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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL UFRGS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS IFCH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA PPGH PROJETO DE MESTRADO EXPECTATIVAS ENTORNO DA ESCOLA DE APRENDIZES MARINHEIRO DE SANTA CATARINA (1880/1895) THIAGO DE OLIVEIRA AGUIAR LINHA DE PESQUISA: RELAÇÕES SOCIAIS DE DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA NOVEMBRO 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH

PROJETO DE MESTRADO

EXPECTATIVAS ENTORNO DA ESCOLA DE APRENDIZES MARINHEIRO DE

SANTA CATARINA (1880/1895)

THIAGO DE OLIVEIRA AGUIAR

LINHA DE PESQUISA: RELAÇÕES SOCIAIS DE DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA

NOVEMBRO – 2014

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PROBLEMA DE PESQUISA E JUSTIFICATIVA

No dia 21 de dezembro de 1885, apresentou-se na Escola de Aprendizes

Marinheiro, o menor Angelo, trazido por sua mãe, Joanna Maria Toledo. Assim que

apresentado, a instituição solicitou os exames de saúde e, no dia seguinte se constatou a

aptidão do menor para servir. Além de sua aprovação física confirmada por inspeção,

100 mil réis foram concedidos como forma de recompensa à mãe do menor, no entanto,

a mãe abriria mão da quantia em favor da formação de uma caixa de pecúlio para o

próprio filho. Outros registros de menores voluntários podem ser observados em ofícios

expedidos pela Escola de Aprendizes Marinheiro, para o presidente da província de

Santa Catarina na década de 1880, contudo, não somente pais levavam menores para

prestarem serviço à Armada, mas também juízes de órfãos, tutores e tutoras, e os

próprios menores que procuravam a instituição sem algum tipo de vínculo tutelar.

Dado o fenômeno1, o alistamento de alguns jovens de forma voluntária à Escola

de Aprendizes Marinheiro, quais os elementos que podem ajudar a compreender a

essência desse mesmo fenômeno? Para dar início a essa investigação, se propõe pensar

as expectativas criadas em relação a essa instituição nas últimas décadas do Império e,

como essas mesmas expectativas podem ter influenciado na articulação de táticas por

parte da população desterrense. Com a intenção de responder essa questão, se requer

inicialmente a averiguação dos projetos institucionais, tanto da Marinha do Brasil, como

dos governantes da província de Santa Catarina na segunda metade do século XIX.

Para a maturação da hipótese lançada, situa-se uma leitura a priori em relação ao

papel da Escola de Aprendizes Marinheiro em seu tempo e espaço e, posteriormente,

elucubra-se sobre algumas visões articuladas em relação à Escola por algumas

autoridades daquele contexto da segunda metade do século XIX. A essas visões em

1 Segundo Karel Kosik, o cotidiano dos seres humanos é marcado por uma série de fenômenos regulares,

imediatos e evidentes. Esse cotidiano constitui aquilo que o autor chama de pseudoconcreticidade, ou

seja, uma série de elementos identificáveis, porém, pouco aprofundados ou conhecidos somente em sua

superficialidade. Para ter um conhecimento mais apropriado sobre esse ambiente e os fenômenos que nele

ocorrem, o autor propõe a descoberta da essência desses fenômenos, essência que se encontra em uma

relação dialética com o próprio fenômeno. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e

Terra, 1976.

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relação à Escola, por uma bibliografia já produzida, são importantes para evidenciar os

projetos em torno da EAMSC2, por parte de autoridades políticas e militares.

O decreto nº 2.003, de 24 de outubro de 1857 criava a Escola de Aprendizes

Marinheiro de Santa Catarina. O surgimento dessa instituição, assim como, uma série de

outras Companhias de Aprendizes Marinheiros a partir da década de 1840, visou o

reaparelhamento das forças navais brasileiras, tanto no que concerne ao aumento de seu

pessoal, como de novas políticas institucionais voltadas para aspectos estruturais e

tecnológicos, chegando ao número de 17, segundo o que consta nos Relatórios

Ministeriais da Marinha dos anos de 1880/18813.

No contexto oitocentista, a escola estava inserida numa sociedade que se

articulava principalmente através das relações de exportação e importação de

mercadorias em seu Porto4. Comércio, existente por este espaço portuário e urbano, foi

marcado pela atuação de diversos sujeitos: homens e mulheres de origens africanas

(sujeitos escravizados, libertos e livres), uma elite formada por comerciantes,

funcionários civis e militares. Essa cidade Portuária marcada pela presença de sujeitos

diaspóricos, sofreu também os impactos da segunda metade do século XIX com os

processos de modernização, pautados pela remodelação e delimitação entre centro e

periferia, a higienização e ordenamento dos espaços públicos. É nesta conjuntura da

modernização que se consolida a EAMSC.

