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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE MESTRADO E DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
LÍGIA CRISTINA FERREIRA MACHADO
EU SÓ QUERIA SABER POR QUE O ÓVULO TEM QUE SER DA OUTRA OVELHA?
Situando o processo de construção de significados na sala de aula de Biologia
NITERÓI – RJ 2007
LÍGIA CRISTINA FERREIRA MACHADO
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EU SÓ QUERIA SABER POR QUE O ÓVULO TEM QUE SER DA OUTRA OVELHA?
Situando o processo de construção de significados na sala de aula de Biologia
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor. Área de concentração: Ciência, Sociedade e Educação.
Orientador: Profª Drª Dominique Colinvaux
Niterói – RJ 2007
LÍGIA CRISTINA FERREIRA MACHADO
EU SÓ QUERIA SABER POR QUE O ÓVULO TEM QUE SER DA OUTRA OVELHA?
Situando o processo de construção de significados na sala de aula de Biologia
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor. Área de concentração: Ciência, Sociedade e Educação.
Aprovada em dezembro de 2007.
BANCA EXAMINADORA
Profª Drª Dominique Colinvaux – Orientador Universidade Federal Fluminense
_________________________________________________________________________
____ Profª Drª Cecília Goulart
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________________________________________
Profº Dr Eduardo Fleury Mortimer Universidade Federal de Minas Gerais
_________________________________________________________________________
_____ Profª Drª Isabel Martins
Universidade Federal do Rio de Janeiro
______________________________________________________________________________
Prof Drª Lana Claudia de Souza Fonseca Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
_________________________________________________________________________
_____ Profª Drª Sandra Escovedo Selles Universidade Federal Fluminense
Niterói – RJ
2007
A meus pais Gilson e Marlene Uma ausência hoje chamada saudade.
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFF, um espaço privilegiado
de reflexão.
À Profª Dominique Colinvaux, minha
orientadora, com quem continuo a
aprender.
A todos os professores do Programa de
Pós-Graduação em Educação com quem
convivi e, em especial, às Profª Carmem
Perez e Sandra Selles que me acolheram
em seus espaços de discussão e me
permitiram compartilhar e ampliar leituras
e idéias.
À direção do CEFET-NI, em especial ao
Profº Almir, ex-gerente acadêmico desta
unidade de ensino, sempre solidário à
realização dessa pesquisa.
Aos meus queridos alunos do CEFET-NI,
em especial as turmas 1AInfo1 e 1BTEl1
(hoje 2AInfo1 e 2BTel1), protagonistas
desse estudo e que me resgataram o prazer
de estar em sala de aula.
A minha irmã Lúcia, companheira na dor e
na saudade, apoio constante neste
processo, por vezes solitário, de
construção traduzido em telefonemas
quase diários apenas para saber se “estava
tudo bem”.
Aos meus amigos especiais Lana e
Barzano, com quem vivenciei e
compartilhei alegrias, conquistas,
angústias e incertezas.
A Eleazar, pela revisão de texto e pelas
incansáveis discussões que me ajudaram
organizar este trabalho.
A minha amiga e sempre coordenadora,
Sandra Xisto pelo incentivo e por acreditar
no meu trabalho.
Aos companheiros de trabalho do CEFET-
NI que torceram pela realização desse
trabalho.
Aos professores Sérgio Fonseca e Helles
pelo apoio técnico na realização desse
estudo.
[...] Condillac começa por conferir um único sentido à
estátua: o olfativo, talvez o menos complexo de todos. Um cheiro de
jasmim é o princípio da biografia da estátua; por um instante, não
haverá senão esse aroma no universo, ou melhor, esse aroma será
o universo, que, um instante depois, será cheiro de rosa e, depois
de cravo. Se houver na consciência da estátua um único perfume, já
teremos a atenção; se perdurar um perfume quando houver cessado
o estímulo, teremos a memória; se uma impressão atual e uma do
passado ocuparem a atenção da estátua, teremos a comparação; se
a estátua perceber analogias e diferenças, teremos o juízo; se a
comparação e o juízo voltarem a ocorrer, teremos a reflexão; se
uma lembrança agradável for mais vívida que uma impressão
desagradável, teremos a imaginação. Engendradas as faculdades
do entendimento, as da vontade surgirão depois: amor e ódio
(atração e aversão), esperança e medo. A consciência de ter
atravessado muitos estados dará à estátua a noção abstrata de
número; a de ser perfume de cravo e ter sido perfume de jasmim, a
noção de eu.
O autor conferirá depois a seu homem hipotético a audição,
a gustação, a visão e por fim o tato. Este último sentido lhe
revelará que existe o espaço e que, no espaço, ele existe em um
corpo [....].
(BORGES, Jorge Luis; Guerrero, Marguerita. O Livro dos Seres Imaginários, 2006, p. 26
e 27).
RESUMO
MACHADO, Lígia Cristina Ferreira. Eu só queria saber por que o óvulo tem que ser da outra ovelha? Situando o processo de construção de significados na sala de aula de Biologia. Orientadora: Dominique Colinvaux. Niterói-RJ/UFF. Tese (Doutorado em Educação), 321 páginas. Campo de Confluência: Ciência, Sociedade e Educação; Linha de Pesquisa: Didáticas das ciências; Projeto de Pesquisa: Aprender Ciências II. Esta tese do campo de confluência Ciência, Sociedade e Educação tem como proposta investigar as práticas epistêmicas realizadas pelos alunos na construção/produção de significados no interior de uma sala de aula de Biologia a fim de caracterizá-la como uma comunidade de prática. Este estudo apóia-se teoricamente em dois eixos principais de discussão: um primeiro focalizando a noção de aprendizagem e aprendizagem situada a partir de uma perspectiva sociocultural (WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998; WERTSCH,1998 e 1999; LAVE; WENGER, 1995 e ENGLE; CONANT, 2002) e um segundo realizando uma aproximação entre os estudos da Sociologia da Ciência (LATOUR, 2000 e KNORR-CETINA, 1981 e 1992) e os estudos produzidos pela pesquisa na Educação em Ciências que situam, respectivamente, suas análises nos laboratórios e nas salas de aulas de ciências evidenciando particularmente o processo de construção do conhecimento científico. A partir do delineamento dessa matriz teórica, foi organizada e realizada uma unidade de ensino com o tema “Desvendando os segredos da vida: a reprodução no nível molecular” desenvolvida e vídeo-gravada ao longo de um bimestre letivo em uma turma de primeira série do curso de Telecomunicações do Ensino Médio-Técnico do CEFET unidade descentralizada de Nova Iguaçu, RJ. Além disso, obteve-se dessa mesma turma um questionário aplicado antes do inicio da unidade de ensino para levantamento das concepções desses alunos sobre o tema em questão. Para a análise do registro em vídeo-gravação adotou-se um percurso metodológico proposto por MORTIMER e SCOTT (2002) e MORTIMER et al. (2007) que permitiu a caracterização dessa sala de aula e a seleção de seqüências interativas onde se evidenciam práticas epistêmicas relativas ao processo de construção/produção de significados biológicos pelos alunos quando realizam movimentos de inter-relações entre diferentes níveis de conhecimento (estrutural, processual e relacional) bem como entre diferentes dimensões (observável, teórico explicativa e representacional) que revelam uma certa forma biológica de pensar, falar e se relacionar com o mundo. Estes aspectos situam a sala de aula de Biologia como um espaço-tempo de práticas sociais e epistêmicas, caracterizando-se como uma comunidade de prática, já que nela os alunos se engajam em processos de in-tensas negociações de significados que são re-elaborados e re-descritos na relação que mantêm com outros objetos e processos em uma perspectiva biológica. Palavras-Chave: Educação em Ciências, Ensino-aprendizagem em Biologia, Processo de significação e práticas epistêmicas.
ABSTRACT
MACHADO, Lígia Cristina Ferreira. What I would like to know is why does the egg have to be of another ewe? Placing the process of construction of meanings in the Biology class. Supervisor: Dominique Colinvaux. Niterói-RJ/ UFF. Thesis (Doctorate in Education), 321 pages. This thesis in the field of Science, Society and Education seeks to investigate the epistemic practices which take place in the Biology classroom in order to characterize it as a community of practice. This study is based theoretically in two main points: the first deals with the notion of learning and situated learning from a socio-cultural point of view (WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998; WERTSCH, 1998 and 1999; LAVE; WENGER, 1995 and ENGLE; CONANT, 2002) and the second joining works in Sociology of Science (LATOUR, 2000 and KNORR-CETINA, 1981 and 1992) and works produced by the research in Science Education which deals with laboratory analyses and Science classrooms, respectively, eliciting, particularly, the process of construction of scientific meaning. From this theoretical matrix, a teaching unit, Unveiling the secrets of life: reproduction in the molecular level, was developed and video-recorded during two months in a first grade Telecomunicações of Ensino Médio at CEFET, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. This group also answered a questionnaire applied before the beginning of the teaching unit to know the students conceptions about the subject. The analysis of the recordings was based on the methodology proposed by MORTMER and SCOTT (2002) and MORTIMER et al (2007) which permitted the selection of interactional sequences where epistemic practices emerged related to the process of construction/production of biological meaning when students interrelated different levels of meaning (structural procedural and representational) which display a certain biological form of thinking, speaking and interacting with the world. This aspects places the Biology classroom as a time-space of epistemic and social practices characterizing it as a community of practice owing to the fact that the students engate in processes of in-tense negotiation of meanings which are re-elaborated and re-described in the relationship with other objects and processes from a biological perspective. Key-words: Science Education, Teaching and learning in Biology, Process of meaning and epistemic practices
LISTA DE QUADROS E TABELAS
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 - Organização das turmas do CEFET-NI em 2006, p. 99
QUADRO 2 - Síntese das atividades “Desvendando o segredo da vida: a reprodução no
nível molecular”, p. 107
QUADRO 3 - Sumário das atividades – uma primeira aproximação aos dados, p. 149
QUADRO 4 - Seqüências analisadas no capítulo 7, p. 171
QUADRO 5 – Seqüências analisadas no capitulo 8, p. 205
QUADRO 6 - Práticas envolvidas na atividade de laboratório, p. 212
LISTA DE TABELAS TABELA 1A - O que acontece com as partes da célula seccionada?, p. 127
TABELA 1B - Como você explicaria os resultados obtidos?, p. 128
TABELA 2 - Os efeitos da radiação nas células, p. 132
TABELA 3A - O que são clones?, p. 134
TABELA 3B - A clonagem e uma forma de reprodução natural?, p. 135
TABELA 3C - Clonagem e reprodução humana, p. 137
TABELA 4 - Explicando a síndrome de Down, p. 140
TABELA 5 - Os organismos geneticamente modificados, p. 143
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO AO ESTUDO, p. 14
1.1 Gênese do Problema, p. 14
1.2 Os objetivos do Estudo, p. 23
1.3 Justificativa do Estudo, p. 24
1.4 Organização do Estudo, p. 31
2. UMA DISCUSSÃO EM TORNO DA NOÇÃO DE APRENDIZAGEM, p. 34
2.1 De uma perspectiva comportamental a uma perspectiva cognitivista: elementos
gerais para situar a noção de aprendizagem, p. 35
2.2 Situando a pesquisa sociocultural e a noção de ação mediada, p. 45
2.3 A aprendizagem na pesquisa sociocultural: ou de quando a aprendizagem se torna
situada, p. 55
3. UMA APROXIMAÇÃO ENTRE A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO
CIENTÍFICO E A PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: REVELANDO
PRÁTICAS CIENTÍFICAS E PRÁTICAS CIENTÍFICAS ESCOLARES, p. 67
3.1 Knorr-Cetina vai ao laboratório e resgata a contextualidade da Ciência, p. 68
3.2 Latour vai ao laboratório e encontra incertezas, concorrência e controvérsias, p. 73
3.3 A pesquisa em Educação em Ciências vai à sala de aula e encontra um espaço social
complexo e multifacetado, p. 81
3.4 Sistematizando a discussão, p. 92
4. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: COMO E O QUÊ INVESTIGAR?, p. 94
4.1 Definindo o referencial teórico-metodológico do estudo, p. 94
4.2 Situando o lugar de investigação: o CEFET – Nova Iguaçu, p. 95
4.3 A turma estudada: apresentando os sujeitos da pesquisa, p. 100
4.4 Sobre as atividades: princípios de organização e justificativa, p. 102
4.5 Detalhamento das atividades de ensino-aprendizagem, p. 108
4.6 Sobre o processo de coleta de dados, p. 113
4.7 Sobre o processo de análise de dados, p. 118
Em relação ao registros videogravados, p. 118
Em relação aos questionários, p. 122
4.8 A articulação entre teoria e empiria, p. 123
5. O QUE SABEM E COMO SABEM OS ALUNOS QUANDO O TEMA ENVOLVE
O DNA, p. 125
5.1 A relação núcleo e função, p. 126
5.2 A relação radiação e atividade celular, p. 128
5.3 Clones: O que são? Como são produzidos?, p. 132
5.4 Síndrome de Down: elaborando possíveis explicações, p. 139
5.5 Sobre os organismos geneticamente modificados, p. 143
5.6 Sistematizando a análise dos questionários, p. 145
6. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: ESPAÇO DE INTERLOCUÇÃO E
DINÂMICA PEDAGÓGICA, p. 148
6.1 A primeira aula: o núcleo celular e sua estrutura e funções, p. 150
6.2 A segunda aula: a molécula do DNA - onde a vida começa?. P. 155
6.3 A terceira aula: resgatando a estrutura do DNA e seu processo de autoduplicação, p.
158
6.4 A quarta aula: trabalhando com o cariótipo humano – o aconselhamento genético, p.
162
6.5 A quinta aula: ácidos nucléicos e o código da vida – a síntese de proteínas, p. 164
6.6 A sexta aula: clonagem, células-tronco e organismos transgênicos – aprofundando a
discussão, p. 167
6.7 Sistematizando a análise, p. 168
7. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: SITUANDO O PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS PELOS ALUNOS, p. 170
7.1 Evidenciando relações entre estrutura e classificação dos seres vivos e estrutura e
função nuclear, p. 172
7.2 O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e
funcionais na/da célula, p. 176
7.3 E o que acontece com as hemácias que não têm núcleo? , p. 180
7.4 Camila tem uma hipótese: explicando o papel do DNA-lixo, p. 184
7.5 Por que o óvulo tem de ser da outra ovelha? Dando visibilidade à instabilidade
conceitual dos alunos, p. 190
7.6 Ainda sobre clones e clonagem: evidenciando a reelaboração de significados, p. 195
7.7 Uma articulação entre o observável e o microscópico: significando o conceito de transgênico, p. 199
7.8 Sistematizando nossa análise, p. 202
8. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: DOS FATOS ÀS COISAS E DAS COISAS
AOS FATOS, p. 204
8.1 Uma breve discussão acerca do papel das atividades práticas no processo de ensino-
aprendizagem em ciências, p. 206
8.2 Uma caracterização da atividade de laboratório: extraindo DNA da cebola, p. 209
8.2.1 Sobre os objetivos da atividade, p. 210
8.2.2 Sobre as características da atividade, p. 210
8.3 Cenas de uma atividade de laboratório escolar, p. 213
8.4 Dos fatos aos textos: ou de quando os alunos produzem relatórios, p. 221
9. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: SISTEMATIZANDO E APROFUNDANDO O
TEMA DE ESTUDO, p. 230
9.1 Estrutura geral e formas de abordagem da apresentação dos trabalhos dos alunos, p.
231
9.2 Tecendo relações para situar as temáticas, p. 233
9.3 Fazendo uso de conceitos anteriormente construídos para explicar novas situações,
p. 238
9.4 Evidenciando a superação de possíveis instabilidades conceituais, p. 241
9.5 Evidenciando as dimensões éticas que envolvem a produção científica, p. 244
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 248
10.1 O que ganha visibilidade na sala de aula de Biologia: uma primeira aproximação a
partir das concepções dos alunos acerca de DNA e da dinâmica pedagógica, p. 249
10.2 Encaminhando uma forma biológica de pensar, olhar e se relacionar com o
mundo, p. 254
10.3 Implicações pedagógicas: problematizações e diversidade de atividades, p. 267
10.4 Limitações do estudo e perspectivas para novas investigações, p. 271
11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, p. 275
12. ANEXOS
Anexo I: Grade Curricular do Ensino Médio – CEFET-NI, p. 284
Anexo II: Atividade: Dolly, o núcleo e os clones, p. 286
Anexo III: Atividade: Construindo Idiograma, p. 289
Anexo IV: Atividade: Modelo para síntese de proteínas, p. 299
Anexo V: Mapa geral: primeira leitura das videogravações, p. 304
Anexo VI: Mapa geral: segunda leitura das videogravações, p. 307
Anexo VII: Mapa geral: terceira leitura das videogravações, p. 311
Anexo VIII: Autorização dos pais e do CEFET, p. 316
Anexo XIX: Atividade de laboratório – relatórios produzidos pelos alunos, p. 318
1. INTRODUÇÃO: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO AO ESTUDO
O problema da educação científica é, em definitivo, essencialmente análogo ao da colonização de um território, em que o aspecto mais importante não é tanto de saber entrar pelo caminho correto e percorrê-lo até certo ponto, mas o de encontrar critérios com que proceder, organizando o território, dominando as próprias reservas e as próprias possibilidades, e tratando de aumentá-lo. (Arcà, Guidoni; Mazzoli, 1990, p.23)
Neste estudo, que passamos a apresentar, focalizamos uma sala de aula de Biologia do
ensino médio-técnico de uma instituição pública na qual atuamos como professora com o
propósito de evidenciar o processo de aprendizagem situando, particularmente, a construção de
significados biológicos pelos alunos no curso das interações que se estabelecem neste espaço.
1.1 A gênese do problema:
Questões relacionadas aos processos de ensino-aprendizagem em ciências nos
acompanham há algum tempo uma vez que vimos atuando como professora de Biologia no
Ensino Médio da rede pública de ensino por mais de dez anos. Ao longo desse processo de
constituição do “ser” professora, dois aspectos parecem gerar algumas inquietações que exigem
reflexões e discussões mais aprofundadas: de um lado, as características e peculiaridades
inerentes ao próprio conhecimento científico; de outro, mas diretamente relacionado ao primeiro,
como oportunizar/viabilizar o processo escolar de construção desse conhecimento científico pelos
alunos. Estes dois aspectos sinalizam, respectivamente, preocupações com “o que” se deve
15
ensinar e aprender e “como” se deve ensinar/promover a aprendizagem em uma sala de aula de
Biologia.
Em relação ao conhecimento científico, temos aprendido, juntamente com a filosofia
contemporânea, particularmente com os estudos de Kuhn (1992), que a produção do
conhecimento científico envolve processos de crises paradigmáticas, rupturas, descontinuidades e
parece menos linear e cumulativo do que pensado pelo paradigma positivista. Nas palavras de
Kuhn (1992, p. 116):
A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução na área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como de seus métodos de aplicação.
No interior dessa perspectiva filosófica e epistemológica, a ciência e o conhecimento
científico são marcados pela provisoriedade, temporalidade e historicidade, enfim, como uma
construção social e cultural onde entram em jogo conflitos, diversidades de interpretações,
intuição e criatividade humanos.
Desse ponto de vista, como então pensar o processo de ensino-aprendizagem em ciências,
uma vez que a filosofia encaminha concepções de ciência e, por inferência, concepções de
ensinar ciência? Como aprender e ensinar ciências num mundo em que o conhecimento científico
parece fervilhar: mundo virtual, biotecnologia, neurociência e que envolve, de forma cada vez
mais crescente, discussões de ordem ética e a tomada de posição pelo cidadão comum? Como
articular e promover o diálogo entre o mundo real que cerca o aluno, carregado de significados e
sentidos, e o conteúdo/conceito que nos propomos a ensinar e como veremos neste estudo com as
práticas epistêmicas relativas a um conhecimento que é histórico e socialmente construído?
Ausubel1 (1976 apud SCHNETZLER, 1992) nos fala da aprendizagem significativa que
se realiza quando o aluno integra novos conceitos àqueles já existentes, encaminhando re-
elaborações conceituais que possibilitam ampliar sua compreensão, isto é, suas leituras e
interpretações dos fenômenos que se realizam no mundo em que vive.
1 AUSUBEL, D. Psicologia educativa: um punto de vista cognoscitivo. México:Trillas, 1976.
17
significativa que Mortimer (1995, p. 57) assinala que o termo “mudança conceitual se tornou
sinônimo de aprender ciência [...] o que não significa que haja um consenso acerca de seu
significado [tornando-se] um rótulo a cobrir um grande número de visões diferentes e até
inconsistentes”.
Em linhas gerais, a partir da teoria da mudança conceitual, os modelos de ensino-
aprendizagem em ciências valorizam as estratégias de ensino que promovem os chamados
conflitos cognitivos3, capazes de gerar a insatisfação nos alunos em relação às suas concepções
prévias de forma a possibilitar a construção de novas concepções mais próximas dos sistemas
científicos. Esta perspectiva traz de forma subjacente a idéia de transformação/substituição do
conhecimento já existente e, conseqüentemente, a impossibilidade da coexistência de diferentes
esquemas conceituais relacionados a diferentes contextos (HORTA MACHADO, 1999).
Posteriormente, estudos incorporando novas abordagens epistemológicas modificam a noção de
substituição por “evolução progressiva” como o faz Schnetzler (1992), por “processo de
enculturação” de acordo com Mortimer e Horta Machado (1997) ou ainda por “perfil conceitual”
segundo Mortimer (2000).
Independente das diferentes posições assumidas pelos autores, vale destacar a re-
orientação teórico-metodológica que se verifica no campo da Educação em Ciências neste
momento, quando a investigação encontra uma nova porta de entrada para a sala de aula. Como
uma caixa preta que vai sendo reaberta, esta sala de aula, habitada por diferentes sujeitos, aos
poucos revela toda a sua complexidade e multidimensionalidade. Talvez esta seja uma das razões
para que novos estudos (MORTIMER; HORTA MACHADO 1997; SOLOMON, 1987)
destaquem o esvaziamento social que acompanha a perspectiva construtivista em termos de
mudança conceitual. Solomon (1987), por exemplo, adverte o quanto as pesquisas realizadas
nesta ótica negligenciam as influências sociais necessárias à organização de um contexto que
permita a construção e legitimação das idéias e concepções pelos alunos.
Já no início da década de 1990, a pesquisa em Educação em Ciências se aproxima cada
vez mais de uma abordagem sociocultural, destacando, particularmente, o movimento discursivo
que se realiza na sala de aula enquanto acontecimento enunciativo em determinadas condições de
produção (ORLANDI, 1987) como objeto de investigação a fim de compreender o processo de 3 Segundo Driver e Easley (1978) a maior parte desses estudos se sustenta na noção de conflito cognitivo numa vertente piagetiana.
16
Na tentativa de compreender a natureza e o significado desses processos de re-elaborações
conceituais, vemos surgir, ao final da década de 1970 e início da década de 1980, um conjunto
significativo de estudos que procuram revelar o conteúdo das idéias dos alunos acerca de
determinados conceitos e princípios científicos que são ensinados na escola. Realizados no
interior do Alternative Conceptions Movement, esses estudos são um desdobramento de trabalhos,
entre eles, o apresentado por Driver e Easley (1978) que sinalizam a importância de se conhecer
as explicações que os alunos desenvolvem em suas experiências cotidianas, dando sentido aos
fenômenos com os quais se deparam no mundo físico. Para esses autores, as concepções que os
alunos constroem e trazem podem influenciar de modo significativo o processo de ensino-
aprendizagem na sala de aula chegando inclusive a inviabilizar a re-elaboração dessas mesmas
concepções. Em Driver e Erickson (1983), encontramos que tais concepções são estáveis,
resistentes à mudança e, sem dúvida alguma, coerentes e com um forte poder explicativo.
É neste contexto que vemos emergir um movimento construtivista na Educação em
Ciências e que, apesar da diversidade de abordagens, é orientado por pelo menos três
pressupostos básicos como apontado, entre outros, por Carvalho (1992): 1. o aluno é o construtor
do seu próprio conhecimento; 2. o conhecimento é contínuo e 3. o conhecimento a ser ensinado
deve partir do conhecimento que o aluno traz para a sala de aula.
Esses pressupostos, por serem muito gerais, parecem encaminhar um relativo consenso
entre os pesquisadores e, diríamos, entre os professores que passam a considerar o construtivismo
“como uma grande teoria, aplicável a todas as instâncias e não simplesmente como uma visão de
aprendizagem que possui valor parcial” (OSBORNE2, 1996 apud HORTA MACHADO, 1999,
p.19). De qualquer forma, vale assinalar que a perspectiva construtivista re-situa o aluno como
sujeito pensante comprometido com o processo de construção de seu conhecimento. Um
conhecimento que deve estar integrado a uma rede que se torna cada vez mais abrangente e
complexa.
No início dessas investigações, Posner et al. (1982) propõem a Teoria da Mudança
Conceitual como modelo explicativo para os processos desencadeados pelos indivíduos quando
mudam suas concepções iniciais para outras mais próximas da perspectiva científica e, muitas
vezes, incompatíveis com as primeiras. A repercussão dessa proposta foi tão intensa e
2 OSBORNE, J.F. Beyond cosntrutivism. Science Education, [s.l.], v.80. n. 1, p.53-82, 1996.
18
construção do conhecimento científico pelo aluno. A linguagem é entendida como inter(ação),
como “constitutiva dos processos cognitivos e do próprio conhecimento, uma vez que a
apropriação social da linguagem é a condição fundamental do desenvolvimento mental”
(SMOLKA, 2000, P. 51). A maioria desses estudos encontra-se fundamentada nas idéias de
Vygotsky e Bakhtin talvez, e sobretudo, pela centralidade que a linguagem assume em seus
sistemas teóricos pois como ressalta Freitas (1997, p. 318):
[...] a mediação semiótica da vida mental é colocada como um ponto de partida em seus estudos [de Vygotsky e Bakhtin], do qual decorrem outros aspectos comuns: a constituição semiótica da consciência pela interiorização da linguagem, a linguagem interior como trama semiótica da consciência, o papel do outro e do diálogo nesse processo de interiorização, a intervenção crucial do contexto.
Buscando uma articulação entre nossa própria prática pedagógica enquanto professora de
Biologia no Ensino Médio e a re-orientação teórico-metodológica apresentada pela pesquisa em
Educação em Ciências, decidimos, no estudo realizado para a dissertação de Mestrado em
Educação realizada na Universidade Federal Fluminense, investigar a existência de relações entre
as interações discursivas e o processo de construção do conhecimento científico pelos alunos em
duas salas de aulas, sendo uma de Ciências do segundo segmento do Ensino Fundamental e outra
de Biologia do Ensino Médio. Realizando um diálogo teórico principalmente com Vygotsky,
Bakhtin e Werstch, analisamos cinco episódios de ensino de Biologia evidenciando a sala de aula
como espaço de interlocução onde se estabelecem processos intensos de negociação e fixação de
significados que expressam não apenas a riqueza do pensamento discente mas também o
movimento polissêmico e polifônico que vai sendo tecido, a partir de palavras e contra-palavras,
em torno da ciência e do conhecimento científico (MACHADO, 1999).
Entretanto, posteriormente, consideramos que aspectos mais específicos relacionados ao
processo de aprendizagem em ciências em um contexto sociocultural permaneceram lacunares
neste estudo exigindo, portanto, novas investigações. Neste momento, voltávamo-nos para o
processo de elaboração de conceitos biológicos pelos alunos ao mesmo tempo em que
entendíamos ser necessário um alargamento da nossa própria noção de aprendizagem e de
aprendizagem em Biologia.
19
Neste caminho, aproximamo-nos de três estudos que nos dão pistas para esta ampliação
da noção de aprendizagem. O primeiro refere-se ao trabalho de Perkins e Simmons (1988), que,
realizando um estudo para estabelecer os padrões de “misunderstanding” relativos a
aprendizagem em Física, Matemática e Programação de Computadores, aponta que a
compreensão mais profunda em cada uma dessas áreas envolve a articulação e integração de
quatro níveis de conhecimento: nível conceitual, de resolução de problemas, epistêmico e
investigativo, que são ativados e inter-relacionados na realização de diversas atividades
cognitivas. Os autores nos dizem que, no interior de cada um desses níveis, existem mecanismos
cognitivos específicos descritos como metacognitivos ou estratégicos e que são mobilizados no
processo de compreensão e, diríamos, significação de um dado conhecimento.
O segundo é o trabalho de Eylon e Linn (1988) que também sinaliza que a aprendizagem
em ciências envolve a aprendizagem de uma série de habilidades tais como a de integrar e
relacionar conhecimentos e a de mobilizar um dado conceito à resolução de novos problemas e
situações, o que permitiria a construção de “lifelong learning skills”.
Finalmente, o terceiro estudo de Leander e Brown (1999), assumindo uma matriz
muldimensional para analisar aulas de Física, descreve a aprendizagem como uma dança de
instabilidades e estabilidades a fim de caracterizar os movimentos de alternância entre processos
de negociação de um lado, e de fixação e alinhamentos de outro. Nesta dança, os alunos não estão
simplesmente respondendo às questões e aos problemas propostos pelo professor do ponto de
vista conceitual mas também organizando e assumindo suas próprias posições como participantes
no curso da interação em relação ao objeto da aprendizagem.
Relacionando estes estudos à perspectiva sociocultural anunciada anteriormente, podemos
supor que a noção de aprendizagem deve envolver um processo de significação, de construção e
mobilização de significados que se realiza em movimentos. Neste caso, é procedente nos
perguntarmos: esse processo de significação em Ciências/Biologia adquire contornos específicos?
Em outras palavras, tais movimentos são específicos para se atingir a compreensão e integração
dos conceitos biológicos? Ou ainda, aprender Biologia é o mesmo que aprender História,
Geografia, Matemática?
Uma resposta imediata nos é dada por Astolfi e Develay (1995) ao considerarem que os
conceitos científicos como respiração, ecossistema, genes não são da mesma natureza que os
20
conceitos lingüísticos e matemáticos, por exemplo. Segundo os autores, os conceitos científicos
apresentam duas características inseparáveis: permitem explicar e prever. Entretanto, consideram
que os conceitos científicos só são explicativos e preditivos no interior de certos limites que
marcam o seu campo de legitimidade.
Se, como sinalizam Astolfi e Develay (1995), existe uma especificidade em torno do
conceito científico que é explicar e prever determinadas situações e fenômenos no interior de seu
campo de validade é próprio pensar que os movimentos que entram em jogo no processo de
construção/significação no interior desses campos também sejam específicos, ou ainda, adquiram
uma especificidade no contexto em que se situam.
Reconhecendo essa especificidade do conceito científico e do processo de construção do
seu significado é preciso considerar ainda o que efetivamente se constitui em objeto da
aprendizagem em uma sala de aula de Biologia. Arcà, Guidoni e Mazzoli (1990, p. 24 e 25)
dizem que a “educação científica significa desenvolver modos de observar a realidade, e modos
de relacionar-se com a realidade; e isto implica e supõe modos de pensar, modos de falar, modos
de fazer, mas sobretudo a capacidade de juntar todas essas coisas” (grifos dos autores). Se assim
o é, podemos considerar que o processo de ensino-aprendizagem em ciências/Biologia parece
transcender os limites da apropriação de conceitos, muitas vezes apenas memorizados, repetidos
e sem qualquer significado para os alunos. Por isso mesmo é preciso assumir que:
[...] o problema educativo é muito mais amplo do que assinalar caminhos seguros, ou dar conteúdos técnicos específicos e não obstantes necessários; é, sobretudo, o de ajudar a crianças, jovens e adultos a encontrar umas estratégias de colonização cognitiva. Por estratégias de colonização se pode entender um modo de conquista progressiva e gradual [...] mas também a um retrocesso contínuo; a um voltar a por em questão aquilo que se tem feito para organizá-lo de novo; a um estar em condições de servir-se também daquilo que já se possui, adaptando-o para responder a novas exigências; a um desejo contínuo de melhorar a ordenação de todo o “território”. (ARCÀ; GUIDONI; MAZZOLI, 1990, p.24).
A aprendizagem em Biologia vai se configurando, portanto, como um processo dinâmico
caracterizado por um objeto específico que não se reduz a conceitos mas inclui igualmente
21
“modos de pensar”, “modos de falar” e “modos de fazer” e que ganham visibilidade quando se
focaliza as interações sociais mediadas pelo outro e pela linguagem.
Essa perspectiva pode ser ampliada a partir da noção de aprendizagem situada proposta
por Lave e Wenger (1995), que enfatizam a estreita relação entre aprendizagem e a situação
social na qual ela ocorre. Assim, a aprendizagem é vista como uma prática social uma vez que é
no engajamento dos indivíduos em comunidades caracterizadas por práticas culturais específicas
que decorre a apropriação não apenas de um corpo de conhecimentos abstratos mas também de
habilidades que os conduzem a uma maior participação no interior dessas mesmas comunidades.
A leitura que realizamos do trabalho de Lave e Wenger (1995) sugere uma articulação
intrínseca entre as dimensões teórica e prática e encaminha igualmente uma articulação entre
“saber como” e “saber fazer”. O “saber fazer” parece estar vinculado a uma idéia de
procedimentos e práticas que capacitam o indivíduo a se tornar proficiente/especialista em uma
determinada atividade profissional. Vale ressaltar que não é proposta do ensino de Biologia
formar especialistas ou biólogos mas encaminhar um processo no qual os alunos desenvolvam
habilidades e estratégias para enfrentar determinadas questões e situações que exijam um “olhar
mais científico”. Em nosso caso, o “saber fazer” encontra-se relacionado às práticas relativas aos
movimentos e as formas de se lidar com o conhecimento biológico e que a nosso ver constituem-
se em objetos de aprendizagem a serem contemplados na sala de aula de Biologia. Poderíamos
dizer então, como o faz Pozo (2005), que a aprendizagem envolve a apropriação de um “kit de
ferramentas” relacionado a determinados sistemas culturais.
De forma bem semelhante, Engle e Conant (2002) conceituam a aprendizagem como
“engajamento disciplinar produtivo”, pressupondo-a como um processo que favorece a
participação dos alunos em práticas escolares no seu sentido mais amplo e também em práticas
disciplinares específicas já que estão relacionadas a uma área de conhecimento. Este engajamento
do aluno pode ser evidenciado pelo seu nível de participação, pelas suas falas que se tornam mais
elaboradas e pela sua produção ao longo das aulas. No entanto, este engajamento do aluno
depende de uma certa organização pedagógica da sala de aula que inclui a realização de
atividades que tenham um caráter investigativo.
Podemos então considerar que situar o processo de aprendizagem exige, portanto,
considerar a especificidade do contexto social em que ocorre, seja por conta dos elementos
22
sociais que o constituem, seja pela forma de conhecimento que nele circula e que se materializa a
partir das atividades que são compartilhadas pelos sujeitos participantes do processo.
Consideramos, portanto, que existem processos gerais mas também processos específicos
que encaminham a construção de modos de falar, pensar e fazer o conhecimento científico e que
se realizam pela imersão desses alunos em um contexto em que se vivencia o que podemos
chamar de uma “cultura científica escolarizada”4. Dessa forma, propomos que tais processos
específicos relativos aos movimentos e aos modos de se lidar com o conhecimento,
desenvolvidos pelos alunos no processo de construção de significados biológicos, sejam
denominados de práticas epistêmicas. Assim, além de conceitos, as práticas epistêmicas devem
ser assumidas como objetos da aprendizagem em Biologia e, por isso mesmo, precisam ser
focalizadas no campo investigativo de forma a contribuir para a construção do pensamento
biológico que orienta e organiza o processo de significação na sala de aula de Biologia. A partir
dessa assunção, a questão de partida que orienta este estudo é assim formulada:
Lave e Wenger (1995) argumentam que a aprendizagem ocorre no interior de uma
comunidade de prática. Para os autores, uma comunidade de prática corresponde a um grupo de
indivíduos que desenvolve e compartilha objetivos, idéias e estratégias na realização de
determinadas atividades e tarefas o que pressupõe a construção de significados e modos de falar
específicos.
Neste estudo, assumimos a noção de que uma comunidade de práticas se constitui em um
espaço-tempo social e cultural que deve favorecer a participação dos indivíduos em atividades
compartilhadas desenvolvidas no seu interior como condição intrínseca para que a aprendizagem,
4 Aleixandre (2004) se refere à necessidade de imersão dos alunos na cultura científica para que a aprendizagem seja situada. Neste estudo preferimos adotar a expressão “cultura científica escolarizada” uma vez que reconhecemos a existência de uma especificidade de objetivos, objetos e significados da ciência que se ensina nas escolas.
Que práticas epistêmicas se realizam no interior de uma sala de aula de Biologia, e
como contribuem para a produção/construção de significados pelo aluno?
23
enquanto construção/produção de significados, se realize. Entendemos ainda que as condições de
produção são decisivas para que determinados significados sejam produzidos enquanto outros são
restringidos encaminhando assim uma certa forma de olhar, falar e se relacionar com o mundo.
Assim, a partir de nossa questão inicial, podemos formular outras a ela relacionadas:
Para enfrentar estas questões, tomamos a dinâmica da sala de aula de Biologia povoada
por diferentes sujeitos como lócus privilegiado de investigação e, neste sentido, parece-nos
adequado adotar a noção de ação mediada, uma vez que “a ação fornece um contexto dentro do
qual o indivíduo e a sociedade (bem como o funcionamento mental e o contexto sociocultural)
são entendidos como momentos inter-relacionados” (WERTSCH, 1998, p. 60).
1.2 Os objetivos do estudo:
Considerando nossa questão de partida, apresentada anteriormente, definimos como
objetivo geral desse estudo:
• Focalizar, particularmente, a organização e dinâmica de uma sala de Biologia a
fim de identificar e caracterizar as práticas epistêmicas realizadas pelos alunos na
produção de significados biológicos.
Como objetivos específicos, propomo-nos a:
• Empreender uma discussão teórica a fim de elaborar a noção de aprendizagem
situada enquanto processo de significação realizado a partir de práticas
epistêmicas específicas a uma área de conhecimento.
Em que consiste a especificidade de tais práticas epistêmicas considerando o contexto
da sala de aula de Biologia? Neste caso, podemos caracterizar a sala de aula de Biologia
como uma comunidade de práticas?
24
• Realizar uma articulação entre a produção do conhecimento científico a partir da
Sociologia da Ciência e a produção do conhecimento científico pelo aluno a fim
de identificar especificidades nos modos de se enfrentar
problemas/questões/situações em uma perspectiva biológica.
• Ampliar a discussão relativa à caracterização do discurso que se realiza no interior
da sala de aula de Biologia.
• Identificar, no curso das interações sociais que se organizam na sala de aula de
Biologia, as condições que parecem favorecer essas práticas epistêmicas
entendidas como os movimentos envolvidos na produção de significados.
A escola e, particularmente, a sala de aula, é o lugar social onde os sujeitos entram em
contato com os sistemas organizados de conhecimento e suas formas de funcionamento
intelectual (OLIVEIRA, 2000). Reconhecendo a especificidade da natureza do conhecimento
biológico, consideramos que a análise e aprofundamento da discussão relativa à aprendizagem
em uma perspectiva situada nos permite vislumbrar a possibilidade de intervenções pedagógicas
mais concretas na sala de aula.
1.3 Justificativa do estudo
Encaminhar uma proposta para o ensino exige pensar a princípio acerca do(s) processo(s)
de aprendizagem e, por certo, esta se constitui (ainda) em uma questão crucial, tanto no domínio
da psicologia quanto no domínio da educação, apesar de uma longa tradição histórica de
pesquisas sistemáticas inaugurada a partir do clássico trabalho de Ebbinghaus sobre memória
publicado pela primeira vez em 1885 (SHUELL, 1986). Não é por acaso, portanto, que
encontramos uma ampla literatura que se propõe discutir a questão da aprendizagem a partir de
diferentes enfoques e abordagens. Isto, sem dúvida, por um lado faz ampliar a noção de
aprendizagem, mas por outro torna seu conceito, por vezes, fluido e movediço. Assim,
dependendo da orientação adotada, surgem variações tanto no papel desempenhado pelos sujeitos
que aprendem como nos próprios mecanismos e processos envolvidos no ato de aprender.
25
Cabe então nos perguntarmos como a aprendizagem tem sido assumida nos meios
educacionais, particularmente na escola, considerada institucionalmente o espaço/tempo
privilegiado para que a relação ensinar-aprender tome lugar?
Tentando enfrentar essa questão, Colinvaux (2003) considera que a aprendizagem que faz
parte do ideário educacional pode ser sintetizada em princípios que se sustentam no ideal da
racionalidade abstrata: “1. a aprendizagem deve ir do mais concreto ao mais abstrato; 2. a
aprendizagem deve ir do mais simples ao mais complexo; 3. a aprendizagem deve ir do particular
ao geral.” Estes princípios são facilmente reconhecidos nas formas de organização dos currículos,
programas e livros didáticos que se constituem em instrumentos que orientam o processo de
ensino-aprendizagem nas escolas e refletem o conhecimento e o processo de sua aquisição como
algo linear, cumulativo, progressivo.
Deste ponto de vista, o que percebemos é que a aprendizagem em contextos escolares é
assumida, via de regra, de forma pouco problemática. Do lugar que ocupamos como professora
de Biologia, é comum ouvirmos que, após a apresentação de um determinado conteúdo, pode-se
assumir, sem muitas dúvidas, que o aluno aprendeu “satisfatoriamente” porque foi capaz de
realizar os exercícios propostos durante as aulas, ou ainda, porque teve um bom desempenho nas
provas e testes que constituem os instrumentos de avaliação bimestral. Entendemos que estas
formas de avaliar o aluno podem se constituir em dados significativos para indicar ou dar pistas
sobre a aprendizagem em um domínio exclusivamente conceitual. Entretanto, se tomamos a
aprendizagem em uma perspectiva mais ampla, essas mesmas formas parecem não ser
suficientes. Estas situações que emergem a partir de nossas experiências e reflexões levam a
questionar a aprendizagem escolar que se situa como um processo de “tudo ou nada”, ou melhor,
como a passagem de um estado de “não saber” para um estado de “saber” (COLINVAUX, 2007).
Nesta perspectiva, as experiências relativas à aprendizagem vivenciadas nas escolas pelos
alunos trazem, por vezes, marcas de um processo que rotula, pune e exclui. Ainda que
focalizando a situação extrema de constituição de identidades delinqüentes, Adorno (1993) nos
ajuda a problematizar a aprendizagem, ou melhor, a ausência de aprendizagem nas escolas. Para
o autor, a evasão escolar é um dos fatores que entram em jogo no mecanismo que denomina
26
“desterritorialização”5 e que acompanham as trajetórias de muitas crianças e adolescentes. Na
memória desses sujeitos, a escola é resgatada como um lugar monótono, vazio de sentido e
aprendizagem, como um processo e uma experiência nada estimulantes. A memória da escola e
também da própria aprendizagem é, portanto, a “memória de sua ausência” (ADORNO, 1993, p.
198). Talvez, a partir de nossa experiência como professora de escolas da rede pública, possamos
assumir que essa ausência de memórias relativas à aprendizagem de objetos específicos seja uma
constante. Ao tentarmos resgatar conceitos supostamente construídos em contextos anteriores é
comum percebermos, não sem uma certa perplexidade, que os alunos os desconhecem ou quando
muito já “ouviram falar sobre o assunto”. Suas lembranças são fragmentos que não se articulam
conceitualmente, o que impede a apropriação de forma mais ampla e crítica de determinadas
questões de natureza científica. Por isso, é urgente a necessidade de se re-pensar a escola e os
processos de aprendizagem que ali tomam lugar.
Colinvaux (2003), tomando como referência a noção de “transposição didática”
proposta por Chevallard, nos diz que a aprendizagem precisa ser entendida como um processo
que se refere a um objeto a ser apreendido por um sujeito e que, em contextos escolares, tem o
professor como elemento mediador. Nestes termos, a relação aprendizagem e ensino pressupõe
ação/interação entre os sujeitos nela envolvidos e entre estes e os objetos que se apreende. Este
processo de apropriação que se faz num movimento dialético e dialógico pode ser acompanhado
por rupturas, retrocessos, idas e vindas, saltos qualitativos, circularidade, que envolvem
mudanças epistemológicas e por isso mesmo novas formas de pensar e olhar um determinado
objeto.
A nosso ver, a aprendizagem deve se constituir em uma preocupação primeira e legítima
para aqueles que se propõem a ensinar. Enquanto educadores, é preciso nos perguntarmos: Como
os sujeitos aprendem? Como constroem seus conhecimentos? É certo que o enfrentamento dessas
questões envolve, de início, uma ruptura com visões simplistas e reducionistas sobre o ato de
ensinar.
Na perspectiva vygotskyana, há que se considerar que o desenvolvimento humano se
realiza a partir da apropriação e internalização de experiências históricas e culturais, ou seja, de
5 Em Adorno (1993), a desterritorialização se refere ao afastamento progressivo dos indivíduos de espaços institucionais como a escola e a família e a sua inscrição em outros microterritórios nos quais constroem o essencial de sua existência.
27
sistemas simbolicamente organizados. É na relação dialética que estabelece com o mundo físico e
social que o sujeito se constitui e se humaniza. Assim, os indivíduos, em seu processo de
constituição dependem das mediações que vão se realizando. Por isso mesmo, a aprendizagem é
um processo que antecede o desenvolvimento e viabiliza o desenvolvimento mental, “um aspecto
necessário e universal do processo das funções psicológicas e culturalmente organizadas e
especificamente humanas”. (VYGOTSKY, 1998, p. 118).
Relacionando a lei de dupla formação das funções mentais superiores e a noção de zona
do desenvolvimento proximal (ZDP), Vygotsky enfatiza a importância das interações mediadas,
particularmente pelo outro e pela linguagem. Em suas palavras:
[...] o aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança6 interage em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros. Uma vez internalizados, esses processos tornam-se parte das aquisições do desenvolvimento independente da criança. (VYGOTSKY, 1998, ps. 117 e 118).
Torna-se relevante trazer essa dimensão para esta discussão que se ocupa em tomar a
aprendizagem como objeto de estudo porque nos permite, primeiro, superar uma visão de
desenvolvimento do sujeito e mesmo da própria aprendizagem como processos previsíveis,
universais, lineares e ainda graduais; segundo, porque complexifica a escola, que para além do
aprender e ensinar se constitui em espaço/tempo de construção de subjetividades.
A escola, portanto, é um espaço social privilegiado e concorre para o desenvolvimento do
sujeito em sua singularidade; por isso mesmo é preciso pensar que uma prática pedagógica
baseada nestes pressupostos há de considerar o aluno como um sujeito único, ativo e interativo no
seu processo de construção de conhecimento. Assim, a escola e, mais precisamente, a sala de
aula, é o lugar de convivência da diversidade, da pluralidade, da heterogeneidade e lidar com
estes aspectos não é tarefa das mais fáceis quando temos em mente a construção de um
conhecimento histórica e culturalmente organizado e compartilhado.
6 Ainda que o trabalho de Vygotsky seja relativo ao desenvolvimento e aprendizagem em crianças, consideramos que suas idéias são válidas também para os adolescentes.
28
Entretanto, apesar de um discurso pedagógico que parece reconhecer e acolher esta
diversidade, o que vivenciamos nas instituições de ensino ainda é uma prática que trabalha com a
homogeneidade, com a normatividade, enfim, com o silenciamento/apagamento desses sujeitos-
alunos o que tem, de certa forma, contribuído para experiências não muito bem sucedidas dos
processos de aprendizagem e ensino. Como conseqüência, percebemos uma tendência à
naturalização dessas experiências de “não aprendizagem” que em casos mais extremos são
enquadradas como desvios de comportamento, de inteligência, de capacidade. Daí a
multiplicação de estudos que se ocupam em discutir os distúrbios e dificuldades da
aprendizagem. Institucionaliza-se a “patologização” da aprendizagem quando na verdade
deveríamos problematizar a própria noção de aprendizagem.
Discutindo sobre o sujeito da educação, Schäffer (1999) se pergunta se esse “não
aprender” seria realmente um problema de aprendizagem ou estaria concorrendo aí o fato de
vivermos em uma sociedade que só permite e aceita uma forma singular de reprodução do saber.
Neste caso, podemos pensar que na escola a aprendizagem só é considerada a partir dos “inputs”
- aquilo que é oferecido para os alunos na forma de conteúdos - e “outputs” - o que esperamos
que os alunos respondam ou sejam capazes de responder também na forma de conteúdos. Dessa
forma, resgatamos aquela idéia inicial de mudanças de um estado de “não saber” para um estado
de “saber” que poderiam ser medidas e controladas. Olhando a aprendizagem dessa perspectiva,
“a subjetividade do aluno torna-se um ‘isso’, um ‘nisso’, uma ‘coisa’ com a qual não sabemos
lidar. A distância que existe entre tratar o sujeito como um ‘isso’ e seu processo de exclusão é
muito pequena”.(SCHÄFFER, 1999, p. 32).
Parece que a discussão atinge uma questão recorrente no cenário educacional: inclusão x
exclusão. É preciso incluir e isto implica em distribuir de forma eqüitativa um conhecimento
produzido e necessário à formação de um cidadão crítico capaz de viver em uma sociedade
multifacetada que o convida insistentemente à tomada de ações e decisões acerca de questões
diversificadas. Já não basta apenas o aprendizado das letras e dos números. Há uma crescente
demanda de se letrar científica, tecnológica, artística e economicamente. O letramento pressupõe
ir além da mera apropriação de conceitos e códigos para serem repetidos mecanicamente.
Pressupõe que esses conceitos e códigos sejam significados para que possam ser usados de forma
articulada e crítica em uma realidade complexa e multifacetada. Para que os sujeitos desvelem
uma realidade e que esta, ao ser desvelada, possa ser transformada, como nos ensina Paulo Freire:
29
Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão, ao atuarem em função de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca de si e em suas relações com mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora e transformadora através das transformações que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, [...] não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica. (FREIRE, 1985, p. 105).
Esta demanda em se letrar cientificamente os indivíduos se torna mais urgente quando
reconhecemos a existência de uma crise, talvez sem precedentes na história da humanidade que
atinge de diferentes formas os diferentes setores da sociedade. Como assinala Capra (1982, p.19):
As duas últimas décadas de nosso século [século XX] vêm registrando um estado de profunda crise mundial. É uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afetam todos os aspectos de nossa vida – a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e das relações sociais, da economia, tecnologia e política. É uma crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais; uma crise de escala e premência sem precedentes em toda a história da humanidade. Pela primeira vez, temos que nos defrontar com a real ameaça de extinção da raça humana e de toda a vida no planeta.
Vivemos em uma sociedade marcada pelos riscos e pelas incertezas. Vemos, não sem
certa perplexidade, a ambigüidade refletida na imagem da ciência já que temos que conviver com
a deterioração galopante do ambiente físico e social ao lado de um mundo estonteante e que apela
cada vez mais para uma ética consumista desfrutada por um número cada vez mais reduzido de
pessoas. As conquistas científico-tecnológicas nos campos da comunicação, transportes,
alimentação, moradia, saúde e lazer convivem paralelamente com o desequilíbrio ecológico, a
miséria, a fome, os sem-empregos, os sem-terras, os sem-tetos, enfim com toda sorte de violência
que destrói, desumaniza e exclui o homem. Estes contrastes parecem minar, de uma vez por
todas, as crenças no progresso e no bem estar da humanidade como destino inexorável do
desenvolvimento científico e tecnológico.
Evidenciar as influências recíprocas e dialéticas entre ciência, tecnologia e sociedade deve
ser uma preocupação a ser incorporada, não apenas pelas propostas curriculares para o ensino de
30
ciências tal como já acontece, mas pelas práticas que efetivamente se realizam nas salas de aulas
de ciências. É preciso que se evidencie uma ciência como construção histórica e social, pois:
A ciência é um conhecimento que se expande, que se aprofunda e se revê, se corrige, continuamente. Ela também é histórica, não pode pretender situar-se acima da história, não pode escapar às marcas que o fluxo da história, a cada momento, imprime nas suas construções. Por isso, não é razoável tentar promover uma contraposição rígida entre ciência e ideologia. (KONDER, 2002, p. 105).
Este contexto impõe desafios à escola e, particularmente, ao ensino de ciências.
Entretanto, na contramão desse movimento, reconhecemos que a escola e o ensino de ciências
ainda se encontram mergulhados em uma perspectiva tradicional privilegiando o conhecimento
científico em sua dimensão estritamente conceitual. A ciência é ainda apresentada como um
corpo de conhecimentos neutro, objetivo e absoluto a serviço do bem estar da humanidade que se
traduz na escola como conteúdos a serem memorizados e repetidos sem qualquer articulação com
a materialidade concreta em que os alunos se encontram inseridos. Nesta perspectiva, a ciência
ensinada na escola tem pouca ou nenhuma permanência além da etapa escolar. Como dito
anteriormente, a memória dessa aprendizagem é a memória de sua ausência.
Jenkins (1999a) argumenta que deveria ser construída uma “ciência para a cidadania”. E a
nosso ver, isto inclui:
[...] ter o conhecimento necessário para entender debates públicos sobre
questões de ciência e tecnologia. Misto de fatos, vocabulário, conceitos, história e filosofia. Não se trata do discurso de especialistas, mas do conhecimento mais genérico e menos formal. Entender notícias de teor científico (buraco na camada de ozônio ou código genético), lidar com informações do campo científico da mesma forma como lida com outro assunto qualquer. (HAZEN; TREFIL7, 1995 apud BARROS, 1998, p.70).
A ciência representa, portanto, um sistema cultural simbólico com características
específicas que demanda formas específicas de apropriação e de uso. Se tomarmos este sistema
cultural como instrumento mediador tal qual definido por Vygotsky, devemos considerar que esta
7 HAZEN, R.M.; TRIFIL, J. Saber Ciência. São Paulo:Editores Associados, 1995.
31
apropriação e uso implicam na construção de novas formas de pensar o mundo e com ele se
relacionar. Implica na construção/produção de novos significados. Neste sentido, o mundo não
será mais o mesmo mas também não o será o sujeito. A assunção desses aspectos nos faz
acreditar na relevância de um estudo que se propõe entrar em uma sala de aula de Biologia para
revelar as práticas epistêmicas adotadas pelos alunos no processo de construção desses novos
significados justamente por, talvez, ser esse o caminho para que objetivos, objetos e mesmo
metodologias do ensino-aprendizagem sejam revistos de forma mais segura e consciente por
todos aqueles envolvidos nesse processo.
1.4 Organização do estudo
O estudo está organizado como se segue:
No capítulo 1 e que corresponde à Introdução desse estudo, definimos a gênese de nossa
questão que revela uma articulação intrínseca entre nossa própria prática pedagógica enquanto
professora de Biologia no Ensino Médio e o delineamento de um referencial teórico que vai
sendo construído ao longo de nossa formação. Nesse percurso apresentamos, ainda, os objetivos
do estudo bem como justificamos a relevância de um trabalho que se propõe problematizar
inicialmente a aprendizagem escolar e, particularmente, a aprendizagem em ciências em face de
um contexto marcadamente contraditório no qual vivemos e que exige, por certo, redimensionar
objetivos e objetos do processo de ensino-aprendizagem em ciência e, por decorrência, a própria
noção de aprendizagem.
No Capítulo 2, Uma discussão em torno da noção de aprendizagem, iniciamos uma
discussão orientada, principalmente, por POZO (2005 e 2002), que problematiza a aprendizagem
como mudança comportamental e como processamento de informações a fim de ascendermos a
uma mente cultural cuja aprendizagem envolve modificações das representações que são
construídas nas relações que o sujeito estabelece com seu mundo físico, social e cultural.
Posteriormente, nos ocupamos em trazer as contribuições da pesquisa sociocultural (WERTSCH;
DEL RIO; ALVAREZ, 1998; WERTSCH, 1998 e WERTSCH, 1999) a fim de definirmos a ação
mediada como uma unidade de análise que permita a compreensão mais ampla e profunda da
aprendizagem. Esta incursão teórica nos leva à noção de aprendizagem situada nos termos de
32
LAVE e WENGER (1995) e de aprendizagem como engajamento disciplinar produtivo (ENGLE;
CONANT, 2002), que oferecem elementos para se pensar as práticas epistêmicas relativas ao
processo de produção de significados.
No Capítulo 3, Uma aproximação entre a sociologia do conhecimento científico e a
pesquisa em educação em ciências: revelando práticas científicas e práticas científicas
escolares, resgatamos, inicialmente, alguns elementos teóricos dos trabalhos de KNORR-
CETINA (1981 e 1992) e de LATOUR (2000), uma vez que realizam estudos de natureza
etnográfica a fim de analisar o processo de produção do conhecimento científico no interior dos
laboratórios e, por isso mesmo, podem nos fornecer pistas para pensar as práticas relativas ao
processo de produção de significados na sala de aula de Biologia. Essa discussão é
posteriormente ampliada por uma revisão de literatura acerca de estudos que, filiando-se a uma
perspectiva sociocultural, têm enfrentado a sala de aula de ciência e contribuído
significativamente para evidenciar elementos que caracterizam esse espaço/tempo de construção
de conhecimento.
No Capítulo 4, Sala de aula de Biologia: Como e o quê investigar?, delimitamos nosso
percurso metodológico situando o referencial teórico-metodológico que orienta o estudo bem
como o local e os sujeitos da pesquisa. Ocupamo-nos ainda em apresentar os princípios e
justificativas com um detalhamento do conjunto de atividades desenvolvidas ao longo da unidade
de ensino que se constitui em objeto de investigação desse estudo. Ao final, trazemos os
instrumentos de coleta de dados e os processos de análise encaminhados procurando justificar a
organização dos capítulos de resultados que são apresentados na seqüência.
No Capítulo 5, O que sabem e como sabem os alunos quando o tema envolve o DNA,
apresentamos os resultados referentes ao levantamento das concepções dos alunos antes do início
da unidade de ensino, obtidas a partir da aplicação de um questionário contendo questões abertas
que envolviam, em certa medida, a mobilização dos seus conhecimentos acerca de estruturas
moleculares e microscópicas como DNA e núcleo celular.
No Capítulo 6, Sala de aula de Biologia: espaço de interlocução e dinâmica
pedagógica, apresentamos uma primeira aproximação ao contexto da turma analisada, definindo
os conteúdos abordados a cada aula, bem como os objetivos e atividades desenvolvidas o que nos
permite delimitar aspectos relativos à dinâmica pedagógica e interativa tomando como referência
33
algumas categorias de análise propostas por MORTIMER E SCOTT (2002) e MORTIMER et al.
(2007).
No Capítulo 7, Sala de aula de Biologia: situando o processo de construção de
significados pelos alunos, selecionamos sete seqüências interativas que, ancoradas às nossas
referências teórico-metodológicas, evidenciam de alguma forma as práticas epistêmicas
desenvolvidas pelos alunos no processo de construção de significados biológicos.
No Capítulo 8, Dos fatos às coisas: ou de quando os alunos realizam atividades de
laboratório, tomando como referência, MILLAR, MARÉCHAL e TIBERGHIEN (1999);
WOONOULGH e ALLSOP (1985) e IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA (1999)
realizamos uma breve discussão teórica que nos permite situar os sentidos das atividades de
laboratório no processo de ensino-aprendizagem em ciências. Posteriormente, delimitamos os
objetivos e as características da atividade desenvolvida com os alunos relativa à extração do
DNA. Essa visão geral associada a um olhar teórico possibilita a seleção de algumas cenas da
atividade de laboratório que evidenciam um processo de significação não apenas relacionado aos
conceitos mas também aos próprios procedimentos metodológicos da produção em ciências.
Finalmente, orientados particularmente por MORTIMER; CHAGAS; ALVARENGA (1998),
analisamos os relatórios produzidos pelos alunos buscando indícios de apropriação conceitual e
de uma linguagem específica que é própria da ciência.
No Capítulo 9, A sala de aula de Biologia: evidenciando a produção dos alunos,
apresentamos em linhas gerais, os trabalhos produzidos pelos alunos, ao final da unidade de
ensino, destacando novos e recorrentes aspectos relativos ao processo de significação. Trazemos
algumas situações em que os alunos resgatam os conceitos trabalhados ao longo da unidade de
ensino e os aplicam a novas situações bem como aspectos que apontam para a incorporação de
um discussão relativa à ética na ciência.
No capítulo 10, relativo às Considerações Finais, procuramos sistematizar os resultados
e encaminhar uma discussão que nos permita caracterizar especificidades do/no processo de
significação na sala de aula de Biologia.
2. UMA DISCUSSÃO EM TORNO DA NOÇÃO DE APRENDIZAGEM
A cultura humana construiu novos nichos cognitivos [...] que se afastam bastante da monótona savana, na qual podia detectar bem longe o perigo ou o alimento potencial. Muitos dos problemas para os quais está planejada nossa mente, literalmente, já não existem [...]. Hoje em dia, a comida não é vista no horizonte, mas nas prateleiras de um supermercado [...] O perigo não costuma ser o ataque de um predador ou o tombo de uma árvore, mas alguém que desrespeita um semáforo ou alguma cobrança da Receita Federal. (POZO, 2005, p.76).
Neste capítulo, realizamos uma discussão geral relativa à aprendizagem a partir de um
resgate deste conceito nas principais correntes psicológicas: o behaviorismo e o cognitivismo em
sua vertente dominante, o processamento de informações. Esta incursão é um caminho necessário
para ascendermos à perspectiva de uma mente humana que se realiza na articulação intrínseca
com os sistemas culturais de conhecimento dotando-a de flexibilidade, autonomia e
independência relativamente às variações constantes a que está sujeita em nichos cognitivos cada
vez mais complexos. O reconhecimento desta mente cultural permite situar, posteriormente,
nosso estudo em uma perspectiva sociocultural, tomando a ação mediada como unidade de
análise a ser assumida quando se pretende superar antigas antinomias que estão postas entre
sujeito e contexto. Tentando avançar nesta discussão, apresentamos a aprendizagem como um
processo situado em comunidades de prática, o que possibilita um novo olhar a fim de mapear e
caracterizar as práticas que acompanham os alunos em situação escolar na aquisição de
conhecimentos pertinentes a um sistema cultural específico como a ciência biológica.
35
2.1 De uma perspectiva comportamental a uma perspectiva cognitivista: elementos gerais
para situar a noção de aprendizagem
Durante longo tempo o Behaviorismo apresentou-se como o paradigma dominante na
psicologia para explicar a aprendizagem humana. Sua emergência deve-se entre outros aspectos a
uma necessidade de estabelecer princípios metodológicos que possam resgatar o objetivismo na
Psicologia. Dessa forma, o behaviorismo organiza-se como um programa antimentalista que toma
como objeto de análise a conduta observável dos indivíduos.
Para Pozo (2002), o programa behaviorista carece de um marco conceitual organizador e
este aspecto parece decisivo para uma dispersão teórica que marca o aparecimento de diferentes
classes e subclasses teóricas que podem ser agrupadas em duas correntes principais: o
behaviorismo radical ou extremo que nega a existência da consciência e o behaviorismo
metodológico que, mesmo não negando a existência da consciência, considera a impossibilidade
de estudá-la a partir de métodos objetivos.
Apesar dessas divergências, o núcleo central do behaviorismo apóia-se em uma
concepção fortemente associacionista da aprendizagem cujas bases filosóficas encontram-se em
uma filosofia empirista que pressupõe que o conhecimento emerge a partir de impressões
capturadas pelos sentidos. O princípio associacionista, tal como formulado na filosofia
aristotélica, entende o indivíduo que aprende como uma “tábula rasa”, o que implica em situar
toda e qualquer manifestação desse indivíduo como uma cópia isomórfica das contingências ou
variações simultâneas do ambiente. Por isso, o encaminhamento experimental no interior do
programa behaviorista envolvia a observação de tarefas sempre descontextualizadas, realizadas
por organismos, geralmente ratos e pombos, cujos resultados eram estendidos à espécie humana.
Dessa relação associacionista deriva-se o princípio da correspondência que considera o
indivíduo em sua conduta como uma cópia isomórfica do ambiente em que se encontra. A mente,
mesmo não sendo negada em sua existência por alguns teóricos dessa corrente, é considerada
apenas como uma cópia da realidade ou um reflexo dela. O ambiente é, portanto, decisivo, uma
vez que representa a mola propulsora de toda e qualquer mudança que possa ser manifestada pelo
indivíduo. Isto parece enfatizar seu caráter passivo cujo papel limita-se a responder a essas
contingências e variações ambientais de forma explicitamente mecânica.
36
Outro aspecto a ser ressaltado no programa behaviorista é a relação estímulo-resposta
enquanto uma teoria que explica a aprendizagem e, supostamente, o desenvolvimento do
organismo. Apesar de existirem variações nos procedimentos experimentais quanto aos esquemas
E-R, o que se procura enfatizar é o caráter atomista que esta relação evidencia, qual seja, que
todo comportamento por mais complexo que possa ser, sempre será explicado a partir da
associação de estímulos simples disparados via de regra pelo ambiente.
Finalmente, é preciso considerar o princípio da eqüipotencialidade que se traduz na idéia
de que “as leis da aprendizagem são igualmente aplicáveis a todos os ambientes, espécies e
indivíduos” (POZO, 2002, p. 27). Isto significa dizer que existe uma única forma de se aprender
traduzida no associacionismo, o que torna explicável as generalizações que se fazem da
aprendizagem em ratos para a aprendizagem humana.
Em linhas gerais pode-se dizer que, no associacionismo, as mudanças percebidas na
conduta do indivíduo são sempre de origem externa e de natureza quantitativa. Nas palavras de
Pozo (2005, p.20):
[...] os modelos de aprendizagem associativa, [...] num enfoque
elementista, analítico, decompõem qualquer ambiente num conjunto de elementos associados entre si com distinta probabilidade, de modo que aprender é detectar, com maior precisão possível, as relações de contingência entre esses elementos ou fatos, de forma que os processos de aprendizagem consistem essencialmente em mecanismos de cômputo dessas contingências.
Se, por um lado, o behaviorismo parece ter dificuldades diante de sua própria organização
interna que não consegue elaborar uma teoria unitária, de outro, o aparecimento de anomalias
empíricas como aquelas evidenciadas pelo trabalho de Garcia e Koelling8 (1966) ferem de forma
decisiva o núcleo central do associacionismo.
Entretanto, como adverte Pozo (2002), apesar da crise do behaviorismo, há uma tentativa
de reconfiguração em torno de alguns de seus elementos centrais. Contudo, isto é feito sem abrir
mão do associacionismo como mecanismo exclusivo de aprendizagem. Assim, pode-se dizer
8 Segundo Pozo (2005) o trabalho de Garcia e Koelling mostram uma preferência seletiva por certas associações em detrimento de outras, evidenciando que os estímulos não eram tão neutros e as associações não eram tão arbitrárias como até então se pressupunha, o que faz minar o princípio da equivalência dos estímulos.
37
como o faz Pozo (2005), que a aprendizagem continua sendo sinônimo de comportamento em
muitos âmbitos da psicologia, senão acadêmica pelo menos profissional.
Após este longo e frio inverno de objetivismo, a Psicologia ousou resgatar os processos
mentais como objeto de análise (BRUNER, 1997). Estabelecer um marco temporal para o
surgimento da Psicologia Cognitiva não é tarefa das mais fáceis mas, de qualquer forma, Pozo
(2002) o faz situando-o no ano de 1956 justamente por corresponder a publicação de trabalhos
inéditos como os de Miller (1956)9; Chomsky (1957)10 e Bruner, Goodnow e Austin (1956)11
que, de certa forma, incorporam as demandas tecnológicas do mundo pós-guerra e também das
ciências do artificial.
Em um primeiro momento, ancorada em uma filosofia racionalista, esta nova Psicologia
Cognitivista se apresenta como uma possibilidade de ruptura com o behaviorismo, acenando com
a construção de um novo paradigma que pudesse explicar a aprendizagem e que incorporava
dessa vez os estados mentais. Entretanto, uma análise mais cuidadosa, como o fazem Pozo
(2002) e Bruner (1997), logo evidencia que existe, na verdade, uma continuidade entre essas duas
tendências e mesmo um esvaziamento da abordagem cognitivista em sua proposta inicial. Nas
palavras de Bruner (1997, p.19), muito cedo se percebeu que:
[...] não era necessário lidar com processos mentais ou com significados. Em lugar de estímulos e respostas, havia input e output, com a noção de “reforço” lavada de sua mancha afetiva ao ser convertida em um elemento de controle que alimentava informações sobre o resultado de uma operação de retorno ao sistema. Contanto que houvesse um programa, havia “mente”.
Podemos dizer que duas grandes correntes se organizam no interior da psicologia
cognitivista: uma americana e que explora, particularmente, a metáfora da mente como
computador; e uma européia que, apesar de reunir posições teóricas heterogêneas, se preocupa
em resgatar elementos esquecidos pelo processamento de informações tais como os “significados
9 MILLER, G.A. (1956) The magical number seven, plus o minus two: some limits on our capacity for processing information. Psychological Review, 63, 81-87. Trad. Cast. Em M.V. Sebastián (Ed.) Lecturas de psicologia de la memoria. Madrid: Alianza, 1983. 10 CHOMSKY, N. (1957) Syntactic structures. La Haya: Mouton. Trad. Cast. Las estructuras sintácticas. Madrid: Aguiar, 1970. 11 BRUNER, J.S.; GOODNOW, J.; AUSTIN, G.A. (1956) A study of thinking. New York: Wiley. Trad. Cast. De J. Vegas: El processo mental em el aprendizage. Madrid: Narcea, 1978.
38
que os seres humanos criavam a partir de seus encontros com o mundo”. (BRUNER, 1997, p.
16).
Para a corrente norte-americana, o ser humano é um processador de informações,
tomando como base a analogia estrutural e funcional entre a mente e o computador. Como diz
Pozo (2005, p.49), a psicologia cognitiva acabou por reduzir conhecimento à informação,
definindo a aprendizagem não como um processo de mudança comportamental, mas sim como a
aquisição de informação, o que “permite reduzir a incerteza ou entropia do mundo e o caráter
aleatório ou imprevisível dos sucessos” (p.49).
Assim, os sistemas cognitivos, integrando diferentes unidades informativas, seriam
capazes de construir representações utilizadas para reduzir a incerteza e imprevisibilidade do
ambiente em que se situam. Alguns aspectos derivam desta consideração: o primeiro, relacionado
ao fato de informações serem termos matemáticos e assim esvaziados de conteúdos e de
significados. Isto implica em dizer que o processamento cognitivo é constituído de regras formais
e sintáticas, que são indiferentes ao conteúdo semântico. Em outras palavras, “tanto o ser humano
quanto o computador são concebidos como sistemas lógicos ou matemáticos de informação,
constituídos exclusivamente por procedimentos formais” (POZO, 2002, p. 44). Na perspectiva da
aquisição de informações, desconsideram-se, portanto, as histórias tanto pessoais, sociais e
filogenéticas quanto qualquer referência ao mundo daquele que aprende, uma vez que os sinais só
ganham sentido no interior do sistema que o gerou e não em um contexto de interação e de trocas.
Na verdade, algumas operações básicas propostas por Anderson12 (1982, 1983 apud
SHUELL, 1986) em sua teoria ACT (Adaptative Control of Thought), tais como codificar, atuar,
emparelhar, executar, parecem dar conta de explicar a capacidade humana para construir
conhecimentos. Assim, um princípio fundamental do processamento de informação é a
composição recursiva que considera que qualquer tarefa ou atividade cognitiva pode ser
decomposta nas unidades menores que a compõem. A memória parece ganhar destaque no
processamento de informações e pouca ou nenhuma atenção é dada aos processos de aquisição e
modificações dessas informações. Ao tentar reduzir a mente a um processador de informações, a
visão computacional:
12 ANDERSON, J.R. (1982) Acqusition of cognitive skill. Psychological Review, 89, 36. _______________ (1983) The architecture of cognition. Cambridge, Ma.:Harvard University Press.
39
[...] toma as informações como [...] dadas, como algo já estabelecido em relação a um código preexistente, de regras que mapeiam estados do mundo. Esta boa forma é ao mesmo tempo sua força e sua fraqueza [...] pois o processo do saber é muitas vezes confuso, mais repleto de ambigüidades do que permite tal visão (BRUNER, 2001, p.15).
As delimitações teóricas que se expressam no processamento de informações parecem
aprisioná-la ao comportamentalismo. O associacionismo permanece como o mecanismo que
explica a aprendizagem.
Já a corrente européia, que inclui nomes como Piaget e Vygotsky13, organiza-se a partir de
orientações epistemológicas que a distancia significativamente do processamento de informações,
ainda que ambas sejam qualificadas como cognitivistas.
Tais teorias entendem que o foco de análise se situa nas globalidades, não podendo ser as
mesmas decompostas em seus componentes elementares. Nas palavras de Vygotsky (2001, ps. 5
e 6) esta decomposição das totalidades psicológicas complexas:
[...] poderia ser comparada à análise química da água, que a decompõe em hidrogênio e oxigênio. Um traço essencial dessa análise é propiciar a obtenção de produtos heterogêneos ao todo analisado, que não contém as propriedades inerentes ao todo como tal e possuem uma variedade de propriedades que nunca poderiam ser encontradas nesse todo [...] ao pesquisador não restaria senão procurar uma interação mecânica externa entre os elementos para, através dela, reconstruir por via puramente especulativa aquelas propriedades que desapareceram no processo de análise mas que são suscetíveis de explicação.
Ao sujeito é atribuída uma organização interna que lhe permite, a partir da interação com
o mundo físico e social, construir significados para interpretar este mesmo mundo. Para isto, este
sujeito deve mobilizar aquelas estruturas cognitivas e conceituais que ele construiu previamente.
A aprendizagem se faz, portanto, por um processo de reestruturação que considera:
13 Nesta corrente podemos ainda destacar os nomes de dois norte-americanos: Bruner que participa da Revolução Cognitiva na década de 1950 e também Ausubel cujo trabalho em torno da aprendizagem significativa surge na década de 1970.
40
[...] o caráter deliberado ou intencional dos processos de construção de novas representações ou conhecimentos para a solução de novos problemas e tarefas, algo que [...] implica a capacidade de representar as próprias metas e processos de aprendizagem, isto é transformar a aprendizagem numa ação teleológica [...] (POZO, 2005, p. 24).
A dialeticidade dessa perspectiva expressa-se, particularmente, quando se dá vida ao
sujeito, no sentido que ele agora modifica a realidade e, ao modificá-la, modifica a si próprio.
