa, enquanto todos se escondiam nos blocos devido ao alerta
das sirenes:
Tocou no primeiro caldeirão, os corações batiam mais forte: ele tinha conseguido. A inveja nos devorava, nos consumia como palha. Em nenhum momento pensamos em admirá-lo. Pobre herói, que se suicidava por uma ração de sopa, nós o assassinávamos em pensamento. (WIESEL, p.67)
O fogo como símbolo da vida produz a prece. Essa é, assim, o
instrumento de elevação das almas a Deus. Alma que retorna ao Criador pelo
fogo, mas que nasce nas águas sob as raízes de uma grande Árvore que
cresce no mundo superior segundo o Zohar:
Em sua base estão as águas que dão nascimento a todos os mares. Dali emanam as almas do mundo. Antes de descer à terra, as almas entram nesse grande Jardim. Ali recebem as sete bênçãos, e são exortadas a guiar o corpo de modo paternal e guardá-lo no bom caminho. A alma é então exortada a obedecer à Lei e a observar a Vontade de Deus. (2006, p.138)
A alma é o guardião do corpo, que tem as chaves dos portões entre
Deus e o homem. Mas, a chave dos portões do Lager estava nas mãos do
homem, que definiu a saída da prisão do mundo através dos elementos do ar.
Mas, eis que chega o último dia do ano no calendário judaico.
Setembro de 1944: “Nas vésperas de Rosh Hashaná, último dia daquele ano
maldito, o campo inteiro estava eletrizado pela tensão que reinava em nossos
corações” (WIESEL, 2006, p.73). Aconteceram as celebrações, cerca de “dez
mil homens”.
“O que és Tu, meu Deus”, eu pensava com raiva, “comparado a essa massa dolorida que vem gritar a Ti sua fé, sua raiva, sua revolta? O que significa Tua grandeza, Mestre do Universo, diante de toda essa fraqueza, diante dessa decomposição e dessa podridão? Porque ainda perturbar seus espíritos doentes, seus corpos enfermos? (idem, p.73)
Teriam razão as palavras de Akiba Drumer? Deus os estaria provando?
“- Bendito seja o nome do Eterno! Milhares de boca repetiam a bênção, e
prosternavam-se como árvores na tempestade” (idem, p.74).
88
Por que, mas por que eu O bendiria? Todas as minhas fibras se revoltavam. Porque Ele tinha feito queimar milhares de crianças naquelas valas? Porque Ele fazia funcionar seis crematórios dia e noite, nos dias de Sabá e nos dias de festa? Porque em Seu grande nome Ele havia criado Auschwitz, Birkenau, Buna e tantas usinas da morte? Como eu Lhe diria: “Bendito sejas Tu, Mestre do Universo, que nos elegeu entre os povos para sermos torturados dia e noite, para vermos nossos pais, nossas mães, nossos irmãos acabarem no crematório? Louvado seja Teu Santo Nome, Tu que nos escolheste para sermos degolados em Teu altar? Ouvi a voz do oficiante se elevar, possante e entrecortada ao mesmo tempo, em meio a lágrimas, soluços, suspiros de toda a assistência: - Toda terra e universo pertencem a Deus! (p.74) (...) O ofício acabou com o Kadish. Cada um dizia o Kadish para seus pais, seus filhos, seus irmãos e para si mesmo. (WIESEL, 2006, p.75).
Bênçãos que a alma estaria incumbida de guardar: “E a cada alma são
dadas cem chaves, correspondentes às cem bênçãos que o homem deve
pronunciar todos os dias” (ZOHAR, 2006, p.138). Mas, em pouco seria o Yom
Kippur. Jejuar no dia do Perdão em meio à fome? Mesmo com o risco de morte
– e não havia morte constante ao redor? – uns decidiram fazê-lo, outros não. É
um perigo? Maior ainda o sacrifício: “E eu roia o meu pedaço de pão. No fundo
do meu coração, sentia que se abrira um grande vazio” (WIESEL, 2006,, p. 76).
Não jejuar seria “um ato de revolta e de protesto contra Ele” (idem, p. 76).
Lembro-me da noite do seder . Alguns companheiros participam da cerimônia. Do lado de fora, sopra uma brisa. As fogueiras ardem, o fogo crepita. Dez mil judeus partem na fumaça durante a noite, não haverá mais vestígios deles pela manhã. e celebramos o seder de acordo com as regras. (RAJCHMAN, 2010, p. 130)
Mas, o fogo conhece o caminho para se tornar prece. O campo de
Treblinka recebe um novo personagem: O Artista. Ele é o responsável pela
criação das fogueiras. Muitas são criadas e se espalham cada vez mais, sendo
colocadas próximo às valas. Um dia um vento forte soprou e “A direção inteira
do campo veio contemplar o milagre. Admirou aquele fogo grandioso. O
sangue subiu à superfície e inflamou-se como combustível” (idem, p.112).
89
Como o barro que adquire os formatos que lhe dá o oleiro, o homem é
como o barro que a tudo se molda:
Então nos dávamos conta da verdade daquela frase de Dostoiévski, que define o ser humano como o ser que a tudo se habitua. Podem nos perguntar. Nós sabemos até que ponto é verdade que a pessoa a tudo se acostuma, sem dúvida! Mas ninguém pergunte de que modo... (FRANKL, 2001, p.32)
90
CAPÍTULO 03
Zona cinzenta: questões éticas do Tempo e o
Outro A humanidade é o fato de sofrer pelo outro e, até em seu
próprio sofrimento, sofrer com o sofrimento que meu sofrimento impõe ao outro. (LÉVINAS, 2001, p. 181)
Ao falar de imagens de memória, o que aparece são as experiências
psíquicas, a representação do passado que pode ser equiparado ao ‘objeto de
pensamento’ da concepção arendtiana. Mas o Lager não é apenas uma
experiência do espírito. É física, concreta, avassaladora para o corpo tanto o
quanto para o espírito. Por isso sua aparência de incompreensível, pois que
não vivida por aqueles que lá não estavam. Os ex Häftlinge depararam-se com
uma rejeição incompreensível: tornaram-se repulsivos aos olhos dos aldeões e
citadinos que tiveram suas casas devastadas e suas vidas descompostas
durante a guerra e, minutos depois de declarada o fim da devastação, tiveram
de juntar os cacos de sua normalidade (LEVI, 2010b).
Entretanto, a igualdade dos ex Häftlinge , intestina, visceral, uma
igualdade faminta, não era a mesma dos cidadãos. A igualdade dos
sobreviventes saída do nada do olho do furacão era desprovida de sentido na
corrente do tempo. Todos tiveram suas vidas abaladas e seus estômagos
estavam famintos. Os mercados fervilhavam de negócios e neles os ex
Häftlinge também circulavam e negociavam a próxima refeição (LEVI, 2010b,
p.45). Saídos do inferno, negociavam: os desprovidos de si, fantasmas em
roupas de zebra vendiam camisa aos homens (idem, p.50).
Nos abscessos da sociedade, homens desprovidos de camisa, casacos
quentes, blusa ou vestidos; trabalhando na neve, na lama, na chuva, açoitados
e enfermos, são homens. Negociam, trapaceiam, roubam para se beneficiarem
ou para beneficiarem os outros. Sob a ameaça de morte ou já considerados
mortos: “O nada desafiou o pensamento ocidental” (LÉVINAS, 2015, p.96).
91
O que se torna manifesto quando falamos acerca de experiências psíquicas nunca é a própria experiência mas seja o que for que pensamos acerca dela e quando refletimos sobre ela. (ARENDT, 2000, p.41)
Para Hannah Arendt (1999, p.311), ‘banalidade do mal’, é uma
interpretação específica em um contexto histórico específico, que se refere
diretamente à sua análise da questão de Eichmann. Segundo Bethania Assy
(2015), a discussão de Arendt se voltou para a questão da banalidade do mal
após esses fatos, pois, para esta, o mal não pode ser considerado radical por
não ter profundidade, raízes.
O mal banal é algo superficial, ele não se baseia em um ódio profundo
que origina no ser, mas numa doutrinação ideológica, em pensamentos e
ações irrefletidos e autômatos. Fica impossível abster-se da sua observação:
“Essa distância da realidade e esse desapego podem gerar mais devastação
do que todos os maus instintos juntos – talvez inerentes ao homem; essa é, de
fato, a lição que se pode aprender com o julgamento de Jerusalém” (ARENDT,
1999, p.311).
Ele será, assim, fruto de um EU desenraizado. Um EU desenraizado
seria, por sua vez, resultado de uma inconsciência despregada da experiência,
da experimentação do Outro enquanto diferente: “A proximidade do próximo
permanece ruptura diacrônica, resistência do tempo à síntese da
simultaneidade” (LÉVINAS, 2002, p. 105).
E, se o mal, dentro da concepção judaica consiste numa possibilidade
de desvirtuamento da função original do homem, uma consciência de uma luta
contra o mal reside nas fagulhas da fé que ainda pairavam sobre alguns
corações nos barracões infestados de doenças e de insetos do Lager
(WIESEL, 2006, p.52).
Pensar a consciência a partir da presença também é lembrar que o
tempo dos calendários revitaliza a experiência religiosa (tomada aqui como
referência) enraizando o EU num processo que vai além do EU. Eleva a
fraternidade para além da fraternidade biológica.
92
São fatos que atravessam o prisma das memórias e reflete no fundo
obscuro das consciências embotadas pelo cotidiano vazio da rotina, aquilo que
as pessoas não querem admitir ou não podem, por serem incapazes de
enxergar. Mas, esse embotamento não é próprio do campo, quando “Só muito
mais tarde, pouco a pouco, alguns de nós acabaram por aprender algo da
funesta ciência dos números de Auschwitz, em que se compreendiam as
etapas da destruição do judaísmo da Europa.” (LEVI, 2010a, p.27). Ele está em
todos os lugares, em todas as culturas influenciadas pelo modus operandi da
cultura ocidental moderna: “Quem pode se dizer seguro de estar imune à
infecção?” (LEVI, 2015, p.206).
3.1. Uma questão de números?
Maus (2009) é uma história em quadrinhos que traz o relato de Vladek,
a partir de longas conversas anotadas por seu filho Art. Em Auschwitz, um
padre faz observações sobre o número que Vladek recebeu em sua 60
tatuagem: “Seu número começa com dezessete “ k’minyan tov ” dezessete é um
ótimo presságio. Acaba com treze. É quando meninos judeus viram homens.
Veja! A soma dá dezoito. Em hebraico é “ chai ”, o número da vida” (p.188). O
que significaria que ele sairia vivo do Lager . Essa se tornou a âncora de ânimo
para Vladek Spiegelman.
Edwin Black (2001), mostra em detalhes o significado de cada número
que foi utilizado nos cartões perfurados da IBM – Internacional Business
Machines . Mas não é disso que se trata a fala do padre. Mas, daquilo que todo
conhecedor do hebraico sabe: cada letra do alfabeto hebraico possui um
número, e numa preocupação mística as palavras são pensadas tendo em
vista o somatório desses números e seu significado final.