Se os planos de urbanização e modernização visavam tornar a cidade um lugar

mais salubre e ordeiro, de fato essas agendas deveriam focar nos sujeitos considerados

pelas autoridades da época desajustados em meio a este projeto: vadios, prostitutas e

crianças abandonadas. Neste último caso, a Casa dos Expostos5 já desempenhava na

primeira metade do século XIX, o papel de recolher os recém-nascidos. A EAMSC

surge em um contexto posterior, no entanto, o estado enxergaria nessa instituição a

2 Sobre a trajetória Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina, ver obra de Oswaldo Rodrigues

Cabral, Nossa Senhora do Desterro. Vol. 2, editora Lunardelli, 1979. (Pag. 334). 3 Os Arquivos Ministeriais variavam desde questões econômicas, estratégias de expansão estrutural, até

planos de crescimento do contingente da força naval. 4 Sobre Desterro, suas relações comerciais e sociais, ler MORTARI, Claudia e AMORIM, Fábio. Tecendo

vínculos e construindo vidas na Diáspora. Desterro/Florianópolis 1850/1880. Tal discussão encontra-se

na obra Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora. Itajaí: Editora Casa Aberta, 2014. 5 Sobre a institucionalização do abandono dos recém-nascidos em Desterro, ler a obra de Henrique

Pereira Oliveira, intitulada Os filhos da falha – Assistência aos expostos e remodelação das condutas em

Desterro (1828-1887) – Dissertação – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1990.

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possibilidade de disciplinarização e ordenamento tão bem quisto por essa ideia de

modernização6, visão que perduraria mesmo após o fim do Império. Mas, desde a

década de 1880, o poder provincial buscava atender a uma das demandas da Armada em

relação à Escola no sentido de refutar a ideia desta como um lugar de correção, ainda

que seus pilares fossem baseados na hierarquia e disciplina.

Para tal evidenciação de uma visão por parte das autoridades daquele contexto,

Velôr Pereira Carpes da Silva buscou explicitar através de documentos referentes às

sessões da Assembleia Legislativa Provincial de Santa Catarina, as dificuldades da

instituição em levantar voluntários para a Escola:

Convencido, também, dessa necessidade, esta

Presidencia há recommendado aos Juizes de Orphãos a

remessa de menores nas condições da lei para serem

alistados, e ainda em 23 do mez findo dirigi, uma

circular neste sentido áquellas autoridades.

Infelizmente, porém, poucos são os menores que têm

sido enviados para serem alli admitidos, continuando

assim com grandes claros a dita companhia7.

Velôr Pereira identificou determinada cobrança por parte do presidente de

província em relação às autoridades públicas, no que concerne um maior empenho no

recolhimento de jovens para servir à EAMSC. A visibilidade dessa pressão em

reordenar os espaços públicos, pode (ou não) ser reforçada pela análise da estrutura dos

relatórios de província dos presidentes na segunda metade do século XIX. Eis alguns

tópicos frequentes nestas documentações: tranquilidade pública, instrução pública, culto

público, saúde e socorros públicos, cadeias e casas de prisão, defesa e segurança

pública, estatística criminal e civil, mapa de movimento da população por nascimento,

óbitos e condições, obras públicas, iluminação da capital, etc. Ou seja, esses tópicos

revelam toda uma agenda voltada para organização e higienização dos espaços de

6 Sobre os processos de modernização que ocorreram no final do século XIX Desterro, depois

Florianópolis, consultar a obra do historiador Hermetes Reis de Araújo intitulada, A invenção do litoral:

reformas urbanas e reajustamento social em Florianópolis na primeira república. Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo. 1989. Pag. 90-94. 7 Discurso de Antônio Gonçalves Chaves, abriu a 1ª sessão da Assembleia Legislativa Provincial de Santa

Catarina em 6 de outubro de 1882 – p. 27 (APESC). Análise de excerto a partir da dissertação de Vêlor

Pereira Carpes da Silva.

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convivência, para o letramento de uma parcela restrita da população, e o afastamento de

elementos que destoavam das reformas empreendidas.

Os relatórios dos presidentes de província podem sugerir algumas demandas das

organizações administrativas da província de Santa Catarina, no entanto, algumas

questões devem ser destacadas. A primeira delas diz respeito ao tópico específico que

começaria a fazer parte do relatório em relação à EAMSC. Esse tópico só pode ser

observado a partir do relatório do presidente Carlos Augusto Ferraz em 1869, ou seja,

houve um hiato de 11 anos para que o documento oficial da província pudesse abrir

espaço à instituição de ensino militar. Posteriormente, Velôr Carpes indicou que na

década de 1880, segundo o relatório do presidente Theodoreto Carlos de Faria Souto, a

escola apresentava um duplo caráter, “uma instituição de caridade e um viveiro

excelente para nossa armada”8. Se de fato o presidente da província afinou seu relatório

com o objetivo de sensibilizar seus pares políticos e os homens que compõem a

estrutura do estado, um ponto importante no que se refere a esse projeto modernizador,

diz respeito aos discursos que estavam dentro de uma mesma agenda, mas que eram

projetados de maneiras diferentes, ainda que na prática satisfizesse os poderes

hegemônicos daquele contexto.