Sujeito e objeto constroem-se mutuamente. A aprendizagem na perspectiva construtivista, longe
de ser movimento ou configuração energética que permite capturar a ordem externa, é uma
qualidade intrínseca ao organismo para gerar novas formas de organização cognitiva, ou seja,
novos significados que se realizam mediante processos de reestruturação. O mundo é então um
reflexo do conhecimento construído pelo sujeito.
Nesta perspectiva, a aprendizagem vai se complexificando, posto que o ambiente humano
não é apenas físico, mas cultural e social, por isso mesmo, cambiante e complexo. Precisamos,
portanto, desenvolver, no curso de nossa história evolutiva, mecanismos específicos para nos
adaptarmos a ele.
Pino (1995), por exemplo, considera que a capacidade de conhecer é uma característica
adquirida pelos homens ao longo de sua história social e cultural e, neste sentido, é de origem
filogenética. Seguindo esta direção, Oliveira (1995) sinaliza que Vygotsky propunha a existência
de três estágios no desenvolvimento do comportamento animal que antecedem a passagem para
um funcionamento psicológico exclusivamente humano. O primeiro deles está relacionado às
reações hereditárias com a função biológica de auto-preservação e reprodução da espécie; o
segundo de reflexos condicionados que surgem da experiência animal como mecanismo de
adaptação às mudanças ambientais; e o último estágio corresponde à emergência de operações
voltadas para a solução de problemas que se manifestam em primatas superiores como o homem
e o chimpanzé.
Essa capacidade de resolver problemas, que não se restringe à espécie humana, exige o
aparecimento de sistemas cognitivos com uma função representacional, ou seja, capazes de gerar
representações a partir de informações. Para Pozo (2005, p. 63), as representações se referem
necessariamente a um mundo material ou não, são sobre algo, e esse conteúdo das representações
é tão importante como sua forma (ou sua informação).
41
Para Pino, o conceito de representação, apesar de estar longe de um consenso, é tomado
na teoria do conhecimento como significando uma função ou um objeto mental.
Como função, a representação é a propriedade que têm as coisas – atribuída a elas pelos homens - de substituir e evocar outras coisas. Como objeto mental, a representação é o desdobramento do real no seu equivalente simbólico, o que implica a função semiótica. (PINO, 1995, p.35).
De qualquer forma, podemos dizer que as representações emergem da/na interação que os
organismos estabelecem em contextos particulares e isto implica em situar a especificidade dos
domínios aos quais estas representações estão relacionadas pois, como considera Pozo (2005, p.
70):
A mente humana trabalha com representações, e essas representações,
por sua vez, tratam daquelas partes do mundo com as quais essa mente interage. A mente e o ambiente se constroem mutuamente. Analisar a aprendizagem como um processo de [aquisição e] mudança de representações [...] implica estudar sua aquisição em domínios específicos.
Um organismo, portanto, não será capaz de representar toda e qualquer variação que se
processa no ambiente, mas somente aquelas que lhe são relevantes em sua história evolutiva de
tal forma que cada espécie elabora o seu próprio “nicho cognitivo”. Por isso, essas representações
não são totais ou exaustivas mas sempre parciais e podem até mesmo funcionar como restrições
construtivistas no processo de aquisição de novas representações ou de modificações daquelas já
existentes. Estes aspectos sugerem a relação intrínseca entre mente e corpo no curso evolutivo,
pois como diz Damásio (2005, p. 260 e 261):
Se o cérebro evoluiu, antes de mais nada, para garantir a sobrevivência do corpo, quando surgiram os cérebros “mentalizados”, eles começaram por ocupar-se do corpo. E, para garantir a sobrevivência do corpo da forma mais eficaz possível, a natureza [...] encontrou uma solução altamente eficiente: representar o mundo exterior em termos das modificações que produz no corpo propriamente dito, ou seja, representar o meio ambiente por meio da modificação que tiver lugar numa interação entre o organismo e o meio ambiente.
42
Considerando ainda este curso evolutivo dos sistemas cognitivos, Mithen (2002) sugere
que as representações que compartilham dos mesmos processos de aprendizagem podem ser
agrupadas em quatro domínios: o domínio técnico, o domínio natural, o domínio social e o
domínio lingüístico. Destes domínios, aqueles que marcam a natureza especificamente humana
situam-se no social e lingüístico, justamente porque conferem ao organismo a capacidade de
tomar as representações como objetos de pensamentos, ou seja, de meta-representar envolvendo
controle e consciência das ações e finalidades. Na visão de Pozo (2005, p. 105):
[...] em algum momento de nossa evolução como espécie cognitiva, desenvolvemos a capacidade de explicitar nossas representações, a capacidade de meta-representar ou, melhor ainda, de conhecer nossas próprias representações, que seria o traço cognitivo mais específico do Homo sapiens.
Vale esclarecer que o domínio lingüístico, ainda que essencialmente humano porque
qualificado como sistema simbólico que permite a vida social, não teria surgido antes que
houvesse essa necessidade de se comunicar e de se ter acesso consciente às próprias
representações. Como diz Olson (1998, p.90) “a função representacional, que era baseada na
habilidade de manter objetos na mente em sua ausência é que tornou o aprendizado da língua
possível”. Assim, a linguagem, enquanto sistema simbólico e cultural, cumpre uma dupla função;
de um lado é um instrumento que permite comunicar representações, de outro se constitui num
“amplificador cognitivo”, uma vez que possibilita gerar novas representações e re-descrever
aquelas já existentes de forma explícita e intencional. Este aspecto acabaria por alterar a cognição
e a consciência.
A linguagem se transforma, assim, num sistema de representação
privilegiado que permite já não somente fazer referência explícita aos objetos presentes, mas também re-presentar sucessos não-presentes, assim como as atitudes ou perspectivas próprias em relação a eles (POZO, 2005, p. 145).
Em sendo assim, quando as representações se transformam em objetos de representação,
em meta-representações, podemos dizer que “a cultura material já não é somente uma memória
externa do mundo, mas uma nova forma de pensar e representar o mundo, porque os novos
artefatos produzidos por essa cultura material [...] são sistemas para representar idéias,
tecnologias simbólicas” (POZO 2005, p.145).
43
O que parece claro para nós é que mente e cultura evoluíram conjuntamente, inicialmente
orientadas e dirigidas por processos de seleção natural que, posteriormente, foram substituídos
quase que exclusivamente por processos que governam o funcionamento social. É preciso
considerar que não existe mente sem cultura, mas também não existe cultura sem mente. Se é
certo afirmar que os sistemas culturais acabam por gerar novas reconfigurações em nosso
funcionamento mental, também é certo afirmar que a mente, por vezes, também restringe e até
mesmo transforma os sistemas culturais.
Embora a mente humana tenha se tornado capaz de meta-representar, não abdicou de
alguns sistemas de representação que compartilhamos filogeneticamente com outras espécies.
Estes sistemas podem inclusive impor restrições à apropriação de conhecimentos situados em
determinadas esferas culturais. Um bom exemplo para ilustrar esta situação é a nossa visão do
corpo: respiramos, alimentamo-nos, excretamos, enfim, realizamos uma série de atividades
percebidas macroscopicamente. Entretanto, a biologia molecular tem evidenciado que este corpo
é, na verdade, uma entidade autopoética que se perpetua através da atividade química, da
movimentação das diversas moléculas que a constituem e que garantem a manutenção da vida
(MARGULIS; SAGAN, 2002). Neste caso, parece existir uma certa dificuldade entre esses
sistemas culturais e a mente daqueles que devem aprender. É como se nossa mente funcionasse
como um sistema “imunológico cognitivo”. Isto não significa que a aquisição de tais
conhecimentos ou representações seja impossível mas sim que este processo de reconstrução
mental da cultura vai exigir novos processos de aprendizagem ou mudança conceitual e novas
formas de intervenção, particularmente quando relacionados a contextos formais de educação.
Bruner também considera que há restrições inerentes à natureza do próprio funcionamento
mental pois, no processo evolutivo, especializamo-nos em determinadas maneiras características
de saber, sentir e perceber. Tais restrições
limitam nossos modos de conceber questões presumivelmente impessoais, “objetivas” como tempo, espaço e causalidade. Vemos o “tempo” como se tivesse uma continuidade homogênea – como se fluísse uniformemente, seja medido por relógios, fases da lua, mudanças climáticas ou qualquer outra forma de recorrência. As concepções descontínuas ou quânticas do tempo vão contra o bom senso a tal ponto que passamos a acreditar que o tempo contínuo é o estado de natureza que experimentamos diretamente. (BRUNER, 2001, p.26).
45
2.2 Situando a Pesquisa Sociocultural e a noção de ação mediada
Vivemos cercados de novos conhecimentos. Entretanto, segundo Pozo (2005), a
distribuição deste conhecimento ainda se dá de forma muito desigual, uma vez que aqueles que
não têm acesso aos diferentes sistemas culturais de representação simbólica encontram-se na
verdade mergulhados em um mar de informações que não se traduzem em verdadeiro
conhecimento. Daí a necessidade sempre crescente de campanhas que visem a universalização
desses sistemas culturais. A apropriação de tais sistemas envolve não apenas uma dimensão
conceitual, mas igualmente os processos e mecanismos que entram em jogo na sua aquisição e
uso e que Pozo (2005) denomina de “kits ou ferramentas cognitivas” necessárias para aprender
novos conhecimentos em domínios específicos.
É próprio da natureza humana a competência para adquirir novos conhecimentos dada a
complexidade e variabilidade dos ambientes culturais em que nos encontramos. Imersos nestes
contextos culturais, somos desafiados a buscar soluções adaptativas bem como a compartilhá-las
com nossos pares. Assim, o que caracteriza efetivamente os humanos como uma espécie
cognitiva é a capacidade de:
Acumular essas soluções culturalmente em forma de conhecimento, transmitindo-as de geração em geração, porque [os humanos] dispõem de sistemas de aprendizagem e representação que os diferenciam dos demais organismos e sistemas que aprendem. (POZO, 2005, p.13).
Portanto, pensar e entender o homem enquanto um ser que conhece exige situá-lo em seu
contexto cultural, evidenciando particularmente a sua participação em atividades que se realizam
no interior desses sistemas simbólicos e culturalmente organizados.
Na perspectiva de Bruner (1997), a cultura é constitutiva da mente humana e este aspecto
possibilita até mesmo transcender determinados limites de ordem biológica. Para o autor, “é a
cultura, e não a biologia, que molda a vida e a mente humanas, que dá significado à ação,
situando seus estados intencionais subjacentes em um sistema interpretativo”. (BRUNER, 1997,
p. 40).
44
Ainda que tais restrições sejam tomadas, algumas vezes, como universais justamente
porque fruto de nossa evolução enquanto espécie, Bruner (2001) não as considera como um “dote
inato fixo” do homem e, portanto, imutáveis. Ao contrário, supõe que a exposição do homem a
sistemas simbólicos compartilhados por uma comunidade possa de fato contribuir para a
superação destas restrições. É nesse sentido que o autor encontra na Zona de Desenvolvimento
Proximal de Vygotsky um caminho possível para se disponibilizar um conjunto de “ferramentas
culturais” que permita ao sujeito avançar no seu processo de produção de significados e, portanto,
de visão de mundo.
Os sistemas culturais, como os sistemas científicos, cumprem uma dupla função que se
articulam dialeticamente: constituem-se em instrumentos mediadores das/nas interações que o
sujeito estabelece com o mundo mas cuja apropriação/utilização possibilita a aquisição de novos
conhecimentos/representações, capacidades e habilidades. Transformam-se mundo e sujeito.
Talvez seja oportuno dizer que, em contextos formais de educação como a escola, que se
propõem a disponibilizar uma seleção de conhecimentos culturalmente produzidos no interior dos
sistemas culturais, há uma necessidade de se evidenciar esta dupla função justamente porque, na
sua articulação, é possível superar-se algumas restrições impostas pela natureza cognitiva da
mente humana, chegando mesmo a transcendê-la. Desta forma, é possível alcançar-se uma ampla
distribuição social do conhecimento produzido no interior do que tem sido chamado por Burke14
(2000 apud POZO, 2005) de “comunidades epistemológicas”.
Na perspectiva cognitivista, a aprendizagem humana revela-se como um processo que
envolve aquisição e modificação de representações. Mais ainda, tais representações podem ser
elas próprias tomadas como objetos de representações, ou seja, podem ser meta-representadas, o
que viabiliza a construção de sistemas simbólicos que funcionam dialeticamente como
mediadores dos processos de novas aprendizagens e também das novas formas de funcionamento
mental. É neste movimento dialético que a aprendizagem pode ser vista como uma prática
sociocultural.
14 BURKE, P. A social history of knowledge. Cambridge: Polity Press, 2000.
46
Na verdade, na visão de Bruner (1997), tais limitações biológicas traduzem-se em
possibilidades para a ação humana, uma vez que mobilizam e desafiam o homem à criação e
utilização de instrumentos e mecanismos que marcam a sua inventividade cultural. Este kit de
ferramentas disponível em qualquer cultura representa “um conjunto de dispositivos protéticos
com os quais os seres humanos podem exceder ou até mesmo redefinir os ‘limites naturais’ do
funcionamento humano”. (BRUNER, 1997, p. 28).
Vale destacar que a apropriação e uso desse kit-ferramenta, que marca a participação do
homem na cultura, diferentemente de uma concepção mecanicista, exige a produção/construção
de significados. Isto porque são os significados e os processos envolvidos na sua produção que
conectam o homem à sua cultura. No dizer de Bruner:
Por mais ambíguo ou polissêmico que o nosso discurso possa ser, nós
ainda somos capazes de levar nossos significados ao domínio público. Ou seja, nós vivemos publicamente através de significados públicos, compartilhados por procedimentos públicos de interpretação e negociação. A interpretação, por mais ‘espessa’ que possa se tornar, deve ser publicamente acessível ou a cultura entrará em desordem e, com ela, seus membros individuais (1997, p. 23).
Também Rogoff (1993, p. 55) nos diz que “Biologia e cultura não são influências
alternativas, mas sim aspectos inseparáveis de um sistema dentro do qual se desenvolvem os
indivíduos”. Sujeito e mundo social se constituem mutuamente; por isso mesmo, não podem ser
tratados como esferas independentes uma da outra. Filiando-se a um enfoque contextualista para
a compreensão do desenvolvimento humano, Rogoff (1993) considera a atividade humana como
a unidade de análise que preserva o sentido de totalidade pois evidencia os movimentos
interativos entre indivíduo e meio. Este aspecto é relevante uma vez que a totalidade não é igual à
soma de todas as partes que a compõem. O todo manifesta propriedades específicas, diferentes
das propriedades das partes, que precisam ser mais bem exploradas.
Situar o homem culturalmente não é uma tendência recente. Wertsch, Del Rio e Alvarez
(1998) realizam um resgate histórico da pesquisa sociocultural, evidenciando a multiplicidade de
perspectivas e abordagens que vêm sendo construídas desde, talvez, o trabalho pioneiro de Wundt
que assim escrevia:
47
No ano de 1860 tive a idéia de adicionar um tipo de superestrutura à psicologia experimental, a qual pela natureza dos seus objetivos e métodos tem que se restringir aos fatos da vida mental do indivíduo. Embora essa superestrutura seja destinada a se apoiar nas origens desses fatos, ela deve ultrapassá-los e ter como ponto de partida os fenômenos da vida social humana. Logo, isso me pareceu como a maior tarefa da psicologia, e de fato a sua própria conclusão (WUNDT, 1920 apud WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998, p. 14).
Na trajetória que percorrem, Wertsch, Del Rio e Alvarez (1998) enfatizam que, apesar da
pesquisa sociocultural encontrar no legado vygotskyano uma de suas principais fontes teórica,
não se limita a ela. Por isso mesmo, consideram ainda que as expressões histórico-cultural,
histórico-social e sociocultural não podem ser tratadas como equivalentes. Os autores entendem
que os termos histórico-cultural e histórico-social são mais apropriados quando se referem aos
trabalhos de Vygotsky e os de seus seguidores como Luria e Lent’ev, isto porque trazem em seu
bojo a crença de alguma forma de progresso e racionalidade humana universais. Já a expressão
sociocultural parece, em certa medida, abrigar um leque de trabalhos que não se ancoram
exclusivamente na tradição vygotskyana, ou ainda, que realizam re-leituras e re-apropriações
desse legado num cenário contemporâneo.
Independente das trajetórias intelectuais assumidas, vale afirmar que o objeto de
investigação da pesquisa sociocultural situa-se na ação humana conduzida por indivíduos ou por
grupos de indivíduos.
É preciso ter em conta que a psicologia e, particularmente o behaviorismo na sua vertente
mais radical, assumiu como foco de estudo o comportamento numa relação sempre unilateral que
vai do ambiente para o indivíduo. Na perspectiva sociocultural, este comportamento, entretanto, é
sempre dinâmico e não determinado unilateralmente pois:
[...] o organismo humano se comporta (tem uma conduta), ou em outras
palavras ele interage ativamente no seu contexto ou além dele no mundo. [...] o comportamento ativo envolve uma transformação simultânea do mundo e do próprio organismo; uma forma de transformação do organismo é a compreensão. (BRONCKART, 1998, p. 72).
48
Nesse sentido, a compreensão humana nasce e se alimenta na/da atividade que se realiza
através de ações. No dizer de Bronckart (1998, p. 73) “as ações formam as modalidades sócio-
práticas através das quais as atividades são realizadas”.
Wertsch (1999) e Zinchenko (1998) nos dizem que a ação mediada tem sido focalizada a
partir de duas grandes linhas de pesquisa: a teoria histórico-cultural de Vygotsky e a teoria da
atividade formulada por Leont’ev.
Segundo Zinchenko (1998), a teoria histórico-cultural de Vygotsky tem como objeto de
investigação a mediação da mente e da consciência situando esta mediação no contexto cultural.
Há neste caso uma ênfase no papel dos mediadores, particularmente de natureza semiótica, que
permitem a formação dos processos psicológicos superiores. Os significados que vão sendo
construídos neste processo constituem-se na unidade para se analisar a mente humana. Já a teoria
da atividade focaliza, particularmente, a atividade orientada ao objeto. A unidade para se analisar
todos os processos mentais, inclusive a personalidade, desloca-se, neste caso, do significado para
a ação.
Entretanto, vale destacar que, apesar das grandes diferenças que marcam essas duas
teorias, existem pontos de contatos entre elas. Wertsch, Del Rio e Alvarez (1998), por exemplo,
argumentam que a análise vigotskyana acerca da mediação semiótica acaba por revelar processos
que seriam, posteriormente, definidos por Leont’ev como ação. Este é o caso da linguagem
considerada por Vygotsky como meio semiótico através do qual se realiza o discurso. Neste caso,
o discurso é entendido, ainda que implicitamente, como uma forma de ação.
Avançando nesta aproximação, Zinchenko (1998) considera que a teoria da atividade não
nasce de um vazio intelectual e, por isso, se apropria de muitos elementos da teoria histórico-
cultural. O autor chega inclusive a afirmar que a teoria histórico-cultural deu origem à teoria da
atividade. Aceitando essa relação, Zinchenko (1998, p. 46) considera que, apesar do esquema da
teoria da atividade não fazer nenhuma especificação direta ao significado e ao sentido, tais
elementos não deixam de atravessar o corpo de sua proposta:
49
Isso corresponde à lógica de Bernshtein, de acordo com a qual, o movimento ao nível do objeto leva a uma imagem semântica [...]. Também é importante lembrar a posição muito similar de Shpet, que escreveu que o sentido está arraigado ao ser, ou à existência. Tudo isso atesta a afirmação de que o sentido constitui não só a consciência, mas também a atividade orientada para um objeto.
Assumindo estas duas teorias como duas linhas de pesquisa, mas não duas escolas
distintas, Zinchenko (1998) propõe a necessidade de se “ir além dos limites de ambas, olhá-las de
um ponto de vista mais amplo e entender seus lugares e seus papéis na psicologia em geral”
(p.52). Mais do que isso, é preciso ir além delas para se entender melhor o sentido de ação
mediada relevante à pesquisa sociocultural.
É esta ampliação da noção de ação mediada que Wertsch (1999) busca alcançar. Para isto,
ressalta inicialmente alguns elementos da teoria de Vygotsky que permitem justificar e mesmo
distinguir estudos socioculturais que se ancoram em seu legado.
Entre os elementos apontados por Wertsch (1999), chama a atenção o fato de Vygotsky
ter se preocupado, particularmente, com as formas específicas de funcionamento mental que
reproduzem e refletem um contexto social, histórico e culturalmente situado. Voltando-se para o
estudo das ferramentas culturais empregadas na ação humana, procura situar o papel dessas
ferramentas, em especial a linguagem e a fala, no funcionamento intermental e intramental dos
indivíduos.
Na perspectiva de Vygotsky, o papel mediador exercido pelos signos é de fundamental
importância: os signos permitem que uma operação realizada, a princípio externamente, seja,
posteriormente, reconfigurada em um nível intramental. Nas palavras de Vygotsky (1998, p.75),
“todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social,
e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da
criança (intrapsicológica)”.
Nessa relação entre o funcionamento intermental e o funcionamento intramental,
Vigotsky salienta a importância do discurso enquanto instrumento mediador e organizador desse
contexto social e define a noção de zona do desenvolvimento proximal como:
50
[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1998, p.112).
Esse desenvolvimento potencial, como apontado por Vygotsky, se relaciona, portanto, a
funções que estão em processo de maturação, correspondendo às “flores” ou “brotos” do
desenvolvimento. Sua visão de desenvolvimento é sempre prospectiva o que traz implicações
para o contexto educacional que sempre se organizou e se realizou considerando aquilo que o
aluno sabe, mas não aquilo que poderia saber ou fazer com a ajuda do outro. Talvez, por isso
mesmo, tenha sido um elemento teórico muito discutido no cenário pedagógico.
Como assinalado anteriormente, o trabalho de Vygotsky, ao enfatizar suas análises em
torno do funcionamento mental e o papel da medição semiótica para a formação dos processos
psicológicos superiores acabou por revelar processos que, posteriormente, foram assumidos como
ação por Leont’ev e outros seguidores da Teoria da Atividade. Contudo, o que se percebe, tanto
em Leont’ev quanto em Vygotsky, é que a noção de ação assume uma natureza
predominantemente teleológica, ou seja, orientada e planejada para finalidades específicas
(WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998).
Procurando ampliar essa noção de ação e, mais precisamente, de ação mediada para a
pesquisa sociocultural, Wertsch, Del Rio e Alvarez (1998) e Wertsch (1998) sugerem o resgate
dos estudos de Burke acerca da ação simbólica.
Em Burke (1966)15, a “ação é um termo que se refere ao tipo de comportamento possível
para um animal tipicamente usuário de símbolos (como o homem), ao contrário das operações de
natureza extra-simbólica ou não-simbólica” (apud WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ , 1998,
p.21). Do ponto de vista de Burke, a ação simbólica implica necessariamente a manipulação de
um sistema de símbolos ultrapassando, portanto, os ideais fisicalistas de movimento relacionado
a comportamento, tal como vem sendo proposto pelas leituras e releituras do behaviorismo. A
ação simbólica se revela e se realiza na interação e esta interação pressupõe transformação tanto
dos sujeitos nela envolvidos quanto dos objetos que mediam esta interação.
15 BURKE, K. Language as symbolic action: Essays on life, literature, and method. Berkeley:University of California Press.
51
A esta dimensão dinâmica da ação simbólica, Burke incorpora o conceito de drama,
justamente porque envolve o conflito, o propósito, a reflexão e a escolha (WERTSCH; DEL RIO;
ALVAREZ, 1998). Esta dimensão dramatística ganha vida no que é definido como o “quinteto
dramatístico” de Burke cujos elementos constituintes encontram-se sempre em uma tensão
dinâmica:
O dramatismo engloba observações deste tipo: para haver um ato, deve
haver um agente. Paralelamente, deve haver uma cena na qual o agente age. Para agir em uma cena, o agente deve empregar alguns meios, ou instrumentos, e pode ser chamado de um ato no sentido amplo do termo somente se envolver um propósito (isto é, se um apoio acontece para dar caminho e se cai, tal movimento da parte do agente não é um ato, mas um acidente). (BURKE, 1969 apud WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998, p. 22).
Estes cinco elementos (ato, cena, agente, propósito, instrumento), que estão em jogo e
marcados por relações dialéticas, permitem considerar diferentes formas de ação, não apenas
aquelas de natureza exclusivamente teleológica, abrindo assim possibilidades de interpretações e
significados diferenciados à ação humana.
Encontramos em Wertsch (1998, 1999) a preocupação em reunir elementos, tanto teóricos
quanto empíricos, que permitam à pesquisa sociocultural superar a antinomia entre indivíduo e
sociedade. Nesse seu esforço, define ação mediada e delineia três propriedades:
(1) meios mediacionais e portanto ação mediada são/estão socioculturalmente situadas; (2) meios mediacionais estão associados com limitações tanto quanto com possibilidades; e (3) a relação entre agentes e meios mediacionais pode ser caracterizada em termos de apropriação tanto quanto knowing how (WERTSCH, 1999, p.521, tradução da autora).
Em relação ao primeiro aspecto apontado por Wertsch (1999), pode-se considerar o
caráter específico das ferramentas culturais, ou seja, um conjunto de ferramentas não tem um uso
ou apropriação universal mas está restrito a determinados contextos culturais. Isto implica em
assumir o conceito de privilegiação definido por Wertsch (1993) que se refere “ao fato de que um
instrumento mediador [ferramenta cultural], tal como a linguagem social [ou gênero de discurso]
se concebe como mais apropriado ou eficaz que outros em um determinado cenário sociocultural”
52
(p.146). Neste caso, as ferramentas culturais expressam uma luta de forças institucionais,
históricas e culturais, e resultam, portanto, de uma relação de poder e autoridade em um contexto
específico.
Além disso, é preciso pensar que muitas ferramentas empregadas em uma ação mediada
não foram necessariamente designadas para o papel que passam a ocupar. É o que Wertsch
(1998) chama de subproduto. Isto significa que as ferramentas culturais que medeiam as ações
humanas muitas vezes correspondem a formas selecionadas, ou mesmo impostas por forças
socioculturais, e não a uma necessidade específica do funcionamento mental. Este aspecto é
discutido por Olson (1998, p.105) em relação à língua escrita:
[...] a invenção de um sistema escrito desempenha dois papéis ao mesmo tempo. A invenção fornece um recurso gráfico de comunicação, mas, como ela é então verbalizada (i.é., lida) vem a ser um modelo da mesma verbalização. À medida que as escritas se tornaram mais elaboradas, elas forneceram modelos de discurso cada vez mais precisos, do que era dito.
Isto significa que, originalmente, a escrita emerge como uma ferramenta para atender
necessidades comunicativas, mas acaba por afetar o funcionamento mental ao se constituir em
um modelo que permite pensar sobre o discurso, caracterizando um efeito acidental ou não
previsto no curso de sua evolução (WERTSCH, 1998). Podemos considerar, portanto, que:
[...] a grande parte das ferramentas culturais que medeiam a ação humana não se desenvolveu para muito dos propósitos que elas vieram desafiar, e em muitos casos as ferramentas culturais que utilizamos são tomadas de contextos distintos16. De um modo, então, muitas vezes utilizamos as ferramentas de maneira errada, e isso pode ter a conseqüência de nossa ação ser moldada de forma que não sejam úteis ou até mesmo sejam antíteses a nossas intenções [...] (WERTSCH 1998, p. 33).
O segundo ponto apresentado por Wertsch (1999) acerca das possibilidades, mas também
restrições, apresentadas pelo uso de um nova ferramenta cultural de certa forma problematiza o
ideal de racionalidade abstrata encontrado nos trabalhos de Vygotsky. Não se pode negar que o
16 Esta dimensão é evidenciada por Olson (1998) ao afirmar que em alguns momentos uma comunidade lingüística toma emprestado o sistema gráfico de outra.
53
aparecimento de uma ferramenta cultural transforma ou mesmo faz surgir um novo tipo de ação
mediada.
Para ilustrar essa dimensão, podemos nos valer de Wertsch (1998) ao analisar a evolução
histórica dos recordes obtidos no salto com vara. O autor considera que a produção de novos
tipos de vara mais flexíveis e capazes de conferir maior impulso ao atleta conduziram a novos
estilos de saltos. A princípio, pode-se pensar que a melhora verificada na performance dos atletas
está restrita ao instrumento que medeia esta ação, no caso a vara, que a partir de novas
tecnologias e artefatos se tornou qualitativamente superior às existentes e utilizadas
anteriormente. Entretanto, a vara por si só não impulsiona o atleta; é preciso que este a empregue
habilidosamente. “Um indivíduo usando o novo meio mediacional também teve de mudar, uma
vez que exigia novas técnicas e habilidades” (WERTSCH, 1998, p. 65). A ação mediada,
portanto, pressupõe tanto a transformação dos sujeitos como dos instrumentos nela envolvidos.
Vale ressaltar que a assunção deste aspecto parece encaminhar uma visão sempre otimista
e positiva dos impactos provocados por essas novas ferramentas culturais. Entretanto, é preciso
considerar que uma nova ferramenta cultural, ao ser introduzida nas mediações, liberta-as de
certas limitações existentes, mas igualmente introduz novas formas de limitações.
A terceira propriedade da ação mediada refere-se a uma necessidade de aproximação entre
agentes que realizam a ação e as ferramentas culturais que são utilizadas nesta ação. Para isto
Wertsch (1999) distingue knowing how de apropriação; o primeiro estando relacionado às
habilidades necessárias para a utilização de uma determinada ferramenta cultural. Isto provoca
um deslocamento do foco de análise dos mecanismos de internalização como proposto por
Vygotsky (a transferência de uma operação de um plano intermental para um plano intramental)
para a emergência dos processos envolvidos e exigidos no uso dessas ferramentas culturais.
O segundo, apropriação, relaciona-se com o desejo do indivíduo de usar uma ferramenta e
seu senso de propriedade dessa ferramenta. A noção de apropriação pode ser mais bem entendida
a partir dos estudos de Bakhtin (1992, 1997) que tratam da monologização da palavra, ou seja, do
processo de apropriação da palavra alheia tornando-a palavra própria. As palavras e os
significados que carregam são, em parte, minhas mas também do outro, representando, portanto,
construções coletivas. Em algumas situações o encontro dessas vozes é relativamente harmônico;
em outras, contudo, pode haver tensões e mesmo resistência por parte dos sujeitos envolvidos em
54
se apropriar ou utilizar os instrumentos mediadores que estão em jogo, neste caso,
particularmente, a linguagem ou gênero de discurso.
Ainda que não enfocando as ações mediadas, Smolka et al. (1998) ilustram com precisão
estes movimentos de resistência no processo de constituição dos sujeitos. Analisando um
episódio que tem como atores crianças de quatro anos de idade em contexto pré-escolar, os
autores focalizam o estabelecimento da intersubjetividade entre os participantes para que a
interação se realize. A intersubjetividade é tomada como entendimento ou compartilhamento
mútuo, seguindo Rogoff (2005, 1998 e 1993). Entretanto, Smolka et al. (1998) vão mostrar que
esta dinâmica, situada em um nível intermental, não é necessariamente construída em termos
simétricos e harmoniosos, mas envolve conflitos e tensões, evidenciando que a interação e o
processo de constituição dos indivíduos são marcados também por “perspectivas divergentes,
oposição de idéias, resistência à comunicação” (p.148). Esta perspectiva está associada a um
modelo de sociogênese proposto por Valsiner (1994)17 que se baseia na noção de contágio social:
[...] na metáfora de doenças contagiosas, permitindo uma concepção de
sócio-gênese como um processo pelo qual a interação social afeta (infecta) o sujeito através de mecanismos semióticos (vírus). E, o que é mais importante difere dos outros modelos [do aprendizado harmônico, da fusão] ao possibilitar a idéia de que o indivíduo pode neutralizar ou resistir à infecção através de formas de imunidade que impeçam o contágio. (apud SMOLKA et al., 1998, p.144).
Os autores expressam, portanto, uma concepção de intersubjetividade que não se ajusta à
de “envolvimento mútuo dos indivíduos e seus companheiros sociais, comunicando e
coordenando seus envolvimentos à medida que participam na atividade coletiva e
socioculturalmente estruturada” (ROGOFF, 1998, p.129).
Ainda se na textura das relações humanas nem sempre podemos
encontrar a “simetria” e a “harmonia” ideal ou desejada, podemos certamente identificar processos simultâneos ou até recíprocos pelos quais os sujeitos são constituídos em relação a algumas posições sociais definidas ou assumidas. Porém, essa reciprocidade não possui o mesmo significado harmônico como “mutualidade”, que perpassa a noção de intersubjetividade. Aqui, “recíproco” é
17 VALSINER, J. (1994). Bi-directional cultural transmission and constructive sociogenesis. In W. de Graaf & R. Maier (Eds.), Sociogenesis re-examined (pp. 101 – 134). New York: Springer-Verlag.
55
usado no sentido de ser inversamente relacionado, como o fortalecimento de um sujeito enfraquece o outro. Mas ainda, em um sentido mais profundo, podemos dizer que recíproco significa “constitutivamente relacionados”. O processo de formação individual da consciência ou da constituição do sujeito acontece não só “intersubjetivamente” mas também dialeticamente no funcionamento interpsicológico. (SMOLKA et al., 1998, p. 153).
Ao enfatizar este movimento dialético nas relações humanas, os autores revelam o seu
caráter dramático, justamente porque “o sujeito habitado por múltiplas vozes fala de sua ‘própria’
voz no ‘coral’: um concerto polifônico desarmônico e caracterizado por movimentos sincrônicos,
bem como por vozes distintas, conflitantes e dissonantes” (p.157). Esta dramaticidade parece
coincidir com aquela proposta por Burke (apud WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ; 1998).
A discussão realizada até o momento nos permite assumir a ação mediada como unidade
de análise que garante uma compreensão mais ampla e profunda acerca dos processos de
aprendizagem, já que, como dito por Wertsch (1998, 1999), fornece um caminho para se explorar
a relação entre o funcionamento da mente e o contexto social e cultural em que o sujeito se
encontra situado.
2.3 A aprendizagem na perspectiva sociocultural: ou de quando a aprendizagem se torna
situada
É possível afirmar que, tanto em contextos formais quanto não formais de educação, a
aprendizagem tende a significar a aquisição de um corpo de conhecimentos, muitas vezes,
independente das situações nas quais esta aprendizagem se realiza. Particularmente em relação às
escolas, pode-se dizer que sua preocupação principal situa-se na “transferência desta substância
que se constitui de conceitos abstratos, formais e descontextualizados” (BROWN; COLLINS;
DUGUID, 1989). De um modo geral, esta visão abstrai a cultura, o contexto e também as
atividades que envolvem o processo de aprendizagem. No entanto, na perspectiva de Lave e
Wenger (1995, ps. 33 e 34), é preciso considerar que:
56
Generalizações são freqüentemente associadas com representações abstratas, com descontextualizações. No entanto, representações abstratas não têm significado a menos que possam estar relacionadas a uma situação específica. Mais ainda, a formação ou aquisição de um princípio abstrato é por si próprio um evento específico em circunstâncias específicas [...] Neste sentido, qualquer poder de abstração está inteiramente situado, na vida das pessoas e na cultura que torna esta abstração possível. (Tradução da autora).
Brown, Collins e Duguid (1989) entendem que a aprendizagem e, conseqüentemente, o
ensino acabaram centrados em dois domínios distintos: o “saber que”, relacionado a um
conhecimento descritivo envolvendo generalizações e abstrações; e o “saber fazer”, de ordem
prática e técnica.
Buscando superar a dicotomia que está posta entre estes dois domínios do conhecimento,
a perspectiva sociocultural propõe a noção de aprendizagem situada, considerando que a
aprendizagem é resultado da interação da atividade, do conceito e da cultura, ou em outras
palavras, a aprendizagem efetivamente se realiza quando há envolvimento e participação do
sujeito que aprende em atividades que estão social e culturalmente situadas. Como dizem Brown,
Collins e Duguid (1989, p. 33):
[...] a atividade na qual o conhecimento é desenvolvido e desdobrado é
agora visto como inseparável ou indispensável à aprendizagem e cognição. Também não é neutra. Melhor: é uma parte integrante do que é aprendido. As situações devem co-produzir conhecimento através de atividades. Aprendizagem e cognição, é possível afirmar, são agora fundamentalmente situadas. (Tradução da autora).
Lave e Wenger (1995) alertam para uma confusão existente em relação ao significado da
expressão “aprendizagem situada” uma vez que pode gerar diferentes interpretações e mesmo
uma apropriação equivocada e/ou parcial do conceito.
[...] Em algumas ocasiões, “situado” parecia significar apenas que
alguns pensamentos e ações das pessoas estavam localizados no espaço e no tempo. Em outras ocasiões, parecia que o pensamento e a ação eram sociais, em um sentido que envolvia outras pessoas ou que eram imediatamente dependentes para o significado no ambiente social que os ocasionavam. Estes tipos de interpretações próximas de visões ingênuas de indexação, usualmente consideram algumas atividades como sendo situadas e outras não (p. 32 e 33, tradução da autora).
57
Para os autores, a aprendizagem situada é inerente a qualquer atividade do dia a dia que
tenha ou não intenções formais de ensinar, isto porque está relacionada ao envolvimento
completo das pessoas nas atividades mais do que à transmissão de um corpo de conhecimento
factual acerca do mundo. Nesta perspectiva, o sujeito, a atividade e o mundo constituem-se
mutuamente, o que pressupõe que qualquer forma de conhecimento se realiza e se materializa no
domínio da re-negociação de seu significado em circunstâncias presentes e específicas (LAVE;
WENGER, 1995).
Em Lave e Wegner (1995), encontramos que a aprendizagem situada é orientada a partir
de um processo denominado participação periférica legítima (legitimate peripheral participation),
que implica na participação efetiva dos indivíduos nas práticas socioculturais de uma
comunidade. Assim é que este conceito de participação periférica legítima permite descrever o
engajamento nas práticas sociais, articulando aprendizagem como um elemento constitutivo
destas mesmas práticas.
Ao procurar conceituar a noção de participação periférica legítima, os autores evitam
antinomias como legítimo-ilegítimo, periférico-central, participação-não participação.
Consideram que a legitimidade da participação está posta no sentimento de pertencimento, no
nível de envolvimento contínuo e dinâmico nas atividades que se realizam e que sustentam uma
comunidade. A idéia de periférico não se traduz em uma localização marginal na organização da
comunidade, mas implica a existência de “múltiplas e variadas maneiras de estar situado no
campo de participação definido por uma comunidade” (LAVE; WENGER, 1995, p. 36).
Mudanças de localização, entendidas em termos sociais e de perspectivas, referem-se, na
verdade, a um movimento natural que faz parte da trajetória da aprendizagem e da construção de
identidades dos sujeitos. É neste sentido que Lave e Wenger (1995, p. 56) propõem o seu foco de
análise:
[...] Desta forma, nós começamos a analisar mudanças nas formas de
participação e de identidade das pessoas que se engajam em participações sustentadas em uma comunidade de prática: entrando como um novato e tornando-se experiente em relação a novos novatos até a ponto em que esses novatos se tornem experientes. (Tradução da autora).
58
Neste sentido, a participação periférica legítima evidencia as relações que estão em jogo
em uma comunidade de prática, bem como a própria atividade que se realiza e os meios
mediacionais nela envolvidos. Portanto, esta dimensão periférica sugere uma abertura, uma
maneira de ter acesso a fontes de entendimento através de uma participação que pode ser cada
vez mais crescente a partir da apropriação dos conhecimentos e habilidades relativos a esta
comunidade. Esta perspectiva sugere a superação de tendências racionalistas e empiristas uma
vez que:
[...] aprendizagem, pensamento e conhecimento são relações entre
pessoas em ação que emergem de um mundo estruturado social e culturalmente. Este mundo é socialmente constituído; sistemas e formas objetivos de um lado, e entendimentos subjetivos e intersubjetivos do outro lado, constituem mutuamente tanto o mundo como suas formas experienciadas. (LAVE; WENGER, 1995, p. 51, tradução da autora).
Neste contexto de participação periférica legítima, os significados são negociados e
renegociados de forma a garantir não apenas a reprodução, mas a própria transformação da
comunidade e dos indivíduos que nela atuam. Nesta perspectiva, o conceito de comunidade de
prática é fundamental para a caracterização da participação periférica legítima, isto porque
pressupõe um conjunto de relações entre pessoas, atividades e mundo, bem como entre diferentes
comunidades. Wenger (1998) considera que as comunidades de práticas estão em todo lugar:
como seres humanos, estamos vinculados a diferentes comunidades – no trabalho, na escola, em
casa e no lazer. Algumas têm nome, outras não. O nível de engajamento pode ser maior ou
menor. Em algumas, ocupamos um papel mais central, em outras estamos situados mais
perifericamente. Além disso, estas comunidades podem se sobrepor ou entrar em conflito umas
com as outras. Lave e Wenger (1995) enfatizam que o termo comunidade de prática não implica
necessariamente um recorte bem definido de um grupo com fronteiras sociais visíveis e
delimitadas, mas sim a participação em um sistema de atividades no qual os participantes
compartilham entendimentos e negociam o que estão fazendo e o significado dessas ações.
Esta posição é compartilhada por Rogoff (2005) ao problematizar a tendência de se
identificar os indivíduos como pertencentes a uma comunidade cultural a partir de uma única
categoria como, por exemplo, a característica étnica. Neste caso, pressupõe-se uma certa
homogeneidade no interior de cada categoria. A autora sugere então que os processos culturais
59
podem ser pensados como “práticas e tradições de comunidades dinamicamente relacionadas, nas
quais os indivíduos participam e para os quais contribuem com o passar das gerações”
(ROGOFF, 2005, p.72). As comunidades seriam então definidas:
[...] como um grupo de pessoas que têm alguma organização, valores, visões, histórias e práticas comuns e continuadas [...] pessoas tentando chegar a algo juntas, com alguma estabilidade no envolvimento e na atenção às formas como se relacionam umas com as outras. Ser uma comunidade exige comunicação estruturada, que se espera que dure por algum tempo, com um grau de compromisso e significado compartilhados, embora muitas vezes contestado [...] (ROGOFF, 2005, p. 74).
Percebemos, portanto, que a comunidade de prática é uma condição intrínseca para a
existência e materialização do conhecimento tanto em termos de reprodução como de renovação.
É, no dizer de Lave e Wenger (1995), um princípio epistemológico para a aprendizagem já que a
estrutura social, as relações e as condições de legitimação que organizam e definem as práticas
culturais abrem um leque de possibilidades para que a aprendizagem tome lugar como
participação legítima periférica.
A idéia de comunidades como espaço/tempo de (re)produção de práticas e, portanto, de
conhecimento, deve ser cuidadosamente analisada. Situando esta discussão na relação entre as
práticas escolares e as práticas de uma comunidade científica, parece muitas vezes estar
subentendido que as disciplinas escolares, particularmente as de caráter científico, como
Biologia, Física e Química, tendem a reproduzir, no contexto da sala de aula, aquelas práticas
científicas realizadas por especialistas. É preciso enfatizar que as práticas escolares desenvolvidas
no interior destas disciplinas não coincidem com as práticas científicas propriamente ditas. Na
verdade, existe uma larga diferença e distância entre elas. A noção de transposição didática,
proposta por Chevallard18 (1985 apud IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA, 1999) sinaliza as
transformações que determinados conceitos vão sofrendo para sua introdução em espaços
escolares. Neste sentido, considera-se que há um saber de referência, produzido por especialistas
com objetivos, metodologias e sentidos específicos e há uma saber científico escolar. Neste
18 CHEVALLARD, YVES. La Transposition didactique. Grenoble: La Pensée Sauvage, 1985.
60
movimento, o autor sugere a existência de uma epistemologia escolar que se distingue da
epistemologia que orienta os processos de produção do saber de referência.
Estes aspectos contribuem para supor que a escola se organiza como uma comunidade de
práticas com especificidades próprias uma vez que o conhecimento e as práticas que ali são
construídas correspondem a uma versão escolarizada dos conhecimentos e práticas efetivamente
realizados pelos cientistas. Esta idéia de versão escolarizada não pressupõe uma dimensão
depreciativa mas apenas a assunção de que a escola é um espaço social e cultural onde
conhecimento e prática, em sendo recontextualizados, ganham novos contornos e matizes, via de
regra relacionados aos objetivos e intenções das escolas enquanto instituições formais de
educação. Num movimento oposto, temos ainda que considerar que não apenas os saberes de
referência determinam ou orientam aquilo que será parte do currículo escolar. A escola, enquanto
uma instituição situada histórica e socialmente, também vai sinalizando novos elementos a serem
incorporados às propostas curriculares. Com isto, é possível pensar como Brown, Collins e
Duguid (1989): quando as práticas científicas são transferidas para a sala de aula, seu contexto é
inevitavelmente transmutado tornando-se práticas de sala de aula e parte de uma cultura da
escola. Por isso, os autores consideram que a atividade escolar tende a ser híbrida, implicitamente
formada por um cultura (escolar) mas explicitamente atribuída a outra (científica).
As atividades de sala de aula muito freqüentemente tomam lugar no interior de uma cultura escolar, embora sejam atribuídas à cultura de especialistas como leitores, escritores, matemáticos, historiadores, economistas, geógrafos, cientistas... Muitas dessas atividades que os alunos realizam não correspondem às atividades dos especialistas e não fariam sentido ou seriam endossadas pelas práticas culturais a que são atribuídas. (BROWN; COLLINS; DUGUID, 1989, p. 34, tradução da autora).
Este hibridismo, que marca a prática escolar, acaba por limitar, e mesmo negar, o acesso
dos alunos a uma participação mais intensa justamente porque elimina do processo de ensino e
aprendizagem o contexto e a cultura nos quais estas práticas se realizam e produzem o seu
conhecimento. No dizer de Brown, Collins e Duguid (1989), atividade, conceitos e cultura são
elementos interdependentes e necessários para a aprendizagem. Desta forma, os autores tomam a
aprendizagem como um processo de enculturação: consciente ou inconscientemente as pessoas
estão sempre se filiando a um sistema de crenças pertencente a um determinado grupo social.
61
Em contextos escolares, tais idéias não sugerem que os estudantes tenham que ser vistos
como pequenos cientistas, matemáticos ou historiadores, mas sim que se desenvolvam atividades
nas quais os alunos possam mobilizar conceitos e práticas, enquanto instrumentos culturais
relativos a uma área de conhecimento. Em outras palavras, é preciso que a aprendizagem se
torne situada isto porque os significados são negociados e construídos com a participação e
engajamento dos alunos em práticas socioculturais próprias de uma comunidade. Estes
instrumentos culturais e os significados que carregam são, portanto, dependentes das atividades e
situações nas quais são produzidos e, sobretudo, dos contextos institucionais aos quais se
relacionam.
A noção de pertencimento a uma comunidade de prática envolve um domínio crescente
dos instrumentos que medeiam a produção/realização das atividades no seu interior. Este é um
aspecto decisivo para o entendimento e controle, entendido como autoregulação dos sujeitos, e,
portanto, para a participação cada vez mais ativa e consciente nas atividades. A noção de
instrumentos é ampliada uma vez que não se refere exclusivamente a objetos e procedimentos
práticos, mas também a um sistema conceitual de natureza simbólica que atravessa a organização
e construção das práticas culturais. Como dizem Lave e Wenger (1995), a apropriação e o uso de
ferramentas relacionadas a uma prática está conectada com a própria história da prática e,
portanto, diretamente relacionada com sua existência cultural de produção. O significado desses
instrumentos no processo de aprendizagem pode ser mais ou menos transparente. O termo
transparência, empregado por Lave e Wenger (1995), refere-se à possibilidade de uso e
entendimento de um instrumento no processo de aprendizagem. A transparência combina duas
características que se encontram dialeticamente inter-relacionadas: a visibilidade e a
invisibilidade. A invisibilidade está relacionada à forma de integração do instrumento na
atividade, permitindo que um mundo, para além dele, se torne visível, ao mesmo tempo em que
esta visibilidade constrói o entendimento do significado daquele instrumento.
Esta questão está implícita em Brown, Collins e Duguid (1989), para quem os conceitos
correspondem a um conjunto de ferramentas e só podem ser completamente entendidos através
do seu uso no curso de uma atividade sociocultural. Para os autores:
62
As pessoas que usam ferramentas em atividades, ao contrário daquelas que apenas as adquirem, constroem implicitamente não apenas uma compreensão maior e mais rica do mundo no qual esta ferramenta está envolvida, mas também do significado da própria ferramenta. O entendimento, tanto do mundo quanto da ferramenta, continuamente sofre modificações como resultado das interações que se processam entre eles. Aprendizagem e ação [interação] são inseparáveis, sendo aquela um longo e contínuo processo que emerge da ação em contextos específicos. (BROWN; COLLINS; DUGUID, 1989, p. 34).
Este maior ou menor nível de transparência, conferido aos instrumentos envolvidos na
ação, pode promover ou inibir a participação periférica legítima. Este aspecto acaba por resgatar
a antiga tendência epistemológica da dicotomia – conhecimento abstrato e conhecimento
concreto. Temos que reconhecer que a escola e, particularmente, o ensino das disciplinas
científicas, tal como se organizam, têm privilegiado esta dimensão abstrata do conhecimento
deixando de lado o processo de construção do conhecimento. Como nos diz Bruner (1998):
[...] A história da ciência está repleta delas [de metáforas selvagens]. Elas são muletas que nos ajudam a subir a montanha abstrata. Uma vez lá em cima, as jogamos fora (até as escondemos) em favor de uma teoria formal e logicamente consistente que (com sorte) pode ser descrita em termos matemáticos ou quase matemáticos. Os modelos que surgem são partilhados, cuidadosamente protegidos contra ataques e prescrevem maneiras de vida para seus usuários. As metáforas que auxiliaram nesta conquista são normalmente esquecidas ou, se a subida acabar sendo importante, tornam-se não parte da ciência, mas parte da história da ciência (p. 51 e 52).
Esta dicotomia entre processo e produto, entre concreto e abstrato, não reside no mundo
nem reflete formas hierárquicas de conhecimento, mas deriva-se de práticas institucionais que
acabam por privilegiar um desses pólos. Brown, Collins e Duguid (1989), analisando as
atividades desenvolvidas pelo cidadão comum, pelos especialistas e pelos estudantes, evidenciam
uma maior aproximação entre as duas primeiras categorias, isto porque suas atividades estão
mergulhadas na cultura em que trabalham e no interior da qual negociam e constroem
entendimentos. De um modo geral, estes indivíduos atuam em situações contextualizadas,
buscando soluções para problemas que emergem de contextos específicos. No caso dos
estudantes, suas atividades envolvem teorias e símbolos para enfrentar problemas que, muitas
63
vezes, estão descontextualizados, o que implica dizer que os significados com que lidam são, em
sua maioria, fixos e os conceitos, conseqüentemente, imutáveis.
A nosso ver, essas reflexões sugerem um caminho para se pensar a aprendizagem em uma
perspectiva ampliada pois aproximam dialeticamente o aprender fazendo do aprender por
abstração. Esta possibilidade está relacionada justamente à transparência dos instrumentos que
medeiam a ação, permitindo o entendimento da construção histórica das práticas que fazem parte
da comunidade e, portanto, uma participação mais ativa neste contexto cultural.
Este nível de entendimento mais amplo e que garantirá a participação mais intensa dos
indivíduos passa, obviamente, pela linguagem, entendida também como um meio mediacional,
que se realiza nestas comunidades de prática. Como nos diz Bakhtin (1997), cada esfera da
atividade humana acaba por gerar “tipos relativamente estáveis” de enunciados que se constituem
em gêneros do discurso e que se caracterizam não apenas “por seu conteúdo semântico (temático)
e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais - mas também, e sobretudo, por sua construção composicional”
(p.279). Falamos por meio de diferentes gêneros do discurso, aprendemos a adequar nossa fala a
determinados gêneros dependendo das circunstâncias em que nos encontramos.
As comunidades de prática, enquanto entidades situadas histórica e culturalmente,
apresentam especificidades discursivas que emergem como produto das interações sociais
realizadas em um terreno marcado por encontros e desencontros de diferentes concepções,
valores, ideologias. Neste terreno, os significados são aproximados, ampliados, resignificados,
recontextualizados, resituados justamente porque envolvem um intenso processo de negociação
quando algumas formas se tornam mais estáveis que outras.
No interior das comunidades de prática, o discurso está menos relacionado a um
instrumento de transmissão de conhecimentos do que ao acesso à participação periférica legítima.
O discurso autoritário, caracterizado por Bakhtin como aquele em que os enunciados e seus
significados são fixos, não modificáveis pelo contato com novas vozes (WERTSCH, 1993, p. 98)
e que em contextos escolares estão relacionados a padrões discursivos do tipo I – R- A (Iniciação
do professor, Resposta do aluno e Avaliação do professor), parece perder força dando lugar a um
padrão de discurso mais internamente persuasivo que viabiliza maior grau de interanimação
dialógica entre os sujeitos.
64
Estas duas formas de discurso parecem estar relacionadas à distinção que Lave e Wenger
(1995) fazem entre “falar sobre” e “falar do interior”. A primeira pressupõe um distanciamento
do sujeito em relação às práticas culturais enquanto a segunda, incorporando também o ‘falar
sobre’, cumpre funções específicas: “[...] engajar-se, focalizar e mudar o foco de atenção
promovendo a coordenação das atividades por um lado; dando suporte a formas de memória e
reflexão da comunidade bem como assinalando a participação a essas mesmas comunidades por
outro lado”. (LAVE; WENGER, 1995, p.109, tradução da autora).
Todos os aspectos apresentados até aqui são decisivos para a construção da identidade
tanto de uma comunidade como dos sujeitos que dela participam. Este processo de construção de
identidade emerge do verdadeiro sentido da aprendizagem como participação periférica legítima
que é a de intensificar a participação dos indivíduos nas práticas da comunidade. Enfim, a
expectativa de mudanças pressupostas no processo de aprendizagem ganha visibilidade, neste
caso, pelo envolvimento permanente do indivíduo nessas práticas, motivado pelo desejo, pela
identidade, pelo entendimento mais amplo. Obviamente, esta trajetória é marcada por conflitos e
tensões, continuidades e rupturas mas é justamente este o caminho para que os indivíduos se
desloquem em uma direção mais centrípeta no interior da comunidade. Isto implica em dizer que
o conhecimento é inerente ao processo de desenvolvimento e construção de identidades e está
localizado nas relações entre os participantes e suas práticas, nas ferramentas que medeiam estas
práticas, e na organização social, política e econômica que envolve essas comunidades (LAVE ;
WENGER, 1995).
Bruner (2001) entende que, em uma sociedade marcada por constantes modificações, a
escola precisa renovar-se em sua função o que inclui o desenvolvimento de culturas escolares que
operem como comunidades de aprendizes, envolvidos mutuamente na resolução de problemas. A
escola, portanto, deve se constituir não apenas em um espaço para instrução mas também e,
principalmente, em um espaço de formação de identidade e trabalho mútuo. Para ilustrar esta
possibilidade de renovação, o autor apresenta o trabalho realizado por Ann Brown (1989) que,
tomando a escola como uma comunidade cooperativa, promove a participação de seus membros
na produção de um produto conjunto, de uma “obra” 19. Esta participação garante a aprendizagem
19 Na visão de Bruner (2001) as obras “dão orgulho, identidade e uma sensação de continuidade àqueles que participam, mesmo que indiretamente, de sua produção [...] criam formas compartilhadas e negociáveis de pensar em grupo (p.31)”.
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e evidencia uma cultura que se realiza na prática e que se torna relevante para a vida do aluno.
Este aspecto é decisivo quando falamos agora da necessidade de formar lifelong learners, ou seja,
indivíduos que continuem a aprender para além de sua vida escolar.
Nesta mesma direção, encontramos o trabalho de Engle e Conant (2002) que descreve a
aprendizagem como um processo de “engajamento disciplinar produtivo” visualizado a partir da
participação dos alunos em questões e práticas disciplinares específicas e ainda por indícios de
“progressos intelectuais” que se manifestam no curso das aulas. Assim, o engajamento disciplinar
dos alunos pode ser sinalizado pela construção de argumentos mais elaborados e sofisticados ao
longo do tempo, pelo levantamento de novas questões e problemas, pelo reconhecimento de
conflitos, pelo estabelecimento de novas conexões entre idéias, ou ainda, pelo planejamento de
alguma coisa para atingir ou satisfazer objetivos que tenham sido estabelecidos (ENGLE;
CONANT, 2002). Os autores acreditam que a aprendizagem como engajamento disciplinar
produtivo “fornece uma perspectiva complementar para visões de aprendizagem que se apóiam
em comparações estatísticas do entendimento dos alunos baseados em pré e pós testes” (p.403)
justamente porque incorpora conteúdo e interação assumindo a aprendizagem como um processo
simultaneamente cognitivo e social.
De acordo com Engle e Conant (2002), para promover este engajamento disciplinar
produtivo os contextos de aprendizagem devem se revestir de alguns elementos que se encontram
inter-relacionados, tais como: a) problematização do conteúdo formulada tanto pelo professor
quanto pelos alunos; b) dar autoridade para os alunos encaminharem de forma responsável
soluções para os problemas que foram delineados a fim de se fazerem autores e produtores de seu
próprio conhecimento; c) manter os alunos responsáveis pelo outro e também por normas
disciplinares de forma a garantir que o trabalho intelectual que realizam seja correspondente a
conteúdos e práticas disciplinares estabelecidas por intelectuais que se situam no interior ou
mesmo fora do contexto da aprendizagem e d) proporcionar diferentes e relevantes recursos para
manter e sustentar o engajamento disciplinar produtivo e que possibilitem aos alunos desenvolver
e utilizar habilidades, conhecimentos, representações, materiais e tecnologias para enfrentar
questões de uma disciplina específica.
A partir dos elementos formulados por Engle e Conant (2002), é possível supor, tal como
proposto por Arcà, Guidoni e Mazzoli (1990), que a aprendizagem em Ciências deve envolver
66
modos de falar, modos de pensar e modos de fazer. Por isso mesmo, a aprendizagem deve
envolver movimentos/práticas específicos no curso do processo de significação. Neste sentido,
podemos considerar que aprender Biologia é aprender não apenas conceitos como “célula”,
“fotossíntese” ou “proteínas”, mas também determinadas práticas que viabilizam a construção/
produção desses modos de falar, modos de pensar e modos de fazer. São esses movimentos dos
alunos na construção de significados em uma sala de aula de Biologia, que esperamos visualizar
em nossas análises. Mais do que isso, buscamos perceber as especificidades desses movimentos a
fim de assumir essa sala de aula como uma comunidade de prática.
3. UMA APROXIMAÇÃO ENTRE A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO E A PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: REVELANDO PRÁTICAS CIENTÍFICAS E PRÁTICAS CIENTÍFICAS ESCOLARES
[...] devemos continuar a considerar a ciência como uma atividade de investigação e de pesquisa. Investigação e pesquisa da verdade, da realidade etc. Porém a ciência está longe de ser só isso [...] A ciência não é só isso e, constantemente, ela é submergida, inibida, embebida, bloqueada e abafada por efeito de manipulações, de prática, de poder, por interesses sociais etc. Contudo, repito, a despeito de todos os interesses, de todas as pressões, de todas as infiltrações, a ciência continua sendo uma atividade cognitiva.[...] (Morin, 1996, p.57).
Neste capítulo, resgatamos inicialmente alguns dos principais elementos dos trabalhos de
Knorr-Cetina (1981 e 1992) e Latour (2000) que, a partir de uma matriz antropológica, procuram
explorar o processo de produção do conhecimento científico olhando especificamente para os
locais dessa produção. Posteriormente, apresentamos uma visão panorâmica de estudos que,
assumindo uma perspectiva sociocultural, tomam como objeto de investigação a sala de aula de
ciências dando visibilidade ao discurso e interações que ali se evidenciam. Nesta trajetória, é
possível identificar práticas científicas e práticas científicas escolares que se aproximam de
práticas cultural e socialmente organizadas, quando objetivos, objetos, interesses, significados
vão sendo re-definidos, re-ajustados e re-adaptados segundo processos de negociação entre os
sujeitos e as condições materiais de produção. A princípio a aproximação entre duas áreas
distintas como a Sociologia do Conhecimento Científico e a Educação em Ciências pode parecer
pouco prudente uma vez que tomam como objetos de investigação espaços de produção do
conhecimento científico com fronteiras bem delimitadas. Especificamente, em relação à
Educação em Ciências, reconhecemos que seu objetivo não é formar pequenos cientistas mas sim
68
formar culturalmente um cidadão que possa viver e enfrentar questões em um mundo dominado
pela ciência e pela tecnologia. Entretanto, acreditamos ser possível considerar que esses espaços-
tempos de produção são habitados por seres humanos que compartilham práticas epistêmicas que
os aproximam nos modos de organizar e enfrentar situações que demandam conhecimentos de
natureza científica.
3.1 Knorr-Cetina vai ao laboratório e resgata a contextualidade da ciência
A década de 1970 testemunha a emergência da Sociologia do Conhecimento Científico,
uma área de estudos que assume a ciência e o conhecimento por ela produzido como produtos de
práticas sociais. A este grupo estão vinculados os trabalhos de Knorr-Cetina (1981, 1992)
argumentando que a ciência deve ser vista e analisada em uma perspectiva construtivista. Para a
autora, os objetos de investigação da ciência, tais como a natureza ou a realidade, são pré-
construídos nos laboratórios e, por isso, “internamente estruturados”. A seu ver, os objetos são
dotados de maleabilidade, uma vez que, nos laboratórios, raramente se trabalha com os objetos
tais como são encontrados na natureza. Na verdade, são utilizadas imagens, versões purificadas,
extratos, componentes. Para Knorr-Cetina (1992), existem pelo menos três características do
“objeto natural” que o laboratório científico não precisa acomodar: a) o objeto como ele é
realmente já que se pode substituí-lo por versões parciais ou mesmo por simulações; b) o objeto
onde ele está, pois se pode trazê-lo para “casa” e manipulá-lo e c) um evento ou fenômeno
quando ele ocorre, já que é possível fazê-lo acontecer com certa freqüência através de situações
experimentais à medida que a investigação avança. Assim, os objetos não são apenas
tecnicamente fabricados em um laboratório mas são simbólica e politicamente construídos
através de técnicas literárias de persuasão como encontradas em trabalhos científicos, de
estratégias políticas para formar alianças e mobilizar recursos e ainda de operações seletivas que
vão sendo realizadas no curso de uma investigação (KNORR-CETINA, 1992).
Neste sentido, a visão de laboratório de Knorr-Cetina transcende aquela que faz parte do
senso comum pois, em sua perspectiva, todo aquele aparato instrumental que povoa este espaço
de produção e todos os processos que ali se realizam são igualmente uma construção, produtos do
69
esforço humano, que envolve negociação e interação. Por isso, a ciência não pode ser
compreendida sem se considerar as práticas que a constituem.
Para sustentar esta perspectiva construtivista, a autora considera que o princípio que
organiza e alimenta o processo de produção do conhecimento científico é a busca pelo sucesso e
pelo reconhecimento, ou seja, “making things work”. Nas palavras de Knorr-Cetina (1981, p. 04):
“é o sucesso em fazer as coisas funcionarem que é reforçado como objetivo concreto e viável na
ação científica e não o ideal distante da verdade que nem sempre é alcançado.”
Com o objetivo de ser bem sucedido (making things work), o cientista, em seu espaço de
produção, realiza seleções e tomadas de decisão de caráter local e eventual que, ao se
cristalizarem, acabam por influenciar futuras seleções e decisões. Desta forma, a produção
científica envolve um re-investimento constante de produções anteriores em um ciclo permanente
no qual novas seleções são geradas. A ciência é, portanto, sempre contingente e contextual.
Esta localização contextual revela que os produtos da pesquisa científica são fabricados e negociados por agentes particulares em um espaço e tempo particulares; que estes produtos estão/são carregados pelos interesses particulares desses agentes, e por interpretações locais mais do que interpretações universalmente válidas; e que os atores científicos funcionam nos limites reais do local de suas ações. (KNORR-CETINA, 1981, p. 33, tradução da autora).
Para Knorr-Cetina (1981), são essas operações seletivas, situadas em contextos
específicos e realizadas pelos cientistas, que caracterizam o processo de produção do
conhecimento científico. Nessas operações seletivas, entra em jogo o que Knorr-Cetina chama de
“lógica oportunista” pois, a seu ver, a definição ou ajustes de projetos, bem como seus objetivos e
métodos, vão sendo configurados segundo os recursos instrumentais e financeiros
disponibilizados no interior dos laboratórios.
Além dessa “lógica oportunista” influenciando o processo seletivo de produção, há ainda
o que a autora denomina de “idiossincrasias locais” e que se refere à construção de uma
interpretação própria das regras metodológicas. Isto parece estruturar um “know-how” local e
contextual que procura, de certa forma, garantir e controlar significados a fim de fazer as coisas
funcionarem no processo investigativo. Cabe dizer que a construção dessas regras metodológicas
70
depende da distribuição de poder dentro do laboratório, que também é contingencial, e pode ser
rapidamente alterada pelas dinâmicas do conflito, cujas próprias regras são utilizadas como
recurso e negociadas constantemente (HOCHMAN, 1994, p. 222).
Assim é que os cientistas atuam ajustando-se ao ambiente tanto físico quanto social no
qual se encontram mergulhados, sendo por isso mesmo não somente os objetos, mas também os
próprios cientistas, maleáveis em relação a uma série de possibilidades comportamentais
(KNORR-CETINA, 1992).
Todos esses aspectos, que dependem de negociações e interações entre os sujeitos que ali
atuam, revelam certo grau de indeterminação contextual onde estaria situado o sopro criativo da
produção científica. Nas palavras de Knorr-Cetina (1981, p.33):
[...] a contingência e a contextualidade da ação científica demonstram que os produtos científicos são híbridos, que carregam as marcas de uma lógica indexical que caracteriza a sua produção, não sendo resultados de algum tipo especial de racionalidade científica que possa ser contrastada com a racionalidade que orienta as práticas sociais. (Tradução da autora).
Ao entrar nos laboratórios, Knorr-Cetina não encontra paradigmas universais mas uma
lógica contextual e contingente que organiza a prática científica. Ao resgatar essa dimensão
contextual da ciência, a autora aproxima a prática científica de outras práticas da vida social. A
descontextualização da ciência vai se dar quando as seleções contextualmente contingentes são
transformadas em descobertas, informações e inovações publicadas nos artigos científicos. Para
Knorr-Cetina (1981, p.130):
Na transição do trabalho de laboratório ao artigo científico, a realidade do laboratório mudou. Temos visto a lógica oportunista e contingente substituída por um contexto generalizado de um mundo presente e possível e as negociações de interesse de agentes particulares transformadas em uma fusão de interesses da tecnologia, indústria, o meio ambiente e a população humana precisando de proteínas. [...] Temos visto a seletividade racional do trabalho de laboratório dominada por fórmulas prontas dos feitos que emergem dessa seletividade, e os resultados medidos de tais trabalhos depurados de todos os traços de interdependência com sua criação construtiva. (Tradução da autora).
71
É por essa razão que Knorr-Cetina (1981 e 1992) sustenta que, para compreender os
processos de construção e reconstrução do conhecimento científico, é preciso adentrar os
laboratórios e acompanhar os cientistas em inter-ação. Só desta forma pode-se capturar e dar
visibilidade a uma faceta mais “selvagem” tanto da ciência quanto dos próprios cientistas.
Neste percurso que realiza, Knorr-Cetina (1981) ilustra o raciocínio analógico como um
mecanismo que, ao orientar tanto a “lógica oportunista” quanto a circulação de idéias, viabiliza,
em parte, o processo de recontextualização da atividade científica no interior dos laboratórios.
Na discussão que realiza acerca do uso de metáforas na produção do conhecimento
científico, Knorr-Cetina (1981) afirma que as metáforas não são o único mecanismo para a
inovação e concepção de idéias utilizado pelos cientistas. Em sua perspectiva, também as
analogias se constituem em um pré-requisito para processos de interação conceitual e, portanto,
para aprofundamento e reinvestimentos de conhecimentos previamente produzidos que acabam
por orientar o processo seletivo operado no curso de uma nova investigação. Nas palavras da
autora: “a interação conceitual emerge a partir de dois universos diferentes de conhecimento ou
crença que são associadas por uma similaridade que é suposta” (KNORR-CETINA, 1981, p. 52).
Tais analogias, muitas vezes, estão relacionadas à transferência ou aproximação de métodos ou
procedimentos situados em diferentes contextos. A construção de analogias funciona como um
veículo que promove a circulação e transformações de seleções (e mesmo idéias) no processo de
fabricação do conhecimento.
No contexto científico, a mobilização da metáfora e também da analogia cria uma
expectativa de sucesso, uma vez que, “[...] o conhecimento mobilizado pela analogia e pela
metáfora tem funcionado em um contexto similar, e provavelmente pode funcionar, com as
devidas modificações, em uma nova situação” (KNORR-CETINA, 1981, 57). Nesta perspectiva,
as metáforas tanto quanto as analogias funcionam como soluções para questões ainda não bem
delimitadas. Mas quais as implicações desse aspecto para a produção do conhecimento científico?
Para Knorr-Cetina (1981), isso significa que os cientistas devem se engajar na construção dos
resultados cuja solução é antecipada através da mobilização ou uso de uma analogia. Essas
soluções antecipadas não eliminam os problemas ou tornam a pesquisa menos sujeita ao fracasso,
mas são decisivas para delimitar fronteiras em um projeto ou programa de pesquisa que até então
se encontrava muito aberto.
72
Assim, uma solução antecipada é importante para os cientistas à medida que funciona
como um princípio organizador que orienta ações e seleções subseqüentes. Desta forma, as idéias
que emergem nas relações analógicas são tomadas como soluções não realizadas e que sustentam
a possibilidade de sucesso, ou seja, “making things work”.
Além disso, as analogias retêm um caráter conservador na produção do conhecimento,
uma vez que controlam, ou mesmo reduzem, os riscos aos quais os cientistas estão expostos.
Como já assinalado anteriormente, as analogias possibilitam certo grau de clareza àquilo que até
então se tinha como desconhecido ou pouco familiar. Com isto, os cientistas parecem caminhar
por um terreno mais seguro. De acordo com Knorr-Cetina (1981, p. 60):
[…] o interesse de uma “idéia nova” não é a sua novidade mas sim que ela é antiga – no sentido de que ela usa o conhecimento disponível como fonte de produção do conhecimento. Neste processo, seleções anteriores são movidas para novas áreas em vez de serem inventadas e, desta forma, reproduzidas e transformadas. Assim, à medida que a descoberta baseada na analogia representa a expansão espacial de seleções anteriores para novos territórios, ela é parte de formação de consenso e da consolidação do conhecimento […] (Tradução da autora).
Ao considerar que o cientista estabelece relações entre dois sistemas aparentemente
independentes que, muitas vezes, fazem parte de áreas de conhecimentos diferentes, Knorr-
Cetina (1981) sinaliza que a atividade científica é perpassada e sustentada por relações sociais
que transcendem as fronteiras do laboratório. O cientista vê-se envolvido em campos de ação que
não exclusivamente os de natureza científica e que são definidos como campos transcientíficos20.
Isto porque estão em jogo negociação e interação com agentes financiadores, editores, diretores
de instituições, o que vai exigir que o cientista ocupe outras posições que não aquelas puramente
científicas. Considerando que estas relações sociais mais amplas têm implicações igualmente nas
seleções e decisões realizadas na produção do conhecimento científico, Knorr-Cetina (1981)
acaba por rejeitar a noção de comunidade científica como a unidade organizadora da produção
científica. Os campos transcientíficos, ou arenas transepistêmicas, emprestariam um caráter mais
movediço e fluido às atividades científicas pois segundo Hochman (1994, p. 226):
20 Hochman (1994) sinaliza que a expressão campos transcientíficos será posteriormente reelaborada por Knorr-Cetina passando a ser definida como arenas transepistêmicas.
73
As arenas transepistêmicas são constituídas, dissolvidas e reconstituídas cotidianamente na atividade científica contextualizada, implicando jogos interativos entre os vários agentes que dela participam. E o que está em questão não é o que se compartilha ou o que se possui, mas o que pode ser transmitido pelos agentes para ser utilizado pelos outros para se converter em outras coisas.
3.2 Latour vai ao laboratório e encontra incertezas, concorrências e controvérsias.
Latour (2000) considera que existem duas formas de se olhar a ciência; uma, que focaliza
sua forma acabada, pronta, enfatizando os métodos e o ideal da racionalidade científica; e outra,
que examina seu processo de construção, revelando uma face mais caótica, povoada por
incertezas, controvérsias e tomadas de decisões. Em sua trajetória, Latour opta pela ciência em
construção e decide acompanhar cientistas em ação a fim de evidenciar os movimentos que
levam um fato científico a ser encerrado em uma caixa-preta que perde contato com o seu local e
condições de produção. Nas palavras de Latour (2000, p. 39), “vamos dos produtos finais à
produção, de objetos estáveis e ‘frios’ a objetos instáveis e mais ‘quentes’”.
Neste percurso, sinaliza que o destino final de uma descoberta/invenção/afirmação
realizada por um cientista depende das apropriações e usos posteriores que são feitos por outros
cientistas. Dito de outra maneira, a construção de um fato científico é um processo coletivo que
mobiliza recursos, aliados e discordantes que, ao retomarem tais
descobertas/invenções/afirmações, as fortalecem elevando-as a uma condição de caixa-preta ou
então as rejeitam, arregimentando evidências contraditórias que as empurram em direção à
ficção. Desta forma, “a construção do fato é um processo tão coletivo que uma pessoa sozinha só
constrói sonhos, alegações e sentimentos, mas não fatos” (LATOUR, 2000, p. 70).
Para Latour (2000, p. 72), um fato é algo que é retirado do centro das controvérsias e
coletivamente estabilizado quando a atividade dos textos ulteriores não consiste apenas em crítica
ou deformação, mas também em ratificação.