A grande questão sobre o nome na pesquisa não é a sua relação com
a mística (no sentido da numerologia – embora seja instigante – fazer isso,
neste trabalho iria desvirtuar a discussão sobre literatura e memória; ou, ainda,
60 No livro, Spiegelman não faz nenhuma referência à origem, nome ou destino do padre (veja imagem nos Anexos).
93
abriria um leque infindável de possibilidades). Mas, no sentido de que sendo
pertencentes a uma religião (subentende aqui todo um modo de pensar sobre o
mundo) que entende o nome vinculado à alma do indivíduo. A pessoa e a sua
anulação culminaria na constatação: aqui sou apenas um número. Um número
em meio a outros tantos, desfigurados e homogeneizados.
E essa historieta inicia no censo prussiano de 1933, quando a
Dehomag assume para si o encargo de um feito que entraria para a história e, 61
por isso, estavam todos eufóricos. Esse laboratório iniciou um processo de
produção de cartões cada vez mais bem elaborados, no sentido que viriam a
ser utilizados pelos nazistas. Entretanto, o censo prussiano não era específico
o suficiente – quanto mais específico, mais anônimas as pessoas se tornam.
Pois, todas as informações ficariam passíveis de serem transformadas em
informações estatísticas.
E os estatísticos da época estavam eufóricos, vislumbrando um grande
futuro para a sua ciência.
“Em breve, os judeus se converteriam em números Hollerith ” (BLACK,
2001, p. 247). Black traça todo o percurso, desde como os nazistas puseram as
mãos nas máquinas que favoreceriam a “Solução Final”, até a forma de
distribuição dos despojos. Watson, representante da IBM, foi a pedra
fundamental que manejou todos os negócios, brilhantemente, tendo em vista o
lucro. Mesmo após a Kristallnacht (Noite dos Cristais, 9 de novembro de 1938),
as atividades de Watson em benefício da Alemanha Nazista não diminuiu. Ele
chegou a enviar cartas ao presidente Roosevelt, solicitando apoio em suas
propostas no congresso de 1939, da Câmara Internacional de Comércio.
Segundo Black (2001), visava à atividade dos homens de negócios, em
favor de uma distribuição dos recursos mundiais, independente da situação
mundial naquele momento. Um benefício aos países do Eixo, como se
questões econômicas pudessem estar despidas de questões políticas. Ele
recebeu, em 1936, a Cruz de Mérito da Águia Alemã com estrelas. Recebida
com toda pompa, e, devolvida apenas em 1940.
61 Deutsche Hollerith Maschinen Gesellschaft – Companhia Máquina Hollerith Alemã (BLACK, 2001, p.27)
94
O Reich precisava de máquinas que agilizassem a contagem da
população judia, haja vista que as investidas sádicas dos Einsatzgruppen não 62
seriam suficientes para exterminar milhões de pessoas em pouco tempo
(BLACK, 2001, p. 230). As atividades de Watson fizeram com que as
classificadoras alfabéticas da IBM chegassem a tempo, até os nazistas que
trabalhavam na Polônia. Além disso, a eficiência do relatório apresentado por
Reinhardt Heydrich em setembro de 1939, apresentou todas as informações
necessárias para que o plano de extermínio nazista na Polônia funcionasse
eficazmente.
O recenseamento da população judia da capital polonesa fora realizada
pelo próprio Jundenrat (Conselho Judaico – criados pelos alemães para
transmitir e fazer cumprir as resoluções que eram tomadas diariamente pelo
Governo Geral), liderada por Adam Czerniakow. As SS exigiram que isso fosse
feito em uma semana. E, em dezembro de 1939, o trabalho estava concluído,
indicando que havia em Varsóvia 366 mil judeus. Dentre estes, seis mil judeus
raciais. Sim, por que o Reich estava interessado em todos os judeus, não
apenas os religiosos – que eram fáceis de ser identificados (BLACK, 2001, p.
238). Mas,
A Polônia não era o único ponto focal da ação estatística do Reich. Em 1939, estabeleceu-se em Praga um Escritório Estatístico para o Protetorado da Boêmia e Morávia. Também se abriram serviços de dados na Alta Silênia e nas região de Warthe, cujo território fora transferido para a Dehomag. (idem, p.245)
A Dehomag, subsidiária alemã da IBM, era a responsável por todo o
trabalho e distribuição de cartões perfurados que alimentavam a máquina de
extermínio nazista. Utilizando papel fornecido diretamente da Alemanha, os
cartões eram produzidos a alguns metros do gueto de Varsóvia. Precisamente,
em um prédio encostado ao muro (ibidem, p. 244).
As ações de Watson favoreceram drasticamente o plano nazista, sem
dúvidas. A partir daí, muitos acontecimentos entrelaçados foram gradualmente
62Black define os Einsatzgruppen : “eram forças-tarefas especiais móveis que se dispersavam por todas as áreas conquistadas, assassinando com requintes de sadismo tantos judeus quanto possível, com a maior rapidez possível.” (p.230)
95
lubrificando os trilhos e as engrenagens desse plano. Essas ‘ajudas’ eventuais
partiam das populações dos países ocupados.
As deportações realizadas no início da guerra (ARENDT, 1999),
tiveram o benefício da estatística das tabuladoras Hollerith, mas também dos
governos, que aceitaram a intimação nazista para que se livrassem dos seus
judeus a fim de se tornarem Judenrein e virem a ser parte do Reich. O
resultado: os números da destruição do judaísmo Europeu e o esfacelamento
da cultura ídiche, nas milhares de tatuagens e fichas, destruídas nos campos
juntamente com os corpos incinerados.
Os números estão espalhados e sujeitos à avaliação de quem o
pretenda fazer. Na França de 1942, um jornal chamado “Notícia do subterrâneo
judaico”, convocava os judeus franceses a resistirem ao censo. Este era feito
com a contribuição forçada aos próprios judeus. Os censos foram realizados, a
despeito de qualquer resistência, milhares de famílias foram identificadas e
massacradas. Mesmo judeus Tchecos que conseguiram imigrar para os EUA,
organizaram colônias de suicídio (BLACK, 2001, p. 196). O próprio governo
Tcheco, tentando evitar a invasão de seu país, arrastou judeus para a fronteira,
onde “Muitas mulheres e crianças, já surradas e ensanguentadas, eram
forçadas a cruzar a fronteira engatinhando, às vezes arrastando-se” (idem,
p.195).
Já Arendt arrisca-se a citar números divulgados na época, ainda
imprecisos, mas alarmantes o bastante para refletir o choque provocado em
todo o mundo. Na Holanda, dos 140 mil judeus, sobreviveram 10 mil - em sua
grande maioria estrangeiros - ainda eram deportados em 1944. Os judeus 1700
judeus noruegueses, também estrangeiros e refugiados, foram deportados em
1942. Na primavera de 1944 os alemães despachavam 7500 judeus italianos
para Auschwitz apenas 600 regressaram à Itália. Na Bélgica, dos 50 mil judeus
que ficaram no país em 1940, “No final de 1942, 15 mil deles haviam sido
despachados para Auschwitz, e no outono de 1944, quando os aliados
96
libertaram o país, 25 mil deles haviam sido assassinados” (ARENDT, 1999,
p.185) - a conta que não fecha é de 5 mil judeus nativos.
Dos 90 mil judeus que existiam na Tchecoslováquia resultou, “Em 4 de
abril de 1945, quando os russos entraram em Bratislava, talvez 20 mil judeus
tivessem sobrevivido à catástrofe” (idem, p.226). Na Hungria, “Da população
original de 800 mil, cerca de 160 mil tenha continuado no gueto de Budapeste -
o campo já estava judenrein - , e dezenas de milhares desses foram vítimas de
pogroms espontâneos. Em 13 de fevereiro de 1945, o país se rendeu ao
Exército Vermelho” (idem, p.222). Em 20 de abril de 1944, edmund
Veesenmayer, o “especialista técnico na erradicação de comunidades judaicas”
(BLACK, 2001 p.325) queixava-se de não ter trens de carga suficientes para
deportar os judeus. Após ameaças, barganhas e o sequestro do filho do chefe
de Estado húngaro, almirante Miklos Horthy:
Finalmente, a Hungria concordou em deportar 50.000 judeus para a Áustria e em despachar os demais judeus de Budapeste para campos de concentração. A partir de 20 de outubro de 1944, milhares de judeus apavorados, aos prantos, foram arrancados de seus apartamentos e casas em operações que duravam o dia inteiro. Os vagões de carga não eram suficientes. Assim, em poucos dias, 27.000 judeus arrebanhados foram enviados em marcha mortal para a fronteira austríaca. As filas de judeus a pé se iniciavam na saída de Budapeste e se estendiam por quilômetros a fio, marginadas por pilhas de corpos amontoados à beira da estrada. Veesenmayer relatou que todos os dias adicionavam-se ao êxodo de 2.000 a 4.000 judeus. Muitos milhares morreram no trajeto, de exaustão, exposição ao meio ambiente e inanição. Realmente, eles marchavam para a morte. (BLACK, 2001, p. 337)
“Nos Campos de Chelmo, Sobibór, Treblinka, Maidanek, vivia-se de
uma a duas semanas. Se não se fala deles, é porque nenhum judeu retornou
desses locais para contar sua história” (LEVI, 2015, p. 98), afirmação de quem,
por suposto, ignorava a existência de Chil Rajchman, exilado no Uruguai -
remanescente de Treblinka, e, de Bella Herson e Lili Jaffe - remanescentes da
cultura ídiche, exiladas no Brasil.
97
As estruturas que se formaram para a realização da Shoah foram
fundadas sob um véu nebuloso, cinzento. As cadeias engendradas de tal
maneira, que a esfera política norte-americana enredou-se a ponto de parecer
cúmplice, aquiescendo na morte de milhões. A leitura do livro de Black deixa no
ar uma dúvida irremissível.
“(Em Jerusalém, ele acusou “os poderosos” de ter feito mal uso de sua
“obediência”. “O cidadão de um bom governo tem sorte, o cidadão de um mau
governo é azarado. Eu não tive sorte.”)” (ARENDT, 1999, 194) foram as
palavras de Eichmann. Abusado de sua integridade e honra, por um lado,
acusado de crimes de guerra. Honrado e considerado cidadão de bem, por
outro, James Watson percorria o mundo, desenvolvendo tecnologias que
alimentavam o furacão que varria a Europa. Um puxa o gatilho assinando
relatórios ferroviários, outro puxa o gatilho produzindo a tecnologia geradora
dos relatórios. Onde o Reich pretendia chegar, a IBM se antecipava. Segundo
Black, mais de cem mil cartões de internos sobreviveram à guerra (2001, p.
468).
3.2. O mal em Hannah Arendt e no Judaísmo
Quando Arendt fala em produção da história, refere-se à História, a
encadeamentos cronológicos construídos por historiadores como pretensão de
conhecimento de uma história da humanidade. Essa construção é que produz
uma igualdade superficial e que é, no entanto, reflexo de uma algo 63
fundamental: a Humanidade que habita o planeta Terra.