A fala do presidente Theodoreto Carlos, assim como de seus pares, a priori

evidencia uma maior preocupação com o caráter “caridoso” da EAMSC, já que o

principal objetivo da classe política era limpar suas ruas. Por outro lado, como se

articulava a EAMSC em meio a um projeto de modernização que sugeria um caráter

correcional para si mesma? Até que ponto a alcunha prejudicou seus projetos? Que

outras possibilidades poderia ofertar para tornar-se mais atrativa? Para tentar responder

essas questões, se faz necessário analisar também as práticas do dia-a-dia e aquilo que a

marinha poderia oferecer aos menores aprendizes. A partir da interpretação desses

elementos, se pensa mais uma contribuição para o objetivo central desse projeto.

Segundo o Decreto nº 9.371, de 14 de fevereiro de 1885, o dia-a-dia da Escola

era guiado por duas questões principais: a formação dos aprendizes-marinheiros e a

manutenção e funcionamento da Instituição. No primeiro caso, a formação se dava em

8 Relatório do presidente Theodoreto Carlos de Faria Souto, enviado a Assembleia Legislativa Provincial

de Santa Catarina em 25 de março de 1883, p. 71 – APESC.

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dois grandes módulos: o ensino elementar e profissional9, nos quais se podem elencar

possibilidades para os voluntariados da Escola de Aprendizes: a aspiração social a partir

do letramento, a importância de dominar as práticas de um ofício em tempos de

incertezas em relação à instituição da escravidão e as más condições da tutela, ou

mesmo por questões de sobrevivência, questões articuladas em razão de alguns indícios

na documentação10.

Com a intenção de entender as possíveis expectativas relacionadas à EAMSC,

necessita-se, também, compreender o contexto histórico do Brasil que passava por

acentuadas modificações no âmbito político, econômico e social. Os movimentos que

colaboraram para uma pretensa expectativa em relação à EAMSC, podem ser pensados

em três grandes eixos: um pretenso novo status da carreira militar no final do império,

as influências do abolicionismo e a modernização da Marinha do Brasil.

Em relação ao primeiro ponto, um vulto histórico será importante para a

reelaboração, ou ao menos o germe das reflexões acerca das necessidades de reforma da

Marinha do Brasil, assim como, o seu papel político do dentro do Império: A Guerra do

Paraguai. Se o mesmo evento é considerado pela própria Marinha de Guerra, como o

maior ato de provação guerreira (RMB, Pag. 89, 2006), de fato o dispêndio de

tecnologia e força, e a formulação de uma imagem que posteriormente consolidaria os

patronos da instituição, relegaram ao lugar da invisibilização as reivindicações11

ensaiadas pelo próprio corpo de Imperiais Marinheiros no contexto referido.

Se em um plano as agruras da carreira militar evidenciavam determinadas

reivindicações, no que diz respeito às disputas políticas, sobretudo, no Exército, as

questões se colocavam de maneira mais acirrada ainda. Os descontentamentos com as

9 A alfabetização, as operações matemáticas, o conhecimento geográfico do litoral brasileiro, e a doutrina

cristã era o que dizia respeito ao ensino elementar. Já o ensino profissional referia-se a questões voltadas

especificamente para o ofício de marinharia, como o manuseamento de armas, ordem unida,

conhecimentos sobre as nomenclaturas militares, entre outras atividades de ordem técnica. 10 A documentação inicial que sinaliza esses indícios refere-se aos ofícios expedidos pelos Comandantes

da Escola de Aprendizes Marinheiro de Santa Catarina, para os Presidentes da Província de Desterro entre

1885-1899. 11 O Decreto 1.456 de 1854, rechaçado pelos Imperiais Marinheiros por aumentar o tempo de serviço,

possibilitou a elaboração de uma petição com o consentimento de seus superiores hierárquicos, o que

gerou não só uma quebra de consenso entre as redes de poder dessa conjuntura, como também constatou a

necessidade de reformas dentro do serviço militar. Para aprofundar-se no movimento das praças na

segunda metade do século XIX, ler o artigo de José Miguel Arias Neto intitulado, Violência sistêmica

na organização militar do Império e as lutas dos Imperiais Marinheiros pela Conquista dos Direitos.

História: Questões & Debates, Curitiba, n. 35, 2001.

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promoções da carreira militar, assim como, uma tendência “progressista” de oficiais

mais jovens em relação ao abolicionismo, principalmente, após a Guerra do Paraguai,

desdobraram em embates entre militares e políticos, o que possibilitou discussões

acerca da renovação da própria carreira militar12.