Em Latour (2000), um aspecto a ser analisado no processo de construção de um fato
científico diz respeito às controvérsias que acompanham uma afirmação feita por um cientista
acerca de um determinado fenômeno no curso da produção de textos científicos. Na visão do
74
autor, o status de uma afirmação dependerá das afirmações ulteriores, ou seja, o maior ou menor
grau de certeza de uma afirmação dependerá do tipo da sentença seguinte que a retomar. Uma
afirmação, via de regra, é enxertada em novas sentenças que são chamadas de “modalidades”
porque a modificam ou a qualificam. Latour considera que modalidades positivas afastam a
afirmação ou enunciado feito pelo autor de suas condições de produção, fortalecendo-as de modo
a permitir derivar possíveis conseqüências a partir de seu uso. Ao contrário, as modalidades
negativas conduzem uma afirmação ou enunciado em direção ao seu contexto de produção
deixando marcas de autoria e possibilidades de interpretações divergentes aproximando-a mais de
uma ficção do que de um fato.
Assim é que uma afirmação pode ser “[...] inserida em uma premissa fechada, óbvia,
consistente e amarrada, que leve a alguma outra conseqüência menos fechada, menos óbvia,
menos consistente e menos unificada” ou ainda ser inserida em um contexto que a leve “de volta
para o lugar de onde partiu, para a boca e as mãos de quem quer que as tenha construído”
(LATOUR, 2000, p.45).
Dependendo das modalidades, positiva ou negativa, que envolvem as afirmações iniciais
no curso de um debate, é possível trilhar-se caminhos diferentes: um, em direção ao fato e outro,
em direção à ficção. No primeiro caso estão aqueles que desejam elevar sua afirmação à
condição de uma caixa-preta, no segundo encontram-se os discordantes dispostos a minar a
afirmação a fim de impedir sua disseminação e evidenciar que erros foram cometidos.
Independente da posição assumida, de defesa ou de ataque, os sujeitos envolvidos em uma
controvérsia mobilizam diferentes recursos a fim de fazer valer a sua posição. Um desses
recursos diz respeito ao uso de referências a outros documentos de caráter científico como forma
de apoio, validação e legitimação das afirmações ou contra-afirmações. Como dito por Latour
(2000), uma asserção não se sustenta por si própria. Entretanto, não basta apenas empilhar uma
série de referências para que uma posição seja fortalecida. É preciso que essas referências
também sejam modalizadas, ou seja, tomadas como fatos ou como ficção a fim de que possam
fortalecer ou enfraquecer a asserção feita pelo autor. Mais do que isso, as referências devem ser
organizadas em camadas que se sustentam mutuamente a fim de oferecer aos leitores uma
impressão de “profundidade de visão”. Neste caso, “cada afirmação é interrompida por
75
referências que estão fora do texto ou dentro dele, em outras partes, as figuras, colunas, tabelas,
legendas, gráficos” (LATOUR, 2000, p. 81).
Nesta forma de organização textual, Latour (2000) reconhece que não há uma relação
entre autoridade e Natureza mas sim entre autoridade e mais autoridade. O autor /cientista
mobiliza tantas outras caixas-pretas para sustentá-lo que discordar de sua afirmação implica o
enfrentamento dessas mesmas caixas-pretas bem como de todas as inscrições (tabelas, gráficos,
fotos) que carregam e que foram produzidas por instrumentos ao longo de um processo de
investigação científica ainda nos laboratórios. Nas palavras do autor:
Convencer não é jogar palavras ao vento. É uma corrida entre autor e leitor pelo controle dos movimentos um do outro (...) Em qualquer ponto do texto em que se encontre, o leitor deparará com instrumentos mais difíceis de discutir, com figuras mais difíceis de duvidar, com referências mais difíceis de desacreditar, com um verdadeiro arsenal de caixas-pretas empilhadas. E o leitor vai deslizando da introdução à conclusão como um rio a deslizar entre barreiras artificiais (LATOUR, 2000, p. 97 e 98).
Fazendo uma leitura bakhtiniana, as controvérsias parecem envolver um movimento
discursivo cujo objetivo principal é fixar significados. Ao tentar transformar uma
afirmação/asserção em fato, o autor/cientista busca a adesão, o compartilhamento, o alinhamento.
Se é bem sucedido, esta afirmação vai sendo abstraída, sintetizada e estilizada, transformando-se
em conhecimento tácito. Supostamente, o nome do autor, as marcas da contextualidade vão sendo
apagadas e a caixa é finalmente encerrada.
Acompanhar o movimento que leva à produção de um fato exige a entrada nos
laboratórios, um espaço onde os elementos semióticos que povoam os artigos, por exemplo,
ganham vida, materialidade e concretude. De acordo com Latour (2000), somos então
transportados do mundo do texto, do papel, ao mundo das coisas. Neste contexto, as habilidades
retóricas mobilizadas na construção de um texto já não são suficientes. É preciso também
habilidades manuais para manobrar instrumentos, preparar substâncias, focalizar adequadamente,
corrigir, ajustar, ensaiar, interpretar resultados. Nas palavras do autor, “sair de um artigo e ir para
um laboratório é sair de um arsenal de recursos retóricos e ir para um conjunto de novos recursos
planejados com o objetivo de oferecer à literatura o seu mais poderoso instrumento: a exposição
76
visual” (LATOUR, 2000, p. 112). Os elementos visuais (gráficos, colunas, tabelas) são decisivos
na construção de um texto e obtidos a partir do uso de instrumentos nos laboratórios. Na
perspectiva de Latour, não é a natureza que está por trás de um texto científico mas sim
inscrições produzidas por instrumentos em laboratórios. Assim, no laboratório encontramos uma
exposição visual de inscrições que são comentadas e interpretadas pelo cientista. Neste caso, o
cientista atua como um porta-voz do que está inscrito, do que vai sendo registrado pelos
instrumentos. Fala por aquele ou por aquilo que não pode ou não sabe falar. Resta saber se a voz
que se expressa corresponde exatamente àquilo que seu representado gostaria de dizer ou se, na
verdade, influenciado por suas crenças e desejos, o cientista acaba por “ler” aquilo que ele
próprio gostaria de dizer. Por isso mesmo, na ciência, para se chegar a um fato é preciso que se
trabalhe com evidências que se constituam em “provas de força”. As provas de força parecem
reduzir uma tensão que está posta entre objetividade e subjetividade na ciência pois:
Dependendo das provas de força, os porta-vozes se convertem em indivíduos subjetivos ou em representantes objetivos. Ser objetivo significa que, sejam quais forem os esforços dos discordantes para romper os elos entre o representante e aquilo em nome do que ele fala, os elos resistirão. Ser subjetivos significa que, quando alguém fala em nome de pessoas ou coisas, quem ouve entende que esse alguém representa apenas a si mesmo. “Objetividade” e “subjetividade” são relativos às provas de força e podem deslocar-se gradualmente, pendendo para um ou outro, de forma muito semelhante ao equilíbrio de forças entre dois exércitos. (LATOUR, 2000, ps. 129 e 130).
As provas de força avaliam a resistência dos elos que unem os representantes/porta-vozes
àquilo em cujo nome eles falam. Desta forma, novos objetos vão sendo configurados segundo sua
resistência às provas de força. Para vencer essas provas de força e ter sua afirmação transformada
em fato, um cientista, via de regra, mobiliza muitas outras caixas-pretas em termos de fatos e
máquinas. Assim, discordar da afirmação inicial do cientista implicaria em discordar dessas
muitas caixas-pretas que a sustentam. Neste caso, estamos falando de uma controvérsia que
precisa ser solucionada e cujos objetos e porta-vozes já estavam presentes e organizados.
Entretanto, o processo de construção científica parece envolver um outro movimento relativo à
procura ou aparecimento de novos objetos, ou de “actantes”, expressão utilizada por Latour
(2000) para se referir a qualquer pessoa ou coisa que seja representada, uma vez que não é capaz
de se expressar por si própria. A emergência de um novo objeto se caracteriza inicialmente pela
77
imprecisão de sua definição. Este novo objeto vai sendo configurado pelas propriedades que o
constituem, pela forma em que responde aos testes no laboratório. Para ilustrar esta situação,
Latour recorre às “enzimas”, atualmente substâncias bem conhecidas, mas que no momento de
sua emergência era definida como “uma substância sólida, branca, amorfa, neutra e mais ou
menos insípida que é insolúvel em álcool, solúvel em água e álcool fresco [...]” (DUCLAUX21
apud LATOUR, 2000, p. 145). O objetivo então é transformar esse novo objeto, que se encontra
definido por aquilo que faz, em um velho objeto de forma a retroalimentar o trabalho no interior
dos laboratórios. É preciso transformar esse novo objeto em coisa que tem vida própria e isto
envolve um processo de rotinização. O uso rotineiro de um novo objeto permite sua reificação, ou
seja, é isolado das suas condições de produção, enfim, vai sendo descontextualizado.
O que parece interessante nesse processo de emergência e de transformação de objetos é
a rede factual que o alimenta, posto que um novo objeto é enquadrado e definido na relação que
estabelece com caixas-pretas já estabilizadas mas que um dia já estiveram abertas. Desta forma,
Latour (2000) sinaliza um círculo que sustenta a prática científica, uma vez que a entrada de
novos objetos, que são reificados, permite a expansão e complexificação desse processo que
começa a se distanciar das práticas comuns.
Como já assinalado anteriormente, Latour entende a ciência como um processo coletivo
pois a elevação de uma afirmação a fato depende da ação de outros sujeitos sobre os quais o
autor/cientista tem pouco ou nenhum controle. Assim é que as pessoas envolvidas na transmissão
ou consolidação de uma caixa-preta podem agir de diferentes maneiras: abandoná-las, aceitá-las,
modificá-las, incorporar novos elementos ou mesmo ajustá-la a um novo contexto. O
cientista/autor precisa agora lidar com a imprevisibilidade e incerteza que estão postas no curso
da produção científica. Para resolver este dilema, Latour (2000) considera que duas coisas devem
ser feitas: alistar outras pessoas para que participem da construção do fato e controlar o
comportamento dessas mesmas pessoas a fim de tornar previsíveis suas ações. Como esta é uma
solução contraditória à medida que o envolvimento de um maior número de pessoas pode
dificultar o controle delas, Latour formula a noção de “translação” que, em linhas gerais, envolve
mecanismos de ajuste em torno de objetivos e interesses de diferentes grupos e pessoas.
21 DUCLAUX, E. Pasteur: Histoire d’ um Espirit. Sceaux: Harvester Press, 1980.
78
Uma forma de operacionalizar essas translações é quando o autor da alegação procura
atender aos interesses explícitos dos seus possíveis aliados. Isto não significa o abandono dos
próprios interesses; ao contrário, é uma estratégia oportunista22. Diríamos tratar-se de uma
aproximação desses interesses explícitos pois, à medida que se promove o interesse do(s)
outro(s), também se favorece o próprio interesse.
Uma segunda estratégia é convencer as pessoas a simplesmente seguirem os interesses do
autor da afirmação, que deseja transformá-la em fato. Para isto, é preciso que o caminho que
essas pessoas percorreriam para atingir/atender seus próprios interesses esteja bloqueado. Assim,
quando as pessoas trocam de interesse, assumem o do cientista/autor.
A translação apresentada anteriormente é bastante rara no universo científico. Talvez uma
estratégia mais coerente seria a de oferecer um desvio ou atalho às pessoas que se deseja alistar.
Nesta translação, o cientista/autor não tenta afastar ou deslocar os objetivos dos outros mas
simplesmente se posiciona como “guia” por um atalho que os farão atingir mais rapidamente os
seus próprios interesses. Neste caso, algumas condições precisam ser atendidas: o caminho
principal dessas pessoas deve estar bloqueado; o novo desvio deve estar bem sinalizado e deve
parecer pequeno. Esta translação envolve um processo de intensa negociação entre os
participantes e pode mesmo ser desfeita no curso da produção científica.
Nas translações apresentadas anteriormente, existe um obstáculo que talvez dificulte, e
mesmo impeça, as negociações: todas essas pessoas têm maior ou menor grau de clareza do que
querem, por isso mesmo seus objetivos e interesses são/estão explícitos. Desta forma, os
construtores de fatos deverão realizar uma grande manobra que envolve novas interpretações para
os interesses explícitos dessas pessoas a fim de que sejam canalizadas para direções diferentes.
Com isto, processa-se a invenção de novos objetivos, de novos grupos que, se de um lado
fortalece a produção científica, de outro dilui a autoria da proposta. Desta forma, o autor/cientista
da idéia original deverá vencer provas de atribuição de responsabilidade, que permitirá que seu
nome seja identificado como autor/inventor de um fato ao longo da história da ciência.
No entanto, não basta apenas mobilizar aliados para que um programa de pesquisa
caminhe em direção à produção de fatos. É preciso “atar o destino da alegação com tantos
elementos congregados que ela resista a todas as tentativas de desagregação”. (LATOUR, 2000,
22 O termo aqui empregado não se relaciona com aquele usado por Knorr-Cetina.
79
p.202). Por isso, no curso da produção científica, será necessário o alistamento de novos aliados
humanos e não humanos de modo a aumentar a margem de negociação e manter o interesse do
grupo. Desta forma, evidencia-se um processo pouco linear ao longo da construção de um fato
pois o cientista deverá avaliar e decidir o que é relevante e irrelevante, construir elos cada vez
mais fortes, aumentar a complexidade a fim de manter o controle e a unicidade de seu programa.
As translações revelam, portanto, as incertezas, incoerências, ambivalências e mesmo os
conflitos da ciência. Assim, “interessar, construir alianças, produzir provas, mobilizar o maior
número de aliados e endurecer as provas são estratégias usadas para volver uma ficção em fato”.
(TEIXEIRA, 2001, p. 268). Vale destacar que essas estratégias não estão circunscritas ao
laboratório; ao contrário, transcendem as suas fronteiras permitindo uma análise “sóciotécnica”.
É neste ponto que Latour (2001) apresenta a ciência, ou mais precisamente a tecnociência, como
uma rede onde os “recursos estão concentrados em poucos locais – nas laçadas e nos nós –
interligados – fios e malhas” (p.294) e é preciso pensar sobre o cidadão comum que, por assim
dizer, situa-se entre as malhas dessa rede.
De início, Latour problematiza a perspectiva que polariza universos científicos e não
científicos julgando improcedente defini-los respectivamente a partir do princípio de
racionalidade e irracionalidade. Nesta situação, traz a irracionalidade ao “banco dos réus” e,
através de vários exemplos e contra-exemplos, considera que ninguém na face da terra é racional
ou irracional o tempo todo. Ao romper com a assimetria que separa crença/opinião e
conhecimento científico, Latour parece aproximar-se de certo relativismo reconhecendo
diferentes formas de racionalidades que, por óbvio, são/estão orientadas por fatores sociais e
culturais. Nas palavras do autor, “os relativistas ajudam-nos a entender o que cai por entre as
malhas da rede científica e permitem-nos retomar nossa viagem sem sermos arrastados para os
julgamentos da irracionalidade”. (LATOUR, 2000, p. 320). Na sua visão, não existiria uma
forma lógica que orienta a ciência e uma forma ilógica que orienta a não ciência. Existiria sim o
que denomina de uma “sócio-lógica”, que desloca a discussão das formas de raciocínio para o seu
conteúdo. Desta forma, Latour afasta-se do relativismo ao considerar que esta vertente filosófica
acaba por não dar conta de explicar a existência de diferentes crenças e conhecimentos que são
utilizados para explicar um mesmo fenômeno. Julga que a sócio-lógica é um caminho que
permite evidenciar as cadeias associativas que são construídas pelos indivíduos em determinados
contextos e que, via de regra, são imprevisíveis e heterogêneas. É preciso, portanto, olhar para
80
essas associações, para o que está atado às afirmações que são conduzidas. Segundo Latour
(2000, p. 330):
Se não nos interessa mais aumentar alguns pequenos choques entre crenças, criar alguma dicotomia grandiosa (...) então o que nos resta para explicar as muitas pequenas diferenças entre cadeias de associações? Só isto: o número de pontos ligados, a força e a extensão da ligação, a natureza dos obstáculos. Cada uma dessas cadeias é lógica, ou seja, vai de um ponto ao outro, mas algumas cadeias não associam tantos elementos ou não conduzem aos mesmos deslocamentos. Na verdade, fomos da lógica (esse caminho é reto ou torto?) para a sócio-lógica (esta associação é mais forte ou mais fraca?).
As associações permitem-nos visualizar como as afirmações/alegações que se desejam
fatos circulam fora da rede científica. Essas associações, por vezes, revelam rupturas e conflitos
em relação àquelas que estão dentro da rede científica. O cientista vê-se diante de um grande
paradoxo: para construir um fato, é preciso, simultaneamente, aumentar o número de
participantes na ação para que sua alegação se dissemine e diminuir o número de participantes
para que ela se dissemine como está. Se no interior das redes científicas as translações se
mostram como o caminho para integração de objetivos e interesses, esse mesmo mecanismo
parece ser pouco viável quando se está nas suas malhas. Latour propõe duas alternativas para
enfrentar este paradoxo: uma primeira é ampliar as margens de negociação para que os diferentes
atores ajustem e adaptem as alegações às suas circunstâncias locais, ainda que correndo-se o risco
de ter apenas fatos mais “moles”, incapazes de romper os habituais modos de comportamento; ou
aumentar o controle e diminuir a margem de negociação, forçando as pessoas a adotar as
alegações tais quais elas são, tornando os fatos cada vez mais “duros”, o que implica em reduzir o
número de interessados e aumentar os recursos. Para Latour, a escolha por uma dessas soluções
não implica na retomada de um grande divisor entre mentes e métodos nem na assunção de que
fatos “duros” são melhores que os fatos “moles”; apenas que os fatos “duros” são a única solução
quando se quer que os outros acreditem em alguma coisa que seja incomum. No dizer de Latour
(2000, p. 343), “os fatos duros não são regra, porém exceção, visto serem necessários apenas nos
poucos casos em que é preciso alijar grande número de outras pessoas [que estão fora da rede]
dos seus caminhos habituais”.
Assim é que, no processo de construção do conhecimento científico, para expandir as
redes científicas e fortalecer as alegações que estão em jogo numa controvérsia, alguns cientistas
81
precisam se afastar de seus caminhos a fim de reunir elementos (dados?), por vezes em pontos
bem distantes daqueles que opera, para que no interior dos centros de pesquisa (laboratórios)
possam ser manipulados, combinados e interpretados. Este movimento dos cientistas caracteriza
o que Latour (2000) denomina de “ciclos de acumulação” da ciência. Os ciclos de acumulação
evidenciam processos não lineares onde são mobilizados recursos que retroalimentam a
investigação científica: “a história da ciência é em grande parte a história da mobilização de
qualquer coisa que possa ser levada a mover-se e embarcar numa viagem para casa, entrando no
censo universal” (LATOUR, 2000, ps. 364 e 365). O que efetivamente delimita o início e o fim
de um ciclo de acumulação são os objetos cuja acuidade na manipulação, conservação e
mobilização vai depender sempre do aperfeiçoamento de instrumentos. O crescimento dos
centros implica a multiplicação de instrumentos que produzam inscrições de modo que
conservem, simultaneamente, o mínimo e o máximo através do aumento da mobilidade, da
estabilidade ou da permutabilidade desses objetos. Ao final o que temos? Representações do
mundo. Por isso mesmo, a aproximação ao universo científico implica aproximação a um mundo
simbolicamente construído e que por certo exige a mobilização de práticas epistêmicas
específicas. Através de Latour, re-conhecemos algumas dessas práticas que caracterizam modos
de fazer, usar e interpretar o conhecimento científico.
3.3 A pesquisa em Educação em Ciências vai à sala de aula e encontra um espaço social
complexo e multifacetado
A partir da década de 1990, a pesquisa em Educação em Ciências re-orienta suas bases
teórico-metodológicas deslocando os estudos acerca dos processos de aprendizagem em ciências
de uma dimensão individual para uma dimensão social. Neste redirecionamento, a sala de aula de
ciências, tal como uma caixa-preta, é aberta dando visibilidade a um universo complexo e
multifacetado e a aprendizagem é assumida como processo de aquisição/construção de
significados.
Este movimento na pesquisa em educação em ciências deve-se, em grande parte, a
influência da psicologia sócio-histórica, principalmente das formulações advindas de Vygotsky
(2001, 1998). Desta perspectiva, o processo de construção do conhecimento é entendido como
82
“produção simbólica e material que tem lugar na dinâmica interativa” (SMOLKA; GÓES, 1997,
p.9). Isto implica em considerar a aprendizagem como prática social (KUMPULAINEN;
MUTANEN, 1999; ENGLE; CONANT, 2002) envolvendo a linguagem e o funcionamento
interpessoal.
Cabe assinalar que, em Vygotsky, a linguagem adquire novos contornos uma vez que o
autor entende que sua função não é única e exclusivamente a comunicação mas está também
orientada, tanto para os outros com os quais um sujeito interage como também para o próprio
sujeito no desenvolvimento dos seus processos psicológicos superiores e, acrescentaríamos, da
própria aprendizagem. Desta forma, Vygotsky (2001, 1998) expressa a natureza
predominantemente social dos sujeitos em sua lei psico-genética geral de desenvolvimento.
Numa relação de dialeticidade, a constituição dos sujeitos envolve a apropriação de instrumentos
culturais e operações psicológicas, inicialmente em um contexto social e que serão
posteriormente internalizados em um processo que envolve re-construções, re-organizações da
atividade psicológica dos indivíduos. Por isso, no curso de seu desenvolvimento, os sujeitos vão
“aprendendo a organizar os próprios processos mentais e suas ações por meio de palavras e
outros recursos semióticos” (SMOLKA; GÓES, 1997, p. 10).
Em Vygotsky (2001), a palavra e, mais precisamente, o seu significado constitui o elo de
ligação da relação que ele estabelece entre pensamento e linguagem. Assim, “não há
possibilidades integrais de conteúdos cognitivos ou domínios do pensamento fora da linguagem,
nem possibilidades integrais de linguagem fora de processos interativos” (MORATO, 1996, p. 9).
Nas palavras de Vygotsky (2001 p. 398):
[...] o significado da palavra é, ao mesmo tempo, um fenômeno de discurso e intelectual, mas isto não significa a sua filiação puramente externa a dois diferentes campos da vida psíquica. O significado da palavra só é um fenômeno de pensamente na medida em que o pensamento está relacionado à palavra e nela materializado, e vice-versa: é um fenômeno de discurso apenas na medida em que o discurso está vinculado ao pensamento e focalizado por sua luz. É um fenômeno do pensamento discursivo ou da palavra consciente, é a unidade da palavra com o pensamento.
A palavra, signo por excelência, configura-se como mediadora dos processos de formação
dos conceitos bem como dos processos de abstração e generalização que os acompanham. No
83
estudo que realiza acerca da formação de conceitos, Vygotsky (2001) distingue os conceitos
cotidianos dos conceitos científicos a partir de sua gênese.
Os conceitos cotidianos se formam na relação com a experiência concreta, vivida e
percebida pelos sujeitos, e implicam uma relação das palavras com os objetos a que se referem:
são/estão contextualizados. Já os conceitos científicos são adquiridos mediante um processo de
instrução formal e envolvem relação de palavras com outras palavras, constituindo-se num
sistema hierárquico de inter-relações conceituais. Situando esta noção no ensino de Biologia,
podemos considerar, por exemplo, que trabalhar os mecanismos de transmissão dos caracteres de
uma espécie (genética) nos remete a outros conceitos como cromossomos, genes, DNA, síntese
de proteínas, divisão celular. Não há como compreender cada um desses conceitos sem relacioná-
los a outros, ou melhor, “o significado da palavra que expressa cada um só se realiza na mediada
em que se associa ao significado de outras palavras que expressam os demais” (TUNES, 2000, p.
45).
Na pesquisa em Educação em ciências, essa perspectiva vygotskyana é articulada ao
princípio de dialogia de Bakhtin, que permite o aprofundamento dos estudos que tomam como
objeto de investigação a sala de aula de ciências.
Bakhtin (1992, p. 38) sinaliza que a palavra é um signo ideológico e acompanha toda a
criação ideológica pois “está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de
interpretação”. Na perspectiva bakhtiniana, os sentidos da palavra não existem em si mesmos,
prontos e acabados. Ao contrário, são elaborados e orientados nas/pelas enunciações concretas
produzidas pelos sujeitos. Por isso mesmo, o contexto social, ou seja, as condições sociais de
produção são decisivas na constituição/significação desses mesmos enunciados.
Os enunciados representam, em Bakhtin (1992), a unidade da comunicação verbal, os elos
que alimentam a cadeia contínua e ininterrupta de interação entre os sujeitos. Nas palavras de
Bakhtin (1997, p. 316):
Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são auto-suficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente [...] O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, nos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal.
84
A dialogia em Bakhtin implica sempre em multiplicidade de vozes: nasce e se alimenta no
encontro/confronto dessas vozes em um cenário social. Daí o caráter polifônico da palavra. A
enunciação e os significados que carregam, enquanto produtos da interação social, não são parte
exclusiva do sujeito falante mas fazem parte de “um território comum do locutor e do
interlocutor” (BAKHTIN, 1992, p. 113): é, então nossa e dos outros. Nesse processo constante de
interanimação de vozes, revela-se a multiplicidade de sentidos atribuídos à palavra. A palavra é,
portanto, polifônica e também polissêmica.
Neste movimento polifônico e polissêmico, estabelece-se um jogo onde concepções,
valores e interesses são confrontados ou aproximados. Entretanto, esta relação só é possível
quando circunscrita nos limites de uma mesma comunidade semiótica. Os significados emergem
a partir de um processo necessário de negociação entre sujeitos, quando a palavra do falante
provoca sempre uma contra-palavra do ouvinte. Isto porque, em Bakhtin, o ouvinte apresenta
sempre uma atitude “responsiva” pois “ele concorda ou discorda (total ou parcialmente),
completa, adapta, apronta-se para executar [...]” (BAKHTIN, 1997, p. 290). Enfim, os sujeitos,
enquanto interlocutores, apreendem a enunciação do outro que se realiza no quadro de seu
discurso interior. As “palavras alheias” são incorporadas e confrontadas com as “próprias
palavras”. A internalização do discurso do outro evidencia um processo de transformação das
palavras alheias em palavras próprias caracterizado por um “esquecimento progressivo” dos
autores (SMOLKA, 1997).
A partir do principio de dialogia formulado por Bakhtin, é possível entender que “certos
sentidos vão se tornando mais estáveis nas diversas situações sociais, marcados historicamente, e
vão se estabilizando gêneros do discurso, tanto ligados às situações da vida cotidiana, quanto às
diferentes esferas simples e complexas da vida social” (GOULART, 2000, p.8). Os gêneros do
discurso refletem as condições específicas de produção de enunciados que caracterizam uma dada
esfera da atividade humana não apenas “por seu conteúdo semântico (temático) e por seu estilo
verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua [...] mas também e, sobretudo, por
sua construção composicional” (BAKHTIN, 1997, p. 279).
Para Bakhtin (1997), os gêneros do discurso podem ser distinguidos em gêneros do
discurso primário e gêneros do discurso secundário onde esses últimos, em seu processo de
formação, absorvem e transmutam os primeiros e, ao serem transformados, perdem sua relação
85
imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios. Isto significa que,
em cada gênero, variam as fronteiras, o acabamento do enunciado, a relação do enunciado com o
próprio locutor e com os outros parceiros da interação.
Desta forma, podemos considerar que a mediação pelo outro e pela linguagem, como nos
diz Vygotsky, é indispensável para que ocorra o processo de construção do conhecimento pelo
aluno e a constituição de sua subjetividade. Essa perspectiva vai ao encontro de Bakhtin com
quem aprendemos que “o centro organizador de toda a enunciação, de toda a expressão, não é
interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo” (BAKHTIN, 1992, p.
121).
A apropriação desses elementos teóricos faz surgir um corpo significativo de estudos
dando ênfase às interações e ao discurso que se realiza na sala de aula de ciências. Esses estudos,
a partir de diferentes enfoques e abordagens, permitem, por um lado, caracterizar o discurso e as
interações discursivas que se realizam na sala de aula de ciências (MORTIMER; SCOTT, 2002;
GUIMARÃES, 2000; SCOTT, 1997; MORTIMER; HORTA MACHADO, 1997) e por outro,
estabelecer relações com o processo de aprendizagem (MACHADO; GOULART, 2001;
MORTIMER, 2000; HORTA MACHADO, 1999; MACHADO, 1999; CANDELA, 1998).
Tais estudos, em linhas gerais, acompanhando especificamente os movimentos
discursivos tais como ocorrem na sala de aula, assumem a natureza predominantemente dialógica
do processo de aprendizagem. A complexidade da sala de aula e da aprendizagem vai sendo
evidenciada, à luz dos conceitos de Bakhtin, pela multiplicidade de significados e vozes que
interagem neste contexto, contrapondo-se à busca pela univocidade e pelo sentido literal que são
peculiares ao conhecimento científico. Revelam-se, portanto, processos não lineares de rupturas e
conflitos, de um lado, e aproximação e co-incidências de outro, caracterizando um movimento
que se desloca na tensão-continuidade entre abordagens comunicativas de natureza dialógica e de
autoridade (MORTIMER; SCOTT, 2002).
A abordagem comunicativa é uma categoria central para análise das interações
discursivas “fornecendo a perspectiva sobre como o professor trabalha as intenções e o conteúdo
do ensino por meio de diferentes intervenções pedagógicas que resultam em diferentes padrões
interativos” (MORTIMER; SCOTT, 2002, p. 287). Tais padrões discursivos identificados
também por Mortimer e Horta Machado (1997), revelam-se como cadeias triádicas (I-R-A)
86
quando a iniciação do professor é seguida pela resposta do aluno e se encerra com a avaliação do
professor, ou ainda, como cadeias não triádicas fechadas ou abertas onde o feedback dado pelo
professor incentiva o aluno a elicitar ou mesmo a re-elaborar suas idéias. As cadeias triádicas, de
modo geral, relacionam-se a uma abordagem comunicativa de autoridade onde o objetivo central
é fixar e transmitir certos significados em detrimento de outros, ao passo que as cadeias não
triádicas cumprem uma função discursiva dialógica que se propõe a negociar e gerar novos
significados.
A distinção entre abordagens comunicativas dialógica e de autoridade emerge a partir dos
estudos de Wertsch (1993) que realiza uma aproximação teórica entre a noção de dualismo
funcional do texto proposta por Lotman e a distinção que Bakhtin formula entre discurso
autoritário e discurso internamente persuasivo. Desta aproximação, Wertsch (1993) define as
funções dialógica e unívoca de um texto; a primeira, para gerar, construir e alimentar o processo
de significação e a segunda, para transmitir, fixar, reforçar e consolidar significados
supostamente já construídos. De acordo com o autor, um texto sempre comporta uma tensão entre
essas duas funções e este parece ser um aspecto fundamental que caracteriza o processo de
significação na sala de aula de ciências (MORTIMER; HORTA MACHADO, 1997;
MACHADO, 1999, MORTIMER; SOTT, 2002).
Mais recentemente, Mortimer e Scott (2002) relacionaram essa abordagem comunicativa a
uma segunda dimensão analítica, que se refere à alternância de participantes no curso da
dinâmica discursiva. Assim, o discurso interativo é caracterizado pela participação de mais de
uma pessoa enquanto o não interativo ocorre com a participação de apenas uma pessoa. A
articulação entre essas duas dimensões gera quatro classes de abordagens: interativo-dialógico,
não interativo – dialógico, interativo – de autoridade e não interativo – de autoridade, que são
identificadas na sala de aula de ciências.
A partir dessas análises, a sala de aula de ciências se revela como um espaço social que,
dada à especificidade do seu objeto de aprendizagem, alterna processos de negociação quando
circulam diferentes pontos de vista e concepções e processos de fixação, quando se considera
apenas a perspectiva científica escolar.
Essa alternância de abordagens comunicativas na sala de aula de ciências permite o
reconhecimento do que temos chamado de “tráfico de significados” (MACHADO;
87
COLINVAUX, 2000) evidenciado a partir das diferentes vozes, em termos bakhtinianos, que se
expressam neste espaço: a voz científica, a voz científica escolarizada e a voz do conhecimento
cotidiano. Estas vozes entram em contato, se interanimam e se infiltram mutuamente em maior
ou menor grau (WERTSCH, 1993) de forma a encaminhar o processo de significação.
Considerando o contexto em que se realizam, algumas vozes parecem ganhar mais força, serem
mais aceitáveis do que outras apontando para a noção de “privilegiação” proposta por Wertsch
(1993, p. 146), que se refere ao fato de que um instrumento mediador, tal como uma linguagem
social [ou gênero de discurso], se concebe como mais apropriado ou eficaz que outros em um
determinado contexto sócio-cultural. Este processo torna-se mais visível na sala de aula de
ciências dada a univocidade do conhecimento científico escolar quando, no encontro/confronto
dessas diferentes vozes, é possível fazer emergir determinados significados ao mesmo tempo em
que outros vão sendo silenciados (MACHADO, 1999). Cabe destacar que o silenciamento de
algumas vozes não implica necessariamente no seu apagamento ou substituição, como sugerido
pelo modelo de mudança conceitual. Solomon (1987), por exemplo, argumenta que é possível a
coexistência de diferentes concepções relativas a um dado fenômeno, que são atividas/utilizadas
dependendo do contexto.
Também Machado (1999) evidencia que as concepções dos alunos acerca da evolução dos
seres vivos transitam entre o lamarquismo, darwinismo, neodarwinismo e criacionismo sugerindo
a coexistência de perspectivas, por vezes, contraditórias. Desta forma, poderíamos considerar
que, a partir das interações discursivas, vão se produzindo/configurando o que Orlandi (1987, p.
144) denomina de “efeitos de sentido” pois “não há um centro, que é o sentido literal, e suas
margens, que são os efeitos de sentido. Só há margens. Por definição todos os sentidos são
possíveis e, em certas condições de produção, há dominância de um deles”.
Mortimer (2000) considera que a construção do conhecimento na sala de aula de ciências
deve ser entendida como a tentativa de produzir significados que sejam o mais unívoco possível,
sendo difícil falar de um conhecimento plenamente compartilhado, à medida que “todo processo
de significação comporta essa dialética das forças opostas entre o sentido literal e a polissemia”
(MORTIMER, 2000, p. 334). De forma semelhante, Candela (1998) ressalta o quanto as
interações discursivas em torno de um determinado conteúdo possibilitam a construção de um
contexto argumentativo que, dialeticamente, se abre para a elaboração de novas e diferentes
aproximações ao significado uma vez que “o pensamento humano caracteriza-se pela sua
88
variedade, e a diversidade de argumentos sempre será mais rica do que a uniformidade de
opiniões” (p.162).
De qualquer forma, o processo de significação na sala de aula de ciências, numa ótica
bakhtiniana (1992), comporta a apropriação do discurso do outro, particularmente o discurso do
professor, que, neste contexto, representa a voz da ciência escolar. Aprender ciências pode ser
entendido como um processo de “enculturação”, a entrada numa nova cultura, diferente da
cultura de senso comum, possibilitando a reflexão do aluno sobre as interações entre essas duas
culturas (MORTIMER; HORTA MACHADO, 1997) e isto pressupõe novas formas de observar
e falar sobre um determinado fenômeno (SUTTON, 1996). Aprender ciências é aprender falar
ciências (LEMKE23 apud MORTIMER; SCOTT, 2002).
Desta perspectiva, Horta Machado (1999), analisando aulas de Química, ressalta que a
apropriação do discurso do outro no processo de significação escolar envolve um movimento de
dialogização, tal como proposto por Bakhtin, quando as palavras alheias vão se tornando palavras
alheias próprias e, finalmente, palavras próprias. Neste movimento, a autora sugere que os alunos
parecem alcançar um nível de elaboração mais refinado, evidenciado pelos termos que usam e
pelas relações que estabelecem.
De forma semelhante, Machado e Goulart (2001), ao analisarem as interações discursivas
realizadas entre dois alunos durante uma aula de ciências, evidenciam que esses alunos fazem uso
de construções metafóricas na tentativa de significar o conceito em jogo na atividade, mas
também realizam produções parafrásticas – quando repetem o livro didático ou a professora com
outras palavras ou mudando a sua ordem. Para as autoras, este movimento dos alunos sugere que
a apropriação da palavra alheia é um caminho para se tornar palavra própria, criando, como diz
Bakhtin, matizes e contornos dialógicos aos enunciados individuais.
Dir-se-ia que um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância dos sujeitos falantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados e totalmente permeáveis à expressividade do autor. (BAKHTIN, 1997, p. 318).
23 LEMKE, J.L. Language, Learning and Values. Norwood, New Jersey:Ablex Publishing Corporation, 1990.
89
Como assinalado anteriormente, a aprendizagem é entendida como processo de
significação quando o discurso do outro vai sendo incorporado ao próprio discurso no sentido de
encaminhar a compreensão/ampliação/re-elaboração de um conceito ou de uma rede conceitual.
Sistematizando essa natureza dialógica do processo de aprendizagem, Mortimer e Scott
(2002) consideram que existe uma “transformação progressiva” na maneira de falar dos alunos,
partindo das suas idéias cotidianas até o desenvolvimento de uma “generalização empírica”.
Nesse movimento, os autores reconhecem um certo padrão no uso das abordagens comunicativas,
que se repete a cada ciclo: interativa-dialógica, interativa-de autoridade e não interativa, que estão
relacionadas respectivamente a ações pedagógicas de “discutir” idéias, “trabalhar” aspectos do
conteúdo e “rever” os pontos chaves para sistematização. Com isto, sugerem uma organização do
ensino em espiral que “emerge da diversidade das idéias iniciais dos estudantes, fortemente
ligadas à contextos cotidianos [...] e espiraliza-se em direção ao ponto científico, geral e
independente de contexto” (MORTIMER; SCOTT, 2002, p. 303).
Tal como evidenciado por Latour (2000), parece existir dois movimentos que favorecem a
construção do conhecimento: um, que se abre aos significados permitindo ajustes, adaptações e
negociação e outro, que se fecha, reduzindo as margens de negociações e re-apropriações pelo
sujeito. Se, na prática científica, esses movimentos parecem definir o destino de uma afirmação
em direção à ficção ou em direção ao fato, tudo indica que na sala de aula de ciências os mesmos
movimentos são complementares e necessários ao processo de significação.
Vale ressaltar que, os estudos situados em uma matriz sociocultural contribuíram de
forma decisiva para revelar práticas, particularmente práticas discursivas, relativas ao processo de
construção de significados pelos alunos. Isto significa que o foco predominantemente conceitual
é superado uma vez que se encontra inserido em outras dimensões a serem contempladas no
processo de aprendizagem. Assim, alguns autores (LEANDER; BROWN, 1999; PERKINS;
SIMONS, 1988; EYLON; LINN, 1988) consideram necessário pensar a aprendizagem a partir de
perspectivas múltiplas viabilizando uma análise heurística desse processo.
Leander e Brown (1999), por exemplo, evidenciam que as interações em uma sala de aula
de física têm sido analisadas a partir de uma única perspectiva e propõem uma estrutura analítica
multidimensional constituída por seis categorias: focal, conceitual, institucional, discursiva-
simbólica e afetiva. Filiando-se a escola soviética da Teoria da Atividade, os autores assumem a
90
escola e, mais precisamente, a sala de aula como um sistema de atividades envolvendo uma rede
de relações co-construídas na dinâmica interativa. A emergência dessa rede, analisada a partir das
categorias anteriormente apontadas, faz revelar uma “dança” de estabilidades e instabilidades que
caracteriza movimentos de negociação, de um lado, e fixação ou alinhamento, de outro. Leander
e Brown (1999) consideram que a predominância da estabilidade institucional é garantida pelo
discurso “matemático” do professor identificado como um discurso de autoridade em termos
bakhtinianos mas também, talvez de forma contraditória, por um discurso simbólico dos alunos
que se abre a diferentes significados subsidiando suportes de natureza focal, social e afetiva aos
esforços do professor. Desta forma, os autores argumentam que as respostas conceituais
formuladas pelos alunos em torno de um problema apresentado pelo professor devem ser situadas
em sua interseção com significados de ordem social, afetiva e institucional, uma vez que refletem
suas posições enquanto participantes no fluxo da interação.
Eylon e Linn (1988), realizando uma revisão de literatura, sinalizam que a pesquisa em
Educação em Ciências tem analisado a aprendizagem a partir de quatro perspectivas principais,
quais sejam: conceitual, desenvolvimental, diferencial ou resolução de problemas que focalizam,
respectivamente, os conceitos dos estudantes para explicar determinados fenômenos; as
mudanças qualitativas operadas durante os anos escolares; as diferenças individuais relativas às
habilidades (cristalizadas ou fluidas incluindo auto-regulação e metacognição) mobilizadas na
construção do conhecimento científico e os processos e procedimentos empregados pelos alunos
para solucionarem questões científicas. Os autores argumentam que a integração dessas quatro
perspectivas tratadas até então de forma isolada pode gerar uma estrutura analítica que permita
identificar os mecanismos que orientam os processos de mudança não apenas conceitual mas
também nas formas de pensar, necessários à construção do conhecimento científico. Isto significa
que maior ênfase deveria ser dada:
ao conteúdo e representação do conhecimento, incluindo as concepções daquele que raciocina e os procedimentos usados; a organização do conhecimento ou ligações entre idéias; a epistemologia do aprendiz e a habilidade geral daquele que raciocina, nível de desenvolvimento e capacidade de processar informações. (EYLON; LINN, 1988, p. 286, tradução da autora).
91
Dessa forma, é possível argumentar que a noção de aprendizagem em ciências se amplia,
uma vez que se pressupõe a apropriação não apenas de conceitos mas também de movimentos
aqui entendidos como práticas epistêmicas necessárias à formação de “lifelong learners”, ou seja,
de sujeitos que continuam a aprender para além da vida escolar.
Perkins e Simmons (1988) também apontam para uma perspectiva mais ampla de
aprendizagem ao considerarem que o entendimento mais profundo em um domínio envolve
quatro níveis de conhecimento inter-relacionados: nível conceitual, envolvendo o conhecimento
factual e metacognitivo; nível de resolução de problemas que inclui estratégias e mecanismos de
auto-regulação para manter-se organizado durante a atividade; nível epistêmico, incorporando
normas e estratégias para validação de afirmações, tais como aquelas relativas ao tratamento de
evidências e a explicitação de raciocínio; e nível de investigação, relativo às estratégias e crenças
mobilizadas para desafiar/problematizar o conhecimento no interior de uma área em particular.
Na visão dos autores, cada nível contém uma variedade de tipos de conhecimento que se
estendem de um domínio particular a um domínio mais geral. Por isso, “a compreensão real
consiste em uma rede de relações que se ligam não só ao conhecimento do conteúdo mas também
ao conhecimento de resolução de problemas, epistêmica e/ou estrutura de perguntas.”
(PERKINS; SIMMONS, 1988, p. 323).
No interior da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD)
e do seu Programme for International Student Assessment (PISA), a formação científica tem sido
assumida como um processo de letramento científico definido como: “a capacidade de uso do
conhecimento científico, de identificar questões e tirar conclusões baseadas em provas a fim de
entender e ajudar na tomada de decisões relacionadas ao mundo natural e mudanças através da
atividade humana” (OECD/PISA, 1999, p. 60). Assim é que se focaliza de maneira mais explícita
o “conhecimento, entendimento e habilidades requeridas para a atuação efetiva na vida cotidiana
em função da importância do papel da ciência, da matemática e da tecnologia na vida moderna”
(CAZELLI; FRANCO, 2000). Nesta perspectiva, a OECD/PISA inclui três aspectos a serem
contemplados e avaliados no domínio científico: “processos científicos” relativos aos processos
mentais usados nas abordagens de questões científicas tais como percepção, obtenção e
interpretação de evidências e conclusões; “conceitos e conteúdos científicos” mobilizados no
entendimento de novas experiências; e “situações científicas” que se referem aos contextos nos
quais processos e conceitos científicos devem ser aplicados (OECD/PISA, 1999).
92
A ampliação da noção de aprendizagem sugerida pelos estudos encaminha uma nova
configuração dos conteúdos curriculares a serem contemplados no ensino de ciências que
incluem dimensões diversas, desde as mais tradicionais como conceitos, sistemas conceituais,
teorias, resolução de problemas e procedimentos, até aquelas apontadas pelo mundo
contemporâneo como conhecimento e ação, tomada de decisões e avaliação de riscos (JENKINS,
1999a). Em outras palavras, incluiria a apropriação de instrumentos culturais, inclusive conceitos
e práticas epistêmicas, que permitiriam ao aluno entender o mundo e nele se situar de maneira
mais crítica e participativa.
3.4 Sistematizando a discussão
Talvez neste momento possamos nos perguntar o que aproxima a sociologia do
conhecimento científico e a pesquisa em educação em ciência? A resposta mais imediata é que
ambas situam em bases sociais a produção do conhecimento científico e a produção do
conhecimento cientifico escolar pelo aluno. São processos que se caracterizam como práticas
sociais justamente porque, realizados por indivíduos em contextos específicos e que obviamente
apresentam suas peculiaridades.
Knorr-Cetina, por exemplo, enxerga uma certa “maleabilidade” dos objetos em
laboratórios e também dos próprios cientistas que devem fazer as coisas funcionar. Para isto,
entra em jogo uma “lógica oportunista” que se sustenta em processos seletivos e tomadas de
decisões que são sempre contingentes e locais. Com estes movimentos, que se situam na base da
produção científica, entendemos que objetivos, objetos e metodologias são reajustadas,
redefinidas e readaptadas em processos de negociação. Controle e produção de significados
(fatos) parecem se articular dialeticamente fazendo revelar o lado mais “selvagem” da ciência.
Knorr-Cetina faculta especial atenção ao papel das analogias, da aproximação entre sistemas
aparentemente distantes, como um movimento que permite reduzir as incertezas pois pressupõe a
emergência de soluções para problemas e questões que talvez possam mesmo ainda não existir.
Latour vai ao laboratório e enxerga as controvérsias que se constituem no seu interior para
que afirmações sejam transformadas em fatos ou ficção. No cerne dessas controvérsias são
tecidas redes conceituais, já que os cientistas precisam amarrar suas afirmações a outros fatos no
93
sentido de legitimá-las elevando-as à condição de uma nova caixa-preta. Mas não é só isso: a
atividade no laboratório demanda do cientista uma série de habilidades específicas relacionadas a
modos de fazer, olhar e interpretar os objetos e as inscrições produzidos pelos instrumentos com
os quais deve lidar. O cientista age como um porta-voz que, em seu contexto de produção, fala
por objetos e instrumentos e precisa vencer provas de resistências para que sua afirmação se eleve
à condição de fato, isto é, de uma caixa-preta. No movimento dessas controvérsias e disputas,
estratégias são armadas no sentido de ajustar objetivos, objetos e interesses e arregimentar novos
aliados. Os riscos são muitos pois o sucesso depende dos diferentes modos de apropriação das
afirmações que estão em jogo. Por isto, Latour recorre a uma forma de raciocínio que denomina
sócio-lógica relativa às associações que vão sendo construídas em torno de uma afirmação. Estas
associações podem ser mais fortes ou mais fracas e estão social e culturalmente situadas podendo
elevar a afirmação a alçar o lugar de fato e, portanto, de uma caixa-preta que perde os vínculos
com o seu contexto de produção, ou ainda uma dessas ficções de vida curta que aparecem nos
trabalhos de laboratórios.
A pesquisa em Educação em ciências, ancorada em uma perspectiva sociocultural,
particularmente nos estudos de Vygostky e Bakhtin, tem evidenciado, a partir das análises das
interações discursivas que se estabelecem na sala de aula de ciências, processos de negociação e
fixação em torno de significados que se desejam compartilhados. Tais estudos têm contribuindo
significativamente para a caracterização de um gênero de discurso que parece ser próprio desses
espaços de aprendizagem.
Este quadro teórico, que foi progressivamente sendo delimitado ao longo de nossas
investigações, fornece pistas para identificar e analisar as práticas epistêmicas realizadas pelos
alunos no processo de construção de significados, práticas essas evidenciadas a partir das
interações que constroem com o outro e com o próprio objeto de conhecimento na sala de aula de
Biologia.
4 SALA DE AULA DE BIOLOGIA: COMO E O QUÊ INVESTIGAR?
Neste capítulo, apresentamos os percursos metodológicos realizados em nosso processo
de investigação. Em um primeiro momento, situamos a perspectiva teórico-metodológica adotada
face aos objetivos e à natureza da pesquisa. Em seguida, caracterizamos a instituição de ensino
onde foi realizado o trabalho de campo deste estudo bem como definimos o perfil dos sujeitos
que nele estiveram envolvidos. Procuramos, ainda, tecer considerações sobre a seleção e
organização das atividades desenvolvidas, uma vez que o estudo se realizou em nossa própria
sala de aula. Por último, discutimos o processo de coleta e análise de dados.
4.1 Definindo o referencial teórico-metodológico do estudo
Considerando nossa questão de partida, que trata de identificar e analisar as práticas
epistêmicas aqui assumidas como os movimentos e as formas de lidar com o conhecimento e que
são desenvolvidas pelos alunos em seu processo de construção de significados biológicos no
curso das atividades realizadas em uma sala de aula de Biologia a fim de caracterizá-la como uma
comunidade de práticas, situamos nosso estudo em um referencial teórico-metodológico
qualitativo. Ainda que, como advertido por Hopkins, Bollington e Hewett (1989), a pesquisa
qualitativa permaneça obscura devemos reconhecer que sua apropriação por este campo de
estudo deve-se, principalmente, à incorporação de uma dimensão interpretativa e que permite
maior entendimento e ampliação de um dado fenômeno em sua totalidade.
95
Na visão de Bogdan e Biklen (1994), a pesquisa de natureza qualitativa reúne
características que favorecem uma abordagem naturalística uma vez que envolve a obtenção de
dados de caráter descritivo obtidos a partir de uma relação mais próxima entre pesquisador e
fenômeno estudado. Nesta perspectiva, é no contexto “natural”, tal como se organiza
habitualmente, que se situa o lócus da investigação. Em nosso caso, particularmente,
privilegiamos as ações realizadas pelos sujeitos no interior de uma sala de aula de Biologia, que
caracterizamos como uma comunidade de prática justamente porque supomos que nela sejam
desenvolvidas práticas epistêmicas específicas à natureza do conhecimento científico que ali
circula. A realização de um estudo naturalístico, portanto, encaminha uma preocupação maior
com um processo mais do que com um produto já que entram em jogo a realização de
determinadas atividades, as ações mediadas que se constituem ao longo dessas atividades, as
perspectivas dos sujeitos que dela fazem parte a fim de estabelecer níveis de intersubjetividade,
as interações cotidianas que, de certa forma, vão definindo o nível de participação dos indivíduos
na construção da sala de aula como espaço/tempo de aprendizagem.
Estes aspectos se tornam relevantes quando se toma como objeto de estudo salas de aula,
justamente porque se caracterizam pela complexidade humana e exigem, por certo, análises
situadas em uma perspectiva multidimensional. Como bem diz Alves (2001, p. 25):
Admitir que os fatos a serem analisados e as questões a serem respondidas são complexas, neste mundo simples que é o cotidiano, vai colocar a necessidade de inverter todo o processo aprendido: ao invés de dividir, para analisar, será preciso multiplicar – as teorias, os conceitos, os fatos, os métodos etc. Mais que isso, será necessário entre eles estabelecer redes de múltiplas e também complexas relações.
4.2 Situando o lugar de investigação: o CEFET – Nova Iguaçu
Buscando enfrentar o desafio proposto pela pesquisa qualitativa, tomamos o Centro
Federal de Ensino Tecnológico Celso Suckow (CEFET), unidade descentralizada de Nova
Iguaçu, como lugar de investigação. Esta escolha deve-se ao fato de atuarmos como professora de
Biologia nesta instituição de ensino desde o ano de 2005, o que nos permite um trânsito e
96
controle maiores do processo de coleta de dados bem como um acesso àquilo que chamamos
“mercado negro” de informações, isto é, conhecimentos não sistematizados daquela realidade.
Esta unidade de ensino, inaugurada em 22 de agosto de 2003, portanto com poucos anos
de funcionamento, ainda encontra-se em processo de construção de sua identidade pedagógica e
reconhecimento junto à comunidade que a abriga.
Os CEFET(s), unidades de ensino que compõem a Rede Federal de Escolas Técnicas
tradicionalmente voltadas para a formação profissional, procuram articular educação e mundo do
trabalho, atendendo ao parágrafo único do artigo 39 da Lei de Diretrizes e Bases 9.394 de 20 de
dezembro de 1996 que estabelece:
O aluno matriculado ou egresso do ensino fundamental, médio e superior, bem como o trabalhador em geral, jovem ou adulto, contará com a possibilidade de acesso à educação profissional.
O decreto nº 5154/2004 que regulamenta o § 2º do artigo 36 e artigos 39 a 41 da L.D.B.
9.394/96, define que este acesso à educação profissional poderá se realizar em três níveis:
I - Formação inicial e continuada de trabalhadores;
II- Educação profissional técnica de nível médio; e
III - Educação profissional tecnológica de graduação e de pós-graduação.
Particularmente para a educação profissional técnica de nível médio, o mesmo decreto
define três formas organizativas:
a. Integrada, para os alunos que concluíram o ensino fundamental, devendo,
portanto, articular a formação do ensino médio à formação técnica sob a
condição de a matrícula ser na mesma escola;
b. Concomitante, oferecida para aqueles que já concluíram o ensino fundamental
ou estejam cursando o ensino médio quando deverá então haver
complementaridade entre formação técnica e ensino médio. Esta
complementaridade exige duas matrículas distintas para cada curso podendo ser
na mesma instituição de ensino ou em instituições distintas. Neste último caso,
97
há necessidade de convênios de intercomplementaridade visando o
planejamento e o desenvolvimento de projetos que compartilhem princípios
pedagógicos;
c. Subseqüente, para os alunos que já concluíram o ensino médio.
Neste contexto normativo, o CEFET, unidade descentralizada de Nova Iguaçu, oferece o
curso de ensino médio-técnico de forma concomitante interna e externamente. No primeiro caso,
os alunos são selecionados e realizam o curso médio e técnico internamente na instituição mas
com duas matrículas distintas, o que acaba por possibilitar trajetórias independentes entre o curso
médio e o técnico. Em outras palavras, o aluno pode ficar retido no ensino médio mas prosseguir
sua vida acadêmica no curso técnico (ou vice-versa); mais ainda, o aluno pode decidir abandonar
um deles, por exemplo, o técnico e se manter vinculado apenas ao ensino médio24. Em relação ao
ensino técnico, que na instituição é denominado de externo, o aluno do CEFET-NI também
deverá estar matriculado em uma outra instituição cursando o ensino médio ou ainda comprovar a
conclusão deste segmento de ensino.
Nesta forma organizativa, são oferecidos os cursos de ensino médio - técnico e técnico nas
áreas de Informática, Telecomunicações, Eletromecânica e Enfermagem e ainda os cursos de
graduação em Engenharia de Produção e Engenharia Industrial de Controle e Automação.
Segundo documento que define o perfil de cada curso profissionalizante, a oferta desses cursos
procura atender as mudanças sociais e tecnológicas vivenciadas pela sociedade no contexto atual
que refletem novas configurações e tendências no mercado do trabalho. Procurou-se, portanto,
considerar as características socioeconômicas da região incluindo um levantamento dos setores
produtivos e em expansão e, conseqüentemente, das oportunidades de trabalho para os alunos
egressos da instituição.
Considerando a articulação do ensino médio a uma formação tecnológica, são observadas
algumas diferenças na grade curricular em relação àquela desenvolvida nos cursos de ensino
médio de formação geral (No anexo I, ver grade curricular do CEFET-NI). Isto se percebe
particularmente nos componentes relativos às áreas de conhecimentos científicos: a disciplina de
24 Este aspecto tem gerado inúmeras polêmicas uma vez que o número de evasões e retenções no ensino técnico é alto, o que contribui por descaracterizar o perfil da instituição enquanto entidade de caráter tecnológico.
98
Física é composta de 4 horas-aula na primeira e segunda séries e 2 horas-aula na terceira série; a
disciplina de Química se realiza com 4 horas-aula na primeira e terceira séries e 2 horas-aula na
segunda série, enquanto que a Biologia se mantém com apenas 2 horas-aula ao longo das três
séries. Vale destacar que o aluno conclui o ensino médio, a exemplo de outras instituições
regulares, em três anos letivos e o curso técnico em quatro anos, permanecendo o aluno, portanto,
um ano a mais cursando apenas disciplinas específicas relativas à sua formação tecnológica.
Localizado no bairro de Santa Rita, região periférica do município que apresenta ainda
matizes de uma paisagem rural que se mistura a elementos urbanos, o CEFET – NI recebe alunos
oriundos de diferentes bairros da região metropolitana do Rio de Janeiro mas muito poucos da
própria área em que se encontra situado. A entrada desses alunos para o ensino médio-técnico se
faz via processo seletivo rigoroso e concorrido, realizado em duas fases; uma primeira,
eliminatória, através de prova objetiva relativa às áreas de conhecimentos que integram o núcleo
comum do Ensino Fundamental: Português, Matemática, Ciências, História e Geografia; e uma
segunda fase, classificatória, com prova discursiva de Português e Matemática. No período de
inscrição, o aluno opta pelo curso médio-técnico que deseja realizar sem poder, posteriormente,
solicitar transferência. Isto, certamente, tem implicações na vida desses alunos, uma vez que
fazem essa opção sem muitos esclarecimentos acerca das profissões e de seus espaços de atuação
no mercado de trabalho.
O espaço físico do CEFET-NI representa uma área construída de 7.367 m em um terreno
de 68.700 m, correspondente a vinte salas de aula; dezenove laboratórios equipados e que
atendem aos cursos técnicos, sendo um deles reservado para aulas de Biologia e Química; uma
biblioteca; três auditórios utilizados para reuniões e eventos desenvolvidos pela própria
instituição; duas quadras descobertas (o que é motivo de reclamação por conta da exposição ao
sol dos alunos durante as aulas de Educação Física) e um campo de futebol.
Atualmente o CEFET- NI atende a 493 alunos no curso médio-técnico e ainda a 277 no
curso técnico. Em relação ao curso médio-técnico, a instituição conta com 04 turmas de 1ª e de 2ª
séries e 06 turmas de 3ª série. Já no curso técnico são 04 turmas de 1ª e de 2ª séries e 3 turmas de
3ª série. Estas turmas encontram-se distribuídas nos turnos da manhã e da tarde. À noite a
99
unidade de ensino funciona com os cursos de graduação. O quadro25 abaixo apresenta o número
de alunos por séries e cursos que freqüentam no ano de 2006.
Médio-Técnico Técnico
Turmas Nº de alunos Turmas Nº de alunos
1AElme126 34 1BElme2 30
1ª série 1AInfo1 35 1BInfo2 32
1BEnf1 32 1AEnf2 31
1BTel1 34 1ATel2 33
2AElme1 43 2ATel2 17
2AInfo1 38 2AInfo2 32
2BEnf1 40 2BInfo2 23
2ª série
2BTel1 32 2BElme2 23
3AElme1 45 3AEnf2 10
3AEnf1 32 3BElme2 21
3AInfo1 38 3BEnf2 25
3ATel1 51
3BEnf1 17
3ª série
3BInfo1 22
Total 14 493 11 277
Quadro 01 – Organização das turmas do CEFET-NI em 2006.
Os elementos apresentados nos permitem caracterizar o CEFET-NI como uma instituição
de ensino em processo de expansão, que busca ganhar credibilidade junto à comunidade que
atende e em que se encontra situada. Além disso, procura re-afirmar sua identidade enquanto uma
instituição de formação técnica articulada a uma formação geral, uma vez que a primeira parece
não exercer grande atrativo junto aos alunos.
25 Esse quadro apresenta dados estatísticos relativos ao início do ano letivo de 2006, não sendo consideradas ainda as evasões que acontecem ao longo do curso. 26 No código da instituição, 1 se refere à série; A/B ao turno, respectivamente manhã e tarde; Info/Tel/Elme/Enf ao curso (Informática, Telecomunicação, Eletromecânica e Enfermagem, respectivamente) e 1 ao curso médio-técnico e 2 ao curso técnico.
100
4.3 A turma estudada: apresentando os sujeitos da pesquisa
Para a realização deste estudo, selecionamos uma turma de primeira série do ensino
médio-técnico, 1BTel1, na qual atuamos como professora de Biologia. Trata-se, portanto, de um
estudo de caso que procura descrever e interpretar a realidade de maneira complexa e
contextualizadora. Lüdke & André (1986) apontam características básicas relacionadas aos
estudos de caso e consideramos pertinentes destacar aquelas relevantes à nossa investigação,
justificando assim nossa opção por essa forma de pesquisa qualitativa. Os estudos de caso: a)
enfatizam a “interpretação em contexto”; b) buscam retratar a realidade de forma complexa e
profunda; c) utilizam uma variedade de fontes de informação; d) revelam experiência vicária e
permitem generalizações naturalísticas; e) procuram representar os diferentes e, às vezes,
conflitantes pontos de vista presentes numa situação social; f) utilizam uma linguagem e uma
forma mais acessível aos dados do que outros relatórios de pesquisa.
Os estudos de caso revelam-se, portanto, vantajosos, uma vez que os elementos que
constituem o foco de pesquisa (eventos, sujeitos, ações, lugares) são tratados como unidade em
uma estreita relação que é social, histórica e cultural.
Como dito anteriormente, os alunos têm duas horas semanais da disciplina de Biologia,
que correspondem a cinqüenta minutos cada uma e, nesta turma Tel, constituída de 34 alunos,
acontecem às quintas-feiras de 16:20 h às 18:00 h.
A opção por realizar nosso estudo nesta turma justifica-se particularmente pelo perfil
apresentado: a turma Tel é intensa em sua participação, os alunos apresentam muitas questões e,
diga-se, pertinentes, no curso das aulas, o que contribui para um trabalho mais dinâmico e
dialogado, mas que alternam momentos de concentração com dispersão. Além disso, manifestam
uma predisposição para realização de atividades diversificadas e em grupo.
A organização dos conteúdos a serem trabalhados nesta turma de primeiro ano segue a
tendência geral apresentada pela maioria dos livros didáticos: Química da célula; Estrutura e
Funcionamento celular; Reprodução e Embriologia Humanas e Histologia Humana. Em nosso
trabalho, procuramos ajustar o desenvolvimento dessas grandes unidades aos quatro bimestres
letivos.
101
Para termos uma noção, ainda que geral, sobre quem são os alunos que se constituem
como sujeitos dessa pesquisa, aplicamos um questionário composto de dois eixos: um primeiro
procura especificar a faixa etária, o sexo e a instituição cursada na 8ª série do Ensino
Fundamental; o segundo, de caráter mais subjetivo, busca identificar os motivos que levaram
esses alunos a optar pelo CEFET-NI e pela área técnica em questão: Telecomunicação. Este
questionário foi respondido por 28 alunos da turma Tel.
Quanto à organização da turma em relação à idade, a faixa etária situa-se entre 14 e 17
anos, havendo um número mais expressivo de alunos com 15 anos, o que parece atender às
expectativas para a relação série-idade previstas na organização do nosso sistema de ensino.
Em relação ao gênero, a turma Tel apresenta uma predominância do sexo feminino. Esta
diferença talvez sinalize questões relativas à relação entre gênero e profissão, que vem sendo
explorada por alguns estudos. Entretanto, conhecendo a turma e a partir dos próprios
questionários respondidos pelos alunos, percebemos que a formação profissional não foi um fator
decisivo na escolha pelo curso técnico.
Considerando a instituição de ensino onde foi cursada a 8ª série do Ensino Fundamental,
evidenciamos que a maioria dos alunos da turma freqüentou a rede particular. Assim, na turma
Tel a relação é de 22 alunos oriundos de escolas particulares e apenas 06 alunos de escolas
públicas. Esses dados podem sugerir, num primeiro momento, que os alunos da rede particular
estariam mais bem preparados para enfrentar os processos seletivos de ingresso na instituição.
Entretanto, avançando na análise do questionário, encontramos que 18 alunos realizaram cursos
preparatórios para o concurso do CEFET-NI. Este aspecto confirma a grande concorrência de
candidatos nesse processo seletivo27, já sinalizada anteriormente, e contribui para construir um
perfil dos alunos da instituição de ensino.
Sobre os motivos da escolha do CEFET-NI para cursar o ensino médio-técnico, 21 alunos
da Tel consideraram a qualidade do ensino oferecida pela instituição. Esta qualidade, algumas
vezes, é associada às expressões como “ensino gratuito”, “instituição pública” e “federal”. Outros
04 alunos da Tel fazem referência à formação profissionalizante e possibilidades de entrada no
27 Segundo informações da Secretaria do CEFET-NI, o concurso realizado para o ano letivo 2006 teve uma relação de 10 candidatos para uma vaga.
102
mercado de trabalho; e apenas 02 alunos apontam outros motivos, como a localização da
instituição.
Em relação à opção pelo curso profissionalizante, encontramos alguns aspectos
significativos. Na turma Tel, 21 alunos assumiram que a opção se deu por processo eliminatório
quando contou, e muito, a menor concorrência ao curso de Telecomunicação. Neste caso, o que
vislumbram é efetivamente uma boa formação no nível médio a fim de que possam se preparar
para os vestibulares das universidades públicas. Apenas 04 alunos consideraram a possibilidade
de atuação no mercado de trabalho e apenas 03 alunos timidamente evidenciaram aspectos como
interesse. O que nos parece é que, nesta turma, os alunos têm pouca clareza e, conseqüentemente,
pouca afinidade em relação ao curso profissionalizante que escolheram; alguns assumem que
pensavam tratar-se de algo próximo ao “telemarketing”. A nosso ver, este não se constitui em um
impedimento para que, durante o curso, o aluno possa ir descobrindo possibilidades de atuação e
construindo uma identidade em sua formação técnica. Entretanto, como enfrentam muitas
dificuldades conceituais em relação às matérias do curso técnico, esta aproximação e construção
de identidades vai sendo minada e evidenciada pelos altos índices de reprovação e evasão dos
alunos na formação profissional.
4.4 Sobre as atividades: princípios de organização e justificativa
A organização das atividades para a realização desta unidade de ensino envolveu um
processo de tomada de decisões e seleção que, como considerado por Tardif e Lessard (2005), é
próprio da profissão docente e marcam justamente a tensão que está posta entre uma dimensão
prescritiva, que corresponde aos objetivos de ensino mais amplos e previamente definidos pela
instituição, e uma dimensão pessoal relativa a crenças e saberes docentes, tais como concepções
de ciência, de ensinar, de aprender, construídas ao longo da formação e experiência profissional.
Nas palavras dos autores:
103
A relação dos professores com os objetivos e programas escolares é fundamentalmente uma relação de trabalho, de cujo quadro eles se apropriam e cujos instrumentos eles modificam. Enquanto instrumento de trabalho, os programas são “trabalhados” pelos professores; eles os modelam e ajeitam conforme a necessidade dos alunos, da situação pedagógica, bem como de sua experiência. (TARDIF; LESSARD, 2005, p.222).
Por isso mesmo, não se pode negar que a elaboração de uma proposta de trabalho e sua
realização em sala de aula envolvem transformações, adaptações, re-significações, isto porque o
trabalho docente se materializa em meio a interações variadas que contribuem para definir a sua
dimensão criativa e imprevisível.
Dito isto, talvez seja oportuno sinalizar alguns elementos que entram em jogo quando da
definição e orientação do tema e das atividades a serem realizadas na turma que elegemos como
lugar privilegiado para investigação. O primeiro e talvez decisivo fator foi um incômodo gerado
quando de nossa entrada no CEFET-NI, ao constatarmos que o ensino de Biologia estava
marcado por uma concepção fortemente conteudista. As aulas eram organizadas segundo
conteúdos definidos e limitados a partir do livro didático adotado, de volume único, que
evidenciava pouca ou nenhuma articulação dos conceitos apresentados com questões mais amplas
e atuais, ou ainda com outras dimensões que, acreditamos, devam ser exploradas no processo de
ensino e de aprendizagem em Biologia. Neste cenário, ganhava visibilidade uma certa resistência
dos alunos em relação ao ensino de Biologia, considerado difícil, monótono e carregado de
termos técnicos que deveriam ser memorizados, justamente porque esvaziados de significados.
Esta situação traduz-se em um percentual expressivo de alunos com notas abaixo da média e,
conseqüentemente, lançados em recuperação bimestral.
Articulado intrinsecamente a este incômodo, encontramo-nos com uma literatura que
oferece justamente elementos para se repensar o ensino de Biologia para além de suas marcas
conceituais, pois considera que a aprendizagem deve justamente promover a apropriação pelos
alunos das ferramentas culturais envolvidas nesta área de conhecimento e, por isso, deve
encontrar-se situada. O termo ferramenta, como já discutido anteriormente, refere-se não apenas a
um conjunto de objetos próprios da prática científica que são manipulados e manejados, mas
igualmente à mobilização de conceitos, métodos de trabalho e formas específicas de lidar com
evidências, que permitem ao aluno interpretar fenômenos naturais; compreender mensagens,
104
informações, textos de conteúdo científico e mesmo produzi-los; avaliar enunciados e conclusões
de acordo com dados ou justificativas que os apóiam (ALEIXANDRE, 2004).
Deste ponto de vista, consideramos que a sala de aula de Biologia pode ser entendida
como uma comunidade de práticas, já que agrega formas específicas de falar, pensar e se
relacionar com o mundo, e o processo de ensino e aprendizagem, como sendo situado. Isto
implica na construção de uma proposta pedagógica que favoreça a imersão dos alunos na cultura
científica escolar nos seus diferentes domínios – tanto conceituais quanto intelectuais, relativos a
modos de falar, pensar, analisar e olhar um fenômeno. Isto significa que os conceitos, que
constituem a base que organiza as disciplinas escolares, não podem ser abstraídos das situações
concretas em que são aprendidos e utilizados. Para Aleixandre (2004, p. 2):
A cultura científica, como a de um ofício, é um conjunto de conhecimento teórico e prático, tendo em conta que neste contexto o termo prático não se refere unicamente a manipulações ou manejo de instrumentos, mas também a mobilização de conceitos e modelos, a familiarizar-se, por exemplo, com os métodos que tem a ciência para eleger entre várias hipóteses alternativas a que se corresponde melhor com os dados ou justificativas disponíveis.
Em nosso processo de elaboração e realização das atividades, acabamos por relacionar
esta perspectiva da sala de aula de Biologia enquanto uma comunidade de prática a uma
abordagem temática tal como proposta por Delizoicov et al. (2003). Estes autores, partindo das
análises de Paulo Freire e George Snyders, sugerem que a estruturação das atividades educativas,
bem como a seleção e abordagem dos conteúdos, se realizam a partir de temas geradores,
rompendo assim de forma radical com o tradicional paradigma curricular que toma como base a
dimensão exclusivamente conceitual. Segundo os autores:
[...] se os alunos têm algo para dizer sobre racionamento de energia elétrica, poluição do ar e aids, é pouco provável que possam se pronunciar com igual desempenho, respectivamente sobre: radiação solar, mudanças de estado da matéria, indução eletromagnética; mistura de substâncias, reações químicas; célula e processo imunológico que constituem, por pressuposto, conhecimentos do domínio dos professores de Ciências. (DELIZOICOV et al., 2003, p. 193).
105
Na concepção de Delizoicov et al. (2003), a organização temática articulada a dimensões
éticas e sociais permite a inserção de um corpo de conhecimentos sistematizados do qual fazem
parte “os conceitos, modelos e teorias produzidos pelas ciências” (p.190) e, no nosso entender, de
suas práticas num sentido ampliado. Esta abordagem favorece, portanto, o diálogo entre o
conhecimento que o aluno possui acerca da temática ou de uma situação significativa envolvida
no ato educativo e os conceitos científicos necessários para sua melhor compreensão e, por fim, a
construção de uma nova forma de olhar o fenômeno estudado.
Todos esses elementos, que vão evidenciando uma articulação entre os domínios teórico e
prático que marcam a prática docente, tornam-se decisivos para a elaboração e realização de um
conjunto de atividades organizadas a partir de uma temática geral denominada “Desvendando os
segredos da vida: a reprodução no nível molecular”. A definição por esta temática está
relacionada tanto ao interesse dos alunos no que diz respeito à reprodução dos seres vivos,
particularmente dos humanos, e a questões mais amplas largamente apresentadas pela mídia
como clonagem, organismos geneticamente modificados e células-tronco, quanto a uma
necessidade posta pela própria organização curricular que prevê para o terceiro bimestre o estudo
do núcleo celular de organismos eucariontes28, enfatizando aspectos relativos à molécula de DNA
(ácido desoxirribonucléico) e de RNA (ácido ribonucléico), tais como os processos de duplicação
e síntese de proteínas.
Considerando os aspectos teórico-práticos assinalados anteriormente, não nos interessava
simplesmente apresentar tais conteúdos, mas sim abordá-los em situações concretas para que, a
partir delas, os alunos estabelecessem um diálogo entre seus próprios conhecimentos e o
conhecimento científico escolar, a fim de que os primeiros fossem ampliados, revistos ou
transformados, aproximando-se do segundo. Por isso mesmo, foi previsto um leque de atividades
que favorecesse a expressão de opiniões, elaboração de explicações e justificativas para sustentar
um determinado resultado, enfim, que incentivasse o aluno à participação em práticas que se
aproximassem daquelas de caráter científico, mas que adaptadas ao contexto escolar.
O trabalho realizado ao longo de seis semanas teve como objetivos:
28 Organismos eucariontes são definidos como aqueles que possuem um núcleo individualizado formado por uma membrana nuclear denominada de carioteca ou cariomembrana, que encerra todo o material nuclear.
106
§ Investir na compreensão de conceitos e processos biológicos que
permitissem maior entendimento de questões relativas à reprodução dos
seres vivos no nível molecular.
§ Desenvolver atividades que favorecessem um processo de construção de
modos biológicos de falar, pensar e analisar os fenômenos em questão.
§ Incentivar a participação no que diz respeito à tomada de posicionamento
em relação a questões que envolvem o domínio ético, tais como clonagem
e organismos geneticamente modificados.
§ Enfatizar a constituição do homem a partir de uma articulação entre as
dimensões biológica, social e cultural.
Os conceitos científicos que sustentam esta proposta de trabalho envolvem: núcleo
celular; relações estruturais e funcionais entre cromossomo, DNA e gene; cariótipo; processos de
duplicação do DNA e RNA e síntese de proteínas. A abordagem desses conceitos científicos é
mediada a partir da articulação com questões mais amplas tais como Projeto Genoma e Proteoma
Humano; Clonagem e Organismos Transgênicos, Células-tronco e Mutações Gênicas.