A história humana nunca conheceu um episódio mais difícil de ser narrado. A monstruosa igualdade na inocência, que é seu tema principal, destrói a própria base em que se produz a história – a saber, a nossa capacidade de compreender um acontecimento, por mais distantes que estejamos. (ARENDT, 2008, p.227)
63 Existem autores muito importantes para entender o que é chamado de Colonialismo, como Walter Mignolo e Bruno Latour.
98
Entretanto, a ‘igualdade na inocência’ também tem um significado
específico: a morte de milhões de inocentes nas câmaras de gás. A produção
em série de cadáveres, uma igualdade nunca desejada pela Humanidade, mas
criada por ela mesma. A inocência não consiste na morte de crianças, de fato
inocentes, mas, naqueles que ignoravam o destino para eles traçado.
O mal que é, em absoluto, radical, mas ainda absoluto no sentido da
sua abrangência em meio a um conflito bélico: a guerra que retira do homem a
sua humanidade. O que embota a compreensão não é a complexidade dos
eventos, mas considerá-los inenarráveis, incompreensíveis por não suportar
olhar para eles. As imagens são inegavelmente impressionantes para a
‘normalidade’ e Arendt (2008) diz em um texto que, quem procurar remexer na
Shoah vai encontrar apenas dor e sofrimento. Entretanto, dor e sofrimento são
também inegavelmente parte da humanidade, daquilo a que chamamos vida.
Intrínseco ao contexto beligerante da Shoah , ele é algo que não
pretendo encarar como místico – mesmo assim, é preciso apontar o que seria
denominado de mal no judaísmo, pois os relatos apresentam referências a ele
dentro desse contexto.
O processo de anulação do indivíduo acompanhado nos relatos do
gueto ao Lager possuem uma áurea de parábola ao processo de consolidação
de um mal, que não é de natureza mística, mas um mal real, concreto,
traduzido na objetificação da pessoa – os prisioneiros eram chamados de
‘peças’. Haveria também anulação da capacidade de reconhecimento entre os
sobreviventes e os seus ‘semelhantes’? A literatura mostra que na zona
cinzenta, não é possível generalizar. Nada é preto ou branco (LEVI, 2006).
O mal, dentro da concepção judaica consiste na inclinação, no
desvirtuamento da função original (de cada elemento da criação e ações), que
é enaltecer a Deus. Quando o homem cede na inclinação ao mal, desviando-se
de sua função, dá amplo espaço ao Ietser Hará . Com relação às centelhas 64
caídas, cada pessoa possui um grau de responsabilidade em elevar essas
64 Sobre a definição entre Ietser Hará e Ietser Hatov ver Kolatch (2001).
99
centelhas cumprindo mitsvot ou realizando preces . Entretanto, havia uma 65
consciência que pairava entre os Häftlinge judeus: a de que o mundo estava
desconcertado, havia uma necessidade de harmonização e, muitos deixaram
de acreditar que isso seria possível em vista do nível de maldade observável
ao seu redor.
Apressar a vinda do Mashiach seria a única esperança para aqueles
que sofriam no Lager . Muitos acreditaram que isso aconteceria por aqueles
dias. Akiba Drumer, amigo de Primo Levi, chegou a prever com base em
códigos que acreditava ter decifrado. Judeus jejuaram no Yom Kipur . Mas o
Mashiach não se revelou.
O Zohar , um livro com comentários místicos sobre a Torá, escrito no 66
século XIII e considerado o mais importante livro da Cabala judaica, não
poderia se abster da questão do mal, que entre os cabalistas, é um assunto da
mais absoluta importância. É apenas uma fonte entre muitas outras e muitas
linhas da Cabala. Existem entre eles diversas teorias sobre sua origem. Uma
delas é de que todas as coisas são boas por estarem ligadas a Deus,
entretanto, elas podem desviar-se de suas funções ou direções ideais e, assim,
tomam o caminho do mal, tornando-se más (2008, p. 266).
Sob os auspícios da banalidade do mal, o Outro é irreconhecível.
Eichmann foi incapaz de reconhecer nos judeus transportados a qualidade de
seres humanos – o que embotou uma moral que deveria fazer com que
repelisse tal atividade. Sobre essa ‘eficiência Eichminiana’, diz Black:
Em julho de 1942, Eichmann chegou a Paris com ordens diretas de Himmler. Todos os judeus da França – estrangeiros ou natos – deviam ser enviados imediatamente aos campos de concentração. Eichmann passou a supervisionar pessoalmente a deportação sistemática dos judeus. Berlim alocou 37.000 vagões de carga, 800 vagões de passageiros e 1000 locomotivas à França Ocupada. Mas as autoridades locais sempre ficavam aquém das quotas. (BLACK, 2001, p. 422)
65 Como foi colocado no capítulo anterior. Uma discussão mais ampla sobre o Messianismo pode ser visto no livro de David Biale “Cabala e contra-história: Gershom Scholem”. 66 É um livro com comentários místicos sobre a Torá, escrito no século XIII e considerado o mais importante livro da Cabala judaica.
100
3.3. O Rosto, a alteridade, o Outro.
Surgiram entretanto, iluminados pelos faróis, dois grupos de estranhos indivíduos. avançavam em formação, em filas de três, com um curioso passo arrastado, a cabeça descaída para a frente e os braços rígidos. Na cabeça traziam um boné ridículo e vestiam um casaco comprido às riscas, que mesmo de noite e de longe se via estar sujo e rasgado. Desenharam um amplo círculo à nossa volta, de forma a não se aproximarem e, em silêncio, começaram a mexer nas nossas bagagens e a subir e descer dos vagões vazios.
Olhávamos-nos uns aos outros sem uma palavra. Tudo era incompreensível e louco, mas uma coisa tínhamos percebido: era esta a metamorfose que nos esperava. Amanhã também nós seríamos como eles.
(LEVI, 2010a, p.19)
Quando acabamos, cada um ficou no seu cantinho, e não ousávamos levantar o olhar uns para os outros. Não há espelhos para nos vermos, mas o nosso aspecto está diante de nós, refletido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos. Estamos transformados nos fantasmas que entrevimos ontem à noite. (LEVI, 2010a, p.25)
O número é Rosto? Mas, entender quem é esse Outro, faz perceber o
que parece uma fissura, que aqui aparece como uma afirmação, a partir de
uma indicação na leitura de Totalidade e Infinito (2008): “O outro, o livre, é
também o estranho. A nudez do seu rosto prolonga-se na nudez do corpo que
tem frio e que tem vergonha da sua nudez.” (p. 65). O indivíduo numerado,
sombras de homens, ou, como diz Levi “homens e mulheres de vento” (2004,
p.131) têm em seus números rastros de outro que só podem ser reconhecidos
por quem está inserido no contexto de leitura do Lager .
Antes de conhecer a leitura do Lager , o que resta senão o Rosto?
Totalmente estranho “O rosto voltou-se para mim – e é isso a sua própria
nudez. Ele é por si próprio e não por referência a um sistema” (LÉVINAS, 2008,
p. 64). Antes da tentativa de homogeneização e integração ao sistema do
Lager , a babel de línguas e ‘maneiras’ é um estrangeirismo pungente. A leitura
do Lager é a ‘leitura dos números’, a leitura do Häftlinge . O Rosto é o que
aparece antes de qualquer conceitualização ou contextualização. Aquele que
antes não era ninguém, torna-se número.
101
Pessoas provenientes dos quatro cantos da Europa amontoavam-se
em blocos nos campos de concentração espalhados em lugares estratégicos,
equipados e bem servidos dos sistemas ferroviários administrados por
Eichmann, para levar de um lado a outro milhares de pessoas, por centenas de
quilômetros. Os judeus italianos são discriminados no Lager por não
conhecerem o ídiche, os gregos por serem espertos nos negócios, os judeus
de Sighet por ignorarem Auschwitz em 1944 e irem ‘parar lá’. No fim, todos
enfrentavam o mesmo inferno:
Aqui devo abrir parênteses e lembrar o quanto o caos linguístico contribuiu para aquele inferno. Era um esbravejar de ordens gritadas em alemão ou em polonês; de regulamentos, proibições, prescrições estapafúrdias, algumas até grotescas, que era preciso entender ou adivinhar na hora. Não é exagero dizer que a elevadíssima mortalidade de gregos, franceses e italianos no campo de concentração se devia à sua ignorância da língua. (LEVI, 2015, p. 98)
Os prisioneiros recém-chegados apenas conseguiam enxergar a
violência, mesmo sem entender - não apenas por serem incapazes de
compreender a língua falada, mas porque não havia significado ainda do
contexto. Quando não se entendia o significado das palavras, o que restava a
observar era o significado dos números.
Os prisioneiros ignoravam seus destinos até ficarem diante dos
fantasmas listrados. O processo de entrada nos trens, a viagem inóspita e a
chegada a um local sombrio não ajudava a entender coisa alguma até verem a
figura do Häftling . Entretanto, a compreensão só aconteceu após a
transformação da própria imagem.
Ignorando o destino implícito na palavra Auschwitz, impressas nos
vagões de gado que os transportavam (LEVI, 2010a), alguns judeus italianos
tinham conhecimento de um lugar chamado Oswiecim , que se localizava na
Polônia. Mas Auschwitz ? Em 1944 ainda era possível que comunidades
ignorassem para onde estavam sendo arrastados os milhares de judeus
europeus. Esse desconhecimento foi um fator crucial para que fossem
102
aprisionados como pássaros, pegos na armadilha do caçador - os judeus
italianos e os judeus de Sighet . 67
Como nas metáforas de Spiegelman (2009) e Szpilman (2008), os
ratos caçados pelos gatos e denunciados pelos porcos. Os pássaros sob
algazarra, partem nos vagões em direção ao desconhecido – mas, que por
muitos pressentido e por outros, muito bem sabido. Mas, pouco é possível
saber daquilo que não está diante dos olhos, e, mesmo aí, ainda é possível que
não se compreenda. A não ser que se esteja nitidamente diante do outro lado –
como Szpilman, diante da partida do trem.
Mandaram-nos deixar toda a bagagem no vagão, desembarcar e formar uma fila de homens e outra de mulheres, para então desfilar perante um oficial superior da SS. (...)
Ei-lo agora à minha frente: alto, esbelto, elegante, num uniforme perfeito e reluzente – uma pessoa bem trajada e cuidada, muito distante das nossas tristes figuras de rosto sonolento e aparência decaída. Ele se sente muito à vontade. Apoia o cotovelo direito na mão esquerda, e com a mão direita erguida executa um leve aceno com o indicador, ora para a direita, ora para a esquerda. (...)
À noite, ficamos sabendo o significado do jogo com o dedo indicador: era a primeira seleção! A primeira decisão sobre ser ou não ser. Para a imensa maioria do nosso transporte, cerca de 90%, foi a sentença de morte. (FRANKL, 2011, p.p. 25-6)
O encontro com esse Outro inaugura a minha responsabilidade por ele.