Um segundo eixo, visando à investigação da hipótese de expectativas acerca da

Escola de Aprendizes Marinheiro de Santa Catarina, diz respeito aos desdobramentos do

abolicionismo. A imprensa, nas últimas décadas inseriu-se em um contexto onde a

instituição do Poder Moderador, as práticas políticas e eleitorais e a escravidão

tornavam-se alvos de muitas críticas e polêmicas (RAMOS, Pag. 91, 2005). A Gazeta

de Notícias no Rio de Janeiro era um desses periódicos que abordava temas ligados à

política e seu cotidiano, de um modo bastante impetuoso e irreverente.

Outro espólio do abolicionismo refere-se aos dispositivos jurídicos lançados,

entre eles, talvez o mais impactante na segunda metade do século XIX, a Lei do Ventre

Livre13. O direito do sujeito escravizado de poder possuir uma caixa de pecúlio, e a

possibilidade deste comprar sua própria liberdade a partir dos fundos arrecadados eram

pontos discutidos antes mesmos da implementação da Lei de 1871. Esses dispositivos

jurídicos são elementos importantes para problematizar a valorização com relação ao

trabalho das crianças livres14.

Por fim, o terceiro ponto que possibilita contribuir para o entendimento do

contexto e, que se soma aos fatores já referidos nessas mudanças do final do Império,

diz respeito à necessidade de modernização da Armada, sobretudo, na virada da década

de 1880 para 1890:

12 Sobre a readequação dos militares no espaço político da segunda metade do século XIX, e os aspectos

que os diferenciavam do oficialato da primeira metade do século XIX, ler artigo de Ernesto Seidl

intitulado, Elites militares, trajetórias e redefinições políticos institucionais (1850-1930). Revista de

Sociologia e Política. vol.16 nº 30, Curitiba, Junho, 2008. 13 Sobre as significações da Lei do Ventre Livre, assim como, a construção do significado de liberdade na

segunda metade do século XIX, ler a obra de Sidney Challoub intitulada, Visões da Liberdade: uma

história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

14 A tutela, além de firmar sua legitimidade a partir de um discurso de incapacidade das populações

indígenas, e de africanos livres e libertos de exercer sua cidadania, na segunda metade do século XIX foi

uma importante ferramenta para a manutenção de vínculos entre senhores e filhos e filhas de escravos e

libertos. Para se aprofundar na temática, ler a obra de Patrícia Ramos Geremias, Ser “ingênuo” em

Desterro: lei de 1871, o vínculo tutelar e a luta pela manutenção dos laços familiares das populações de

origem africana (1871-1889). Dissertação de mestrado. Universidade Federal Fluminense, 2005.

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O advento da República não foi promissor para a

Marinha. Politizou-se, deflagrou uma revolta

inexpressiva, mal conduzida, durante oito meses, com

muito sangue derramado que a destruiu materialmente e

criou cisão na oficialidade. (RMB, Pag. 92, 4º T, 2006)

Essa politização referida pela Revista Marítima Brasileira, pode ser observada

também a partir de duas demandas importantes da Armada: a busca de uma

modernização de suas estruturas e a tentativa de completar seus quadros, este, um antigo

problema da instituição. No que se refere à primeira, lançou-se preocupações enquanto

aos tipos de formações que os aprendizes-marinheiro deveriam receber conforme os

avanços técnicos da força. Apontando os direcionamentos globais das Marinhas,

evidenciaram-se também, necessidades de readequação do soldo, reformulação e

intensificação das práticas de artilharia e torpedo e, por fim, a própria manutenção de

uma arte de marinhagem, sendo que o próprio Almirante e Ministro, Custódio Mello se

colocava em direção oposta à Escola moderna. As discussões acerca dos aspectos

econômicos, técnicos e de ensino, já tinha espaço entre alguns oficiais da Armada,

desde a Guerra do Paraguai e, se desenvolveu mais ainda com o advento da República e

as políticas apresentadas pelo Ministério da Marinha15.

Todos estes elementos: os relatórios provinciais de Santa Catarina, a

readequação de estrutura da Marinha do Brasil, um paradigma envolto por uma ideia de

modernização, são elementos que fazem parte de uma narrativa que busca compreender

as expectativas articuladas entorno da EAMSC na segunda metade do século XIX.

OBJETIVOS

Objetivo Geral:

Investigar os projetos institucionais criados entorno da Escola de Aprendizes

Marinheiro de Santa Catarina na segunda metade do século XIX, no intuito de

compreender as possíveis expectativas que, inclusive, podem ter influenciado nas

práticas de voluntariado órfãos e tutelados.

15 A nacionalização da cabotagem, a criação de escolas de pilotos e de maquinistas nos portos brasileiros,

e as reformas das Escolas de Aprendizes de Marinheiros, seja do ponto de vista da formação técnica,

como do ponto de vista da formação educacional. (RELATÓRIO MINISTERIAL, 1893).