No processo de planejamento das atividades, uma questão formulada por Aleixandre
(2004) se tornou crucial: É possível converter as classes de ciências em lugares onde o alunado
experimente uma imersão na cultura científica? Do nosso ponto de vista seria necessário a
seleção de atividades que solicitassem continuamente a participação dos alunos. Aleixandre
(2004) chama essas atividades de autênticas justamente pelas características que as delimitam,
tais como contextualização, abertura e processos de resolução quando os alunos a partir de dados
disponíveis devem eleger uma possível solução para um problema acompanhado de justificativa
bem articulada.
Desta forma, fomos elaborando e selecionando algumas atividades que pareciam atender a
estas características e que se articulavam seqüencialmente a fim de promover uma compreensão
mais ampla do tema definido para a unidade de ensino. A seguir apresentamos um quadro com a
organização geral das atividades desenvolvidas. Tal quadro, entretanto, não evidencia as
variações e ajustes realizados por conta das interações que tomaram lugar em cada contexto
específico de sua produção.
107
Data Atividades 17-08-2006 Início da unidade de ensino: A reprodução no nível molecular
Atividade 1. Levantamento das concepções dos alunos: aplicação de questionários
Atividade 2. Núcleo: estrutura e função
• Situação inicial: Experimentação com a Acetabulária • Formulação de hipóteses pelos alunos • Definição de funções do núcleo • Simulação de uma nova situação experimental: a relação estrutura e
função • Os Componentes nucleares: diversidade de questões
24-08-2006 Molécula de DNA: onde a vida começa
Atividade 1. As relações entre DNA, Núcleo e processos de reprodução
• Leitura e discussão do texto: “Dolly, o núcleo e os clones” • Discussão em grupo • Registro escrito
Atividade 2. Extração do DNA: entrando no laboratório
• Aproximação ao material • Preparação da mistura – primeira etapa • Observações – discussão e registro escrito • Filtração – segunda etapa • Visualização do DNA • Orientações sobre elaboração de relatórios
31-08-2006 Resgatando a estrutura do DNA e seu processo de autoduplicação
Atividade 1. Revisão de conceitos e leitura de relatórios Atividade 2. A autoduplicação do DNA
§ Questão inicial: Por que o núcleo de todas as células contém todas as
informações do organismo? § Formulação de hipóteses pelos alunos § Simulando o processo de autoduplicação do DNA § O mecanismo semi-conservativo § Mutações gênicas
14-09-2006 Trabalhando com o cariótipo Humano: o aconselhamento genético
Atividade 1. A construção de idiogramas – atividade em grupo
• Definindo idiogramas – cariótipo –cromossomos homólogos
108
• Reconhecendo os pares de cromossomos homólogos • Percebendo anomalias • Definindo a anomalia • Produzindo diagnósticos
Atividade 2. Apresentação coletiva dos idiogramas
• Caracterizando as diferentes síndromes cromossomiais • Relação meiose e síndromes cromossomiais
21-09-2006 Ácidos Nucléicos e o código da vida: a síntese de proteínas Atividade 1. A relação DNA-Gene- característica hereditária
§ Questão inicial: Como o gene se expressa? § Formulação de hipótese pelos alunos § Simulando a síntese de proteínas § Transcrição e tradução gênicas § Mutações gênicas e proteínas não funcionais
Atividade 2. Elaboração de um modelo para a síntese de proteínas
§ Aproximação ao material § Iniciando a decodificação § Simulando a síntese de proteínas
05-10-2006 Clonagem, Células-tronco e Organismos Transgênicos: aprofundando a discussão
• Apresentação de trabalhos em grupo
Quadro 02 – Síntese das atividades “Desvendando os segredos da vida: a reprodução no nível molecular”.
4.5 Detalhamento das atividades de ensino-aprendizagem
Em relação ao levantamento das concepções prévias dos alunos, podemos considerar que
se trata de uma prática relativamente comum após a entrada em cena de estudos no campo da
109
Educação em Ciências29, particularmente aqueles relativos à perspectiva construtivista de ensino
e de aprendizagem, que evidenciam a importância de se conhecer aquilo que os alunos trazem
para a sala de aula e que termina por influenciar significativamente o que os professores
pretendem ensinar. O mapeamento das concepções prévias acerca de uma temática é valioso ao
permitir dar visibilidade aos mitos que, por vezes, os alunos constroem em torno da própria
ciência e, em nosso estudo, particularmente, em relação aos organismos produzidos a partir da
manipulação gênica. Além disso, revelam dúvidas e incertezas bem como certezas relativas a
conceitos científicos que devem ser mobilizados pelos alunos na explicação de determinadas
situações que lhes são propostas.
Para organização do questionário, elaboramos cinco questões abertas que, em linhas
gerais, propunham aos alunos situações experimentais e contextualizadas envolvendo a
mobilização de conceitos científicos relativos à temática que pretendíamos abordar: núcleo
celular em sua estrutura e função, relação entre DNA, gene e cromossomo. As análises das
concepções prévias dos alunos são apresentadas no capítulo 5. De posse dos questionários,
realizamos uma primeira leitura dos mesmos a fim de tomar algumas decisões e definir a direção
do trabalho que seria realizado.
Iniciamos o trabalho com uma discussão que tinha como objetivo estabelecer uma relação
entre estrutura e função do núcleo. Para isto, resgatamos uma das questões formuladas no
questionário para levantamento das concepções prévias dos alunos. Esta questão se referia a uma
situação experimental e solicitava aos alunos prever e justificar os resultados obtidos. A partir das
contribuições dos alunos, pudemos mapear estas funções e, posteriormente, relacionar com a
estrutura nuclear. Durante a aula, os alunos realizavam consultas ao livro didático a fim de
responderem, adequadamente, às perguntas que iam sendo propostas pela professora ou para
manifestarem dúvidas e solicitar esclarecimentos.
Em um segundo encontro, incluímos em um primeiro momento uma prática de laboratório
quando os alunos realizaram a extração do DNA de materiais simples como a cebola e o
morango. A opção pela prática de laboratório vai ao encontro dos próprios referenciais teóricos
que tomamos como base de nosso estudo uma vez que assumindo, ou procurando assumir a sala
29 Neste caso nos referimos particularmente aos trabalhos realizados no interior do movimento das concepções alternativas e que emergem a partir da década de 1980 a partir da publicização do trabalho pioneiro de Rosalind Driver (1978).
110
de Biologia como uma comunidade de práticas, é preciso viabilizar a realização de atividades que
se aproximem daquelas realizadas pelas comunidades científicas. Particularmente, a atividade de
laboratório gera um interesse expressivo dos alunos que, ao mesmo tempo em que vão
construindo conceitos biológicos, em nosso caso relativos à molécula de DNA, vão
desenvolvendo práticas tanto metodológicas quanto epistêmicas relacionadas ao modo de fazer
ciência. Assim, os alunos realizaram inicialmente um reconhecimento do material a ser
manipulado, leram o roteiro da atividade, fizeram observações do material produzido a cada
etapa, registraram informações que pareciam relevantes. Nesta atividade, solicitamos aos alunos
que preparassem um relatório. Para isto, oferecemos como modelo alguns resumos de trabalhos
científicos apresentados na Reunião Anual da SBPC a fim de que percebessem os elementos que
compõem a estrutura de um texto de caráter científico – introdução, objetivo, material e métodos,
resultados e discussões – bem como a linguagem própria destes textos.
Neste segundo encontro, privilegiamos ainda a leitura de um texto com caráter de
divulgação científica como “Dolly, o núcleo e os clones”, extraído de César e Sezar (2006),
acompanhado de questões que eram inicialmente debatidas em grupos formados por pelo menos
cinco alunos e, posteriormente, socializadas no espaço coletivo (No Anexo II apresentamos o
texto). A dinâmica de trabalho funcionava como uma estratégia que promovia, por um caminho
de mão dupla, tanto a problematização quanto a sistematização de conceitos e processos
científicos. Além disso, consideramos que a prática científica envolve leituras e discussões que
apontam, por vezes, para perspectivas divergentes ou mesmo não muito definidas que precisam
ser solucionadas. Para Knorr-Cetina (1992, 1981), a produção do conhecimento é sempre
contextual e contingente, sendo negociada por atores específicos, em um tempo e espaço
particulares. Em laboratórios, por exemplo, os objetos e fenômenos não são apenas tecnicamente
manufaturados mas também simbolicamente construídos, uma vez que se encontram sustentados
por práticas culturais próprias que circunscrevem a produção científica.
Visto desse ângulo, promover atividades na sala de aula de Biologia que possam disparar
conflitos e tensões, sustentação de pontos de vista, tentativas de persuasão ou mesmo
acomodação de idéias a princípio incompatíveis, acabam por favorecer a construção de processos
de negociação entre os participantes que parece ser um movimento necessário para a
aprendizagem da cultura científica.
111
No terceiro encontro, tínhamos como objetivo construir com as turmas o processo de
autoduplicação do DNA e, para isso, partimos de uma questão já trabalhada pelos alunos na
atividade anterior: “Por quê todas as células de um organismo contém as mesmas informações
genéticas?”. A apresentação de uma questão desta natureza, de certa forma, inaugura um espaço
dialógico que viabiliza a participação dos alunos quando evidenciam suas concepções acerca da
temática e das possíveis articulações que realizam com outros conceitos já trabalhados ou com
situações reais vivenciadas no cotidiano. Realizando o seu papel de mediador neste espaço, o
professor encaminha o conceito científico em questão, valendo-se, inclusive, de esquemas que
vão sendo elaborados e re-elaborados neste contexto interativo e articulados a aspectos mais
amplos como as mutações gênicas.
Após a realização desta apresentação relativa ao processo de DNA, propusemos algumas
questões para serem trabalhadas em grupo. Tais questões assumiam a forma de situações ou
simulações e exigiam dos alunos a mobilização dos conceitos já trabalhados e a construção de
justificativas.
Optamos por incluir, respectivamente no 4º e 5º encontros, atividades que envolvessem
simulações tais como a construção de idiogramas30 e a síntese de proteínas propostas por Amabis
e Martho (2002) e apresentadas respectivamente nos anexos III e IV. Como considerado por
Knorr-Cetina (1992, 1981), as práticas de laboratório necessariamente não manipulam objetos e
fenômenos tais como ocorrem na natureza. Na verdade, o trabalho em laboratório envolve,
muitas vezes, a substituição desses objetos e fenômenos por versões parciais ou totais baseadas
no uso de imagens, fotografias, marcas, elementos que os compõem, suas extrações... Enfim, os
objetos e fenômenos são trazidos e acomodados à ordem do laboratório, o que permite sua
manipulação repetida e contínua. Um olhar na história da ciência (FRIEDMAN; FRIEDLAND,
2000) evidencia, por exemplo, que James Watson e Francis Crick, em seu processo de elaboração
do modelo da molécula de DNA, valeram-se especificamente de materiais como bolas de
plástico, arames e placas de metal conjugadas, com informações obtidas a partir dos trabalhos de
outros pesquisadores, principalmente aqueles sobre difração por raios X que vinham sendo
realizado por Rosalind Franklin. Estes aspectos sinalizam a importância de se trazer para a sala
de aula atividades que, de certa forma, aproximem o aluno das práticas culturais científicas
30 A construção de idiogramas corresponde a uma prática de identificação dos cromossomos humanos para diagnóstico e prevenção de doenças hereditárias.
112
favorecendo a apropriação de conceitos e movimentos que envolvem a produção do
conhecimento científico.
A construção de idiogramas é uma atividade interessante porque exige do aluno
observação e paciência para pareamento e ordenamento dos cromossomos homólogos, tomando
como critérios aspectos como tamanho, padrão de bandagem, posição do centrômero. Além
disso, ao final do processo, o aluno deverá identificar o cromossomo que está faltando ou em
excesso a fim de definir o tipo, bem como as características biológicas dos indivíduos portadores
da anomalia em questão.
Na atividade de síntese de proteínas, interessava-nos, particularmente, que os alunos
manipulassem as etapas (transcrição e tradução gênicas) que compõem este processo, justamente
porque são conceitos básicos para a compreensão não só dos mecanismos de hereditariedade, de
funcionamento e manutenção do próprio organismo, mas também de estudos que vêm sendo
largamente realizados pela engenharia genética e que envolvem a manipulação de DNA. Tais
estudos, de certa forma, realizaram um feito pois acabaram por abandonar os laboratórios e
ganharem espaço na mídia, uma vez que seus avanços estão diretamente ligados a interesses
econômicos e éticos. Por isso mesmo, termos como DNA, clone, transgênicos estão cada vez
mais popularizados apesar de esta popularização não implicar necessariamente um entendimento
adequado dos mesmos. Cabe ressaltar ainda que tanto a construção do idiograma, uma técnica
amplamente realizada por citogeneticistas, quanto a simulação da síntese de proteínas,
correspondem a versões simplificadas e escolarizadas de tais práticas e processos.
Todas as atividades foram acompanhadas por espaços coletivos de sistematização e
encaminhamentos marcados por uma alternância no movimento discursivo que ora se mostrava
mais autoritário, quando da transmissão de um dado conceito, ora mais dialógico visando à
construção de um determinado significado a partir de problematizações e provocações. Tais
espaços se revelaram, também, adequados para a construção e ampliação de debates quando os
alunos expressavam suas dúvidas, formulavam hipóteses explicativas e se posicionavam frente a
determinadas questões, particularmente àquelas de ordem ética.
Como culminância do trabalhado desenvolvido ao longo do bimestre, propusemos aos
alunos a elaboração de painéis focalizando temas como: clonagem, células-tronco, organismos
geneticamente modificados. Consideramos que, através do exercício da pesquisa, pudessem
113
ampliar suas leituras, apresentando argumentos contra e a favor dessas técnicas de manipulação
genética, que estão postas na literatura, para que pudessem, talvez de forma mais esclarecida, se
posicionar diante delas.
4.6 Sobre o processo de coleta dos dados
A decisão de entrar em uma sala de aula e investigar as práticas epistêmicas que ali se
realizam, visando caracterizar este espaço/tempo como uma comunidade de práticas, configura
uma série de implicações quanto às formas de se coletar os dados. Uma questão que precisa ser
considerada está diretamente relacionada aos referenciais teóricos que orientam nosso estudo,
uma vez que assumimos a aprendizagem como um processo situado, envolvendo uma
participação, que desejamos e esperamos seja cada vez mais crescente no sentido de poder
caracterizar e visualizar um engajamento disciplinar produtivo como propõem Engle e Conant
(2002). Desta forma, a aprendizagem em nosso estudo não se situa exclusivamente no domínio da
apropriação conceitual, e a pesquisa empírica deseja capturar e revelar modos de pensar, falar,
organizar e olhar objetos e fenômenos biológicos que são revelados a partir da participação dos
alunos em um contexto mediado.
Este modo de conceber a aprendizagem implica, necessariamente, o registro não apenas
das interações verbais que vão se constituindo neste processo de participação mas também outros
movimentos que as acompanham, tais como gestos, silêncios, estratégias selecionadas para
enfrentar uma determinada situação, expressões faciais que indicam angústias, dúvidas,
hesitações, confirmações, certezas, que contribuem para a compreensão do fenômeno de maneira
mais ampla.
Neste sentido, a opção metodológica que nos pareceu mais pertinente para registrar estes
movimentos foi a utilização de vídeogravações durante nossas aulas, pois representa uma recurso
técnico que “permite a exposição repetida do observador à mesma ocorrência do observado [e
este aspecto] aumenta a possibilidade de o observador repensar o observado, ou seja, amplifica
sua análise”. (ALMEIDA CARVALHO, 1996, p. 262).
114
No dizer de Horta Machado (1999), a utilização da vídeogravação permite tanto um certo
distanciamento quanto um mergulho mais profundo e intenso nos processos registrados. Nas
palavras da autora:
Registramos o ocorrido e temos a possibilidade de retornar a ele depois. Acessamos a um tempo que já foi. Esse distanciamento propicia um certo espaço de segurança [...] por outro lado o vídeo possibilita uma profunda imersão no que ocorreu. O vídeo registra “quase tudo” [...] (HORTA MACHADO, 1999, p.57).
Este distanciamento e aprofundamento possibilitados pelas vídeogravações tem para nós
significados mais amplos: remetem a uma análise que não é exclusivamente dos dados relativos à
questão de estudo, mas também de nossa própria prática pedagógica já que o lugar de professora
era também ocupado pela pesquisadora (ou vice-versa). Tivemos, portanto, que enfrentar o
desafio de nos olhar e tomar consciência de alguns aspectos que pareciam até então apenas
impressões relativas a este processo de nos fazer professora: os movimentos, às vezes intensos,
com as mãos, as formas de encaminhar uma determinada questão ou de lidar com as
imprevisibilidades que marcam a sala de aula, entonações, engasgos, vícios, deslocamentos no
espaço, maneiras de se dirigir a turma ou a alguns alunos especificamente... Enfim, o vídeo nos
permitiu ter um alcance de nossa prática de sala de aula como um processo em constante re-
elaboração.
O registro em vídeo-gravação na turma investigada ocorreu ao longo do terceiro bimestre
do ano letivo de 2006 e totaliza aproximadamente 10 horas de gravação. Neste processo,
reconhecemos que a presença de uma câmera e de dois operadores provoca modificações no
contexto observado. Inicialmente, alguns alunos se intimidam, as vozes são sussurradas, pois
como dizem “não queremos falar bobagens”, outros se distraem olhando para a câmera. Mas,
posteriormente, estes elementos estranhos vão sendo naturalizados e as aulas seguem seu curso,
já não nos lembramos que estamos sendo filmados.
Candela (1998, p. 147) considera que tais “mudanças que o docente e alunos possam fazer
refletem [apenas] o que eles sabem e podem fazer”. Isto significa que tanto professor como
alunos procuram contribuir para a realização desse processo de videogravações. Particularmente
115
os alunos percebem que precisam falar mais alto, acenam com as mãos para solicitar a palavra, o
que permite que a câmera seja deslocada para focalizá-los, ou começam a se sentar nas carteiras
da fileira da frente para estarem melhor posicionados para serem filmados.
Em nossa proposta de trabalho, privilegiamos tanto as atividades em grupo quanto as
discussões coletivas e como dispúnhamos de uma única câmera, decidimos filmar um único e
mesmo grupo ao longo do processo de coleta dos dados. A organização dos grupos e a escolha
daquele que seria filmado foi feita pelos próprios alunos pois alguns se sentiam mais à vontade
para enfrentar os “closes” das gravações. É preciso dizer que algumas vezes esses grupos eram
rearranjados, seja por conta da falta de alguns alunos, seja pela manifestação de outros que
queriam participar num determinado dia daquela filmagem mais intimista. Esta opção por gravar
um único grupo tem suas implicações, já que, como professora e mediadora das atividades,
presenciávamos situações ricas que acabavam por escapar ao registro da câmera. Por isso, sempre
que possível deslocávamos a câmera no sentido de poder capturar o movimento desses outros
grupos.
Vale dizer, como bem destacado por Mortimer (2000), que estas turmas não estão em sua
situação natural: são classes observadas e, em nosso caso, não apenas observadas mas também
organizadas em sua proposta de trabalho segundo os pressupostos teóricos e metodológicos que
orientam o estudo. Por isso, nossa forma de encaminhar e olhar este trabalho na sala de aula não é
pura nem neutra mas carregada de teorias que vimos construindo ao longo desses anos de
formação.
O registro videogravado foi complementado com algumas notas de campo. Tratava-se de
um exercício realizado ao final de cada aula, quando anotávamos detalhadamente aspectos
relativos ao trabalho desenvolvido naquele dia. São notas de campo que envolvem a descrição de
algumas atividades, acontecimentos, sujeitos e também idéias, reflexões, primeiras impressões e
possibilidades de novas estratégias para o encontro seguinte pois como dizem Bogdan e Biklen
(1994, p. 151):
[...] as notas de campo podem originar em cada estudo um diário pessoal
que ajuda o investigador a acompanhar o desenvolvimento do projeto, a visualizar como é que o plano de investigação foi afetado pelos dados recolhidos, e a tornar-se consciente de como ele ou ela foram influenciados pelos dados.
116
Estas notas de campo são dados valiosos pois permitem ampliar e/ou complementar os
registros em vídeo uma vez que o vídeo registra “quase” tudo, mas não tudo. Como dispúnhamos
de uma câmera amadora, estávamos sujeitos a toda sorte de ruídos, lacunas e falas
incompreensíveis, e as notas de campo, juntamente com as videogravações compuseram um
corpo de dados que nos permitiu ter mais clareza e segurança para inferir acerca de determinadas
situações no processo de análise de dados.
Em nosso estudo, um segundo corpo de dados é formado pelos questionários respondidos
pelos alunos antes do início da proposta de trabalho. Como já sinalizado na sessão anterior, na
pesquisa em Educação em Ciências, a aplicação de questionários visa oferecer uma visão geral
em torno das idéias que os alunos sustentam acerca de um determinado fenômeno científico.
Solicitamos aos alunos que respondessem às perguntas tal como as entendiam. Como no senso
comum escolar, um questionário xerocopiado é sempre associado a testes ou provas, fizemos
questão de destacar que tal atividade não se configurava em uma avaliação formal e, por isso
mesmo, o anonimato seria respeitado para aqueles que assim o desejassem.
A primeira questão apresentava, de forma adaptada, uma situação experimental realizada
na década de 1930 com uma alga unicelular a fim de evidenciar a importância do núcleo para o
funcionamento celular. A partir da situação, os alunos deveriam prever inicialmente os resultados
da experiência e, em seguida, justificar a ocorrência de tais resultados. Nossa intenção com a
questão era perceber se os alunos articulavam, ou como articulavam, a relação entre estrutura e
função do núcleo celular.
A segunda questão trazia um fragmento de texto extraído do trabalho de Dobzansky31
(1969 apud CÉSAR; SEZAR, 2006), que discute aspectos relativos às mutações gênicas
disparadas a partir da exposição à radiação. Interessava-nos saber as idéias dos alunos com
relação a mutações induzidas que se realizam no material genético presente na célula,
especificamente na molécula de DNA, e que, sendo duplicadas no processo de divisão celular,
acaba por transmitir às linhagens obtidas a partir dela a mesma alteração gênica. Além disso,
queríamos perceber se os alunos faziam distinção entre mutações ocorridas em células somáticas
31 Theodosius Dobzhansky é um famoso geneticista que há quarenta anos já manifestava preocupações com fatores ambientais como as radiações, que aumentam significativamente as chances de dispararem mutações gênicas nos organismos.
117
e células germinativas32 pois, sendo as últimas vítimas de mutação gênica, as conseqüências não
estariam circunscritas apenas àqueles que a sofreram mas poderiam ser transmitidas aos seus
descendentes.
A terceira questão girava em torno da clonagem. Solicitava aos alunos que, além de
definirem o termo clone, evidenciassem se a clonagem é uma forma de reprodução naturalmente
observada na natureza e, ainda, que a comparassem com o processo de reprodução humana. Neste
caso, era nosso desejo perceber as informações que os alunos trazem em torno de uma questão
largamente abordada pela mídia e que parece já estar bastante popularizada.
A quarta questão trazia um pequeno texto relativo a um diagnóstico de uma criança
portadora de síndrome de Down, uma questão também amplamente debatida, particularmente em
tempos de prática escolar inclusiva. Aos alunos, era solicitado que formulassem uma explicação a
ser dada aos pais da criança para o aparecimento da síndrome. Esta questão nos permite
vislumbrar as relações que os alunos estabelecem entre cromossomo, genes e DNA.
Finalmente, na quinta questão, apresentamos um resultado experimental bem sucedido
relativo à produção de um mamífero transgênico, solicitando aos alunos uma possível definição
para tais organismos. Tal como a questão da clonagem, o debate em torno de organismos
geneticamente modificados ganha espaço na mídia não apenas do ponto de vista da publicização
da produção científica mas também e, talvez principalmente, por conta dos desdobramentos
éticos e legais envolvidos.
O terceiro corpo de dados é constituído pela produção escrita dos alunos. Inclui as
questões respondidas pelos alunos acerca da leitura e discussão de pequenos textos e da resolução
de situações-problema e simulações de atividades experimentais, bem como os relatórios
elaborados após as atividades de laboratório. Esta produção escrita permite visualizar elementos
relativos à apropriação e articulação de conceitos biológicos, bem como a organização e as
formas de linguagem utilizadas para construir justificativas e sustentação de pontos de vistas.
32 Células somáticas correspondem a células do corpo não relacionadas à reprodução e que possuem dois conjuntos (n) de cromossomos, no caso da espécie humana 23 pares. As células germinativas ou reprodutoras possuem apenas um conjunto de cromossomos resultado do processo de divisão celular.
118
Consideramos que estes três corpos de dados nos oferecem elementos suficientes para
pensar e analisar a aprendizagem em uma perspectiva situada e contribuem para caracterizar a
sala de aula como uma comunidade de práticas.
4.7 Sobre o processo de análise dos dados
Sobre o processo de análise de dados, Hopkins, Bollington e Hewett (1989) definem a
partir dos estudos de Becker (1958) e Glaser & Strauss (1967) quatro estágios subseqüentes: 1.
imersão nos dados visando uma aproximação inicial e o estabelecimento de categorias de análise
que vão sendo progressivamente melhor delimitadas e aprofundadas; 2. validação dos sistemas de
categorias construídas, sustentada por algumas técnicas; 3. organização e interpretação desses
sistemas de categorias e 4. ação, que se refere a apresentação dos resultados obtidos.
Em relação aos registros videogravados:
Seguindo estas etapas, iniciamos nosso processo de análise realizando sucessivas
“leituras”33 relativas aos dados obtidos através de vídeogravação. Este processo de “re-leituras”,
associado à imersão apontada pelos autores, tem por objetivo delinear, de início, um quadro geral
e impressionista que deve ser aprofundado e melhor especificado, tanto do ponto de vista teórico
quanto empírico, nas etapas posteriores.
A primeira leitura envolve a construção de um mapa geral de cada aula vídeo-gravada.
Estes mapas apresentam aspectos como data e local, atividades realizadas e seus objetivos, os
participantes, as ações e tarefas que tomam lugar no interior de cada atividade. Vale dizer que
esse mapeamento inicial é uma primeira aproximação aos dados após um certo período de
distanciamento. Assim, vamos re-conhecendo/re-vendo os conteúdos que estão sendo abordados
e como vão sendo abordados, formas de intervenção/participação tanto do professor quanto dos
alunos no curso das atividades, e reorientações de eixos de discussões ao longo das aulas. Ao
mesmo tempo, esta primeira leitura já possibilita o delineamento de algumas impressões e
33Neste caso utilizamos a expressão “leitura” dos dados para nos referirmos às etapas em que assistimos aos vídeos de cada aula gravada a fim de codificarmos um conjunto de categorias descritivas e analíticas.
119
significados mais gerais do contexto observado. A importância dessa etapa é destacada por
Cordero et al. (2002) que se referem à possibilidade de re-construção das aulas referentes à
unidade de ensino em questão e cujo processo vai sendo complementado pelos registros escritos.
No anexo V apresentamos um mapa geral correspondente a uma aula videogravada da turma.
Uma segunda leitura, já iluminada por nossa perspectiva teórica e, em particular, pela
noção de ação mediada proposta pelos estudos de natureza sociocultural, permite-nos ajustar a
nossa “lente” no sentido de começar a identificar e mesmo caracterizar algumas ações envolvidas
que se realizam em cada aula e que parecem relevantes para o nosso processo de análise. Nessas
ações, interessa-nos situar, ainda que em um plano geral, os sujeitos que dela participam, os
instrumentos que medeiam essas ações bem como o seu propósito. A especificação do processo
de análise envolve uma necessária e constante articulação entre noções teóricas e dados empíricos
que se realiza através de um movimento de idas e vindas e, conseqüentemente, ajustes entre estes
dois pólos. A manipulação e apropriação desses dados, acompanhadas dos ajustes anteriormente
apontados, são fundamentais para a elaboração de critérios que possibilitam a delimitação e
seleção de episódios de ensino e que encaminham uma análise mais aprofundada dos dados. A
noção de episódios de ensino se torna relevante para o encaminhamento de nosso processo de
análise, uma vez que, como descrito por Carvalho (1995), referem-se àqueles momentos em que
ficam evidentes as situações e noções teóricas que queremos investigar. Neste sentido, os
episódios de ensino são/estão delimitados por algum tipo de ação específica marcada pela
interação entre os sujeitos que constituem/organizam o espaço/tempo da sala de aula. Neste
momento tivemos acesso ao trabalho de Mortimer et al. (2007) que descrevem uma metodologia
para análise de dados de salas de aula registrados em vídeo. Os autores propõem que,
inicialmente, na leitura dos dados, sejam definidas categorias superficiais como a posição do
professor na sala de aula (frontal, deslocamento), o tipo de seu discurso (conteúdo, gestão,
procedimental, de experiência, de conteúdo escrito) e já os próprios episódios de ensino.
Seguindo as orientações propostas pelos autores, redefinimos nossos mapas gerais a partir dessas
categorias e começamos a “enxergar” de forma ainda nebulosa os episódios de ensino para cada
aula videogravada. O anexo VI apresenta um mapa de uma aula analisada para ilustrar essa
segunda leitura.
120
No entanto, neste processo, é necessário não apenas retomarmos os dados mas igualmente
termos uma definição mais clara da noção de episódios de ensino. Para Mortimer et al. (2007, p.
6) o episódio se constitui como:
[...] um conjunto coerente de ações e significados produzidos pelos participantes em interação, que tem início e fim claros e que pode ser facilmente discernido dos episódios precedentes e subseqüentes [...] o episódio mesmo [é definido] por um conjunto de características que incluem seu tema, a fase da atividade na qual ele tem lugar, as ações dos participantes, as formas como os participantes se posicionam no espaço físico no qual ocorrem as interações, as formas pelas quais eles interagem entre si e com os recursos materiais que eles usam.
A partir dos episódios de ensino, pode-se derivar unidades menores de análise que
correspondem às seqüências de interação consideradas “como os enunciados que caracterizam os
gêneros de discurso da sala de aula de ciências” (MORTIMER et al., 2007, p. 6). As seqüências
de interação são definidas a partir das categorias “locutor” e “padrão de interação”, sendo a
última definida pela alternância de turnos entre os participantes da dinâmica discursiva. Neste
caso, podem ser geradas cadeias do tipo fechada (I-R-A), quando a iniciação do professor é
seguida por uma resposta do aluno e esta pela avaliação do professor; ou ainda, por cadeias não
triádicas de interação fechada (I-R-P-R-P-R-A), onde I é a iniciação do professor, R a resposta do
aluno, P a intervenção do professor para sustentar o discurso do aluno ou encaminhar
reelaborações pelo mesmo e A uma avaliação final feita pelo professor. As cadeias não triádicas
podem também ser do tipo abertas quando o professor não realiza a avaliação final.
De posse de todos esses elementos, partimos para uma terceira leitura com o objetivo de
definirmos de maneira mais precisa os episódios de ensino e as seqüências interativas tomando
como referência as interações discursivas e alguns elementos contextuais, como por exemplo, as
etapas das atividades desenvolvidas durante a aula. Elaboramos um mapa para cada aula que
incluía o tema, a fase da atividade, a ação e posição dos participantes, os recursos mobilizados e
os padrões de interação (No anexo VII apresentamos o mapa de uma aula analisada
correspondente a esta terceira leitura). Essa caracterização fazia emergir de forma mais clara
tanto os episódios de ensino quanto as seqüências que os constituíam. A construção desse mapa
permitiu a organização de um capítulo de resultados (Capítulo 6) que caracteriza a dinâmica
121
pedagógica da sala de aula estudada, incluindo objetivos, formas de participação, padrões de
interação e abordagem comunicativa.
Isto permitiu a entrada em nossa segunda etapa de análise, que se refere à construção de
um sistema de categorias. Partimos, portanto, em busca das regularidades bem como das
especificidades e singularidades presentes no interior de cada episódio e seqüência interativa
delimitados na etapa anterior. Neste momento, é preciso ressaltar como o fazem Cordero et al.
(2002) que,
se por um lado as categorias “emergiram” progressivamente a partir das repetidas leituras dos dados, este “emergir” não se deu ao acaso mas orientado e conduzido pelas perguntas que se pretendia responder e, em última análise, pelos pressupostos teóricos que estavam na origem e na base das investigações (p.10).
Nesse caso, não podíamos perder de vista nossa questão de partida que se refere a uma
delimitação das práticas epistêmicas que acompanham a construção de conceitos científicos pelos
alunos. Dessa forma, as noções teóricas norteadoras para definição deste sistema de categorias
referem-se, basicamente, a “ação mediada”, “kit de ferramentas”, “aprendizagem situada”,
“práticas”, o que deve nos permitir caracterizar a sala de aula de Biologia como uma comunidade
de prática. Tendo, portanto, como referência estas noções teóricas apropriamo-nos ainda de
algumas famílias de codificação, propostas por Bogdan e Biklen (1994), que contribuem para o
desenvolvimento dessas categorias e que se referem a: códigos de contexto; códigos de
processos; códigos de atividade/ação; códigos de estratégias. Com este movimento foi possível
selecionar as seqüências a serem transcritas e analisadas e que são apresentadas no capítulo 7.
Entretanto, para a análise das aulas relativas à atividade de laboratório e à apresentação
dos trabalhos dos alunos, tivemos que realizar alguns ajustes metodológicos pois não era
possível, face à organização do trabalho pedagógico e à forma com que fora feita a captura das
imagens pela videogravação, delimitar com precisão episódios e seqüências interativas. Por isso,
ainda que tomando como referência as mesmas categorias apontadas anteriormente – fase da
atividade, objetivos, ações dos participantes - decidimos selecionar cenas/situações, em alguns
casos acompanhadas pelas falas dos participantes, que, ao nosso ver, evidenciam e ampliam os
movimentos dos alunos na construção de seus conhecimentos relativos a um tema específico.
122
Esses resultados, acompanhados de alguns elementos analíticos, são apresentados
respectivamente nos capítulos 8 e 9 desse estudo.
Dada a natureza qualitativa de nosso estudo, a validação do sistema de categorias
elaborado no processo de análise constitui-se em uma etapa relevante pois permite a produção do
que Glaser & Strauss (apud HOPKINS; BOLLINGTON; HEWETT, 1989) denominam de
“grounded theory” (teoria enraizada), uma vez que o conhecimento construído está fundamentado
em dados que permitem inferências teóricas acerca de uma situação social específica.
No processo de validação, aproximamo-nos da técnica de triangulação dos dados quando
as categorias interpretativas elaboradas são cruzadas com as outras bases de dados de que
dispúnhamos, tais como os registros de campo realizados após cada videogravação e as
produções textuais escritas pelos alunos de cada atividade realizada. Além dessa articulação entre
dados obtidos a partir de diferentes instrumentos, a triangulação sugere o confronto entre
percepções de diferentes sujeitos acerca das análises produzidas no curso da investigação
buscando um relativo consenso das categorias estabelecidas. Atendendo a esta exigência, valemo-
nos, tanto no processo de coleta quanto de análise dos dados, de um observador crítico34 que
imprime um olhar diferente e talvez menos impregnado pela teoria que nos acompanha. A
comparação e mesmo negociação entre estas perspectivas diferenciadas é uma oportunidade para
testar e mesmo revisar/ajustar as categorias formuladas no processo de análise garantindo maior
segurança quanto a sua validade e legitimidade.
Em relação aos questionários:
A análise relativa ao questionário para levantamento das concepções dos alunos também é
acompanhada por um processo sucessivo de leituras que permitem uma apropriação progressiva
desses dados e subseqüentemente sua organização em um sistema de categorias.
Realizamos, inicialmente, uma primeira leitura que nos permite uma apreensão geral do
conteúdo das respostas dadas pelos alunos para cada questão. Uma segunda leitura é feita no
34 O observador crítico a quem nos referimos é um professor de Língua Estrangeira e que acompanhou todo o processo de coleta de dados relativo à videogravação e ainda as diferentes etapas do processo de leitura desse material.
123
sentido de “codificar” o material. Neste momento, utilizamos as próprias palavras dos alunos e
aproveitamos para compreender a natureza das respostas dadas, ou seja, ir além do que está
explícito no escrito. Numa terceira leitura, definimos um sistema de categorias interpretativas
para cada pergunta, no qual as respostas dos alunos eram enquadradas. Portanto, tal como na
análise de dados videogravados, tais categorias emergem a partir da manipulação que vamos
realizando com o material empírico, ainda que sejam aqui norteadas não apenas pelos referenciais
teóricos que nos acompanham, mas igualmente pelo conhecimento que temos da turma, já que
ocupamos o lugar de professora, e durante a realização do projeto de ensino tivemos a
oportunidade de explorar mais cuidadosamente estas concepções que os alunos sustentam. Uma
terceira leitura, acompanhada de nosso observador crítico, é realizada a fim de validar este
sistema de categorias. Nesta etapa, algumas categorias são confirmadas enquanto outras
refutadas, uma vez que se mostravam irrelevantes quando situadas no quadro mais amplo da
investigação. Ao final, foi possível identificar quantitativamente a freqüência dessas categorias,
apresentadas junto com uma discussão desses resultados no capítulo 6.
4.8 A articulação entre teoria e empiria
Como assinalado por Lüdke e André (1986), a etapa de categorização não esgota o
processo de análise. É preciso transcender os dados buscando estabelecer articulações com outros
estudos a fim de que novas interpretações acerca do fenômeno estudado possam emergir.
Hopkins, Bollington e Hewett (1989) consideram que esta etapa envolve a construção de
significados relativos a um contexto específico, que conduzem os pesquisadores à última etapa do
processo de análise e que se refere à ação, justamente porque comprometida com a práxis. Isto
significa que, a partir desse conhecimento produzido, podem ser elaboradas sugestões ou planos
de intervenções futuras. Como dizem Lüdke e André (1986, p.49):
É preciso dar o “salto” , como se diz vulgarmente, acrescentar algo ao já conhecido. Esse acréscimo pode significar desde um conjunto de proposições bem concatenadas e relacionadas que configuram uma nova perspectiva teórica até o simples levantamento de novas questões e questionamentos que precisarão ser mais sistematicamente explorados em estudos futuros.
124
Esta articulação progressiva entre teoria e empiria vai sendo delimitada no interior de cada
capítulo que apresenta os resultados desse estudo (capítulos 5, 6, 7, 8 e 9). Neste sentido,
realizamos uma opção por uma apresentação “em mosaico” dos resultados, isto é, focos
diferenciados de análise dos dados que, juntos, possibilitam uma visão dos processos de ensino-
aprendizagem de Biologia. Consideramos que esta forma de apresentar os resultados não é
simplista nem reducionista. Ao contrário, esta estratégia de análise e apresentação dos resultados
permite evidenciar facetas diversas e complementares, todas relevantes, do processo escolar. Esta
abordagem “multifocal” dos resultados é melhor sistematizada no capítulo de considerações
finais quando procuramos realizar o “salto” proposto por Lüdke e André (1986). Este salto
pretender evidenciar especificidades sobre a sala de aula de Biologia e também sobre processos
de construção de significados biológicos pelos alunos.
5. O QUE SABEM E COMO SABEM OS ALUNOS QUANDO O TEMA ENVOLVE O DNA
Mas essa não era uma molécula qualquer: O DNA [...] contém a chave da natureza das coisas vivas, armazenando as informações hereditárias, que são passadas de uma geração a outra e orquestrando o mundo inacreditavelmente complexo da célula. Se decifrássemos sua estrutura tridimensional, a arquitetura da molécula, teríamos um vislumbre do que Crick [...] chamava de ‘o segredo da vida’.(WATSON, 2005, p. 11).
Neste capítulo, apresentamos os resultados obtidos a partir da análise do questionário
aplicado na turma estudada. Este questionário, como já mencionado anteriormente, objetivava
realizar um levantamento das concepções dos alunos em relação ao tema que seria abordado na
unidade de ensino. Considerando a perspectiva proposta por Delizoicov et al. (2003), decidimos
elaborar o questionário a partir de situações contextualizadas, significativas e atuais envolvendo
de maneira direta ou indireta as propriedades e funções da molécula de DNA para os seres vivos.
Organizamos estas análises a partir de cada questão formulada e procuramos, quando
possível, estabelecer relações entre as respostas dadas pelos alunos a fim de evidenciar possíveis
contradições ou coerências na forma de enfrentar cada situação.
126
5.1 A relação núcleo e função
Em nossa primeira questão, adaptamos uma situação experimental realizada na década de
1930 a fim de evidenciarmos a relação que os alunos estabeleciam entre o núcleo celular e sua
função. O núcleo é a estrutura que contém todas as informações sobre o funcionamento e a
estrutura celular, isto porque comporta o DNA – material genético. Neste caso, o núcleo é
responsável não apenas pelo processo de reprodução da célula, mas igualmente pelo controle e
manutenção das atividades vitais celulares.
Em relação ao primeiro item, que solicita aos alunos prever um possível resultado para o
experimento, um percentual significativo, cerca de 75% das respostas na turma , considera que a
parte nucleada é capaz de sobreviver enquanto a parte anucleada acaba por degenerar. Apenas 1
aluno (que corresponde a 3%) da turma faz referência a um processo de formação de novas algas,
sem, no entanto, especificar qual dessas partes é responsável por tal fenômeno. Ainda 22% da
turma da turma não respondem a questão, mas não podemos afirmar se por questões conceituais
ou por não entenderem o enunciado proposto. A tabela 1a resume estes resultados:
Na década de 1930, um pesquisador alemão realizou um experimento com uma alga unicelular visível a olho nu chamada Acetabularia. Num primeiro momento, o cientista seccionou a célula da alga obtendo duas partes; uma que permaneceu com o núcleo da célula e outra que ficou anucleada. O esquema abaixo ilustra o experimento:
a. O que você espera que tenha acontecido com cada uma dessas partes da célula? b. Como você explicaria este resultado?
127
Categorias Nº respostas Respostas (%) Nucleada sobrevive e anucleada degenera
24 75
Formam novas algas 01 03
Não respondeu 07 22
Total 32 100
Tabela 1a: O que acontece com as partes da célula seccionada?
A seguir pedimos aos alunos que elaborassem uma possível explicação para a ocorrência
do resultado por eles esperado. A maioria dos alunos da turma, aproximadamente 60%,
reconhece o núcleo como sendo uma estrutura vital para as células justamente porque comanda
suas atividades metabólicas. Vale destacar que as respostas formuladas por esses alunos são
bastante gerais e não identificam o elemento presente no núcleo que o torna uma estrutura
fundamental para o funcionamento celular. Algumas respostas abaixo ilustram essa categoria35:
“A parte anucleada morre, pois o núcleo é que comanda todas as
funções da célula. A parte nucleada se reconstitui”. (Suzane)36
“Porque o núcleo comanda todas as funções vitais da célula”. (Alex)
“Porque o núcleo é o comando da célula. Ele é responsável por tudo
que acontece na célula”. (Manuela)
Nossas análises evidenciam ainda que 3 respostas dadas pelos alunos da turma
consideram a existência do material genético – DNA - no núcleo para justificar sua importância
para a atividade celular. Além disso, alguns desses alunos fazem referência aos processos
35 Apresentamos as respostas dos alunos tais como aparecem nos questionários, sem revisão ortográfica. 36 Recebemos autorização dos pais dos alunos e da Coordenação do Ensino Médio do CEFET para publicar os nomes dos alunos neste trabalho. A autorização é apresentada no anexo VIII.
128
relacionados com a reprodução/divisão celular decorrentes do controle nuclear como mostram as
respostas abaixo:
“O núcleo é a parte vital de uma célula, é nele que se concentra toda
sua parte genética”. (Camila Dias)
“Pois não tem núcleo, aí não haverá genes e reprodução”.37 (João)
“Através das informações genéticas, podem ocorrer novas divisões
celulares”. (Rafaela)
Aproximadamente 31% da turma não responderam a este item. Da mesma forma que
fizemos anteriormente, não podemos inferir se esse percentual, que consideramos expressivo,
justifica-se por ausência de elementos conceituais dos alunos relativos ao tema ou por
dificuldades no entendimento dos enunciados propostos. A tabela 1b resume os resultados
obtidos:
Categorias Nº respostas Respostas (%)
Núcleo/comando da atividade celular
19 60
Núcleo/material genético 03 09
Não respondeu 10 31 Total 32 100
Tabela 1b: Como você explicaria os resultados obtidos?
5.2 A relação radiação e atividade celular
Em nossa segunda questão apresentamos aos alunos um extrato de texto escrito por
Dobzansky ainda na década de 1960 quando já apontava para os problemas decorrentes da
37 Vale ressaltar que estamos nos referindo nesta atividade, particularmente, aos organismos eucariontes e, portanto, portadores de núcleo que encerra o material genético. Em relação aos procariontes ainda que não tenham um núcleo delimitado, são portadores de genes e de processos específicos para sua reprodução.
129
radiação. Interessava-nos, particularmente, perceber se e como os alunos relacionavam possíveis
alterações na atividade celular ao efeito radioativo.
No texto, o autor considera os efeitos radioativos na linhagem de células somáticas e
germinativas em humanos. No primeiro caso, refere-se a problemas que qualifica como de
natureza fisiológica e que podem ser superficiais, como queimaduras, ou ainda mais maléficos
quando a radiação danifica o material genético da célula que perde o controle sobre o processo de
divisão celular passando a se dividir continuamente até a formação de tumores. De qualquer
forma, como a célula atingida é somática, a alteração celular encerra-se no indivíduo. No segundo
caso apontado, as células atingidas são as germinativas ou gaméticas cujas alterações genéticas e
possíveis mutações que delas decorrem podem ser transmitidas aos descendentes.
A análise das respostas formuladas pelos alunos revela que cerca de 62% estabelece uma
relação linear entre radiação e o surgimento de mutações gênicas. Esses alunos não especificam
que, para haver transmissão aos descendentes, a célula afetada deve pertencer a uma linhagem
germinativa uma vez que mutações gênicas decorrentes da radiação podem ocorrer em células
somáticas podendo levar inclusive ao aparecimento do câncer mas não são transmitidas aos
descendentes. Algumas respostas ajudam a evidenciar estes aspectos:
A seguir é apresentado o fragmento de um texto escrito por um cientista famoso há cerca de 40 anos:
“(...) As radiações de alta energia causam dois tipos de danos à matéria viva, um deles fisiológico e o outro genético. O primeiro se manifesta por queimaduras, um estado patológico e em seguida a morte logo depois da irradiação, ou ainda reações de longo prazo, do tipo de tumores malignos. O segundo dano consiste em mutações induzidas nos tecidos reprodutores e transmitidas à descendência. Qualquer que seja a gravidade do primeiro tipo de dano, ele se limita à geração atingida e desaparece com ela. O dano genético, por sua vez, pode continuar a causar prejuízos durante muitas gerações de indivíduos (...)”.
(Dobzansky, 1969 apud César & Sezar, 2006, p. 247).
a. Por que no segundo caso apontado pelo cientista os danos causados pela radiação podem se perpetuar por sucessivas gerações enquanto no primeiro se limita aos indivíduos que foram por ela atingidos?
130
“Porque no 2º caso pertuba e distorce a genética do indivíduo e que
por conseqüência disso os descendentes desse indivíduo teram esse
mesmo dano genético, ao contrário do 1º que morre com o próprio
indivíduo”.(Gabriela)
“Porque no segundo caso, mexe com os genes, o DNA, que causa
mutações aos descendentes desse indivíduo. Enquanto no primeiro, o
dano causado é esterno, diretamente ao indivíduo que sofreu a ação
radiativa”. (Tatiane)
“Porque no segundo caso, as radiações modificaram a genética do
indivíduo; assim ele passará isso para seus descendentes (...)”.(Juliana)
“Porque neste caso acontece alterações genéticas que provocam mais
tarde danos a outros indivíduos pela hereditariedade.” (João)
Entretanto, cerca de 22% das respostas dos alunos da turma consideram que esta mutação
genética, para ser transmitida aos descendentes, deve necessariamente ter ocorrido em células
reprodutoras evidenciando concepções relativas ao mecanismo de reprodução sexuada nos
organismos multicelulares. As respostas abaixo ilustram esta categoria:
“Porque o primeiro tipo diferentemente do segundo não modifica o
DNA das células reprodutoras. Com o DNA das células reprodutoras
modificado isso irá passar para os descendentes do portador esse
tipo de mutação”. (Rafael)
“No segundo caso, a radiação atinge a parte genética causando dano.
Quando essa pessoa tem um filho, esse filho possui parte do código
131
genético dessa pessoa que sofreu radiação. Isso porque os tecidos
reprodutores foram atingidos”.(Luige)
“Porque o segundo dano consiste em mutações no tecido reprodutor
do indivíduo”.(Maiara)
“Porque se uma célula reprodutora (óvulo, por exemplo) se ‘unir’ com
outra (espermatozóide), aquela vai começar a se dividir. Só que vai se
dividir uma célula mutante (não normal), formando um indivíduo com
erros...”. (Ronnie)
Apenas 1 aluna da turma faz referência a uma tendência da radiação em permanecer no
ambiente. Talvez, a aluna esteja se referindo aos efeitos de longo prazo em contrapartida àqueles
de curto prazo, já que estamos expostos à radiação constante emitida tanto por fontes naturais
quanto artificiais. Os danos causados dependem do tempo de exposição a que estamos sujeitos,
da intensidade dessa radiação e ainda da extensão do corpo que foi atingido. Particularmente em
relação à resposta da aluna, podemos supor que se refira ao efeito cumulativo da radiação, uma
vez que cada nova exposição acumula-se às exposições anteriores aumentando a probabilidade de
efeitos em longo prazo. Vejamos a resposta da aluna:
“Por que no primeiro caso a radiação atinge de uma vez só e na
segunda se prolonga passando de geração em geração porque a
radiação demora anos para ir embora”. (Letícia - Tel)
Apenas 04 alunos, o que corresponde a um percentual de 13%, não responderam a
questão. Também neste caso não podemos inferir com certeza se existem problemas conceituais
ou problemas relacionados à compreensão do enunciado da questão. A tabela 2 sintetiza os
resultados dessa questão:
132
Categorias Nº respostas
Respostas (%)
Mutação gênica não transmitida 20 62
Afeta tecidos reprodutores e descendentes
07
22
Permanência da radiação no ambiente
01 03
Não respondeu 04 13
Total 32 100 Tabela 2: Os efeitos da radiação nas células
5.3 Clones: O que são? Como são produzidos?
A terceira questão procurava evidenciar as concepções dos alunos acerca de clones e
processos de clonagem, um tema que vem sendo significativamente veiculado pelos meios de
comunicação.
Neste caso, os alunos deveriam mobilizar conceitos em torno da reprodução sexuada e
assexuada que ocorre nos seres vivos, bem como do papel do DNA nesse processo. Os clones (do
grego klón=broto, ramo) são cópias genéticas idênticas de um indivíduo e podem ser produzidos
naturalmente a partir de mecanismos de reprodução assexuada. Um exemplo neste caso é o de
bactérias que ao se reproduzirem por divisão celular simples dão origem a uma população
formada por indivíduos geneticamente idênticos entre si. Podemos considerar ainda como
exemplo de clones os gêmeos idênticos (monozigóticos), originados de um único embrião que,
num certo momento do processo de desenvolvimento, separou-se em duas partes.
Entretanto, os clones que vêm despertando tanta atenção nos últimos tempos referem-se
aos de animais, principalmente de mamíferos. Neste processo laboratorial, é extraído o núcleo de
um óvulo de um organismo para que este seja fusionado a uma célula somática nucleada de um
segundo organismo que é, portanto, portadora de todo seu material genético. Em seguida, esta
célula proveniente da fusão sofre divisões, em meio de cultura, e resulta em um pequeno
embrião, que é implantado em um terceiro indivíduo que funciona como “mãe de aluguel”.
133
Quanto à pergunta sobre o que são clones, um percentual expressivo de cerca de 84% das
respostas indicam tratar-se de organismos com material genético idêntico, como mostram os
exemplos a seguir:
“É copiado o DNA da pessoa e é passado para o óvulo”. (Thaiane)
“São seres que possuem o mesmo DNA de um ser já existente”.
(Larissa)
“Acho que é como se fosse ‘duplicar’ um DNA. Criar outro igual a um
que já existe”. (Luise)
1. A seguir é reproduzida uma charge do “The Times-Picayune” que satiriza os experimentos com clones de embriões humanos.
a. O que são clones? b. A clonagem é uma forma de reprodução que ocorre naturalmente em algum tipo de ser vivo?
Justifique. c. Como esse processo de clonagem se diferencia daquele naturalmente observado na reprodução
humana?
134
“São seres criados geneticamente em laboratório a partir do DNA de
outro ser já existente”. (Isamar)
É preciso ressaltar que a expressão de um organismo é dada pela interação de seus genes
com o ambiente. Por isso mesmo, a visão mitificada e, por vezes, caricaturada dos clones como
uma legião de indivíduos não apenas geneticamente, mas fenotipicamente idênticos, como a
apresentada na charge que ilustra a questão, não se sustenta em uma perspectiva científica.
Entretanto, percebemos nas respostas acima que os alunos, ainda que reconheçam os clones como
cópias genéticas, parecem se referir a organismos obtidos exclusivamente a partir das pesquisas
que envolvem a manipulação genética. A tabela 3a sintetiza os resultados obtidos nessa questão.
TEL Categorias Nº
respostas Respostas (%)
Cópias de material genético de um ser
27 84
Cópias de seres 05 16 Total 32 100
Tabela 3a: O que são clones?
Apenas 16% da turma, o que corresponde às respostas de 05 alunos, consideram que
clones são cópias de outros seres vivos. Neste caso, não podemos afirmar se sustentam uma visão
mitificada como anteriormente apontada ou se apenas usam uma expressão geral e cotidiana –
cópias de outro organismo - para responderem a questão. Assim, não sabemos se esses alunos
reconhecem que a base para esse processo é a replicação de um mesmo material genético.
“São seres que possuem características idênticas a outros seres já
existentes.” (Suzane )
“São cópias humanas idênticas”. (Letícia)
135
“São seres que tem características iguais”. (Douglas)
No entanto, vale destacar, como já apontado anteriormente, que, na análise dessa questão,
suspeitamos que os alunos estejam se referindo particularmente a clones humanos e a um
processo realizado exclusivamente em laboratório. Essas suspeitas parecem se confirmar
quando da análise do item seguinte que perguntava aos alunos se a clonagem ocorria
naturalmente em algum tipo de ser vivo. A tabela 3b apresenta os resultados desse item da
terceira questão.
Categorias Nº respostas Respostas (%)
Não Especificidade do DNA Técnica de laboratório Não justificado Ausência de fecundação
23 06 10 06 01
72 19 31 19 03
Sim Reprodução assexuada Não justificado
07 06 01
22 19 03 -
Não respondeu 02 06
Total 32 100 Tabela 3b: A clonagem é uma forma de reprodução natural?
A maioria das respostas apresentadas pelos alunos – cerca de 72% - indica que a
clonagem é um processo que não ocorre naturalmente entre os seres vivos. Em suas
justificativas, consideram a especificidade do DNA de cada indivíduo (19%); reafirmam a
clonagem como uma técnica de laboratório (31%); referem-se à ausência da fecundação (3%)
ou apenas não justificam suas respostas (19%).
Alguns aspectos podem ser destacados a partir desses resultados. Primeiro, que esses
alunos parecem focalizar em suas respostas a reprodução sexuada e, mais especificamente, a
reprodução sexuada em humanos que exige o encontro de duas células (fecundação) para que
esse processo ocorra. E ainda que a reprodução sexuada, além de promover maior variabilidade
136
genética, confere aos indivíduos uma identidade genética que não se repete, com a exceção dos
gêmeos monozigóticos. Neste caso, considerando que os alunos estejam se referindo à
reprodução de seres humanos e não de seres vivos em geral, incluindo aqueles que realizam
reprodução assexuada, é possível entender a expressão significativa desta categoria que
considera que a clonagem não ocorre naturalmente. As respostas abaixo ajudam a ilustrar esta
categoria:
“Não. Os clones são produzidos em laboratório. (Thaiane)
“Não. Sendo a clonagem indivíduos com as mesmas informações
genéticas, nenhum ser vivo é capaz de reproduzir outro com as
mesmas informações genéticas”. (Rafaela)
“Não. Não existe a clonagem em nenhum animal pois nenhum se
produz igual ao outro.” (Catherine)
“Não, pois esta só pode ser feita em laboratórios especializados”.
(Maiara)
“Não, por não haver fecundação”. (Letícia)
Entretanto, aproximadamente 22% das respostas dadas pelos alunos da turma afirmam
que a clonagem é uma forma de reprodução que naturalmente ocorre entre os seres vivos. Neste
grupo estão incluídos aqueles alunos que se referem aos processos de reprodução assexuada que
ocorre em organismos unicelulares e de divisão celular por mitose quando, em ambos os casos,
são formadas duas células geneticamente idênticas à célula-mãe (19%). Entretanto, nenhum aluno
cita o caso dos gêmeos monozigóticos que são considerados clones, uma vez que possuem o
mesmo material genético em suas células. Os dados sugerem uma visão ampliada desses alunos
em torno do processo de clonagem pois, como já assinalado anteriormente, esta é uma forma de
reprodução assexuada que se realiza em alguns seres vivos sendo os descendentes geneticamente
137
idênticos entre si, um aspecto que lhes confere pouca variabilidade genética. Vejamos algumas
respostas:
“Algo semelhante acontece com as amebas, pois duas amebas podem
ter o mesmo material genético”. (Luisa)
“Ocorre nas células. Elas se duplicam contendo o mesmo material
genético”. (Larissa)
“Sim, pois há microorganismos que, ao se reproduzirem
assexuadamente, criam organismos com DNA igual, o que é um tipo de
clone”. (Lenon)
“Sim. As células do corpo se multiplicam como se fossem clones”.
(Renata)
Apenas 1 aluno, apesar de ter considerado que a clonagem é uma forma de reprodução
que acontece entre alguns seres vivos, não justificou a sua resposta. Ainda dois alunos da turma
não responderam a este item.
Para finalizar a discussão em torno da clonagem, perguntamos aos alunos de que forma
esse processo se diferenciava daquele observado na espécie humana. Interessava-nos perceber se
os alunos mobilizariam conceitos de reprodução assexuada e sexuada e suas possíveis
implicações para as espécies. A tabela 3c sintetiza os resultados obtidos.
Categorias Nº respostas Respostas (%)
Variabilidade Genética 18 56
Natural x Artificial 02 06 Não respondeu 12 38 Total 32 100
Tabela 3c: Clonagem e a reprodução humana
138
A análise desse item sugere que cerca de 56% das respostas apresentadas pelos alunos da
turma procuram diferenciar clonagem e reprodução humana a partir da maior ou menor
variabilidade genética que decorrem desses processos. A clonagem, sendo uma forma de
reprodução assexuada, inicia-se a partir de uma única célula conferindo aos indivíduos
produzidos uma mesma identidade genética. Já a reprodução humana, por ser sexuada, envolve o
encontro de duas células gaméticas produzindo maior variabilidade genética entre os organismos
o que, do ponto de vista adaptativo, é importante para a espécie.
“De forma que na reprodução natural humana há uma junção do gene
masculino com o gene feminino, diferente da clonagem que tem a
cópia, ou seja, o gene idêntico ao do outro ser”. (Camila Guimarães)
“Porque na reprodução humana, o ser que irá nascer, receberá os
genes do pai e da mãe, enquanto na reprodução por clonagem é uma
cópia”. (Gabriela)
“Na reprodução humana 1 ser é formado atravéis de 2 seres, já na
clonagem o ser é formado por 1 outro ser”. (Maiara)
Pois no processo de reprodução humana o DNA da mulher e do
homem, são ‘misturados’. Já a clonagem o DNA é copiado “. (Nathan)
Apenas duas respostas dadas pelos alunos, consideram que a clonagem é uma forma de
reprodução que se realiza exclusivamente em laboratórios sendo, portanto, qualificada como
“artificial” contrapondo-se à reprodução humana considerada “natural”. Esquecem esses alunos
que não apenas a clonagem é igualmente uma forma de reprodução que ocorre em algumas
espécies de seres vivos, tais como protozoários, como a reprodução humana que pressupõe o
encontro de gametas tem sido largamente realizada em laboratórios via processos de inseminação
artificial e fertilização in vitro.
139
Entretanto, se a exemplo de outras questões, tomamos como referência que estes alunos
estão analisando especificamente a clonagem humana, poderíamos considerar que esta seria um
processo artificial de reprodução que só é possível a partir da manipulação de células somáticas
do indivíduo a ser clonado. Algumas respostas ajudam a ilustrar esta categoria.
“O processo é feito de maneira científica”. (João)
“A clonagem é feita em laboratório, com especialistas no assunto, que
fazem a cópia. Já no ser vivo ocorre a duplicação de todo o
organismo; o ser vivo formado sai de dentro de seu próprio corpo”.
(Luisa)
Talvez pela própria dificuldade do tema, um percentual significativo de alunos –
38% da turma – não respondeu a este item. Este percentual parece ser indicio do
desconhecimento dos alunos sobre o processo de clonagem.
5. 4 Síndrome de Down: elaborando possíveis explicações
Na quarta questão, apresentamos uma situação em que se confirma um diagnóstico de
síndrome de Down para que os alunos propusessem uma possível explicação a ser apresentada
aos pais da criança portadora de tal anomalia. A seguir apresentamos a questão.
140
Ao propormos uma questão relativa à Síndrome de Down, procurávamos evidenciar os
conceitos de genes e cromossomos. Um gene refere-se a um trecho de DNA que codifica uma
determinada proteína e, portanto, uma característica do indivíduo, enquanto o cromossomo
corresponde a uma molécula de DNA associada a um tipo especial de proteínas chamadas
histonas. A partir dessa definição, é possível considerar a existência de pelo menos dois tipos de
mutação que afetam o material genético; as mutações denominadas de pontuais que ocorrem em
genes únicos e as mutações cromossômicas que podem atingir uma grande extensão do
cromossomo ou mesmo o cromossomo inteiro. Estas alterações cromossômicas podem ser
estruturais, quando modificam a seqüência de genes de um cromossomo, ou numéricas, quando
alteram o número de cromossomos. Os indivíduos portadores da Síndrome de Down possuem um
cromossomo a mais no par 21 denominada de trissomia do 21 decorrente de erros no processo de
disjunção dos cromossomos homólogos para formação dos gametas. A tabela 4 resume os
resultados apresentados para esta questão.
Categorias Nº respostas Respostas (%)
Alteração número de cromossomos
21 66
Anomalia genética 07 22 Problemas na gestação 01 03 Não respondeu 03 09 Total 32 100
Tabela 04: Explicando a Síndrome de Down
“Um casal tem um bebê que nasceu com características anômalas (...) a família é encaminhada a um centro de genética médica. Nesse centro, a criança é novamente examinada e os sinais encontrados (hipotonia muscular, face achatada, fissuras palpebrais oblíquas com ângulos externos elevados, pele abundante no pescoço, prega palmar transversa única e orelha de baixa implantação) sugerem como diagnóstico a síndrome de Down (...). Novos exames são realizados e é confirmado o diagnóstico da síndrome de Down.
(In: Krasilchik, 2004, p. 114)
a. Como você explicaria ao casal a manifestação da síndrome de Down?
141
A síndrome de Down é um tema que vem sendo amplamente abordado pelos veículos de
comunicação, particularmente em tempos de práticas inclusivas. Talvez por isso mesmo, a
maioria das respostas dos alunos – cerca de 66% – reconhece a sua manifestação como uma
alteração do número de cromossomos próprio da espécie humana. Entretanto, esses alunos não
fazem referência aos processos envolvidos nesta alteração. Isto ao nosso ver é compreensível pois
trata-se de um aspecto a ser discutido, posteriormente, na unidade de ensino relativa à divisão
celular . As respostas dos alunos ilustram esses aspectos:
“É um erro na divisão do cromossomo 22, ao invés dele ser dividido em
dois, se torna 3. Isso acarreta alterações no material genético”.
(Letícia)
“A Síndrome de Down é feita de um erro genético na reprodução.
Uma pessoa normal recebe 23 cromossomos do pai e 23 cromossomos
da mãe e por alguma razão a pessoa recebe um cromossomo a mais,
tendo então 47 cromossomos causando a síndome de Down”. (Rafael)
“Cada ser humano tem 23 pares de cromossomos no DNA. Os seres
que nascem com síndrome de Down também tem 23 pares, só que um
desses 23 não é um par e sim um trio”. (Catherine)
“Acontece quando há uma duplicação no cromossomo 21, e
sucessivamente, uma série de alterações na estrutura física do
indivíduo”. (Alex)
Cerca de 22% das respostas dadas pelos alunos consideram que a síndrome de Down é
uma anomalia genética não especificando de que natureza. Como este é um termo geral, que se
refere tanto às alterações apenas em genes quanto em cromossomos, não podemos afirmar se e
como o aluno percebe a distinção entre mutações genéticas e alterações cromossomiais.
142
“Trata-se de um acidente genético que pode ocorrer com qualquer ser
humano independentemente das características genéticas peculiares
apresentadas pelo mesmo”. (Lorena)
“Houve uma modificação genética no bebê que eu não sei como nem
porque”. (Camila Dias)
Neste grupo, vale destacar a resposta de uma aluna que, manifestando dúvidas na
explicação que deveria apresentar sobre a Síndrome de Down, considera ser mais oportuno dispor
de uma argumentação mais religiosa pois a considera mais aceitável e compreensível do que a
médica:
“Não sei, acho que falaria de falha genética, incompatibilidade de
genes dos pais, sei lá, mas sinceramente como não saberia como
explicar diria que era o que Deus queria e pronto (afinal ninguém vai
poder reclamar, quem sabe é Deus) O jeito mais fácil de explicar uma
coisa que você não sabe é culpar Deus (...)” (Débora)
Ainda uma aluna da turma faz referência a problemas na gestação. De fato algumas
substâncias químicas, radiações e patógenos podem provocar alterações no material genético do
embrião que está em desenvolvimento, não sendo este o caso da Síndrome de Down, pois a
alteração no número de cromossomos é decorrente de uma não disjunção do par de cromossomos
homológos ainda na divisão celular – meiose - para formação dos gametas.
Apenas 3 alunos da turma (cerca de 9%) não responderam à questão e este percentual
baixo talvez possa ser explicado a partir da publicização das discussões que vem sendo realizadas
em torno dos portadores da síndrome de Down.
143
5. 5 Sobre os organismos geneticamente modificados
Nos últimos tempos, temos assistido a debates e discussões que envolvem a liberação ou
não do cultivo e consumo de alimentos transgênicos. Por essa razão, considerávamos oportuno
formular uma questão que se propusesse sondar qual o entendimento dos alunos acerca de
organismos transgênicos ou geneticamente manipulados (OGM). Para isto contextualizamos a
temática a partir de uma notícia relativa a produção de um organismo transgênico.
Atualmente, algumas técnicas de engenharia genética já permitem que genes sejam
transferidos de uma espécie para outra. Um exemplo seria a introdução de um gene da espécie
humana em uma bactéria que, ao se multiplicar, originaria uma população de bactérias portadoras
do gene humano. Desta forma, organismos que recebem e incorporam genes de outra espécie,
podendo transmiti-los aos seus descendentes, são chamados transgênicos. A tabela 5 apresenta
esses resultados.
Categorias Nº respostas Respostas (%)
Organismos com material genético modificado em laboratório
17 54
Organismos com material genético modificado
09 28
Organismos com DNA de outra espécie
03 09
Não respondeu 03 09
Total 32 100 Tabela 05: Os organismos geneticamente modificados
“Em 11 de janeiro de 2001, cientistas norte-americanos do Centro Regional de Pesquisa sobre Primatas de Oregon, nos Estados Unidos, anunciaram ao mundo a produção do primeiro primata transgênico, um robusto e brincalhão filhote de macaco Rhesus, que recebeu o nome de ANDI (...)”. (In: Paulino, 2004, p. 104)
a. Hoje em dia é comum ouvirmos falar de seres transgênicos, como é o caso da
soja e que ganha espaço na mídia quanto à sua comercialização e consumo pelos humanos. O que são organismos transgênicos? Como são obtidos?
144
A análise da questão revelou uma certa fragilidade nas concepções dos alunos ainda que,
de um modo geral, todas as respostas tenham evidenciado de alguma forma a manipulação no
material genético dos organismos transgênicos.
Percebemos que a maioria das respostas dos alunos – cerca de 54% da turma – considera
que os organismos transgênicos são aqueles que têm, de alguma forma, seu material genético – a
molécula de DNA - alterado através de técnicas específicas realizadas em laboratórios no sentido
de se produzir melhoramentos na espécie. Entretanto, essas respostas não especificam que forma
de alteração é processada. Neste caso, podemos tecer dois comentários: o primeiro é que esses
alunos talvez reconheçam a impossibilidade de cruzamento e, portanto, mistura de genes entre
espécies diferentes na natureza e, por isso, a obtenção de organismos transgênicos deva ocorrer
exclusivamente em laboratórios; o segundo é que consideram que qualquer organismo que tenha
sofrido alguma forma de intervenção no seu material genético através de técnicas laboratoriais
seja qualificado como transgênico. Vale destacar que as respostas dos alunos ressaltam a
possibilidade de melhoramento das espécies. As respostas a seguir evidenciam este aspecto:
“Organismos transgênicos são aqueles que tem seu DNA alterado a
fim de apresentar melhor desempenho.” (Nathan)
“São organismos onde são mudados a genética do DNA desses
organismos para eles nascerem diferentes. São criados em
laboratórios e depois enviados a lavoura.” (Catherine)
“São organismos geneticamente modificados. Os cientistas pegam, no
caso dos vegetais, a semente, e fazem variações no DNA das células
que a compõe”. (Ronnie)
Cerca de 28% das respostas apresentadas fazem referência exclusivamente a uma
alteração no material genético. Como comentado anteriormente, não podemos inferir com
segurança se esses alunos assumem que qualquer forma de mutação qualifique um organismo
145
como geneticamente modificado ou ainda que o surgimento desse organismo possa acontecer
como um processo evolutivo natural. Vejamos alguns exemplos deste segundo grupo de
respostas:
“São organismos acostumados com um determinado ambiente e sofre
uma ‘mutação’ em seu gene.” (Suzane)
“Que são modificados geneticamente. Modificando diretamente no
DNA.” (Thaiane)
Somente três alunos da turma (cerca de 9%) sugerem em suas respostas que os
organismos transgênicos são aqueles que têm incorporados em seu material genético DNA ou
mais especificamente trechos de DNA de uma outra espécie, como mostram as respostas:
“São obtidos através da adição de DNA de outras espécies”. (Débora)
“São organismos mudados geneticamente. São obtidos através de
trocas no DNA”. (Suzane)
Apenas três alunos da turma não responderam a questão.
5.6 Sistematizando a análise dos questionários:
Desta análise das concepções dos alunos, alguns aspectos podem ser considerados. O
primeiro refere-se à coerência do conhecimento biológico dos alunos, especialmente à noção
adequada dos alunos sobre a relação que estabelecem entre núcleo e sua função. Para a maioria
dos alunos, o núcleo possui todas as informações sobre o funcionamento e a manutenção da
célula e, eventualmente, do próprio organismo no caso dos unicelulares. Relacionam, ainda, a
146
estrutura nuclear à capacidade da célula de se dividir garantindo, por isso mesmo, a
existência/sobrevivência da espécie ou do organismo. Alguns alunos reconhecem que é no núcleo
celular que se concentra o material genético (DNA), molécula responsável pelo armazenamento
de todas as informações para a manutenção e funcionamento celular. Alterações neste material
genético acabam por afetar as gerações futuras já que, no processo reprodutivo, este material é
transmitido aos descendentes e este é um entendimento que aparece nas respostas apresentadas
pelos alunos na segunda questão.
Sobre a clonagem, a maioria entende tratar-se de cópias de material genético e não de
indivíduos. Esta concepção dos alunos é importante tendo em vista que a expressão de um
organismo é dada pela interação de seus genes com o ambiente o que rompe, de certa forma, com
uma visão mitificada e caricaturada de clones como uma legião de indivíduos não apenas
geneticamente, mas fenotipicamente idênticos. Entretanto, um número expressivo de alunos não
reconhece a clonagem como sendo um processo de reprodução que ocorre naturalmente em certas
espécies. Para justificar suas respostas, argumentam que o DNA é uma molécula específica para
cada indivíduo, que a clonagem é um evento artificial realizado em laboratório, ou ainda, que a
reprodução envolve necessariamente a fecundação. Em todos os casos, a leitura que os alunos
realizam parece se referir à clonagem na espécie humana e, portanto, à reprodução sexuada. Esta
nossa interpretação é confirmada quando encontramos que, para os alunos, a clonagem se
diferencia da reprodução humana justamente porque envolve a manipulação de material genético
de uma única célula quando a ordem natural é o encontro de duas células, o que garante
variabilidade e especificidade deste material genético. Outro grupo significativo de alunos
considera a clonagem e a reprodução humana respectivamente como processo artificial e natural.
Esta visão dos alunos sugere, de inicio, uma tentativa de integrar aqueles conceitos que possuem
e que estão mais próximos dos sistemas científicos a informações e formas de dizer, que são
veiculadas por diferentes meios de divulgação e não têm um caráter científico.
Em relação à síndrome de Down, a maioria dos alunos da turma reconhece a manifestação
dessa síndrome como uma alteração do número de cromossomos próprio da espécie humana
(aneuplodia). Entretanto, não explicam como esta alteração numérica se processa. Isto é
compreensível pois os processos de divisão celular – mitose e meiose – são tratados em uma
unidade posterior. Outros alunos falam da síndrome de Down como uma anomalia genética, o
que pode significar que se referem à alterações em apenas trechos do DNA da criança.
147
Sobre os organismos transgênicos, um número expressivo de alunos considera que se trata
daqueles que sofreram algum tipo de alteração em seu material genético. Neste caso, parecem
sugerir que qualquer mutação genética, inclusive aquelas decorrentes de radiação e substâncias
químicas, induzem à produção de organismos transgênicos. Organismos geneticamente
modificados são aqueles que recebem e incorporam genes (trechos de DNA que codificam uma
proteína e, portanto, uma característica) de outra espécie, podendo transmiti-lo a seus
descendentes, mas apenas 03 alunos se aproximam desta definição. Outros referem-se ao
processo de produção desses organismos como sendo artificial, o que é correto pois trata-se de
uma técnica desenvolvida pela engenharia genética, que permite selecionar e transferir genes de
interesse de uma espécie para outra.