O “Rosto” é o começo dessa inteligibilidade, do reconhecimento da alteridade,
e da responsabilidade pelo outro. Como diz Lévinas “Em certo sentido, todos
os outros estão presentes no rosto de outrem” (2009, p.147). Mas, para Levi e
Frankl, o Outro ‘nazista’ não era reconhecível. Portanto, não se tratava de um
Outro. A barreira interposta entre os Häftlinge e o oficial alemão era a barreira
da morte, e, esta mesma morte, fator de identificação com outros Häftlinge.
Semprún apresenta ainda o “chefete”, o Häftling , o rapaz prisioneiro russo,
Nicolai dissera Meister (...) A palavra Meister me dava arrepio na espinha. Assim eram chamados os chefetes, contramestres civis alemães, às vezes mais duros do que os próprios SS, em todo caso mais duros do que os sujeitos da Wehrmacht, que às
67 Cidade de Elie Wiesel.
103
custas de gritos e pauladas reinavam sobre o trabalho exaustivo dos deportados nas fábricas de Buchenwald. Meister : mestres-de-obras, mestres de mão-de-obra-escrava.
Disse a Nicolai que a palavra Meister não me alegrava.
(...)
- Você prefere que eu diga Füher em vez de Meister , por exemplo? Todas as palavras alemãs para dizer “chefe” são sinistras!
Dessa vez, ele disse Kapo para dizer “chefe”. Todas as palavras alemãs para dizer kapo , ele tinha dito.
E continuava a rir.
- E em russo? Você acha que as palavras russas para dizer kapo são engraçadas?
Eu meneava a cabeça, não sabia russo.
Mas ele parou de rir, abruptamente. Um véu de estranha aflição turvou seus olhos, logo desaparecendo.
(...)
Estava plantado no meio do corredor do block 56, entre as altas fileiras de estrados, proibindo a entrada em seu território. (...)
Resumindo, o perfeito chefete. (SEMPRÚN, 1994, p.p. 28-9)
A identificação, entretanto, restringia-se aos de sua comunidade,
àqueles que viajaram consigo nos vagões lacrados. Aqueles que foram vistos
às pressas, arrumando as malas, fazendo comida para as crianças,
enfrentando filas quilométricas sob um sol escaldante, perguntando uns aos
outros: para onde nos levam? (LEVI, 2010a; Wiesel, 2006). Esse ‘nos’ carrega
em si o significado do Rosto: “Minha responsabilidade por outrem é
precisamente a não indiferença dessa diferença: proximidade do outro”
(LÉVINAS, 2002, p. 105).
Rosto é princípio, a palavra de honra, a origem. É a palavra anterior à
linguagem. Ele não traz consigo uma ameaça, mas é uma apresentação, de si
por si, parafraseando Lévinas, em Totalidade e infinito (2008). O rosto é um
convite, é um desafio ao poder de poder. Ele desafia o Mesmo a uma ação
104
ética: “não matarás”. Ele introduz uma ordem, uma “Responsabilidade pelo
outro, o “para o outro” “des-interessado” da santidade” (LÉVINAS, 2014, p.29).
O não reconhecimento do rosto do Outro implicaria, assim, em um
desvirtuamento do que se pressupõe (ou espera) do reconhecimento da
humanidade do Outro. No Lager o número é Rosto? O número diz quem é o
Outro, e, qual relação que se pode estabelecer com esse Outro. Mas, nem
sempre um antigo seria inclinado a tirar vantagens. Como foi o caso de
Schlome, judeu polaco, havia três anos em Auschwitz. Ele pergunta:
- Onde tua mãe? – Em Itália. – Schlome fica surpreendido – Judia na Itália? – Sim – explico como melhor sei – escondida, ninguém conhece, fugir, não falar, ninguém ver. – Percebeu; agora levanta-se, aproxima-se e abraça-me timidamente. A aventura terminou, sinto-me invadido por uma tristeza serena que é quase alegria. Nunca mais voltei a ver Schlome, mas não esqueci seu rosto sério e bondoso de criança, que me acolheu à porta da casa dos mortos. (LEVI, 2010a, p.30)
De origem polonesa o responsável pelo barracão onde se encontrava
Wiesel (2006) faz uma exortação: “Expulsem o desespero e se afastarão da
morte. O inferno não dura eternamente...” (p.48), deixa lacuna, a esperança de
uma possível sobrevivência? A ideia de um futuro quando se foi jogado fora do
tempo? Qual seria o tempo do Lager? Apenas o tempo de uma consciência. E
o tempo da comida. O combustível para que o corpo aguente a carga sombria
dos dias: “Comam! Qualquer coisa e a qualquer hora. Devorem tudo o que
puderem. Os fracos não duram muito aqui...” (idem, p. 51). Era preciso devorar,
como o fogo que devorava as almas, que devorava os corpos das criancinhas e
devorava o interior dos homens que era incapazes de resistir, mas que
transformavam aqueles que resistiam:
Fazia quase dois anos que eu vivia cercado de olhares fraternos. Quando havia olhar: a maioria dos deportados não o possuía. Apagado, o olhar dele, obnubilado, ofuscado pela luz crua da morte. a maioria só vivia ainda por inércia: luz enfraquecida de uma estrela morta, o olhar deles.
Passavam, caminhando com um andar de autômatos, contido, medindo o impulso, contando os próprios passos, salvo nos momentos do dia em que justamente tinham de marcá-lo, o passo, marcial, durante o desfile à frente dos SS, de manhã e de noite, na praça de chamada, ao partir e ao voltar dos
105
kommandos de trabalho. Andavam de olhos semicerrados, resguardando-se assim das fulgurâncias brutais do mundo, protegendo das correntes de ar gélido a pequena chama trêmula de sua vitalidade.
Mas era fraterno, o olhar que sobrevivia. Por ser alimentado com tanta morte, provavelmente. Alimentado de forma tão rica e partilhada. (SEMPRÚN, 1994, p.p.25-6)
Na virada de 1945, Ano-Novo do calendário gregoriano, entre tantas
outras, houve mais uma seleção. Os S.S. resolveram presentear os
prisioneiros: “quando encontrasse um fraco, um “muçulmano”, como dizíamos,
anotaria seu número: bom para o crematório” (idem, p.76). O conselho do
Kapo , é dado com voz trêmula:
Dentro de alguns instantes começará a seleção. Vocês devem tirar toda a roupa. Depois passar um por um diante dos médicos S.S. Espero que todos vocês passem pela prova. Mas vocês mesmos devem aumentar suas chances. Antes de entrar na sala ao lado, façam alguns movimentos para ganhar um pouco de cor. Não fiquem andando muito tempo, corram! Corram como se estivessem fugindo do diabo! Não olhem para os S.S. Corram, olhando para a frente. (WIESEL, 2006, p.77)
Quem pôde, correu. Mas quem não conseguiu, teve seu número
anotado: (...) Comecei a rir. Estava feliz (...) pouco importavam os outros! Eu não tinha sido inscrito. Aqueles cujos números foram anotados mantinham-se à distância, abandonados pelo mundo inteiro. Alguns choravam em silêncio. (idem, p.79)
Mas, mesmo que morto sob a égide do pensamento fatídico, o face a
face com a Morte não o exime do embate moral e ético: “a minha deferência
por alguém que não responde mais, já uma culpabilidade – uma culpabilidade
de sobrevivente” (LÉVINAS, 2015, p.41). Diz Wiesel:
Pousou sua grande mão peluda em meu ombro e acrescentou: - Ouça-me bem, garoto. Aqui cada um deve lutar por si mesmo e não pensar nos outros. Nem mesmo em seu pai. Aqui não tem pai, não tem irmão, não tem amigo. Cada um vive e morre por si, sozinho. Vou lhe dar um bom conselho: não dê mais a sua ração de pão e de sopa ao seu velho pai. Você não pode mais fazer nada por ele. E assim você está se assassinando. Você deveria, ao contrário, pegar a ração dele... (2006, p.115)
106
Ele admite que o médico que lhe dá o conselho está correto. Era o
deveria fazer. Era o que todos faziam. Wiesel não se absteve com o seu velho
pai, seguindo os razoáveis conselhos do médico do campo. Embora tenha
encontrado, diante de si, situações em que prezou por sua vida. Mas, em sua
relação com o pai, estava diante de outro ou de si mesmo? Seu compromisso
ético era consigo mesmo, com a própria consciência.
Wiesel contrapõe a sua atitude à reflexão que faz da atitude de outro
filho diante do velho pai. O rabino, conhecido e apreciado por todos – um
homem piedoso – corre ao lado do filho e em algum momento começa a ficar
para trás. O filho finge que não vê. Quando todos param e muitos morrem, o
rabino procura por seu filho diligentemente (WIESEL, 2006, p.97). Seria esse o
filho que arranca o pão da mão do pai, matando-o em seguida – de desgosto?
As três figuras de filhos e pais, mostrada por Wiesel são fundamentais. Ele se
detém nas relação que observa entre pais e filhos no Lager porque - e isso é
visto no seu relato claramente - ele culpa ao pai pelo destino da comunidade
judaica de Sighet e, consequentemente, toda a sua família.
O dilema de Wiesel em relação ao pai - acentuado pelo conselho do
médico de mão peluda - reflete-se no alívio que sente e do qual se envergonha,
após a morte do pai. Bella Herson e Noemi Jaffe, que também chegaram ao
fundo do Lager com familiares, relatam outros sentimentos e posturas
referentes à estarem com parentes no campo de concentração. Existe uma
aura de proteção mútua, que aparece nos textos como indicativo de satisfação
e fonte de forças. Dentro desse nicho de proteção, Herson refuta a ofensa de
um soldado, de quem ouve a zombaria “Shau, die sehen doch aus wie Affen” . 68
Ele ainda estava segurando na mão uma serra e empurrava vários troncos de árvores por baixo da cerca, alcançando a nossa barraca. Quando vi aquilo, comecei a chorar. Eu me senti de novo gente, parei de “ser macaco” e o alemão foi “humano” e apiedou-se de mim. Agradeci chorando e puxei os toquinhos... (HERSON, 2009, p.165).
Em Herson, os soldados podem, em algum momento, deixarem a sua
condição de assassinos e se tornarem humanos, capazes de se apiedarem dos
68 “Olha, elas parecem macacos” (tradução no texto de Bella Herson, p.162).
107
prisioneiros. Ela retruca em alemão ao oficial e diz que não é um macaco e
este se surpreende, presenteando-a depois, com comida e lenha. Embora
tenha sido levada a Auschwitz, o campo em que ela se encontra nesse evento
acima, já não se parece em nada com o que esteve Levi, Wiesel, Rajchman e
Semprún, pelo tempo que estiveram presos. Assemelha-se mais ao campo de
refugiados administrados pelos soviéticos no pós-guerra.
No KaBe é possível pensar, mas pensar não é algo agradável quando 69
se não quer questionar o estatuto de humanidade. O enfermeiro “dirige-se a
mim e, em quase-alemão, piedosamente, fornece-me o resumo: - Du Jude
Kaputt. Du schnell Krematorium fertig” (LEVI, 2010a, p.50). Em Auschwitz
“Tudo era silencioso como num aquário, e como em certas cenas dos sonhos.”