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Objetivos específicos:

- Identificar o projeto de modernização da província de Santa Catarina, como o mesmo

foi organizado a partir da análise dos relatórios ministeriais dos próprios presidentes de

província;

- A partir dos relatórios Ministeriais da Marinha do Brasil (1870-1895), tentar mapear

as agendas dessa instituição a fim de compreender sua inserção dentro do mesmo

projeto moderno que atingia a segunda metade do século XIX no Brasil;

- Analisar questões políticas, sociais e econômicas do recorte proposto e, investigar até

que ponto esses fatores, possibilitaram que se articulassem possíveis expectativas em

relação à Escola;

- Investigar o cotidiano da Escola de Aprendizes Marinheiro, assim como, da estrutura

oferecida aos menores, no intuito de compreender possíveis expectativas em relação ao

que a Escola poderia ofertar aos menores;

REFERÊNCIAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Uma vez delineado o objetivo principal deste projeto que é investigar os projetos

institucionais entorno da EAMSC e, como isso pode ter criado expectativas acerca dessa

mesma instituição, faz se necessário apontar o que significou esse processo de

modernização na segunda metade do século XIX. Mas antes de evidenciar algumas

ações que foram debitarias dessa modernização, sugere-se uma breve explanação de um

projeto maior que tinha relação intrínseca com o pensamento ocidental e, que englobava

essas agendas de modernizações que ocorreram no Brasil, reporto-me à modernidade. O

que se pode apontar sobre esse conceito?

Termo que pode ser usado para definir um momento da

história mundial ou uma visão de mundo relacionada

com ideais de progresso e desenvolvimento, valores

importantes para a construção da sociedade industrial.

Pressupõe, sobretudo, a existência do novo, em

detrimento daquilo que é considerado velho ou antigo.

Traz, assim, a idéia de superação, de aprimoramento

constante.16

16 Disponível em: http://www.sohistoria.com.br/dicionario/# Acesso em: 19/06/2015.

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A partir da escolha desse recorte em relação ao conceito de modernidade,

podemos prolongar a discussão relacionada a alguns termos citados e já pensando em

suas antíteses: velho e novo, sociedade agrária e sociedade industrial, atraso e

progresso, etc. Articulando essas dicotomias em um recorte de tempo e espaço e,

reportando-se mais especificamente ao Brasil do século XIX, evidenciam-se alguns

sinônimos dessas dicotomias: cidades insalubres e projetos de remodelação dos centros

urbanos, mundo da escravidão e mundo livre do trabalho, estado em formação e

complexificação das estruturas institucionais, etc. Esses elementos presentes, no

entanto, ressaltam a projeção de uma agenda que foi basicamente europeia e estruturada

em um tripé marcado pelo conhecimento científico, pela hierarquização da sociedade a

partir de padrões raciais e de gênero. Ou seja, ao mesmo tempo em que o projeto de

modernidade apontava um caráter de identificação dos padrões culturais e tecnológicos

das sociedades ocidentais, por outro lado, visava romper com os elementos que não se

enquadravam nesse padrão europeu e ocidental.

Esse projeto civilizador17 pode ser observado a partir da criação de uma série de

instituições e serviços públicos, que tinha como fiador um estado articulado a partir de

princípios liberais18 seletivos e, alimentava em suas agendas compromissos com a

liberdade de comércio, e a representação política da classe dominante no próprio estado.

Em suma, o estado brasileiro do século XIX se moldou para satisfazer os interesses de

uma elite latifundiária e, entre esses interesses estava a manutenção e o aprimoramento

do tráfico de sujeitos escravizados. Alguns desdobramentos fomentados por esse projeto

de modernidade podem ser identificados na província de Santa Catarina.

A década de 1850 foi bastante significativa no que se refere a uma guinada em

relação à atuação do poder público junto à sociedade catarinense. Nesse ínterim de dez

17 A gênese do estado moderno se desenvolve intimamente a partir da ideia de civilização. Elias coloca

essa modernidade como figuracional e processual e, que vai servir para desnaturalizar as relações sociais

baseadas em estamentos e imobilidade social. O liberalismo será um marco, visto que colocará a ideia de

condição humana, passiva de mudança, pautada, sobretudo, em aspectos envolvendo a qualidade de vida,

a liberdade e a propriedade. Para aprofundamento da discussão, consultar a obra de Norbert Elias, O

Processo Civilizador. Volume 2: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro – Jorge Zahar – 1994. 18 Sobre a relação entre os ideais liberais presentes no Estado brasileiro e uma controversa manutenção da

escravidão, Jacob Gorender enfatiza que essas agendas não estavam deslocadas, visto que a elite

brasileira defendia uma maior representatividade e a defesa de seus interesses, inclui aqui a propriedade

privada, bem como uma desvinculação política do Brasil em relação a Portugal. Para um aprofundamento

do tema, ler a entrevista de Jacob Gorender, Liberalismo e Escravidão. Revista Estudos Avançados, 16

(46), 2002.