Este mapeamento, que se situa em um plano de análise conceitual, sugere a necessidade
de intervenções e orientações seguras no curso do desenvolvimento das atividades a fim de
encaminhar ampliações e re-elaborações das concepções pelos alunos. É preciso reconhecer que
estas concepções se entrecruzam com aspectos de ordem ética, social e cultural que precisam ser
consideradas. Vivenciamos uma larga produção do conhecimento científico na área da
Engenharia Genética que encontra rápida, fácil e, às vezes, distorcida, divulgação pelos meios de
comunicação. Por isso mesmo, é papel da escola promover a construção de um conhecimento
mais seguro, que permita aos alunos o posicionamento e a tomada de decisões frente a essas
novas questões que vão surgindo. É neste sentido que consideramos a organização de nossa
proposta de trabalho dentro de uma perspectiva situada, justamente porque permite trazer estas
temáticas para a sala de aula enfrentando-as não apenas no seu domínio conceitual mas também
em suas implicações éticas e sociais.
6 SALA DE AULA DE BIOLOGIA: ESPAÇO DE INTERLOCUÇÃO E DINÂMICA
PEDAGÓGICA
Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos [...] (Paulo Freire, 1997, p.52).
Neste capítulo, oferecemos ao leitor uma visão panorâmica do contexto da sala de aula
investigada e procuramos definir objetivos, temáticas e a dinâmica geral das interações que ali se
estabelecem. Para esta contextualização, valemo-nos especificamente de categorias apresentadas
por Mortimer et al. (2007) e Mortimer e Scott (2002) como posição e ação dos sujeitos –
professora e alunos - na sala de aula, o conteúdo do discurso do professor, os padrões interativos
e a abordagem comunicativa. Optamos por apresentar cada uma das aulas que organizam esta
unidade de ensino.
Vale dizer que o uso dessas categorias para a etapa inicial do processo de análise nos
possibilita uma re-construção, ainda que parcial, da dinâmica da unidade de ensino, conferindo
sentido aos eventos que ali se estabelecem. Esta primeira aproximação aos dados nos permite
situar, posteriormente, as seqüências interativas selecionadas para análise, que são apresentadas
no capítulo 7. O quadro abaixo oferece ao leitor uma visão panorâmica que o ajuda a se situar na
discussão apresentando os conteúdos, o número de episódios bem como o número de seqüências
interativas identificadas no interior de cada episódio de ensino.
149
DATA AULA CONTEÚDO/ATIVIDADE EPISÓDIOS TOTAL DE SEQÜÊNCIAS INTERATIVAS
Episódio 1: Simulando uma situação experimental.
05
Episódio 2: Os componentes do núcleo –tecendo relações entre estrutura e função.
13
17/8/06 01 Reprodução no nível molecular: o núcleo sua estrutura e funções.
Episódio 3: A estrutura do DNA.
10
Episódio 1: Organização das atividades. 01
Episódio 2: Dolly: clone e clonagem. 09
24/8/06 02 Molécula de DNA: onde a vida começa.
Episódio 3: Extraindo DNA. 19 Episódio 1: Leitura dos relatórios. 01
Episódio 2: Por que todas as células de um organismo contém todas as informações sobre esse organismo?
02
Episódio 3: O processo de autoduplicação é semi-conservativo.
03
Episódio 4: Diversidade de questões. 05
31/8/06 03 Resgatando a estrutura de DNA e seu processo de autoduplicação.
Episódio 5: Relacionando a auto-duplicação do DNA e o processo de clonagem.
02
Episódio 1: Revendo conceitos. 01
Episódio 2: Sobre a construção de idiogramas: cariótipo e cromossomos homólogos.
05
Episódio 3: Construindo idiogramas e diagnosticando síndromes.
10
14/9/06 04 Trabalhando com o cariótipo humano: o aconselhamento genético
Episódio 4: Socializando os diagnósticos: anomalias cromossomiais.
06
Episódio 1: Revisão de conceitos. 01
Episódio 2: Como o gene se expressa? 06
21/09/06 05 Ácidos Nucléicos e o código da vida: a síntese de proteínas
Episódio 3: Simulando a síntese de proteínas – construção de modelo.
07
05/10/06 05 Clonagem, células-tronco e organismos transgênicos: aprofundando a discussão.
No processo analítico não foram mapeados episódios para esta aula
_
Quadro 3: Sumário das atividades – uma primeira aproximação aos dados.
150
Nesta primeira aproximação ao contexto investigado, podemos dizer que vários elementos
entram em jogo na organização da dinâmica pedagógica observada nesta sala de aula: as
determinações curriculares; a concepção da professora do que seja ciência e, conseqüentemente,
de ensinar e aprender ciência; as estratégias, recursos e tempo disponíveis disponibilizados; o
perfil da turma; o tema que está sendo tratado, bem como o fato de ser um espaço-tempo de aulas
de Biologia. Todos esses aspectos são, portanto, condições de produção do discurso.
Especificamente, os condicionantes pedagógicos orientam mas não determinam o “que vai ser
dito” e, principalmente, “como vai ser dito” pois é no contexto das interações e a partir da cadeia
contínua de enunciados que, como nos diz Bakhtin (1992), de certa forma se delimita e ou
possibilita o fluxo/construção de determinados significados e conceitos.
6.1 A primeira aula: o núcleo celular sua estrutura e funções
A primeira aula desta unidade de ensino é organizada em dois momentos distintos: um
primeiro relativo ao levantamento das concepções prévias, que durou aproximadamente
cinqüenta minutos; e um segundo momento, quando se iniciou a aula propriamente dita.
Este segundo momento teve como objetivo introduzir conceitos acerca do núcleo celular e
suas funções. Para encaminhar seu objetivo, a professora procurou, inicialmente, mapear as
principais funções da célula para depois relacioná-las com os componentes que constituem a
estrutura nuclear. Por isso, a professora38 resgata uma situação experimental apresentada no
questionário das concepções prévias e que, a seu ver, encaminha uma forma biológica de pensar e
falar dos fenômenos à medida que os alunos precisam prever e explicar resultados.
Ainda que os conceitos a serem abordados estejam bem definidos, é no curso das
interações, quando se alternam movimentos de negociação e fixação, que significados vão sendo
construídos, relações vão sendo estabelecidas, dúvidas vão sendo incorporadas, novas
problematizações vão sendo formuladas. Essas são evidências que sugerem processos de
aprendizagem, de incorporação e elaboração de novos significados.
38 O leitor vai perceber que ao longo dos capítulos de análise nos referimos sempre à “professora” ainda que tenhamos ocupado simultâneamente este lugar de professora e também de pesquisadora. Decidimos preservar esta referência, pois acreditamos ter sido este um efeito do distanciamento realizado no processo de análise dos dados.
151
Esta parte da aula é organizada em três episódios definidos a partir de algumas marcas
textuais e contextuais relacionadas à orientação entre os participantes, a mudanças de temáticas e
de entonação que, por vezes, coincidem com as diferentes etapas da atividade planejada. Estes
episódios geram vinte e oito seqüências interativas. Nessas seqüências, a posição da professora se
alterna entre frontal e de deslocamento. Particularmente na posição frontal, a professora se dirige
a todo o grupo e freqüentemente realiza registros no quadro de giz. Desta forma, constrói com os
alunos uma memória coletiva e, ao mesmo tempo, seleciona e controla significados que se
desejam compartilhados ao mesmo tempo em que outros parecem ser silenciados no curso das
interações (MACHADO, 1999). Talvez conscientes dessa prática escolar conduzida pela
professora, os alunos fazem registros e copiam em seus cadernos o que é disponibilizado no
quadro. Quando em posição de deslocamento, a professora procura se aproximar de alunos que se
situam espacialmente mais distantes na organização da sala de aula, procurando incorporá-los à
dinâmica da aula.
Em relação ao conteúdo do discurso da professora, observamos que na maior parte das
seqüências delimitadas há predomínio de um discurso de natureza conceitual. Assim ocupa-se,
principalmente, em introduzir novos conceitos e também resgatar outros previamente construídos
com os alunos. Há, no entanto, momentos em que o discurso da professora está relacionado à
gestão da sala de aula. Como se trata de uma turma participativa, muitos alunos falam ao mesmo
tempo, por isso mesmo há que se solicitar certa organização para realização do trabalho. Neste
caso, não se trata de silenciar os alunos mas sim de criar uma atmosfera onde todos possam se
expressar como membros de uma comunidade e, assim, posicionando-se como colaboradores da
construção de um projeto coletivo onde cada um é responsável por si próprio mas também pelo
outro (ENGLE; CONANT, 2002).
Ainda que a turma seja participativa, há aqueles alunos que se destacam em suas falas.
Perguntam, estabelecem articulações, apresentam contra exemplos, elaboram explicações,
movimentos que fazem revelar em um plano interpessoal tentativas explícitas de um processo de
significação. Esses alunos, como interlocutores privilegiados, têm uma participação decisiva nas
interações que vão sendo tecidas e contribuem para a construção de um texto coletivo. Nesta aula,
sete alunos se manifestam e suas falas representam enunciados completos e elaborados. Engle e
Conant (2002) consideram que este nível de participação está diretamente relacionado à temática
e também a dinâmica da atividade proposta para a turma.
152
A alternância entre as falas dos alunos e a fala do professor pode ser caracterizada em
termos de padrões de interação. Esses padrões revelam, de certa forma, as intenções do professor
de avaliar o que é dito pelo(s) aluno(s) e, portanto, fixar significados ou ainda em alimentar um
fluxo de discussão da qual possa emergir a construção de novos significados. Neste sentido a
caracterização desses padrões interativos possibilitam uma caracterização do gênero de discurso,
em termos bakhtinianos, da sala de aula de ciências (MORTIMER et al., 2007)
Sobre esses padrões de interação, consideramos que, por se tratar de uma aula expositiva,
cuja finalidade principal é a de fixar alguns conceitos, há uma predominância dos tipos triádicos
(I – R – A) quando a uma iniciação da professora, segue-se uma resposta do aluno e enfim a
avaliação da professora. Observamos também cadeias longas e fechadas (I – A – P – A- A – P).
Neste tipo de interação, a professora inicia uma seqüência que é seguida por uma alternância de
turnos entre professora e alunos quando se procura ampliar, aprofundar, redefinir significados.
Neste momento, a professora geralmente dá suporte aos alunos para que possam explicar melhor
suas idéias, resgatar conceitos anteriormente construídos e relacioná-los com aqueles que estão
em jogo no contexto atual, caracterizando, via de regra, um discurso que busca gerar novos
significados. Há maior interanimação de vozes caracterizando o discurso internamente persuasivo
em termos bakhtinianos onde:
[...] sua criatividade e produtividade consistem precisamente em que tais
palavras despertam palavras novas e independentes, organizam o conjunto de nossas palavras interiores, e não permanecem em condição estática e isolada [...] A estrutura semântica de um discurso internamente persuasivo não é finita, é aberta; em cada um dos contextos que dialogiza, este discurso pode revelar novas formas de significar. (BAKHTIN, 198139 apud WERTSCH, 1993, p. 99).
No entanto, como estamos em uma sala de aula de Biologia e há significados que se
precisa privilegiar, observamos que ao final dessas cadeias interativas, existe uma preocupação
da professora em retomar as falas dos alunos, reorganizando-as e devolvendo-as com o objetivo
de fixar significados.
Entretanto, em alguns poucos momentos, percebemos que estas cadeias não são
encerradas com a síntese da professora; ao contrário, permanecem em suspenso como se não
fosse possível chegar a uma conclusão definitiva. Essas cadeias geralmente se organizam quando
39 BAKHTIN, M.M. (1981). The dialogical imagination (M. Holquist, Ed.). Austin: University of Texas Press.
153
uma questão que ainda não está totalmente elucidada pela ciência é abordada, como é o caso do
DNA-lixo e da comparação dos genomas humanos com os de outros animais menos complexos,
como encontramos nas seqüências 7 e 8 do episódio 4. Ou ainda, quando os alunos se posicionam
frente a algumas questões de natureza ética. Quando as cadeias se caracterizam como abertas,
percebemos um maior engajamento dos alunos, evidenciado pelo número de participantes e pela
complexidade dos enunciados que são elaborados.
A iniciação usada na construção e definição desses padrões interativos também pode ser
categorizada segundo as finalidades que assumem no curso da interação. Assim, Mortimer et al.
(2007) identificam pelo menos quatro tipos de iniciação: a) de escolha que demanda um
posicionamento entre duas alternativas possíveis; b) de produto que solicita uma resposta factual;
c) de processo que requer alguma forma de explicação ou interpretação para uma determinada
situação e d) de metaprocesso que mobiliza processos reflexivos sobre as relações que se
estabelecem.
Em relação ao tipo de iniciação, observamos que há uma predominância de iniciação de
produto e de processo. De forma recorrente, tanto professor quanto alunos utilizam a iniciação de
produto quando há uma intenção de resgatar conceitos. Por exemplo, na seqüência 4 do episódio
2, a professora pergunta: “O que falta ao núcleo para que ele seja um núcleo?”, desejando ter
como resposta dos alunos apenas o nome de uma estrutura, que se refere aos “ácidos nucléicos”.
Já a iniciação de processo envolve articulação de conceitos, problematizações e explicações de
fatos e fenômenos. Isto ocorre na seqüência 3 do episódio 1 quando os alunos são questionados
pela professora sobre a importância do DNA: “Por que o DNA é tão importante?”. Nestes casos,
percebemos que a interação está voltada para processos de negociação de significados e elicitação
de idéias dos alunos. Apenas uma vez, em toda a aula, observamos uma única iniciação que pode
ser qualificada como de metaprocesso e ocorre quando os sujeitos realizam uma reflexão acerca
da linguagem científica, mais precisamente biológica, que tem se popularizado a partir da sua
apropriação e recontextualização na área da informática.
Neste contexto, assistimos aos alunos buscarem seus espaços de participação levantando
insistentemente as mãos para pedir a palavra. Não são meros espectadores. Por isso mesmo,
verificamos que algumas seqüências se organizam a partir dos alunos, quando formulam
enunciados que geralmente se iniciam com a seguinte expressão: “Mas professora, por que
154
então...?”. Aparentemente procuram, de certa forma, “subverter” uma ordem pressuposta e
encaminhar a aula para questões que lhes pareçam mais interessantes. Nestes casos parecem
querer se filiar a uma construção na qual atuem como co-autores, o que a nosso ver revela
movimentos que procuram produzir novos significados à medida que evidenciam relações entre
conceitos, ou entre conceitos e uma situação vivida e percebida em seu cotidiano. Talvez como
Morato (1996, p. 100), possamos assumir que:
[...] é da fala para o outro que emerge a fala para si, é da
organização/regulação interpessoal que emerge a organização intrapessoal. A mediação é, portanto, condição e interpretação da vida mental dos indivíduos, desde que, para Vygotsky, a linguagem natural é polissêmica, sendo o contexto e as relações intersubjetivas condições absolutamente indispensáveis para que os processos cognitivos sejam relacionados aos fatos da linguagem.
Analisando seqüências discursivas, Mortimer et al. (2007) consideram que estas possam
ser produzidas com a participação de vários sujeitos sendo, portanto, interativas ou ainda com a
participação de uma única pessoa, sendo então não-interativas. Dessas vinte e oito seqüências,
dezenove são totalmente interativas, três não interativas e seis podem ser qualificadas como de
natureza híbrida pois alternam momentos que envolvem a participação de várias pessoas com
momentos em que apenas uma pessoa participa. Percebemos que, nesta última, há uma
predominância da fala da professora, quando procura situar elementos conceituais para, em
seguida, promover uma abertura que solicita a participação dos alunos quando pretende
gerar/negociar significados; ou ainda, quando realiza sínteses mais longas ao final de uma
seqüência com o intuito de fixar novos significados que foram sendo produzidos ao longo da
seqüência. Um exemplo para ilustrar este aspecto é encontrado na seqüência 2 do terceiro
episódio quando a professora, e somente ela, apresenta inicialmente as definições de
“heterocromatina” e “eucromatina”40. Como percebe que para os alunos não está clara a
distinção, tanto estrutural como funcional, destes elementos, solicita aos alunos que consultem o
40 A heterocromatina corresponde a regiões em que a cromatina se apresenta mais densa e a eucromatina a regiões em que a cromatina se apresenta menos densa. Esta organização promove o menor ou maior contato dos genes que se localizam nestas regiões com o material necessário à síntese de proteínas. Assim se supõe que os genes localizados na heterocromatina não sejam ativados enquanto os localizados na eucromatina possam se manifestar. As regiões de heterocromatina e eucromatina não coincidem em todas as células, o que parece explicar a existência de células com características e funções diversas que constituem os diferentes tecidos e órgãos.
155
livro e que proponham possíveis explicações para esta diferença na forma de organização da
cromatina.
Esta noção de seqüência interativa e não-interativa é integrada por Mortimer et al. (2007)
e Mortimer e Scott (2002) à noção de abordagem comunicativa, por sua vez, relacionada aos
discursos de autoridade e internamente persuasivo, ou dialógico, propostos por Bakhtin. Os
discursos de autoridade, como já dito no capítulo 2, referem-se àqueles que se valem de uma
única perspectiva ou ponto de vista, em nosso caso o científico enquanto o dialógico acolhe e faz
transitar um fluxo de diferentes significados revelando a natureza polissêmica da palavra. A
alternância entre essas duas formas de discurso – de autoridade e dialógico - parece organizar um
contexto onde os significados já construídos pelos alunos se põem em contato com aqueles que se
pretende ensinar ou construir.
Na dinâmica desta aula, em que se alternam momentos de maior e menor nível de
participação dos sujeitos, a abordagem comunicativa parece situar-se em um contínuo entre
discurso de autoridade e dialógico, como sinalizado por Mortimer e Scott (2002). No entanto,
considerando os objetivos da aula, bem como seus conteúdos temáticos e a posição que os
sujeitos vão assumindo no curso da interlocução, a abordagem parece assumir uma tendência
predominantemente de autoridade. Esta é uma sala de aula de Biologia e fala-se, ou pelo menos
procura-se falar, a partir de uma perspectiva única que é a científica pois, como sinalizado por
Bakhtin (1992), as condições de produção do discurso determinam a estrutura da enunciação. De
qualquer forma, notamos que os sujeitos, particularmente os alunos, transitam entre a perspectiva
científica e suas próprias perspectivas, confrontando-as, problematizando-as, retomando-as e re-
significando-as. Estes são movimentos que ganham visibilidade a partir das diferentes vozes que
se expressam nesta sala de aula, caracterizando-a como uma comunidade cujos membros tendem
a assumir objetivos compartilhados, garantindo um percurso que parece favorecer a construção de
processos de significação e, portanto, de aprendizagem em um domínio específico que é a
Biologia.
6.2 A segunda aula: a molécula de DNA - onde a vida começa?
156
Duas atividades em grupo foram planejadas para está aula: a discussão de um texto sobre
clones e clonagem e a realização de atividade prática para extração do DNA. Cada atividade dura
em média cinqüenta minutos e se realiza em espaços distintos: a discussão do texto na sala de
aula e a atividade prática no laboratório.
O objetivo da primeira atividade é situar a temática desta unidade de ensino em discussões
mais amplas e recorrentes no contexto atual sobre clones e técnicas de clonagem. O texto aborda
elementos conceituais significativos tais como: definição e exemplos de clones, processo de
diferenciação celular na ontogênese, técnica de clonagem e resgate histórico das técnicas de
clonagem, e é acompanhado de três questões que orientam a leitura e a discussão. Na
atividade de laboratório41, os alunos deveriam extrair o DNA de células da cebola ou do morango
a fim de tornarem visíveis os filamentos de DNA. Desta forma, a atividade se propunha integrar
as dimensões conceitual e processual inerentes à ciência, mas também ao ensinar e aprender
ciência.
No mapeamento da discussão do texto, consideramos apenas as interações que se
organizam no interior do grupo que está sendo filmado. Já na atividade laboratorial,
acompanhamos vários grupos na realização das etapas do processo de extração do DNA. Por isso
mesmo, os episódios e as seqüências são definidos não apenas por marcas textuais e contextuais
mas também pelos movimentos da câmera e dos registros que vão conseguindo fazer. Vale
destacar que, como são atividades em grupo, muitas seqüências interativas acontecem
simultaneamente sendo, portanto, este mapeamento apenas uma fração de toda a dinâmica que
acontece na sala de aula.
Desta forma, a aula é formada por três grandes episódios que coincidem com os limites
dos três principais momentos que se realizam: um primeiro, quando a professora encaminha a
proposta de trabalho do dia, a organização dos grupos, a distribuição do material de apoio; um
segundo, na atividade de leitura do texto e um terceiro, na atividade de laboratório.
Nesta forma de organização do trabalho escolar, verificamos que a posição assumida pela
professora é de bancada, quando atende e orienta as atividades junto a cada grupo de alunos. Por
certo, esta orientação/intervenção é modulada segundo as necessidades específicas evidenciadas
por cada grupo em seu processo de construção. Da mesma forma, o discurso da professora é
41 A atividade de laboratório é mais bem discutida no capítulo 8.
157
predominantemente procedimental, orientando os alunos na atividade, particularmente do
laboratório. Também encontramos discurso de conteúdos e de gestão. Este último está mais
presente nesta aula do que na anterior, justamente porque o trabalho de grupo gera discussões
simultâneas que exigem maior controle para que haja produção dos alunos.
No segundo episódio, que se constrói a partir da discussão encaminhada pelo grupo acerca
da leitura do texto “Dolly, o núcleo e os clones”, são identificadas nove seqüências interativas.
Três dessas seqüências ocorrem com a presença da professora, sendo duas delas (seqüências 6 e
8) de natureza procedimental, especificamente sobre o trabalho que cada grupo deve apresentar
ao final da unidade de ensino. Em seis delas, os alunos trabalham sem a presença da professora e
estabelecem um padrão que é chamado por Mortimer et al. (2007) de trocas verbais, justamente
porque não têm marcas bem definidas de iniciação e resposta. Neste movimento dialógico,
particularmente nas seqüências 1, 2, 3, os alunos manifestam dúvidas, desalinham-se
conceitualmente mas não afetivamente (LEANDER; BROWN, 1999), posto que essas dúvidas
são compartilhadas pelos integrantes do grupo. Tentam enfrentar seus conflitos mobilizando
conceitos já existentes. O discurso assume uma abordagem dialógica pois os alunos falam a partir
de suas concepções, de seus pontos de vista e estes, necessariamente, não coincidem com aquele
que está sendo exposto no texto e que se aproxima da perspectiva científica.
Nas seqüências 5, 7 e 9, verificamos que os alunos, após terem solicitado a intervenção da
professora, elaboram as respostas às questões propostas evidenciando apropriação das idéias e
conceitos que circularam na discussão pelo menos em um nível interpessoal. A seqüência 4 é a
que efetivamente registra uma interação dos alunos com a professora com conteúdo de discurso
conceitual. As cadeias que se estabelecem são longas, com iniciações de processo e produto e se
encerram com sínteses realizadas pela professora. As iniciações formuladas pelos alunos estão
relacionadas às dúvidas que os acompanham ou a movimentos discursivos que procuram
confirmar suas idéias e construções acerca do tema. A abordagem comunicativa tende para um
discurso de autoridade quando a professora e alunos procuram fixar e confirmar significados.
Na atividade de laboratório, definimos 19 seqüências, caracterizadas por padrões de
interação qualificados como de trocas verbais e por cadeias fechadas. As iniciações, com poucas
exceções, são feitas pelos alunos e se referem aos processos relacionados às observações que são
encaminhadas e procedimentos a serem realizados para a construção do trabalho de extração do
158
DNA. Consideramos que as trocas verbais predominam neste contexto e são acompanhadas por
gestos e olhares que se fixam nos materiais produzidos, monitoramento do tempo e manipulação
de objetos. Revelam, portanto, práticas implícitas à investigação científica. Quando as interações
discursivas tomam curso, a abordagem é geralmente dialógica, os alunos falam, observam,
contextualizam a partir de suas concepções, integrando conceitos de diferentes áreas de
conhecimento, particularmente os advindos da Química. Dessa forma, há indícios de uma
tentativa de aproximação entre o mundo das idéias e o mundo dos materiais observáveis. Assim,
podemos considerar que:
O conteúdo científico é apenas uma faceta do entendimento científico. Algum entendimento metodológico também está envolvido, incluindo aspectos como o reconhecimento de estratégias pelas quais investigações são empreendidas dentro de disciplinas científicas específicas e o conhecimento de rotinas procedimentais usadas para realizar a investigação. (LEACH, 1999, p. 135, tradução da autora).
6.3 A terceira aula: resgatando a estrutura do DNA e seu processo de autoduplicação.
Para esta terceira aula, estavam previstos dois momentos: um primeiro, coletivo, para se
discutir o processo de autoduplicação do DNA e um segundo, quando os alunos em grupo
deveriam mobilizar os conceitos relativos a este processo para explicar resultados experimentais
e situações com as quais se deparam em seu cotidiano, como os efeitos da radiação em mulheres
no início da gestação quando submetidas a radiografias de abdômen. Entretanto, como a primeira
parte da aula contou com uma participação decisiva dos alunos na definição de questões
pertinentes ao aprofundamento do tema principal, consideramos oportuno não realizar a segunda
atividade. Entretanto, tais questões previstas no roteiro de atividades não deixaram de ser
contempladas nesta discussão mais ampla que foi realizada.
Esta terceira aula organiza-se em cinco episódios definidos a partir das temáticas e marcas
textuais e contextuais de acabamento que vão se configurando no contexto da interlocução. A
partir desses episódios, identificamos treze seqüências interativas nas quais a posição adotada
pela professora é exclusivamente frontal, o que parece favorecer tanto a interação com os alunos
quanto o uso do quadro de giz para registro de aspectos que considera relevantes ou esquemas
159
necessários para o encaminhamento do trabalho. Coerente com a proposta e organização da aula,
o discurso da professora é predominantemente conceitual com poucas intervenções disciplinares.
O primeiro episódio, constituído de uma única seqüência, refere-se à leitura dos relatórios
produzidos pelos alunos ao final da atividade de laboratório, realizada na semana anterior. A
partir da apresentação dos relatórios, a professora tece comentários gerais sobre a estrutura dos
textos e os aspectos ressaltados por cada grupo tais como aqueles relativos às observações.
O segundo episódio inclui duas seqüências interativas: a primeira, de natureza
predominantemente dialógica e interativa, inicia-se a partir de uma questão formulada e
registrada no quadro pela professora: “Por que todas as células de um organismo contêm todas
as informações sobre esse organismo?”. Aliás, esta parece ser uma rotina comum nestas aulas,
que geralmente são iniciadas a partir da formulação de alguma questão que revela sempre um
problema ou situação a ser enfrentado pelos alunos. A importância da organização das aulas a
partir de problematizações é ressaltada por autores como Engle e Conant (2002), que consideram
este um caminho para oportunizar o engajamento disciplinar produtivo dos alunos. De forma
semelhante Meirieu (1998, p. 63) ressalta que:
A situação-problema, simplesmente, põe o sujeito em ação, coloca-o em uma interação ativa entre a realidade e seus projetos, interação que desestabiliza e reestabiliza, graças às variações introduzidas pelo educador, suas representações sucessivas; e é nessa interação que se constrói, muitas vezes, irracionalmente, a racionalidade.
Diante das questões, os alunos se posicionam, estabelecem relações com o
desenvolvimento embrionário, sinalizam um suposto processo de duplicação do DNA. Os alunos
expressam seus pontos de vista e suas concepções as quais não estão muito distantes daquelas que
a professora quer ensinar. Realizado este levantamento de idéias, a professora inicia uma nova
seqüência construindo no quadro de giz um modelo esquemático da molécula de DNA no qual
está representado apenas o pareamento das bases nitrogenadas. Este é um modelo com o qual os
alunos já estão familiarizados uma vez que a estrutura do DNA é trabalhada ainda no primeiro
bimestre do ano letivo. A partir do esquema, a professora simula o processo de autoduplicação do
160
DNA. À medida que a professora fala, novas moléculas de DNA vão sendo “criadas” no quadro
de giz, caracterizando uma seqüência de autoridade e com um nível reduzido de interatividade.
O episódio três gera três seqüências interativas que revelam um fluxo contínuo entre o
discurso de autoridade e o dialógico. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que os alunos se
situam a partir de seus olhares, a professora busca a univocidade que é própria da perspectiva
científica. Na seqüência 1, por exemplo, a professora incentiva os alunos a tecerem considerações
sobre as moléculas de DNA-filhas. Os alunos reconhecem que as novas moléculas são
exatamente iguais à molécula mãe, o que responde a pergunta inicialmente proposta. Mas não é
só isto, a professora quer evidenciar o processo semiconservativo de duplicação do DNA, ou seja,
que as moléculas filhas sempre apresentam um filamento novo e um filamento do DNA que lhes
deu origem. Utilizando o esquema, a professora vai plantando pistas enquanto os alunos, por sua
vez, tentam decifrar o “enigma” pois uma forma de construir um caminho didático que promova
o engajamento dos alunos “é criar o enigma ou, mais exatamente, fazer do saber um enigma:
comentá-lo ou mostrá-lo suficientemente para que se entreveja seu interesse e sua riqueza, mas
calar-se a tempo para suscitar a vontade de desvendá-lo” (MEIRIEU, 1998, p. 92).
Diante do “enigma”, os alunos elaboram suas falas a partir da fala do outro, gerando uma
cadeia longa, mas fechada, pois, ao final, a professora sistematiza a discussão. Neste percurso
interativo, um aluno parece aproximar-se do significado que a professora pretende construir.
Percebe ele, talvez pela variação de cores do giz, que a nova molécula de DNA mantém o mesmo
filamento da molécula mãe. A segunda seqüência é bem curta, sem interação e de autoridade
quando a professora resgata um pouco da história da ciência e dos experimentos realizados para
se chegar à conclusão de que a autoduplicação do DNA é um processo semiconservativo. Já a
seqüência três é predominantemente interativa mas também de autoridade. A professora, valendo-
se ainda do esquema que está no quadro, altera alguns pareamentos para introduzir os conceitos
de mutações gênicas e de mecanismos de reparo do DNA. No curso das interações, são abordadas
questões como o efeito das radiações, câncer de pele e anemia falciforme42. Neste caso são
produzidas cadeias fechadas com iniciações de processo geralmente realizadas pelos alunos.
O episódio quatro é organizado em cinco seqüências interativas situadas em uma
abordagem dialógica e interativa. Nestas seqüências, observa-se um trânsito de diferentes 42 A anemia falciforme é uma doença hereditária decorrente de uma mutação gênica e que causa a alteração das hemácias.
161
questões que vão sendo introduzidas pelos alunos no curso de sua participação e pertinentes ao
contexto tais como: organismos transgênicos, terapia gênica, Projeto Genoma e Proteoma,
seleção natural e seleção artificial, aspectos éticos decorrentes do uso das novas biotecnologias.
Os alunos se manifestam e, em alguns casos, simulam eventos que indicam a apropriação do
conceito que está em jogo. Este é o caso, por exemplo, de Nathan que, tentando construir o
significado de organismos transgênicos, supõe uma espécie de planta com flores brancas na qual
são introduzidos genes para produção de flores azuis. Há, dessa vez, um maior número de
participantes, cerca de dez interlocutores privilegiados e muitas mãos levantadas indicando que
os tópicos em discussão exercem uma certa sedução e fascínio nos alunos. Por isso mesmo, o
discurso de gestão é utilizado com certa freqüência pela professora.
Nesta seqüência, de um modo geral, configuram-se longas cadeias iniciadas, em sua
maioria, pelos alunos. Entretanto, há uma preocupação da professora em orientar e sistematizar as
diferentes perspectivas que circulam na sala de aula. Observamos, também, algumas cadeias
abertas, particularmente quando questões éticas são enfrentadas, como é o caso da polêmica que
envolve a igreja e a ciência em torno da pesquisa sobre manipulação gênica.
Após este longo debate, a professora decide reorientar a aula para seu eixo principal e
inicial: o processo de duplicação do DNA. Com esta mudança, a professora marca o quinto e
último episódio desta aula que gera duas seqüências híbridas onde se alternam momentos
interativos com alunos e momentos não interativos. Em ambas, o discurso é de autoridade pois os
significados são controlados e fixados. Na seqüência 1, a professora traz à cena a clonagem, uma
questão já abordada pelos alunos na primeira atividade da aula anterior. A professora
esquematiza no quadro de giz o processo de clonagem e propõe analisar as técnicas utilizadas e
os clones produzidos por essas técnicas a partir do DNA mitocondrial43, que pode conter genes
responsáveis por algumas doenças. Já a seqüência dois inicia-se com a intervenção de uma aluna
que, resgatando o filme O Óleo de Lorenzo, introduz uma discussão relativa às anomalias
relacionadas aos cromossomos sexuais e que se encontram no núcleo da célula. Neste ponto, a
professora realiza uma longa explicação sobre herança genética a fim de evidenciar diferenças
entre o DNA mitocondrial e o DNA nuclear44.
43 As mitocôndrias são organelas responsáveis pelo processo de respiração aeróbica do qual se obtém a energia necessária ao metabolismo celular 44 O DNA mitocondrial que recebemos é sempre materno.
162
Nesta aula, portanto, percebemos o quanto a mudança realizada nas estratégias da
professora e a diversidade de temáticas modulam, de certa forma, o nível de engajamento dos
alunos na dinâmica da aula. Este engajamento torna-se visível a partir dos enunciados mais
completos, das articulações entre diferentes conceitos e entre estes e situações concretas que os
alunos elaboram no curso da interlocução. Consideramos que estes sejam elementos, ou mais
exatamente, práticas mobilizadas pelos alunos que sinalizam um processo de significação.
6.4 A quarta aula: trabalhando com o cariótipo humano – o aconselhamento genético
A quarta aula desta unidade de ensino tem como objetivo a construção de idiogramas a
fim de se reconhecer indivíduos portadores de anomalias cromossomiais numéricas. Com esta
atividade, são trabalhados os conceitos de cariótipos, classificação dos cromossomos segundo a
localização dos centrômeros, cromossomos homólogos e ainda a caracterização dos indivíduos
portadores dessas anomalias.
Na análise desta aula, identificamos quatro episódios de ensino que produzem 22
seqüências interativas. No primeiro episódio, constituído de uma única seqüência, a professora
sintetiza os conceitos trabalhados nas aulas anteriores. Desta forma, fixa alguns significados e
procura evidenciar para os alunos uma lógica conceitual que organiza a unidade de ensino. O
segundo episódio produz cinco seqüências interativas; em duas delas (seqüências 1 e 2), o
discurso é de conteúdo e a abordagem é dialógica e interativa. Já nas outras três, o discurso é de
ordem procedimental, quando a professora define a atividade e distribui o material para sua
realização, formula algumas orientações gerais e organiza os grupos.
O episódio três registra dez seqüências interativas marcadas pelas etapas que organizam o
trabalho dos alunos no grupo. Em seis delas (2, 3, 4, 6, 7, 9), os alunos trabalham sem a presença
da professora e nestes casos o diálogo que resulta das interações dos alunos segue um padrão que
não se encaixa naqueles de iniciação e resposta. Nas outras quatro (1, 5, 8 e 10), há interação com
a professora cujo discurso articula uma dimensão procedimental e conceitual formando-se longas
cadeias fechadas que se abrem a uma perspectiva mais dialógica. Observamos que os alunos
desenvolvem a atividade da seguinte maneira: primeiro, familiarizam-se com o material
(seqüência 2), depois, distribuem tarefas (seqüência 3) e, finalmente, iniciam o trabalho de
163
identificação dos pares de cromossomos. No processo de identificação dos cromossomos
(seqüências 4 e 6), as falas dos alunos são acompanhadas por muitos gestos pois manuseiam o
material, lêem as instruções e comparam os cromossomos com os do cariótipo usado como
referência. À medida que avançam na atividade, os alunos evidenciam uma forma particular de
ver e falar sobre os conceitos necessários ao reconhecimento e pareamento dos cromossomos. Na
forma de ver e entender dos alunos, os centrômeros45 correspondem ao “x do cromossomo” e
quando o “x está no meio, o cromossomo é metacêntrico”. Tais mecanismos utilizados pelos
alunos revelam-se úteis no seu processo de significação pois evidenciam uma certa clareza sobre
o que é o centrômero no cromossomo e ainda sobre a classificação dos cromossomos baseada na
posição dos centrômeros. Na seqüência 7, os alunos percebem que há uma alteração numérica,
que um cromossomo está “sobrando”. A princípio, pensam ter cometido algum erro, perdido o
par deste cromossomo. Logo depois, começam a considerar que este cromossomo a mais pode ser
o que determina o problema. Entretanto, trata-se do cromossomo X e com isso descartam a
possibilidade de ser a Síndrome de Down. Consultando os livros disponíveis e também a
professora, os alunos, na seqüência 8, identificam a Síndrome de Klinefelter (44 A + XXY). A
seqüência 9 revela uma tensão entre os alunos quanto ao diagnóstico que devem elaborar. Alguns
falam do lugar do especialista, outros do cidadão comum e ainda há aqueles que se posicionam
como alunos que devem cumprir uma tarefa segundo as expectativas da professora. Estas
diferentes posições ocupadas pelos alunos no curso da interação revelam a polissemia que está
posta em relação aos significados e mais ainda que é tendo como referência um determinado
contexto que alguns significados serão privilegiados em detrimento de outros. A intervenção da
professora na seqüência 10 parece ajudar a resolver o dilema do grupo que decide incluir o
cariótipo e o nome anomalia.
O quarto episódio é organizado em seis seqüências interativas, onde predominam cadeias
longas e fechadas com iniciações de produto feitas geralmente pelo professor. O discurso é
aparentemente dialógico pois os alunos apresentam seus diagnósticos, suas impressões acerca das
síndromes, ensaiam uma discussão relativa à inclusão desses indivíduos tanto do ponto de vista
social quanto biológico. Dizemos aparentemente porque a professora realiza intervenções para
45 Os centrômeros correspondem a um estrangulamento no cromossomo que fica dividido em dois braços. Dependendo da posição dos centrômeros, os cromossomos são classificados em metacêntricos, submetacêntrico, acrocêntricos e telocêntricos. Como os cromossomos estão duplicados e presos ao centrômero a imagem que se tem é efetivamente de um x.
164
selecionar, privilegiar e marcar alguns significados. Para isto, parafraseia a fala de alguns alunos,
registra no quadro-de-giz e encaminha a leitura do livro didático, fazendo valer um discurso de
autoridade. Desta forma, constroem um quadro que incluem as diferentes síndromes
diagnosticadas, bem como os cariótipos e as características correspondentes a cada uma delas.
6.5 A quinta aula: ácidos nucléicos e o código da vida - a síntese de proteínas
A quinta aula tem como tema o processo de síntese de proteínas e está organizada em três
episódios de ensino delimitados a partir das seguintes ações: sistematização de conceitos,
explicação do processo de síntese de proteínas e organização de uma atividade em grupo para a
construção de um modelo que simula os eventos principais desse processo.
No primeiro episódio, com uma única seqüência interativa, a professora resgata
juntamente com os alunos os conceitos trabalhados anteriormente. A nosso ver, com este
movimento, a professora quer situar estes conceitos em uma rede que permite aprofundamento e
articulação pelos alunos. Tenta, dessa forma, escapar da fragmentação conceitual que caracteriza
o ensino de Ciências e Biologia.
O segundo episódio produz seis seqüências discursivas e acompanhamos um trânsito entre
uma abordagem dialógica e de autoridade. Na primeira seqüência, por exemplo, a professora, a
partir de uma iniciação de processo (Como é que o gene se expressa?), realiza um levantamento
das idéias e concepções dos alunos acerca do tema. Nas cadeias fechadas que se formam, a
professora problematiza as respostas dos alunos ou repete a pergunta inicial como estratégias
lingüísticas para que re-elaborações sejam encaminhadas.
Já nas seqüências 2, 3, 4, 5 e 6, o discurso é de autoridade pois a professora explica o
processo de síntese de proteínas. Para isto, simula trechos de moléculas de DNA no quadro,
incentiva os alunos a consultarem a tabela do código genético que está no livro e resgata noções
necessárias ao entendimento da síntese de proteínas. Os alunos, por sua vez, observam
atentamente, fazem registros em seus cadernos, consultam os livros, atendendo à solicitação da
professora. Assim, em um contexto que é de autoridade mas interativo, “sintetizam” uma proteína
no quadro. Os padrões interativos alternam cadeias longas fechadas e cadeias triádicas. Estas
165
últimas acontecem quando a professora deixa lacunas em seu enunciado e que são completadas
pelos alunos. No curso dessas seqüências, os alunos são responsáveis por iniciações de processo
que refletem as dúvidas que apresentam. João, por exemplo, na seqüência 4, pergunta:
“Professora, e onde estão os genes?” O enunciado do aluno revela que conceitos, que
efetivamente se espera compartilhados, ainda são lacunares. Vale lembrar que, em aulas
anteriores, já havia sido discutida a relação entre DNA, gene e cromossomo. A assunção desse
aspecto permite-nos considerar que a construção e articulação de significados não é um processo
tão linear e cumulativo como pensado a partir do empirismo mas envolve idas e vindas para que
conceitos sejam integrados a uma rede que possibilite uma visão holística da estrutura e
funcionamento dos seres vivos. Mas é também João quem vai dizer: “Sabe por que eu gosto de
Biologia? É saber que essas ‘paradinhas’ [a síntese de proteínas] estão acontecendo no meu
corpo agora”. Dessa forma, o aluno expressa uma relação entre as dimensões macroscópica e
molecular responsáveis pelo funcionamento do seu organismo. Na última seqüência desse
episódio, a professora simula alterações na seqüência de bases do DNA que está no quadro a fim
de fundamentar os mecanismos de mutações gênicas discutidos em aula anterior. Esses
movimentos da professora permitem, de um lado, que conceitos sejam revisitados, de outro, que
articulações conceituais e, consequentemente, aprofundamentos sejam construídos pelos alunos.
O terceiro episódio é constituído por uma única seqüência em que a professora orienta os
alunos sobre a atividade que será realizada. Seu discurso é exclusivamente procedimental e não
há interações.
O quarto episódio é organizado em sete seqüências interativas delimitadas pelas fases do
trabalho desenvolvido pelos alunos para a construção do modelo de síntese de proteínas. A
construção de modelos se constitui em uma modalidade didática onde se espera que os alunos
reproduzam, em um plano concreto, estruturas e processos que lhes permitam compreender
melhor um determinado fenômeno que neste caso se refere à síntese de proteínas.
Assim, na seqüência um, os alunos lêem as instruções e identificam as peças que serão
utilizadas no modelo – RNA mensageiro, RNA transportador e aminoácidos. Na seqüência 2 e 4,
com a presença da professora, são geradas cadeias fechadas cuja iniciação é sempre dos alunos.
Nota-se que, nestas seqüências, o conteúdo do discurso da professora circula entre conceitos e
procedimentos pois, como se trata da construção de um modelo que simula a síntese de proteínas,
166
há a necessidade de uma articulação entre estes dois domínios. Na seqüência três, os alunos
iniciam a construção do modelo. Camila assume o lugar de professora e controla o trabalho dos
colegas. A síntese de uma proteína envolve, de início, um mecanismo denominado de transcrição
genética e que corresponde à produção do RNA mensageiro a partir do DNA. Esta transcrição
exige o pareamento de bases nitrogenadas que se dá na seguinte relação: Adenina – Timina e
Citosina – Guanina. Como no RNA não encontramos a timina e sim a uracila, uma seqüência de
bases ATA no DNA formaria uma seqüência UAU no RNA. Uma vez produzido o RNA
mensageiro no núcleo da célula, este migra para o citoplasma ligando-se ao ribossomo quando
então é conduzido o mecanismo de tradução gênica, ou seja, aquele RNA mensageiro será
codificado para que sejam encaixados os aminoácidos adequados para formar a proteína. Neste
mecanismo, os aminoácidos são trazidos por RNA transportadores específicos. No nosso
exemplo, o RNA transportador AUA é que se “encaixa” no RNA mensageiro UAU trazendo
especificamente o aminoácido tirosina. 46No modelo dos alunos a etapa de transcrição gênica não
é realizada pois já recebem o RNA mensageiro pronto. O que devem fazer então? Primeiro, ligar
os RNA transportadores aos aminoácidos específicos que carregam. Para isto, devem consultar a
tabela com o código genético. Entretanto, a tabela está codificada para o DNA. Com isto, na
seqüência 3, os alunos cometem o primeiro equivoco: convertem os RNAs transportadores em
DNA. Se observarmos com atenção, a seqüência de bases do RNA transportador equivale à
seqüência de bases do DNA apenas com a substituição da timina por uracila, quando for o caso.
Convertendo respectivamente DNA em RNA mensageiro e finalmente em RNA transportador,
teremos as seguintes seqüências de bases: ATA – UAU – AUA ou CGC – GCG – CGC. Como o
modelo disponibiliza apenas os aminoácidos que serão utilizados, os alunos percebem que há
algo errado: “Não tem valina! E agora?”. A seqüência 4 tem inicio com a chegada da professora
que, percebendo a confusão feita pelos alunos, dirige-se ao quadro e, com uma entonação mais
assertiva, realiza as conversões de uma seqüência de bases. Neste momento, os alunos percebem
onde erraram e, já na seqüência 5, retomam a construção do modelo, agora relacionando
corretamente os RNAs transportadores aos seus respectivos aminoácidos. Entretanto, ainda nesta
seqüência, observamos um desalinhamento afetivo no grupo. Como, no modelo, os alunos devem
46 A síntese de proteínas é um processo bem mais complexo do que descrevemos aqui. Na verdade, a partir do DNA é transcrito um RNA chamado de pré-RNA e que corresponde a uma versão ainda não acabada do RNA mensageiro. Este pré- RNA sofre um processo de “edição”quando deles são retirados trechos que não têm significado. Somente então o RNA mensageiro migraria para o citoplasma.
167
manipular um número diverso e pequeno de peças é preciso paciência e organização. Tentam
então, cuidadosamente, distribuir tarefas de forma que cada aluno fique responsável por uma
etapa do processo de síntese de proteínas. Assim, há aqueles que consultam a tabela, outros
relacionam o RNA transportador ao aminoácido e ainda outros encaixam este RNA transportador
ao RNA mensageiro a fim de que a proteína seja sintetizada. Entretanto, estas etapas acabam
sobrepostas gerando confusão. Na seqüência 6, os alunos criam estratégias que facilitem o
manuseio das peças a fim de que a simulação possa ser “encenada” para a professora, o que
fazem, ainda que com dificuldades, na seqüência 7 deste episódio.
Alguns aspectos podem ser considerados nestas seqüências. O primeiro diz respeito a uma
dificuldade procedimental dos alunos que revela uma dificuldade que é conceitual. Para nós, a
visualização dessa dificuldade é relevante à medida que o processo de síntese de proteínas não é
um conteúdo fácil de ser ensinado e conseqüentemente de ser aprendido pelo aluno, uma vez que
envolve uma sucessão de eventos conceituais. A síntese de proteínas é um processo dinâmico,
mas que é congelado quando transposto para os esquemas do quadro de giz e dos livros didáticos.
A proposta do modelo é justamente garantir que um pouco desse dinamismo seja visualizado e
isto encaminha o segundo aspecto a ser considerado que é relativo ao próprio material didático
utilizado. Como dito anteriormente, são peças pequenas e frágeis e, por isso mesmo, difíceis de
serem manipuladas. Talvez a ampliação dessas peças em outro tipo de material fosse mais
adequada e garantisse maior compreensão por parte dos alunos. De qualquer forma, vale ressaltar
que os alunos reconhecem os equívocos, refazem todo o percurso e, finalmente, simulam a
síntese da proteína.
6.6 Sexta aula: clonagem, células-tronco e organismos transgênicos - aprofundando a discussão
Os alunos, em grupo, produziram, ao longo do bimestre, trabalhos sobre organismos
geneticamente modificados (transgênicos), clonagem e células-tronco que deveriam ser
apresentados ao final da unidade de ensino. Estes trabalhos serão analisados no capítulo 9 mas
em linhas gerais podemos adiantar que revelam um intenso exercício de pesquisa a diferentes
fontes como livros, revistas e Internet. Nestes trabalhos, os alunos evidenciam articulações entre
os conceitos que foram trabalhados ao longo da unidade e perspectivas mais amplas num esforço
168
para significar e explicar situações, algumas delas já clássicas, como o caso do envelhecimento
precoce dos clones, ou ainda as razões de atualmente se fazer uso do congelamento de células-
tronco extraídas do cordão umbilical de crianças recém-nascidas. Ao mesmo tempo posicionam-
se contra ou favor da realização e uso dessas pesquisas valendo-se de argumentos que transitam
entre o bem estar do homem e melhoria de sua qualidade de vida até aspectos religiosos que
situam a vida como um bem divino e que, por isso mesmo, não pode ser manipulada. Algumas
questões que atravessam a apresentação dos trabalhos geram discussões acirradas e por vezes
tensas mas que, ao mesmo tempo, contribuem para que os alunos se posicionem enquanto
sujeitos construtores de conhecimentos acerca de questões sócio-científicas que hoje fazem parte
do mundo no qual vivemos.
6.7 Sistematizando a análise
Observamos que, nesta sala de aula, alternam-se momentos dialógicos e de autoridade, o
que parece caracterizar a sala de aula de Biologia posto que há um conhecimento histórico e
social que deve ser compartilhado. Ao mesmo tempo, a apropriação desse conhecimento exige a
construção de novas formas de pensar e olhar um determinado fenômeno em um movimento que
se realiza dialeticamente. Assim, a aprendizagem é assumida como prática social contemplando e
integrando diferentes dimensões que se referem a um “saber como” mas também a um “saber
fazer”. Para isto, a professora diversifica as atividades e, por isso mesmo, o conteúdo de seu
discurso transita entre o conceitual, procedimental e de gestão, este último sendo utilizado
quando as atividades são em grupo ou quando os espaços coletivos se abrem a uma dimensão
mais dialógica. Neste contexto, o nível de participação dos alunos também se alterna dependendo
particularmente dos temas que estão sendo abordados mas que, de qualquer forma, é decisiva
para definir e (re) orientar a dinâmica da aula. Fazem isso questionando, problematizando,
expressando suas concepções, articulando idéias, apresentando contra-exemplos, formulando
hipóteses, posicionando-se em relação à fala do outro. A nosso ver, movimentos que revelam
práticas de natureza epistêmica relativas a uma disciplina escolar específica – a Biologia - que
dão visibilidade a um processo de construção de conceitos e que serão mais bem analisadas no
capítulo 7. Assim, a sala de aula paradoxalmente se revela como um lugar de rotinas, orientadas
169
por objetivos e atividades previamente estabelecidos, mas também o lugar do imprevisível, da
criação, do produtivo.
7. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: SITUANDO O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE
SIGNIFICADOS PELOS ALUNOS
O que ele sabia era que a ciência não é algo que existe na natureza, mas que é uma ferramenta da mente daquele que sabe – seja professor ou aluno. Passar a saber algo é um desafio de tentar explicar um grande número de coisas que você encontra de forma mais simples e perspicaz possível. Há muitas formas diferentes de se chegar a este ponto, e você na verdade nunca chega lá se não o fizer, como aprendiz, em seus próprios termos. Tudo que se pode fazer por um aprendiz que está formando uma visão de si mesmo é ajudá-lo em sua própria viagem. (BRUNER, 2001, p. 115).
Ao iniciarmos este estudo, assumimos a aprendizagem como um processo de construção
de significados que emerge da participação e do engajamento dos sujeitos em atividades social e
culturalmente organizadas, mediadas pelo outro e pela linguagem. Consideramos ainda que este
processo de significação pressupõe uma certa especificidade relativa às formas de apropriação e
de uso desses significados uma vez que reconhecemos que as condições de sua produção
orientam o que “vai ser dito” e como “vai ser dito”. Assim, a significação se organiza em torno
de práticas de natureza epistêmica, relativas aos movimentos de re-elaboração ou re-descrição das
idéias e concepções já existentes em termos de novas relações conceituais.
Neste capítulo, selecionamos e analisamos sete seqüências interativas extraídas da sala de
aula estudada que, em função da natureza das interações que ali se realizam e do conhecimento
que nela circula, de alguma forma dão visibilidade às práticas desenvolvidas pelos alunos para
produção/construção de novos significados biológicos. O quadro a seguir apresenta em destaque
as seqüências analisadas neste capítulo.
171
DATA AULA EPISÓDIOS Nº DE SEQÜÊNCIAS INTERATIVAS
SEQUÊNCIAS ANALISADAS NO CAPÍTULO
NOME DA SEQÜÊNCIA NO CAPÍTULO
Seq. 1 Ela é uma eucarionte? Seq. 2 O experimento: quem morre quem vive? Seq. 3 Por que esse resultado
Evidenciando relações entre estrutura e classificação dos seres vivos e estrutura e função nuclear.
Episódio 1 05
Seq. 6 Uma nova situação experimental
O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e funcionais na/da célula.
Episódio 2 13
Seq. 6 DNA/Genes/ DNA-lixo Camila tem uma hipótese: explicando o papel do DNA-lixo
17/8/06 01
Episódio 3 10
Seq. 10 O caso das hemácias E o que acontece com as hemácias que não têm núcleo?
Episódio 1 01
Seq. 1 Por que o óvulo não pode ser da mesma ovelha?
Por que o óvulo tem que ser da outra ovelha?...
Episódio 2 09
Seq. 4 Me explica uma coisa: como pode ser...?
Ainda sobre clones e clonagem: evidenciando a reelaboração de significados.
Seq. 1Familiarizando-se com material e procedimentos
Quando os alunos se familiarizam com o ambiente iniciam os procedimentos.
Seq. 5 Observação e imprevistos no laboratório
Quando os alunos observam e enfrentam imprevistos.
Seq. 12 Agregando moléculas de DNA
Quando os alunos procuram explicar o que aconteceu com a molécula de DNA.
24/8/06 02
Episódio 3 19
Seq. 16 Visualizando o DNA Quando os aluno observam além do observável.
Episódio 1 01
Episódio 2 02
Episódio 3 03
Seq. 4 Professora, duas perguntas. Uma articulação entre observável e o microscópico...
Episódio 4 05
31/8/06 03
Episódio 5 02
Episódio 1 01
Episódio 2 05 Episódio 3 10
14/9/06 04
Episódio 4 06
Episódio 1 01
Episódio 2 06
21/9/06 05
Episódio 3. 07 5/10/06 05 Não foram
mapeados episódios
Não foram mapeadas seqüências
Quadro 4: Seqüências analisadas no capítulo 7
172
7.1 Evidenciando relações entre estrutura e classificação dos seres vivos e estrutura e
função nuclear
A seqüência47 que apresentamos a seguir faz parte do primeiro episódio da primeira aula
desta unidade de ensino. O objetivo da professora é introduzir a temática que trata da relação
entre estrutura e função do núcleo celular. Para isto, apresenta de forma adaptada uma situação
experimental realizada na década de 1930 com uma alga unicelular macroscópica chamada
Acetabularia48. Com esta proposta, dois aspectos estão em jogo na dinâmica pedagógica: um
primeiro diz respeito à inauguração de um espaço de interlocução pois, a partir desse momento,
ainda que ocupem posições assimétricas neste contexto específico, alunos e professores serão
alternadamente locutores e interlocutores, garantindo a construção de uma seqüência de natureza
interativa mas de autoridade posto que a perspectiva científica parece organizar e controlar os
modos de dizer e pensar acerca do fenômeno em questão. O segundo aspecto revela uma relação
estreita com uma característica que é intrínseca à própria ciência enquanto saber de referência, a
sua possibilidade de prever e explicar determinados fenômenos. Vejamos a seqüência:
1. P: (...) uma alga chamada Acetabulária. E o interessante é que quando o pesquisador fez isto é... foi este exercício mesmo... 2. Nathan: Ela é uma alga azul? 3. P: Não, ela é uma alga verde. 4. Nathan: Uma alga verde (repete com voz mais baixa) Então ela é uma eucarionte? 5. P: É uma eucarionte, exatamente. Então ele pega essa alga secciona, quer dizer, ele corta ao meio essa alga e deixa uma parte sem núcleo e uma parte com núcleo da célula. (Esquematiza no quadro o experimento). Vamos pensar então. O que vocês avaliaram? O que acontece com uma parte e o que acontece com a outra parte? 6. Alunos: Uma morre e outra vive. 7. P: Quem morre? 8. Alunos: A anucleada morre e a nucleada vive. (Muitas vozes) 9. P: Então a nucleada vive e a anucleada morre (Registra no quadro). 10. P: Esta parte que não tem núcleo vive até um tempinho, algumas horas, mas depois ela realmente morre.... Isto é uma experiência antiga chamada merotomia quando se faz esse
47 Esta seqüência transcrita e analisada reúne as seqüências 1, 2 e 3 do primeiro episódio dessa aula. 48 Este estudo serviu para evidenciar que substâncias presentes no núcleo celular das algas eram responsáveis pelo aparecimento de características que hoje sabemos tratar-se do RNA mensageiro.
173
tipo de corte e deixa uma única parte com núcleo ou quando se retira o núcleo da célula pra ver o que acontece chamamos de enucleação. Mas o que é preciso pensar é: por que esta parte que tem núcleo continua vivendo e porque esta parte que não tem núcleo vai morrer? 11. Alunos: Porque... (inaudível – muitas vozes). 12. P: Ronnie. 13. Ronnie: Porque com o DNA do núcleo ela vai se duplicando, formando novas células. 14. P: Então eu devo supor que no núcleo tem um material que é o que, Ronnie? 15. Ronnie: O DNA. 16. P: O DNA. E o que o DNA tem a ver com essa situação? 17. Nathan: Tudo né. 18. P: Ronie você falou mais coisas. 19. Ronnie: É eu falei... Porque é ele que comanda... deixa eu ver... 20. Nathan: inaudível 21. Ronnie: É (concordando) é ele que comanda a célula. 22. P: Tá, então o núcleo contendo esse DNA comanda a própria atividade da célula.
Nesta seqüência, a professora, logo no turno 1, procura situar a experiência para os
alunos. Começa por fazer referência ao organismo que foi utilizado no estudo, uma alga chamada
Acetabularia. Nathan rapidamente intercepta a professora, no turno 2, para perguntar se a
Acetabulária é uma alga azul. Dessa forma, parece reconhecer que existem diferentes tipos de
algas. De posse da informação fornecida pela professora de que se trata de uma alga verde,
Nathan, no turno 4, pode então classificá-la como sendo uma alga eucarionte, o que é confirmado
pela professora no turno 5. Com este movimento, o aluno introduz, logo no inicio da discussão,
um conceito que fora construído em contextos anteriores e que será resgatado oportunamente pela
professora em uma seqüência posterior e também implicitamente por outro aluno no turno 13.
Mas não é só isto, revela também uma forma específica de pensar e falar acerca dos objetos e
fenômenos (Então ela é uma eucarionte.) já que classificar os organismos é uma tarefa que ocupa
os biólogos desde longa data e que atualmente se organiza a partir de critérios que procuram
evidenciar relações de parentesco evolutivas a fim de se re-construir a filogenia ou filogênese dos
diferentes grupos de seres vivos. A classificação biológica envolve o agrupamento de organismos
de acordo com semelhanças e diferenças mas para isso é preciso selecionar características
biológicas efetivamente importantes para não se cair na armadilha de um sistema artificial de
classificação. Na situação em questão, o critério específico diz respeito à ausência ou presença de
um núcleo individualizado que encerra o material genético da célula, o que permite classificar o
organismo, respectivamente, em procarionte ou eucarionte. As algas azuis, atualmente chamadas
174
de cianobactérias, são organismos procariontes, característica que as distinguem de todas as
outras algas. Nathan parece usar essa lógica que orienta os processos de classificação
evidenciando um certo conhecimento sobre o que e quais são os organismos procariontes (É uma
alga verde [então] é uma eucarionte).
Ao mesmo tempo, a interferência de Nathan nos permite considerar um outro aspecto da
prática pedagógica que se refere a uma tentativa de alinhamento focal (LEANDER; BROWN,
1999), ou seja, o desejo de fixar e delimitar o objeto a ser explorado do ponto de vista conceitual.
Isto, talvez, permita ao aluno se situar no contexto da discussão que vai sendo delineada.
Após esta intervenção do aluno, a professora, no turno 5, retoma a apresentação da
situação experimental que se constitui efetivamente no objeto de discussão que irá orientar o
curso da aula, mas o faz verbalmente e esquematicamente no quadro, talvez como uma estratégia
didática que permita aos alunos visualizarem, ainda que de forma simplificada, o experimento
sobre o qual deverão prever e explicar possíveis resultados. A professora, dando continuidade a
sua enunciação, propõe aos alunos um primeiro questionamento: “O que acontece com uma parte
e o que acontece com a outra parte?”. Os alunos rapidamente se posicionam (Uma morre e outra
vive.), mas é preciso especificar melhor as respostas como adverte a professora no turno 7 (Quem
morre?). Com este modo de dizer, talvez a professora sinalize um aspecto elementar que envolve
a prática científica e a prática científica escolar, que diz respeito ao rigor das previsões.
Atendendo à solicitação, os alunos, no turno 8, afirmam com certa segurança que “A [parte]
anucleada morre e a nucleada vive.” Dessa forma, evidenciam que o núcleo é uma estrutura
vital para o funcionamento celular, um conhecimento anteriormente construído que lhes permite
prever os resultados da experimentação.
No curso da interação, a professora parafraseia a resposta dos alunos registrando-as no
quadro, talvez com a intenção de avaliá-la positivamente. Em seguida, formula um longo
enunciado que serve para: confirmar os resultados previstos, desenvolver a história científica,
introduzir novos elementos relativos a este tipo de experimentação e ainda solicitar aos alunos
que expliquem os resultados previstos inicialmente. Dessa forma, dá oportunidade aos alunos de
explorarem suas visões e entendimentos sobre o fenômeno em questão, ao mesmo tempo em que
vai encaminhando a aula para o conteúdo que fora previamente planejado qual seja a estrutura e
função nuclear.
175
Com este movimento, vários alunos se manifestam, mas é no turno 9, a partir da fala de
Ronnie, que elementos significativos vão sendo postos em circulação. Para Ronnie “[...] com o
DNA do núcleo ela vai se duplicando, formando novas células”. Portanto, sua enunciação revela
que é no núcleo celular que se encontra o DNA, reconduzindo de forma implícita para o contexto
da discussão a noção de célula eucarionte já apresentada por Nathan logo no início da seqüência.
Ao reconhecer que é no núcleo que se encontra o DNA da célula, Ronnie aponta para um
componente essencial da estrutura nuclear. Mais que isso, o aluno relaciona a presença do DNA à
capacidade da célula de se dividir formando duas novas células. Dessa forma, sua resposta, ao
mesmo tempo em que incorpora conceitos anteriormente construídos e que não estavam até então
explicitados no curso da discussão (DNA e divisão celular), revela que estabelece uma relação
estreita entre estrutura e função nuclear. Reconhecendo a riqueza da resposta do aluno, a
professora, nos turnos 10 e 12, procura marcar alguns significados. Assim, pede a Ronnie que
repita qual o material que está presente no núcleo e, em seguida, o relacione aos resultados
obtidos na experimentação. Ronnie, no turno 19, parece encontrar dificuldades em recuperar as
idéias formuladas em seu enunciado; entretanto, ao fazê-lo, acaba por introduzir uma nova função
nuclear diretamente relacionada à existência do DNA no seu interior e que diz respeito ao
“comando” ou controle de toda atividade celular. Neste movimento, a professora vai construindo,
juntamente com os alunos, as funções do núcleo celular, que permitem explicar o porque da parte
nucleada ser capaz de continuar vivendo. Essas funções do núcleo celular vão sendo registradas
no quadro e anotadas pelos alunos em seus cadernos servindo como uma memória coletiva. Neste
momento, poderíamos pensar como Smolka (2004, p. 43) que:
As palavras usadas vão provocando imagens. Elas têm história. E o trabalho com palavras e imagens cria cenas, desenvolve narrativas. As palavras vão mobilizando, constituindo a imaginação, vão configurando conceitos. Denso e intenso trabalho simbólico. Podemos conceber e imaginar movimentos e processos... Nesse trabalho imaginativo e conceitual vão se formando universos discursivos coletivamente partilhados e orientados.
A seqüência que acabamos de apresentar indica um percurso de significação caracterizado
por modos específicos de falar, fazer e pensar sobre um determinado fenômeno (ARCÀ,
GUIDONI; MAZZOLI, 1990). Mas por que dizemos específicos? Porque revelam uma estreita
relação com as formas de pensar e organizar o conhecimento biológico. Não é apenas um
176
processo de significação de conceitos que está em jogo mas também movimentos ou, como temos
assumido, práticas específicas para significar. Nathan, por exemplo, estabelece uma estreita
relação entre estrutura (presença ou ausência de núcleo individualizado) e classificação dos seres
vivos (organismos eucariontes ou procariontes). A construção de sistemas de classificação
encontra-se na base do conhecimento biológico. Saber que a Acetabularia é uma alga verde e não
uma alga azul permite-lhe classificá-la como um organismo eucarionte. Ronnie reconhece a
existência de uma molécula de DNA e que a mesma se encontra situada no núcleo já que se trata
de um organismo eucarionte. Dessa forma, estabelece uma primeira relação entre um componente
estrutural presente no núcleo – o DNA - e uma função nuclear que é a de garantir a própria
existência da célula já que é responsável pelo controle de sua atividade metabólica, o que lhe
permite prever e explicar um determinado fenômeno a partir de uma perspectiva biológica.
De um plano mais geral sobre o processo de construção do conhecimento científico pelo
aluno, podemos situar os movimentos de articulação que acabam por gerar/produzir novos
significados. Para Meirieu (1998), essas articulações podem ser pensadas a partir da noção de
ancoragem formulada por Ausubel, que considera que o fator mais importante no processo de
aprendizagem é a quantidade, a organização e a clareza dos conhecimentos de que o aluno já
dispõe pois é a partir deles que vai se agregar a novidade. Aprender, portanto, é uma operação
curiosa em que a mobilização das aquisições anteriores permite o seu enriquecimento e a sua re-
elaboração.
7.2 O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e
funcionais na/da célula
A seqüência interativa que apresentamos a seguir faz parte do terceiro episódio de ensino
ainda da primeira aula quando a professora tinha como grande tema a estrutura e função do
núcleo. Logo após evidenciar a importância funcional do núcleo para a célula, a professora tem
como objetivo estabelecer a estreita inter-relação entre o núcleo e a célula, ou seja, da mesma
forma que a célula desprovida do seu núcleo não é capaz de sobreviver, o núcleo isolado do
citoplasma também morre uma vez que deixa de receber energia da respiração celular e também
substâncias provenientes de outras organelas.
177
1. P: Agora, se eu fizesse uma experiência diferente. Retirasse e isolasse o NÚCLEO da célula. Sozinho. Ele vive? 2. Als: Não 3. P: Por que? 4. Manuela: Vive. (muitas vozes) 5. P: Um de cada vez (solicita organização) 6. Letícia: Mas ele [núcleo] precisa de um “corpo”, né? 7. P: Ah precisa de um meio para ele viver. 8. Nathan: O que seria de uma árvore sem folhas. 9. P: Exatamente. 10. Letícia: Professora, ele [núcleo] seria o tronco. 11. Thais: Professora, o núcleo é então igual ao vírus sozinho. Tinha que entrar em uma célula. 12. P: Não necessariamente. Um vírus não é mesmo uma célula. 13. Al: Um vírus é um vírus. 14. P: Um vírus tem DNA ou RNA. O vírus depende da célula. É um parasita intracelular obrigatório. Mas a célula não depende do vírus para sobreviver. Uma coisa para a gente entender um sistema vivo como o nosso é que as coisas têm relação. 15. Nathan: Existe uma troca. 16. P: Isso mesmo. Uma troca. Uma inter-relação entre estruturas e suas funções.
A professora, no turno 1, simula uma nova situação experimental a exemplo do que fizera
no início da aula. Supõe agora o núcleo isolado da célula e pergunta aos alunos se ele seria capaz
de sobreviver. Os alunos prontamente respondem que o núcleo isolado não seria capaz de
sobreviver fora da célula sugerindo uma visão integrada da dinâmica celular, que será mais bem
especificada no curso da interação. A professora, por sua vez, não avalia a resposta dos alunos
mas solicita que apresentem explicações para este fenômeno específico. Manuela, no turno 4,
parece discordar dos colegas mas sua resposta fica perdida em meio a tantas vozes e não é
considerada pela professora. Letícia, no turno 6, começa a elaborar uma possível explicação para
o fato do núcleo, apesar de conferir tanta autonomia à célula, não ser capaz, ele próprio, de viver
isolado. Para isto, a aluna estabelece uma primeira relação (Mas ele [núcleo] precisa de um corpo
né?). Nesta sua fala, Letícia parece considerar que o núcleo, enquanto uma estrutura celular
específica, só adquire funcionalidade quando integrado a um sistema (corpo). A professora,
apesar de concordar com a aluna, procura, no turno 6, dar forma ao significado por ela proposto.
Faz isto substituindo a expressão “corpo”, usada por Letícia, pela expressão “meio” (Ah, precisa
178
de um meio para viver), talvez como uma estratégia para marcar a noção, que começa a surgir, de
interdependência do funcionamento celular.
Esta visão do funcionamento celular, onde as partes (estruturas) estão estreitamente inter-
relacionadas e só adquirem funcionalidade quando integradas em um todo, é também sinalizada
por Nathan no turno 8. O aluno, para explicitar esta perspectiva, recorre a uma analogia que
ilustra em uma dimensão macroscópica o que se processa em uma dimensão molecular: “O que
seria de uma árvore sem as folhas”. Seu movimento é usar uma noção que lhe parece familiar
para interpretar ou significar uma outra. Dessa forma, sugere que a árvore, enquanto um todo,
depende de suas diferentes partes (as folhas). Mas não podemos inferir se Nathan considera a
árvore como sendo a célula e as folhas como sendo as diferentes estruturas celulares em
funcionamento integrado. Talvez este aspecto seja mais bem especificado quando Letícia,
apropriando-se da ilustração de Nathan no turno 10, vai dizer que o núcleo corresponderia ao
tronco da árvore. Assim, a partir do enunciado de Letícia, podemos supor que, para os alunos, o
núcleo representa uma parte de um sistema maior e que se relaciona com a capacidade de
sustentação.
Neste movimento realizado pelos alunos, vai se configurando a idéia de que a célula é
uma unidade cujo funcionamento como um todo depende de atividades coordenadas que
integrem suas diferentes estruturas e suas respectivas funções. Não basta saber apenas que existe
um núcleo que comanda a atividade celular; é preciso reconhecer que a funcionalidade desse
núcleo só se expressa quando integrada ao funcionamento de outras estruturas. Ao reconhecerem
esta interdependência entre estruturas e funções celulares, os alunos parecem romper com uma
perspectiva reducionista que orienta tanto o pensamento biológico quanto o próprio ensino de
Biologia.
Procurando engajar-se nesta discussão, Thais, no turno 11, introduz um elemento novo ao
comparar essa interdependência entre núcleo e célula à reprodução dos vírus. Neste movimento, a
aluna relaciona o núcleo celular ao vírus (Professora, o núcleo é então igual ao vírus sozinho.
Tinha que entrar em uma célula). Vírus são parasitas intracelulares obrigatórios e só manifestam
vida quando em seu interior. Isolados da célula hospedeira encontram-se inertes, cristalizados. Se
considerarmos o núcleo isolado, não podemos caracterizá-lo como o fazemos quando integrado à
célula. Desprovido de seu meio celular, não manifesta suas funções e acaba por degenerar. A
179
nosso ver, existe uma certa coerência na aproximação que a aluna realiza. Entretanto, a
professora considera inapropriada a comparação da aluna já que esta relação de dependência não
se faz em uma via de mão dupla, ou seja, o vírus depende da célula mas a célula,
necessariamente, não depende do vírus para sobreviver. De qualquer forma, vale ressaltar dois
aspectos importantes: primeiro, a mobilização de um conhecimento previamente construído
relativo à reprodução dos vírus; segundo, o percurso realizado para significar, envolvendo a
aproximação entre dois sistemas explicativos distintos para fazer emergir um novo significado,
que diz respeito à noção de inter-relação estrutural e funcional. Faz uso, portanto, de uma
analogia.
Como apresentamos no capítulo 3, Knorr-Cetina (1981) destaca que a construção de
analogias é uma prática recorrente no processo de produção do conhecimento científico. Para a
autora, as analogias viabilizam a circulação, transformação e seleção de idéias. Assim, o uso de
uma analogia torna mais familiar aquilo que até então se mostrava desconhecido ao mesmo
tempo que retém um caráter conservador, justamente porque controla e restringe a produção de
determinados significados uma vez que orienta a forma de pensar e olhar um determinado
fenômeno. Assim, as analogias, tanto quanto as metáforas, se constituem em instrumentos do
pensamento que, ao serem mobilizadas, viabilizam a resolução de problemas específicos e a
compreensão de idéias, enfim, a construção de novos significados. “Algumas [analogias e
metáforas] podem ser desenvolvidas recorrendo-se a um domínio apenas mas as mais poderosas
ultrapassam os limites entre os domínios, como na associação entre uma entidade viva com algo
inerte ou a geração de uma idéia sobre algo que é tangível”. (MITHEN, 2002, p. 344).
Ao tentar explicitar a inter-relação entre núcleo e célula, Thais recorre aos vírus, uma
entidade já conhecida, o que, de certa forma, pode reduzir suas incertezas e dúvidas em relação
ao significado que está sendo construído. Seu movimento “não é apenas uma procura passiva de
algo que está lá, mas é o processo de impor um significado, ou construir outros, ou escolher um
entre alguns significados alternativos” (SUTTON, 1996, p. 24). Ainda que a professora tenha
considerado inadequada a aproximação que Thais estabelece, vale dizer que serviu para que ela
pensasse e olhasse para um fenômeno de uma forma específica.