(LEVI, 2010a, p.18). Silencioso como um mundo fora do mundo, como aparece
em outros relatos. Estar no Lager é estar fora desta realidade considerada
normal.
Como no Lager , a realidade fictícia, que não é senão um destaque, um
chockerlebnis em um contexto produzido artificialmente – uma “máquina bem
lubrificada” (como diz Edwin Black) – embotada, mas não extraída do mundo
como a sua aparência o que quer fazer acreditar.
Devo a minha salvação a uma última milagrosa intervenção do destino. Como comentei, não tive nenhuma doença durante todo o meu ano no campo de concentração, mas, por volta de 10 de janeiro de 1945, quando já se ouviam as artilharias russas, caí doente de escarlatina e fui internado na enfermaria. Poucos dias depois, o campo inteiro foi evacuado, assim como todos os campos da Alta Silésia, Auschwitz inclusive. É este, talvez, o capítulo mais terrível e menos conhecido da história de Auschwitz. A operação, aparentemente decidida pelo próprio Hitler, ocorreu em poucas horas: todos os prisioneiros capazes de andar - e na área de Auschwitz eram mais de 150 mil - foram obrigados a caminhar na neve, com um frio polar, sem comida, sem pausa, por sete dias e sete noites, em direção a Mauthausen, Buchenwald e Dachau: são centenas de quilômetros, e deviam ser percorridos em estradas congestionadas por soldados em debandada, civis em fuga e colunas militares em marcha. (LEVI, 2015, p.99)
69 Abreviatura de Krankenbau - a enfermaria do campo (Buna-Monowitz), onde Levi se encontrava (LEVI, 2010a, p.46).
108
Setenta quilômetros de corrida, com a neve caindo, o vento gelado.
Uma aldeia e alguns fogem da marcha. Hora de parar: “Como se fossem um só
homem, nossos corpos desabaram na neve” (WIESEL, 2006, p.93). Não,
dormir era proibido. Dormir em meio àquele gelo significava a morte para
aqueles corpos exaustos.
À minha volta tudo parecia dançar uma dança de morte. Era de dar vertigem. Estava andando em um cemitério. Entre os corpos endurecidos, troncos de madeira. Nem um grito de desespero, nem um lamento, apenas uma agonia em massa, silenciosa. Ninguém pedia ajuda a ninguém. Morria-se porque era preciso morrer . (WIESEL, 2006, p.94-5)
Era preciso que um vigiasse o sono do outro. “- Acorde”: “Acordou
sobressaltado. Sentou-se e olhou em torno de si, perdido, estupefato, um olhar
de órfão (...) E sorriu” (idem, p.96). Como se pode sorrir em meio àquele
cenário? “Sempre me lembrarei daquele sorriso. De que mundo vinha ele?”
(idem, p.96). De um mundo onde a realidade não atingia?
A apatia como principal sintoma da segunda fase é um mecanismo necessário de autoproteção da psique. Reduz-se a percepção da realidade. Toda a atenção e portanto também os sentimentos se concentram em torno de um único objetivo: pura e simplesmente salvar a vida – a própria e a do outro! Assim se podia ouvir repetidamente os companheiros dizerem, quando voltavam do local de trabalho ao campo, à noitinha, numa exclamação bem típica: “Então, passou mais um dia!”. (FRANKL, 2008, p.44)
O sorriso do pai de Wiesel seria uma alegre constatação de ainda estar
vivo, diante do filho?
Nós éramos os mestres da natureza, os mestres do mundo. Tínhamos esquecido tudo, a morte, o cansaço, as necessidades naturais. Mais fortes que o frio e a fome, mais fortes que os tiros e o desejo de morrer, condenados e vagabundos, simples números, éramos os únicos homens da face da terra. (WIESEL, 2006, p.93)
O sorriso de quem é o mestre do mundo, que superou a força da morte
- como aquele que grita na praça de chamada , como aquele que canta a sua 70
70 Ainda uma referência a Semprún.
109
superioridade diante dos homens . “Por fim, a estrela da manhã apareceu no 71
céu cinza. Uma vaga claridade começava a apontar no horizonte. Nós não
aguentávamos mais, estávamos sem forças, sem ilusões” (WIESEL, 2006,
p.93).
Primo Levi dirá após sua experiência em Auschwitz: “os homens só
muito raramente são capazes de raciocinar, quando o que está em jogo é o
próprio destino” (2010a, p.35). Não pensará no outro quando seu próprio
estômago estiver vazio, como na disputa pela migalha de pão sob o frio no
vagão, descrita por Elie Wiesel (2006, p.106).
Mas, para Frankl, tudo isso não passa de uma couraça para a alma dos
prisioneiros (2008, p.38). Quando aquele que há pouco estava diante de si e
depois jaz ali a alguns metros, inerte. Frankl toma sopa e apenas joga um olhar
desatento (idem, p.38). As pessoas não apenas não conseguem raciocinar,
como também não querem ver:
Caiu uma noite, uma noite tal que se percebeu que olhos humanos não a poderiam presenciar e sobreviver. Todos o sentiram: nenhum dos guardas, nem italianos, nem alemães, teve a coragem de ir ver o que é que faziam os homens quando sabiam que iam morrer. (LEVI, 2010a, p.13)
Olhar a face da morte é tão cinzento quanto olhar a face do mal. A
censura à prática danosa existe, mas ela é tão genuína quanto algo a que se
acostuma e que se aprende a desejar . A instituição de novos códigos produz 72
novos comportamentos. Códigos que, enquanto ainda não aceitos
generalizadamente, produzem interpretações diversas, até que se adequem a
um consenso. O Lager é um exemplo de códigos impostos, que se introduzem
nos corpos e os modifica – dando espaço para regras surgidas de um novo
contexto. Diferentemente dos que surgem da vida cotidiana, a mudança
71 É uma referência indireta ao texto de Pierre Clastres “A sociedade contra o Estado”, especificamente o capítulo “O arco e o cesto” que fala sobre o canto. Sobre isso existe um texto “De que falam os índios?” de Heléne Clastres, nos Cadernos de Campo, São Paulo, n. 25, 2016. 72 Aqui alguns poderiam fazer um link com a violência simbólica de que fala Pierre Bourdieu. Não quis enveredar por essa discussão, mas tenho essa ideia em mente.
110
causada por esses pode ser mais profunda, e mesmo duradoura, ainda que a
vida ‘volte ao normal’.
Em Auschwitz esse consenso espalhou-se como um rastilho de
pólvora. A chegada ao Lager , gerava uma reação de estranhamento. Ao
conhecer minimamente o código, o Häftling esperto que queria defender sua
vida, adequava-se rapidamente.
Capturado, Levi acredita que é melhor ser arrolado como prisioneiro
judeu do que como prisioneiro político: “Naquele tempo, ainda ninguém me
ensinara a doutrina que mais tarde havia de aprender rapidamente no Lager ”
(2010a, p.11). Entretanto, a dinâmica do Lager é agressiva e dependia, em
grande parte, do conhecimento dos significados dos números, não muito fáceis
de compreender.
Poucos prisioneiros tinham acesso ao real significado deles (além da
questão da quantidade de presos recebidos pelo campo). “Aos velhos do
campo o número diz tudo: a época de entrada no campo, o comboio de que
fazia parte, e, por consequência, a nacionalidade” (LEVI, 2010a, p.27), algo
que, só sendo prisioneiro antigo no campo pra ser capaz de entender. Haja
vista que a maioria resistia poucos meses e a grande maioria, apenas algumas
semanas. Ou seja, pouco mais de um mês. Ser antigo significava ultrapassar
essa linha: “Cada um tratará com respeito os números de 30.000 a 80.000: já
só restam algumas centenas, e indicam os poucos sobreviventes dos guetos
polacos” (p.27). E, igualmente, números altos indicavam aqueles sobre os
quais se podiam tirar vantagens.
Os números também indicavam a forma de relacionamento entre os
prisioneiros: “Convém abrir bem os olhos quando se entra em relações
comerciais com um 116.000 ou um 117.000: estão reduzidos a cerca de
quarenta, mas trata-se dos gregos de Salonica, é preciso não se deixar
enganar” (p.27).
“ Häftling : aprendi que sou um Häftling . O meu nome é 174.517; fomos
batizados, guardaremos até à morte a marca tatuada no braço esquerdo.”
111
(LEVI, 2010a, p.26). O ‘meu nome’. Não é apenas um número, como em um
documento qualquer. É o nome de batismo tatuado no braço.
Não faria isso parte do processo de estranhamento das vítimas? Roney
Cytrynowicz observa: “Diante do processo de dissimulação e negação da
morte, as vítimas sofriam um processo violento de estranhamento” (2003,
p.127). Em De Deus que vem à Ideia , Lévinas fala da retórica, que “corrói a
substância da palavra” (2002, p.25), essa, muito bem manipulada pelos
nazistas – deslocando significados, provocando esse estranhamento das
vítimas, transformando pessoas em homens-peças.
Em A trégua (2010b), Levi relatando o início dos trabalhos do exército
vermelho no campo de Buna, fala que todos os prisioneiros foram colocados
para tomar banho, como medida de higienização, realizado pelas enfermeiras.
Havia, entretanto, um homem que estava tão debilitado que elas tiveram de
banhá-lo. Cada vez que tentavam colocá-lo em posição correta, esticado, ele
se encolhia novamente:
Charles e eu, nus e com frio, assistíamos à cena com horror. Enquanto um dos braços era esticado, viu-se por um instante o número tatuado – era um 200.000, um dos Vosges. “Bom dieu, c’ est um français!”, fez Charles, e voltou-se, em silêncio, para o muro. (LEVI, 2010b, p.17-8)
Uma alteridade que antes era irreconhecível: “Olhávamo-nos uns aos
outros sem uma palavra. Tudo era incompreensível e louco, mas uma coisa
tínhamos percebido: era esta a metamorfose que nos esperava. Amanhã nós
também seríamos como eles” (p.19).
Primo Levi refere-se a uma igualdade anômala. Não havia traços de
subjetividade aparente nos homens-peças. Uma expectativa fantasmagórica de
igualdade, da que fala Arendt, que anula o Rosto, que subtrai à pessoa a sua
singularidade.
Quando acabamos, cada um ficou no seu cantinho, e não ousávamos levantar o olhar uns para os outros. Não há espelhos para nos vermos, mas o nosso aspecto está diante de nós, refletido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos. Estamos transformados nos fantasmas que antevimos ontem à noite. (LEVI, 2010a, p.25)
112
A noite anterior, a da chegada do seu comboio à Auschwitz ele observa
que havia um grupo de homens que se movimentava lentamente, em sincronia,
mas que se assemelhavam a fantasmas. Rostos sem alma. Cascas de
homens. São algumas das expressões comumente utilizadas para descrever
os muselman . Seriam esses os homens sem rostos?