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anos foram criados a Biblioteca Pública, o Liceu Provincial, as Escolas de Primeiras

Letras, a Escola Pública de Instrução Elementar, o Teatro Santa Isabel e a Escola de

Aprendizes Marinheiros. Essas obras, sob a administração do Presidente de província

João José Coutinho (1849-1859), tinham por objetivo: educar, instruir e ordenar aquela

província e suas jovens gerações. Segundo a educadora Leonete Luzia Schmidt, as

autoridades daquele contexto distinguiam a diferença entre educar e instruir:

A educação estava voltada à formação geral do

homem: valores morais, éticos, religiosos; e a instrução

aos conhecimentos específicos das diversas áreas do

conhecimento. (SCHMIDT, Pag. 75, 2006)

Ressalta-se que nessas instituições de ensino, sobretudo, o ensino secundário,

houve a promoção de professores que tiveram suas formações voltadas para as ciências

naturais. O próprio Liceu que fora inaugurado em 1854, incluiu em seus currículos a

zoologia, a botânica, a química, a física, ou seja, disciplinas que valorizavam as

experiências concretas e que de certa forma dialogavam com a ascensão do

cientificismo empírico que se estabeleceu durante o século XIX. Mas ainda dentro das

agendas da modernidade, outro exemplo importante e, que impacta a sociedade para

além das gerações estudantis, diz respeito aos projetos de remodelação e crescimento

urbano em Desterro.

Em meados do século XIX, a edificação de novíssimos

prédios e reformas urbanas tornava a capital mais

ancorada aos moldes metropolitanos a cada bloco

cortado por Jeremias Lobo, filho do cativo Matheos, e

outros trabalhadores da pedreira na Vila. (MORTARI,

VIEIRA, Pag. 4, 2011)

Essa nova geografia que foi se moldando com o surgimento dos novos padrões

de urbanidade, pluralizou as facetas de Desterro, bem como marginalizou alguns

espaços e indivíduos. Ao mesmo tempo em que surgiam edifícios e chácaras

concentradas em zonas mais nobres da cidade, ao pé dos morros foram florescendo

novos cortiços habitados em sua grande maioria por populações de origem africana,

cativos e libertos. Ainda sob essa nova disposição da cidade de Desterro, Claudia

Mortari e Fábio Vieira baseiam-se nas contribuições de André Luiz Santos que aborda

em sua tese os estudos sobre a geografia de Desterro/Florianópolis. Nesta mesma obra,

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o autor evidencia os estudos de salubridade do médico João Ribeiro de Almeida, datado

de 1863, que identificava determinados bairros como a Pedreira, a Toca e a Figueira

sendo áreas de risco para a saúde. No entanto, as fronteiras entre a saúde e a segurança

pública tornaram-se pouco evidentes neste contexto:

Esses espaços e suas populações eram alvos constantes

da ação política de saúde pública e de controle policial

na segunda metade do XIX e primeiras décadas do XX,

pois se vinculou, a população pobre com a doença,

inserindo a questão no campo da “Segurança Pública”.

(MORTARI, VIEIRA, Pag. 4, 2011)

Para além das ações policiais nestes bairros que levavam consigo toda uma

alcunha de responsabilização pela insalubridade de Desterro, outro fator importante

refere-se aos indivíduos que não pertenciam a determinados espaços de convivência,

sendo assim, “convidados” a se retirarem de zonas públicas ou bairros que residiam às

elites. Neste caso, quando se retorna a estrutura de relatório provincial a partir da década

de 1860, é possível ter um panorama dos instrumentos que davam conta de realizar esse

convite à manutenção da ordem: tranquilidade pública, instrução pública, saúde e

socorros públicos, cadeias e casas de prisão, defesa e segurança pública e,

posteriormente, a Escola de Aprendizes Marinheiro passaria a fazer parte desses

relatórios. Todavia, ainda que o projeto de modernidade tenha atacado em diversos

âmbitos sob o argumento de uma pretensa civilidade, os sujeitos não enquadrados nesse

projeto buscaram formas de resistir e se readequar a um contexto adverso.

Para elencar algumas das táticas e experiências articuladas desses sujeitos na

diáspora, sobretudo, a africana, a historiografia brasileira se apropriou de influências

metodológicas vinculadas à historiografia britânica19 e, mais precisamente, buscou uma

perspectiva de análise20 a partir da história social que visava contemplar para além de

19 Sobre a cisão mais evidente com o historicismo alemão de Ranke, uma abordagem para além dos

esquematismos do marxismo estruturalista, e a formação de uma tradição teórica focada nos processos e

nas relações humanas que articulam esses mesmos processos, consultar Harvey Kaye, Los historiadores

marxistas britânicos. Universidade de Zaragoza. Prensas Universitárias, 1989. 20 Silvia Petersen aborda a História Social como uma perspectiva de análise, ou seja, ela não é uma

escola, uma teoria ou uma metodologia. Segundo a historiadora, a história social pretende articular uma

série de elementos no sentido de dar conta de uma história da sociedade. A forma como se aborda esses

elementos podem variar e sugerir pontos de chegada diferentes em uma mesma perspectiva de análise.