180
7.3 E o que acontece com as hemácias que não têm núcleo?
A seguir, apresentamos a última seqüência interativa do último episódio de ensino da
primeira aula. A discussão, por certo, ainda gira em torno do núcleo e de suas funções nos
organismos eucariontes, o que permite ampliação e aprofundamento de conceitos. Nesta
seqüência específica, alunos e a professora procuram compreender como as hemácias, células do
nosso sangue, são capazes de viver sem a presença do núcleo. A nosso ver, é uma seqüência
predominantemente interativa e de autoridade porque alunos e professores se alinham a uma
perspectiva científica para construir um novo significado. Vejamos a seqüência:
1. Ronnie: Professora, você tá falando das células que têm núcleo. E o que acontece com células como a hemácia que não tem núcleo? 2. P: Boa pergunta. Nem toda célula humana tem núcleo, Como a nossa.... 3. Als: Hemácia 4. P: E aí... 5. Camila Guimarães: Mas ela possui substâncias... 6. P: Primeiro, se não tem núcleo como resolve, desempenha essas funções relacionadas ao núcleo? Muitas vozes 7. Al: O DNA está disperso no citoplasma. 8. Al: Não tem a membrana. 9. P: Ela não tem núcleo. Tirou isso (referindo-se ao núcleo da célula no esquema) 10. Camila Dias: Ele tem que ter DNA. 11. Als: Inaudível. 12. Letícia: O DNA está disperso no citoplasma. Muitas vozes 13. P: Qual o tempo de vida da hemácia? 14. Renato: 150 dias. 15. P: Quanto Renato? 16. Renato: 150. 17. P: 150, 120, quatro meses. Quem falou aqui, foi o João que falou que o DNA comanda a reprodução da célula. Se a hemácia não tem núcleo como se reproduz... produz novas hemácias? 17. Camila Dias: Ah, lá na me... medula óssea. 18. P: Então tá. Não é como no caso das outras células que a própria célula se divide em duas. No caso das hemácias, esgotado seu tempo de vida, ela morre. Para se ter novas hemácias é preciso que quem produza? 19. Als: A medula óssea. 20. P: Quando a célula é jovem ela tem núcleo. Ela perde o núcleo no curso da sua formação. Por que ela perde o núcleo? Qual a função da hemácia?
181
21. João: Inaudível. 22. P: Não. Por que dessa ausência do núcleo na hemácia? 23. Als: Inaudível. 24. P: Qual a função da hemácia? 25. Als: Transporte de oxigênio. 26. P: Ela transporta o oxigênio de que forma? 27. Nathan: Eu já vi num desenho que ela carrega nas costas. Risos 28. P: Thais, fala. 29. Renato: Hemoglobina. 30. P: Renato ela tem uma molécula que é a HEMOGLOBINA, uma proteína que se combina com o oxigênio. O formato da hemácia é justamente para comportar essa molécula de hemoglobina. 31. Nathan: Mas ela já teve DNA. 32. Ronnie: Ah então ela deve formar um estoque... reserva de substâncias para sobreviver nesse tempo. 33. Camila Guimarães: É isso professora? 34. P: Semana que vem a gente retoma a discussão.
A seqüência se inaugura com uma questão formulada por Ronnie. O aluno parece
perceber uma lacuna já que, ao longo da aula, se evidenciou a estreita relação entre núcleo e
funcionamento celular. Como então explicar o fato de as hemácias serem células anucleadas?
Podemos supor que é a partir da dinâmica da atividade, das relações que vão sendo tecidas
entre conceitos, que Ronnie faz emergir um novo problema que precisa ser resolvido não só por
ele mas por toda a turma. A problematização é uma condição intrínseca para o engajamento
disciplinar produtivo uma vez que cria oportunidade para que os alunos participem ativamente da
resolução de problemas que sejam substantivos (ENGLE; CONANT, 2002).
A questão de Ronnie é acolhida pela professora que a socializa nos turnos 2, 3 e 6. Assim,
ao invés de dar uma resposta imediata para o aluno, transfere o problema para ser resolvido pelo
grupo. Camila Guimarães, já no turno 5, ensaia uma explicação (Mas ela possui substâncias...).
Podemos supor que a aluna se refere a substâncias que serão capazes de manter a célula viva.
Entretanto, sua resposta é pouco específica. Talvez por isso, a professora, no turno 6, prefira
reformular a questão de Ronnie para que os alunos continuem elaborando melhor suas respostas.
A partir daí, dois alunos, nos turnos 7, 8 e 12, consideram que as hemácias são como células
procariontes, ou seja, não têm um núcleo delimitado e, portanto, seu DNA encontra-se disperso
no citoplasma. Dessa forma, os alunos mobilizam um conhecimento previamente construído para
182
tornar familiar aquilo que lhes parece estranho. Entretanto, ao fazerem esta relação, acabam se
contradizendo, uma vez que os humanos são seres eucariontes, isto é, apresentam células com
núcleo individualizado e, por isso mesmo, não podem dispor de algumas células classificadas
como procariontes. Ao mesmo tempo, entendemos que esses alunos lançam mão desta explicação
justamente porque reconhecem a importância do DNA para as células, como evidencia Camila
Dias no turno 10 (Ele tem que ter DNA.). Assim, os alunos conseguem sustentar que as hemácias,
apesar de não terem núcleo, têm DNA.
Percebendo essas contradições, a professora realiza três movimentos que se propõem a:
primeiro, resgatar o tempo de vida das hemácias no turno 13; segundo, evidenciar o local de
produção das hemácias no turno 17; e terceiro, caracterizar a função das hemácias no turno 23.
Com este movimento, a professora espera que os alunos, de um lado mobilizem conceitos e, de
outro, estabeleçam novas relações que permitam explicar a existência das hemácias como células
anucleadas. Os três pontos marcados pela professora estão relacionados ao fato de as hemácias
terem perdido seu núcleo no seu processo de formação e sendo assim: seu tempo de vida é
relativamente curto; não são capazes de se dividir, dependendo dos processos de divisão e
diferenciação celular que ocorrem na medula óssea; e a perda do núcleo é uma adaptação
evolutiva para comportar a molécula de hemoglobina, tornando mais eficiente o processo de
transporte de oxigênio.
Assim, começam a transitar, no contexto de interação, várias informações introduzidas
pelos alunos: 150 dias é o tempo de vida das hemácias, medula óssea é o lugar de sua produção,
transporte de oxigênio é a sua função e hemoglobina é a molécula que, no interior do núcleo,
transporta o oxigênio. A cada resposta apresentada pelos alunos, a professora introduz um novo
elemento, como por exemplo, no turno 20, quando enuncia: “Quando a célula é jovem ela tem
núcleo. Ela perde o núcleo no curso de sua formação...”. Dessa forma, mantém uma narrativa
que procura sustentar o desenvolvimento da estória cientifica (MORTIMER; SCOTT, 2002) a
partir das interações que vão sendo construídas com os alunos. Ao mesmo tempo, parece
construir uma cadeia de associações que oriente os alunos no processo de significação.
Após este longo percurso, Nathan, no turno 31, parece capturar um elemento importante
ao enunciar: “Mas ela [a hemácia] já teve DNA”, sendo seguido, prontamente, por Ronnie que
estabelece a seguinte relação “[...] então ela [a hemácia] deve formar um estoque... reserva de
183
substâncias para sobreviver nesse tempo”. Supomos que Ronnie esteja se referindo ao fato de
que, a partir do DNA que a célula possuía (pois perdeu o núcleo no processo de maturação), ela
tenha formado as substâncias necessárias para realizar suas funções. Se assim é, os alunos, e
situamos no plural por considerarmos esta uma construção coletiva que emerge em um contexto
interativo, solucionam um problema gerado logo ao início da seqüência e que mantém e orienta o
curso da discussão.
Dessa forma, vemos emergir um novo significado coerente com a perspectiva biológica
pois, antes de “perderem” o seu núcleo, as hemácias sintetizam moléculas de RNA (ácido
ribonucléico), um outro tipo de ácido nucléico. Os RNAs são cópias dos genes de DNA. E irão,
posteriormente, comandar a produção de proteínas responsáveis pela manutenção das hemácias.
Esta perspectiva será sistematizada pela professora na aula seguinte já que, por conta do avançar
da hora, deixou em aberto esta discussão.
Alguns aspectos acerca do processo de significação desenvolvido pelos alunos podem ser
sinalizados a partir dessa seqüência. O primeiro diz respeito ao movimento de Ronnie que
introduz no contexto um novo e significativo problema. Mais que isto, este problema surge como
uma lacuna na rede conceitual que o aluno aparentemente vem construindo. A discussão inicial
da aula fez emergir um significado relativo às funções decisivas que o núcleo desempenha no
funcionamento celular; entretanto, o aluno sabe que existem células humanas, especificamente as
hemácias, que são anucleadas. Temos, portanto, um fenômeno específico que não pode ser
explicado diretamente pela relação núcleo/DNA e célula. Ronnie não coloca em “xeque” a
relação anteriormente construída (núcleo-célula) mas considera que as hemácias devem ter um
processo “diferenciado” de funcionamento (E o que acontece com células como a hemácia que
não tem núcleo?). Sua enunciação faz refletir não apenas um modo específico de falar mas
também de pensar um fenômeno biológico, uma vez que consideramos a linguagem e o discurso
que a mobiliza em contextos específicos, neste caso uma sala de aula de Biologia, como
constitutiva de nossas formas de pensar e, portanto, do próprio processo de significação. A fala
de Ronnie revela uma forma de pensar que envolve relações processuais, o que lhe permite
formular um problema. Neste movimento podemos assumir que “a formação dos [novos]
conceitos surge sempre no processo de solução de algum problema que se coloca para o
pensamento [...]” (VYGOTSKY, 2001, p. 237).
184
Mas Ronnie não busca a solução desse problema sozinho. O processo de significação
envolve diferentes vozes que mobilizam conceitos já existentes e é mediado por uma professora
que procura controlar, marcar, selecionar alguns significados, enfim, encaminhar uma maneira
específica de olhar, pensar e interpretar o problema, uma vez que o foco da atenção vai
destacando um processo de adaptação funcional que envolve a perda do núcleo no processo de
formação das hemácias. Dessa forma, podemos considerar que:
[...] o conceito surge no processo de operação intelectual; não é o jogo de associações que leva à obstrução dos conceitos: em sua formação participam todas as funções intelectuais elementares em uma original combinação sendo que o momento central de toda essa operação é o uso funcional da palavra como meio de orientação arbitrária da atenção, da abstração, da discriminação de atributos particulares e de sua síntese e simbolização com o auxílio do signo. (VYGOTSKY, 2001, p. 236).
7.4 Camila tem uma hipótese: explicando o papel do DNA-lixo
Como professores, planejamos nossas aulas tentando construir um possível roteiro a ser
seguido, selecionando os conceitos a serem destacados, exemplos a serem apresentados.
Entretanto, a sala de aula – felizmente - é espaço do imprevisível pois tudo depende das
interações que nela se realizam e, algumas vezes, seguimos por caminhos inesperados mas que se
revelam produtivos.
A seqüência interativa que apresentamos agora revela esse percurso não planejado,
justamente porque os alunos acabam por se engajar em uma questão que ainda se encontra em
aberto até mesmo para a comunidade científica: o papel do DNA-lixo nos organismos complexos
(eucariontes).
De um modo geral, na maioria dos livros didáticos de Biologia, tendemos a conceituar
gene como uma seqüência do DNA que informa a síntese de uma determinada proteína. A parte
que parece ser irrelevante para a produção dessas moléculas, mas que hoje se sabe ser bastante
extensa, foi durante muitos anos qualificada pelos biólogos moleculares como “lixo” evolutivo.
Atualmente, novos dados têm apontado que esse DNA, aparentemente inútil, pode codificar
moléculas de RNA que realizam funções reguladoras e ainda explicar a complexidade estrutural e
185
evolutiva dos organismos (MATTICK, 2004) e, em alguns casos, está relacionado à produção dos
centrômeros dos cromossomos (AMABIS; MARTHO, 2002). Vejamos a seqüência:
1. P: DNA É Gene? O que é um e o que é outro? Vamos lá. 2. Thaiane: DNA é tudo, gene é um trecho (Gestos acompanham a definição da aluna). 3. P: Muito bom. DNA é o filamento inteiro (esquematiza no quadro). Vamos supor que nesse trecho tem uma informação, determina a síntese de uma proteína. Esse trecho corresponde a um gene. Esse DNA não codifica nada. Esse trecho codifica, é outro gene (esquematiza no quadro). 4. Camila Guimarães: Professora, você não acha que aquele trecho [não codificante] pode servir para alguma coisa? 5. Letícia: É, ele deve servir pra alguma coisa. 6. P: Pois é, este DNA tem sido chamado de DNA-lixo. 7. Camila Guimarães: Mas ele não pode ter ... 8. Nathan: Pode dar choque entre os dois (refere-se aos trechos codificantes e que estão separados pelo não codificante). 9. João: Inaudível. 10. Letícia: Ele pode servir (inaudível) uma estrutura. 11. P: Pensa aí. 12. Letícia: Pra ter estrutura. 13. Thais: Professora, se os genes estivessem muito perto ia ter interferência. 14. Nathan: É como se fosse os elétrons, nêutrons e prótons. Os nêutrons servem (inaudível) 15. P: E pra conferir massa. 16. Camila Guimarães: Inaudível 17. P: Qual a função? Ele deve servir ... querem ver um dado... 18. Nathan: Quantos por cento é lixo. 19. P: 97% 20. Als: Nossa! 21. P: Só 3% do nosso DNA informa... 22. Nathan: Ah, ele serve pra alguma coisa. 23. Letícia: Professora (inaudível) 24. P: A gente depois pode ler alguma coisa sobre esta questão. 25. Camila Guimarães: Enfim, eles têm uma resposta pra isso. 26. P: Eles ainda não têm uma resposta definitiva. Eles têm uma hipótese. 27. Nathan: Ah, o método científico. 28. P: Eles supõem que este DNA pode ter uma função reguladora... (Camila e Nathan conversam) 29. Nathan: Professora, a Camila tem uma HIPÓTESE. 30. P: Camila você tem uma hipótese. 31. Camila Guimarães: Ah, eu viajei. Eu pensei que esses genes, que essa parte que é nada, lixo, que eles pudessem, por exemplo, o ser humano no decorrer de sua vida pudesse acrescentar novas informações, novos genes. 32. P: Em algum momento da evolução? 33. Nathan: Mandou muito bem.
186
34. P: A gente pode voltar a conversar sobre isso..
Esta seqüência, que faz parte do terceiro episódio da primeira aula, se inicia com uma
formulação da professora cuja intenção é resgatar com os alunos os conceitos de DNA e gene,
tais como propostos na versão escolarizada da ciência, a fim de elucidar a diferença estrutural e
funcional da heterocromatina e eucromatina, que vinha construindo anteriormente. Thaiana, logo
no turno 2, apresenta uma resposta que corresponde às expectativas da professora já que, no turno
3, para marcar e controlar estes significados, ela parafraseia a aluna e esquematiza no quadro um
filamento de DNA, tracejando com giz colorido partes que representariam DNA codificante e
DNA não-codificante.
A intervenção da professora introduz no contexto uma nova informação relativa à
existência de trechos de DNA que não estão diretamente relacionados à síntese de proteínas e,
portanto, à definição de características hereditárias. Este novo elemento vai reorientar o eixo da
discussão da heterocromatina e eucromatina para o papel desse DNA-lixo nos organismos.
Enfim, a seqüência que se inicia como uma abordagem comunicativa de autoridade, pois é
intenção da professora fixar significados relativos a DNA e genes, acaba encaminhando uma
interação de natureza predominantemente dialógica, com alternância de turnos, caracterizando
uma cadeia aberta pois ao seu final não observamos uma síntese da discussão ou alguma forma
de avaliação.
Camila Guimarães, já no turno 4, reconhece essa informação como um novo problema
que precisa ser enfrentado e questiona: “Professora, você não acha que aquele trecho [não
codificante] pode servir para alguma coisa?”. Assumimos que esta fala expressa uma forma de
engajamento disciplinar já que no curso da interação, a partir das informações que são postas em
circulação e dos seus conhecimentos previamente construídos, a aluna identifica um novo
problema que é de natureza biológica pois o DNA-lixo tem sido objeto de estudo e vem
mobilizando os biólogos moleculares no sentido de compreender a sua função
A intervenção de Camila Guimarães acaba por envolver outros alunos que passam a
formular possíveis explicações para a existência desse DNA não-codificante. Letícia, nos turnos
10 e 12, considera um possível papel estrutural desses trechos de DNA. Já Thais, no turno 13,
sinaliza que deve ser um material necessário para isolar genes que se situam na mesma molécula
187
de DNA, pois “se esses genes estivessem muito perto ia ter interferência”, aproximando-se da
idéia apresentada por Nathan no turno 12 (Pode dar choque entre os dois).
Na verdade, Thais parece intuir um aspecto importante: os genes possuem marcadores
iniciais e finais que os delimitam nos longos filamentos de DNA. Tais marcadores são seqüências
de bases nitrogenadas específicas permitindo a transcrição exata da molécula de RNA
mensageiro correspondente àquele gene. Mas estes marcadores não são considerados DNA-lixo
já que desempenham uma função específica. Vale destacar que esta “intuição” de Thais deve
apoiar-se em uma base que se situaria num entendimento ou visão geral da organização do
pensamento biológico. Entretanto, a professora não incentiva uma maior elaboração da idéia da
aluna; apenas a parafraseia com uma entonação reticente aceitando-a como mais uma possível
explicação para o tema. Talvez percebendo que este movimento da professora indique que ainda
não foi elaborada uma resposta adequada, Nathan, no turno 14, arrisca comparar o DNA-lixo aos
nêutrons, partículas nucleares do átomo sem carga elétrica mas que, juntamente com os prótons,
definem a massa atômica dessa entidade. Aproxima dois sistemas explicativos bastante distintos
no sentido de fazer emergir um novo significado relativo ao papel do DNA-lixo.
A professora resolve então alimentar a discussão pois percebe a mobilização e interesse
dos alunos. Assim, no turno 17, pretende apresentar um dado mas é interrompida por Nathan que,
no turno 18, antecipando-se, pergunta pelo percentual de DNA-lixo na espécie humana. Ao serem
informados de que aproximadamente 97% do DNA humano corresponde a DNA não-codificante,
os alunos manifestam uma certa surpresa e ao mesmo tempo tomam este dado como uma
evidência que confirma suas suspeitas de uma possível função para este material nos processos
celulares, como expressa Nathan no turno 22 ao afirmar: Ah, ele serve pra alguma coisa!
No turno 24, a professora pretende encerrar a discussão sugerindo a leitura posterior de
artigos sobre o tema. Sinaliza, portanto, que o aprofundamento no tópico em questão é importante
e exige o apoio de uma literatura adequada aos alunos. Entretanto, perde a oportunidade de fazê-
lo e de promover um trabalho que inclua a organização de um espaço público de debate. De
qualquer forma, Camila Guimarães, no turno 26, parece não estar disposta a abandonar a
discussão; quer saber se existe uma resposta para este problema. A professora, no turno 24, havia
advertido sobre a existência de hipóteses num indicativo de que a questão do DNA-lixo ainda
encontra-se em aberto, o que significa que não há respostas definitivas para explicar o seu papel
188
no genoma humano. A expressão “hipótese” usada pela professora é rapidamente relacionada ao
método científico por Nathan, no turno 27, o que sugere uma certa restrição de significados que é
dada pelo contexto em que se realiza a aula orientando uma certa forma de pensar e falar sobre o
fenômeno em questão. No turno 28, a professora ensaia apresentar a explicação que vem sendo
elaborada pelos cientistas, que se refere ao papel regulador do DNA-lixo. Mas Camila Guimarães
e Nathan não estão prestando atenção à professora. Supomos que, neste momento, Camila
Guimarães estivesse compartilhando com Nathan suas idéias e procurando, de alguma forma,
avaliá-las a fim de torná-la pública. Assim, Nathan, no turno 29, interrompe a professora e
anuncia que Camila tem uma “hipótese”, ou seja, que Camila tem uma possível resposta para
explicar o papel do DNA-lixo. A palavra hipótese é usada em um tom bastante assertivo pelo
aluno indicando que o que vai ser dito e como vai ser dito de certa forma, alinha-se a uma das
etapas do método científico. Isto parece apontar para a restrição de alguns significados, inclusive
daqueles que já se fizeram circular no curso da interação, uma vez que a perspectiva biológica
deve orientar a possível explicação formulada pela aluna. A nosso ver, este movimento sinaliza
que Camila Guimarães se propõe a ocupar um lugar de especialista, falar de um lugar de
autoridade e tem segurança para fazê-lo. Procura estabelecer conexões entre vários elementos
para construir sua “hipótese”. Esta atitude está diretamente relacionada com o contexto interativo
de produção em que se organiza esta sala de aula quando, aos alunos, é dado espaço para se
posicionarem, para problematizarem e apresentarem soluções para novas questões. Esta
organização parece favorecer o engajamento disciplinar produtivo dos alunos evidenciado pelo
nível de participação, pela construção de argumentos mais elaborados e sofisticados e pelas novas
conexões de idéias que vão sendo estabelecidas.
Camila, no turno 31, formula sua hipótese: “[...] Eu pensei que esses genes, que essa parte
que é nada, lixo, que eles pudessem, por exemplo, o ser humano no decorrer de sua vida pudesse
acrescentar novas informações, novos genes”. A professora, aparentemente, parece concordar
com a aluna mas não oferece nenhuma sistematização acerca de sua produção, seguindo a
questão em aberto.
Alguns aspectos se revelam na enunciação de Camila Guimarães: primeiro, a apropriação
coerente acerca do significado de gene para formulação de sua hipótese; segundo, sua posição
marcadamente evolucionista pois reconhece que, no curso da evolução humana, ocorrem
189
modificações nesse equipamento genético que resultam no aparecimento de novas informações e
portanto de novas características.
A idéia de Camila Guimarães encaminha não apenas uma forma biológica de dizer mas
uma forma biológica de pensar o fenômeno. As relações estruturais e funcionais entre DNA
codificante e não codificante, genes e síntese de proteínas para explicar a trajetória evolutiva dos
organismos, orientam a perspectiva da aluna e encontram-se na base do pensamento
evolucionista. Dessa forma, considera que esse DNA-lixo possa ser responsável por transmitir
informações ou novas informações para o desenvolvimento e a evolução das espécies. É a partir
do conceito de gene como trecho de DNA que codifica uma proteína, apresentado logo ao início
da seqüência, que o processo de construção de Camila Guimarães foi orientado. Esse conceito é
então relacionado à evidência de que o DNA-lixo é bastante significativo no genoma humano e
por isso mesmo deve cumprir um papel ainda que não elucidado. Esses elementos mobilizados
pela aluna são integrados a uma concepção evolucionista, quando reconhece que mudanças
estruturais e funcionais nos seres vivos operam-se no nível genético. Nesta perspectiva, considera
que trechos de DNA que hoje não codifica informações poderão um dia tornar-se codificantes.
Com este percurso, Camila Guimarães constrói uma ‘hipótese’ que, do ponto de vista da
Biologia, é bastante coerente. Pesquisadores têm considerado que este material genético
aparentemente sem significado, presente inclusive nos trechos que correspondem aos genes49,
poderia originar novas combinações e, conseqüentemente, codificar informações para a produção
de novas proteínas. Assim, um mesmo gene poderia ser “editado” de diferentes maneiras,
permitindo que um universo pequeno de genes, como é o caso de organismos complexos como o
homem, origine uma variedade protéica significativamente maior (AST, 2005).
Assistimos nesta seqüência que as interações realizadas entre professor/alunos e
alunos/alunos em torno de um conteúdo a ser ensinado abrem a possibilidade de um contexto
argumentativo que, dialeticamente, propicia a elaboração de novas aproximações ao significado.
Ou como diz Candela (1998, p.144):
49 Este material genético sem significado é chamado de íntron. No processo de síntese de uma proteína, estes íntrons são copiados formando um RNA mensageiro primário. Posteriormente, esses íntrons são cortados ficando apenas os trechos codificantes (éxons). Atualmente existem indícios de que em alguns casos esses íntrons podem agir como éxons originando um novo tipo de RNA mensageiro que resulta em uma nova proteína.
190
No contexto discursivo, os indivíduos constroem versões diversas sobre um conteúdo, dependendo das situações de interação, mas também das diversas histórias e características individuais. Estas versões são confrontadas, negociadas, reconstruídas no próprio processo de interação, e é nesse processo interativo que vão sendo definidos diversos significados.
Não era intenção da professora discutir DNA-lixo mas Camila Guimarães reconhece isso
como uma questão, como um problema a ser enfrentado. Define a temática da seqüência
discursiva que é acolhida pela professora e pelos demais alunos que se filiam à discussão. Neste
contexto, os alunos vão revelando concepções, articulando idéias, elaborando hipóteses.
Apropriando-se de alguns instrumentos mediacionais pertinentes a um sistema cultural, no dizer
de Werstch (1998) – problematizar, relacionar, mobilizar, aproximar – os alunos vão construindo
uma forma específica de olhar um fenômeno. Em outras palavras, o uso dessas ferramentas
cognitivas em um contexto específico de produção viabiliza, em um movimento dialético e
dialógico, a apropriação/construção de novos conceitos relativos a um domínio específico de
conhecimento.
7.5 Por que o óvulo tem que ser da outra ovelha? Dando visibilidade à instabilidade
conceitual dos alunos
A seqüência discursiva que apresentamos a seguir faz parte do segundo episódio da
segunda aula quando a professora propõe algumas questões para serem discutidas e registradas
por escrito em pequenos grupos a partir da leitura do texto “Dolly, o núcleo e os clones”. Nesta
atividade, o objetivo da professora é destacar o papel do DNA na construção de uma identidade
biológica dos indivíduos além de sinalizar acerca da capacidade de autoduplicação desta
molécula, o que vai garantir que todas as células de um mesmo organismo apresentem o mesmo
material genético. No grupo videofilmado, estão cinco alunos: Nathan, Thais, Thaiane, Manuela e
Camila Guimarães. A leitura do texto, feita por Thais, é acompanhada atenciosamente pelos
demais participantes do grupo. Observamos que esta leitura é constantemente interrompida para
que os alunos resgatem informações, manifestem dúvidas, conflitos e surpresas e expressem suas
idéias sobre clones e processo de clonagem. Com estes movimentos discursivos, os alunos
191
constroem um espaço dialógico sem a mediação da professora, o que, de certa forma, favorece o
enfrentamento dessas mesmas dúvidas e contradições entre os seus conhecimentos e as
informações disponibilizadas no texto.
Thais manipula os textos recebidos. 1. Nathan: Ah!!! A ovelhinha. É a Dolly (depois de consultar o material recebido). Thais inicia a leitura do texto enquanto os outros alunos ouvem atentamente. 2. Camila Guimarães: Lê aqui o que são clones. Thais Lê o iconográfico que define clones e apresenta alguns exemplos inclusive o de gêmeos idênticos. 3. Nathan: Gêmeos idênticos, clones? Não sabia. Sabia? (Dirigindo-se a Thaiane). 4. Thaiane: Não. 5. Nathan: Lógico que não sabia. (Risos). Thais continua a leitura. 6. Thaiane: Que legal! (Diante das informações lidas). 7. Camila Guimarães: Nossa! Mais coisa. (Refere-se à extensão do texto). 8. Nathan: Mais coisa. Thais continua a leitura. 9. Nathan: Glândulas mamárias? 10. Thais: É. (Continua a leitura). 11. Camila Guimarães: Calma aí, rapidinho. Ele tira dessa [da ovelha doadora da célula da glândula mamária e que será clonada] (apontando para o esquema de clonagem que acompanha o texto). 12. Thais: Das glândulas mamárias. 13. Camila Guimarães: E de outra ovelha... 14. Thais: ...o óvulo. 15. Nathan: Por que não pode ser da mesma? 16. Camila Guimarães: É, por que? 17. Thaiane: Provavelmente (inaudível) Risos 18. Camila Guimarães: Não, é sério. Eu não entendi! 19. Nathan: Eu também não entendi. Chamam a professora que neste momento atende a um outro grupo. Thais continua a leitura. 20. Camila Guimarães: Meu Deus! (manifestando espanto diante das informações). 21. Nathan: Pra mim seria a que doasse o óvulo. 22. Camila Guimarães: É. Calma aí. Pra mim seria... 23. Manuela: Seria igual a primeira, a segunda ou a que gerou? 24. Camila Guimarães: Igual a primeira. Então esse óvulo é só pra englobar (inaudível). 25. Nathan: Pra mim já pegava o embrião pronto e implantava. Sei lá. 26. Camila Guimarães: É na barriga da outra pessoa, é da outra ovelha. É, eu só queria saber por que o óvulo tem que ser da outra pessoa, da outra ovelha. (Retoma o esquema e analisa). Muitas vozes (...)
192
Nesta seqüência, os alunos começam por manipular o texto recebido, o que permite uma
primeira aproximação ao tema que será abordado como expressa Nathan logo no turno 1 (Ah! A
ovelhinha. É a Dolly.). Seu enunciado revela uma certa familiaridade acerca do nascimento de
Dolly, o primeiro mamífero a ser clonado com sucesso que foi amplamente divulgado pela mídia
e hoje é referência em todos os livros didáticos quando tratam da manipulação genética. Talvez
esta primeira aproximação ao texto se constitua, de um lado, em uma necessária limitação de
significados mas, de outro, como uma abertura para que novos sejam construídos. Consideramos
que esta tensão entre restrições e possibilidades se caracteriza com mais clareza nesta seqüência
já que o texto didático, que representa a voz científica escolar, introduz novos elementos ou
significados ao mesmo tempo que restringe aqueles que os alunos fazem circular e sustentam no
curso da interação.
Neste movimento, Thais inicia a primeira parte da leitura que traz informações sobre
formação da célula-ovo que comporta em seu núcleo todo o material genético necessário para a
definição das características de um indivíduo. A partir daí, o texto ressalta os processos
sucessivos de divisão celular que essa célula-ovo sofre e que são acompanhados de processos de
duplicação de material genético para garantir que todos os núcleos de todas as células contenham
as mesmas informações. Este percurso conceitual feito pelo autor (CÉZAR; SEZAR, 2006) serve
para mostrar que, a partir do núcleo de qualquer célula somática de um indivíduo, é possível
formar outro idêntico a ele, ou seja, produzir um clone.
Camila Guimarães, no turno 2, orienta Thais para que leia o texto do iconográfico que
conceitua clones e apresenta alguns exemplos de clones produzidos naturalmente. Estes exemplos
incluem os gêmeos idênticos ou monozigóticos, o que parece ser uma novidade para Nathan e
Thaiane, como expressam nos turnos 3, 4 e 5. Talvez este caráter de novidade possa ser explicado
pelas concepções que esse grupo de alunos possui acerca de clones pois, revendo o questionário
respondido por eles ao início da unidade, todos sinalizam que clones são organismos produzidos
artificialmente em laboratórios. Entretanto, a assunção desse novo elemento introduzido no
contexto da discussão não gera nenhuma polêmica e será mobilizado pelos alunos em outras
seqüências interativas.
Após os alunos de certa forma reclamarem da extensão do texto, Thais inicia a leitura da
segunda parte que se refere à técnica da clonagem. O texto é bastante didático e apresenta
193
sucintamente as etapas para se produzir um clone, além de estar acompanhado de um esquema
que ajuda a esclarecer e visualizar essas etapas. Thais então começa: “Em 1, células da glândula
mamária de uma ovelha doadora são retiradas e colocadas num meio de cultura (...)” Neste
momento é interrompida por Nathan que deseja confirmar se são células da glândula mamária
(turno 9) o que é confirmado por Thais que segue lendo o texto: “Em 2, extrai-se de outra ovelha
doadora um óvulo, do qual o núcleo é retirado. Em 3, é feita a fusão entre o óvulo – sem núcleo
– e uma célula de glândula mamária, nucleada (...)”. As informações trazidas pelo texto parecem
gerar uma certa dúvida que é reconhecida pelos alunos, principalmente por Nathan e Camila
Guimarães, como vemos nos turnos 11, 13, 15, 16 e 18, quando expressam não entender os
motivos de serem usadas células de duas ovelhas diferentes no processo de clonagem. Essa
dúvida parece apontar para lacunas nas bases conceituais desses alunos.
Consideramos que esses alunos sabem que clones correspondem às cópias genéticas
idênticas de um organismo, como revelam os questionários respondidos por eles para
levantamento das concepções prévias. Mais ainda, sustentam que, como são cópias genéticas,
dispensam a necessidade de outro(s) organismo(s) no seu processo de produção. Ou mais
especificamente, que este material genético do organismo a ser clonado é “introduzido” em um
óvulo desse mesmo organismo. O embrião produzido é implantado no útero de um outro
indivíduo. Essas suspeitas são confirmadas nos turnos 24 e 25 respectivamente por Nathan e
Camila Guimarães. Assim, supomos que os alunos se vêem diante de informações que não são
apenas novas mas totalmente diferentes daquelas que possuem acerca de clones e clonagem. Por
isso mesmo, percebemos a instalação de uma instabilidade conceitual e que, na perspectiva
construtivista, é uma condição necessária à elaboração de novos significados. Este conflito é
visualizado especificamente a partir das falas de Nathan no turno 15 (Por que não pode ser da
mesma?) e de Camila Guimarães no turno 18 (Não, é sério. Eu não E-N-T-E-N-D-I).
Na ausência da professora que estava atendendo a um outro grupo, os alunos resolvem
seguir com a leitura. Thais reinicia: “No estágio 4, a célula proveniente dessa fusão sofre
divisões, em meio de cultura, e resulta num pequeno embrião, que é implantado no útero de uma
terceira ovelha, que poderíamos chamar de ‘mãe de aluguel’ (...)”. A entrada em cena de uma
terceira ovelha parece aumentar a confusão dos alunos em torno da técnica para clonagem de
animais, como indica Camila Guimarães no turno 20. Para Nathan, no turno 21, a ovelha que
doasse o óvulo funcionaria como “mãe de aluguel”, uma suspeita que é compartilhada com
194
Camila Guimarães. Já Manuela, no turno 22, expressa uma outra dúvida relativa ao organismo
que foi efetivamente clonado (Seria igual a primeira, a segunda ou a que gerou?). Para Camila
Guimarães, este não é o problema, à medida que rapidamente responde, no turno 23, que seria
igual à primeira. Dessa forma, parece reconhecer que a célula que permaneceu com o núcleo e,
portanto, com o material genético é proveniente da primeira ovelha doadora da célula da glândula
mamária. Entretanto, sua questão é outra: compreender o papel dessas diferentes ovelhas no
processo de clonagem. Neste momento, podemos supor que os alunos, especificamente Camila
Guimarães, mobilizando as informações oferecidas pelo texto, “sabem que”, para a clonagem,
são necessários três organismos diferentes: um doador da célula com núcleo e que será clonado;
um doador de um óvulo que terá seu núcleo removido e um terceiro que funciona como mãe de
aluguel. Entretanto, querem ir além, precisam “saber o porquê” do uso desses três animais
diferentes ou, como diz Camila Guimarães no turno 26: “[...] eu só queria saber por que o óvulo
tem que ser da outra pessoa, da outra ovelha”. Sua fala é acompanhada por uma nova análise do
esquema que acompanha o texto, evidenciando um esforço em elucidar o problema. Talvez uma
resposta coerente tenha começado a ser ensaiada na segunda parte do enunciado que Camila
Guimarães elabora ainda no turno 23: “Então esse núcleo é só para englobar (...)”.
Alguns aspectos acerca do processo de significação desses alunos chamam a atenção nesta
seqüência interativa. O primeiro é o estabelecimento de um conflito, ou melhor, de uma certa
instabilidade conceitual entre aquilo que os alunos sabiam sobre a clonagem e as novas
informações que vão sendo apresentadas pelo texto. Esta instabilidade, expressa em um nível
interpessoal nas/pelas interações discursivas que são construídas, contribuem para uma
estabilidade social e afetiva entre os componentes do grupo, particularmente Nathan e Camila
Guimarães. Assistimos a uma “dança” de instabilidade e estabilidade (LEANDER; BROWN,
1999) que se organiza a partir dos diferentes significados que são reconhecidos e confrontados
pelos alunos, refletindo uma “atitude responsiva” (BAKHTIN, 1992) necessária ao processo de
re-elaboração de novos significados. Em outras palavras, os alunos não ignoram aquilo que é
“dito” pelo texto; ao contrário, se apropriam das informações disponibilizadas considerando-as
relevantes para ampliação dos seus próprios entendimentos.
Neste movimento de intensa negociação, percebemos que a proposta inicial da professora
– a saber, centralizar a discussão no processo de autoduplicação do DNA como mecanismo capaz
de garantir que o núcleo de qualquer célula do corpo de um organismo contenha todas as
195
informações genéticas sobre esse organismo - é deslocada, redefinida e transformada em uma
questão específica estabelecida pelos alunos no curso da interação.
Estes aspectos nos fazem crer que
[...] o que mobiliza um aluno, o que o introduz em uma aprendizagem, o que lhe permite assumir as dificuldades da mesma [...] é o desejo de saber e a vontade de conhecer. Sem esse desejo nele, só a mecânica pode responder (...) e o desejo nasce assim do reconhecimento de um espaço para investir de um lugar e de um tempo para estar, crescer, aprender. (MEIRIEU, 1998, p. 86 e 92).
7. 6 Ainda sobre clones e clonagem: evidenciando a reelaboração de significados
A seqüência anterior se desdobra ainda em uma longa discussão (que não será transcrita
aqui) onde os alunos mobilizam diferentes conceitos na tentativa de encontrar uma resposta
coerente capaz de explicar o problema formulado logo ao início da leitura. No curso dessa
discussão, solicitam a presença da professora iniciando uma nova seqüência que revela ao mesmo
tempo as dúvidas que ainda persistem e indícios de apropriações de novos significados.
1. Nathan: Professora, surgiu uma dúvida. 2. Camila Guimarães: Me explica uma coisa, COMO PODE SER. Nós temos duas fêmeas, certo? Por que você tira as células da glândula mamária de uma e o óvulo de outra? Por que não pode ser tudo da mesma. 3. P: Faz parte da técnica da clonagem para ao final você garantir que produziu um clone. 4. Camila Guimarães demonstra espanto 5. Nathan: Inaudível 6. P: Prá você garantir que houve manipulação. Se você usa o óvulo dela mesma e o material genético da glândula mamária... 7. Al: Ia ficar ela mesma... 8. Thais: É... 9. Al: Agora eu entendi. 10. Manuela: ... Você precisa usar uma de cada uma [uma célula de cada animal] pra garantir que você está produzindo um clone. 11. P: Isso. Você usa duas para garantir que você está conseguindo manter esse material genético intacto ainda que o óvulo seja de outra ovelha.
196
12. Nathan: Ah, então a intenção é esta? Que esse clone vai conseguir ter esse mesmo DNA, mesmo que o óvulo venha de outra ovelha... 13. P: Tanto é que essas ovelhas são de raças diferentes. 14. Camila Guimarães: Então o DNA da segunda ovelha não vai interferir na criação do DNA da primeira? 15. P: O DNA do núcleo do óvulo é Re-TI-RA- DO(aponta para o esquema), este óvulo não tem núcleo. Só que existe um outro DNA que está fora do núcleo que é o DNA mitocondrial e que continua aqui [no citoplasma do óvulo] (aponta novamente para o esquema). 16. Camila Guimarães: O clone é a cópia perfeita da primeira ovelha? 17. P: Do DNA nuclear é, mas como aqui, como não foi removido o DNA mitocondrial o embrião tem DNA mitocondrial dela (se refere ao óvulo). 18. Camila Guimarães: Dessa aqui não (se refere a ovelha doadora do óvulo). 19. P: Dessa aqui TAMBÉM. 20. Camila Guimarães: Ai meu Deus (leva as mãos à cabeça). 21. Nathan: Inaudível. 22. P: ... Este clone ainda que considerado perfeito tem DNA mitocondrial das duas ovelhas. (...) 23. Nathan: Professora, poderia ser retirado então as mitocôndrias dessa segunda, desse óvulo aqui ou seria impossível? 24. P: Não sei. Porque senão você deixa a célula sem energia. 25. Camila Guimarães: É, sem energia. É, então olha aqui, nós podemos responder que é igual a primeira ovelha, porque é a doadora da célula com núcleo mas há controvérsias porque é o caso... 26. Nathan: Do DNA mitocondrial. Inclusive da ovelha que doou o óvulo. 27. Camila Guimarães: Do DNA mitocondrial (registra na folha de respostas).
Nesta seqüência, consideramos que tanto professor quanto alunos procuram alinhar-se a
uma perspectiva científica acerca da técnica da clonagem e do próprio conceito de clone,
caracterizando uma abordagem de autoridade mais interativa. Camila Guimarães é a porta-voz do
grupo e é em torno principalmente de sua considerações que as questões vão sendo organizadas e
orientadas. Assim, no turno 2, Camila Guimarães socializa a dúvida do grupo. Seu enunciado
reflete a incorporação da idéia trazida pelo texto, ou seja, a de que, na clonagem, são usadas duas
ovelhas onde uma delas funciona como doadora de óvulo. Ao mesmo tempo, reflete sua própria
concepção do que seja um clone (Por que não pode ser tudo da mesma?). Em outras palavras, se
clones são cópias genéticas idênticas de um mesmo organismo, por inferência, apenas um
organismo deve ser necessário neste processo de reprodução. Veja que o uso de uma terceira
ovelha, que funciona como “mãe de aluguel”, não se constitui em um problema, talvez porque
197
sua questão se situe em um nível celular, especificamente na utilização de um óvulo que é doado
por uma segunda ovelha.
Nos turnos 3 e 6, a professora procura explicar o problema a partir dos procedimentos
metodológicos que envolvem a produção de um clone. São usados três organismos de raças
diferentes o que vai permitir, ao final do processo, comparar, por contraste, o material genético de
cada um deles ao do organismo gerado artificialmente. Com isto, é possível confirmar-se que um
clone foi produzido, à medida que ele deve apresentar apenas o material genético da ovelha
doadora da célula da glândula mamária nucleada, já que o núcleo do óvulo havia sido retirado.
Camila Guimarães tinha certa razão ao supor que este óvulo funcionasse como uma “célula
receptora” do núcleo que contém o material genético a ser usado. Entretanto, é preciso destacar
que o óvulo é também a célula que, por conta de sua especificidade bioquímica, é capaz de se
dividir dando inicio ao desenvolvimento embrionário.
Após esta intervenção, os alunos evidenciam movimentos que indicam um processo de re-
significação, à medida que parafraseiam a professora confirmando que entenderam a questão.
Este é o caso de Manuela que, no turno 10, enuncia: “[...] Você precisa usar uma de cada uma
[uma célula de cada animal] pra garantir que você está produzindo um clone”. E de Nathan, no
turno 12, que diz: “Ah, então a intenção é esta? Que esse clone vai conseguir ter esse mesmo
DNA, mesmo que o óvulo venha de outra ovelha...”. Percebemos que a fala da professora, nos
turnos 11 e 13, têm um caráter avaliativo, ou seja, de confirmar os significados produzidos pelos
alunos. Visto desse ângulo, podemos assumir, a partir de uma perspectiva bakhtiniana, que a
“palavra alheia” vai se tornando palavra “alheia própria” e, finalmente, palavra “própria” num
percurso que parece fazer emergir um novo significado delimitado pelas próprias condições
contextuais em que se realiza.
Entretanto, a pergunta formulada por Camila Guimarães, no turno 15, sugere que ainda
não está claro para ela, e talvez para os outros alunos, que o núcleo do óvulo foi extraído e,
portanto, encontra-se destituído de DNA nuclear. Assim, no turno 16, a professora procura
inicialmente marcar esta informação valendo-se inclusive de uma entonação mais assertiva e
pausada para, em seguida, introduzir um novo elemento referente ao DNA mitocondrial50.
50 As mitocôndrias são organelas celulares responsáveis pelo processo de respiração celular. São constituídas de um DNA próprio que hoje se sabe contém genes responsáveis por algumas doenças como a doença de Leber, uma atrofia óptica que causa a cegueira nos humanos.
198
Algumas particularidades podem ser mapeadas a partir dessa estratégia da professora. Primeiro,
que considera resolvido o problema inicialmente identificado pelos alunos uma vez que
aparentemente reconhecem que o óvulo é apenas uma célula receptora no processo de clonagem;
segundo, que leva em conta o nível de engajamento dos alunos no contexto de aprendizagem
como uma condição favorável à ampliação e aprofundamento de significados.
Camila Guimarães, no turno 15, tomando como referência apenas a relação DNA –
núcleo, procura confirmar sua idéia de que o clone é uma cópia perfeita da ovelha doadora da
célula nucleada pois reconhece que é nele que se concentra o material genético responsável pelas
características do organismo. Com o uso da palavra “perfeita” pela aluna, a professora insiste em
analisar a clonagem considerando o DNA mitocondrial. Sua fala, nos turnos 16, 19 e 22,
evidencia que mitocôndrias, portadoras de um DNA específico, tanto da célula da glândula
mamária quanto do óvulo, serão encontradas no clone. Enquanto Camila Guimarães, não sem
razão, manifesta uma certa confusão, Nathan, no turno 23, propõe que sejam extraídas as
mitocôndrias do óvulo para que o problema seja resolvido. Se, do ponto de vista conceitual, a
proposta de Nathan revela uma certa fragilidade, já que as mitocôndrias são organelas que numa
relação interfuncional fornecem energia para as células, do ponto de vista metodológico
consideramos que há uma certa lógica científica na sua forma de pensar. Como bem assinalado
por Knorr-Cetina (1992 e 1981), nos laboratórios, os objetos são transformados e manipulados,
correspondendo sempre a versões parciais de um fenômeno. O aluno parece reconhecer esta
dimensão da produção científica, o que lhe permite posicionar-se como um “especialista” a fim
de propor uma alternativa para uma questão que ainda não se encontra resolvida na técnica de
clonagem.
Ao final da seqüência, os alunos, ao elaborarem a resposta para uma das questões
propostas pelo texto, parecem sistematizar a discussão realizada incorporando e articulando os
significados que fizeram circular neste contexto. E assim, registram: “nos podemos responder
que é igual à primeira ovelha, porque é a doadora da célula com núcleo, mas há controvérsia
porque existe o DNA mitocondrial. Inclusive da ovelha que doou o óvulo”.
Dessa forma, podemos considerar que os alunos realizam uma articulação entre estruturas
(núcleo – DNA e mitocôndrias – DNA) para construírem uma interpretação específica para o
fenômeno em questão. Essas relações serão novamente exploradas por estes alunos quando
199
apresentam ao final da unidade de ensino o trabalho sobre clonagem, que discutimos no capítulo
9.
7.7 Uma articulação entre o observável e o microscópico: significando o conceito de
transgênico
A manipulação genética é um tema que tem sido amplamente explorado, tanto pela
literatura quanto pelo cinema, e contribui de forma decisiva para povoar o imaginário das
pessoas. Um exemplo é o livro de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, que, já em 1816,
anunciava uma sociedade totalitária onde crianças eram concebidas e gestadas em laboratórios
constituindo castas com finalidades específicas. Também neste período, a inglesa Mary Shelley
dá vida a Frankenstein, talvez o primeiro ser híbrido criado na ficção. Numa época em que reina a
biotecnologia, os filmes que têm como foco a produção de humanos transgênicos e clonados,
como A Mosca e Allien, ganham cada vez mais espaço e público contribuindo para o que Fourez
(1995) tem chamado de “vulgarização da ciência”.
Talvez influenciado por esta “fantaciência”, João dá início a uma seqüência que faz
parte do quarto episódio da terceira aula dessa unidade de ensino.
1. João: Professora duas perguntas. 2. P: Vamos lá, João. 3. João: Primeiro, por exemplo, pode alterar o gene da árvore, assim, pra ela crescer altona... grandona? 4. P: Mais alta, pra dar mais frutos. 5. Manuela: Ela acabou de falar isso. 6. P: É uma técnica chamada de melhoramento genético. Uma forma de seleção de genes que, por assim dizer, melhora a qualidade da espécie. 7. Al: Inaudível. 8. P: A transgenia é uma técnica que permite a transferência de genes de uma espécie em outra espécie. Como o Rafael falou. Gene, por exemplo, que confere resistência a determinados herbicidas, pra matar ervas daninhas, sem afetar as plantas que deseja cultivar. Genes de bactérias podem ser introduzidos. A questão é saber como isso vai se comportar no nosso organismo. A gente já come transgênico? 9. Als: Já. 10. P: Bem... 11. João: Mas professora eu disse que eram duas. 12. P: É verdade.
200
13. João: Tem um molequinho pra nascer. Aí botam o gene da coruja nele. Aí ele vai nascer com o olhão grandão (gesticula para indicar os olhos da coruja). Risos – Muitas vozes. 14. P: João, uma estrutura tão sofisticada como os olhos você necessita de muitos genes em jogo. 15. João: Mas se botar vários genes. 16. P: Não. A técnica da transgenia ainda não está completamente dominada. Ronnie...
Nesta aula, a professora tem como objetivo discutir o processo de autoduplicação de
DNA. No curso da atividade, a professora simula algumas alterações na seqüência de bases do
DNA que está esquematizado no quadro a fim de introduzir noções relativas às mutações gênicas.
Esta simulação parece ser a senha para autorizar uma participação dos alunos que começam, de
certa forma, a gerenciar as temáticas de interesse que desejam trabalhar. Entre estas temáticas
está a de organismos geneticamente modificados (transgênicos) que, segundo o levantamento das
concepções dos alunos, analisado no capítulo 5, ainda é uma questão não muito bem esclarecida
para os alunos. Em seqüência anterior, Rafael havia apresentado uma definição bastante
adequada para organismos transgênicos, valendo-se particularmente de um exemplo relacionado
à dimensão terapêutica. A discussão avança quando a intervenção de João marca o início de uma
seqüência interativa que revela a tensão contínua entre o discurso de autoridade e o discurso
dialógico. João fala do lugar do senso comum, do seu ponto de vista, enquanto a professora dá
voz a uma perspectiva científica. A professora recorre a conceitos científicos: melhoramento
genético, seleção de genes e caminha em direção à abstração. João, na contra-mão, segue em
direção à ficção. Apresenta situações, deseja contextualizar. Talvez um percurso que lhe permita
significar o conceito de transgênico. Vejamos este percurso.
João, no turno 3, quer saber sobre a possibilidade de se alterar genes para se interferir na
estrutura de uma planta, como por exemplo para fazê-la “crescer altona... grandona”. A resposta
da professora tem caráter avaliativo e procura confirmar a idéia de João. A intervenção de
Manuela, no turno 5, sugere que este é um conhecimento compartilhado pela turma, ou pelo
menos por alguns alunos da turma, já que se trata de uma questão anteriormente abordada no
curso da discussão. De qualquer forma, vale dizer que o processo de significação em uma sala de
aula é bastante complexo e mesmo desigual. Não temos como garantir que significados sejam
efetivamente construídos e compartilhados por todos os integrantes do grupo. Ainda que haja um
esforço por privilegiar alguns significados em detrimento de outros, significados alternativos são
201
construídos ao mesmo tempo em que lacunas também permanecem, podendo ser reintroduzidas
no curso do processo interativo. Talvez por considerar esses mecanismos como próprios do
processo de aprendizagem é que a professora, nos turnos 6 e 8, resgata noções de melhoramento
vegetal e de organismos geneticamente modificados. Para isso, toma como referência a voz de
Rafael que já se fizera circular neste contexto. Procura marcar significados chave, como por
exemplo genes, mas, ao mesmo tempo, deseja ampliar ou exemplificar a discussão em torno do
consumo de alimentos transgênicos. Entretanto, a intervenção de João, no turno 13, interrompe
essa possível trajetória de trabalho. A questão proposta pelo aluno revela um movimento que
procura significar o conceito de organismo transgênico a partir de uma perspectiva
contextualizada. Diferentemente das outras seqüências em que os alunos parecem transitar numa
relação entre conceitos, entre estruturas e funções, João procura relacionar um conceito a uma
situação concreta ainda que bastante fictícia (Tem um molequinho pra nascer. Aí botam o gene da
coruja nele. Aí ele vai nascer com o olhão grandão? gesticula para indicar os olhos da coruja).
Procura situar o conceito de transgênico por meio de sua aplicação direta a uma dimensão
empírica e portanto observável, o que talvez possa sanar lacunas ou modificar concepções em
relação às suas concepções. Visto desse ângulo, podemos supor que este seja um caminho para
que João crie, transforme e combine elementos situados em uma perspectiva científica, que
contemplam a relação entre genes e características hereditárias com aqueles situados em uma
perspectiva empírica que podem ser capturados pelos olhos e descritos pois têm por base aspectos
observáveis do fenômeno em questão (Ele vai nascer com o olho grandão?).
Ainda que a professora, no turno 16, encerre a discussão passando a palavra para Ronnie e
para um outro foco de discussão, vale situar que o movimento de João revela uma apropriação do
significado de genes, e mesmo de como ocorre a manipulação desses genes, que lhe permite
propor uma situação descritiva e observável do fenômeno. Na sala de aula de Biologia, é
importante que os alunos percebam essa possibilidade de articular a perspectiva empírica e
descritiva à perspectiva teórica e explicativa do conhecimento biológico. Dessa forma, seguem
em direção a uma visão mais ampla e integrada dos fenômenos biológicos à medida que as
dimensões macroscópicas, microscópicas e mesmo moleculares vão sendo articuladas.
202
7.8 Sistematizando nossa análise
Alguns aspectos gerais podem ser analisados a partir das seqüências interativas
apresentadas neste capítulo. O primeiro diz respeito a um movimento dos alunos em estabelecer
algum tipo de relação. Nathan, por exemplo, estabelece uma relação entre presença ou ausência
de núcleo individualizado para classificar a alga Acetabularia, objeto de uma experimentação,
como um organismo eucarionte. A classificação dos seres vivos constitui-se em uma dimensão
fundamental que organiza o pensamento biológico posto que revela graus de parentesco e,
portanto, relações evolutivas nos sistemas mais atuais de classificação. A presença ou ausência de
núcleo, que categoriza os organismos em eucariontes e procariontes, é hoje um dos critérios
utilizados para se organizar tais sistemas. Também Ronnie, ao reconhecer o DNA como
componente estrutural do núcleo, segue em um movimento que lhe permite explicar os resultados
obtidos no trabalho experimental proposto na atividade. As inter-relações entre estruturas e suas
respectivas funções são percebidas por Letícia e Nathan e contribuem para uma concepção mais
organicista dos organismos. Em outra situação, é no confronto entre aquilo que sabem sobre
clonagem e as informações que são disponibilizadas por um texto que lêem que alguns alunos
mergulham em uma instabilidade conceitual que é enfrentada. Nesse enfrentamento, novos
elementos conceituais são adicionados o que viabiliza a elaboração ou re-elaboração das
concepções pelos alunos acerca do tema que está sendo focalizado.
As relações parecem então se constituir em um movimento necessário para a construção
de novos significados. Entretanto, um olhar mais atento faz revelar que este movimento de
aproximação entre conceitos ou entre sistemas explicativos distintos, como realiza Thais,
emergem de uma questão ou problema que pode ser apresentado tanto pela professora quanto
pelo aluno. A problematização favorece o engajamento dos alunos que procuram então respostas
para elucidá-la. Neste movimento, mobilizam seus conhecimentos prévios, percebem pistas que
vão sendo plantadas pela professora e talvez reconheçam que alguns significados vão sendo
restringidos enquanto se abre a possibilidade de que novos sejam construídos. Percebem que há
um modo específico de falar, de olhar e de pensar os fenômenos evidenciados a partir dessas
novas relações que se estabelecem entre os diferentes níveis do conhecimento biológico: das
estruturas celulares e moleculares, dos processos envolvidos e viabilizados por estas estruturas,
203
dos sistemas de classificação e ainda das representações, já que a seqüência de letras ATCG deve
ser reconhecida como uma seqüência de bases nitrogenadas que se constituem no código da vida.
Dessa forma, podemos supor que, em um contexto específico, onde se situa um
conhecimento igualmente específico, novos instrumentos culturais vão sendo apropriados e
incorporados pelos alunos. Passam, então, a perceber novas questões, a abordar os fenômenos
não apenas de uma perspectiva descritiva mas também teórica. Isso pressupõe mudanças
epistemológicas à medida que transitam entre diferentes níveis e dimensões do conhecimento
biológico. Neste sentido, integram conceitos viabilizando a construção de novos significados.
Com isso, os organismos passam a ser reconhecidos não apenas como uma estrutura
macroscópica mas também microscópica e molecular cuja atividade metabólica confere sentido
àquilo que pode ser percebido e descrito.
8 SALA DE AULA DE BIOLOGIA: DOS FATOS ÀS COISAS E DAS COISAS AOS
FATOS
Depois de horas de espera pela retomada da experiência, pela
obtenção de novas cobaias, pela purificação de mais endorfina, percebemos que a oferta do autor (“Deixe-me mostrar-lhe”) não é tão simples quanto parecia. É uma encenação lenta, demorada e complicada, de minúsculas imagens diante de um público. “Mostrar” e “ver” não são simples flashes de intuição. (LATOUR, 2000, p.111).
As atividades práticas se constituem em objeto específico de investigação no campo da
Educação em Ciências. Por isso, situamos, inicialmente, neste capítulo, elementos teóricos desta
produção que, articulados a uma discussão mais ampla relativa à aprendizagem, nos permitem
caracterizar os objetivos, as intenções e o significado da atividade de laboratório no corpo da
unidade de ensino desenvolvida, que tinha como proposta realizar a extração do DNA do
morango ou da cebola. Considerando que a atividade de laboratório envolve a articulação entre as
dimensões observável e conceitual, selecionamos algumas cenas que são descritas e interpretadas
a partir do olhar teórico que orienta este estudo, evidenciando pistas para tecer considerações
sobre o processo de aprendizagem dos alunos. Apresentamos, ainda, os relatórios produzidos
pelos alunos como sistematização da atividade realizada. Na análise desses relatórios,
procuramos marcas lingüísticas e contextuais que caracterizem a produção escrita dos alunos e
que indiquem a apropriação de conceitos e procedimentos da investigação científica que no
espaço escolar ganha contornos e matizes específicos posto que a atividade científica escolar e a
atividade científica têm metas diferentes e, portanto, valoram coisas também diferentes
(IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA, 1999). O quadro a seguir apresenta em destaque as
seqüências analisadas neste capítulo.
205
DATA AULA EPISÓDIOS Nº DE SEQÜÊNCIAS INTERATIVAS
SEQUÊNCIAS ANALISADAS NO CAPÍTULO
NOME DA SEQÜÊNCIA NO CAPÍTULO
Seq. 1 Ela é uma eucarionte? Seq. 2 O experimento: quem morre quem vive? Seq. 3 Por que esse resultado
Evidenciando relações entre estrutura e classificação dos seres vivos e estrutura e função nuclear.
Episódio 1 05
Seq. 6 Uma nova situação experimental
O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e funcionais na/da célula.
Episódio 2 13
Seq. 6 DNA/Genes/ DNA-lixo Camila tem uma hipótese: explicando o papel do DNA-lixo
17/8/06 01
Episódio 3 10
Seq. 10 O caso das hemácias E o que acontece com as hemácias que não têm núcleo?
Episódio 1 01
Seq. 1 Por que o óvulo não pode ser da mesma ovelha?
Por que o óvulo tem que ser da outra ovelha?...
Episódio 2 09
Seq. 4 Me explica uma coisa: como pode ser...?
Ainda sobre clones e clonagem: evidenciando a reelaboração de significados.
Seq. 1Familiarizando-se com material e procedimentos
Quando os alunos se familiarizam com o ambiente iniciam os procedimentos.
Seq. 5 Observação e imprevistos no laboratório
Quando os alunos observam e enfrentam imprevistos.
Seq. 12 Agregando moléculas de DNA
Quando os alunos procuram explicar o que aconteceu com a molécula de DNA.
24/8/06 02
Episódio 3 19
Seq. 16 Visualizando o DNA Quando os aluno observam além do observável.
Episódio 1 01
Episódio 2 02
Episódio 3 03
Seq. 4 Professora, duas perguntas. Uma articulação entre observável e o microscópico...
Episódio 4 05
31/8/06 03
Episódio 5 02
Episódio 1 01
Episódio 2 05 Episódio 3 10
14/9/06 04
Episódio 4 06
Episódio 1 01
Episódio 2 06
21/9/06 05
Episódio 3. 07 5/10/06 05 Não foram
mapeados episódios
Não foram mapeadas seqüências
Quadro 5: Seqüências analisadas no capítulo 8
206
8.1 Uma breve discussão acerca do papel das atividades práticas no processo de ensino-
aprendizagem em ciências
Parece existir um relativo consenso entre professores das áreas científicas acerca da
importância das atividades de laboratório no ensino de ciências. De um modo geral, consideram
as atividades de caráter prático como motivadoras e, talvez por isso mesmo, um componente
decisivo para superar dificuldades no processo de aprendizagem das disciplinas científicas.
Se, de um lado, os professores atribuem valor às atividades práticas, de outro, e de forma
contraditória, não as realizam com freqüência ou mesmo não as realizam. As razões para esta
situação são inúmeras, como por exemplo, a carga horária reduzida da grade curricular reservada
ao ensino de ciências e de Biologia. No segundo segmento do ensino fundamental esta carga
horária representa três tempos semanais de cinqüenta minutos cada e no ensino médio,
particularmente em relação ao ensino de Biologia, dois tempos semanais também de cinqüenta
minutos cada. Além disso, muitos professores apontam que não existe laboratório em suas
unidades escolares e, mesmo quando existe, não é suficientemente bem equipado e planejado
para abrigar turmas geralmente compostas por um número significativo de alunos.
Embora reconheçamos a legitimidade dessas razões no cotidiano escolar, consideramos
que, na verdade, elas refletem uma tendência em dicotomizar o ensino de ciências em dois
domínios: o ensino teórico e o ensino prático, dando-se maior ênfase ao primeiro (IZQUIERDO;
SANMARTÍ; MARIONA, 1999). Neste caso, quando as atividades práticas são realizadas,
mostram-se pouco eficazes para a aprendizagem de conceitos teóricos (IZQUIERDO;
SANMARTÍ; MARIONA, 1999; WOOLNOUGH; ALLSOP, 1985) não se negando, entretanto, a
sua utilidade para a aprendizagem dos procedimentos metodológicos relativos à ciência.
Para entender estar situação, Izquierdo, Sanmartí e Mariona (1999) consideram que as
atividades experimentais, seguindo uma tradição filosófica empirista ou racionalista,
estruturaram-se tendo como referência o que ‘fazem os cientistas’ quando, na verdade, deveriam
ser um guia elaborado especialmente para aprender determinados aspectos da ciência levando em
conta as especificidades do contexto escolar em seus objetivos, finalidades e mecanismos de
convencimento. Enfim, como uma ciência escolar que se fundamenta em uma epistemologia
também escolar:
207
Devemos desenhar uma nova epistemologia escolar, que aceita a normatividade de alguns conhecimentos como ponto de partida para a compreensão do mundo mas que impulsiona também a criatividade na elaboração de argumentos e de aplicações para que os conhecimentos normativos adquiram sentido e proporcionem autonomia (IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA, 1999, p. 49).
Woolnough e Allsop (1985) reconhecem esse contínuo entre conceitos e processos que
marcam o ensino de ciências, mas consideram que a inter-relação entre estes dois domínios deve
acontecer em níveis mais avançados do desenvolvimento da criança e do próprio processo de
ensinar e aprender ciências. Para os autores, a formalização abstrata prematura de conceitos
científicos pode representar um impedimento para uma aprendizagem posterior em ciências,
quando os alunos estão em uma fase intelectualmente mais madura. Woolnough e Allsop (1985)
sugerem que, inicialmente, o ensino de ciências deve centrar-se em atividades práticas
relacionadas ao próprio ambiente da criança e movimentadas pela mobilização de um
conhecimento tácito para, somente depois, introduzir-se mais intensa e sistematicamente os
conceitos e conhecimentos científicos a fim de que a articulação entre os dois domínios possa
garantir uma aprendizagem mais ampla e profunda. Apesar da proposta dos autores sugerir uma
linearidade entre prática e teoria, não é isto o que realmente pretendem pois sinalizam para um
movimento cíclico e, diríamos, intrínseco entre esses dois pólos quando afirmam que “a
experiência e os insights obtidos ao fim de um primeiro momento retroalimentarão o
conhecimento implícito à investigação e práticas cognitivas a serem aplicadas e desenvolvidas
em atividades posteriores” (p. 76).
Vamos delineando, a partir desses autores, que a introdução de uma atividade prática em
ciências não deve funcionar apenas como um elemento motivacional para despertar o interesse
para o ensino ou ainda para ilustrar/comprovar teorias apresentadas pelo professor. É preciso
considerar, como fazem Millar, Maréchal e Tiberghien (1999, p. 35), que “o propósito central das
atividades práticas no ensino de ciências é ajudar o estudante a fazer conexões entre o domínio
dos objetos e coisas observáveis e o domínio das idéias” por isso mesmo as atividades práticas
são “todas aquelas atividades que no ensino de ciências envolvem os alunos de alguma forma no
manuseio ou na observação de objetos ou materiais - ou representações diretas destes objetos e
materiais, em uma situação ou vídeo-gravação” (p. 36).
208
Avançando nesta discussão, Jenkins (1999b) também sinaliza que a tentativa de
reproduzir os métodos científicos no ensino de ciências tem se revelado pouco produtiva, isto
porque a ciência, a partir de uma filosofia pós-khuniana, é assumida como uma atividade social e
cultural, o que significa que:
A ciência é vista hoje como enfrentando o mundo material com base em práticas materiais e intelectuais diversas e pouco articuladas, e a ocorrência destas práticas é inescapavelmente situada dos pontos de vista social e institucional. (JENKINS, 1999b, p.24, tradução da autora)51.
Na tentativa de não reduzir as atividades práticas à “um conjunto de técnicas ou de
distintas habilidades que tem como conseqüência um esvaziamento do seu potencial educacional”
(JENKINS, 1999, p. 26), muitos autores têm destacado a importância de se ter clareza dos
objetivos dessas atividades no momento de seu planejamento(BORGES ET AL, 2001;
WOOLNOUGH; ALLSOP, 1985; JENKINS, 1999b; MILLAR; MARECHAL; TIBERGHIEN,
1999; NTOMBELA, 1999; IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA, 1999).
Woolnough e Allsop (1985), por exemplo, consideram que as atividades práticas podem
investir em três aspectos relacionados a uma formação mais ampla e profunda na educação em
ciências: a) a construção de habilidades e técnicas; b) a solução de problemas e c) a percepção do
fenômeno. Millar, Maréchal e Tiberghien (1999) polarizam os objetivos das atividades práticas
em duas principais categorias, conteúdo científico e processo de investigação científica, que são
desdobradas em subcategorias a fim de se delimitar com maior clareza aquilo que é esperado que
os alunos façam e aprendam. A articulação entre aquilo que os alunos devem realizar e o que
realmente realizam encaminha uma segunda articulação relativa ao que é esperado que os alunos
aprendam e o que realmente aprendem. Estas relações indicam o nível de eficácia da atividade
uma vez que evidenciam elementos relativos ao processo de aprendizagem dos alunos no curso
da atividade.
51 “Science is now seen to address the material world through diverse, loosely-coupled material and intellectual practices, and the working of these practices is seen to be inescapably socially and institutionally situated”. (JENKINS, 1999b, p.24).
209
8.2 Uma caracterização da atividade de laboratório: extraindo DNA da cebola
A atividade prática proposta é relativamente simples e consiste na extração do DNA do
bulbo da cebola ou de morango, permitindo aos alunos visualizar macroscopicamente o aspecto
dessa molécula responsável pela hereditariedade nos seres vivos.
O processo de extração do DNA de células eucarióticas envolve basicamente três etapas
que se sucedem: a) ruptura das células para liberação dos núcleos; b) desmembramento dos
cromossomos em seus componentes básicos – DNA e proteínas e c) separação do DNA dos
demais componentes a fim de que possam ser visualizados.
O material necessário para a realização desta prática é: cebolas ou morangos; dois
béqueres; banho-maria; água filtrada; sal de cozinha; detergente; álcool etílico a 95% e gelado a
cerca de – 10º C; bastão fino; filtro e gelo moído.
Sobre os procedimentos das atividades, os alunos inicialmente picaram a cebola ou o
morango em pedaços de aproximadamente 0,5 cm. Em um béquer, dissolveram quatro colheres
de sopa de detergente e uma colher de chá de sal em meio a meio copo d’água (aproximadamente
90 ml) e acrescentaram a cebola ou morango. Esta mistura foi levada ao banho-maria por cerca
de quinze minutos. Após esse período, a mistura foi retirada do banho-maria e resfriada durante
cinco minutos. A seguir, os alunos realizaram a filtração da mistura, recolhendo o filtrado em um
segundo béquer. Ao filtrado, adicionaram 90 ml de álcool gelado formando-se duas fases
distintas: uma superior, alcoólica e uma inferior, aquosa. Finalmente, mergulhando o bastão,
homogeneizou-se o filtrado e puderam ser observados filamentos esbranquiçados
correspondentes a aglomerados de moléculas de DNA.
De acordo com Amabis e Martho (2002), os procedimentos empregados nesta técnica são
muito parecidos aos dos laboratórios bioquímicos. Cabe, no entanto, ressaltar mais uma vez que,
ainda que se reconheçam aproximações entre os procedimentos metodológicos desenvolvidos no
laboratório escolar e no laboratório científico, as fronteiras que delimitam esses dois
espaços/tempos de produção de conhecimento são muito bem definidas em relação às suas
intenções, objetivos e significados. Para caracterização da atividade em relação a esses
elementos, apropriamo-nos de um mapa de categorização proposto por Millar, Maréchal e
210
Tiberghien (1999), que contempla duas grandes dimensões: uma primeira, que se refere aos
objetivos e intenções da atividade no que diz respeito aos conteúdos e processos científicos, e
uma segunda relacionada a aspectos da atividade propriamente dita. Este mapeamento permite
definir com maior clareza as possibilidades que a atividade apresenta quando de seu
planejamento, realização e avaliação relativa ao processo de aprendizagem dos alunos.
8.2.1 Sobre os objetivos da atividade
Em relação aos conteúdos, nosso objetivo era que os alunos identificassem e
reconhecessem o DNA como uma longa molécula constituída basicamente de ácido fosfórico,
pentose (desoxirribose) e bases nitrogenadas (adenina, guanina, citosina e timina), presentes em
todas as células de todos os seres vivos. Além disso, queríamos reafirmar algumas inter-relações
já discutidas anteriormente: o DNA situa-se no núcleo celular associado a proteínas em um
arranjo espacial que resulta na formação de estruturas denominadas cromossomos. Assim, para se
isolar esse DNA, seria preciso romper as células bem como os núcleos e ainda desmembrar os
cromossomos.
Sobre os processos envolvidos, a atividade deveria contribuir para que os alunos
aprendessem a utilizar um conjunto de instrumentos próprios de laboratórios e, ainda, a
encaminhar procedimentos técnicos adequados tais como medição, filtração, controle do tempo,
para que, ao final, fosse possível visualizar as moléculas de DNA. Ampliando este domínio, os
alunos deveriam produzir um relatório sobre a atividade realizada que incorporasse objetivo,
material e métodos, procedimentos e resultados.
8.2.2 Sobre as características da atividade
Seguindo as orientações de Millar, Maréchal e Tiberghien (1999), é preciso considerar,
inicialmente, o que esperamos que os alunos façam com os objetos ou materiais observáveis. Em
nossa atividade, a intenção era que os alunos se valessem de observações cuidadosas no curso de
um procedimento laboratorial. O uso correto desses procedimentos garantiria a ocorrência de uma
211
série de fenômenos pois o detergente, além de desintegrar os núcleos e os cromossomos da
célula, liberando o DNA, possui um componente específico, o dodecil (lauril) sulfato de sódio,
que desnatura as proteínas, separando-as do DNA cromossômico; já o álcool gelado em ambiente
salino provoca a aglutinação das moléculas de DNA fazendo com que se forme uma massa
filamentosa e esbranquiçada visível a olho nu. Todas as etapas procedimentais – adicionar, filtrar,
medir – deveriam permitir aos alunos observar qualitativamente um objeto (o DNA) e também as
misturas e filtrados obtidos ao longo do processo.
As atividades práticas não envolvem exclusivamente observação e manipulação de
objetos, mas também a mobilização, uso e ampliação de idéias. A atividade realizada exigia dos
alunos observações sistemáticas a fim de que algumas relações fossem estabelecidas (núcleo –
DNA – desnaturação de proteínas – isolamento do DNA). Tais relações deveriam ser
evidenciadas na produção de um relatório que deveria ser apresentado na aula seguinte. Como
essas eram relações já trabalhadas durante as aulas anteriores, supomos que a dimensão
procedimental encontrava-se apoiada na emergência dessas concepções, que seriam mais bem
sistematizadas no curso da atividade. Portanto, as idéias deveriam orientar a compreensão dos
procedimentos encaminhados ao longo do processo.
Um aspecto a ser contemplado nesta caracterização diz respeito ao grau de abertura da
atividade prática. Um sistema desenvolvido por Herron (apud BORGES et al. 2001) estabelece
quatro categorias, tendo como referência o nível de controle do aluno sobre o experimento52.
Consideramos que a atividade proposta era bastante fechada, estando situada em um nível 1 uma
vez que, como professora, tínhamos o controle da definição dos objetivos, do material
disponibilizado, dos procedimentos a serem seguidos. Entretanto, era responsabilidade do aluno a
construção de uma possível explicação para o resultado obtido na experiência, isolamento e
vizualização de filamentos de DNA. Para isso, deveriam estabelecer relações ente idéias e objetos
e eventos que fossem observados. Além disso, vale dizer que a atividade propunha o trabalho em
pequenos grupos, o que promoveu interações discursivas onde se evidenciava a tensão entre um
discurso dialógico e de autoridade. Nosso papel era apenas orientar os alunos e acolher as
questões e problematizações que formulavam seja sobre um procedimento não muito bem
52 Nas atividades de nível 0, o objetivo, procedimento e até mesmo a conclusão estão sob controle do professor; nas de nível 1 apenas a conclusão é de responsabilidade do aluno; nas de nível 2 somente o problema é proposto ao aluno e nas de nível 3 o aluno é responsável por todo o processo investigativo inclusive a formulação de um problema a ser investigado.
212
compreendido, seja sobre um equipamento que não conheciam, ou mesmo sobre conceitos
propriamente ditos.
A atividade propriamente dita durou em média 80 minutos, quando foram entregues aos
grupos um roteiro contendo os materiais a serem utilizados bem como os procedimentos a serem
seguidos. No curso da atividade, os alunos eram orientados oralmente sobre a execução desses
procedimentos e sobre os registros que deveriam ser realizados para que pudessem elaborar um
relatório com formato científico que seria, posteriormente, apresentado na aula como
sistematização da atividade. Vale dizer ainda que disponibilizamos alguns resumos de trabalhos
apresentados na SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) para que fossem
utilizados pelos alunos no processo de construção de seus relatórios.