Os agressores, segundo Lévinas, também se caracterizam por serem
homens sem rostos. O Rosto para Lévinas nada tem a ver com empatia ou
identificação de um igual. Ao contrário, é o reconhecimento de um diferente,
mas um diferente que é inteiro. É aqui que reside a diferença entre o sem
Rosto que é um fantasma e um sem Rosto que é um agressor (no caso do
Lager , não apenas os soldados). Como o caso do Häftling 200.000: seu
número indicava quem era . Onde? No Lager , onde todos eram números.
Faz-se silêncio, pensamos nesse projeto impensável. Bebemos com goles vagarosos o álcool do retorno à vida. - Se o estou entendendo bem - diz Yves -. eles nunca saberão, os que não estiveram aqui! - Nunca realmente… Restarão os livros. Os romances, de preferência. Os relatos literários, ao menos, que ultrapassarão o simples testemunho, que darão para imaginar, ainda que não dêem pra ver… Haverá talvez uma literatura dos campos… Estou falando de uma literatura, e não apenas de reportagens… (SEMPRÚN, 1994, p.128)
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proibição do uso de armas químicas e biológicas não impediu a
provocação feita por Saddam Hussein em 1987. Eric Hobsbawm comenta em
“Sobre História” que houve pouco protesto e indignação dos governos na
época para tamanho perigo (2013, p.363). Por quê? “Em parte, porque fazia
muito tempo que a rejeição absoluta de tais armas desumanas fora
silenciosamente abandonada” (idem, p.363). O abandono da memória da
loucura e da violência do que foi a Shoah, pode resultar numa reincidência, só
que em maior escala - como também em desdobramentos, sob diversas
facetas. Afinal, não estamos tecnologicamente muito mais desenvolvidos?
As cópias da minha tese foram despachadas nos Correios quatro dias
antes de um incêndio que destruiu 90% da central de distribuição. Os corpos
dos prisioneiros viraram cinzas, nos crematórios de Auschwitz e fogueiras de
Treblinka. As cópias da tese viraram cinzas, mas ideias não podem parar de
queimar. Esse é um fogo que não podemos deixar que pare de queimar. Não
para destruir, mas para que o sinal de fumaça continue a crescer.
E, fazendo minhas as palavras de Hobsbawm: “A questão sobre a qual
desejo me concentrar é a de que até o passado registrado muda à luz da
história subsequente” (HOBSBAWM, “Sobre história”, p. 324). Foi o que percebi
ao longo desses quatro anos de reflexão, leituras e mais leituras. Compreendi
que nascia do meu projeto, muito tímido, a necessidade de falar da literatura da
Shoah de outra forma, diferente do que via nos estudos que encontrei. E, ao ler
um poema de Paul Celan, não tive dúvidas. Eis o poema:
“E força e dor”
e o que me empurrou
impulsionou e sustentou?
Anos de júbilo
bissextos,
114
rumor de pinheirais,
uma vez,
a caça ilícita da convicção
de que isso deve ser
dito de outra forma
que não assim.
Pode-se lembrar das datas e dos acontecimentos políticos daqueles
anos de guerra. Juntar os números e os fatos, construir uma grande narrativa,
apontar o dedo para os culpados e reafirmar aquilo que não deve ser
esquecido. Mas, para que a Shoah seja mais que números e se torne aquilo
que não pode ser esquecido para a maioria das pessoas, precisa ser mais do
que números e fatos de um passado distante que não diz respeito aos alunos
da escola, às mães que criam seus filhos para o mundo ou para si mesmas,
aos pais que saem pela manhã para trabalhar a fim de sustentar suas famílias,
aos governos que se ocupam da administração pública ou de políticas sociais,
das religiões que formam seus fiéis.
Alguém pode ser esfaqueado na porta de uma sinagoga; assassinado
no altar de uma igreja durante uma missa; humilhado publicamente enquanto
trabalha como ambulante nas ruas de um país que não é o seu; ler nos jornais
sobre um foguete chamado Satã, construído em um país que se orgulha de
ameaçar a todos com uma guerra…ou ler sobre os refugiados da Síria, da
Venezuela, do Haiti… fechar o jornal ou desligar a TV e ocupar-se de suas
tarefas cotidianas.
Esquecemos rapidamente os horrores proporcionados por uma
guerra… Perdidos num tempo que corre apressadamente nas obrigações
diárias.
Meu primeiro contato com uma literatura científica mais específica
sobre os relatos dos sobreviventes foi com Márcio Seligmann-Silva. Ele foi o
principal responsável por me apresentar a Walter Benjamin. Tudo culpa dele.
Nunca tinha visto pensamentos semelhantes sobre o conceito de História.
115
Contar uma História não é pintar um quadro compreensível para quem vai ler?
Para ser compreensível, precisa fazer sentido, aproximar e não distanciar.
Como diz Hannah Arendt, “o processo de compreensão é, com toda a
evidência e talvez em primeiro lugar, um processo de autocompreensão” (2008,
p.333).
Iniciei a tese com notícias coletadas de forma esporádica e que, para
mim, estavam relacionadas ao tema da pesquisa direta ou indiretamente.
Quatro anos é um tempo considerável no qual o pesquisador tenta
desesperadamente maturar um trabalho o máximo possível, mesmo sabendo
que isso é algo que ele irá desenvolver ao longo de sua vida. Mas, o processo
de escrita da tese levou quase três anos para fazer parte da minha lógica de
pensamento. E o exercício da introdução foi feito depois da escrita dos
capítulos.
Essa apresentação textual relaciona-se com uma das primeiras leituras
que fiz, ainda para o projeto de pesquisa, sobre a escrita constelar (OTTE;
VOLPE, 2000). Ruminei até perceber que poderia fazer dessa concepção a
minha ferramenta de trabalho. Mas isso não foi pensado inicialmente assim.
Antes, uma leitura sobre o método de discussão talmúdico ( Pilpul ) parecia
extraordinário e tentei absorver um pouco nos textos de Lévinas.
Evidentemente, o Pilpul era impossível para incorporar em tão pouco tempo e
era uma ideia um tanto extravagante. Lembrando de Bachelard e da concepção
de escrita constelar, pareceu-me que, para trabalhar com imagens é
imprescindível tal postura.
Empreendi a construção do meu texto com o propósito de alternar a
imagem do relato, seguida de imagens relacionadas, retomando depois a
imagem inicial. Assim, algumas imagens são basilares, mais do que pontos de
partida. Assumindo que os relatos não possuem encadeamento cronológico,
não sendo possível resgatar uma narrativa, mas sim, imagens de memória -
alternei a reflexão sobre as imagens num movimento de repercussão e
ressonância. As imagens resgatadas dos relatos estavam relacionadas com o
meu tema, mas também eram as que mais me afetavam.
116
“Auschwitz pode ser compreendido como uma das maiores tentativas
de “memoricídio” da história” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.51), de judeus e
outros povos em prol da ideologia nazista. A cultura judaica da memória ecoa
nas vozes que repetiam: “lembre-se, disse ela, “você vê o que fizeram de nós.
Desejo que você sobreviva para poder vingar nosso sangue inocente, que não
conhecerá o repouso” (RAJCHMAN, 2010, p.57), “Estamos todos perdidos”
(idem, p.53), é a resposta que não ousa sair pelos lábios de Rajchman.
Contar, para todos, para os que não estiveram lá, como discutiram os
amigos de Sempŕun - escrever romances, “restarão os livros”. “Para o
sobrevivente, a narração combina memória e esquecimento”
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p.52), esquecer o que volta em forma de manias
ou pesadelos (Vladek, Wiesel, Semprún). Ou, numa frieza como reação aos
estímulos do mundo exterior (Jaffe).
A Europa viu o repatriamento como o resquício de pus numa ferida
recentemente aberta. Os sobreviventes foram rejeitados em suas cidades de
origem: “Houve assassinatos em Kielce, onde os poloneses mataram
sobreviventes no trem no qual voltavam, antes que desembarcassem”
(HERSON, 2009, p.219). Quando chega em sua cidade, Bella Herson escuta
mulheres poloneses dizerem: “olhem, olhem, as judiazinhas voltaram” (p.220) “
Levi e o seu grupo no caminho para o repatriamento, assistiam com “piedade e
tristeza à sua passagem, novo testemunho e novo aspecto da pestilência que
prostrara a Europa” (LEVI, 2010b, p. 120) - ele fala das militares ucranianas,
que deixaram sua pátria para lutar ao lado da Alemanha.
O retorno para o mundo dos vivos era tão pedregoso quanto foi a
jornada de muitos sobreviventes na luta pela vida. Rajchman sobrevivia dia
após dia, lembrando-se de estar perdido. Lili Jaffe lutava com as primas
dividindo o pão, a sopa, protegendo-se mutuamente. Wiesel atravessou sua
jornada com o pai. Levi encontrou companheiros em diversas situações e seu
inseparável amigo Leonardo. Frankl encontrou amizade em um ou outro. Mas,
a volta era dolorosa, a Europa ainda estava infectada pelo ódio e muitos
perderam tudo o que tinham: “Durante a fome no campo e, a luta com o frio e a
117
fome, eu estava animada, animava as outras, mas agora quando afinal
sobrevivi, me dei conta que estávamos sozinhas, sem a nossa casa e família e
só restava chorar” (HERSON, 2009, p. 221).
Teria Herson, ainda no Lager, o olhar fraterno de que falou Semprún
(1994, p.25)? A Hatikva cantada por ela era uma fagulha da sua liberdade, 73
exalando para todas as companheiras de bloco e se disseminando a todos os
outros como rastilho de pólvora. Ao se ver, entretanto, liberta, estava sozinha.
Levi atravessou pelo infinito território russo em meio a outros exilado, em busca
de repatriamento, em busca da vida que lhes fora roubada. Tudo o que
encontraram foram restos intercalados por vazios. Sombras. Levi, depois de
saciada a fome do estômago, encontra outra: fome de vida (2010b, p.158).
A filosofia levinasiana possui uma perspectiva de Outro que me causou
um espanto inicial. Como devo ser responsável por Outro sem esperar o
mesmo dele? Sem garantias de retorno? Partir de mim a intencionalidade ética
e não dos outros que me rodeiam? Devo dirigir na autoestrada por mim e pelo
Outro, as regras existem, a norma de conduta existe, escolher ser responsável
não é uma conduta ética? Penso que ética e responsabilidade não estão
desvencilhadas se observarmos desse ponto de vista.
Cheguei à perspectiva de história de Benjamin atraveś de
Seligmann-Silva e Jeanne-Marie Gagnebin. Mas, a Lévinas cheguei por acaso.
Precisava pensar a alteridade e queria uma perspectiva mais filosófica. E lá
estava ele me dizendo que o Outro é o total diferente e que sou responsável
por ele. Depois, o Rosto era o foco, o primeiro encontro com essa
responsabilidade que eu lhe devia.
A essa altura me preocupava a circulação de pessoas entre os países,
de gueto em gueto, de campo em campo. Pensava sobre isso com a ideia de
homo sacer de Giorgio Agamben, mas me preocupava o que nos relatos se
dizia sobre esses encontros. Então, meu foco não era a questão jurídica da
pessoa no meio disso tudo, não que isso não importasse - mas, como essas
73 Significa “Esperança”. Essa música tornou-se o hino nacional do Estado de Israel.
118
pessoas, roubadas, viveram esse momento enquanto pessoas de origem
judaica.
Por isso era importante pensar a concepção judaica sobre o nome e a
alma e que desbancou na questão do misticismo, tendo em vista o relato de
Wiesel e as imagens que emergiram dos relatos. A Cabala entrou como
suporte para a discussão sobre a alma, mas para encontrar o outro fio invisível
que era necessário: a concepção de Redenção, que entra lá atrás, no
pensamento de Benjamin, nas teses sobre a História.
A concepção de que o homem participa da elevação das centelhas
vem da cabala luriânica. No movimento Sabataísta (liderado por Shabatai Tzvi),
que é posterior, prevaleceram as concepções messiânicas e apocalípticas que
enveredaram pelos centros místicos judaicos, contaminando a todos com
elementos que eram considerados estranhos aos primórdios da cabala. Mas o
século XVIII foi a preparação para o Hassidismo que se espalhou pelo mundo
e, a “terminologia de Scholem leva à conclusão de que o hassidismo usou a
linguagem da Cabala luriânica a fim de restaurar o messianismo cabalístico em
seu estado original, pré-luriânico. O messianismo não foi banido, mas
desativado” (BIALE, 2004, p.105); o exemplo mais próximo, parece-me, é o da
cultura popular, que é destituída de sua alma e sentido, atribuindo-lhe um novo
sentido, dentro de uma corrente nova de pensamento . 74
A ideia de redenção se esvaziou das antigas concepções e se tornou
apocalíptica no sentido de que o mundo precisa acabar, mas não sendo
destruído e sim ‘retornado’ ao sentido inicial, mas, qual sentido inicial? O da
criação? Não seria ela uma tentativa de livrar-se, o En Sof das centelhas
caídas, devido ao TzimTzum ? Apocalíptico ou Messiânico, a grande questão
sobra em duas opções: se a responsabilidade do homem é aqui e agora ou, se
é preferível relegar a uma utopia a solução dos problemas do mundo.
A postura de muitos judeus dentro do Lager incomoda: ovelhas levadas
ao matadouro, por que não se rebelaram? Pela sua crença na elevação do
mundo através das ações e da prece? E “prosternavam-se como árvores na
74 Veja o estudo de García Canclini “Culturas Híbridas”.
119
tempestade” (WIESEL, 2006, p.74), não como submissão, mas como judeus
com a responsabilidade na elevação das centelhas divinas. Tornaram-se
homines saceri , mas aqueles que não tiveram suas vidas esvaziadas por
completo, que não tornaram-se muselman , resistiram até o último momento,
com o Shemá Israel nos lábios (RAJCHMAN, 2010, p.58).
“Responsabilidade não se equaciona à culpa” (ASSY, 2015, p.21) e não
se pode falar de uma culpa da Alemanha, mas de uma responsabilidade dos
alemães e todos que viviam na Alemanha e nos países europeus invadidos. A
responsabilidade para com o Outro está interligada à concepção de mal tanto
quanto à ideia de Redenção. E a redenção nada mais que uma recuperação,
um resgate desse momento que não é contado, que foi estilhaçado pela linha
temporal. O Rosto me diz não apenas ‘não matarás’, mas ele diz que há um
infinito sobre o qual não tenho domínio.
A imagem de memória é um elemento desse infinito dentro do próprio
homem. Correndo o risco de ser chamada por judeus de fazer proposições
heréticas, diria que a mente está em constante autocontração, num eterno
TzimTzum e o que daí se produz não é apenas o próprio Ser, mas um ver-se a
si mesmo a partir do Jetztzeit .
Não quis fazer uma análise comparativa dos livros, da forma dos
relatos, quem é mais poético ou mais preciso nas informações - ou, quem
escreveu um romance e quem escreveu um relato, como via uma discussão
similar no livro de Seligmann-Silva (2003). Assumindo que todos são relatos -
onde uns têm mais talento para a escrita que outros: Semprún, Wiesel e Levi
se tornaram escritores; Rajchman, Jaffe e Herson, não. Esta última, tornou-se
professora universitária. Jaffe era dona de casa e comerciante. Sobre
Rajchman, não encontrei registros de suas atividades profissionais (embora
haja a informação de que sua família organizou memorial e existem entrevistas
gravadas com ele) . 75
Lévinas ressalta algo que não poderia ser dito da melhor forma, senão
como nas palavras de Bauman: “Expressões como ‘a santidade da vida
75 Veja o link para a entrevista, publicado no Youtube em 2009, com o próprio Rajchman: https://www.youtube.com/watch?v=LOCP0DXaftM (acessado 9 de janeiro de 2018).
120
humana’ soam tão estranhas num seminário de sociologia como nas salas
assépticas e sem fumaça de um escritório burocrático” (BAUMAN, 1998, p.49).
Era esse o elemento que eu queria trazer para o meu trabalho, mesmo
considerando as consequências críticas. E a leitura de um texto do conde
Tolstói só reforça a importância dessa forma de pensamento:
Pois agora lembre-se: a hora mais importante é agora , e ela é a mais importante porque nela somos senhores de nós mesmos; e o homem mais importante é aquele com quem estamos agora , porque ninguém sabe se ele ainda estará com outra pessoa, e a coisa mais importante é fazer-lhe o bem , porque somente para isso foi dada a vida ao homem. (TOLSTÓI, 2011, p. 250)
E, mais de trinta anos depois do retorno para casa, um sobrevivente
escreveu: “Mas, quem estava disponível, ao nosso redor, naqueles tempos do
regresso, para uma escuta incansável e mortal das vozes da morte?”
(SEMPRÚN, 1995, p.156). Quem ainda está disponível?
Eis a questão.
Nas Teses sobre o conceito de História, há uma relação com conceitos
judaicos. Benjamin não era apenas teólogo, ou apenas filósofo. Era as duas
coisas, diz Gershom Scholem. Com sua mente peculiar e capciosa, percebeu
na História mais do que uma linha reta que atropela a todos com seu rolo
compressor, moldando turbilhões numa usina de energia que perpetua sua
vitimização do Tempo. O Anjo da História não é apenas uma imagem que cria
desconforto, é a denúncia da vitimização do ser humano. É a destruição do
homem que acontece a cada despertar, após o café da manhã.
Mas, o que a Redenção nos moldes judaicos tem a ver com o conceito
de História? O misticismo judaico, através das idéias da Cabala de Isaac Lúria,
traz a ideia de Redenção atrelada à todo indivíduo, que deve participar na
elevação das centelhas divinas. O empenho no seu desenvolvimento pessoal
através da prece, das boas ações, do cumprimento das mitsvot (mandamentos)
fazem parte do processo de redenção, que acontecerá quando todas as almas
121
completarem sua missão no mundo e então virá a alma do Mashiach (Messias)
e completará a restauração.
Todas as almas são parte do homem primordial, a Criação é parte de
um todo, originou-se através do Tzimtzum (o movimento que o próprio Deus faz
sobre si mesmo), deixando assim um espaço onde surgiu o mundo, e que,
impregnado pela dimensão de julgamento (refiro-me aqui à sefirá Guevurá ),
possui as centelhas caídas, das quais o homem participa como elemento
importante na reorganização do mundo. Segundo Buber, em “As histórias do
rabi Nakhman”, “quando todas as viagens forem completadas, somente então,
tempo se estilhaçará e o Reino de Deus terá início. Por seu intermédio, a
elevação do mundo para junto de Deus terá lugar” (2000, p.32).
A Redenção é aqui um ponto fundamental, especialmente tendo em
mente o que a idéia de Metempsicose - já presente na Cabala anterior a Isaac
Luria, mas desenvolvida após. E em que consiste? Existem dois tipos: Guilgul
(revolução ou errância) e Ibur (superabundância ou impregnação). O que é
importante aqui é a chamada Guilgul . Diz Buber:
O Zohar e a Cabala posterior desenvolveram o ensinamento que recebeu sua forma final de Itzkhak Lúria. De acordo com sua lição, há duas formas de metempsicose: a revolução ou errância, guilgul , e a superabundância ou impregnação, ibur . Guilgul é a penetração em um homem, no momento de sua concepção ou nascimento, de uma alma que está na viagem. Mas um homem que está dotado de alma pode também, em determinado momento de sua vida, receber uma ou mais almas que se unem a sua se forem aparentadas a ela, isto é, se surgiram da mesma radiação do homem primordial. A alma de um morto junta-se a de um vivente a fim de poder completar um trabalho inacabado que ele teve de abandonar quando morreu. Um espírito mais alto, mais desprendido, desde em completa plenitude de luz ou em raios individuais sobre aquele ser imperfeito para morar com ele e ajudá-lo a completar-se. Ou duas almas incompletas unem-se a fim de suplementar e purificar uma à outra. Se fraqueza e desamparo sobrevêm a uma das almas, então a outra se torna sua mãe, carrega-a em seu ventre e alimenta-a com seu próprio ser. Por todos esses meios as almas são purificadas da escuridão primal e o mundo redimido da confusão original. Somente quando isto é feito, quando todas as viagens forem completadas, somente então o
122
tempo se estilhaçará e o Reino de Deus terá início. (2000, p.31-2)
Para Benjamin, o resgate do Tempo corresponde à esse movimento de
em prol da elevação das centelhas. Fazemos justiça àqueles que foram
massacrados pelo rolo compressor da História restaurando a memória. Sair do
Tempo cronológico, o Tempo dos relógios e entrar no Tempo dos calendários.
Com a espiral do Tempo, fazemos justiça a um passado que não está fora do
presente, mas que foi silenciado por uma construção perversa, manipuladora.
Na visão linear da História, o acúmulo do Tempo cresce em progressão
geométrica, entulhando às costas do Anjo da História, que se assusta com os
destroços produzidos pelos ventos do ‘progresso’.
Os relatos são espirais resgatados com a leitura, com a dialética do
presente. Buscamos uma “ciência que renuncia ao caráter museológico”, pois
apenas esta “está apta para colocar o real no lugar da ilusão” (BENJAMIN,
2016, p.27). Essa dialética se constrói num movimento de oscilação entre
subjetivação e objetivação. Movimento feito pelo pesquisador que inquire o
passado, que é o seu, e não de um outro que ele ignora e com o qual não se
relaciona. A Shoah não é o passado da Europa. É um passado que diz respeito
a todos nós. Nela o humano esteve face a face consigo mesmo.
“Mas a fonte da juventude da História é alimentada pelo Lete. Nada
renova tanto quanto o esquecimento” (BENJAMIN, 2016, p.27). A genialidade
de Benjamin é um grande fenômeno que não podemos ignorar. O
esquecimento é produzido para que a história tenha a face jovem e fresca e
possamos ficar aparvalhados diante de um mal que não podemos
compreender.
Um mal? Teria o mal a cara de um monstro com chifres, rabo e
carregando um tridente? Não se trata aqui do lúcifer cristão e nem dos
diabinhos do medievo. “O que chamamos mal não é essência, mas carência”
(BUBER, 2000, p.34), ausência de consciência, ausência de julgamento.
123
Ausência. A banalidade do mal não é outra coisa senão ausência. Falta de
reconhecimento do Rosto. Ausência. Inferno. Immergleichen .
Presos no vazio.
“Tirar-nos-ão também o nome: se quisermos conservá-lo, teremos de
encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome,
algo de nós, de nós tal como éramos, ainda sobreviva” (LEVI,2010a, p.25). De
onde vinha tal preocupação com manter o que há por trás do nome. Nachman
Falbel, em Kidush HaShem: crônicas hebraicas sobre as cruzadas (2001), fala
de um livro que as comunidades possuíam, chamado Memorbücher , livro da
memória - onde anotavam os nomes dos entes queridos falecidos. Os nomes
eram lidos nas sinagogas e seguidos da prece chamada Kadish. Diz-se o
Kadish para os parentes mortos até mais de dez meses. Após isso, a dor
diminui e a vida segue adiante. No Lager diz-se o Kadish para os mortos, não
para os vivos:
Exaltado e santificado seja o Seu grande Nome (Amen), no mundo que Ele criou por Sua vontade. Queira Ele estabelecer o Seu Reino e determinar o ressurgimento da Sua redenção e apressar o advento do Seu Ungido (Amen), no decurso da vossa vida, nos vossos dias e no decurso da vida de toda Casa de Israel, prontamente e em tempo próximo; e dizei Amen. Seja o Seu grande Nome bendito eternamente e para todo o sempre; Seja bendito, louvado, glorificado, exaltado, engrandecido, honrado, elevado e excelentemente adorado o Nome do Sagrado, bendito seja Ele (Amen), acima de todas as bênçãos, hinos, louvores e consolações que possam ser proferidos no mundo; e dizei Amen. Que haja paz abundante emanada do céu, e vida boa para nós e para todo o povo de Israel; e dizei Amen. Aquele que firma a paz nas alturas, com Sua misericórdia, conceda a paz sobre nós e sobre todo o Seu povo Israel; e dizei Amen.
O que é uma prece, numa concepção judaica? Cito Buber:
O homem encontra Deus em todos os caminhos, e todos os caminhos estão repletos de unificação. Porém, o mais puro e perfeito é o caminho da prece. Quando um homem reza na chama de seu ser, Deus, Ele mesmo, fala a palavra mais profunda em seu peito. Este é o fato; o mundo externo é
124
apenas seu traje. “Como a fumaça sobe da madeira queimada, mas as partes mais pesadas apegam-se ao solo e transformam-se em cinzas, assim da prece somente a vontade e o fervor sobem, porém as palavras proferidas esfacelam-se em cinzas”. Quanto mais elevado o fervor, mais poderosa é a força da intenção - kavaná - e tanto mais profunda a transformação. (BUBER, 2000, p. 35).
Mas, no Lager , no campo de concentração, os vivos entram recitando o
Kadish para si mesmos, pois haverá quem o faça depois de mortos? Quem
lembrará se os parentes foram juntos para os trens que os levaram à Treblinka,
Auschwitz, Majdanek, Sobibor? Quem lembrará de alguém que se tornou um
número? Quem lembrará dos fantasmas, fantoches esfarrapados arrastando
sandálias de madeira, usando bonés ridículos. Sombras. Homens e mulheres
de vento.
A experimentação das palavras, das vozes do Lager só pode ser
sentida subjetivamente. Não se transmite conhecimento como não se transmite
experiência. Esta tese é uma tentativa de, como diz o poeta, dizer de outra
maneira aquilo que ecoa da literatura da Shoah . No pensamento de Walter 76
Benjamin, a experiência ( Erfahrung ) possui um tempo diferente da vivência
( Erlebnis) , é um tempo dentro de outro, mas que funciona de maneira
descolada um do outro. Para ele, a viagem é um tempo de experiência. E não
seria o tempo do Lager um tempo descolado? Um tempo entremeios da
vivência? Não fizeram os sobreviventes uma viagem da morte? “A morte é uma
viagem e a viagem é uma morte” (BACHELARD, 1989, p. 77). Então vejo um
Cronos como o sentido da vivência e a experiência como sentido do Instante ,
um instante desperto? Possivelmente.
Faço minhas as palavras de Bachelard: “Pouco a pouco sinto-me autor
do que vejo sozinho, do que vejo do meu ponto de vista” (1989, p.52). Pois, é
certo que a viagem pelo universo dos campos de concentração só pode ser
feita sozinho. Não por ser o Lager , não apenas por se tratar de literatura, mas
porque toda a experiência ( Erfahrung ) é individual, é subjetiva.
76 Refiro-me mais uma vez ao poema de Paul Celan.
125
Walter Benjamin apresenta uma ideia de Redenção relacionada ao
conceito de História. Tive uma educação cristã e a ideia de Redenção me
interessa. Gershom Scholem foi o homem que abriu para mim um caminho,
pois a noção que Benjamin se utiliza não é cristã e sim, judaica. O judaísmo
era para onde eu teria que me virar e para o qual existiam vários temores, pois
não se trata de algo simples. É um terreno pantanoso, onde é preciso andar
devagar e com muita atenção. Arrisquei apontar alguns aspectos relacionados
à essa questão, mas sem a pretensão de uma profundidade, que não possuo.
Selingmann-Silva apontou para Walter Benjamin. Os conceitos judaicos
e Scholem mostrou-me um caminho de pedras no terreno íngreme do
misticismo judaico. Mas, a questão do mal que foi encontrada aí, ecoa nos
prédios vazios de Auschwitz, nos lamentos do vento.
Após a leitura de Eichmann em Jerusalém (1999), a discussão de
Arendt sobre a banalidade do mal apontou para o que veio após, nas palavras
de Buber: “o mal para nós não é essência, mas carência”. O mal que ela
vislumbrou ali, no julgamento de um oficial nazista, não tem raízes - é um fungo
que se espalha na humanidade. Pode-se refletir no absurdo que é não poder
entender, por falta de coerência, que “desafia o pensamento (...) porque o
pensamento procura alcançar alguma profundidade, ir às raízes, e, no
momento em que lida com o mal ele se frustra porque não há nada. Isto é
banalidade. Apenas o bem tem profundidade e pode ser radical” (2016, p. 763).
O mal pode ser o não-reconhecimento do Outro. A constituição de
listas de partida, listas de chegada. Checagem constante de listas infindáveis.
O mal pode respirar entre as mesas de escritórios. Burocracia pode ser um dos
seus apelidos…
O mal pode urrar nas palavras distorcidas. Pode chamar um
Sapiens-demens de cão e um Canis Lupus Familiaris de homem.
O mal atende à ordem Krematorium ausmachen , mas não ouve o choro
de crianças na câmara de gás.
126
No turbilhão de imagens de memória, aqui e ali, luziam imagens que
apontavam para aquilo que existia “por trás do nome” - por trás de Levi,
Rajchman, Wiesel, Jaffe, Frankl, Semprún, Herson. Vislumbrei o
desmoronamento de Szpilman, a resistência de Korczak.
Nos fantasmas de pijamas às riscas e bonés ridículos, Primo Levi
identificou a ameaça e caiu nas sombras.Aprendeu Que sair do mundo dos
vivos é silencioso como num aquário. Aprendeu que seu nome era 174.517.
Aprendeu que os gregos são perspicazes no comércio. Aprendeu que os
homens não conseguem olhar o que fazem os homens quando sabem que vão
morrer. Aprendeu que os homens podem estar debaixo do lusco-fusco da
violência, e ainda assim podem amanhecer como homens.
Chil Rajchman compreendeu que não se pode impedir que alguém
coma seu último pedaço de pão, quando o porvir é incerto. Aprendeu que pode
suportar a dor da consciência. Viu que o sangue queima como combustível.
Chocou-se com aqueles que pensavam que eram os donos do mundo, não
consideravam os outros como seres humanos - porque os considerariam
iguais? Aprendeu que um ano sem ver uma criança viva é motivo para abraçar
demoradamente ao encontrar uma.
Jorge Semprun compreendeu que a poesia é uma arma poderosa
contra a loucura da falta de sentido do que podemos encontrar ao redor.
Entendeu que grandes pensadores como Halbwachs podem morrer - E alguém
tentou apagar-lhe o nome! Aprendeu que pode haver olhares fraternos no
compartilhamento do sofrimento. Sentiu que um grito de sofrimento pode ser
dado no silêncio. Compreendeu que o canto dos pássaros pode ser o anúncio
da vida que nasce no fundo da alma.
Lili Jaffe sentiu que podia suportar, que não tem medo do sofrimento,
mesmo quando as fogueiras queimam e trazem a imagem da morte e que,
como mulher era mais forte do que pensava. Compreendeu que as pessoas
querem ser boas, mesmo não sabendo como fazer. Aprendeu que poderia
127
esperar ter uma família, mesmo quando a volta para a casa e encontra o vazio,
depois do mundo preenchido pelo sofrimento.
Viktor Frankl aprendeu que o ser humano a tudo se habitua e que por
mais que se importe com o outro, ainda poderá tomar sua sopa, vendo o corpo
do homem que conversava com ele minutos antes - a morte chega para todos.
Compreendeu como todo mundo se considera alguém, e choca-se ao ser
tratado por outros como um ninguém. Aprendeu que aqueles que morrem de
fome e só falam em comida quando conseguem pensar, mas ainda são
capazes de fazer jejum para proteger os companheiros.
Bella Herson sentiu que se pode perder até mesmo a fé que aprendeu
com os pais. Aprendeu que, por mais que um garoto seja apenas um garoto
que deseja um dicionário, ele em algum momento será vítima de violência.
Aprendeu que não vai ficar chocada ao roubar para ajudar os outros, pois não
pode comer enquanto outros passam fome. Compreendeu que um soldado
alemão não é mau quanto pensava. Aprendeu que estar com as pessoas que
ama te ajuda a sobreviver.
Janusz Korczak sabia que viver para os outros pode ser muito mais do
que viver. E morrer com esses outros faz parte daquilo que se acredita.
Wladislaw Szpilman sabia que a música era tudo que tinha e vivia dela mesmo
enquanto o mundo morria ao seu redor. Assim como Juliek, que executou no
violino as tão amadas notas escritas por Beethoven, no escuro de um galpão
lotado de corpos esfarrapados. E eu? Compreendi que o mundo é mais cinza
do que parece e a vida mais colorida do que promete. É como diz o poeta: “E
que o fim e o princípio sempre estiveram lá/Antes do princípio e depois do
fim./E tudo é sempre agora” (ELIOT, 2014, p.218).
“Tudo é fato para quem já foi tatuado?” Pergunta-se a filha de Lili Jaffe.
Prazer, meu nome é 94002091010.
128
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IMAGEM 3 – Cartaz da Marcha da Vida Regional, na página da Federação Israelita de São Paulo no Facebook.