Para aprofundamento da discussão, ler o artigo de Silvia Pertersen intitulado, História Social e História

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uma história ligada ao político e os grandes heróis. Nessa intenção de abarcar a

totalidade dos processos, e os sujeitos atrelados ao mesmo, a história social abriu um

leque de possibilidades no que diz respeito à abordagem das fontes, e o próprio

questionamento do conhecimento histórico a partir de uma perspectiva onde os sujeitos

que apareciam na base das hierarquias sociais poderiam ter a sua versão da história.

Ainda sobre a ampliação desse leque de abordagens, a historiadora Silvia Lara,

pesquisadora da temática da escravidão no Brasil, faz um paralelo das abordagens

historiográficas sobre a história do trabalho das décadas de 1960/70, em relação às

produções historiográficas posteriores a esse período. A perspectiva de uma liberdade

concedida pelos abolicionistas, ou mesmo uma tese de anomia em relação às populações

afrodescendentes, afastava os sujeitos escravizados dos trabalhadores:

[...] noções diferentes de liberdade e de trabalho livre

estiveram em luta no final do século XIX e início do

século XX. As ações de escravos e libertos ao longo dos

séculos revelam alguns desses diferentes significados de

liberdade. Às vezes, ser livre significou poder viver

longe da tutela e do teto senhorial ou poder ir e vir sem

controle ou restrições; outras vezes, significou poder

reconstituir laços familiares e mantê-los sem o perigo

de ver um membro da família ser comercializado pelo

senhor. Muitas vezes, a liberdade significou a

possibilidade de não servir a mais ninguém, e, aqui, a

palavra liberdade adquire dimensões econômicas,

conectando-se à luta pelo acesso à terra: durante a

escravidão e depois da abolição, muitos ex-escravos

lutaram para manter condições de acesso à terra

conquistadas durante o cativeiro. Como se pode ver,

estamos bem longe de entender a liberdade como a

possibilidade de vender “livremente” a força de

trabalho em troca de um salário. (LARA, Pag. 28, 1998)

Esse excerto além de sugerir uma série de possibilidades em relação a um

mesmo tema, como por exemplo, os significados de liberdade, também evidencia uma

série de táticas21 elaboradas, seja durante o cativeiro com os laços familiares, as

do Trabalho: uma relação frutuosa para a análise histórica. III Seminário Internacional: Mundos do

Trabalho/VII Jornada Nacional de História do Trabalho. Salvador, UNEB, Novembro, 2014. 21 É a partir de uma leitura das instituições públicas em relação à EAMSC, que se sugere a

h i p ó t e s e d e s t a t e r s e r v i d o como um local de tática para os menores e os pais. Entende-

se aqui a tática como um meio usado por indivíduos que não detêm o poder dominante (estratégico) de

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Irmandades de homens pretos como meio de professar suas religiões, ou mesmo no pós-

abolição com os conflitos em zonas urbanas marcadas por uma série de delitos como:

desavenças, roubos, defloramentos, assassinatos, entre outros conflitos que envolviam

imigrantes, africanos livres, libertos e escravizados. Se a modernidade quis impor seu

projeto de educar, instruir e reprender, a historiografia mostrou que existiam

contrapartidas por parte dos sujeitos que estavam na mira desse projeto. Não há dúvidas

de que a Escola de Aprendizes Marinheiro fazia parte desse projeto, no entanto, até que

ponto ela pode ter gerado expectativas diferentes em relação àqueles que a procuravam?

Até que ponto ela não pode ter sido interpretada como um meio tático?

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Em se tratando dos estudos sobre a Escola de Aprendizes Marinheiro, pode-se

apontar o eixo temático e suas linhas internas que ora dialogam mais, ora se afastam por

sua heurística: a História Militar22 e sua divisão em duas grandes áreas, a História

Militar Tradicional e a Nova História Militar. Ainda que não se enxergue essa proposta

de projeto necessariamente dentro do âmbito de uma História Militar, seja ela

“Tradicional” ou “Nova”, essas áreas de pesquisas são espaços de diálogo importantes

para ajudar na busca da hipótese referida.

Em um primeiro momento apresentam-se características de pesquisa dessas duas

linhas incluídas dentro do campo temático da História Militar. A História Militar

identificada como “tradicional” pela historiografia, sobretudo, do pós Segunda Guerra

Mundial, tinha por base a narração dos grandes feitos em batalha e os estudos ligados a

estratégias e doutrinas militares. Essa forma de abordagem temática, sobressalente até o

início da década de 1940, trazia em sua bagagem o repertório de uma tradição

historiográfica que buscava uma história mais descritiva e de longas narrativas.