Tal como assinalado por Jenkins (1999b), a atividade experimental não pode se reduzir a
uma reprodução de métodos científicos na escola, o que seria bastante infrutífero. É verdade que
a atividade de laboratório exige práticas procedimentais e técnicas que devem ser vistas como
uma dimensão a ser contemplada no processo de ensino-aprendizagem em ciências. Mas isto não
é suficiente pois, para que a atividade seja eficiente, é preciso também desenvolver práticas
intelectuais/cognitivas bem como práticas implícitas ao processo de investigação, que emergem
das articulações que vão sendo construídas entre o mundo das idéias e o mundo dos objetos. É
dessa forma que se encaminha uma nova forma de pensar, ver e falar sobre um objeto.
O quadro a seguir sintetiza as práticas envolvidas no curso da atividade e foi adaptada de
Millar (1991 apud NTOMBEL, 1999):
Práticas cognitivas Práticas técnicas Práticas implícitas ao processo de investigação
• Observar • Articular idéias e
objetos • Registrar aspectos
relevantes • Elaborar explicações • Mobilizar conceitos
para classificar misturas
• Medir • Filtrar • Controlar
tempo • Misturar • Dissolver
• Repetir e rever procedimentos
• Realizar registros • Produzir relatórios a partir
dos procedimentos e resultados obtidos
Quadro 06: Práticas envolvidas na atividade de laboratório
213
Como se pode perceber, há uma série de ações/interações desenvolvidas pelos alunos que
desejamos sejam articuladas a fim de encaminhar o processo de construção de significados e
conceitos de forma mais ampla e profunda. Alguns aspectos serão mais bem explorados nas
seções que se seguem.
8.3 Cenas de uma atividade de laboratório escolar
Passamos agora a apresentar algumas cenas obtidas a partir da videogravação da atividade
de laboratório realizada na segunda aula desta unidade de ensino.
Cena 01: Quando os alunos se familiarizam com o ambiente iniciam os procedimentos
O grupo, formado por Thais, Thaiane, Camila Guimarães, Manuela e Nathan, confere o
material que já se encontra disposto sobre a bancada valendo-se da leitura do roteiro que
acompanha a atividade. Os alunos percebem que faltam alguns itens e os solicitam. Com o
material completo e organizado, iniciam a primeira etapa da atividade. De forma espontânea, há
uma distribuição de tarefas entre os alunos: Manuela e Thaiane picam os morangos; Thais realiza
a leitura do roteiro e também o registro escrito dos processos que vão sendo encaminhados;
Nathan e Camila se encarregam de medir e misturar os outros componentes (sal, detergente e
água). Percebemos uma preocupação, que é do grupo, quanto ao rigor das medidas que devem ser
usadas. A medida da quantidade de água gera dúvidas:
Thais: Coloque 4 colheres de sopa de detergente e uma colher de chá de sal em meio copo de água (...) Viu? Em MEIO COPO de água. (Repete enfaticamente) Camila Guimarães: Mas depende de que copo. Tem dois tamanhos de copo (Referindo-se aos béqueres). Nathan: Copo americano. De 200 ml. Camila: Mas aquele ali não é... Silêncio Camila: Cadê a Lígia?
Com dúvidas em relação à medida de água, Camila confere a quantidade de detergente
que deve ser adicionada. Thaiane interrompe sua tarefa para checar esta informação no roteiro (É,
são quatro colheres de sopa de detergente e uma colher de chá de sal). Os componentes são
214
misturados, mas falta acrescentar a água. Camila começa a medir a água em um béquer separado
e novamente se preocupa com a precisão:
Camila Guimarães: Meio copo de água vai dar isso tudo aqui? (Se refere ao volume completo do béquer). Nathan: Um copo americano não é... Então meio copo é 100 ml.
A entrada em um laboratório exige muitas outras habilidades para além daquelas de
natureza intelectual. No laboratório é preciso reconhecer os instrumentos e substâncias, preparar
soluções misturando adequadamente, observar e interpretar eventos. O objeto de estudo continua
o mesmo – DNA – mas inserido em uma nova ordem, em um novo contexto. Já não basta ler e
falar sobre o DNA, é preciso desintegrar células, desnaturar proteínas, isolar o DNA e torná-lo
visível em meio a uma série de procedimentos e rituais que devem ser bem executados a fim de
que nada dê errado. Como diz Latour (2000, p. 111/112):
De repente, estamos muito mais distantes do mundo de papel do artigo [...]. Sair de um artigo e ir para um laboratório é sair de um arsenal de recursos retóricos e ir para um conjunto de novos recursos planejados com o objetivo de oferecer à literatura o seu mais poderoso instrumento: a exposição visual. Ir dos artigos para os laboratórios é ir da literatura para os tortuosos caminhos da obtenção dessa literatura.
Esse mundo não é de todo conhecido. Muitos alunos chegam ao Ensino Médio sem ter
tido atividades práticas, por isso mesmo o laboratório exerce fascínio, sedução. Os alunos agem
como especialistas, têm atitudes que se aproximam em muito daquelas esperadas por aqueles que
têm o laboratório como lugar de produção. Quando Thaiane, Thais, Camila Guimarães, Manuela
e Nathan assumem seus lugares na bancada do laboratório, consideram que primeiro é necessário
familiarizar-se com os materiais e os métodos que vão ser utilizados. Para isso, conferem a
relação dos materiais e solicitam aqueles que estão faltando. Isto parece trazer uma certa
segurança para o grupo e é um sinal de que podem começar a trabalhar. Esses alunos reconhecem
que a precisão é um fator decisivo para o sucesso no processo científico. Então procuram seguir
rigorosamente as medidas previamente estabelecidas. Entretanto, há conversões a serem feitas.
215
No roteiro, consta que é preciso diluir 4 colheres de sopa de detergente e 1 colher de chá de sal
em meio copo de água. Mas o que significa meio copo de água nesta atividade? Camila considera
que há dois “tamanhos de copos”, referindo-se, na verdade, aos diferentes volumes dos béqueres
que foram disponibilizados. Este é um problema de natureza técnica que precisa ser resolvido
mas que envolve um movimento intelectual de conversão: se um copo americano é de
aproximadamente 200 ml então 100 ml é a metade. É este o volume que deve ser usado. É
Nathan quem estabelece essa relação e resolve o problema enfrentado pelo grupo.
A atividade prática deve envolver situações que possibilitam aos alunos investirem na
solução de problemas. Isso os mobiliza a encontrar saídas, geralmente estabelecendo articulações,
revendo procedimentos, já que devem lidar com o material que ali está disponível. Knorr-Cetina
(1981) discute sobre o senso de “oportunismo” que envolve o processo de produção do
conhecimento científico. Este oportunismo, que caracteriza não indivíduos mas o processo, está
relacionado à influência circunstancial que os cientistas sofrem no curso de seu trabalho. Assim,
por exemplo, devem ajustar objetos, métodos e procedimentos de acordo com o aparato
instrumental disponível53 no laboratório em que atuam. Consideramos, portanto, que o
enfrentamento dessas situações pode contribuir para que os alunos tenham uma visão mais ampla
do conhecimento científico incorporando os domínios conceitual e processual. É como se aquela
ciência “higienizada”, cuja trajetória costuma ser evidenciada de forma linear e cumulativa, fosse
mostrando aos poucos a sua face mais ruidosa e interativa. Os alunos, tal como cientistas, não
trabalham sozinhos, as interações que se realizam no curso da atividade favorecem a resolução
dos problemas que vão surgindo, bem como o direcionamento dos procedimentos propriamente
ditos. A atmosfera é cooperativa.
Cena 2: Quando os alunos observam e enfrentam imprevistos
Fazem parte do grupo Renata, Luise, Thaiana, Alex, Camila Dias e Thalita. Sentados em
sua bancada, controlam o tempo de resfriamento e tentam especificar mais cuidadosamente as
características da mistura obtida na primeira etapa da atividade. Recorrem a conceitos como
53 Este é um dos aspectos abordados pela autora quando discute a relação entre ação científica e contingência situacional.
216
densidade e solubilidade. Há uma divergência no grupo; Thaiana acha que o detergente se diluiu
(dissolveu) na água enquanto Camila Dias acredita que “ele [o detergente] desceu e ficou
embaixo com a água enquanto a cebola subiu porque é menos densa”. Thalita participa da
discussão ao mesmo tempo em que vai fazendo registros escritos para, posteriormente, preparar o
relatório. Finalmente é hora de retirar a mistura do resfriamento. É Renata quem inicia um novo
processo de observação:
Renata: Que cor ficou gente? Ficou normal? Olha só, (Todos os componentes do grupo se concentram na observação do material) aqui tá mais branco ... (Aponta para a região inferior do béquer) a solução com detergente e sal desceu e a cebola ficou em cima... Luise: ... heterogêneo. Renata: Tudo bem, tá heterogêneo, mas você tem que falar que o sal e o detergente desceram e a cebola... Camila Dias: ... porque é menos denso do que a solução... (Thalita registra).
Nesse ponto relêem o roteiro e iniciam o processo de filtragem. Considerando que o
processo é muito lento, testam mecanismos que possam acelerá-lo (mexem com o bastão,
suspendem o filtro do funil). Thalita assume esta tarefa e Camila Dias, agora, passa a fazer os
registros. O processo segue mas um imprevisto acontece. O filtro se rompe e os alunos fazem
manobras para não perder o material. Resolvido isto, conseguem terminar a filtração.
A observação é uma prática inerente à atividade de laboratório. Consideramos que essa
observação pode se realizar em vários níveis: um primeiro, de natureza exclusivamente descritiva
e que apenas relata o que está sendo visto, sentido ou ouvido; um segundo, quando a essa
descrição são articulados conceitos a fim de se caracterizar melhor o que está sendo visto, sentido
ou ouvido, parece ser um movimento em direção a uma interpretação do fenômeno; e, finalmente,
um terceiro quando, a partir da articulação entre o observável e o conceitual, procura-se inferir
sobre a ocorrência de um fenômeno possibilitando a elaboração de hipóteses que o expliquem ou
o relacionem a outros fenômenos.
Na atividade realizada, a observação foi uma prática comum entre os estudantes nas
diferentes etapas que se sucederam. A observação era sempre acompanhada de registros escritos
que eram feitos e refeitos à medida que a discussão entre os alunos acontecia. Como apontado por
Millar (1991 apud NTOMBEL, 1999), a observação é uma prática cognitiva que efetivamente
217
vai sendo especificada de forma a se tornar cada vez mais orientada, direcionada e sistematizada
em relação ao objeto de estudo e ao contexto de uma sala de aula de Biologia, adquirindo um
significado diferente daquele das observações realizadas no cotidiano. Millar, Maréchal e
Tiberghien (1999) sinalizam ainda que essas observações não são puras ou imunes a influências.
Ao contrário, podem ser influenciadas pelo professor ou pelas próprias idéias que os alunos
carregam.
Nas observações realizadas não apenas por esse grupo, percebemos que os alunos tentam
transcender a dimensão exclusivamente descritiva. É verdade que os alunos avaliam a cor, o
cheiro, mas buscam mobilizar conceitos que ajudem na interpretação do que está sendo visto e
como está sendo visto. Vale a pena dizer que a única orientação da professora era para que as
observações fossem feitas com bastante cuidado. O grupo então procura explicar o porque da
disposição dos componentes da mistura. Começam por considerar a solubilidade do detergente e
do sal (diluiu, não diluiu). Posteriormente, Renata em particular alerta para a diferente coloração
que aparece na mistura. É possível observar duas fases distintas e Renata e Luise classificam a
mistura como sendo heterogênea. Não deixam de estar certas pois há uma fase composta pela
cebola e outra, formada pelo detergente, sal e água. Estes três últimos componentes formariam
uma mistura homogênea entre eles podendo também ser chamada de solução. Camila parece
intuir esta posição ao advertir que a “cebola seria menos densa que a solução”. Desta forma,
introduz o conceito de densidade para explicar o fato da cebola ter flutuado em meio àquela
solução. Tudo indica que há um consenso sobre os aspectos observados, uma vez que Thalita faz
o registro e o grupo dá prosseguimento à etapa subseqüente relativa à filtração da mistura.
A filtração é uma etapa bastante simples, mas também aquela que exige mais paciência
dos alunos. Por conta do detergente, a solução é bem concentrada e o processo de filtração pode
ser demorado. Percebendo este aspecto, os alunos passam a investir em técnicas que apressem
este processo: em alguns momentos utilizam o bastão de vidro para mexer a solução que está no
filtro, em outros retiram o filtro com a solução do funil deixando-o suspenso. Nestas tentativas
acabam por ter o filtro rompido. Este fato poderia ter comprometido o trabalho produzido mas o
grupo encontra alternativas para não perder o material que já está filtrado e continuar avançando
com a filtração do que falta. Muitas mãos agem, “cabeças” também pois, no processo de
investigação científica, há lugar para o imprevisto que deve ser solucionado. Neste contexto, o
que se impõe é saber lidar com esta imprevisibilidade fazendo (re)ajustes, (re)adaptando,
218
corrigindo, desviando. Como diz Latour (2000, p. 111 ), num laboratório “não somos postos logo
de cara com o objeto que queremos ver, somos postos diante de outro mundo no qual é necessário
preparar, focalizar, corrigir, reestruturar, ensaiar”. E supomos que estas não são práticas que
possam ser ensinadas como quem ensina que o DNA é uma molécula de dupla hélice,
responsável pela hereditariedade. São práticas implícitas ao processo de investigação. Assim, nas
atividades de laboratório, incorporam-se práticas que vão sendo apreendidas, possibilitando aos
alunos não apenas ter diante dos olhos um objeto que até então era apenas imagem no livro
didático, mas também os (des) caminhos que tornam possível a materialização desse objeto.
Cena 3: Quando os alunos procuram explicar o que aconteceu com a molécula de DNA
Lorena, Thales, João e Camila Assunção estão na última etapa da atividade. Adicionaram
o álcool e com o bastão fazem movimentos circulares para misturar a solução. Lorena observa
enquanto realiza a tarefa. João e Camila Assunção também observam enquanto Thales é
responsável pelos registros:
João: Olha, o DNA é o ponto branco. Camila Assunção: Vira. Finos... João: Tá vendo uma coisinha branca bonitinha? É o DNA... Camila Assunção: Você tá vendo a cebola. (Solicita a Lorena que misture mais a solução e continua observando atentamente). Os pedaços grandes são pele de cebola, os filamentos... finos são o DNA (Aponta para o material). Professora... Professora: ... agregados de moléculas de DNA... Thales: O DNA da cebola ele... Professora: ... ele é um filamento... Thales: ele quebrou? João: Nós agregamos o DNA, né, professora? Thales: Aí botou o álcool... Professora:(Inaudível) Thales: Botou o álcool e aí juntou? Professora: É, agregou. Thales volta a fazer registros.
219
É a última etapa da atividade. Os alunos devem agora adicionar o álcool a fim de agregar
as moléculas de DNA tornando-as visíveis. Feito isso e com o olhar fixado na solução, os alunos
procuram reconhecer o DNA. João supõe já tê-lo encontrado. Enxerga o DNA como “pontos
brancos e bonitinhos” que se destacam na solução. Camila Assunção, no entanto, é mais
cuidadosa, vai além da observação pura e simples e resgata suas lembranças sobre o conceito de
DNA. Esse conceito orienta o seu olhar o que lhe permite diferenciar os resíduos ainda presentes
na solução das moléculas de DNA pois, como diz, são “filamentos... finos”. Talvez, nesse
momento, integre dois mundos distintos com os quais teve contato: aquele do livro didático e
agora o dos instrumentos. Ou, como diriam Millar, Maréchal e Tiberghien (1999), Camila
articula o domínio das idéias e o domínio dos objetos observáveis. Talvez o filamento que veja
não corresponda àquelas imagens do livro didático, mas como não reconhecê-lo como sendo o
DNA? De acordo com Latour (2000), na interface entre o mundo do papel e o mundo do
laboratório, é produzido um híbrido; uma imagem bruta que está emergindo de um processo em
que houve manipulação e controle e que, a nosso ver, vai sendo adaptada, ajustada aos conceitos
de que a aluna dispõe.
Identificado o DNA e reafirmada sua natureza filamentosa, Thales, na qualidade de relator
do grupo, quer saber qual é a função do álcool no processo. Talvez porque reconheça que o DNA
é uma longa cadeia filamentosa, Thales supõe que o álcool tenha “quebrado” o DNA. Neste
contexto de produção, consideramos que esta expressão se refira, na verdade, a uma
fragmentação da molécula de DNA. De fato, a molécula de DNA precisa ser fragmentada54 para
que, aglutinada pelo álcool, se torne visível. João, antecipando-se à professora, afirma: Nós
agregamos o DNA, né, professora? Essa forma de dizer de João evidencia que se assume como
sujeito e autor do trabalho. Não foram as propriedades químicas do álcool que permitiram a
agregação do DNA, mas a ação/intervenção realizada por alunos concretos em um contexto de
produção. O mundo dos instrumentos, do qual emergem novos objetos, é um mundo habitado por
sujeitos que interferem, criam, isolam, desnaturam e agregam substâncias.
54 Vale dizer que se esticássemos uma única molécula de DNA de um cromossomo teríamos aproximadamente um filamento de 2 metros.
220
Cena 04: Quando os alunos observam além do observável
Rafael, Maiara, Catherine, encerram os procedimentos. Têm diante de si uma solução que
deve ser misturada para que os filamentos de DNAs possam, enfim, ser visualizados. Diante dos
filamentos que desfilam em sua frente. Rafael anuncia: Olha a adenina, olha a timina, a
citosina...
Dissemos anteriormente que as observações não se dão no vazio. São acompanhadas e
orientadas por conceitos e idéias. O que vemos e como vemos depende dessas idéias e conceitos
que sustentamos.
E o que Rafael vê? Não apenas um agregado de filamentos que poderiam se confundir
com outros resíduos ainda presentes na solução. Rafael enxerga um filamento constituído por
adenina, timina, citosina... as bases nitrogenadas cuja seqüência no DNA encerra o código da
vida. Na verdade, a linguagem da vida é uma série linear de As, Ts, Cs e Gs. São essas bases que
conferem à molécula de DNA o seu caráter de hereditariedade. Rafael enxerga o DNA em sua
dimensão molecular. Para isso, resgata o aprendido e vivido em aulas anteriores, assim como o
faz Camila Assunção na cena anterior. Mas Rafael vai além do observável, justapondo a imagem
filamentosa que seus olhos testemunham à imagem molecular apresentada pelos livros didáticos.
Vale também destacar que, quando trabalhamos o DNA, os aspectos mais ressaltados se referem
justamente às bases de DNA e as ligações que se estabelecem entre elas (A-T e C-G), explicando
a configuração da molécula como uma dupla hélice. Aliás, nos esquemas didáticos, o DNA é
representado como uma longa cadeia de As, Ts, Cs e Gs.
Neste estudo, assumimos que a aprendizagem em Biologia envolve a apropriação de um
conjunto de ferramentas que permitem aos alunos encaminhar novas formas de pensar e falar
sobre um objeto ou fenômeno. A atividade de laboratório permite ao aluno não apenas a
apropriação dessas ferramentas, incluem procedimentos metodológicos e, talvez, principalmente,
permite que conexões sejam estabelecidas. Assim é que o uso de atividades experimentais pode
dar visibilidade a um mundo que, até então, se mantinha invisível. É como se uma caixa preta
fosse aberta permitindo aos alunos estabelecer relações entre conceitos e processos, garantindo
221
um entendimento mais amplo já que estas relações estão vinculadas a um sistema cultural
específico e também relacionadas com o próprio movimento da prática científica. Na visão de
Arcá; Guidoni; Mazzoli (1990), a educação científica requer a construção de modos específicos
de observar e de relacionar-se com a realidade, o que envolve a articulação intrínseca entre
modos de pensar, falar e fazer igualmente específicos. Entendemos que, quando Rafael anuncia
sua observação, evidencia a articulação entre esses modos específicos de pensar, falar e fazer.
8.4 Dos fatos aos textos: ou de quando os alunos produzem relatórios
Ao final da atividade de laboratório, os alunos deveriam produzir um relatório. Para
orientação deste relatório, apresentamos alguns resumos publicados nos Anais da SBPC. Nossa
intenção era oferecer-lhes algumas referências que os aproximassem da estrutura dos textos
científicos – objetivo, material e métodos e resultados – bem como dos elementos sintáticos que
os organizam pois, como já assinalado por vários autores (SUTON, 1996; MORTIMER;
CHAGAS; ALVARENGA, 1998), a aprendizagem em ciência exige a aprendizagem de uma
linguagem que é também de natureza científica.
Este aspecto nos parece relevante pois, como considerado por Bakhtin (1997), cada
esfera da atividade humana gera “tipos relativamente estáveis” de enunciados constituindo
“gêneros do discurso”. Na perspectiva bakhtiniana, não aprendemos apenas as formas prescritivas
da língua, seus componentes estruturais e gramaticais, mas também gêneros discursivos. Os
gêneros discursivos refletem as condições específicas de produção de enunciados bem como a
própria esfera da atividade “por seu conteúdo semântico (temático) e por seu estilo verbal, ou
seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais,
mas também e, sobretudo, por sua construção composicional”. (Bakhtin, 1997, p. 279).
O texto científico, portanto, representa um gênero de discurso e como tal apresenta suas
especificidades. Knorr-Cetina (1981) ressalta que os relatórios científicos, deliberadamente,
apagam muito do que acontece no laboratório, ainda que seu propósito seja apresentar um
“relato” da pesquisa. Nesta passagem do laboratório para o texto escrito, algumas habilidades
literárias devem ser mobilizadas a fim de garantir a neutralidade e objetividade científicas. As
estratégias retóricas mais comuns reveladas pelo texto científico incluem o uso de uma linguagem
222
direta e técnica, que separa “informação” de “interpretação”, o uso da voz passiva indicando um
apagamento dos sujeitos e a rejeição a qualquer sentença que revele juízo de valor. Os relatórios
científicos tendem a ser retoricamente padronizados em uma estrutura bastante conhecida:
abstract, introdução, material e métodos, resultados e discussões. Nesta perspectiva, sugere-se
que uma pesquisa, enquanto construção/produção de um laboratório, é perfeitamente similar à
construção/produção de outros laboratórios (KNORR-CETINA, 1981). A ênfase recai, portanto,
numa linearidade das etapas da metodologia científica.
Bruner (1998), analisando o pensamento paradigmático, nos diz que:
[...] muitas hipóteses científicas ou matemáticas têm início como pequenas histórias ou metáforas, mas elas atingem sua maturidade científica através de um processo de conversão em verificabilidade, formal ou empírica, e seu poder na maturidade não repousa sobre suas origens dramáticas (p.13).
Nesta conversão, muitos processos de negociação, ajuste, seleção e desvio que se realizam
na produção do conhecimento científico são deixados de fora. Procura-se transcender o
particular, o local. Em outras palavras, as dimensões social e cultural próprias da produção
científica não são contempladas/incorporadas nos textos científicos. Para Latour, o conhecimento
científico está encerrado em verdadeiras caixas-pretas e “por mais controvertida que seja sua
história, por mais complexo que seja seu funcionamento interno, por maior que seja a rede
comercial ou acadêmica para a sua implementação, a única coisa que conta é o que se põe nela e
o que dela se tira” (LATOUR, 2000, p.14).
Contrapondo o pensamento paradigmático ao pensamento narrativo, Bruner (1998)
destaca, entre outros aspectos, que este último “trata de ações e intenções humanas ou similares
às humanas e das vicissitudes e conseqüências que marcam seu curso” (p.14). A narrativa,
enquanto forma de discurso e de organização da experiência, “é composta por uma seqüência
singular de eventos, estados mentais, ocorrências envolvendo seres humanos como personagens
ou atores” (BRUNER, 1997, p. 46). Na narrativa, diferentemente do pensamento e da linguagem
científica, há uma ênfase em se situar a experiência no tempo e no espaço enquanto referências
necessárias à produção de significados.
223
Mortimer, Chagas e Alvarenga (1998), realizando uma análise das respostas de
vestibulandos em uma questão aberta de Química, evidenciam o quanto a linguagem usada pelos
alunos se situa “em algum ponto de um contínuo que vai da linguagem científica à linguagem
comum” (p. 8). Em outras palavras, a linguagem utilizada pelos alunos agrega elementos da
linguagem científica e da linguagem cotidiana apresentando-se como um híbrido.
Feitas essas considerações gerais sobre linguagem científica e linguagem cotidiana,
retomemos as análises dos relatórios produzidos pelos alunos. Nessas análises, evidenciamos
aspectos relativos à estrutura do texto produzido, à formulação dos objetivos e à elaboração da
seção materiais e métodos e dos resultados.55
De um modo geral, todos os relatórios contemplam, de forma explícita, uma organização
padronizada que identifica: objetivo, materiais e métodos e resultados, supostamente seguindo as
orientações estabelecidas pelos resumos que serviram como referências. (No anexo XIX, alguns
relatórios produzidos pelos alunos).
Em relação aos objetivos, percebemos que nos relatórios A e B, são formulados já na
própria introdução do relatório. Já nos relatórios C, D e E há uma preocupação em se fazer uma
pequena apresentação, geralmente relativa à molécula de DNA, antes de definir o objetivo como
ilustramos abaixo:
“O DNA é muito importante. Esse determina todas as nossas
características”. (Relatório D).56
“Conseguir visualizar o DNA a olho nu não é impossível [...]” (Relatório
E).
A definição do objetivo da atividade propriamente dita segue algumas variações. Nos
relatórios A e C são utilizados verbos no infinitivo e no relatório E um substantivo indicando uma
tendência a processos de nominalização:
55 Organizamos aleatoriamente os relatórios produzidos pelos grupos a partir das letras A, B, C, D e E a fim de facilitar a apresentação da análise dos mesmos. 56 Tal como na análise das concepções dos alunos apresentada no capítulo 5, preservamos a escrita original dos alunos sem realizar correção ortográfica.
224
“Observar os filamentos de DNA desenrolados”. (Relatório A – grifos
da autora)
”[...] descobrir o DNA da cebola”. (Relatório C – grifos da autora)
“O objetivo deste trabalho foi a extração do DNA de células
eucariontes [...]”. (Relatório E – grifos da autora)
Nestes casos, os grupos se aproximam da linguagem científica quando observamos um
apagamento dos sujeitos enquanto autores/narradores das ações e um movimento de substituição
dessas ações por eventos ou processos nominais tais como observação, descoberta e extração.
Vale dizer que, no relatório E, este objetivo principal (extração do DNA) é desdobrado
em uma seqüência de grupos nominais para expressar processos que, no contexto da atividade,
correspondem a objetivos específicos: a) ruptura das células; b) desmembramento dos
cromossomos e c) separação do DNA.
Já nos relatórios B e D, os objetivos são apresentados na voz ativa identificando-se
claramente a presença de um sujeito que deve exercer uma determinada ação. A identificação
desse sujeito é dada pela construção do enunciado na primeira pessoa do plural. Neste caso os
grupos fazem uso de elementos pertinentes a uma linguagem cotidiana.
“O objetivo deste experimento foi que conseguíssemos observar os filamentos de DNA contidos no bulbo de uma cebola”. (Relatório B – grifos da autora)
“Esse trabalho tem por objetivo vermos e entendermos os filamentos de DNA”. (Relatório D – grifos da autora)
Consideramos que a seção “materiais e métodos” é a que mobiliza maior investimento dos
alunos pois procuram descrever com certa riqueza de detalhes os procedimentos encaminhados
225
no curso da atividade. Entretanto, como assinalado por Knorr-Cetina (1981), em um relatório
científico, a apresentação dos métodos não evidencia a estrutura dinâmica que caracteriza o
processo de fabricação do conhecimento científico. Geralmente, os métodos são definidos como
um catálogo de manipulações seqüenciais, isolado de seu contexto de produção e de justificativas
que fundamentem sua realização. Na visão da autora, a elaboração de um relatório científico é um
verdadeiro exercício de despersonalização.
Quando analisamos os relatórios produzidos pelos alunos, percebemos que a escrita
transita entre uma linguagem científica e uma linguagem cotidiana. Talvez neste momento seja
oportuno tecer considerações a respeito de cada um dos relatórios.
No relatório A, por exemplo, os alunos fazem uma apresentação mais esquemática
indicando uma seqüência de eventos e ações que se sucedem temporalmente. O narrador está
presente e é indicado pela primeira pessoa do plural dos verbos utilizados:
- Primeiro começamos cortando o morango. - Misturamos em um pote: água destilada, sal, detergente - Colocamos o pote em banho-maria e o colocamos no gelo para resfriá-lo - Depois retiramos o pote do gelo e coamos a mistura - Depois de coar, fomos jogando o álcool no pote pela borda e mexemos. (Relatório A)
No texto produzido, observamos que, além do uso da voz ativa que caracteriza a
linguagem cotidiana, os alunos empregam termos que pertencem a um contexto que lhes é
bastante familiar tais como: pote, coar, jogar que poderiam ser substituídos respectivamente por:
béquer, filtrar, adicionar.
No relatório B, o narrador também está marcadamente presente através do uso da primeira
pessoa do plural. Os processos relativos aos procedimentos realizados na atividade aparecem
como uma seqüência linear de eventos. Entretanto, o grupo faz uso da voz passiva em dois
momentos distintos; quando iniciam a descrição: “[...] foi selecionada uma cebola inteira para a
experiência [...]” e ao seu final: “[...] foi adicionado, meio copo de água [...]”. Além disso,
notamos que neste relatório, os alunos se apropriam de expressões técnicas como: “béquer”,
226
“composto”, “adicionado”... Estes aspectos podem sugerir a influência das características do
texto cientifico utilizado como referência.
Neste relatório evidenciamos dois aspectos que nos parecem relevante comentar. Um
primeiro diz respeito ao movimento dos alunos em apresentar descrições mais detalhadas e
explicações para observações realizadas e discutidas durante a atividade que, geralmente, não são
incluídas em textos científicos. Os trechos a seguir ilustram este movimento:
“[...] até que ela resultasse num composto homogêneo de cor esbranquiçada e relativamente encorpado”. “[...] a cebola sofreu desidratação devido ao sal, e apresentou menor densidade, se depositando na parte superior do Becker”. “[...] o detergente e o sal devido à maior densidade, se depositando na parte superior do Becker [....]”.
O segundo aspecto é relativo à referência que os alunos fazem a possíveis entraves no
processo de extração do DNA. Assim o grupo escreve: “Ao coarmos o composto, com auxílio de
um funil e de um filtro de papel, houve certa dificuldade no escoamento do material”. Do ponto
de vista da escrita científica atual, “ruídos” desta natureza não devem ser incorporados na
apresentação de um trabalho científico. A entrada desses elementos na produção dos alunos acaba
imprimindo marcas contextuais e personalizadas que evidenciam um tensão/continuidade entre a
linguagem científica e a linguagem cotidiana.
No relatório C, encontramos, de forma mais acentuada, um movimento entre
personalização e despersonalização do texto. Os alunos iniciam a produção fazendo uso da voz
ativa. O sujeito está presente no uso que fazem da primeira pessoa do plural, particularmente
quando descrevem os processos relativos à adição dos ingredientes: “Picamos a cebola em
pedaços de aproximadamente de 0,5 cm e misturamos com quatro colheres de detergente e uma
colher de sal em um recipiente com 90 ml de água”. A partir deste ponto, a linguagem dos alunos
assume características que a aproximam mais da científica já que manifesta uma tendência à
nominalização através do uso que fazem do verbo na voz reflexiva: “A mistura tornou-se grossa,
esbranquiçada sendo uma mistura heterogênea”, posteriormente transformada em voz passiva:
227
“A mistura foi colocada em banho-maria”. Este movimento dos alunos também aparece na
apresentação dos resultados quando usam a voz da passiva: “O álcool ao ser adicionado, foi
observado o aparecimento de filamentos [...]”, que poderia ser substituída por grupos nominais:
“Foi observado que com a adição do álcool [...]”. Esses recursos sintáticos utilizados pelos
alunos situam seus textos escritos em um continuum que sugere uma transição gradual e talvez
inconsciente da linguagem coloquial ou do senso comum para a linguagem científica.
Já o relatório D apresenta-se com uma estrutura marcadamente vinculada à da linguagem
cotidiana. Os alunos narram em toda a extensão do texto os processos como uma seqüência linear
de eventos. Fragmentos extraídos do texto ajudam a ilustrar esta característica:
“Para isso utilizamos uma fruta fácil de manuzear... o morango! [...] Separadamente adicionamos quatro colheres de sopa de detergente [...] Adicionamos o morango [....] tiramos rapidamente do banho-maria e o colocamos diretamente no gelo [....] Mergulhamos o bastão no copo [...]”. (Relatório D)
Os processos não estão congelados mas se constituem em um conjunto de ações
realizadas por um sujeito que está personificado pois, em todas as frases, fazem uso da primeira
pessoa do plural, a exceção da apresentação dos resultados quando recorrem à indeterminação do
sujeito (Assim, afinal, pode-se ver, o filamento de DNA do morango).
O relatório E talvez seja aquele que se apresenta mais detalhado, indicando um
movimento de pesquisa do grupo para a sua elaboração. Desta forma, transcende ao caráter
exclusivamente descritivo do relatório, introduzindo elementos explicativos, desdobrando as
substâncias em suas fórmulas e sinalizando suas possíveis funções ao longo do corpo do texto.
Vejamos alguns exemplos:
“Primeiro foi picado a cebola (composição: fósforo, ferro, cálcio, vitaminas C, e do complexo B)”.
“Um dos componentes do detergente, o dodecil (ou lauril) sulfato de sódio, desnatura as proteínas, separando-as do DNA cromossômico [...]”.
228
“[...] após esse tempo foi resfriado num copo com gelo durante 5 minutos para retornar à temperatura ambiente e sofrer um choque térmico [...]”. (Relatório E)
Do ponto de vista sintático, o grupo faz uso predominantemente da voz passiva (... foi
picado a cebola... O bulbo da cebola foi usado por apresentar células grandes...) passando
posteriormente para a voz passiva pronominal (Ao se misturar as soluções.... adicionou-se
aproximadamente uma cebola picada...). Isto sugere que o texto do grupo está ancorado em
características que o aproximam mais de uma linguagem científica. Entretanto, ao longo da
produção, os alunos recorrem a voz ativa (um dos componentes... desnatura .... separando-as ...)
indicando uma tendência à personificar substâncias químicas, o que é uma característica da
linguagem cotidiana.
Em relação à apresentação dos resultados da atividade, os relatórios A, B, C e D limitam-
se a evidenciar se os filamentos puderam ou não ser visualizados. O relatório D ainda faz
menção, de forma bem sutil, ao papel do álcool nesse processo (... observamos que o álcool uniu
os filamentos de DNA, possibilitando a sua visualização). Apenas o relatório E realiza uma
discussão mais elaborada sobre a relação entre álcool gelado e ambiente salino e as noções de
solubilidade e insolubilidade para explicar a visualização do DNA a olho nu. Vejamos a produção
deste grupo:
“O álcool gelado, em ambiente salino, faz com que as moléculas de DNA se aglutinem, formando uma massa filamentosa e esbranquiçada. Quando as moléculas são solúveis em um dado solvente, elas se dispersam neste solvente e não são, portanto visíveis [...] quando as moléculas são insolúveis em um dado solvente, elas se agrupam tornando-se visíveis [...]”. (Relatório E)
Tal como considerado por Mortimer, Chagas e Alvarenga (1998), a linguagem escrita dos
alunos agrega elementos sintáticos e semânticos tanto da linguagem cotidiana quanto da
linguagem científica. Na análise desses relatórios, os alunos transitam entre a voz passiva, a voz
ativa e formação de grupos nominais. Este trânsito sugere, de um lado, uma não-consciência dos
229
alunos em relação aos processos de despersonalização e descontextualização que são próprios da
ciência; de outro lado, podemos pensar em uma conversão gradual para o uso da linguagem e
estrutura do trabalho científico, já que encontramos marcas dos textos utilizados como referência.
9. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: SISTEMATIZANDO E APROFUNDANDO O
TEMA DE ESTUDO
Assim a aprendizagem põe frente a frente, em uma interação que nunca é uma simples circulação de informações, um sujeito e o mundo, um aprendiz que já sabe sempre alguma coisa e um saber que só existe porque é reconstruído. (MEIRIEU, 1998, p. 79).
Neste capítulo, apresentamos a análise relativa aos trabalhos produzidos pelos alunos ao
final da unidade de ensino. Como já mencionado no capítulo 4, solicitamos, logo ao inicio das
atividades, que os alunos, organizados em grupo, selecionassem um dos temas propostos –
clonagem, células-tronco e organismos transgênicos - a fim de aprofundar e sistematizar o estudo
em torno de questões que envolvem o DNA, mobilizando conceitos trabalhados relacionando-os
a novas situações. Consideramos que o caminho investigativo é uma alternativa didático-
pedagógica que abre a possibilidade para o envolvimento dos alunos em atividades situadas e
significativas e, por isso mesmo, para a construção de significados mais próximos daqueles que
queremos compartilhar.
Cabe ressaltar que, na produção desses trabalhos pelos alunos, não estavam em jogo
apenas os conceitos que sustentam essas discussões, mas também as práticas realizadas pelos
alunos que, de alguma forma, evidenciam um processo de re-descrição ou re-elaboração dos seus
conceitos iniciais em novos níveis e dimensões do conhecimento biológico. Para nós, este aspecto
é decisivo quando nos propomos a pensar a aprendizagem em uma perspectiva mais ampla.
Assim, consideramos que o exercício da pesquisa que envolve a consulta a diferentes fontes de
231
informação que, devem ser confiáveis, a sistematização de leituras, a seleção dos aspectos a
serem abordados já que se tratavam de temáticas abrangentes, incluindo questões de ordem ética,
e, finalmente, a organização do material em formato de apresentação pública, contribui de forma
decisiva para que ocorra a integração desses diferentes níveis e dimensões do conhecimento
biológico. Tomando como referência a noção de engajamento disciplinar produtivo proposto por
Engle e Conant (2002), podemos considerar que a realização desse trabalho viabiliza a
aproximação desses alunos com práticas escolares relativas a uma disciplina específica: a
Biologia. Além disso, aos alunos foi dada autoridade no que se refere à definição e organização
do trabalho. Isto significa que os alunos são posicionados como “membros de uma comunidade
que podem mudar a forma de projetos conjuntamente [...] e mesmo se tornarem especialistas na
sala de aula, a quem outros possam recorrer [...] (ENGLE; CONANT, 2002, p.404).
Nessa análise, trazemos, de inicio, uma visão geral dos trabalhos apresentados. Em
seguida, selecionamos algumas seqüências que evidenciam uma certa forma de organizar e usar
os conceitos elaborados ao longo da unidade de ensino. Por isso mesmo privilegiamos as relações
estabelecidas pelos alunos para introdução dos temas a serem abordados, a aplicação de conceitos
a novas situações, a retomada de conceitos e idéias que anteriormente se mostravam conflituosos.
Finalmente, trazemos a posição que os alunos assumem frente a estas questões, que não se
limitam à sala de aula. Isto contribui para situar o conhecimento biológico como um sistema
cultural que atravessa o mundo social e até mesmo influencia na construção de novas formas de
relações sociais posto que a apropriação de novos conhecimentos pode reconfigurar
dialeticamente sujeitos e mundo.
9.1 Estrutura geral e formas de abordagem da apresentação dos trabalhos dos alunos
Em linhas gerais, podemos considerar que os trabalhos seguem uma estrutura padrão de
apresentação que se inicia com uma breve introdução, seguida do desenvolvimento e da
conclusão, quando os alunos se posicionam contra ou a favor da questão tratada. Todos os grupos
fazem uso de slides apresentados em data show. Tais slides sistematizam conceitos, perspectivas
históricas e também esquemas relativos às técnicas para produção de organismos transgênicos,
células tronco e clones e se revelam bastantes didáticos pois apóiam os alunos em suas
232
explicações ao mesmo tempo que se constituem em uma memória que pode ser compartilhada
pela turma, favorecendo a construção de debates e discussões. Talvez por conta da necessidade
de preparação e organização dos materiais obtidos acerca dos temas em questão, os alunos
tenham podido esclarecer e ampliar alguns aspectos que porventura tenham ficado obscuros ao
longo das atividades desenvolvidas ou mesmo outros que não tenham sido contemplados.
Uma variação dessa apresentação é a realizada pelo grupo de Lorena, Camila Assunção,
João e Thales que se valem de uma dramatização alternada com uma discussão mais sistemática
dos conceitos. Assim, o grupo começa por simular uma relação entre um casal de namorados que
culmina em uma gravidez não planejada. Ao buscarem o atendimento médico, representado pelo
Dr. Thales, o casal solicita informações sobre células-tronco, já que tem “ouvido falar do
congelamento de células do cordão umbilical quando do nascimento de bebês”. Esse é o sinal
para que a discussão sobre células-tronco aconteça, inclusive com a entrada de uma das alunas,
Letícia, caracterizada de célula-tronco. Na representação que realizam, as células-tronco
constituem um conjunto indiferenciado de células. A apresentação segue seu curso e, ao final,
após uma passagem de tempo – nove meses – as células-tronco dão lugar à mesma aluna agora
caracterizada como um bebê em um indicativo da ocorrência de processos de diferenciação
celular que culminam com a formação dos diferentes tecidos e órgãos humanos.
Um outro grupo, formado por Nathan, Manuela, Thaiane, Thais, Luise e Camila
Guimarães, discute a clonagem, exibindo ao final da apresentação um pequeno documentário
extraído da Discovery que reúne imagens e uma entrevista com um especialista em clonagem
terapêutica. Isto sugere a preocupação do grupo quanto ao aprofundamento da pesquisa e também
a mobilização de referências específicas que se situam para além da sala de aula e podem
sustentar a discussão encaminhada na apresentação dos trabalhos. Aliás, o mesmo comentário
pode ser estendido a todos os grupos uma vez que, ao longo das apresentações, os alunos fazem
referências a pesquisadores da área e institutos reconhecidos como locais de produção dessas
pesquisas. Este é o caso de Isamar que, ao discutir a pesquisa sobre células-tronco, faz referência
a uma especialista em genética da Universidade de São Paulo, talvez com o intuito de legitimar e
validar as informações que o grupo apresenta.
Na perspectiva de Engle e Conant (2002) sobre aprendizagem enquanto engajamento
disciplinar produtivo, deve-se construir uma atmosfera em que os alunos se sintam responsáveis
233
por outros e por normas disciplinares e isto significa que “o professor e outros membros da
comunidade de aprendizagem devem encorajar a responsabilidade do aluno para garantir que o
trabalho intelectual seja correspondente a conteúdos e práticas estabelecidas por ‘acionistas
intelectuais’, sejam eles pertencentes ou não ao espaço imediato de aprendizagem [...] ” (ENGLE;
CONANT, 2002, p. 405). No engajamento disciplinar produtivo, os alunos devem reconhecer a
importância de se consultar outras fontes e pessoas como parte do processo de compreensão e
apropriação em um determinado domínio. Neste movimento, os alunos não necessariamente
precisam aceitar ou se alinhar às posições daqueles que lhes servem de referência, mas agir em
relação a eles de uma maneira receptiva. Este aspecto enfatizado pelos autores refere-se à
dimensão coletiva que envolve a construção do conhecimento científico na sala de aula uma vez
que “cada membro de uma comunidade de aprendizagem não é por si mesmo uma autoridade
mas um ‘acionista intelectual’ entre muitos outros na sala de aula e além dela”. (ENGLE;
CONANT, 2002, p. 405).
9.2 Tecendo relações para situar as temáticas
Durante a apresentação dos trabalhos, percebemos que a maioria dos grupos estabelece
algum tipo de relação para introduzir e situar o tema abordado. Tais relações integram conceitos e
definições, ou ainda, conceitos e situações contextuais mais amplas contribuindo para a inserção
e articulação do conhecimento biológico a esferas sociais, econômicas e mesmo políticas. Assim,
a apresentação dos trabalhos, de certa forma, evidencia a ciência como uma construção histórica,
social e culturalmente situada, que envolve versões, modelos explicativos sobre o mundo. O uso
de relações pelos alunos, logo no inicio da apresentação dos trabalhos, sugere uma tentativa de
contextualizar a temática e também o reconhecimento de que o entendimento mais profundo da
ciência pressupõe a construção de uma rede que demanda mecanismos e estratégias específicas
para a construção de significados. Alguns exemplos que passamos a apresentar ilustram estes
movimentos.
O primeiro grupo a se apresentar é formado pelos alunos Lorena, Camila Assunção, João
e Thales e trata da clonagem. Logo em sua introdução, resgatam a organização geral dos seres
vivos mais complexos como os humanos dizendo:
234
“O organismo completo é formado por vários tipos de células, tecidos e órgãos”.
Este é um conceito tido como supostamente construído e compartilhado pela turma à
medida que Thales logo em seguida enuncia: “Mas isto todos sabem!” Com isto parece
estabelecer-se um certo estado de inrtersujetividade que irá garantir e sustentar a seqüência da
apresentação do trabalho com a introdução do conceito chave relativo a “células-tronco”:
“Além de células maduras, que realizam funções, o organismo tem um pequeno número de células que não tem função específica, a não ser repor aquelas que, por vários motivos, vão morrendo ao longo do tempo – as células-tronco”.
Com este movimento, os alunos estabelecem uma primeira relação conceitual
reconhecendo a existência de um processo de diferenciação celular que ocorre marcadamente
ainda no estágio inicial do desenvolvimento embrionário mas também ao longo da vida do ser
vivo e, através de mecanismos bioquímicos ainda não bem esclarecidos, promoverá a ativação e
inativação de genes nas células promovendo a variedade de tipos celulares. Este é um conceito
decisivo para se compreender o sentido da pesquisa com células-tronco e, mais especificamente,
a diferença entre células-tronco adultas e embrionárias que será abordada por todos os grupos que
tratam desse tema.
Um outro grupo, formado por Isamar, Tatiana, Júlia, Larissa, Thaiana e Luigi, realiza um
movimento diferenciado para a introdução dessa mesma temática. Isamar inicia situando o que se
tem “ouvido dizer” acerca de células-tronco, enumerando alguns aspectos positivos que
justificam o investimento em pesquisas dessa natureza. Neste momento, a aluna, aparentemente,
assume uma certa visão “utilitária” da ciência ao depositar uma crença nos benefícios que a
mesma possa trazer para a humanidade em geral. Assim Isamar enuncia:
“Bom gente, nosso trabalho é sobre células-tronco... é... muito se tem ouvido dizer sobre isso. Células-tronco podem servir para o tratamento de certas doenças que hoje não têm cura. É... além disso, tem várias discussões entre políticos, cientistas, religião para (inaudível) essa tecnologia ir fundo para poder melhorar a vida de várias pessoas. Tem vários prós e contras e toda essa introdução que eu falei vai ser desenvolvida em nosso trabalho”.
235
Dessa forma, a aluna sinaliza para um debate que está posto acerca dos estudos com
células-tronco e que atinge diferentes segmentos da sociedade – políticos, científicos e religiosos.
Isto sugere que o grupo reconhece a dimensão social e ética que envolve a pesquisa com células-
tronco e de um modo geral a pesquisa científica, o que será confirmado ao longo da apresentação
que o grupo realiza.
O único grupo que trata de organismos transgênicos é formado por Alex, Thalita, Luisa,
Renata, Suzane e Camila Dias e inicia a apresentação com uma definição geral de engenharia
genética. No movimento que realizam, os alunos acabam por resgatar um pouco da história da
ciência trazendo exemplos que ilustram o início dos estudos que envolvem a manipulação
genética. Isto ajuda a situar a produção científica como um processo em construção. Alex inicia
dizendo:
“Bom gente, olha só... prá gente entender o que é transgênico, primeiro temos que ter algumas noções do que é engenharia genética. Ela consiste, principalmente, em manipular os genes e... criar combinações desses genes em organismos diferentes. É... os primeiros experimentos que envolveram a manipulação desse material genético em animais e plantas foi a transferência desses genes para leveduras e bactérias que crescem normalmente em grandes quantidades.”
A fala de Alex evidencia uma preocupação do grupo em estabelecer uma relação
conceitual – engenharia genética e transgênico – como mecanismo necessário para o
entendimento mais amplo de uma determinada questão. Tendo estabelecido esse primeiro vínculo
conceitual, o grupo, através de Renata, passa a mapear os supostos benefícios trazidos pelos
avanços nesta área de pesquisa particularmente no que se refere aos de ordem econômica. As
palavras de Alex:
“Bom gente através da Engenharia Genética, eu posso... quer
dizer os cientistas podem ver a fragilidade que um organismo apresenta e, a partir daí, os cientistas poderiam criar uma vacina que pudesse suprir essa necessidade que o organismo apresentou. É... através da engenharia genética os cientistas podem criar antibióticos, fazerem remédios e até mesmo criar substâncias que o organismo não produz. É claro, através da engenharia genética poder criar as plantas... plantas mais resistentes a doenças [...] com maior qualidade nutricional”.
236
Com este percurso o grupo, tal como o anterior, parece filiar-se, em princípio, a um
“cientificismo” onde a ciência é vista como necessária ao progresso e bem estar da humanidade.
A partir desse ponto, formulam então um conceito geral para organismos transgênicos que irá
sustentar o desenvolvimento do trabalho. É Talita quem define:
“Transgênicos resultam de experimentos da engenharia genética nos quais o material genético de um ser vivo é removido para outro ser vivo visando (inaudível) características específicas entre ambos os seres [...]”.
A apresentação desses grupos sugere uma aproximação ao principio vygotskyano de que
os conceitos científicos devem ser incorporados e integrados a uma rede conceitual. Nas palavras
de Vygotsky:
[...] Ademais, sem nenhuma relação definida com outros conceitos, seria impossível até mesmo a coexistência de cada conceito em particular, uma vez que a própria essência do conceito e da generalização pressupõe, a despeito da doutrina da lógica formal, não o empobrecimento mas o enriquecimento da realidade representada no conceito [...] é evidente que isto não pode ocorrer por outra via psicológica a não ser pela via de estabelecimento de vínculos complexos, de dependências e relações entre objetos representados no conceito e na realidade existente. Deste modo, a própria natureza de cada conceito particular já pressupõe a existência de um determinado sistema de conceitos, fora do qual ele não pode existir. (VYGOTSKY, 2001, p. 359).
Já o grupo formado por Nathan, Manuela, Thaiane, Thais, Luise e Camila Guimarães, ao
abordarem a clonagem humana, toma como referência inicial o texto “Dessacralização da vida”57.
Manuela começa por definir o significado da expressão “dessacralização” dizendo: “A palavra
‘sacra’ significa santo e o prefixo ‘des’ significa assim... deixar de ser”, para logo em seguida
relacionar esta expressão ao contexto da discussão que se anuncia:
“Então, tipo assim... a dessacralização da vida quer dizer tirar o que tem de magnífico na vida... é pegar uma pessoa e vai lá tipo e interfere...”
57 Disponível em http://www.comciencia.br
237
A fala de Manuela é interrompida por Camila Guimarães que chama a atenção para o
seguinte aspecto:
“[..]. porque todo mundo tem a vida como algo de divino. A vida não deixa de ser algo divino. Então o que acontece? A clonagem tira essa ideologia de vida que a gente tem.”
Ao fazer esta intervenção, Camila Guimarães parece definir que a dimensão ética em
torno da clonagem marcará o tom da apresentação do grupo, o que parece ser confirmado quando
vemos surgir algumas controvérsias entre os integrantes do grupo com os alunos da turma.
Assim, para além de conceitos, os alunos, enquanto sujeitos históricos, vão assumindo suas
posições frente às temáticas apelando, por vezes, a justificativas que revelam um sentimento
religioso que não coincide com os ideais da produção científica. Por outro lado, a fala das alunas
nos permite outra consideração no que diz respeito aos processos de re-significações que alguns
conceitos sofrem à medida que vivenciamos o avanço do conhecimento científico. Astolfi e
Develay (1995), por exemplo, evidenciam as mudanças de sentido que se produzem na história
de dois conceitos: os de fecundação e de calor. Supomos que as alunas desejam evidenciar este
aspecto pois, até há algum tempo, a concepção de um novo ser humano dependia exclusivamente
do encontro de gametas femininos e masculinos e, numa perspectiva mais biológica, das
combinações aleatórias dos genes transmitidos por essas células. Hoje, já se fala em clonagem
humana, um processo de reprodução que envolve manipulação e dispensa a figura do pai ou da
mãe, ou como diz Camila Guimarães, “A clonagem tira essa ideologia de vida que a gente tem”.
Neste sentido, as alunas parecem apontar para dois aspectos relativos à produção científica: a
manipulação e o controle.
Seguindo-se a Camila Guimarães, Thais enfatiza a diferença entre clonagem artificial e
natural, o que, para nós, é importante pois, como sinalizado nas análises dos questionários para
levantamento das concepções prévias, a clonagem é entendida predominantemente como um
processo artificial realizado no interior dos laboratórios. Ao mesmo tempo esse grupo, a exemplo
de outros, mobiliza os conceitos de reprodução sexuada e assexuada, ressaltando o primeiro como
um mecanismo que garante maior variabilidade genética dos organismos enquanto o segundo
produz cópias genéticas. Neste sentido, evidenciam a clonagem como um mecanismo de
238
reprodução que se processa naturalmente entre algumas espécies. Realizadas estas articulações
conceituais, os alunos apresentam um primeiro questionamento: “Quais são os limites da
clonagem em humanos?” Com esta questão o grupo parece reconhecer os riscos e incertezas que
acompanham as pesquisas que envolvam a manipulação gênica.
9.3 Fazendo uso de conceitos anteriormente construídos para explicar novas situações
Durante o desenvolvimento do trabalho, percebemos que os alunos fizeram circular
antigos significados que emergiram ao longo da realização da unidade de ensino e são então
mobilizados para explicar novas situações que vão surgindo. Para explicar este movimento que
foi recorrente ao longo da apresentação dos trabalhos, selecionamos uma situação para ilustrá-lo.
A seqüência que transcrevemos a seguir faz parte da apresentação do trabalho do grupo
que trata de organismos transgênicos. Neste momento da apresentação, os alunos desse grupo
falam acerca de plantas transgênicas:
1. Suzane: As plantas em certos lugares..... Alterações de sabor, tamanho, textura....
2. João: Você tem uma plantação de laranjas transgênicas, por exemplo, tem como ter ... dar laranja transgênica e também laranja normal?
3. Camila Dias: Se você modifica o organismo primeiramente você vai gerar o organismo, você não vai pegar o organismo e injetar nele assim. Você vai criar ele, botar o DNA ... o transgene nele, no DNA dele. Então o que é transgênico vai ser transgênico. A reprodução passa a ser assexuada. Então a célula duplica o filamento de DNA... e também o transgene... passa de pai para filho e também todos os descendentes vão ser transgênicos.
4. Júlio: Camila, a gente aprendeu na aula de Geografia que a soja (inaudível) ela foi adaptada pra ser desenvolvida aqui. Então é uma planta transgênica?
5. Camila Dias: É. Muitos casos são. Porque muitas sojas (inaudível) tem pragas, bichos que atacam, ela tem que ser modificada, ela tem que ter alguma coisa nela que faça evitar esse ataque de insetos, doenças. Então é preciso que se modifique o gene dela para que ela se adapte e produza bem pois nem todo lugar é suscetível a essas plantas.
6. Isamar: (inaudível) podem fazer mal pra nós que estamos nos alimentando dela?
7. Camila Dias: Olha tem uma pesquisa ... muitas são contra dizem que não. Em alguns casos pode fazer porque ninguém prova, não tem ciência que prove isso por enquanto. Eu acho que tem que investir neste setor pra você saber, pra você ter
239
certeza ... Antes que você ofereça um produto pro consumidor você tem que ter certeza de que ele vale a pena.
Suzane inicia sua apresentação situando os efeitos percebidos em uma planta transgênica
como, por exemplo, o sabor, o tamanho e a textura. Dessa forma, evidencia uma relação entre
uma dimensão visível e observável e uma dimensão estrutural relativa à manipulação no material
genético de um organismo. João apresenta uma questão ao grupo que parece acompanhar o
movimento de Suzane articulando o observável – uma plantação que produz laranjas – ao
estrutural – laranjas transgênicas e normais, ou seja, organismos que tiveram ou não seu material
genético manipulado. Camila Dias poderia ter respondido apenas sim ou não mas, valendo-se dos
conceitos de genes e transgenes e ainda de reprodução assexuada, procura construir uma resposta
coerente para dar conta da questão proposta ao grupo. Camila Dias, inicialmente, procura
evidenciar a manipulação gênica que se processa para se obter um transgênico: “Você vai criar
ele, botar o DNA... o transgene nele, no DNA dele”. Em seguida, recorre ao mecanismo de
autoduplicação do DNA dizendo: “Então a célula duplica o filamento de DNA... e também o
transgene”. Ou seja, uma vez transferido um gene para uma molécula de DNA, à medida que
esse DNA se duplica, há igualmente duplicação desse gene que será transmitido às gerações
seguintes já que a reprodução assexuada reduz as chances de variabilidade genética “então o que
é transgênico vai ser transgênico”. A aluna recupera, portanto, um conceito trabalhado durante
as aulas para elaborar sua resposta. Podemos pensar, a exemplo de outras situações, que o
significado relativo à duplicação do DNA é incorporado pela aluna e se constitui em um
instrumento que lhe permite pensar sobre uma nova situação – a de uma plantação de
transgênicos – a partir de uma perspectiva biológica. A nosso ver, esses diferentes conceitos que
acabam por integrar sua explicação lhe permitem uma visão mais ampla e profunda da temática
em questão. Neste caso, a aluna elabora uma explicação já que importa um modelo teórico para
se referir a um fenômeno específico (MORTIMER; SCOTT, 2002).
No curso da discussão, Julio formula uma questão especificamente para Camila. O aluno
introduz no contexto de discussão uma informação trazida das aulas de Geografia pressupondo-a
como uma construção coletiva e compartilhada (a gente aprendeu na aula de Geografia...).
Dando visibilidade ao caráter polifônico da palavra, tão discutido por Bakhtin, o aluno recupera a
voz de discussões anteriores e de outro contexto para trazer um novo elemento que possa ampliar
240
e aprofundar a discussão. Do ponto de vista conceitual, Julio parece reconhecer que a adaptação
de algumas plantas a determinadas condições ambientais decorre de modificações gênicas, o que
situa seu pensamento em uma perspectiva evolucionista neodarwinista, ainda que esses conceitos
não tenham sido explicitados no curso da discussão. Mais que isso, o aluno traz o exemplo do
cultivo de soja transgênica, o que tem sido motivo de grande polêmica em diversos paises,
incluindo o Brasil. Camila Dias é cuidadosa e evita a generalização (É. Muitos casos são). Seu
enunciado evidencia que a produção de plantas transgênicas está diretamente relacionada a
interesses econômicos que buscam reduzir a competição entre as espécies (muitas sojas
(inaudível) tem pragas, bichos que atacam, ela tem que ser modificada, ela tem que ter alguma
coisa nela que faça evitar esse ataque de insetos, doenças) o que viabiliza o aumento da
produtividade (Então é preciso que se modifique o gene dela para que ela se adapte e produza
bem). Neste momento da discussão, Isamar intervém problematizando os efeitos do consumo de
alimentos transgênicos pelo homem (... podem fazer mal pra nós que estamos nos alimentando
dela?). A dimensão social da ciência vai sendo então delineada, à medida que há um
reconhecimento por parte dos alunos que o uso de plantas transgênicas é objeto de intensos
debates por parte de especialistas pois ainda existem questionamentos sobre se ele faz ou não mal
à saúde ou mesmo ao ambiente. O conhecimento biológico vai sendo integrado a uma dimensão
contextual mais ampla que ultrapassa os limites da sala de aula de Biologia. A resposta elaborada
por Camila Dias revela as incertezas e paradoxos que acompanham o próprio desenvolvimento da
ciência (Olha tem uma pesquisa ... muitas são contra dizem que não. Em alguns casos pode fazer
porque ninguém prova, não tem ciência que prove isso por enquanto).. Ou seja, a ciência é capaz
de produzir soluções para muitas questões sociais mas, ao mesmo tempo, oferece riscos para a
sobrevivência da humanidade já que nem sempre é capaz de produzir diagnósticos seguros acerca
da utilização de seus produtos.
Nesta seqüência, dois aspectos podem ser considerados. Primeiro, a evidência de uma
apropriação conceitual (duplicação de DNA e organismos transgênicos) que é então mobilizada
para analisar e interpretar novas situações. Neste momento, o que parece estar em jogo é a
manipulação de um certo suporte teórico fornecido pela ciência e construído durante as aulas para
melhor entender situações significativas e relacionadas ao tema em estudo. Segundo, a assunção
pelos alunos da ciência como um processo em construção que decorre da atividade humana. A
visão de uma ciência que tem sempre uma resposta concebida como uma verdade absoluta vai
241
cedendo lugar a uma ciência capitaneada por interesses que necessariamente não caminha por um
terreno de grandes certezas.
9.4 Evidenciando a superação de possíveis instabilidades conceituais
A seqüência que transcrevemos faz parte do trabalho de Nathan, Manuela, Thaiane, Thais
e Camila Guimarães cujo tema era a clonagem humana. A seqüência inicia-se com a fala de
Nathan que pretende apresentar as duas técnicas para a produção de clones: a clonagem por
substituição nuclear e a clonagem por fusão celular. No primeiro caso, ocorre a transferência do
núcleo de uma célula somática, por exemplo, da glândula mamária de uma ovelha para um óvulo
desprovido de núcleo doado por uma segunda ovelha. Obtido por esta técnica, o clone será
considerado incompleto pois o DNA mitocondrial será do óvulo. No segundo caso, ocorre a fusão
entre a célula somática de uma ovelha e o óvulo desprovido de DNA nuclear de uma outra
ovelha, havendo a produção de um clone completo já que terá DNA mitocondrial de ambas as
células. Vale ressaltar que, dos três grupos que discutiram a clonagem, apenas este faz referência
ao DNA mitocondrial no processo de clonagem. Talvez porque tenha sido esse o grupo que
enfrentou mais intensamente o conflito relativo ao uso de três organismos no processo de
clonagem quando na verdade acreditavam que apenas um organismo fosse necessário justamente
por se tratar de uma forma de reprodução assexuada. Vejamos a seqüência:
1. Nathan: Bom, agora eu vou explicar como funciona a clonagem. Bem, a clonagem funciona da seguinte maneira; a que utiliza toda a célula e a que utiliza somente o núcleo. Bem, eu vou explicar primeiro a que utiliza o núcleo. Bom, você vai pegar uma doadora, certo? Vai tirar uma célula dela e retirar o núcleo que tem o material genético. Aí, você vai pegar o óvulo de uma outra doadora, aí vai retirar o núcleo, o material genético e vai implantar aquele núcleo nesse óvulo. E através de choques elétricos ele vai unificar...é, fecundar. Ele vai começar a se reproduzir. E tem o outro caso que foi o caso da Dolly que foi pegar toda a célula, no caso da Dolly a célula mamária, e implantar no óvulo sem núcleo e conseguir fazer com que ele fecundasse. Pode ser através de choques elétricos essa fusão e... ou pode ser através desse vírus aqui... Aqui tem todo o processo (aponta para o esquema).
2. João: Qual é o mais eficiente?
3. Nathan: Olha, eu tenho uma idéia. Quando você implanta o núcleo no óvulo ele vai continuar com as mitocôndrias que também contém material genético. Aí tipo o que
242
acontece? Não é aquela coisa 100% idêntica. E aí quando você usa toda a célula mamária você vai ter material genético da mitocôndria do ser que está sendo clonado também.
4. Camila Guimarães: Ou seja, todos os genes do mesmo ser.
5. Nathan: Exatamente. Porque se você usa só o núcleo, vai ficar o núcleo dali [da célula da glândula mamária a ser clonada] mas com o DNA mitocondrial do óvulo (aponta no esquema). O interessante é que você a partir do momento que faz essa fusão não pode implantar em nenhuma das outras doadoras. Vai ter que implantar numa terceira ... a mãe de aluguel, ela vai gerar o filho. E esse filho como era de se esperar não vai ter as características dessa mãe de aluguel e sim da pessoa que doou o núcleo, no caso essa aqui (aponta no esquema).
6. Professora: Vocês conseguiram descobrir alguma coisa a mais sobre a... o uso dessas três ovelhas diferentes?
7. Nathan: Não. Só mesmo para confirmar a clonagem.
8. Manuela: Pra dizer que a clonagem é bem sucedida.
9. Camila Guimarães: É, por exemplo, pra dizer que ela é 100% a cópia da que doou a célula com núcleo e você passou por três organismos e só tem as características de uma. Ou seja, a clonagem é 100% idêntica.
10. Renata: Mas professora, não poderia usar o óvulo da doadora da célula? No caso porque foi ela que doou [inaudível].
11. Camila Guimarães: Mas isso que é legal. Você tem três pessoas com diferentes genes...
12. Renata: Mas no caso a terceira...
13. Camila Guimarães: Exatamente. O clone vai ter a genética apenas da doadora do óvulo.
14. Nathan: Não, da doadora...
15. Camila Guimarães: É da célula mamária.
Percebemos que Nathan faz uso de um discurso marcadamente narrativo para apresentar
as técnicas da clonagem. As etapas do procedimento metodológico correspondem a uma
seqüência singular de eventos (Você vai pegar uma célula doadora, certo? Vai tirar uma célula
dela e retirar o núcleo que tem o material genético...). Há um movimento do aluno em situar a
experiência no tempo e no espaço como uma estratégia para que significados sejam produzidos
(BRUNER,1998). Ao mesmo tempo, o aluno deixa entrever em seu enunciado que realiza uma
re-significação para o termo fecundação, considerando-o como o processo de estimulação que
promove o início do desenvolvimento embrionário e não como o encontro de gametas como
biologicamente é definido.
243
Concluída essa longa narrativa em torno das técnicas de clonagem, João quer saber qual
delas seria mais eficiente. A resposta formulada por Nathan é bastante interessante, uma vez que
parece expressar a incorporação de vozes com as quais havia dialogado em aulas anteriores
tornando-as sua própria voz (Olha, eu tenho uma teoria). Com este modo de dizer, recorre
novamente a um discurso narrativo para introduzir as diferenças relativas aos clones produzidos
em cada uma das técnicas tendo como referência o DNA mitocondrial, objeto de discussão
introduzido pela professora quando da realização do trabalho com o texto “Dolly, o núcleo e os
clones”. Camila Guimarães complementa a explicação de Nathan que, na seqüência de turnos,
elabora um novo enunciado procurando inicialmente reforçar “sua” idéia (Porque se você usa só
o núcleo, vai ficar o núcleo dali [da célula da glândula mamária a ser clonada] mas com o DNA
mitocondrial do óvulo) para, em seguida, introduzir mais um elemento relativo à terceira ovelha
que funciona como “mãe de aluguel”. Assim, Nathan revela a natureza predominantemente social
dos enunciados e, diríamos, da construção de significados, à medida que neles ecoam as vozes de
uma discussão realizada em outra atividade que analisamos no capítulo 7. Nas palavras de
Bakhtin: “uma palavra, uma vez que é nossa, mas nascida de outrem, ou dialogicamente
estimulada por ele, mais cedo ou mais tarde começará a se libertar do domínio da palavra do
outro”. (BAKHTIN, 1993, p.148).
Essa apropriação da palavra alheia no processo de construção de significados ganha
novamente visibilidade a partir da intervenção da professora no turno 6, quando pergunta aos
alunos se haviam obtido alguma informação complementar que justificasse o uso dos três
organismos na clonagem. O enunciado da professora deixa entrever que algo já fora dito sobre
essa questão e é resgatado pelos alunos nos turnos 7, 8 e 9. Particularmente, Manuela e Camila
Guimarães parafraseiam o enunciado de Nathan valendo-se de outras palavras ou acrescentando
novos elementos num indicativo de querer marcar ou confirmar um determinado significado que
fora construído. Com esse movimento, abordam tanto aspectos relativos aos procedimentos
metodológicos da pesquisa científica enfatizando a necessidade de se validar um resultado obtido
em uma experimentação quanto aspectos conceituais, já que reconhecem que o organismo
produzido é clone daquele que doou a célula com núcleo e é nele que se encontra o material
genético. Supomos que esses alunos tenham solucionado os conflitos que manifestaram em
discussões anteriores. Essa suposição parece ser confirmada nos turnos seguintes, quando Renata,
no turno 12, expressa a mesma dúvida que esses alunos tiveram anteriormente (Mas professora,
244
não poderia usar o óvulo da doadora da célula?). Ainda que a pergunta tenha sido dirigida à
professora, Camila Guimarães assume a situação e, mais uma vez, recupera o “já dito”
evidenciando uma apropriação tanto conceitual quanto metodológica acerca da clonagem (Mas
isso que é legal. Você tem três “pessoas” com diferentes genes...). Os alunos revelam uma certa
reorganização de idéias iniciada em uma fase anterior. Assim, o que antes era uma perturbação,
um problema para o grupo passa agora a ser mais uma possibilidade para explicar e entender
situações específicas que é compartilhada com toda a turma.
Nesta seqüência, vale tecer algumas considerações sobre a intervenção de Renata que
somente agora questiona o uso de células de organismos diferentes na clonagem. A aluna havia
participado de um outro grupo para a realização da atividade que discutia o texto “Dolly, o núcleo
e os clones” e, naquele momento, esta questão não aparecera como uma perturbação ou
incômodo para ela ou para o grupo do qual fazia parte. Esse aspecto indica que a construção de
determinados significados em detrimento de outros depende também dos elementos que vão
sendo focalizados e problematizados no curso das interações que se estabelecem entre alunos e
professores. Inferimos que o grupo de Renata privilegiara em suas discussões outros elementos,
como a distribuição eqüitativa do material genético em todas as células do corpo, como
evidenciam as respostas elaboradas e registradas pelo grupo para as questões propostas naquela
atividade.
9.5 Evidenciando as dimensões éticas que envolvem a produção científica
No percurso que realizam durante a apresentação dos trabalhos, os grupos procuram
posicionar-se contra ou favor das pesquisas relativas à clonagem, células-tronco e organismos
geneticamente modificados. De um modo geral, o posicionamento dos alunos é orientado pelos
supostos benefícios e pelas incertezas que acompanham os resultados e usos que essas pesquisas
possam trazer para o cidadão e para a humanidade. É como se os alunos colocassem numa
balança os pontos positivos e negativos dessas produções e tentassem estabelecer uma relação de
custo-benefício. Este é o caso do grupo que discute organismos transgênicos e que, ao longo da
apresentação, enfatiza os efeitos econômicos desse tipo de manipulação gênica que tem
viabilizado, por exemplo, o aumento da produtividade de grãos e a possibilidade de se conferir
245
maior resistência às plantas cultivadas ao ataque de insetos58. Entretanto, esses alunos, como já
destacamos anteriormente, reconhecem a ciência como um processo em construção que, por
vezes, não é capaz de dar respostas seguras para os possíveis efeitos decorrentes do uso dessas
biotecnologias pois, como diz Camila Dias: “Em alguns casos pode fazer porque ninguém prova,
não tem ciência que prove isso por enquanto”. Ao final do trabalho, o grupo ressalta o caráter
manipulativo da ciência e, particularmente, das pesquisas que envolvem a manipulação genética:
“[...] Primeiro você não pode prever o que vai acontecer realmente quando o organismo é modificado. Você não sabe... o ser humano, às vezes, quer se passar por Deus. Não é uma coisa contra nem a favor mas você não pode prever aquilo [...]”
Essa ciência que manipula e controla é problematizada, principalmente, pelos grupos que
tratam da clonagem. Ainda que façam referências à clonagem terapêutica, que procura clonar
genes de interesse como aqueles responsáveis pela produção da insulina, a clonagem humana
ocupa um lugar central nas discussões que são encaminhadas pelos alunos e funcionam como
parâmetro para o posicionamento que assumem. Uma questão que parece perturbadora para esses
alunos diz respeito ao efeito psicológico causado nos indivíduos originados a partir da clonagem.
Douglas, por exemplo, aborda essa questão trazendo para o contexto o exemplo tratado na novela
“O Clone”, exibida em 2001, época de efervescente polêmica em torno da possibilidade da
clonagem humana, uma vez que o anúncio da produção de um primeiro clone de mamífero obtido
a partir de uma célula somática adulta, a famosa Dolly, se fizera em 1996. Ao mesmo tempo, essa
preocupação dos alunos sugere que suas concepções sobre clones humanos se banham em um
certo determinismo biológico esquecendo, portanto, que os indivíduos resultam de uma interação
estreita entre genes e ambiente.
Entretanto, esses alunos reconhecem que a manipulação genética, de alguma forma,
confere aos cientistas a capacidade de realizar em laboratório um processo seletivo que até então
era pensado como uma função própria do ambiente tal como proposto pelo conceito de “seleção
natural” de Darwin e melhor desenvolvido a partir da perspectiva neodarwinista. Como enuncia
58 Uma variedade de milho transgênico teve incorporado em seu genoma um gene de bactéria que produz uma substância tóxica aos insetos mas inofensiva aos mamíferos.
246
Luise: “Eles [cientistas] querem atingir a perfeição, produzir seres com características cada vez
melhores”.
Considerando esse nível de manipulação e ainda a própria concepção de vida, alguns
alunos se posicionam contra as pesquisas que envolvem a clonagem tanto reprodutiva quanto
terapêutica. Camila Guimarães, por exemplo, adverte que essas pesquisas “[...] transformam o
sentido da vida [...] e a vida é um dom”. Mais ainda, a aluna também sinaliza para as incertezas
da ciência dizendo: “Você não pode produzir sem pensar no futuro”.
Já os grupos que discutem células-tronco assumem de maneira mais positiva o
investimento nessa área de pesquisa. Para isto, consideram os benefícios que podem ser
desfrutados pelos indivíduos portadores de algumas doenças tais como aquelas degenerativas do
sistema nervoso, ou ainda, de alguma seqüela decorrente de acidentes que comprometam o
funcionamento neuro-motor e cardíaco. Entretanto, esta adesão não se faz irrestritamente. Lorena
e Thales, por exemplo, simulam um curto diálogo durante a apresentação do trabalho a fim de
evidenciar a polêmica que está posta entre igreja e ciência quanto à manipulação de embriões na
pesquisa com células-tronco. Ao final do trabalho, reconhecem que a pesquisa com células tronco
se relaciona com a de clonagem terapêutica e formulam a seguinte conclusão: “Nós entendemos
que não devemos avançar nessas questões com seres humanos enquanto não houver um avanço
significativo nas questões de clonagem animal, devendo ser discutidas nas próximas gerações”.