A repercussão de uma história problema com os Annales na primeira metade do

século XX, e a abrangência das possibilidades de fontes históricas e o consequente

determinado contexto e, articulam suas perspectivas a p a r t i r d e mobilizações de forças que

surgem nas “falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário”. Para

se aprofundar nas categorias de tática e estratégia, A invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis:

Vozes, 1994. 22 Para consultar discussões historiográficas acerca da História Militar, consultar o artigo de Fernando

Velôzo Gomes Pedrosa intitulado: A história militar tradicional e a “nova história militar”. Anais do

XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.

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descrédito da história factual e das temáticas dominantes do século XIX, como a política

e a religião, ganharia também a concorrência de uma história interdisciplinar e dos

homens em um sentido mais universal, a qual inclusive, possibilitou como

desdobramento os estudos relacionando o ambiente militar e o meio social. Temas como

identidades, classe, instituições, raça e gênero passaram a ser recorrentes e deram um

tom de “Novo” nas pesquisas ligadas à História Militar.

Em relação à historiografia brasileira, algumas produções ligadas à “Nova

história militar” são enxergadas como referenciais, como é o caso da obra organizada

por Celso Castro, Hendrik Kraay e Vitor Izecksohn, “A Nova História Militar

Brasileira”. Nesta obra encontram-se artigos ligados ao cotidiano das praças, as formas

de recrutamento militar do império e da república, a rotina dos marinheiros para além

dos muros institucionais, e a sexualidade23 dos próprios militares. Essas temáticas têm

como singularidade a experiência dos sujeitos, ponto de convergência com a História

Social.

Os trabalhos específicos sobre as Escolas de Aprendizes Marinheiro referem-se

a dois temas dominantes: a história da instituição, e as experiências (de)formativas dos

jovens aprendizes. Em ambos os casos os trabalhos tem como objetivo investigar a

consolidação dessas instituições de ensino-militar e, atribuir o papel da instituição.

Relacionado a essa forma de abordagem das instituições, e o seu papel de

disciplinarização e higienização social, dois trabalhos são colocados como centrais em

relação à Escola de Aprendizes Marinheiro de Santa Catarina. Ambas são dissertações

da Universidade Federal de Santa Catarina: “A Escola de Aprendizes Marinheiros e as

crianças desvalidas: Desterro (SC), 1857-1889” de Velôr Pereira Carpes da Silva e

“Escreveu, não leu, o pau comeu - A Escola de Aprendizes-Marinheiro de Santa

Catarina (1889-1930)” de Gisele Machado. Nesse sentido, ambos os trabalhos tem seu

reconhecimento dentro daquilo que se propuseram a articular, a história da Escola de

Aprendizes Marinheiro, seus métodos de funcionamento e, em partes seus objetivos.

23 Um exemplo emblemático dessa questão encontra-se na tese de Álvaro Pereira do Nascimento

intitulada: Do convés ao porto: A experiência dos marinheiros e a revolta de 1910. UNICAMP, 2002. A

partir das experiências de marinheiros e oficiais, o historiador tenta compreender o porquê dos castigos

físicos continuarem até o contexto da revolta. Comportamento disciplinar, opção sexual e cor eram

critérios em momentos específicos de aplicação dos castigos corporais, todavia, essas mesmas

especificidades mediavam a própria convivência entre os marinheiros.

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Se essas dissertações buscaram evidenciar a importância e o papel da instituição

dentro de uma visão dos espaços de poder, por outro lado, se percebeu um

determinismo homogeneizador no que se refere ao projeto de modernidade que envolvia

a escola. Essa abordagem implica em reconhecer a EAMSC somente como uma

instituição que serviu aos desígnios do poder público, desconsiderando a possibilidade

da mesma como um meio que possa ter gerado expectativas diversas, levando,

inclusive, alguns sujeitos a procurá-la.

PREVISÃO DE FONTES DE PESQUISA

Às fontes listadas abaixo foram coletadas no segundo semestre de 2013. Ainda há

dois acervos a serem consultados para contemplar o fechamento das fontes: a Biblioteca

Pública do Estado de Santa Catarina, e uma pesquisa mais no Tribunal de Justiça de

Santa Catarina. A previsão é que no segundo semestre de 2015 se tenha a totalidade das

fontes para a interpretação e desenvolvimento da escrita.

ACERVO DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA

- Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros para o Presidente da

Província (1885-1888);

- Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros expedidos para o

Governador do Estado (1889-1891);

- Relatórios e fala dos presidentes da Província de Santa Catarina (1850-1889);

- Circulares do Ministério da Marinha (1850-1884);

- Coleção de Leis do Império do Brasil.

ARQUIVO DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA

- A Regeneração (1868-1889);

- República (1889-1903);

- Conservador (1884-1889);

- O Conservador (1871-1883);

- Matraca (1881-1888).

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