De forma semelhante, Luigi problematiza o descarte de embriões na pesquisa com células-tronco
mas também introduz informações sobre novas técnicas desenvolvidas que permitem extrair as
células do embrião sem danificá-lo59. Assim, posicionam-se “a favor pois pode ajudar várias
pessoas com doenças que hoje não têm cura [...] e acrescentam, que “[...] a pesquisa com
células-tronco é o grande avanço da medicina no século XXI”.
Em relação a esses trabalhos produzidos pelos alunos, vale destacar uma organização
coerente que articula diferentes conceitos biológicos bem como conceitos biológicos a situações
concretas e, por vezes, vivida. Assim, assistimos a apresentações que fazem circular vários
conceitos tais como reprodução sexuada e assexuada, células somáticas e células reprodutivas,
fases do desenvolvimento embrionário, mas agora situados em novos contextos e situações. Isto
permite, por um lado, evidenciar a apropriação de conceitos anteriormente construídos através de 59 Neste caso, as células-tronco são extraídas em uma fase do desenvolvimento embrionário chamada mórula quando não causa danos ao embrião e são qualificadas como células-tronco embrionárias precoces.
247
seus usos e aplicações a novas situações. Por outro, insere o conhecimento biológico em
dimensões mais amplas como a social, cultural e ambiental posto que questões relativas aos
efeitos decorrentes da produção científica que envolve a manipulação gênica são problematizadas
pelos alunos ao longo das apresentações. Dessa forma, os alunos, por vezes, realizam
movimentos que parecem romper com uma visão cientificista reconhecendo, por exemplo, os
interesses econômicos bem como o caráter manipulativo que acompanham o processo de
produção do conhecimento científico. Nesse sentido, percebemos que os alunos mobilizam
conceitos de natureza biológica a fim de interpretar situações e este talvez seja o caminho para se
enfrentar de modo mais crítico e seguro questões sociocientíficas que demandam a tomada de
decisões e ações.
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Somos uma espécie intersubjetiva por excelência. Isso é o que nos permite ‘negociar’ os significados quando as palavras perdem o mundo [...](Bruner, 1997).
Neste estudo, focalizamos a organização e a dinâmica interativa de uma sala de aula de
Biologia a fim de identificar e analisar as práticas epistêmicas aqui definidas como os
movimentos que acompanham o processo de significação dos alunos. Este estudo enfrenta,
portanto, o desafio de buscar as especificidades que marcam essas práticas a fim de poder
caracterizar e assumir a sala de Biologia como uma comunidade de práticas. Para isto, nos
apoiamos teoricamente em dois eixos principais de discussão; um primeiro, que nos permite uma
apropriação mais consistente da noção de aprendizagem que se inscreve em uma perspectiva
sociocultural (WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998; WERTSCH, 1998 e WERTSCH,
1999); e um segundo, que se refere a uma articulação entre estudos de natureza etnográfica
relativos às práticas sociais e culturais que acompanham e marcam o processo de produção do
conhecimento científico (LATOUR, 2000 e KNORR-CETINA, 1981 e 1992) e as pesquisas no
campo da Educação em Ciências que, tomando como objeto de investigação a sala de aula, têm
evidenciado as dinâmicas interativas que organizam e constituem esse espaço-tempo de
aprendizagem.
Nesse sentido, acompanhamos uma tendência na pesquisa em Educação em Ciências que
desloca os estudos sobre o entendimento individual dos estudantes sobre fenômenos específicos
249
para a construção/produção de significados em contextos interativos como a sala de aula
(MORTIMER; SCOTT, 2002). Assim, a aprendizagem é assumida como uma prática social e
decorre de processos de intensas negociações pelos sujeitos que, no curso de interações situadas
em contextos específicos de produção, revelam a natureza polissêmica e polifônica dos
significados e uma tendência a privilegiar aqueles relativos a uma área de conhecimento que é a
Biologia. Podemos dizer então que a aprendizagem, enquanto processo de produção de
significados em contextos específicos, envolve tensão e, às vezes, conflitos mas também
alinhamentos e compartilhamentos. Neste movimento, predominantemente social, a emergência
de novos significados se constituem como co-construções, como produções coletivas, que
garantem um certo nível de entendimento orientado por uma certa maneira de falar, fazer e
pensar acerca de questões e fenômenos biológicos.
Vale dizer que, neste estudo, optamos por uma abordagem “multifocal” de análise que
ressalta, muito claramente, o sucesso dos alunos ao se apropriarem dessas formas de falar e
pensar em Biologia e a desenvoltura com a qual as mobilizam para enfrentar tanto questões da
vida cotidiana como do contexto escolar/biológico. Consideramos que a possibilidade de
“enxergar” esse sucesso dos alunos se deva, particularmente, à escolha dessa abordagem
multifocal (focalizando tanto o texto dos alunos como as suas falas em situações variadas, de
resolução de problemas e outras) que acompanha os processos discentes por um período de dois
meses, correspondente à unidade de ensino estudada.
Assim, estas reflexões finais propõem-se inicialmente a sintetizar os resultados
alcançados e, para isso, procuram orientar-se a partir da estruturação dos capítulos que focalizam
as concepções dos alunos, a dinâmica e os processos de significação na sala de aula de Biologia.
Tendo como base está síntese, é possível assinalar algumas implicações pedagógicas, os limites
desta investigação e apontar perspectivas futuras decorrentes de questões que permanecem em
aberto requerendo novas investigações.
10.1 O que ganha visibilidade na sala de aula de Biologia: uma primeira aproximação a
partir das concepções dos alunos acerca de DNA e da dinâmica pedagógica
250
Tomar a sala de aula como objeto de investigação, por certo, não é uma tarefa fácil.
Situada em espaço social complexo e multifacetado, vamos assistindo, do lugar de professora e
pesquisadora que ocupamos, um entrelaçamento de vozes que fazem revelar diferentes histórias,
perspectivas de mundo e concepções que se põem em contato com um conhecimento histórico e
socialmente construído que desejamos que seja compartilhado. O encontro/desencontro entre o
que os alunos sabem e como sabem e o conhecimento a ser ensinado parece marcar a construção
de uma dinâmica própria às interações que se constituem na sala de aula de Biologia.
Tomamos neste estudo, como ponto de partida, as concepções que os alunos sustentam
acerca de temáticas relacionadas ao DNA (ácido desoxirribonucléico), apresentadas no capítulo
5. Em nosso questionário, realizamos um esforço para propor questões que pudessem revelar a
articulação que os alunos realizam entre um mundo percebido e um mundo molecular. Para isto,
apresentamos algumas situações que têm circulado com certa freqüência em contextos para além
dos escolares, tais como: radiação, síndrome de Down, clones e transgênicos, cuja base
explicativa, direta ou indiretamente, se encontra na estrutura e funcionamento molecular dos
organismos. A análise desses questionários revela a riqueza do pensamento discente que, de um
modo geral, expressa concepções que estão bem próximas daquelas que pretendemos ensinar na
unidade de ensino. Assim, esses alunos reconhecem e se valem de um conhecimento situado no
nível molecular e microscópico, como DNA e núcleo, para orientar as respostas que elaboram
como, por exemplo, nas previsões e explicações para a situação experimental proposta com a alga
Acetabularia e os efeitos das radiações. Este movimento de ir além da dimensão descritiva
também pode ser percebido nas respostas sobre organismos transgênicos e clones quando
apontam para a manipulação que se opera geneticamente nesses organismos. Entretanto, em
ambos os casos, esta manipulação genética é sempre situada em um mundo laboratorial
esquecendo, portanto, que cópias e alterações genéticas, como ocorrem respectivamente nos
clones e organismos transgênicos, podem decorrer de processos naturais relativos aos modos de
reprodução e mesmo das inter-relações que se estabelecem entre os seres na natureza.
As concepções dos alunos se constituem, do ponto de vista pedagógico, em uma base de
dados que orientam o planejamento das atividades a serem realizadas na unidade de ensino à
medida que sinalizam alguns pontos a serem mais bem explorados e que possam viabilizar re-
elaborações e aprofundamentos acerca da temática em curso. Além disso, essas concepções são
postas novamente em circulação pelos próprios alunos ao longo das interações, que vão sendo
251
tecidas durante as aulas, o que favorece a organização de um contexto que, ao mesmo tempo em
que restringe e silencia alguns significados, abre-se à construção de outros mais especificamente
relacionados a um modo biológico de pensar, olhar e se relacionar com os fenômenos.
Este movimento paradoxal de silenciamento e abertura de significados que caracteriza
essa sala de aula de Biologia ganha visibilidade quando focalizamos especificamente a dinâmica
pedagógica que nela se estabelece. Organizada em um contexto dialógico e participativo e ainda
pela natureza e diversidade dos temas e das atividades que se constroem, essas concepções dos
alunos e seus processos de significação vão sendo evidenciados através das relações que os
alunos estabelecem, das problematizações que são encaminhadas, dos conflitos que são
reconhecidos, dos enunciados mais elaborados que formulam, indicando o engajamento
disciplinar produtivo tal como proposto por Engle e Conant (2002).
Com um olhar mais atento voltado para essas concepções dos alunos e as formas como se
põem em contato com os conceitos a serem ensinados, entramos nesta sala de aula de Biologia
orientados por categorias analíticas que propõem caracterizar as interações discursivas que se
estabelecem nas aulas de ciências (MORTIMER; SCOTT, 2002 e MORTIMER et al. 2007).
Assim, no capítulo 6, evidenciamos uma alternância de abordagens comunicativas dialógica e de
autoridade que se situam em um contínuo, que procura ora transmitir ora gerar significados. A
mudança nessas diferentes formas de abordagens pode ser relacionada aos diferentes padrões de
interação que vão sendo tecidos nas trocas de turnos entre professora e alunos, revelando
intenções de marcar, selecionar, re-elaborar e aprofundar significados e idéias que se aproximem
da estória científica. Nesta sala de aula, percebemos que há uma recorrência de padrões triádicos
(I-R-A) mas também cadeias longas fechadas e abertas onde ganha visibilidade um processo de
negociação que parece fazer emergir novos significados a partir das relações estabelecidas entre
elementos que são introduzidos ou mesmo problematizados no curso das interações. Essa
alternância é reconhecida pelos alunos e orienta, de uma certa forma, a posição que vão
assumindo e os níveis de participação no curso das interações. Neste movimento, os alunos
subvertem a ordem prevista em torno daquilo que será ensinado e de como será ensinado. A
iniciação dos alunos, realizada em algumas seqüências, aponta para temas específicos que
deslocam a discussão para questões de seu interesse e sobre as quais têm dúvidas. De um modo
geral, a professora acolhe essa participação dos alunos e talvez possamos ler esses movimentos a
partir da noção de “translação” proposta por Latour (2000): constituem-se em mecanismos e
252
estratégias, próprias de uma sala de aula enquanto espaço/tempo social, que buscam adaptar o
trabalho ali realizado a fim de atender e manter o “inter-esse” desse grupo de alunos e da
professora. Há, assim, uma “lógica oportunista” (Knorr-Cetina, 1981) que viabiliza ajustes e
redefinições no curso da interação permitindo que os sujeitos se agreguem em torno de um
objetivo comum, ao mesmo tempo em que a professora se mantém em uma posição de controle e
gerenciamento das associações e relações que vão sendo estabelecidas pelos alunos para que
determinados significados sejam construídos.
Alguns autores (SCOTT, 1997; MORTIMER; HORTA MACHADO, 1997;
MORTIMER; SCOTT, 2002 e MORTIMER et al. 2007) reconhecem essa alternância como a
construção de um gênero discursivo específico, em termos bakhtinianos, à medida que revela que
o discurso e a mediação que se realizam na sala de aula de Ciências/Biologia não seguem um
padrão homogêneo e unívoco, como supostamente pensado, como característicos do discurso
científico escolar. Mais ainda, esta alternância na abordagem comunicativa sinaliza mudanças de
perspectivas epistemológicas pois evidencia um trânsito entre o mundo observável e o mundo das
teorias, ou seja, entre as evidências empíricas e descritivas e os modelos explicativos produzidos
pela ciência que nos permitem ir além do que os nossos olhos podem alcançar. Talvez esta seja
uma primeira pista que nos permita caracterizar a sala de aula de Biologia em sua especificidade.
Esses movimentos interativos relacionados ao conteúdo que se deseja ensinar e aprender
encaminha uma certa forma de organizar, pensar, produzir e olhar o conhecimento biológico nas
relações de ensino. Neste sentido, cabe-nos perguntar: quais são os conteúdos/conceitos
biológicos abordados na sala de aula de Ensino Médio? Pelo que está posto nas propostas
curriculares e livros didáticos que seguem essas orientações curriculares: na primeira série,
focaliza-se uma dimensão microscópica relacionada à estrutura e funcionamento do nível celular
e molecular dos organismos; na segunda série, enfatiza-se a classificação dos seres vivos e
aspectos relativos a sua anatomia e fisiologia; e, na terceira série, abordam-se elementos básicos
de genética, ecologia e evolução.
Assim, há uma lógica conceitual que organiza os tópicos a serem ensinados e, portanto,
aprendidos ao longo do Ensino Médio. Mas, a nosso ver, existe um aspecto negligenciado nessa
forma de organização, que se relaciona à ausência quase total de uma inter-relação entre esses
diferentes conteúdos/conceitos. Assim, o organismo trabalhado no nível microscópico ou
253
molecular durante a primeira série do ensino médio parece guardar poucas relações, por exemplo,
com aquele trabalhado no nível anatômico e fisiológico na segunda série. A visão é fragmentada
revelando o mecanicismo que está posto na base da organização do conhecimento biológico e,
por inferência, na forma como é transposto para os contextos de ensino. Como adverte Trivelato
(2005, p. 127):
[...] as práticas curriculares que vemos se repetirem nas escolas parecem bastante comprometidas com uma abordagem reducionista, particularmente com relação ao estudo do corpo humano. Esse corpo, que é dividido e compartimentado para que possa caber no ensino, vai se apresentando em aspectos funcionais, celulares e moleculares, por uma forte tradição curricular que se expressa em organização de tópicos, em ilustrações, esquemas, equações etc.
Desta perspectiva, a construção de uma visão integrada e holística do mundo e dos seres
vivos que nele habitam fica comprometida. A sensação é que a aula de Biologia traz um
conhecimento que não se articula ou tem muito pouco a ver com o que se vivencia no dia a dia.
Talvez, uma das grandes dificuldades no ensino de Biologia seja o distanciamento que marca as
dimensões conceitual e contextual. Podemos ilustrar esta afirmação a partir do conceito de
respiração que é trabalhado com diferentes abordagens respectivamente nas 1ª e 2ª séries do
Ensino Médio. Na primeira séries, é apresentada a respiração celular, um processo fisiológico que
demanda oxigênio para a oxidação da molécula de glicose e conseqüente liberação de energia
necessária às atividades metabólicas dos organismos, realizado por organelas celulares
específicas, as mitocôndrias. Já na segunda série, a respiração é evidenciada como o processo de
trocas gasosas entre esses organismos e o meio ambiente quando os conceitos de inspiração e
expiração são bastante explorados. A integração dessas duas abordagens da respiração, quando
ocorre, é bastante superficial e, por isso mesmo, os alunos têm dificuldade, por exemplo, em
explicar o aumento da freqüência respiratória quando em uma situação que demanda maior
esforço físico.
Essa apresentação de conceitos de forma descontextualizada é um aspecto bastante
problematizado a partir da noção de aprendizagem situada que assumimos em nosso referencial
teórico. Nesta perspectiva, a aprendizagem se realiza quando há envolvimento do sujeito
cognoscente em atividades social e culturalmente situadas. Isto implica em considerar a sala de
254
aula como espaço de reprodução mas também de produção de práticas relativas a uma disciplina
específica. Neste caso, o sentido de práticas não se reduz exclusivamente a atividades como as de
natureza experimental mas inclui movimentos e articulações entre os diferentes
conteúdos/conceitos que são abordados na sala de aula de Biologia, viabilizando a construção de
significados mais amplos e profundos que representam uma visão integrada dos organismos
vivos.
Na tentativa de superar esta sensação de esvaziamento que acompanha o ensino de
Biologia, é preciso pensar sobre como o conhecimento biológico pode se tornar visível neste
mundo em que o aluno se encontra situado. É preciso pensar sobre possibilidades de construção
de um ensino de Biologia que, sem abrir mão da dimensão conceitual que o caracteriza, viabilize
o desenvolvimento de um pensar, olhar e relacionar biológico que atenda às demandas de um
mundo dinâmico e, em estreita inter-relação, que se organiza e se re-organiza em face das
mudanças naturais mas também da produção de novas biotecnologias. Mais que isto, é preciso
que o aluno se perceba como um ser biológico dotado das estruturas, processos e relações que são
apresentados nas aulas de Biologia, como o faz João que reconhece que a síntese de proteínas é
um evento que está acontecendo com ele e foi apresentado no capítulo 6. Neste sentido:
Para um menino, “conhecer a natureza”, falar de animais e de plantas, reconhecer-se como indivíduo vivo e reconhecer nos demais as mesmas características próprias de um ser vivo, sentir-se parte de um sistema do qual também outros fazem parte, pode responder a uma necessidade muito mais profunda do que a de adquirir umas simples noções de Biologia. É importante que na educação escolar estas exigências, nem sempre experimentadas em um nível consciente, possam sair à luz e encontrar uma série formal de palavras mediante as quais possam se expressar até constituir a base de um modo de pensar biológico que represente um guia com o fim de formar o próprio sistema geral de conhecimento. (ARCÀ; GUIDONI; MAZZOLI, 1990, p.75).
10.2 Encaminhando uma forma biológica de pensar, olhar e se relacionar com o mundo
Encaminhar uma forma biológica de pensar, olhar e se relacionar com o mundo exige um
movimento que inclui re-significar o próprio objeto de aprendizagem em Biologia que, por uma
tradição fortemente ancorada em uma perspectiva cartesiana, tende a se situar em uma dimensão
255
exclusivamente conceitual e ainda mecanicista. Olhar uma sala de aula de Biologia e observar os
movimentos, ou melhor, as práticas que entram em jogo no processo de construção de
significados nos fazem pensar algumas especificidades do conhecimento biológico, relativas aos
“níveis de conhecimento” a serem considerados e abordados nas relações de ensino (HORTA
MACHADO, 1999). A figura abaixo procura sintetizar essas especificidades evidenciando as
possíveis inter-relações entre esses níveis como um aspecto fundamental quando se pretende que
os alunos tenham uma compreensão mais ampla da Biologia.
Classificação
Evolução
256
Figura 01: Níveis de conhecimento no ensino de Biologia
Nossa figura toma como objeto central do ensino de Biologia o estudo dos seres vivos e,
para isso, é importante uma abordagem dos aspectos estruturais relativos às unidades que os
constituem tanto do ponto de vista microscópico e molecular, que inclui citologia, histologia,
anatomia e genética, quanto do ponto de vista da composição bioquímica dessas estruturas. No
sentido de se compreender a finalidade desse nível estrutural, é fundamental a articulação com
um outro nível de conhecimento que envolve os mecanismos fisiológicos relativos aos diferentes
sistemas que integram os organismos a fim de garantir seu equilíbrio interno e conseqüente
sobrevivência. Este nível de conhecimento deve abranger igualmente processos bioquímicos
relacionados ao metabolismo celular como, por exemplo, síntese de proteínas, respiração celular
e fotossíntese. Além disso, deve existir um nível de conhecimento relativo às relações entre os
seres vivos que evidenciam a dinâmica de interdependência a qual todos estão sujeitos. Esta
interdependência entre os seres vivos deve ser revelada tanto no nível estrutural quanto funcional.
Assim, o estudo das cadeias e teias alimentares deve envolver as trocas de matéria e energia que
se realizam entre os organismos e isto inclui considerar as reações que absorvem e liberam
energia e que se referem, respectivamente, aos processos de fotossíntese e respiração celular.
Essa abordagem integrada dos seres vivos, contemplando aspectos estruturais, funcionais
e relacionais, permite contemplar de forma transversal dois temas fundamentais que organizam o
conhecimento biológico e encontram-se inter-relacionados: a evolução e a classificação. A
evolução refere-se às modificações estruturais e funcionais incluindo inclusive aquelas de
natureza molecular ocorridas com as espécies ao longo do tempo. Os sistemas atuais de
classificação tendem a considerar um conjunto de caracteres relevantes (estruturais, funcionais,
moleculares) para classificar os seres vivos de modo a evidenciar as relações de parentesco
evolutivo e desse modo construir a filogênese dos diferentes grupos de seres vivos.
Do lugar de professora que ocupamos na sala de aula de Biologia, a integração desses
diferentes níveis de conhecimento se constitui em um instrumento conceitual necessário à
aprendizagem de um pensamento biológico escolar. A análise, apresentada no capítulo 6,
evidencia que alguns alunos já caminham em direção a essa integração conceitual. Assim,
Nathan, na primeira seqüência analisada no capítulo 7, vale-se de um nível estrutural e
microscópico como o núcleo celular para classificar a alga como um organismo eucarionte. De
257
forma semelhante, Camila Guimarães, na quarta seqüência apresentada neste mesmo capítulo 7,
estabelece uma relação entre estrutura e evolução dos seres vivos. A articulação que a aluna
realiza entre diferentes níveis de conhecimento revela o reconhecimento de que modificações nas
características dos seres vivos dependem de alterações processadas em um nível molecular. Isto
lhe permite elaborar uma “hipótese” para explicar a existência de um DNA não - codificante nos
seres vivos.
A construção do conhecimento biológico na escola exige transformar as coisas e os
objetos em processos, ou seja, re-descrever as concepções iniciais dos alunos, às vezes bastante
fragmentadas, em relações conceituais que integrem diferentes níveis de conhecimento, que é o
que lhes permite a construção efetiva de determinados significados.
Ao mesmo tempo, esses diferentes níveis de conhecimento (estrutural, funcional e
relacional) podem ser privilegiados em diferentes dimensões. Seguindo um movimento realizado
por Horta Machado (1999), que se propõe a encaminhar a construção de um pensamento
químico, podemos considerar que três dimensões, que também se articulam, podem ser
contempladas dependendo do recorte realizado pelo professor no planejamento de suas aulas. A
figura a seguir, inspirada no trabalho de Horta Machado (1999), procura evidenciar essas
dimensões:
Figura 02: Dimensões a serem abordadas no ensino de Biologia
258
O que essas três dimensões expressam? O que será privilegiado em cada uma delas? A
dimensão observável do conhecimento biológico inclui todas as estruturas e eventos que sejam
passíveis de observações pelo aluno. Revelam suas experiências mais imediatas com o mundo
biológico. Assim, é possível observar e mesmo mensurar o aumento da freqüência respiratória
independentemente de se estar numa aula de Biologia, ou ainda, qualificar os seres vivos como
sendo aqueles dotados de movimento. Algumas características dos seres vivos também podem ser
capturadas pelos nossos sentidos, sendo possível inclusive perceber quais aquelas que são
herdadas do pai ou da mãe. Contemplar esta dimensão observável talvez seja um primeiro
caminho para nos aproximarmos dos modos com os quais os alunos se relacionam e falam acerca
de determinados fenômenos biológicos à medida que revelam as experiências vividas, capturadas
e percebidas na interação com a realidade cotidiana e com outros espaços formais de
aprendizagem.
A partir do nível da experiência, através de uma linguagem feita de palavras e de representações (e sem linguagem isso não seria possível), se pode, portanto, construir e controlar algo (e que chamamos de conhecimento) desprendido tanto da experiência quanto da linguagem; que não se identifica nem com o fato individual nem com as palavras que o descrevem; que é comunicável a outras pessoas, que se pode estender a outros fatos, modificar como conseqüência de outras experiências, que pode por-se de novo sempre em jogo. (ARCÀ; GUIDONI; MAZZOLI, 1990, p. 28).
No capítulo 8, ao analisarmos algumas cenas, relativas às extrações de DNA das células
da cebola e do morango, demos visibilidade a essa dimensão da experiência quando os alunos
encaminham uma certa forma de “observar” e “registrar” os fenômenos. Essas observações e
registros não se dão num vazio conceitual mas orientados e dirigidos por uma forma específica de
olhar. Assim, durante as etapas de mistura e filtração, alguns alunos dão destaque a aspectos
como cor, cheiro e posição ocupada pelas substâncias na mistura, mas também relacionam esses
aspectos “empíricos” a modelos explicativos e construídos em outros contextos, envolvendo
noções como densidade, mistura homogênea e heterogênea. A observação do produto final obtido
nesta experimentação leva os alunos a observarem não apenas uma massa esbranquiçada, mas
filamentos de DNA como o faz Camila Assunção na cena 3. Afinal, já havíamos estudado que
esta é uma molécula constituída por duas cadeias que se ligam pelas bases nitrogenadas (adenina,
259
guanina, citosina e timina). Certamente, por reconhecer esta dimensão molecular do DNA,
Rafael, em uma das cenas analisadas, faça referência a estas bases nitrogenadas.
O que estes aspectos evidenciam? Que a construção de um olhar biológico pressupõe a
incorporação de uma dimensão relativa às teorias e modelos explicativos que nos auxiliam a ir
além do observável e permitem fazer previsões e elaborar explicações para determinados
fenômenos tanto microscópicos quanto macroscópicos. Parafraseando Horta Machado (1999),
passar da observação sensível às “causas escondidas” é fundamental se estamos pretendendo
formar o pensamento biológico.
Entretanto, vale destacar que este é um movimento que se realiza em uma via de mão
dupla. Vamos dos objetos às causas escondidas, mas também das causas escondidas aos objetos.
Afinal, este movimento dialético é que fundamenta a aprendizagem em uma perspectiva
sociocultural. A apropriação de instrumentos relativos a um sistema cultural como a ciência
permite-nos olhar o mundo a partir de novos ângulos.
Este aspecto é bem evidenciado na primeira seqüência que analisamos no capítulo 7,
quando os alunos, Ronnie mais explicitamente, evidenciam a relação estreita entre núcleo e
célula. Dessa forma, mobilizam um conhecimento relativo às funções do núcleo para explicar um
resultado: a parte nucleada vive e a parte anucleada morre. Avançando nesta explicação, Ronnie
dá visibilidade a uma nova relação que envolve um componente estrutural específico do núcleo, o
DNA, à função por ele desempenhada, qual seja, a de controlar toda a atividade metabólica da
célula. A articulação entre estas dimensões viabiliza a emergência de determinados significados
ou mesmo a tentativa de significar determinados conceitos. Este talvez seja o caso de João que
procura integrar um aspecto observável (molequinho com olhos de coruja) a uma explicação
relativa à manipulação genética para significar o conceito de organismos transgênicos e que
analisamos na seqüência que denominamos “Uma articulação entre o observável e o
microscópico: significando o conceito de transgênico”, também no capítulo 7,
Consideramos, ainda no capítulo 9, que algumas situações ajudam a ilustrar este
movimento de integração entre o observável e o teórico. Uma delas é a explicação que Camila
Dias elabora fazendo uso do processo de autoduplicação do DNA articulado à reprodução
assexuada. Esta articulação lhe permite posicionar-se acerca da possibilidade de uma plantação
de laranjas constituída de laranjas transgênicas e laranjas “normais”. Outra situação é quando
260
essa mesma aluna vale-se do conceito específico de transgenes para pensar acerca da adaptação
da soja para o cultivo no Brasil. A apropriação conceitual é evidenciada a partir das relações que
a aluna constrói no curso da interlocução, o que parece revelar uma certa forma biológica de
olhar, pensar e se relacionar com o mundo.
Entretanto, vale destacar que os alunos também integram diferentes conceitos situados em
uma dimensão exclusivamente teórica dando visibilidade a um movimento que procura construir
explicações para determinados fenômenos. Este é o caso de Ronnie, na segunda seqüência
analisada no capítulo 7, quando problematiza o fato de as hemácias serem destituídas de núcleo.
Reconhece, portanto, que os humanos possuem células anucleadas, mas também que o núcleo é
uma estrutura fundamental à célula como ele próprio havia evidenciado. No enfrentamento desse
problema, os alunos parecem buscar uma explicação a partir da mobilização de um outro conceito
já construído, o de células procariontes, que circulara anteriormente neste mesmo contexto. Dessa
forma, procuram dar conta de uma situação sem abrir mão de um elemento molecular
fundamental, o DNA, cuja função parece bem definida. Assim, para os alunos, as hemácias, tal
como células procarióticas, têm o DNA disperso no citoplasma. Do ponto de vista conceitual,
esta aproximação dos alunos sugere uma certa contradição ou incompatibilidade uma vez que os
seres humanos são classificados como organismos eucariontes. Com a intervenção da professora,
são resgatadas várias informações que, no curso da interação, têm o objetivo de orientar a
construção de um significado específico, neste caso, que as hemácias antes de perderem o núcleo,
sintetizam substâncias (RNA mensageiro) capazes de garantir sua sobrevivência e, portanto, a
realização de seu papel no organismo humano que é a de transportar o oxigênio. Articulando
essas várias informações, os alunos, particularmente Ronnie e Nathan, se aproximam ao final da
seqüência de uma explicação coerente, que será sistematizada pela professora em um outro
momento já que existe a intenção de marcar ou fixar este significado enquanto outros foram
sendo silenciados na dinâmica interativa.
A nosso ver, neste percurso, a professora, juntamente com os alunos, vai tecendo uma
rede de associações, biologicamente situada, viabilizando a emergência de um novo significado.
Em outras palavras, a professora, ao resgatar conceitos supostamente já construídos, vai
“empilhando” antigas “caixas-pretas” (medula óssea, hemoglobina, transporte de oxigênio) e
caminhando na direção de um fato “novo”, pelo menos para os alunos. As cadeias de associações
261
revelam a “sócio-lógica” que reside na base do pensamento para que uma alegação se torne mais
crível, o que nas palavras de Latour (2000, p. 336):
[...] é muito semelhante aos mapas rodoviários; todos os caminhos levam a algum lugar, sejam eles trilhas, estradas vicinais, rodovias ou autopistas, mas nem todos vão para o mesmo lugar, suportam o mesmo tráfego, custam o mesmo preço de abertura e manutenção [...] As únicas coisas que queremos saber sobre essas vias sócio-lógicas é onde elas nos levam, quantas pessoas as percorrem com que tipo de veículo, e que facilidades oferecem para a viagem e não se estão certas ou erradas.
Neste caso, percebemos que a professora percorre uma via específica para “aumentar o
controle e diminuir a margem de negociação [...] o que transforma a alegação num fato mais duro
que parece destroçar as maneiras mais moles de comportar-se e acreditar”. (LATOUR, 2000, p.
342). Ou seja, neste percurso, procura construir novas relações a fim de fazer emergir um novo
significado biológico.
Estas relações conceituais, mobilizadas pelos alunos no processo de significação, também
são evidenciadas na apresentação dos trabalhos relativos à clonagem de organismos transgênicos,
analisados no capítulo 8. Para introduzir as temáticas escolhidas, a maioria dos grupos reconhece
as relações como um recurso necessário para que novos conceitos sejam colocados em
circulação. Este aspecto é bem ilustrado por Alex, que faz parte do grupo que trata de organismos
transgênicos, quando enuncia que “Bom gente, olha só... prá gente entender o que é transgênico
primeiro temos que ter algumas noções do que é engenharia genética”. Além disso, assistimos a
um tráfego de diferentes conceitos tais como reprodução sexuada e assexuada, células somáticas
e células gaméticas que permitem definir, problematizar e mesmo justificar os significados e a
natureza das pesquisas que envolvem a manipulação genética.
Consideramos ainda que um tipo especial de cadeia de associações se forma quando os
alunos fazem uso de analogias. Como evidenciamos na segunda seqüência analisada, denominada
“O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e funcionais
na/da célula”, Thais estabelece um elo de ligação entre as inter-relações que se processam entre
núcleo e célula e o mecanismo reprodutivo dos vírus. De forma semelhante, Nathan e Letícia, na
mesma seqüência, valem-se das partes da planta para ilustrar esta interdependência que se
processa em um domínio microscópico. Neste caso, é preciso considerar que a aproximação entre
262
sistemas explicativos distintos, tal como na analogia, encontra-se na base do pensamento
científico. É o que afirmam Knorr-Cetina (1992) e Mithen (2002), pois:
[...] a ciência, assim como a arte e a religião, é um produto da fluidez cognitiva. [...] A fluidez cognitiva permitiu o desenvolvimento da tecnologia, capaz de resolver problemas e estocar informações, e gerou a possibilidade de usar metáforas e analogias – talvez sua conseqüência mais significativa e sem a qual a ciência não existiria. (MITHEN, 2002, p. 345).
Apropriando-nos das idéias de Latour para pensar a sala de aula de Biologia, podemos
dizer que nesse momento não nos cabe julgar se essas associações construídas pelos alunos estão
“certas” ou “erradas”, mas sim evidenciar um processo em que a mobilização de um instrumento
familiar permite a elaboração de uma nova idéia.
O que queremos ressaltar em todos esses casos são as práticas epistêmicas que se
organizam no sentido de sustentar a elaboração de determinados significados biológicos posto
que, nessas práticas, os alunos estabelecem formas específicas de lidar com o conhecimento
estabelecendo relações entre conceitos e entre conceitos e situações. Ou seja, a função epistêmica
se cumpre quando determinados objetos e processos são explicados e re-descritos na relação que
mantêm com outros objetos e processos em uma perspectiva biológica.
Mas o conhecimento biológico não se constitui apenas de modelos explicativos e
observações. Há ainda um conteúdo que pode e é simbolicamente representado. Como dito por
Pino (1995), e apontado em nosso referencial teórico, as representações referem-se ao mundo,
têm um conteúdo e, por isso mesmo, cumprem o papel de substituir ou evocar objetos e
significados. Entretanto, tais significados são específicos e se constituem na interação que
realizam no interior de determinados sistemas culturais.
A Biologia está repleta de situações em que representações são utilizadas. Assim, no
ensino de Genética, os genes (trechos de DNA que codificam uma determinada proteína) são
representados por letras. As letras maiúsculas representam os genes dominantes enquanto as
minúsculas os genes recessivos. Ao se deparar com um problema de genética que tem em seu
enunciado a informação de que um indivíduo é Aa, o aluno deve reconhecer que não se trata de
263
um erro de digitação mas sim que este individuo é heterozigoto, ou seja, possui genes que
qualificam de forma diferenciada uma mesma característica.
Avançando na ilustração dessa dimensão representacional, podemos nos valer da própria
molécula de DNA, objeto principal da unidade de ensino analisada neste estudo. Uma molécula
de DNA é uma cadeia dupla constituída por unidades menores denominadas nucleotídeos. Cada
nucleotídeo é sempre composto por três partes: um grupo fosfato, um açúcar do grupo das
pentoses – a desoxirribose – e uma base nitrogenada que pode ser a adenina, a timina, a guanina e
a citosina. O DNA é uma longa molécula que, quando aglutinada, pode ser vista a olho nu, como
na atividade experimental realizada pelos alunos. Nesta longa cadeia, o grupo fosfato e o açúcar
se repetem havendo variação apenas na seqüência das bases. Dessa forma, a molécula de DNA é
representada, para fins didáticos, apenas como uma seqüência dupla das letras que iniciam os
nomes das bases nitrogenadas, como vemos ilustrado abaixo:
Diante dessa representação, o aluno deverá saber que não se trata de uma palavra escrita
em outro idioma e, portanto, sem significado para ele, mas sim de um trecho de uma molécula de
DNA. É possível reconhecê-la e mesmo distingui-la de uma molécula de RNA (ácido
ribonucléico) por ser dupla já que existem dois filamentos unidos por traços que representam as
pontes de hidrogênio, e ainda, por apresentar timina que é uma base específica do DNA. A partir
dessa representação carregada de um significado biológico, é possível representar igualmente os
processos de transcrição e tradução gênicas que correspondem, respectivamente, à síntese de
RNA mensageiro e de proteínas necessárias à expressão das características de um individuo.
Olhar para essa seqüência de letras é ler um código genético que expressa uma informação para
sintetizar, por exemplo, a insulina e não termos problemas com o controle da taxa de glicídios em
nosso sangue. Isto implica em assumir que estão em jogo modos de olhar, pensar e falar
biológicos, posto que carregam significados situados em uma área específica de conhecimento
A T C G G A T T A | | | | | | | | | T A G C C T A A T
264
que é a Biologia. Sobre a representação desse conteúdo biológico, talvez seja importante trazer as
palavras de Arcà, Guidoni e Mazzoli (1990, p. 39) que assim dizem:
[...] para expressar e para comunicar um modelo de funcionamento e de estrutura se tem começado a dizer código genético; e se tem começado a dizer mensagem genética; e, portanto tem sido reconhecidas palavras, frases, referindo-se a diversas estruturas moleculares. Ao se ouvir falar de biologia molecular, parece que se está ouvindo lingüistas falarem: existe um código e existem mensagens, mas existem também significados, processos de tradução, sinais de início e fim da leitura, etc. O biólogo fala assim, através de uma metáfora lingüística, de coisas que de outro modo não saberia organizar entre si; da metáfora lingüística passa ao funcionamento social: por que se existe uma mensagem existe também um mensageiro, e se a mensagem é decodificada existe também um decodificador, etc. Assim vemos que uma estrutura metafórica se utiliza sempre para organizar cognitivamente um fragmento de realidade nova; e que por sua vez, qualquer novo fragmento de realidade dá lugar a uma expressão lingüística própria, que pode se utilizar por sua vez para organizar outros contextos, segundo um jogo de contínuos e complicados reenvios. (grifos dos autores).
O movimento, em uma via de mão dupla, entre as dimensões teórica e representacional é
um exercício do pensamento que favorece a construção de determinados significados e foi
explorado nesta sala de aula, particularmente quando se tratou da duplicação do DNA e da síntese
de proteínas. Além disso, alterações na seqüência de bases esquematizadas eram feitas pela
professora para que uma discussão em torno das mutações gênicas pudesse ser encaminhada. No
caso da síntese de proteínas, foi proposta inclusive uma atividade para a construção de um
modelo em que os alunos pudessem “manipular” o código e a mensagem genéticos a fim de que
os mecanismos de transcrição e tradução gênicas pudessem ser evidenciados e melhor
compreendidos. Ainda que a atividade não tenha se mostrado didaticamente tão eficiente, serviu
para que os alunos consultassem a tabela referente ao código genético, identificando a seqüência
de aminoácidos da proteína que estava sendo sintetizada. Com este movimento, foram capazes de
reconhecer o equívoco que estavam cometendo, encaminhando de forma cuidadosa as conversões
entre DNA e RNA mensageiro e entre RNA mensageiro e RNA transportador, mecanismos
bioquímicos diretamente envolvidos com a leitura e síntese da proteína.
Neste caso, em particular, podemos considerar que as representações tornam observável
um fenômeno que se situa em uma dimensão molecular. Dessa forma, a representação registra o
fenômeno tornando-o simplificado e, esperamos, mais compreensível para o aluno. Mas ao
265
mesmo tempo, o registro desse “fenômeno vai configurar os limites e as possibilidades de um
certo lugar de observação deste fenômeno” (HORTA MACHADO, 1999). Assim, na seqüência
de letras (A T C G) está inscrito um código. Não um código lingüístico mas o código da vida. As
transcrições e traduções processadas não são de natureza lingüística e sim bioquímica e ocorrem
no nível molecular dos organismos. Em alguns casos, a expressão desse código pode ser
observada facilmente pelos cidadãos quando, por exemplo, se refere a uma característica como a
cor do cabelo. Esses elementos nos ajudam a pensar sobre a necessidade da articulação entre as
dimensões observável e representacional do conhecimento biológico a fim de que significados
sejam efetivamente construídos.
A partir dessas considerações, podemos afirmar que a construção do conhecimento
biológico pelo aluno, com suas formas de olhar, falar e pensar o fenômeno, depende do
entrelaçamento entre os níveis de conhecimento (estrutural, funcional e relacional) e entre as
diferentes dimensões (observável, teórica e representacional) apontados anteriormente. Este
entrelaçamento é viabilizado a partir de movimentos, ou mais especificamente, de algumas
práticas que são realizadas pelos alunos no curso das interações mediadas pelo outro e pela
linguagem e consistem em relacionar, selecionar, mobilizar conceitos e gerar novas questões de
forma a lidar com os conteúdos biológicos. Nas palavras de Vygostky (2001, p. 409 e 410):
[...] Todo pensamento procura unificar alguma coisa, estabelecer uma relação entre coisas. Todo pensamento tem um movimento, um fluxo, um desdobramento, em suma, o pensamento cumpre alguma função, executa algum trabalho, resolve alguma tarefa. Esse fluxo de pensamento se realiza como movimento interno, através de uma série de planos, como uma transição do pensamento para a palavra e da palavra para o pensamento.
De uma perspectiva sociocultural, a apropriação e o uso de práticas epistêmicas em
contextos situados envolve dialeticamente a transformação tanto do sujeito quanto do mundo no
qual se encontra mergulhado.
Talvez neste momento seja oportuno resgatar a noção de “transparência dos instrumentos”
proposta por Lave e Wenger (1995). Para os autores, no uso de determinados instrumentos, abre-
se a possibilidade de tornar visíveis aspectos de um mundo que até então eram imperceptíveis
para o sujeito, ao mesmo tempo em que esta visibilidade permite uma compreensão mais ampla e
266
profunda do próprio instrumento. Imersos em práticas culturais, justamente porque relacionadas a
um determinado sistema cultural, é que os alunos se apropriam e se utilizam desses instrumentos.
Tal como diz Rogoff (2005), as formas de ensinar e aprender se constituem em práticas culturais
e são centrais para o funcionamento tanto do indivíduo quanto de uma comunidade.
Reconhecendo algumas especificidades que marcam o processo de significação nas aulas de
Biologia diretamente relacionadas com os objetos de conhecimento desta área, e considerando
ainda uma organização interativa que se revela na tensão entre conhecimento científico e
conhecimento cotidiano, é possível pensar-se esta sala de aula de Biologia como uma
comunidade de prática, e para isto retomamos a definição de comunidade formulada por Rogoff
(2005) e já citada no capítulo 2:
Uma comunidade envolve pessoas tentando chegar a algo juntas, com alguma estabilidade no envolvimento e na atenção às formas como se relacionam umas com as outras. Ser uma comunidade exige comunicação estruturada, que se espera que dure por algum tempo, com um grau de compromisso e significado compartilhado, embora muitas vezes contestado [...] (ROGOFF, 2005, p. 74).
O que se espera é que, no exercício dessas práticas que viabilizam o movimento de
significação, vá se constituindo uma certa “bio-lógica”, ou seja, cadeias de associações sejam
construídas de forma a integrar mundo – linguagem – pensamento em uma perspectiva biológica.
E isto implica em mudanças epistêmicas. Como professora, pensamos que esta seja uma inter-
relação necessária se pretendemos resgatar do ensino de Biologia a sua dimensão social e
histórica. Não podemos nos esquecer que vivemos em um mundo cada vez mais cercado pela
ciência e pela (bio)tecnologia. Um mundo que convida insistentemente este aluno-cidadão a se
posicionar frente a questões que demandam um certo conhecimento científico. Como decidir
sobre o consumo de alimentos transgênicos? Como analisar as relações de parentesco que se
reconfiguram a partir das possibilidades que a reprodução in vitro tem viabilizado? Por isso
mesmo, é possível supor que os objetos de aprendizagem em Biologia não mais se resumem a
conceitos fragmentados e descontextualizados. Para além dos conceitos, situam-se igualmente as
ações/interações necessárias à apropriação e uso desses mesmos conceitos em atividades
culturalmente situadas, que também incluam a avaliação de riscos e tomada de decisões e ações
267
frente a questões sociocientíficas. Nas palavras de Jenkins (1999a, p. 707) “a educação científica
nas escolas necessita responder às mudanças nos contextos sociais e ajudar a preparar os jovens a
contribuir como cidadãos para construir e reconstruir o mundo no qual eles vivem”.
Consideramos que estes objetos da aprendizagem são evidenciados nos resultados que
apresentamos. Especificamente a tomada de posições e avaliação de riscos frente a algumas
questões são reveladas no capítulo 9, quando discutimos, entre outros aspectos, um movimento
dos alunos em reconhecerem a ciência como uma construção que nem sempre é capaz de
apresentar respostas seguras a todos os problemas que emergem da produção e uso de
determinadas biotecnologias. Este é o caso de Camila Dias que, ao refletir sobre os possíveis
efeitos decorrentes do consumo de alimentos transgênicos, sinaliza a necessidade de mais
pesquisas antes que tais produtos sejam comercializados. De forma semelhante, os alunos que
discutem células-tronco consideram os aspectos positivos dessa pesquisa para o tratamento de
algumas doenças. Entretanto, admitem que esta é uma investigação ainda em curso e circunscrita
a um contexto bastante polêmico, que mobiliza políticos, cientistas e religiosos, já que envolve a
manipulação de embriões. Em outros casos, é a partir do significado, que assumem, da palavra
vida que alguns alunos vão se posicionar radicalmente contra as pesquisas que manipulam
geneticamente os organismos, mesmo que estejam voltadas exclusivamente para finalidades
terapêuticas. Neste movimento dos alunos, vai se evidenciando a dimensão ética que deve
acompanhar a produção científica pois, como dito por Camila Guimarães, “não se pode produzir
sem pensar no futuro... sem pensar nas conseqüências para a humanidade”.
10. 3 Implicações pedagógicas: problematizações e diversidade de atividades
Assumir a sala de aula como uma comunidade de práticas exige um esforço para
evidenciar uma relação entre o conhecimento que nela circula e os processos de significação dos
alunos. Procurando avançar nesta relação, ressaltamos um aspecto que parece ser significativo do
ponto de vista pedagógico e se refere às problematizações geradas no curso das interações.
Como bem assinalado por Engle e Conant (2002), uma condição necessária para o
engajamento disciplinar produtivo dos alunos é a emergência de problemas e questões que, de
certa forma e em certa medida, garantam maior nível de envolvimento e participação dos alunos
268
nas atividades propostas. Com isto, revela-se a construção de um contexto interativo necessário
ao processo de significação.
Na análise apresentada no capítulo 7, percebemos que todas as seqüências se originam e
se alimentam de questões introduzidas no contexto interativo. Tais problemas são formulados
pelo professor mas, em muitos casos, pelos próprios alunos. No caso do professor, há uma
tentativa explícita de envolver os alunos em uma nova temática e também elicitar e explorar suas
idéias sobre um determinado fenômeno. Representa um ponto de partida para que se viabilize a
construção de conceitos e idéias mais próximos dos sistemas científicos que se pretende sejam
ensinados e aprendidos. Nas seqüências 1 e 2, por exemplo, a professora apresenta algumas
situações experimentais para que os alunos realizem previsões possíveis sobre os resultados. Com
este movimento, a professora inaugura um espaço de interlocução dando oportunidade para os
alunos falarem e pensarem a partir dos seus próprios pontos de vista. Neste contexto que se revela
bastante interativo, à medida que diferentes vozes são postas em circulação, a professora vai
selecionando e marcando significados, inclusive fazendo registros no quadro de giz.
Em outras seqüências, a problematização é formulada pelos alunos. De um modo geral,
isto ocorre quando relacionam o que está sendo ensinado com alguma informação obtida em
outros contextos de aprendizagem. Este é o caso de Ronnie, na segunda seqüência analisada,
quando reconhece uma lacuna. Ao longo da aula, evidenciou-se a importância do núcleo para o
funcionamento celular e, no entanto, hemácias são células anucleadas. Existe, portanto, uma
lacuna para o aluno, que se configura como um problema que precisa ser enfrentado. Com esta
intervenção de Ronnie, a aula é encaminhada para uma discussão não prevista pela professora,
mas completamente pertinente e adequada ao contexto. Ao mesmo tempo, percebe-se que a
formulação do aluno cria uma atmosfera que favorece um maior nível de participação dos alunos
e também uma tentativa em se acomodar a “anomalia” percebida por Ronnie a partir dos
conhecimentos já existentes, que se referem à noção de células procariontes. Mais que isso, o
enfrentamento desse problema faz resgatar, através de padrões de interação, predominantemente
triádicos, uma série de informações que ajudam os alunos a construírem uma resposta que se
aproxima em muito daquela que explica este fato específico. Um elo de associações vai sendo
construído.
269
Em nossa análise, apresentamos ainda na seqüência que denominamos “Por que o óvulo
tem de ser de outra ovelha? Dando visibilidade à instabilidade conceitual dos alunos”, uma
situação em que os alunos, especificamente, Camila Guimarães e Nathan, reconhecem uma
contradição entre as idéias que carregam sobre a técnica de clonagem e aquelas que são
veiculadas pelo texto. O uso de três ovelhas de raças diferentes no processo de clonagem parece
ir de encontro ao conceito de clones como cópias genéticas idênticas de um único organismo.
Estabelecida esta instabilidade conceitual, os alunos realizam movimentos diversos como re-
leituras do texto e dos esquemas que o acompanham para confirmar as informações e encontrar
pistas que, porventura, possam elucidar o problema. Já na seqüência “Ainda sobre clones e
clonagem: evidenciando a reelaboração de significados”, evidenciamos o quanto a intervenção da
professora contribui para esclarecer o problema reconhecido pelos alunos. Entretanto, talvez por
perceber o nível de envolvimento dos alunos, a professora acaba por introduzir um novo
elemento à discussão dos alunos, que se refere ao DNA mitocondrial. Nesta seqüência, os alunos
parecem evidenciar uma apropriação conceitual quando realizam construções parafrásticas, ou
seja, repetem os enunciados da professora em ordem diferente ou com outras palavras. Dessa
forma, parecem re-descrever suas concepções iniciais a partir das novas informações. Esta re-
descrição é bem mais evidenciada na apresentação dos trabalhos que discutimos no capítulo 9,
quando os alunos mobilizam essas mesmas idéias sobre as técnicas de clonagem e enfrentam de
forma segura as questões formuladas pelos colegas no curso da discussão.
Consideramos, portanto, que a problematização é um caminho viável para se por em
contato e estabelecer um diálogo entre as concepções dos alunos e o conhecimento científico que
se pretende compartilhar. Nas palavras de Delizoicov et al. (2003, p. 197):
O caráter dialógico, com a qualidade de tradutor60, deve ser uma das características fundamentais do modelo didático-pedagógico, cujo eixo estruturante é a problematização dos conhecimentos. Problematiza-se, de um lado, o conhecimento sobre as situações significativas que vai sendo explicitado pelos alunos. De outro, identificam-se e formulam-se adequadamente os problemas que levam à consciência e necessidade de introduzir, abordar e apropriar conhecimentos científicos. Daí decorre o diálogo entre conhecimentos, com conseqüente possibilidade de estabelecer uma dialogicidade tradutora no processo de ensino-aprendizagem das ciências.
60 Para os autores a “dialogicidade tradutora” implica a necessidade do professor compreender a fala do aluno e o contexto em que ela se situa. Isto significa reconhecê-la como situada em uma “cultura primeira” e que corresponde ao conhecimento cotidiano ou em uma “cultura científica”.
270
Entretanto, não é apenas o conhecimento do aluno que deve ser problematizado. Em
algumas situações, o aluno reconhece a possibilidade de problematizar o próprio conteúdo que
está sendo ensinado. Talvez possamos ilustrar este aspecto a partir da análise da seqüência que
denominamos “Camila tem uma hipótese: o papel do DNA-lixo”, quando os alunos parecem
reconhecer uma função para o DNA não codificante baseados principalmente na informação de
que representam um percentual significativo do genoma humano. Ainda que não tenha sido o
objetivo da professora discutir esta questão, ela é incorporada ao contexto através da
problematização gerada pelos alunos (Ele deve servir para alguma coisa). A partir daí, os alunos
passam a propor algumas “hipóteses” para explicar o papel desse DNA-lixo. Mas é Camila
Guimarães quem mais se aproxima de uma construção adequada e coerente. Ainda que o papel
do DNA-lixo não esteja bem elucidado pelos cientistas, a aluna reconhece uma relação entre
estrutura (o trecho de DNA não codificante) e mecanismos evolutivos (possibilidade de
produzirem novas informações). Evidencia-se, portanto, um certo pensar biológico posto que a
aluna articula diferentes níveis de conhecimento (estrutural e evolutivo) situados em diferentes
dimensões (teórica e observável) já que esta nova característica pode conferir uma adaptação à
espécie que seja percebida.
É preciso ressaltar que, nesta sala de aula de Biologia, é possível reconhecer este
“tráfego” de vozes e significados a partir da alternância entre o “discurso de autoridade” e o
“discurso internamente persuasivo”. Mais ainda, é no curso das interações que alguns
significados parecem ganhar mais força, especificamente através de ações/interações
desenvolvidas pelos alunos tais como relacionar, selecionar, comparar, mobilizar, problematizar,
ações que procuram, em certa medida, integrar os diferentes níveis do conhecimento biológico
(estrutural, funcional e relacional) em suas diferentes dimensões (observável, teórico-explicativo
e representacional). Tais práticas são favorecidas pelas diferentes formas de intervenção que a
professora realiza ao longo das aulas, mas também pela organização de um trabalho didático-
pedagógico que privilegia a realização de trabalhos em grupo e uma maior diversidade na
natureza das atividades propostas. Além disso, consideramos que tais atividades, inclusive
aquelas relativas às exposições orais, encontravam-se social e culturalmente situadas. Inspirado
em uma perspectiva bakhtiniana, Mortimer (1998, p. 117) diz que:
271
Implementar uma perspectiva dialógica em sala de aula não significa apenas dar “voz” ao aluno e à aluna. Significa também, contemplar as vozes da linguagem cotidiana e dos contextos sociais e tecnológicos onde a ciência se materializa, na construção do discurso científico escolar de sala de aula. Uma aula expositiva ou um texto também podem ser profundamente dialógicos, desde que explicitamente contemplem essas outras vozes que não apenas as da linguagem científica. Essa perspectiva também se aplica à atividade experimental, que pode, dessa maneira, ser caracterizada como um diálogo entre teoria e prática.
O trabalho realizado com esta turma não rompe radicalmente com as propostas
tradicionais que vêm orientando o ensino de Biologia. Mas nele se reconhece que outros objetos
da aprendizagem podem ser contemplados, particularmente aqueles relativos ao encaminhamento
de algumas práticas mediadas por novos instrumentos, de forma a permitir que os alunos
compreendam, de maneira mais articulada e dinâmica, o funcionamento biológico do mundo.
Como bem assinalado por Bruner (2001, p. 28):
A construção da realidade é o produto da produção de significado
moldada pelas tradições e pelo conjunto de ferramentas de formas de pensamento de uma cultura. Neste sentido, a educação deve ser concebida como algo que auxilie o ser humano a aprender a utilizar as ferramentas de produção de significado e de construção da realidade, a adaptar-se melhor ao mundo em que ele se encontra, ajudando no processo de modificá-lo quando necessário.
Neste sentido, uma proposta que contemplasse projetos que incluíssem atividades com
caráter investigativo poderia oferecer um caminho alternativo para se pensar o ensino de Biologia
já que o enfrentamento de situações-problema, como evidenciado nesse estudo, parece ser uma
condição necessária e eficiente para que os alunos estabeleçam relações entre conceitos e
contextos, que os tornam responsáveis não apenas pela sua própria aprendizagem mas também
pela aprendizagem do outro.
10.4 Limitações do estudo e perspectivas para novas investigações
272
Por certo, este estudo apresenta limitações. A primeira delas diz respeito à opção
metodológica em realizar um estudo de caso. Neste sentido, trata-se de uma investigação de
natureza predominantemente descritiva e interpretativa que focaliza uma única sala de aula de
Biologia. Ainda que, no estudo de caso, o objeto seja tratado como uma representação singular de
uma realidade que é multidimensional e historicamente situada e, por isso mesmo, tem valor por
si mesmo, reconhecemos que o estudo realizado corresponde a um contexto específico e
localizado, não nos permitindo estabelecer relações generalizáveis. Além disso, por atuarmos
como professora da turma, obviamente encaminhamos a construção de uma proposta pedagógica
orientados por esse olhar teórico que nos acompanha. Os recortes que realizamos, as atividades
que selecionamos, o nível de relacionamento que estabelecemos com os alunos são de fato
elementos que entram em jogo nas condições de produção das interações que se realizam neste
contexto e, de certa forma, orientam o que vai ser dito e como vai ser dito. Em outras palavras, se
trabalhamos com a noção de aprendizagem como processo de significação, deste lugar de
professora que ocupamos, já privilegiamos alguns limites e possibilidades de significados que
devem ser construídos nesta sala de aula.
Por outro lado, é preciso pensar ainda sobre os tempos da aprendizagem. Ao longo do
nosso estudo, problematizamos a idéia de aprendizagem como um processo de “tudo” ou “nada”
que se realiza em uma linha contínua e cumulativa. Em uma perspectiva sociocultural, a noção de
aprendizagem é re-significada, passando a ser assumida como um processo que decorre das
relações do sujeito com o seu mundo físico e social. Neste sentido, a aprendizagem não se situa
exclusivamente nas escolas ou, mais especificamente, nas salas de aulas. A pesquisa em
Educação em Ciências muito contribuiu para evidenciar esse aspecto quando reconheceu que os
alunos possuem concepções aprendidas em outros contextos de aprendizagem, inclusive
informais, e que, muitas vezes, são diferentes daquelas que queremos ensinar. Na sala de aula
investigada, evidenciamos o quanto os alunos recuperam essas concepções para significar novos
conceitos. O que isso indica do ponto de vista teórico-metodológico? Nosso estudo acompanha os
alunos, de forma sistematizada, ao longo de uma unidade de ensino que corresponde a um
bimestre letivo. Se tomarmos a aprendizagem como um processo que se faz entre idas e vindas,
com avanços e retrocessos, devemos reconhecer que o recorte temporal que realizamos ajuda a
evidenciar alguns momentos específicos desse processo que, queremos crer, continua ainda em
273
curso. Assim, o que temos são “flashes” que nos fornecem pistas sobre o processo de
aprendizagem em um contexto complexo como é a sala de aula, quando os alunos entram em
contato com formas sistematizadas do conhecimento biológico. Neste caso, a mediação do
professor induz o aluno a “utilizar-se de (e nesse processo a também elaborar) operações
intelectuais, habilidades, estratégias e possibilidades sígnicas que são novas para ele.”
(FONTANA, 1997, p.128). Assim, as relações de ensino se constituem em um espaço/tempo em
que é possível capturar indícios de como os alunos lidam com esses conhecimentos e de como as
ações pedagógicas ajudam a configurar esse processo. Entretanto, são sempre visões parciais que
necessitam ser ampliadas.
Assim, ao mesmo tempo em que esses aspectos marcam limitações do estudo, também
representam possibilidades de novas investigações que delineamos a seguir:
a. Avançar nos estudos referentes à caracterização das práticas que marcam o
processo escolar de significação contribuindo para a construção de um
pensamento biológico que organize e oriente a sala de aula de Biologia. Isto
significa que precisamos explorar outras salas de aula bem como outras
unidades de ensino. Para isto é necessário desenvolver ferramentas
metodológicas mais criteriosas que nos permitam estabelecer categorias mais
precisas e específicas para esta caracterização.
b. Decorrente da questão anterior, investir na caracterização da sala de aula de
Biologia como uma comunidade de práticas.
c. Como problematizamos a questão dos tempos de aprendizagem, particularmente
em contextos formais de aprendizagem, talvez seja oportuno um estudo de
caráter longitudinal, acompanhando o processo de significação ao longo de um
período letivo mais largo. Esta proposta vai ao encontro do que discutimos
anteriormente sobre a organização e integração do conhecimento biológico em
níveis e dimensões de conhecimento, que representa uma tentativa de superação
de propostas fragmentadas.
274
Por fim, gostaríamos de finalizar estas reflexões ressaltando que a construção escolar do
conhecimento biológico se constitui em uma forma de olhar, pensar e se relacionar com o mundo,
porém não a única. Nossa intenção como professora não é formar jovens especialistas nesta área
de conhecimento, mas sim encaminhar a apropriação de alguns instrumentos, e aqui incluímos
conceitos bem como práticas epistêmicas para lidar com estes conceitos, que permitam a esses
alunos a apropriação de uma certa maneira de ler o mundo e de nele viver. Mas isso só será
possível se rompermos com um ensino que fragmenta e descontextualiza e caminharmos em
direção a um ensino que reconheça a aprendizagem como sendo situada, decorrendo de processos
de in-tensas negociações, traduzidos como práticas específicas de lidar com significados e
conceitos da Biologia. Quando destacamos a importância da articulação entre três diferentes
dimensões: observável, teórica e representacional, nossa intenção era justamente contribuir para
mapear as especificidades relativas ao conhecimento biológico que irão constituir uma certa
forma de pensar, falar e olhar os fenômenos biológicos. Nesse sentido, é possível assumir a sala
de aula como uma comunidade de prática, já que se revela no curso das aulas como um espaço-
tempo de natureza predominantemente social onde os sujeitos, ainda que ocupando posições
assimétricas, se engajam em uma dinâmica que favorece, em maior ou menor nível, a co-
construção de objetivos, finalidades e significados.
De uma perspectiva sociocultural, a aprendizagem em Biologia revela-se como uma
prática social posto que a relação do aluno com o objeto de aprendizagem é mediada pelo outro e
pela linguagem. Neste contexto, estes alunos problematizam, respondem, perguntam, relacionam,
reconhecem conflitos e lacunas, copiam, escutam, dispersam-se, apresentam exemplos,
conversam paralelamente... São sujeitos ativos de um processo em construção que não se encerra
na escola e nem na sala de aula de Biologia. Uma construção que lhes permita ter acesso a outros
mundos possíveis, inclusive um mundo biológico.
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ANEXO I:
GRADE CURRICULAR ENSINO MÉDIO – CEFET-NI
285
ANEXO II:
ATIVIDADE: DOLLY, O NÚCLEO E OS CLONES
287
288
ANEXO III
ATIVIDADE: CONSTRUÇÃO DE IDIOGRAMA
290
291
292
293
294
295
296
297
298
ANEXO IV:
ATIVIDADE: MODELO PARA SÍNTESE DE PROTEÍNAS
300
301
302
303
ANEXO V:
MAPA GERAL: PRIMEIRA LEITURA DAS VIDEOGRAVAÇÕES
305
Data/Local Atividade Participantes Objetivos Temas/Ações Impressões Atividade: Questionários
Todos os alunos presentes
Levantamento das concepções prévias dos alunos
Profª apresenta a proposta. Alunos lêem as questões, manifestam algumas dúvidas mas realizam a atividade.
17/08/06 1BTel1 Sala de Aula
Atividade: Aula expositiva
Ron., Joa., Tha., Cam., Let, Nat, Isa, Cam.
Estabelecer relações entre estrutura e função do núcleo celular
Profª inaugura o trabalho propondo uma situação experimental – esquematiza no quadro. Profª apresenta questão: “Por que a parte nucleada vive enquanto a anucleada degenera?” A questão é encaminhada acompanhada dos conceitos de merotomia e enucleação. Os alunos trazem contribuições e referem-se, particularmente à molécula de DNA para justificar os resultados experimentais. A profª registra no quadro as respostas dos alunos. A partir das respostas dos alunos relativas à função do núcleo, a profª procura estabelecer as relações com a estrutura do núcleo (componentes). Os alunos utilizam voluntariamente o livro didático como referência. Profª e alunos juntamente vão estabelecendo os componentes nucleares. Profª resgata a definição de célula eucariótica e a diferencia de célula procariótica. Profª resgata as explicações propostas pelos alunos e estabelece relações com novas pesquisas sobre estrutura nuclear ressaltando o movimento contínuo da pesquisa científica. Profª solicita leitura e observação de esquemas presentes no livro didático.
De modo geral a professora apresenta questões ou situações para introduzir novos conceitos ou estabelecer relações entre conceitos. A participação dos alunos é garantida. Algumas vezes atendem a solicitação da professora e respondem questões que pretendem resgatar conceitos anteriormente construídos ou ainda trazem situações problematizadoras e formulam possíveis explicações assumindo que estão construindo uma teoria.
306
Data/Local Atividade Participantes Objetivos Temas/Ações Impressões
Profª estabelece relação entre a estrutura e a função do núcleo. Aluna (Isa.) formula uma hipótese. Aluno (Nat.) elabora uma questão que evidencia articulação com conceitos anteriormente trabalhados. Profª focaliza os ácidos nucléicos. A discussão é reorientada para a estrutura dos vírus. Profª propõe nova questão a partir de algumas informações (tamanho da molécula de DNA): “Como a molécula de DNA cabe no núcleo da célula?” Participação dos alunos. Profª esquematiza no quadro e traz um modelo para explicar a organização da molécula de DNA. Profª questiona sobre a relação DNA/Gene. Alunos estabelecem relações com o sistema atômico. Surge a questão do “DNA-lixo”, os alunos levantam possíveis hipóteses evolutivas para explicar a relação genes e complexidade dos organismos. A questão central da aula é núcleo e material genético (DNA) – Ron. problematiza sobre a existência de células anucleadas como as hemácias. Profª provoca os alunos a apresentarem uma possível explicação para a sobrevivência da hemácia.
Esta participação não é total, alguns alunos são mais discretos. Aproveitam para fazer registros no caderno ou mesmo para conversarem, supostamente, sobre outros assuntos. Geralmente a interferência dos alunos é sempre feita com bom humor
ANEXO VI:
MAPA GERAL: SEGUNDA LEITURA DAS VIDEOGRAVAÇÕES
308
Aula: 17/08/2006 Episódio Tema do
episódio Conteúdo/Situação Recursos Ações dos
participantes Fase da atividade
Posição do professor
Discurso do professor
Elementos contextuais
Situação experimental: a Acetabulária
Esquemas no quadro de giz
Ouvem Solicitam informações adicionais sobre a Acetabularia
Introdução ao estudo do núcleo
Frontal Conteúdo
A professora esquematiza no quadro a situação experimental.
Explicações para os resultados propostos
Propõem possíveis resultados para o experimento. Elaboram explicações. Registram no caderno.
Desenvolvendo o estudo do núcleo
Frontal Deslocamento
Conteúdo Conteúdo escrito
A professora registra no quadro as explicações elaboradas pelos alunos. As funções do núcleo começam a ser mapeadas.
01 Núcleo de células eucariontes
Nova situação experimental – inter-relações entre núcleo e célula.
Evidenciando inter-relações valendo-se de outros sistemas. Thais toma como exemplo a relação entre vírus e célula.
Desenvolvendo o estudo do núcleo
Frontal Deslocamento
Conteúdo Gestão
Episódio Tema do episódio
Conteúdo/Situação Recursos Ações dos participantes
Fase da atividade
Posição do professor
Discurso do
Elementos contextuais
309
professor De que célula estamos falando?
Resgatam conceitos de eucariontes e procariontes
Desenvolvendo o estudo do núcleo
Frontal Deslocamento
Conteúdo
O que tem no núcleo? A membrana nuclear
Consultam o livro. Respondem a questão.
Desenvolvendo o estudo do núcleo
Frontal
Conteúdo
A professora incentiva a participação dos alunos
E o que mais tem no núcleo? Os nucléolos
Desenvolvendo o estudo do núcleo
Frontal Deslocamento
Conteúdo Conteúdo escrito
02 Componentes nucleares
Evidenciando os ácidos nucléicos
Desenvolvendo o estudo do núcleo
Frontal Deslocamento
Conteúdo Conteúdo escrito
03 DNA e núcleo celular
A configuração da molécula de DNA: cromatina e cromossomos
Esquema no quadro de giz Modelo do colar de contas
Consultam o livro
Desenvolvendo o estudo do núcleo
Frontal Deslocamento
Conteúdo Conteúdo escrito
Eucromatina e heterocromatina Relação gene-DNA e a existência de DNA-lixo.
Livro didático
Manifestam dúvidas Resgatam o conceito de genes
Desenvolvendo o estudo do núcleo Desenvolvendo o estudo do núcleo
Frontal
Conteúdo Conteúdo escrito Conteúdo Conteúdo escrito
Participação intensa dos alunos
310
Problematizam a existência do DNA-lixo Solicitam informações adicionais Elaboram uma hipótese para a existência do DNA-lixo Evidenciam relações.
Retomando as relações entre eucromatina e heterocromatina e expressão gênica
Começando a sistematizar a aula
Frontal Conteúdo Os alunos manifestam surpresa. Camila exclama: Então isso é uma esterteza da célula!
A ausência de núcleo nas hemácias
Problematizam o conteúdo evidenciando uma lacuna
Iniciando uma nova problematização
Frontal Deslocamento
Conteúdo Participação intensa dos alunos
ANEXO VII:
MAPA GERAL: TERCEIRA LEITURA DAS VIDEOGRAVAÇÕES
312
Aula: 17/08/06 Episódio / Seqüência Conteúdo temático Padrão de Interação Aspectos contextuais Episódio 1 Seq. 1 Ela é uma eucarionte?
Organismos eucariontes e procariontes
Ial – P – A - P
Começa a situar uma experiência
Seq.2 O experimento: quem morre e quem vive?
Reconhecendo a importância do núcleo para a sobrevivência da célula
Ipd – Rpd - P Simula no quadro esquematicamente a experiência
Seq. 3 Por que este resultado no experimento?
Funções do núcleo Ipr – A – P – A – P - A – A – P Ipr – A – P Ipr – A - P
Retoma a fala dos alunos Registra no quadro
Seq. 4 A importância do DNA
Relação entre DNA e funções do núcleo
Ipd – A – P – A – P Prof registra no quadro e alunos no caderno
Seq 5 Uma nova situação experimental
Inter-relação núcleo e citoplasma
Ipd – A – A – P – A - P Ial pr – P – A Sem interação
Alunos apresentam exemplos para ilustrar esta inter-relação Pedidos de silêncio
Episódio 2 Seq. 1 De que célula estamos falando?
Resgatando o conceito de células eucariontes
Ipd – A – P Ipd – A - P
Prof. Registra no quadro Alunos anotam e consultam livros
Seq. 2. Componentes do núcleo
Buscando relações entre estrutura e função
Ipr – A – P
Seq. 3 A membrana nuclear
Definindo nome e origem da membrana nuclear
Ipr – A – P Ipd – A – A – A – P Ipd – A – P – A – P
Alunos consultam livros Alunos disparam uma série de nomes e termos para identificar a membrana nuclear
Seq. 4 Mas no que ela [a membrana] é diferente?
Estrutura da membrana nuclear Sem interação A professora fala e registra no quadro termos chaves
313
Seq. 5 A estrutura da membrana nuclear
Estrutura da membrana nuclear Ipr – A – P – A – P – A – P Ial pr - Ppr
A professora corrige a aluna com uma interrogação.
Seq. 6 Quem está com o livro?
Relação Núcleo e retículo endoplasmático
Ies – A – P Ies – A – P Ipr – A – P Ial - P
Os alunos consultam os esquemas do livro
Seq. 7 Vamos voltar? O papel do nucléolo Ipd – A – P Sem interação Ies – A – P – A – P Irl – A – P Ial pd - P
Seq. 8 Professora as substâncias vem do núcleo?
Relação entre processo e produto celular
Ial pr – P – A - P Isamar tenta estabelecer uma generalização
Seq. 9 Querem ver uma situação?
A apoptose celular Sem interação A professora introduz nova situação
Seq. 10 Professora, os lisossomos podem digerir a célula
Lisossomo e digestão – processos autofágicos
Ial es – P – A – P pr Ipr – A - P
Aluno introduz uma nova situação
Seq. 11 O que falta para termos o núcleo?
Os ácidos nucléicos: DNA e RNA
Ipd – A – P – Apd – P Ial rl – P Sem interação
Alunos questionam que o vírus não é uma célula por isso não é um bom exemplo
Seq. 12 Os vírus são amaldiçoados?
Parasitismo obrigatório Ial pr – P – A – P – A - P
Seq.13 O vírus de computador é vivo?
Linguagem biológica e linguagem tecnológica
Ial mt – P – A – A – P - A
Episódio 3 Seq. 1 Como o DNA está organizado no núcleo?
Estrutura da cromatina
Sem interação Ipr – Apr – P Ipr – Apr – P Sem interação
Esquematiza no quadro molécula de DNA e proteínas
314
Seq. 2 O cordão de contas
Estrutura da cromatina Demonstração sem interação Usa um colar para ilustrar a organização da cromatina
Seq. 3 Mas como é que cabe?
A organização do DNA no interior do núcleo
Ial metc – P – A – A - P Camila e Nathan expressam sua dificuldade em imaginar essa estrutura no interior de células microscópicas
Seq.4 Heterocromatina e eucromatina
Evidenciar diferenças entre heterocromatina e eucromatina
Ipd – Apd – P Ipd – A – P – L – P Ipr – A - P
Pedidos de silêncio Alunos consultam o livro
Seq. 5 Será que tem diferença funcional?
Relação entre diferenças estruturais e funcionais da heterocromatina e da eucromatina
Ipr – A – P Ial pr - P
Silêncio entre os alunos Camila parece se aproximar de uma possível explicação
Seq. 6 DNA e Genes e DNA-lixo
Relacionar o funcionamento dos genes com a estrutura da hetero e eucromatina
Ipr – A – P Ial – A – A – P – A - ....
Prof. Esquematiza no quadro de giz Alunos desviam a discussão para o DNA-lixo Abordagem predominantemente dialógica
Seq. 7 Genomas Comparar a complexidade dos seres vivos ao genoma que os organizam
Trocas verbais
Seq. 8 Voltando a heterocromatina e eucromatina
Atividade e inatividade dos genes nas células
Sem interação Ial pr – P – A – P – A – P Ipr – A - P
Seq. 9 Distribuição eqüitativa do DNA nas células
A organização da hetero e eucromatina como esperteza celular
Sem interação Ial - P
Camila vê a organização da cromatina como uma esperteza da célula Nathan parece não entender esta relação A professora retoma a
315
explicação Seq. 10 O caso das hemácias
Evidenciar o funcionamento das hemácias como células anucleadas
Ial pr – P Ip – A - P
Abordagem entre dialógica e de autoridade
ANEXO VIII
AUTORIZAÇÃO DOS PAIS E DO CEFET
317
ANEXO XIX:
ATIVIDADE DE LABORATÓRIO: RELATÓRIO PRODUZIDO PELOS ALUNOS
319
320
321
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo