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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO FABIANO DALLAZEN A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO LIMITE ÉTICO-JURÍDICO À PESQUISA DA VERDADE NO PROCESSO PENAL CANOAS 2007

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO

PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO

FABIANO DALLAZEN

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO LIMITE ÉTICO-JURÍDICO À PESQUISA

DA VERDADE NO PROCESSO PENAL

CANOAS

2007

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FABIANO DALLAZEN

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO LIMITE ÉTICO-JURÍDICO À

PESQUISA DA VERDADE NO PROCESSO PENAL

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Direitos Fundamentais. Orientador: Dr. Jayme Weingartner Neto

CANOAS

2007

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FABIANO DALLAZEN

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO LIMITE ÉTICO-JURÍDICO À PESQUISA

DA VERDADE NO PROCESSO PENAL

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado em Direito da Universidade

Luterana do Brasil como requisito para a

obtenção do título de Mestre em Direito.

Área de concentração: Direitos

Fundamentais.

Aprovada em: 18/09/2007.

Dr. Jayme Weingartner Neto

(Ulbra, Presidente e Orientador)

Dr. Nereu José Giacomolli

(PUC/RS, Membro Externo)

Dr. Ângelo Roberto Ilha

(Ulbra)

Dra. Elaine Harzheim Macedo

(Ulbra)

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Agradeço ao amigo André Luís Calegari pelo

apoio e incentivo no momento da decisão sobre o

ingresso no Mestrado.

Agradeço, especialmente, ao meu orientador,

professor Dr. Jayme Weingartner Neto, que encontrou o

tempo necessário para uma prestimosa ajuda e,

principalmente, manteve a imparcialidade suficiente

para respeitar as minhas convicções.

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"Em qualquer sistema de ética, o primeiro e

mais fundamental dos valores é a verdade. Sem o

prévio compromisso com a verdade, todos os demais

valores podem ser falseados à vontade, tornando-se

antivalores. Mesmo os mais sublimes, com a liberdade,

a igualdade, o patriotismo ou a bondade, sem a

verdade, nada são senão expedientes de ocasião para

uso de farsantes e patifes".

Olavo de Carvalho

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RESUMO

Este trabalho objetiva permitir uma reflexão sobre um dos problemas que dificultam a realização da justiça como fim ético do processo penal, a pesquisa da verdade. Demonstra-se a necessária implicação entre os sistemas de controle social, especificamente entre a moral e o direito, atentando-se para as transformações históricas de cada um e para o fato de que o direito precisa revisar os seus conceitos éticos na seara da justiça criminal, reequilibrando a tutela dos direitos individuais e daqueles valores mais caros à vida em sociedade, imprescindível para o homem. O parâmetro para tanto, do ponto de vista moral, será o respeito à dignidade da pessoa humana. Logo, a única forma de se assegurar a decisão justa é não abrir mão da pesquisa exaustiva da verdade no deslinde de uma lide penal, respeitadas as garantias processuais como expressões da dignidade humana do acusado. Faz-se, assim, uma análise conceitual e histórica da ética e do direito, dos seus valores ligados atualmente ao respeito da dignidade, tudo com vistas ao estabelecimento do parâmetro adequado de equilíbrio na tensão criada dentro do processo penal entre a pretensão punitiva e o direito de liberdade.

Palavras-chave: direito – dignidade humana – ética − justiça – processo

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ABSTRACT

This paper aims to allow a reflection about one of the problems that makes difficult the law’s fulfill as an ethic purpose of the criminal process, the search for truth. It shows the real contradiction between the social control systems, specifically between moral end law, paying attention to the historical transformations of each one and for the fact that law needs to review its ethical concepts on the criminal law field, rebalancing the protection of the individual rights and of those expensive values to life in society, indispensable to the man. The parameter for such, from the moral point of view, it will be the respect to human being dignity. Thus, the only way to assure a fair decision is not to give up the exhaustive search of truth on the resolution of a judicial question, respected the procedural guarantees, as expressions of the defendant’s human being dignity. It is important to do, therefore, a conceptual and historical analysis of ethic and law, of its values currently linked to the respect of dignity, all this with sights to the establishment of the adequate parameter of balance on tension created inside de criminal process between punitive intention and right of freedom.

Keywords: law – human dignity – ethic – justice – process

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SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO ..............................................................................................................9

1. A IMPLICAÇÃO ÉTICA DO DIREITO ........................................................................14 1.1. O significado e a importância da ética..................................................................14 1.2. As vicissitudes éticas e axiologia .........................................................................22 1.3. O bom como valor ético fundamental ...................................................................31 1.4. Direito e moral ......................................................................................................37 1.5. A justiça como o fim ético do direito .....................................................................45

2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PARADIGMA ÉTICO-JURÍDICO .....53 2.1 A afirmação internacional dos direitos fundamentais do homem: um indicativo do progresso moral da humanidade.................................................................................53 2.2. O respeito à dignidade da pessoa humana como pressuposto ético-jurídico dos direitos fundamentais ..................................................................................................63 2.3. A dignidade da pessoa humana como valor ético-jurídico máximo nos cenários da ordem jurídica positiva internacional e no direito constitucional dos estados democráticos ...............................................................................................................68 2.4 Colisão de direitos fundamentais e de bens jurídicos............................................74

3. A BUSCA PELA VERDADE COMO VALOR EM UM PROCESSO PENAL "JUSTO" E SEU LIMITE: O RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ............................81

3.1. O conteúdo e a finalidade do processo penal ......................................................82 3.2. A verdade como valor a ser perseguido para um processo eticamente justo ......89 3.3. As garantias processuais como expressões da dignidade: o limite ético-jurídico à pesquisa da verdade ...................................................................................................98 3.4 A abertura dos meios de prova e o princípio de in dubio pro reo ........................104 3.5. Concretização: o exemplo da verdade auto-incriminadora.................................112

3.5.1. O direito à mentira ........................................................................................114 3.5.2 O direito à não-participação em atos instrutórios ..........................................116

II. CONCLUSÕES ........................................................................................................119

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................125

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I. INTRODUÇÃO

O homem-social, na sua lenta e gradual evolução cultural, estabeleceu vários

sistemas de controle social, alguns mais e outros menos importantes. Dentre esses,

pode-se destacar a moral e o direito, que o acompanharam e acompanham sempre de

muito próximo e, por serem ambos essencialmente produtos culturais, sofrem as

influências das vicissitudes espaço-temporais da civilização humana.

Procurar-se-á, então, num capítulo inicial, perpassar as noções básicas

constitutivas dos sistemas da moral e do direito, com seus fundamentos e seus valores

próprios, bem como a necessidade ou não de uma implicação recíproca, para

estabelecer os conceitos mínimos que permitam esta conexão, em um e noutro

sistema.

Contudo, ter-se-á sempre subjacente a qualquer análise o sentimento de que

não se trata de meras abstrações teóricas, mas, como instrumentos de controle social,

direito e moral dirigem-se à realidade social vigente em uma determinada sociedade e

em certo tempo, no caso, a nossa, aqui e hoje. Logo, não se pode prescindir de uma

análise evolutiva dos padrões e valores tutelados pela moral e pelo direito na história

(ao menos na mais recente) da humanidade. Somente assim poder-se-á dizer,

posteriormente, se o liame hoje existente guarda a necessária intensidade, ou se o

direito atual está afastado do sentimento moral predominante na sociedade.

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Perpassada a questão referente às distinções, semelhanças e implicações

entre direito e moral, buscar-se-á visitar, no segundo capítulo, o parâmetro comum

implicado na moral e no direito.

É de ser trilhado, neste particular, o caminho sinalado pelas significativas

manifestações no cenário mundial ao longo do curso dos últimos séculos e que está

positivado desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789,

resultante da Revolução Francesa, até o tempo posterior ao trauma da segunda grande

guerra, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Assembléia das Nações

Unidas, em 1948, donde se seguiram inúmeros tratados e convenções que conferiram

especial atenção à pessoa humana, reconhecida esta como um fim em si mesma,

dotada de valor próprio, tendo a dignidade como característica inerente a todo ser

humano.

A relevância do sinal premonitório emitido no sentido de estabelecer o respeito

à dignidade do homem, como integrante do mundo e não de um ou outro país ou

nação, impõe uma análise da ordem jurídica interna para verificação da conformidade

com o cenário global. Há de se verificar, no contexto do Estado Democrático de Direito,

único a potencializar o desenvolvimento do homem livre, qual a escala valorativa

reconhecida à dignidade da pessoa humana e o grau de respeito aos direitos

fundamentais do homem, cuja essência importa no conteúdo mesmo do valor dignidade

da pessoa humana.

Em síntese, pesquisar-se-á se pode a dignidade da pessoa humana,

consubstanciada no respeito aos direitos fundamentais do homem, assumir o condão,

na atual quadra da história e nos planos nacional e internacional, de valor referencial

para nortear os sistemas do direito e da moral.

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Não se poderá olvidar de uma passagem, ainda que breve, pela sistemática de

solução adequada dos conflitos jurídicos e morais entre direito fundamentais colidentes,

para estabelecer o procedimento, o momento e, principalmente, o nível mínimo de

conteúdo cujo sacrifício não se poderia impor sem ferir a dignidade humana,

preparando o campo para adentrar-se na tormentosa seara do processo penal, que

tradicionalmente é o ramo do direito encarregado da solução de graves beligerâncias

envolvendo o homem e a sociedade.

No dizer de Figueiredo Dias, o processo penal traz na sua base o problema

fulcral das relações entre o Estado e a pessoa individual e a posição desta na

comunidade, sendo que as soluções concretas do direito processual penal dependem

fundamentalmente do estágio de evolução e desenvolvimento social e cultural de uma

certa comunidade, do grau de maturidade logrado pela sua consciência jurídica e das

concepções políticas de atuação estatal.

Para tanto, no terceiro capítulo, dirigir-se-á a análise desse campo mais

específico do direito, o processo penal. Isso porque, se no seu desenrolar dirimem-se

os conflitos envolvendo os bens mais caros para a sociedade e para o homem,

tutelados pelo direito penal, é preciso desvendar até que ponto o processo, no conteúdo

e na finalidade que atualmente se lhe conferem, vem correspondendo às exigências

éticas que deve observar como ramo do direito, mormente a realização da justiça.

Objetiva-se, então, contextualizar as exigências morais atuais à visão do

processo criminal surgida em uma realidade completamente distinta na relação entre

Estado e acusado de um crime, mormente em face do aparecimento de uma nova

forma de criminalidade e do recrudescimento das antigas. Há perquirir se Estado-Juiz,

outrora absoluto na relação com os criminosos, hoje consegue atingir a justiça que se

espera na decisão de um processo, dada a completa inversão material e formal na

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relação de forças arraigada ao sistema, um problema histórico talvez já superado pela

realidade moral, mas talvez ainda não pelas normas jurídicas.

Indaga-se se o direito processual penal não está tomado pela inversão do

prisma ético com que deveria efetivamente ser analisado, e se está conseguindo

concretizar corretamente o caro valor da justiça e aplicar o direito penal, porque, no

lugar da busca pela verdade dos fatos para condenar os culpados e absolver os

inocentes, vê-se manietado por restrições moralmente e juridicamente injustificáveis na

atualidade.

Enfim, o que se propõe é apontar a revisão do padrão ético que deve nortear o

processo penal atual, não mais podendo ser visto como meio exclusivo de proteger o

acusado de abusos estatais ou como regras restritivas do poder punitivo do Estado.

Deve, também, ser visualizado sob a ótica da efetivação do direito penal, para proteção

da sociedade contra os membros que insistem em destruí-la pela violação de suas mais

sagradas regras, sob pena de perder-se o que até aqui já se conquistou no sentido do

progresso moral do direito.

Buscar-se-á resgatar a necessidade ética e jurídica da realização da justiça no

processo penal como finalidade e valor, mas sem que isso importe no ferimento do

valor de escala superior no ordenamento ético e jurídico adotado pelo mundo e pelo

Brasil, em particular, neste momento da história: a dignidade da pessoa humana.

Por derradeiro, uma análise pontual, sob os prismas da ética e do direito e com

a finalidade de concretizar o referencial teórico criado, sobre a posição atual do

acusado em um processo penal, mormente no que se refere à extensão do princípio

que, em respeito à dignidade humana de que também é possuidor, impede o Estado de

obrigá-lo a produzir prova contra si.

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O trabalho demandará a utilização do método de pesquisa bibliográfica para

uma melhor compreensão dos conceitos relativos às ciências envolvidas e

embasamento do raciocínio a ser desenvolvido com vistas ao objetivo proposto.

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1. A IMPLICAÇÃO ÉTICA DO DIREITO

A sociedade, em sua lenta evolução através dos anos, vem controlada por

vários sistemas, dentre os quais destacam-se a moral e o direito, que a acompanharam

em todos os tempos e sofreram, como produtos culturais que são, as influências das

vicissitudes espaço-temporais da civilização humana.

É imperativo, inicialmente, visitar as noções básicas constitutivas dos sistemas

da moral e do direito, com seus fundamentos e seus valores próprios, bem como a

necessidade ou não de uma implicação recíproca, para estabelecer os conceitos

mínimos que permitam esta conexão, em um e noutro sistema.

1.1. O significado e a importância da ética

As ambigüidades em torno do estudo da ética iniciam pelas próprias origens

histórica e etimológica que o termo revela, o que basta para conferir a dimensão da

abertura e vagueza dos conceitos dentro da matéria: éthos (grego, singular) é o hábito

ou comportamento pessoal, decorrente da natureza, das convenções sociais ou da

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educação; éthe (grego, plural) é o conjunto de hábitos ou comportamentos de grupos

ou de uma coletividade, podendo corresponder aos próprios costumes1.

Não obstante a imprecisão que o termo ética possa sugerir, além de sua

mutação ao longo do tempo como resultado de um gradual processo evolutivo histórico-

social, desde logo estabelece um corte vertical para definir a ética como uma ciência ou

teoria voltada especificamente para o estudo dos fenômenos relacionados com o

comportamento humano.

Com efeito, não há falar em avaliação ética de fenômenos naturais, como um

raio que destruiu uma casa, ou o comportamento de um animal selvagem que danificou

uma planta ou sacrifica outro ser da mesma espécie. Somente as ações e

comportamentos do homem podem ser objeto de análise e valoração sobre o prisma

ético. Mas, nem todo comportamento humano.

A ética estuda as relações entre o indivíduo e o contexto em que está situado.

Ou seja, entre o que é individualizado e o mundo a sua volta. Procura enunciar e

explicar as regras, normas, leis e princípios que regem os fenômenos éticos,

compreendidos estes como todos os acontecimentos que ocorrem nas relações entre o

indivíduo e os seus semelhantes, todos os fenômenos sociais de que o homem faça

parte. Estuda o homem como ser incluído e relacionado com o universo, excluindo de

seu campo de atividades os fenômenos puramente químicos, físicos e biológicos2.

Não é tudo. Há que considerar, também, a impossibilidade de juízo ético sobre

a ação humana que está determinada fatalmente, sem que o indivíduo possa,

conscientemente, discernir a existência de mais de uma alternativa (ao menos entre

1 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética Jurídica: ética geral e profissional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 7. 2 KORTE, Gustavo. Iniciação à Ética. São Paulo: Juarez Oliveira, 1999, p. 1.

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praticar a ação ou não, ou realizá-la deste ou daquele modo), avaliar qual se mostra

mais conveniente e deliberar a escolha, exteriorizando sua vontade. O homem deve ser

dotado de liberdade para dirigir o seu comportamento de forma consciente, por um ou

mais caminhos, por um ou mais destinos. Isso precisamente distingue o fenômeno

humano dos demais. A liberdade nada mais é do que a possibilidade de escolha entre

as alternativas de comportamento, concretizada em uma decisão consciente, pensada.

Nesse passo, impossível falar em ética prescindindo da noção de liberdade,

cujo exercício pressupõe a decisão, fundamentada na valoração de preferência, acerca

de um comportamento humano em face de outras alternativas possíveis de conduta. Ou

seja, no lastro do comportamento ético encontram-se liberdade e valoração, pois a

possibilidade de escolha ou decisão entre as alternativas de ação, que é a

manifestação da liberdade, somente é possível na medida em que se pode obter a

consciência de qual é a "preferida" ou "melhor", sob um fundamento axiológico. Ao

escolher um caminho como preferível ao outro, toma-se uma posição, o que é feito com

base nos referenciais axiológicos do indivíduo, que lhes são repassados pela

comunidade, concretizando-se o exercício da liberdade.

Assim, o poder de deliberar e decidir qual a melhor (a mais oportuna, a mais

útil, ou a mais adequada) forma de conduzir a própria personalidade − os traços ou a

habitualidade comportamental, único parâmetro capaz de conferir ao indivíduo a

característica de poder governar-se a si mesmo, pois uma atitude ou ação isolada não

traduz a ética de uma pessoa − em interação (familiar, grupal, social) é uma liberdade

da qual faz uso todo ser humano; "a ética é a capacidade coligada a essa liberdade"3.

Entretanto, o indivíduo somente pode agir eticamente em sociedade.

3 BITTAR, op. cit., pp. 4 e 5.

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A deliberação acerca da conduta é objeto de juízos éticos, formulados quer no

âmbito pessoal, quer no coletivo, com base no comportamento social do indivíduo, pois

nenhum significado ético tem a conduta que não produz qualquer efeito em relação a

outrem (por exemplo, mover uma pedra do lugar). Somente quando adquire a influência

e reflete seus efeitos nas relações intersubjetivas (mover a pedra do meio de uma

calçada, onde representava ameaça de tropeço para alguém) é que se poderá falar no

conteúdo ético de um comportamento humano.

Assim, embora seja a consciência individual a esfera em que se opera a

decisão ética, ela não poderá deixar de estar condicionada socialmente, pois vem

influenciada por todo o conjunto axiológico (valores familiares, religiosos, sociais) que

serve de fundamento para a escolha do caráter da conduta e é forjado nas relações

sociais dominantes. Aliás, a própria individualidade é um produto social e as relações

sociais dominantes é que determinam a forma como a individualidade expressa a sua

natureza social.

Ainda que não se prescinda do grau de liberdade e consciência pautando o

comportamento do indivíduo, este, antes de agir, emitir juízos, deliberar durante o

processo de escolha entre opções, ordena conscientemente as alternativas,

comparando-as com os elementos que são trazidos pelos usos, costumes, tradições e

conhecimentos sociais.

Portanto, na exata medida em que a deliberação ética pressupõe liberdade de

escolha no proceder humano, em relação aos conflitos intra-subjetivos e intersubjetivos

− e esta escolha é aquilatada com base nos valores surgidos no seio da sociedade −, a

ciência ou o saber ético assume como indispensável o estudo dos costumes, tradições,

usos e conhecimentos sociais influenciadores do proceder individual. Trata-se da

moral, que etimologicamente vem do latim mos ou mores, significando costume ou

costumes, no sentido de conjunto de regras adquiridas por hábito.

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Moral é o que se refere aos usos, costumes, hábitos e habitualidades. De uma certa forma ambos os vocábulos se referem a duas idéias diferentes, mas relacionadas entre si: os costumes dizem respeito aos fatos vividos, ao que é sensível e registrado no acervo do grupo social como prática habitual. A idéia de moral é a relação abstrata que comanda e dirige o fato, o ato, a ação ou o procedimento. A moral explica e é explicada pelos costumes. A moral pretende enunciar regras, normas e leis que regem, causam e determinam os costumes, inclusive, muitas vezes, anunciado-lhes as conseqüências4.

Em síntese, a ética é o saber ou a ciência que tem por objeto a moral5. Daí

podermos falar em uma ética científica, mas não em uma moral científica, pois o que

pode existir é um conhecimento científico da moral, proporcionado pela ética. A moral

não é ciência, mas objeto da ciência e, neste sentido, é por ela investigada e estudada6.

Nas definições de Adolfo Sanchez Vásquez, "a ética é a teoria ou a ciência do

comportamento moral dos homens em sociedade"7, ao passo que "a moral é o sistema

de normas, princípios e valores, segundo os quais são regulamentadas as relações

mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas

normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e

conscientemente, por uma convicção íntima, e não uma maneira mecânica, externa e

impessoal"8.

4 KORTE, op. cit., p. 115. 5 Afigurar-se-ia fora de propósito adentrar, nesse momento, na discussão acerca do caráter científico ou filosófico da ética, sendo que a proposição em evidência é diferenciar ética de moral. Valer referir, entretanto, o pensamento de Eduardo Bittar, para quem, ao contrário do autor citado no corpo do texto, "pode-se dizer que é filosofia, filosofia prática, que tem por conteúdo o agir humano. Isso porque se trata de um saber especulativo, voltado para a crítica conceitual e valorativa. Se o saber filosófico instaura a dúvida e a crítica, renunciado a pretensões mais diretamente engajadas na resolução de questões imediatamente necessárias e prementes, então nesse solo que deve se situar a especulação ético-conceitual. A ética firma-se nesse solo filosófico como forma de fortalecimento das construções e deveres morais hauridos ao longo do tempo pela experiência. Seu cunho especulativo não a permite ser senão um grande jogo especulativo, característica central do saber filosófico" (op. cit., p. 13). E arremata: "A ciência não seria capaz de dar conta de um objeto tamanhamente complexo, como é o objeto da especulação ética" (op. cit., p. 14). Mais eclético, porém, é o entendimento de Gustavo Korte, ao esclarecer que "uma é a Ética científica, como ciência dos fatos, ações e processos éticos, que explica como ocorrem e em que condições se manifestam. Outra é a Ética filosófica, que estuda as normas e as leis, e explica porque ocorrem ou devem ocorrer as relações" (op. cit, 97). 6 VÁSQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética, tradução de João Dell'ana. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1985, p. 13. 7 Op. cit., p. 12. 8 VÁSQUEZ, op. cit., p. 58.

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Nas relações cotidianas entre os indivíduos surgem problemas práticos, que se

apresentam no plano das relações fáticas dos quais ninguém se pode eximir e cuja

solução importará em conseqüências para outra(s) pessoa(s) ou até mesmo para uma

comunidade inteira. Em tais situações, os indivíduos defrontam-se com a necessidade

de pautar o seu comportamento por normas que se julgam mais apropriadas ou mais

dignas de serem cumpridas, pois estão convencidos de que têm o dever de agir desta

ou daquela maneira, consoante as regras que, íntima e obrigatoriamente, reconhecem

indicadoras do "melhor" ou do "bom" caminho para alcançar a finalidade, o "bem"

pretendido. É possível dizer, então, que o homem age moralmente.

É exatamente nas experiências e vivências sociais, com os meios escolhidos,

com os fins almejados, com as conseqüências sociais resultantes do seu proceder, que

o indivíduo pode perceber e deliberar quais são os padrões de conduta aceitáveis e

inaceitáveis. Dessa forma, ele próprio produz conceitos e padrões morais e os envia à

sociedade, assim como a sociedade produz padrões e conceitos morais e os inculca,

por meio de instituições, tradições, mitos, exigências, regras, à consciência do

indivíduo9.

Em todas as partes, desde o nascimento, os indivíduos sentem a forte

influência normativa estabelecida e, em muitos casos, chegam a agir em conformidade

com ela de forma espontânea, habitual, quase instintiva. Como se vê, as normas

orientadoras do que seja socialmente aceitável e conveniente são abstraídas da

experiência e vivência históricas do indivíduo consigo mesmo e com a meio social.

Forma-se no tecido social de uma determinada comunidade, em um determinado

período de tempo, um conjunto de regras, explicitas ou implícitas, escritas ou não,

disciplinando os procedimentos aceitos e praticados por essa comunidade, que as

absorve e convence da obrigatoriedade de sua observância para manutenção da ordem

9 BITTAR, op. cit., p. 22.

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social. É o que se designa costume, cuja origem latina, consuetudine, traduzia a idéia

de procedimento, comportamento10.

Não se olvida que o costume, como norma regulamentadora da conduta moral,

não abrange todo o domínio moral, muito menos dita fatalisticamente o comportamento

dos indivíduos. Obviamente, não se pode prescindir do grau de consciência e liberdade

e, por conseguinte, da responsabilidade pessoal do comportamento moral. Entretanto, é

inegável que o costume opera como um meio eficaz de integrar o indivíduo na

comunidade, de fortalecer a sua sociabilidade e de fazer com que seus atos contribuam

para manter − e não para desagregar − a ordem estabelecida.

O indivíduo age, então, de acordo com as normas aceitas por um grupo social

ou por toda a comunidade, sancionadas pela opinião e sustentadas pela fiscalização

atenta dos outros, passando o costume a ter uma função normativa11.

Enfim, a moral implica uma consciência individual que absorve as regras de

comportamento que se lhe apresentam socialmente com caráter normativo, cuja

validade e obrigatoriedade se reconhecem interiormente. No modo como o individual e

o coletivo se relacionam moralmente o homem poderá, diante das regras, reagir ou

afirmá-las, pois é livre para tanto, mas não deverá olvidar que, como o indivíduo não

existe isolado, mas enquanto ser social, também não existe uma moral estritamente

pessoal. Na lembrança de Vásquez, "os agentes dos atos morais são sempre os

indivíduos concretos, quer atuem separadamente, quer em grupos sociais, e os seus

atos morais − em virtude da natureza social dos indivíduos − sempre têm caráter

social"12.

10 KORTE, op. cit., p. 114. 11 VÁSQUEZ, op. cit., p. 58. 12 VÁSQUEZ, op. cit., p. 60.

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Note-se, por importante, que o problema do que fazer em cada situação

concreta é um problema prático-moral do indivíduo, que, diante da situação real, deverá

resolver por si mesmo, recorrendo às normas que aceita intimamente como válidas e

obrigatórias para aquilatar a sua ação como boa, ou seja, moralmente valiosa. Seria

inútil recorrer à ética com a esperança de encontrar uma norma de ação para a

situação efetiva, pois, diferentemente dos problemas prático-morais, os éticos são

caracterizados pela sua generalidade. A ética poderá dizer, em geral, o que é um

comportamento pautado por normas, ou em que consiste o fim − o bom − visado pelo

comportamento moral, do qual faz parte o procedimento do indivíduo concreto ou o de

todos, já que definir o que é bom não é um problema moral cuja solução caiba ao

indivíduo em cada caso particular, mas um problema geral de caráter teórico, de

atribuição do investigador da moral, ou seja, do ético 13.

O saber ético, portanto, depara-se com uma série de princípios e normas de

comportamentos histórico-sociais que constituem o terreno da moral e procura explicá-

los na sua essência − as fontes de sua avaliação moral, a natureza e a justificação dos

juízos morais, além das mudanças e sucessões nos sistemas morais. Logo, a ética não

é a moral nem a cria, mas pode e deve, com suas contribuições em análises, juízos e

proposições, tender a fortalecer a moral, aperfeiçoando o conteúdo habitual do que se

pensa e se faz quotidianamente.

Em verdade, o estudo da ética deve permitir ao homem, individual e

coletivamente, corrigir os vícios e acentuar virtudes, de tal forma que, em cada opção

de ação, possa eleger o melhor caminho e obter resultado bom, mais justo, próprio e

oportuno. Com encadeamento das virtudes, reunindo e aprendendo-as, permitir-se-á a

avaliação das forças morais e imorais que atuam sobre indivíduos e sociedades. Por

conseguinte, o uso positivo desses conhecimentos pelo homem concreto, real, nos

13 VÁSQUEZ, op. cit., p. 7.

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procedimentos práticos do dia-a-dia, em relação a si mesmo ou ao social, conduzirá às

melhores soluções. É o grande resultado que a ética moderna sugere14.

1.2. As vicissitudes éticas e axiologia

Em sendo a moral o conjunto de regras construídas no comportamento

individual e coletivo do homem, que cambia padrões morais com a sociedade ao

participar da sedimentação das normas de conduta e ao receber, nos costumes e

valores cristalizados nas instituições sociais, cabedal de idêntica natureza, não há como

negar que a moral é um fato histórico, e a ética, enquanto saber ou ciência da moral,

não pode concebê-la como definitiva, pronta, acabada, mas tem de considerá-la dentro

de contextos da realidade humana variáveis com o tempo e as diversas estruturas

sociais dominantes no mundo.

A moral é um fato histórico porque sua essência, justificação e finalidade

encontram razão de ser no comportamento do homem. É necessário, pois, acentuar o

caráter histórico da moral em conseqüência do caráter histórico-social do próprio

homem. Este, enquanto dotado de racionalidade, evolui, material e espiritualmente, e

transforma a sociedade onde vive, no sentido da satisfação de suas necessidades da

melhor forma possível. E, mesmo sendo o comportamento moral do indivíduo vinculado

àquelas regras interiorizadas em seu contexto concreto e atual, a realidade moral

também varia.

14 KORTE, op. cit., p. 165.

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Em outras palavras, o homem, através de sua atividade dirigida a finalidades

conscientes, transforma a realidade ao reproduzir antigas técnicas ou inventar novas

para suprir as necessidades que a natureza lhe impõe, de tal forma que o mundo

resultante do trabalho humano15 não é mais um mundo que se possa denominar natural.

Essa ação humana consciente nos meios e nos fins, que se baseia nas experiências

adquiridas pelos antepassados ou pelo próprio indivíduo, transforma a natureza,

adaptando-a às necessidades humanas, ao mesmo tempo em que muda a maneira de

o indivíduo agir sobre o mundo, estabelecendo relações de convivência também

mutáveis16.

Dessa forma, o comportamento varia de um lugar para o outro, de um tempo

para o outro, conforme as exigências e as condições nas quais os homens se

organizam ao estabelecerem formas efetivas e práticas de atividade com vistas à

satisfação das necessidades. Cada vez que essas relações são alteradas, sobrevêm

exigências de modificação das normas, dos princípios e dos costumes de

comportamento coletivo. Prova cabal disso é a substituição de certos princípios e certas

normas por outros, e a modificação do conteúdo de uma mesma virtude através do

tempo17.

Não é difícil observar, nesse passo, que a diversidade de orientações,

engajamentos e preocupações morais constituíram, através dos tempos, noções

variadas de ética, em correspondência com a variação do comportamento humano.

Ora, sendo possível dizer que a ética persegue o homem desde seus titubeantes

passos, pode-se afirmar, com igual certeza, que as concepções éticas, assim como o

comportamento humano, variam ao sabor dos tempos.

15 A expressão trabalho humano, obviamente, toma a conotação de trabalho executado como atividade ou tarefa social, pois a ação do homem, nesse contexto histórico, é a ação coletiva. 16 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Ed. Moderna, 1986, p. 5. 17 ARANHA, op. cit., p. 303.

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Logo, não há uma única ética para todos os povos em todos os tempos, pois

toda construção moral se opera de acordo com a axiologia de uma cultura, que cambia

no tempo e no espaço. A ética continuará acompanhando o homem no seu percurso

existencial e histórico, o que significa que não está pronta, acabada, mas evoluirá ou

involuirá na exata medida das vicissitudes humanas18.

Este fato - a moral como fenômeno histórico - é suficiente para demonstrar, de

plano, o desacerto das doutrinas éticas que procuram explicar a essência e a função da

moral de forma absoluta, prescindindo do componente das morais históricas concretas.

Situar a origem da moral fora da história, olvidando na explicação de seus fundamentos

aquilo que realmente foi, importa em situá-la, também, fora do homem real, que é um

ser histórico19.

Há que atentar, inclusive, que a própria história, em si mesma, enquanto

sucessão de fatos, tais como narrados pelos historiadores, não tem um sentido único,

mas ambíguo, em conformidade com as tendências e conveniências de quem a indaga

em certo período e dentro de objetivos variados.

Bobbio, com peculiar precisão, já advertia: "A única afirmação que considero

poder fazer com segurança é que a história humana é ambígua, dando respostas

diversas segundo quem a interroga e segundo o ponto de vista adotado por quem a

interroga"20. E, posteriormente, arrematou: "A história tem apenas o sentido que nós, em

cada ocasião concreta, de acordo com a oportunidade, com nossos desejos e

esperanças, atribuímos a ela. E, portanto, não tem um sentido único"21.

18 BITTAR, op. cit., p. 20. 19 VÁSQUEZ, op. cit., p. 26. 20 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1992, p. 53. 21 Op. cit., p. 64.

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Nesse quadro sujeito a vicissitudes não somente no tempo e no espaço, mas

na própria reconstrução histórica dos fatos, ao gosto dos objetivos e tendências, soaria

pretensioso falar em um conceito homogêneo, absoluto e definitivo acerca do que

constitui o conteúdo da busca ética.

A primeira conclusão que se deve ter em mente, portanto, é que o conteúdo das

normas éticas tem em vista o que a experiência histórico-cultural registrou como sendo

bom e como sendo mau, como sendo virtude ou vício, como sendo capaz de geral

felicidade ou infelicidade. Essa idéia, que não é estável, nem homogênea em sua

totalidade e em sua generalidade entre as diversas culturas, varia ao sabor de inúmeros

fatores22.

A segunda, é que o fundamental em todo sistema ético, apesar de prescrever e

sustentar suas próprias normas morais para o direcionamento da conduta humana no

sentido do que considera correto ou útil, é a tolerância com outros sistemas éticos. Um

sistema ético, que não é nem pode ser, como já se viu, homogêneo, absoluto e

definitivo, deve conviver com outros sistemas éticos, não pretender excluí-los para

impor-se arbitrariamente. Para Bittar, "o essencial de toda ética, para que sobreviva

como tal, e não se transforme em puro arbítrio axiológico (faço a minha vontade a de

todos), é que garanta e defenda o desenvolvimento de outras alternativas éticas, desde

que estas também sejam éticas distanciadas do arbítrio axiológico"23.

De fato, soaria contraditório um sistema ético − que somente pode subsistir

baseado na liberdade e consciência do homem − permitir a formação de extremos,

tolhendo as alternativas.

22 BITTAR, op. cit., p. 22. 23 BITTAR, op. cit., p. 44.

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Diga-se, por importante, que a tolerância ética não implica renúncia às próprias

convicções firmemente traçadas, apenas a sustentação dessas idéias pautada em um

comportamento moral: o respeito aos outros.

Bobbio refere, textualmente, que,

se o outro deve chegar à verdade, deve fazê-lo por convicção íntima e não por imposição. Desse ponto de vista, a tolerância não é apenas um mal menor, não é apenas a adoção de um método de convivência preferível a outro, mas é a única resposta possível a imperiosa afirmação de que a liberdade interior é um bem demasiadamente elevado para que não seja reconhecido, ou melhor, exigido. A tolerância, aqui, não é desejada porque socialmente útil ou politicamente eficaz, mas sim por ser um dever ético24.

Guardados os cuidados respectivos, a lição aplica-se a qualquer sistema que se

pretenda ético, pois deixará de sê-lo no exato momento em que objetive impor a

exclusão de outras éticas não pela persuasão, mas pela coerção. Deixará de ser ético,

para tornar-se arbitrário e contrário à ética.

Já se disse que a conduta ética encontra sua essência na liberdade de escolha

entre vários comportamentos possíveis e que esta escolha baseia-se em um juízo

consciente de preferência. Escolhe-se "a" porque é uma ação moralmente mais elevada

do que "b" ou "c", que se mostram menos dignas moralmente.

Como se nota, há aqui um juízo, vale dizer, um julgamento ou avaliação

consciente, que tem por base um conteúdo axiológico (axios, em grego é valor)

determinante da preferência. Porém, somente baseado nos referenciais axiológicos

estabelecidos histórica e socialmente é que se poderá mensurar a conduta humana,

quer pela intenção (motivo ou fim), quer pelo meio escolhido para realizá-la, como boa

24 BOBBIO, op. cit., p. 209.

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ou má, louvável ou censurável do ponto de vista moral25. Em síntese, o sujeito, livre na

escolha, afere em seu juízo moral o valor das opções que se mostram realizáveis e

delibera pela que se lhe afigura moralmente "melhor" ou "boa", em detrimento da(s)

pior(es) ou má(s).

Faz-se necessário, então, fixar a idéia de valor, salientando que apenas as

coisas ou objetos, naturais (produto da natureza ou transformados pela ação humana)

ou ideais26, e os atos humanos podem ser valiosos.

Deve ser referido, primeiramente, que os valores não existem em si e por si,

como entidade abstrata, própria de um objeto. Para que tenha algum valor, o objeto

pressupõe certas propriedades naturais ou humanas que o tornem potencialmente

valioso, porque servirá, em tese, à satisfação de necessidades humanas. Porém, note-

se que o valor não se encontra no objeto e suas propriedades, mas na relação destes

com o grau de satisfação das necessidades humanas que pode produzir. Dito de outro

modo, o objeto somente adquire valor quando posto em relação ao homem, com seus

interesses e necessidades. Não se deseja ou necessita o objeto porque vale, mas vale

porque dele se necessita.

Não se trata, obviamente, de uma visão puramente subjetivista, no sentido de

recusar totalmente a influência das propriedades do objeto, naturais ou humanas, que

podem determinar a atitude valorizadora do sujeito. Tanto assim que objetos distintos,

com propriedades diversas, suscitam em regra diferentes avaliações por parte dos

25 VÁSQUEZ, op. cit., p. 115. 26 Tais objetos, no dizer de Miguel Reale, "são seres que existem enquanto pensados. É por esse motivo que também os chamamos de ideados ou ideais". E, arremata o autor: "o seu ser, portanto, é puramente ideal. Não podemos negar a existência de tais objetos, a respeito dos quais enunciamos juízos rigorosamente certos, fazendo demonstrações e inferindo conseqüências. Esses objetos são próprios da lógica ou da matemática. Podemos dizer que a Lógica e a Matemática são ciências ideais ou de objetos ideados, e que o que caracteriza os objetos ideais é o fato de serem, sem serem no espaço e no tempo" (Filosofia do Direito. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 183).

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indivíduos27. Ademais, o homem, como já se disse, é um ser histórico-social, razão pela

qual está imerso em um ambiente cultural, com regras, critérios e necessidades que

não podem ser descontextualizados de seu tempo e seu espaço, influindo

decisivamente no seu juízo de valor. Esses critérios, normas e necessidades não são

intuídos ou inventados individualmente, mas seguem o norte dado pela rede de

relações da sociedade em que surgem.

Dessa forma, o que necessita ficar claro é que "é o homem − como ser

histórico-social e com a sua atividade prática − que cria os valores e os bens nos quais

se encarnam. Os valores só existem e se realizam no homem e pelo homem"28.

Mas também os atos humanos podem ser valorados e − agora o mais

importante − somente eles encarnam os valores morais. Com efeito, de um objeto

valorado em relação à necessidade humana pode-se dizer "bom" ou "bonito" no sentido

de que se prestou a desempenhar positivamente a utilidade a que se propôs. Mas são

predicados sem nenhuma significação moral, apenas utilitária.

Uma faca, por exemplo, pode ser "boa" do ponto de vista a que se destina, isto

é, para cortar, pela qualidade do aço da lâmina. Em sendo utilizada para assassinar

uma pessoa, não se poderá dizer que o objeto não é bom, ao inverso, mostrou-se

"bom" (útil) para o fim empregado. O que pode ser qualificado do ponto de vista moral

não é o objeto faca, bem moralmente neutro, mas o seu uso, o ato humano de

utilização para determinado fim, que no caso é repreensível29.

27 VÁSQUEZ, op. cit., p. 122. 28 VÁSQUEZ, op. cit., p. 126. 29 VÁSQUEZ, op. cit., p. 129.

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Destarte, a conduta humana dirige-se sempre para um fim, porque o homem,

enquanto ser livre e consciente (racional), conhece as relações de causa-efeito e pode,

com base nelas, escolher os fins que lhe aprouverem e pôr em correspondência os

respectivos meios para alcançá-los.

Ora, se a ação é dirigida finalisticamente, é forçoso reconhecer que o fim

almejado pela conduta, em determinado momento, constitui-se no motivo, positivo ou

negativo, da ação. Então, o valor da ação humana reside precisamente naquilo a que

ela tende, para o fim a que é dirigida30.

Com razão, aceitando-se que o comportamento humano é passível de uma

valoração ética justamente porque é dirigido pelo homem, livre e racionalmente, para

um fim, não se pode fugir da conclusão de que o valor moral da ação recai sobre esse

fim. O que distingue e classifica a conduta humana como (i)moral é exatamente a

possibilidade de o homem estimar a finalidade e dirigi-la para o intento escolhido. Daí

que, nessa seara, quando se fala em valor, fala-se sempre em direção para agir, em

solicitação de comportamento. Liga-se, aqui, indelevelmente, a noção de valor com

"dever ser".

Atente-se que as regras morais, justamente por definirem a exigência de um

comportamento humano em um determinado sentido, visando a um fim axiologicamente

estabelecido com o "bem" ou "bom", consoante se verá, não podem ter a concepção

das regras pertinentes às ciências naturais, que se identificam como o registro de um

fato e, assim, importam um juízo fatual. Elas, como se disse, solicitam determinado

comportamento, ou seja, impõem ao indivíduo que ajuste a sua ação ao estabelecido

na regra em questão. Isso implica um dever ser.

30 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 379.

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30

A diferença é gritante e importante. Em sede das ciências empíricas, a

desconformidade do fato real com a situação descrita na respectiva norma implicaria,

necessariamente, na invalidação desta. Para as regras morais, a não-correspondência

da conduta humana, no caso concreto − naquilo que ela é −, com o comando normativo,

não importa na anulação da norma. Logo, o que se deve fazer, em esfera moral, não

pode ser justificado mediante aquilo que os indivíduos fazem realmente.

Não se quer assentar, obviamente, uma insignificância dos juízos fáticos para

compreender e apoiar as razões dos valores expressos nas respectivas normas morais.

As normas e valores não apareceram soltos no ar, são um produto cultural oriundo da

natureza histórico-social do homem. O que se quer e se pode afirmar é a

impossibilidade lógica de definir uma propriedade (valor) não-natural, como o "bom" ou

o "bem", por meio de propriedades naturais. Em outras palavras, não se pode passar

logicamente do natural (fato) ao não-natural (moral), sob pena de incidir naquilo que

George Moore, já no século XX, chamou de a "falácia naturalista" da moral 31.

Reconhecendo isso, Reale, após mostrar a impossibilidade de definir um

conceito de valor segundo as exigências lógico-formais de gênero próximo e de

diferença específica, situa-o no "mundo do dever ser". Consoante sua lição,

legítimo fosse o propósito de uma definição rigorosa, diríamos com Lotze que do valor se pode dizer apenas que vale. O seu 'ser' é o 'valer'. Da mesma forma dizemos que 'ser é o que é', temos que dizer que o 'valor é o que vale'. Por que isto? Porque ser e valer são duas categorias fundamentais, duas posições primordiais do espírito perante a realidade. Ou vemos as coisas como elas são, ou as vemos enquanto valem; e, porque valem, devem ser. Não existe terceira posição equivalente32.

31 Apud BITTAR, op. cit., p. 331. 32 REALE, op. cit., p. 187.

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31

Nessa concepção, é que adentra a preferência como nota da deliberação, da

escolha na conduta humana. Prefere-se uma conduta a outra, em razão do seu motivo,

vale dizer, de seu fim. Por isso, Reale aceita que o "fim é o dever ser do valor

reconhecido racionalmente como motivo de agir"33. Da noção de fim decorre a de valor,

sendo o fim valorado enquanto compreendido como o motivo da ação.

Somente assim, considerando que todas as sociedades obedecem a uma gama

de valores (moral), seria possível uma ordenação racionalmente estimativa dos valores

humanos predominantes, não absoluta (e já se disse o porquê), mas em conformidade

com os ciclos históricos, representando esses valores o mundo do dever ser, das

normas ideais, que regeriam o comportamento do homem-social com vistas ao

progresso moral.

1.3. O bom como valor ético fundamental

Quem quer que se proponha uma análise histórico-cultural da evolução do

homem, nas suas diferentes fases, não terá dificuldades em perceber a predominância

de um valor em relação aos outros em cada tempo. Isto porque, lembra Reale "os

valores não estão isolados uns dos outros, como sustenta N. Hartmann, mas se

ordenam de forma gradativa. Podermos dizer que os valores são ou subordinantes ou

subordinados, terminologia esta que distribui os valores em valores fundamentais e

valores secundários"34.

33 REALE, op. cit., p. 379. 34 REALE, op. cit., p. 228.

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32

Prova da possibilidade dessa ordenação gradual é que no contexto histórico

encontraram-se épocas em que a vida individual e a social regeram-se por um código

de valores distinto de outras. Com efeito, épocas houve em que o valor religioso

colocava-se no centro da existência, ao passo que em outras fases a vida social foi

regrada pelo útil ou econômico. Para a ciência, o valor fundamental é a verdade, para a

arte, a beleza, e assim por diante.

Todas as éticas, porém, sejam quais forem suas orientações, premissas,

engajamentos ou preocupações histórico-sociais, assumem uma espécie do que seja

melhor para o direcionamento da ação humana e, uma vez eleita, seguem a trilha e a

orientação traçadas para sua realização, assumindo os riscos do caminho e das

conseqüências35. Em regra, sempre elegeram "bom" como sendo a finalidade

fundamental do comportamento humano. Daí porque o ato humano será positivamente

valioso quando encarna o valor da bondade, podendo ser considerado bom quando

positivo intra-subjetivamente e intersubjetivamente: bom para si e para os outros.

O conceito de bom não escapa, porém, às vicissitudes históricas, às aspirações

humanas em cada época e sociedade para alcançá-lo como valor ético fundamental.

A ética grega, com Sócrates (469-399 a.C.), via no conhecimento, no saber

contemplativo, o caminho para atingi-lo, pois somente se tornava mau por ignorância36;

com Platão (427-347 a.C.) tinha a conotação ideal de um Bem Supremo, representado

na Justiça infalível e absoluta que governa o mundo, não atingível nem realizável pelo

homem no plano concreto. Era a preparação do espírito para a morte37; já Aristóteles

(384-322 a.C.), contrariando o platonismo, entendia o bem supremo do homem como

35 BITTAR, op. cit., p. 18. 36 BITTAR, op. cit., pp. 121-136. 37 PLATÃO. A República; tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, pp. 74-111.

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algo concreto, palpável, que traduzia na felicidade (eudaimonia)38, resultante da

disposição efetiva da alma humana para a excelência moral, a virtude, que considerava

como a mediedade, o meio-termo entre o excesso e a privação (in medium est virtus)39;

por fim, Epicuro de Samos (341-270 a.C.), condicionado pelo período de decadência da

antiga Grécia, enxergava o bem maior no prazer, pois viver era um bem e, para que a

vida fosse boa, bastava que não se a perturbasse com dor e sofrimento. Evidentemente

não se referia aos prazeres fugazes e depravados, mas sim à ausência de dor psíquica

e a um estado de ataraxia da alma, atingível mediante a utilização da virtude da

prudência. É o bom sob a concepção do hedonismo40.

O estoicismo romano, com Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.), via a virtude no estado de

ataraxia da alma, que não implica ausência de sofrimentos e dores, mas conhecimento

e harmonia entre o corpo e o espírito, de forma a resignar-se contra as dificuldades,

que são passageiras e fortalecem a alma, a qual, por sua vez, é eterna, para o bem. As

dificuldades enfrentadas são provações41.

Importante influência teve, nesse contexto, a ética cristã, passível de

constatação nas obras de Santo Agostinho (354 - 430 d.C.) e de São Tomás de Aquino

(1.225 - 1.274 d.C.). O primeiro concebe a idéia de bem fundamental supremo ao estilo

platônico, com a justiça divina e infalível, porém os males derivam não da natureza do

homem (como pensava Platão), mas do mau uso do livre-arbítrio de que todo o homem

é dotado. Assim, cada um será julgado por Deus em decorrência do bom ou mau uso

dessa faculdade humana. A visão aquiniana, por sua vez, também concorda que o

homem é capaz de virtudes e vícios, mas defende que são a experiência e o hábito

38 ARSISTÓTELES. Ética à Nicômacos; tradução de Mário Gama Cury. 4ª ed. Brasília: Ed. UNB, 2001, p. 24 39 ARISTÓTELES, op. cit., p. 42 40 BITTAR, op. cit., pp. 186-198. 41 BITTAR, op. cit., pp. 199-216.

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34

(não do livre-arbítrio) racionalmente extraídos da vivência prática que permitem a

escolha entre a prática do bem e a do mal42.

Seria imperdoável, pela relevância filosófica, olvidar o racionalismo de Kant

(1.724-1.804), que via na liberdade o maior sinal de progresso moral e, por

conseguinte, um imperativo categórico no dever de agir bem, pois o único bem irrestrito

é a boa vontade, cerne da razão prática, já que a razão teórica não poderia conduzir à

felicidade por insuficiente para explicar todas as razões do existir e da escolha ética43.

Não é demais, também, referir a concepção utilitarista, bom como útil, de

Jeremy Bentham (1748-1832), forjada no pensamento filosófico inglês do século XVIII,

quando se procurava a ruptura com os dogmas religiosos. Para este movimento, a dor e

o prazer constituem a base do agir ético, no sentido de que o bom é estar participando

abundantemente do que causa prazer e estar distante do que causa dor. Na avaliação

de qualquer conduta, se os benefícios suplantarem os malefícios para o maior número

de pessoas, a ação será julgada boa, porque útil e adequada à sociedade. Do contrário,

será inútil e má44.

Há, ainda, a concepção intucionista de George Moore (1873 - 1958), para quem

o bom é uma noção empírica simples e fundamental e, por conseqüência, impassível

de definição. Em sua obra Principia ethica, refere que "minha posição é que bom é uma

noção simples, como amarelo é uma noção simples; que, da mesma forma que você

não pode, seja lá como for, explicar a alguém que ainda não saiba o que é amarelo, da

mesma forma você não pode explicar ainda o que o bom é"45.

42 BITTAR, op. cit., pp. 217-236. 43 KANT. Fundamentos da metafísica dos costumes; tradução de Lourival de Queiroz Henkel. São Paulo: Ediouro, p. 120. 44 BITTAR, op. cit., pp. 285-300. 45 Apud BITTAR, op. cit., p. 329.

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Mais não precisaria ser dito para mostrar que o conceito de bom varia

historicamente, em conformidade com a evolução do homem-social e suas tendências

na compreensão do fenômeno ético. Impossível, pois, aferrar-se a uma concepção cujo

conteúdo seja válido para todas as sociedades em todos os tempos.

Todavia, qualquer que seja o conteúdo, somente será moralmente positivo se

colocado na relação existente entre indivíduo e sociedade. Se o entendemos como a

felicidade, deve ser a felicidade que pressuponha a dos demais membros da

coletividade, pois a felicidade de alguém à custa da desgraça de outrem é

profundamente imoral. Se for o heroísmo, a luta, esta somente será valiosa na medida

em que serve a um interesse comum. Em outras palavras, partindo-se do fato de que o

indivíduo e a sociedade implicam-se necessariamente, o conteúdo do bom reside

exatamente numa vinculação adequada dos dois termos46.

A ética individualista é a forma real de comportamento que separa os interesses

individuais dos coletivos, agindo o indivíduo exclusivamente com consciência de si e

tendo como finalidade a sua realização pessoal, não importando os meios e os efeitos

de suas atitudes. Exatamente no pólo oposto está a comunidade burocrática e

desumanizada, na qual o pessoal é absorvido pelo geral. Em nossa época, somente

pode ocorrer o bom na superação dessa cisão, ou na harmonização dos interesses

pessoais com os comuns ou coletivos47.

In medium est virtus. Na máxima aristotélica reside a solução razoável para a

superação da dicotomia e harmonização dos interesses pessoais e coletivos: a ética de

consenso. Esta no dizer de Bittar,

46 VÁSQUEZ, op. cit., p. 150. 47 VÁSQUEZ, op. cit., p. 151.

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consiste no conjunto estável de práticas de conduta que o indivíduo exerce com consciência de sua inserção social, em seus múltiplos papéis e funções, tendo como fim a realização pessoal, que só se perfecciona na medida em que da adequação entre fins e meios surgem resultados vantajosos para si, com um mínimo de lesão para o outro e com a causação de um máximo de engajamento e melhorias na vida alheia48.

Com efeito, a ética individualista pode resolver a maior parte dos conflitos

interiores dos indivíduos, mas se torna absolutamente ineficaz quando trata de regular

conflitos exteriores ou intersubjetivos. Ou seja, a ética de um indivíduo quando

confrontada com a ética de outro, sob o prisma individualista, pode resultar em um

impasse ético, agredindo a possibilidade de alteridade.

Ora, já é mais do que sabido que não é o viver solitário, mas a premissa da

convivência que revela o princípio ético e permite diferenciar entre o que fazer e não

fazer49. A ética, mais do que satisfazer o indivíduo, em si mesmo considerado, deve

projetar essa satisfação como uma força centrífuga, no sentido de permitir que a ética

do outro também se realize e prolifere.

Como observa Comparato, há um contraste entre a idéia de dignidade, que é

transcendente da pessoa humana, e a individualidade pessoal de cada ser humano,

com todas as suas limitações e deficiências.

O paradigma da pessoa humana reúne em si a totalidade dos valores; ela é a supremo critério axiológico a orientar a vida de cada um de nós. Os valores éticos não são visualizados pelo homem uma vez por todas e completamente, mas descobertos pouco a pouco, no curso da história. A pessoa é um modelo, ao mesmo tempo transcendente e imanente à vida humana, um modelo que se perfaz indefinidamente e se concretiza, sem cessar, no desenvolvimento das sucessivas etapas históricas50.

48 BITTAR, op. cit., p. 48. 49 BITTAR, op. cit., p. 49. 50 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São Paulo: companhia das Letras, 2006, p. 481.

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O fator pessoal é, sem dúvida, essencial para a ética, pois a consciência da

forma de atuar encontra-se no foro íntimo, mas traz consigo toda a normatividade e

obrigatoriedade moral delimitada nas relações sociais dominantes.

Precisamente no seio da ética do consenso é que se permite o florescimento e

a proteção das éticas individuais. Note-se que a afirmação da individualidade é uma

conquista da sociedade moderna como um todo, e quando a ética egoísta se

sobrepuser à ética do consenso, optando-se pela esfera pessoal em detrimento do bem

comum, estar-se-á decretando a falência moral da sociedade.

1.4. Direito e moral

Há que investigar, agora, as relações mantidas entre o direito e a moral, pois se

trata de discutir, com base nessas averiguações, a questão ética e suas projeções em

um ramo do direito, mormente o direito processual penal. Assim, por razões

metodológicas, faz-se necessário apontar as peculiaridades distintivas de cada um dos

sistemas, para, somente então, indagar das possíveis relações entre ambos, em

especial ao fim comum da justiça.

De saída, pode-se dizer que a relação de cumplicidade entre direito e ética,

entre as normas jurídicas e as normas morais, é estreita, não obstante se possam

identificar nitidamente as diferenças entre os dois campos de estudo.

A distinção entre regras jurídicas e morais, aliás, é recente na história da

humanidade, considerando que em civilizações da Antigüidade, como a babilônica, a

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egípcia, e a grega, por exemplo, o direito confundia-se com os costumes sociais,

fundindo-se em códigos comuns preceitos jurídicos e morais, sem olvidar dos religiosos.

Os próprios romanos, em célebre máxima, definiram o direito como "a arte do bom e do

justo" (ars boni et aequi)51.

Na realidade, direito e moral são produtos histórico-sociais, o que denota,

desde logo, a íntima relação entre ambos.

Somente num estágio mais evoluído da cultura, já no lastro do Movimento

Iluminista no século XVIII, em especial com as idéias de Kant, cogitou-se de uma

distinção formal mais precisa do direito e da moral. Este importante filósofo atribuiu à

moral a função de regulamentação dos motivos ou fins, no plano da consciência e da

intenção, da conduta humana, ao passo que ao direito cabia a disciplina da

exteriorização do comportamento do homem, a manifestação exterior da vontade. Daí

por que o direito seria coercitivo, pois a coação somente poderia incidir nas relações

intersubjetivas ou nas condições exteriores de coexistência social, ao passo que a

moral seria incoercível52.

Ao argumento kantiano, de inocultável relevância na história e na atualidade,

pode-se opor regras positivas da experiência jurídica que demonstram a importância da

parte volitiva interna na conduta humana, principalmente no direito penal moderno,

pautado pela concepção da culpabilidade, onde se torna impossível a aplicação de

pena sem indagar a intenção do agente. Aliás, há casos em que a intenção do agente é

o traço divisório entre a licitude ou ilicitude penal de uma conduta, como, por exemplo,

no furto de uso.

51 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 93. 52 KANT, Immanuel. Intrudicción a la Teoría Del Derecho. Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas Y Sociales, 1997.

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Há, porém, um fundo de verdade na distinção traçada à luz do critério da

exterioridade ou interioridade, desde que se possa compreender a sua efetiva

dimensão. Com efeito, tanto a intenção quanto a vontade exteriorizada são relevantes

para o âmbito do direito, que, contudo, cuida mais desta. Enquanto a moral examina a

exteriorização do ato humano para extrair os elementos que melhor caracterizem a

intenção do agente, seu fim último, o Direito tem com fim último caracterizar o ato

exterior em face do sistema positivo de normas jurídicas e, para melhor desempenhar

sua função, indaga da intenção do agente. O que existe, em verdade, é uma diferença

quantitativa na apreciação da exteriorização do ato53.

Isso se dá, conforme Reale, porque o valor da conduta moral é definido pela

finalidade a que se dirige o ato, vale dizer, pela intenção do agente. O ato será

moralmente valioso pela correspondência entre a consciência do sujeito e as normas

que estabelecem o dever moral. No direito, o valor do ato decorre não da

correspondência entre a intenção do agente e a norma do dever jurídico, mas entre o

ato externo e a norma jurídica, que, não obstante, vale-se da intenção do agente para

melhor adequá-lo. Enfim, não se prescinde, no direito, do aspecto interno do sujeito,

pois "bem pobre coisa seria o Direito se em seus domínios a obrigatoriedade só se

caracterizasse pela 'conformidade exterior' a uma regra válida sem ressonância nos

refolhos da consciência"54.

De qualquer forma, o importante é assentar que os estudos dirigidos às

relações entre direito e moral, sob o espírito kantiano, insistem em notas distintivas que

vão além ou decorrem da enfatização do aspecto exterior do comportamento por aquele

e da intenção por esta.

53 REALE, op. cit., pp. 668-9. 54 REALE, op. cit., p. 670.

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A coercibilidade, a autonomia e a bilateralidade surgem, na observação de

Gusmão, como traços peculiares do direito. Em primeiro lugar, o constrangimento é

avesso ao dever moral, que deve ser observado voluntária e espontaneamente. Em

contrapartida, ele (o constrangimento) é essencial ao direito, afirmado sob o influxo da

ameaça de uma sanção jurídica. Daí, em segundo lugar, decorre a autonomia da moral,

imposta pela consciência do indivíduo, ao passo que o direito é imposto e garantido

pela força, pelo poder, mesmo contra a vontade de seus destinatários. Por fim, em

terceiro lugar, a moral prescreve deveres que não dão origem a direitos subjetivos,

exigíveis por outrem, reduzindo-os a deveres de consciência, enquanto o direito

estabelece uma correlação entre direitos e obrigações55.

Outro aspecto importante e não raras vezes esquecido quando se trata da

implicação entre sistema de normas morais (ética normativa) e o direito, diz com a

especial e distinta atenção que este dedica à segurança jurídica pelo papel do

legislador e do juiz, tão oposto à autonomia da consciência que caracteriza a moral.

Consoante Perelman, o direito não pode prescindir de conceder aos

legisladores e aos juizes, respectivamente, as incumbências de elaborar as regras que

se aplicarão a todos e aplicá-las de fato, justamente em razão da multiplicidade de

normas e valores. A preocupação com a segurança jurídica previne o nascimento de

zonas de incerteza em muitas situações sociais que escapam às regulamentações do

direito. Normal, portanto, que disso resulte um tratamento muito diferente da mesma

situação, conforme seja encarada do ponto de vista moral ou daquele do direito56. A

coisa julgada, que, no jargão forense "faz do preto branco e do quadrado redondo", é

exemplo típico em algumas situações, como no da impossibilidade de revisão criminal

em benefício da sociedade quando já reconhecida a inocência do acusado de um

crime, ainda que depois do trânsito em julgado da sentença advenham provas

irrefutáveis da culpabilidade do réu. Inegável, pois, que as normas jurídicas e as morais,

55 GUSMÃO, op. cit., p. 95.

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o comportamento juridicamente e o moralmente exigíveis, nem sempre encontram

consonância. Nem todas as prescrições morais são tuteladas pelo direito, até porque,

se o fossem, o direito nada mais seria do que a imposição da moral pelo poder social, o

que conflita com a própria essência das preocupações ético-morais, baseadas na

liberdade. Muitas vezes, inclusive, as normas jurídicas caminham dissociadas de

quaisquer resguardos éticos.

Daí decorre que as normas morais e éticas possuem uma amplitude maior de

situações relacionadas ao homem do que as normas jurídicas, que podem inexistir para

determinadas condutas. Logo, situações pode haver em que, diante da anomia jurídica,

a escolha da conduta deve se firmar em critérios éticos e morais.

Kelsen defendeu, aliás, a completa separação do estudo da moral daquele

destinado à ciência jurídica. Porém, em que pese a profunda e excessiva cisão

defendida em sua Teoria Pura do Direito, para colocar um obstáculo metodológico

intransponível entre o direito e a moral57, o que reconheceu o próprio autor ser

justificável apenas do ponto de vista de sua batalha pela pureza de um método

científico para o estudo do direito58, o fato é que o direito, na sua justificação, possui

entrelaçamentos umbilicais com a moral.

56 PERELMAN, Chaim. Ética e Direito; tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 304. 57 Para Kelsen o direito é um sistema de preceitos puramente lógicos, devendo o jurista, enquanto tal, fazer a abstração da origem empírica dos preceitos e valores morais que lhe ditaram a existência. Disse: "Cabe aqui, antes de tudo, dissociar o direito de outras ligações, já que sempre foi associado à moral. Naturalmente, não se nega, com isso, a exigência de que o direito deva ser moral, isto é, bom. Essa exigência se entende por si mesma; o que ela realmente significa, é outra questão" (Teoria Pura do Direito; tradução de J. Cretella Jr.. São Paulo: RT, 2001, p. 59)". 58 Kelsen não negava, com se viu, a necessidade da moral e nem da justiça (tanto que escreveu importante obra sobre o assunto, intitulada "O Problema da Justiça") como valor moral, apenas as via como objeto de estudos desvinculados da ciência do direito. Para ele, a Teoria Pura do Direito "apresenta o direito como ele é, sem legitimá-lo como justo ou desqualificá-lo como injusto; ela indaga do real e do possível, e não do direito justo. Nesse sentido, é uma Teoria do Direito justo e também uma Teoria do Direito radical-realista. Aproxima-se do direito positivo para avaliá-lo. Porta-se como ciência, sem compromisso com nada, como direito positivo, que procura entender sua existência e, através de uma análise, compreender-lhe a estrutura. Procura, principalmente, servir a algum interesse político, fornecer-lhe a ideologia, os meios pelos quais legitima ou desqualifica a atual ordem social. Com isso, entra na

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Se é verdade − e efetivamente o é − que a validade formal das normas jurídicas

não está sujeita às perquirições acerca da justiça ou não, da bondade ou não, da

moralidade ou não do comando, também é correto que um direito cimentado nos

valores e anseios predominantemente cristalizados na experiência de seus

destinatários é mais desejável, mais legítimo substancialmente. Data venia, é possível

ver, com uma clareza de doer nos olhos, que o direito não pode menosprezar

completamente as regras morais, de forma que o legislador, ao elaborar a lei, e o juiz,

ao interpretá-la e aplicá-la, mantenha distância da contribuição ética para o seu labor.

Dito de outro modo, o direito pode corresponder aos parâmetros estabelecidos

como moralmente válidos em uma sociedade, assim como se apartar desses

imperativos morais reconhecidos como válidos pelos membros dessa comunidade

social. Com propriedade, Bittar aponta que, no primeiro caso, está-se diante de um

direito moral e, no segundo, seria legítimo acoimá-lo de imoral. Essas adjetivações

retratam, por si só, a pertinência ou a impertinência do direito em relação às aspirações

morais da sociedade59.

O direito, como assevera Freitas, não pode mais ser visto como um conjunto de

normas e regras fechado, nem estas como tendo um local de maior hierarquia no

sistema, pois há a inserção de preocupações com a moralidade e com as justiça

material no âmbito do direito positivo como condição essencial de sustentação

democraticamente fundamentável do próprio Estado. A cada passo é indispensável

assimilar que as argumentações morais são acolhidas pelo direito, pois os princípios

escalonados num sistema jurídico possuem uma inafastável permeabilidade em face de

mais forte contradição com a ciência do direito tradicional, que − conhecida ou desconhecida, ora mais, ora menos - tem um caráter ideológico. Justamente por sua tendência antiideológica é que a Teoria Pura do Direito se manifesta como a verdadeira ciência do direito" (op. cit., p. 62). 59 BITTAR, op. cit., p. 25.

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argumentos eminentemente morais. Prova disso, concretamente, é a positivação na

Constituição Brasileira do princípio da moralidade (artigos 5º e 37)60.

Nesse sentido, pode-se dizer, ao contrário do normativismo kelseniano, que o

direito tem seu surgimento a partir da moral e convive com a moral continuamente,

enviando-lhe novos conceitos e normas e recebendo novos conceitos e normas. É

inescondível a importância do elemento moral no funcionamento do direito, ao mesmo

tempo em que este pode ser recomendado como objeto de meditação para os

moralistas, pois acaba desenvolvendo uma atividade moralizadora das atitudes

humanas na relação entre indivíduo e a sociedade. Trata-se de uma via de mão dupla.

No dizer de Freitas, comentando a constatação de Habermas de que os

princípios morais do direito natural transformaram-se em direito positivo nos modernos

Estados Constitucionais, revelando, assim, a dupla natureza (moral e jurídica) desses

princípios,

não é pouco agasalhar a idéia de que ‘a legitimidade da legalidade resulta do entrelaçamento entre processos jurídicos e uma argumentação moral’. Apesar disso, impõe-se registrar que ainda se ouve, com reiteração, o argumento inaceitável de que nem tudo que é lícito é honesto. Não se podem resolver problemas jurídicos recorrendo à suposta separação rígida, que, como visto, não se coaduna nem com os discursos constitucionais democráticos, nem com as mais avançadas teorias da interpretação jurídica que preconizam uma compreensão do direito a ser aplicado à luz de paradigmas diversos.61

É preciso descer do plano meramente formal, sem sentido, reconhecendo a

importância histórica da moral na formação do direito e colocando-a no merecido lugar

de destaque quando da sua aplicação.

60 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 3ª ed. Malheiros, São Paulo, 2002, pp. 214-5. 61 FREITAS, op. cit., p. 216.

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O direito sem moral, ou o direito contrário às aspirações morais de uma

comunidade, é a própria força despida de sentido, pois busca a realização de normas

axiologicamente vazias. Precisará de vigilância redobrada do poder público para evitar

a sua inobservância. Enfim, é puro arbítrio, e não direito62.

"Não há direito sem sociedade, e vice-versa", diz Reale63.

Reale, então, arremata64:

Sendo o direito um bem cultural, nele há sempre uma exigência axiológica atualizando-se na condicionalidade histórica, de maneira que a objetividade do vínculo jurídico está sempre ligada às circunstâncias de cada sociedade, aos processos de opção ou de preferência entre os múltiplos caminhos que, como vimos, se entreabrem no momento de qualquer realização de valores. Põe-se, assim, no âmago da experiência jurídica a problemática do Poder, que procura assegurar por todos os modos, pela força física, a realização do Direito65.

O direito é um dos instrumentos de controle social, de regulação das relações

de convivência. Não o único, mas atualmente, com certeza, o mais poderoso e

obrigatório sistema de regulamentação de condutas. Isso não significa que possa

prescindir dos demais, que exista por si só, e lhe seja permitido olvidar da

correspondência entre os seus ditames e a necessidade social, das aspirações morais

do povo e, principalmente, de suas finalidades: ordem, paz social e justiça (que é, por

excelência, um conceito ético).

62 BITTAR, op. cit., p. 30. 63 REALE, op. cit., p. 703. 64 REALE, op. cit., p. 703. 65 Para não deixar dúvida, explica-se o que se entende por realização do direito: "Realizar o Direito é, pelo dito, realizar a sociedade como comunidade concreta, a qual não se reduz a um conglomerado fortuito de indivíduos, mas é uma ordem de cooperação e de coexistência, uma comunhão de fins, com os quais é mister que se conciliem os fins irrenunciáveis do homem como pessoa, ou seja, como ente que tem consciência de ser o autor de suas ações, de valer como centro axiológico autônomo, o que só será possível com igual reconhecimento da personalidade alheia" (REALE, op. cit., p. 706).

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1.5. A justiça como o fim ético do direito

Neste particular, todos os povos, em todos os tempos, cada qual em

conformidade com os seus referenciais axiológicos dominantes, buscam em um sistema

normativo, moral ou de direito, a regra e a realização do justo. A justiça é considerada

por muitos a principal virtude, a fonte de todas as outras 66, a ponto de se proclamar:

pereat mundus, fiat justitia (mesmo que o mundo pereça, faça justiça).

Nessa linha, inconcebível a noção de um direito ético e injusto, sendo a

recíproca verdadeira. A justiça, em verdade, é o fim ético do direito, constitui-se no

"bom" do direito. Somente podemos qualificar bom o direito justo. O fim último do direito

é a paz social, já o disse Ihering. Contudo, pode-se, sem dúvida, apontar como fim

imediato e ético do direito a justiça, até mesmo porque a balança do direito pesa-o a fim

de dar a cada um o que é seu, a medida do seu direito, o que lhe cabe por justiça.

Contudo, quem quer que se proponha a uma análise histórica e lógica do

significado de "justiça" encontrará, ao lado da constatação de que esta foi a virtude que

se preconizou durante toda a saga humana, em nome da qual fez suas revoluções,

suas guerras, e manteve a paz, uma noção confusa. Isso é facilmente demonstrável

porque os adversários na guerra, ou na paz, nas revoluções ou nas confirmações do

regime, atuaram, sempre, ambos em nome da justiça. Partidários de uma nova ordem e

defensores de uma antiga digladiam-se invocando, cada qual, a justiça como arrimo e,

sem má-fé, podem acreditar sinceramente que defendem a causa justa. Talvez nenhum

deles esteja enganado, quando cada um fala de uma justiça diferente.

66 Proudhon, citado por Perelman, refere que "a justiça, sob diversos nomes, governa o mundo, a natureza, a humanidade, a ciência e a consciência, lógica e moral, economia política, política, história, literatura e arte. A justiça é o que há de mais primitivo na alma humana, de mais fundamental na sociedade, de mais sagrado entre as noções e o que as massas reclamam hoje com mais ardor. É a essência das religiões, ao mesmo tempo que a forma da razão, o objeto secreto da fé, é o começo, o meio e o fim do saber. Que imaginar de mais universal, de mais forte, de mais perfeito do que a justiça?" (PERELMAN, op. cit., p. 8).

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"O pensamento e a terminologia", diz E. Dupréel,

desde sempre incitaram a confundir o valor da justiça o da moralidade inteira. A literatura moral e religiosa reconhece no justo o homem integralmente honesto e benfazejo; a justiça é o nome comum de todas as formas de mérito, e os clássicos expressariam sua idéia fundamental dizendo que a ciência moral não tem outro objeto senão ensinar o que é justo fazer e ao que é justo renunciar. Ela diria também que a justiça deve ensinar-nos a distinção entre o justo e o injusto, em que consiste toda a ciência do bem e do mal. Assim, a justiça que, de um lado, é uma virtude entre as outras, envolve, do outro, toda a moralidade67.

A lição de Dupréel mostra que todo ideal de justiça depende de outros valores

que não a própria justiça, ou seja, o sistema do justo é formado por valores

estabelecidos por seus princípios. Perelman concorda quando diz que todo o sistema

de justiça constitui apenas o desenvolvimento de um de vários valores, cujo caráter

arbitrário é vinculado à própria natureza deles, o que permite compreender que não

existe um único sistema de justiça, porque existem tantos quantos valores diferentes

houver68.

Vê-se, aí, com Perelman, um conteúdo arbitrário69 na concepção de justiça, que

são os valores que a compõem, de forma a não permitir falar em uma justiça absoluta,

infalível. Nesse sentido, é a conclusão de Kelsen, em seu estudo sobre a justiça, ao

afirmar que todo o juízo de valor é irracional porque baseado na fé, sendo impossível

67 Apud PERELMAN, op. cit., p. 7. 68 PERELMAN, op. cit., p. 59. 69 Perelman explica que arbitrário, nesse sentido, significa não-suscetível de justificação racional. Assim os princípios mais gerais de um sistema normativo, que "em vez de afirmarem o que é, determinam o que vale: estabelecem o valor, o valor mais geral, do qual se deduzem as normas, os imperativos, as ordens. Ora, esse valor não tem fundamento nem na lógica, nem na realidade. Como sua afirmação não resulta de uma necessidade lógica, nem de uma universalidade experimental, o valor não é universal nem necessário; é, lógica e experimentalmente, arbitrário. Aliás, é por ser arbitrário, logo precário, que o valor se destingue da realidade. Assim como a norma supõe uma liberdade, também o valor supõe uma arbitrariedade". E arremata: "Um sistema de justiça, por mais adiantado que seja, não pode eliminar toda a arbitrariedade, senão, na verdade, já não seria um sistema normativo" (op. cit., p. 58). Somente para relembrar, neste aspecto, a lição de Miguel Reale, sobre valor, no sentido de que as coisas "valem" porque "devem ser". O valor é uma noção fundamental que se situa no plano do dever ser, não no do "ser". As normas sociais, os atos humanos "devem ser" justos, embora na realidade nem sempre o "sejam".

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indicar cientificamente - ou seja, racionalmente, um valor preferível ao outro70. Afirmava

que

se no problema da justiça partirmos de um ponto de vista racional-científico, não-metafísico, e reconhecermos que há muitos ideais de justiça diferentes uns dos outros e contraditórios entre si, nenhum dos quais exclui a possibilidade de um outro, então apenas nos será lícito conferir uma validade relativa aos valores da justiça constituídos através desses ideais71.

Em síntese, não há falar em uma justiça absoluta.

Como lembra Comparato, ao comentar a umbilical ligação entre justiça, verdade

e amor, uma das características elementares dos valores é a sua comunhão de

sentidos, pois se pode dizer de uma ação justa que ela é bela e que a injustiça provoca

um sentimento de repulsa semelhante ao da visão de um monstro:

Entre esses valores e princípios éticos não há concorrência, mas complementariedade. A justiça tende a se estiolar e, portanto, perder sua efetiva vigência se não for incessantemente aprofundada pelo amor. Este, por sua vez, descamba para um egoísmo disfarçado, ou um tíbio sentimentalismo, se não se fundar nas exigências primárias de justiça, das quais representa um aperfeiçoamento e jamais um sucedâneo. Como salientou Mahatma Gandhi, a ahisma ou não-violência nada mais é do que o amor, entendido como um estado positivo de fazer o bem aos que nos ofendem ou prejudicam. Nessa concepção, a satyagraha, como disposição interior de amor incondicional à verdade, exige de todos os que a ela aderem uma ação incessante contra a injustiça, em qualquer de suas modalidades72.

70 Kelsen vai mais longe, radicalizando, como fez na Teoria Pura do Direito, seu apego à pureza metodológica, ao afirmar que uma teoria científica da justiça, como não pode racionalmente indicar a preponderância de uma valor sobre o outro (já que os valores não são marcados pela razão), deve limitar-se a enumerar os possíveis valores, sem apresentar um deles como preferível. Disse: "Como ciência, não se tem de decidir o que é justo, isto é, prescrever como devemos tratar os serem humanos, mas descrever aquilo que de fato é valorado como justo, sem identificar a si própria com um destes juízos de valor" (O Problema da Justiça, tradução de João Baptista Machado. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 16). 71 KELSEN, Hans. O Problema da Justiça, tradução de João Baptista Machado. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 17. 72 COMPARATO, op. cit., p. 521.

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A concepção de justiça, como a virtude dentre as virtudes, que engloba e é

pressuposto para todas as demais, como a medida exata do bem e do mal, confunde-

se, de certo modo, com o conteúdo de toda a moralidade. Ora, se o conceito de moral −

já se disse longamente − é um conceito que não é homogêneo nem definitivo, mas

construído em conformidade com as vicissitudes do homem e da sociedade no tempo e

no espaço, a concepção do justo não foi, não é e não será a mesma para todos os

homens, sempre e em qualquer lugar. Assim também é o direito, como produto cultural

do homem, como fato histórico-social, que, para ser moral e justo, necessita aprender a

acompanhar as vicissitudes morais e da própria concepção de justiça da sociedade a

que se pretenda fazer valer.

Mas é mister ter um parâmetro para nortear as conclusões que seguem na

esteira da consideração de justo ou injusto como valor ético do direito. Não é a adesão

a quaisquer princípios ou valores que dispensa a justificação de toda a regra e de toda

a ação que se lhe amolde.

A menos que se tenha uma concepção absolutista de justiça (que já se mostrou

racionalmente impossível), como Platão, que concebia em sua filosofia a existência de

uma justiça infalível, para além da ineficaz justiça humana, a governar a ordem

universal (kósmos), inspirando-se nela o sábio para apresentar uma justiça ideal e

formular regras sociais justas73, o correto parece, data venia, que a justiça é uma

virtude, como a concebia Aristóteles, em integração com outras virtudes: a eqüidade e a

generosidade, por exemplo.

Destarte, Aristóteles, que dedicou um livro inteiro para tratar do assunto,

salientara que a justiça, no sentido de obediência às normas sociais, permitindo aos

indivíduos praticar o bem não apenas para si, mas em relação aos outros, era

73 BITTAR, op. cit., pp. 149-152.

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considerada a excelência moral74. Mas via mais de uma forma de justiça, vale dizer,

mais de uma virtude justa75. Em outras palavras, Aristóteles não aceitou a visão

absoluta e mostrou que para uma decisão justa, quando se trata de ação humana, não

há uma única solução, mas sim a mais razoável, que se funda na prudência racional, ao

passo que a injustiça seria causada pelo excesso76.

Já que não se pode (ao menos quando se trabalha com uma pretensão não-

absolutista), como se viu, adotar um único parâmetro para classificar ações e regras

como justas ou injustas em todos os tempos e lugares, dadas as vicissitudes dos

padrões morais vigentes, essa dialética Aristotélica permite, ao menos, qualificá-las

assim em razão da adoção de um conteúdo moral (princípios e valores) razoável,

prudente. Por outro lado, descartam-se as ações e regras desarrazoadas.

Não se perca de vista, contudo, que o razoável, quando se trata de direito e

moral, é também uma noção vaga, com conteúdo determinado pela história, pelas

tradições e pela cultura de uma comunidade. O que pode ser considerado razoável

numa sociedade, numa época, pode deixar de sê-lo noutra sociedade e noutra época77.

74 Resumiu o pensador grego: "Com efeito, a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo" (Ética à Nicômacos, p. 93). A excelência moral já havia sido definida por Aristóteles no Livro II: "A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo determinado pela razão (a razão graças à qual um homem é dotado de discernimento o determinaria). Trata-se de um estado intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência moral encontra e prefere o meio termo. Logo, a respeito do que ela é, ou seja, a definição que expressa a sua essência, a excelência moral é um meio termo, mas com referência ao que é melhor e conforme o bem ela é um extremo" (ARISTÓTELES, op. cit., p. 42). 75 Nesse sentido: "É óbvio, então, que há mais de uma espécie de justiça, e que uma delas é distinta da excelência moral como um todo; devemos tentar descobrir a espécie e os atributos da justiça nesse sentido estrito" (ARISTÓTELES, op. cit., p. 94). 76 É dessa postura que Aristóteles parte, logo de saída, no primeiro parágrafo do Livro V: "com vistas à justiça e à injustiça, devemos indagar quais são as espécies de ações com as quais elas se relacionam, que espécie de meio termo é a justiça, e entre que extremos o ato justo é meio termo" (op. cit., p. 91). 77 PERELMAN, op. cit., p. 253.

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Em sendo impossível, ou ao menos imprudente e sem razoabilidade, a noção

de uma justiça absoluta, talvez se possa traduzi-la num bem cunhado aforismo romano,

que combina os três preceitos básicos de Ulpiano, aplicável aos atos e regras do direito

e da moral, porquanto pôde e pode ser compreendido de formas variadas durante os

tempos, como o foi e é o justo e a justiça: honeste vivere, alterum no laedere, suum

cuique tribuere (viver honestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que é devido).

Leibiniz vê neles aforismos da justiça universal, da justiça cumulativa e da justiça

distributiva. Para Kant, eles resumem nossos deveres jurídicos que comportam uma lei

de justiça78.

Com efeito, adota-se aqui uma concepção que não foge à noção aristotélico-

tomista da justiça.

Aristóteles, em suma, mede a justiça ou injustiça de uma conduta perante um

critério social, a adequação ou não da conduta do indivíduo aos limites sociais que o

envolvem79. Aquele que pratica a injustiça encontra-se em excesso, por ter interferido

na vida alheia, enquanto aquele que sofre a injustiça encontra-se em defeito, pois é o

sujeito passivo da relação, sendo a justiça o meio termo entre o excesso (injustiça) e o

defeito (injustiça)80. O problema da justiça, em Aristóteles, como se nota, tem um fundo

acentuadamente ético.

78 Apud PERELMAN, op. cit., p. 84. 79 Disse Aristóteles: "Pela mesma razão considera-se que a justiça, e somente ela entre todas as formas de excelência moral, é o bem dos outros; de fato, ela se relaciona com o próximo, pois faz o que é vantajoso para os outros, quer se trate de um governante, quer se trate de um companheiro de comunidade. O pior dos homens é aquele que põe em prática sua deficiência moral tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos seus amigos, e o melhor dos homens não é aquele que põe em prática a sua excelência moral em relação a si mesmo, e sim em relação aos outros, pois esta é uma tarefa difícil" (op. cit., p. 93). 80 "Acabamos de definir o injusto e o justo. Feita a sua diferenciação, é claro que a ação justa é um meio termo entre agir injustamente e ser tratado injustamente, pois no primeiro caso se tem demais e no outro se tem muito pouco. A justiça é a observância do meio termo, mas não de maneira idêntica à observância de outras formas de excelência moral, e sim porque ela se relaciona com o meio termo, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos. E a justiça é a qualidade que nos permite dizer que uma pessoa está predisposta a fazer, por sua própria escolha, aquilo que é justo, e, quando se trata de repartir alguma coisa entre si mesma e outra pessoa, ou entre duas pessoas, está disposta a não dar demais a si

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Disso não difere o pensamento de São Tomás de Aquino, que comunga da

idéia aristotélica de ser a justiça uma virtude, situada no âmbito dos conceitos éticos

como a justa medida entre o excesso e a carência81. A esta, contudo, une a noção de

justiça dos juristas romanos afirmando, então, que a razão e a experiência (hábito)

caminham de braços dados, no sentido de dizer que a justiça, em particular, consiste

em dar a cada um o que é seu, nem a mais do que é devido ao outro, nem a menos. A

justiça, então, tem a ver com uma atividade da razão prática, do hábito, de discernir o

meu do seu e o seu do meu82.

Note-se, a justiça torna-se uma virtude social que cumpre obrigações para a

comunidade, em que o homem busca o que é bom para o outro e para si mesmo, de

forma a ajudá-lo na convivência harmoniosa. Este é, sem dúvida, um problema de

justiça que já se apresentava na Bíblia com uma ordem clara de valores, expressa, por

exemplo, na sentença de Cristo de dar "a César o que é de César e a Deus o que é de

Deus"83.

São Tomás de Aquino interpretava a norma que manda "dar a cada um o que

lhe é devido", distinguindo as relações entre os indivíduos, entre o todo social e os

mesma e muito pouco à outra pessoa daquilo que é desejável, e muito pouco a si mesma e demais à outra pessoa do que é nocivo, e sim dar a cada pessoa o que é proporcionalmente igual, agindo de maneira idêntica em relação a duas outras pessoas. A justiça, por outro lado, está relacionada identicamente com o injusto, que é o excesso e falta, contrário à proporcionalidade, do útil ou do nocivo. Por esta razão a injustiça é excesso e falta, no sentido de que ela leva ao excesso e à falta - no caso da própria pessoa excesso do que é útil por natureza e falta do que é nocivo, enquanto no caso de outras pessoas, embora o resultado global seja semelhante ao do caso da própria pessoa, a proporcionalidade pode ser violada em uma direção e na outra . No ato injusto, ter muito pouco é ser tratado injustamente, e ter demais é agir injustamente" (ARISTÓTELES, op. cit., p. 101). 81 "Por onde, a mediedade da justiça consiste numa certa proporção de igualdade entre a nossa obra externa e de outra pessoa. Logo, a mediedade real entre o mais e o menos, como diz Aristóteles. Daí porque a mediedade da justiça é real (Et ideo medium iustitiae in quadam proportionis aequalitate rei exterioris ad personam exteriorem, Sum. Theol., Secunda Secundae Partis, quaest. LVIII, art. X)" (apud BITTAR, op. cit., p. 233). 82 "E quem quisesse reduzir essa definição à sua forma devida, poderia dizer: a justiça é um hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribuímos a cada um o que lhe pertence (Et si Qui vellet eam in debitam formam definitionis reducere, posset sic dicere, quod iustitia est habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua voluntate ius suum unicuique tribuit; Sum. Theol., Secunda Secundae Partis, quaest. LVIII, art. I)" (apud BITTAR, op. cit., p. 234).

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indivíduos e, finalmente, entre os indivíduos e o todo social. Via nessas relações,

sucessivamente, três formas de justiça ao aplicar o suum cuique tribuere: a comutativa,

a distributiva e a legal. É evidente, porém, que não se trata apenas de distribuir os bens

devidos a cada um, mas de tratar cada pessoa de acordo com a sua dignidade e o seu

valor transcendente84.

Porém, não basta a concepção de justiça, é importante que se encontrem

meios para realizá-la e, no contexto histórico, um dos mais importantes meios é o

direito. Há, pois, uma imprescindível implicação moral no direito que se pretenda justo.

O que os distingue é, ao mesmo tempo, o ponto de contato. Gusmão sintetiza bem a

noção, ao referir que "o direito é norma executável coercitivamente, enquanto a justiça

é um ideal, ou melhor, uma experiência constante, um valor, que pode ou não ser

acolhido pelo legislador, apesar de dever sê-lo"85.

83 CLOTET, Joaquim. et al. A Justiça: abordagens filosóficas. Porto Alegre: Acadêmica /PUC, 1988, p. 12. 84 CLOTET, op. cit., p. 20. 85 GUSMÃO, op. cit., p. 100 [não há grifo no original].

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2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PARADIGMA ÉTICO-JURÍDICO

O direito deve manter-se, sob pena de desviar-se de seu fim e transformar-se

em puro arbítrio, atento e conformado com os princípios morais que regem a

consciência dos povos destinatários. Tais princípios, por sua vez, não são definitivos

nem homogêneos, mas heterogêneos e cambiantes no tempo e no espaço.

Ao sabor da evolução do homem-social, reflexos houve em lentas, sofridas e

graduais conquistas na consolidação de postulados que serviram para nortear a relação

entre os indivíduos e a sociedade em que vivem, mormente representada pelo Estado.

A história está repleta de exemplos, desde as priscas eras.

2.1 A afirmação internacional dos direitos fundamentais do homem: um

indicativo do progresso moral da humanidade

Conforme Alexy, é possível apontar os traços distintivos dos direitos

fundamentais do homem de outros direitos, pela combinação de cinco características:

são direitos universais, morais, preferenciais, fundamentais e abstratos.

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Em primeiro lugar, são direitos universais, não apenas como um ideal universal

de concretização e observância, mas, especialmente, porque os direitos fundamentais

têm como titulares todos os homens, uma vez que se cuida, em tais direitos, do

alargamento dos direitos individuais à existência e desenvolvimento da personalidade

na dimensão da comunidade; depois, em segundo lugar, são direitos morais, cuja

validez pressupõe apenas seja aceita pela justificação racional perante cada um, não

necessariamente pela sua positivação. Os direitos do homem existem quando eles

podem ser justificados perante cada um; em terceiro lugar, são direitos preferenciais,

pois, se existe um direito moral, justificável perante cada um, deve existir um direito à

concretização daquele direito, um direito moral ao direito positivo que fomente, respeite

e proteja os direitos do homem como fonte de sua própria legitimidade. Nisto,

manifesta-se a prioridade dos direitos do homem; em quarto lugar, são direitos

fundamentais, pois tratam de carências e necessidades cuja violação ou não-satisfação

significa a morte ou invasão grave do núcleo da autonomia do homem; e, por

derradeiro, em quinto lugar, são direitos abstratos, cuja aplicação nos casos concretos

pressupõe ponderação e a existência de instâncias autorizadas a decisões de

ponderações juridicamente obrigatórias86.

Ocorre que a elaboração desse conceito não se fez de uma só vez nem de uma

vez por todas. Trata-se do resultado de um longo processo histórico-evolutivo de

consolidação e reconhecimento, o qual, como se verá, não está, e jamais estará, pela

própria vicissitude histórico-social do ser humano em comunidade, pronto e terminado.

A destacada ruptura espistemológica pelo movimento Iluminista e que tomou

corpo com a Revolução Francesa, no século XVIII, assinalando o fim do regime feudal e

gizando, com a Declaração dos Direitos do Homem, o que informou o início de uma

nova era87. Marcou, simbolicamente, a sepultura do pensamento vigente na Idade

86 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático. Revista de Direito Administrativo, nº 217, pp. 58-62. 87 Não se pode olvidar que, alguns anos antes, fora precedida pelas declarações de direitos de algumas colônias norte-americanas a Revolução Americana, importante momento histórico que, para alguns, teve

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Média, na esteira da teoria organicista, em que o Estado era o sujeito principal na

relação com o indivíduo, sua parte, sendo que este tinha deveres para com aquele, e o

Estado direitos para com o indivíduo, numa relação de soberano em relação ao súdito.

Transformou-se em marco histórico da inversão de concepção, passando a ver-se o

indivíduo, declarado em seu estado natural como livre e igual aos demais88, como a

razão de ser do Estado. Ou seja, na teoria contratualista, primeiro vinha o homem, com

seus direitos naturais à liberdade, à igualdade e à propriedade, fruto de seu trabalho, e

depois surgiu o Estado, como resultante da associação dos indivíduos com o fim de

assegurar (segurança) os direitos naturais. Dessa forma, o Estado tinha deveres para

com o indivíduo, enquanto entidade que somente tinha razão de ser na segurança que

deveria propiciar aos direitos naturais, possibilitando o desenvolvimento do homem.

Como lembra Bobbio,

nunca será suficientemente sublinhada a importância histórica dessa inversão. Da concepção individualista da sociedade, nasce a democracia moderna (a democracia no sentido moderno da palavra) que deve ser corretamente definida não como faziam os antigos, isto é, como o 'poder do povo', e sim como o poder dos indivíduos tomados um a um, de todos os indivíduos que compõem? uma sociedade regida por algumas regras essenciais, entre as quais uma fundamental, a que atribui a cada um, do mesmo modo como a todos os outros, o direito de participar livremente na tomada de decisões coletivas, ou seja, das decisões que obrigam toda a coletividade89.

Essa mudança de ótica continuou evoluindo, aperfeiçoando-se, como o homem

e o Estado seguiram crescendo culturalmente. Destarte, quase dois séculos e duas

guerras mundiais mais tarde, com o advento da Declaração Universal dos Direitos do

Homem, proclamada pela Assembléia das Nações Unidas, em outubro de 1948, pôde-

se ter a certeza de que a humanidade – toda a humanidade – partilha de uma gama

maior relevância do que a própria Revolução Francesa. Cristalizou-se na Constituição dos EUA, aprovada em 1787, na Convenção da Filadélfia, que foi objeto das emendas aprovadas em 1791 e 1795, que constituem os Bill of Rights do povo americano (Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ªed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 158). 88 Artigo 1º da Declaração: "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos." 89 BOBBIO, op. cit., p. 119.

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de valores comuns, como algo subjetivamente acolhido pela universalidade dos

homens. "A Declaração representa a consciência histórica que a humanidade tem dos

próprios valores fundamentais na Segunda metade do século XX. É uma síntese do

passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma

vez para sempre", adverte, ao final, Bobbio.90.

Nesse aspecto assentam-se, então, os direitos do homem como sistema de

valores humanamente fundado e reconhecido, pois há prova do consenso geral acerca

de sua validade. Para Bobbio, em seu matiz positivista, trata-se de um fundamento

histórico, não absoluto evidentemente, mas o único que pode factualmente ser

comprovado91.

E Bobbio chama a atenção para o processo histórico-cultural na formação e

evolução dos direitos humanos. A tese dos direitos fundamentais do homem surgiu,

inicialmente, como se observou, nas teorias filosóficas do jusnaturalismo (pela via de

filósofos como John Locke e Rousseau), no sentido de que o homem, enquanto tal, tem

direitos, por natureza, inalienáveis e imprescritíveis; em dado momento, essas teorias

foram acolhidas por um poder político (como na Revolução Francesa e na Declaração

dos Direitos dos Estados Norte Americanos) e positivadas na base de uma nova

concepção de Estado, não mais absoluto. Ganhou-se em proteção, pois doravante

estavam positivados os direitos do homem, não se tratando mais de expectativas

abstratas. Não se tinha, porém, uma universalidade, pois eram direitos do homem não

enquanto tal, mas enquanto cidadão deste ou daquele Estado; mas, por fim, em uma

última fase, os direitos do homem afirmaram-se como direitos, ao mesmo tempo,

universais e positivos. Universais no sentido de que os destinatários não são apenas

cidadãos deste ou aquele Estado, mas todos os homens. Positivos porque se chegou

ao momento em que os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados

90 BOBBIO, op. cit., p. 34. 91 BOBBIO, op.cit., p. 27.

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ou idealmente reconhecidos, mas efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio

Estado.92

Conforme José Afonso da Silva,

pelo que se vê, não há propriamente uma inspiração das declarações de direitos. Houve reivindicações e lutas para conquistar os direitos nela consubstanciados. E quando as condições materiais da sociedade propiciaram, elas surgiram, conjugando-se, pois, condições objetivas e subjetivas para sua formulação93.

Verifica-se, pois, de que os direitos do homem perpassaram um longo processo

evolutivo na caminhada da civilização humana, pois a conquista de seu reconhecimento

revela que, enquanto direitos históricos, eles são mutáveis, suscetíveis de

transformação e ampliação em conformidade com as necessidades de cada período

histórico.

Apropriada, porém, nesse contexto, a advertência de Alexy:

A passagem dos direitos do homem, como direitos morais, para o direito positivo não significa, decerto, a sua despedida. O contrário é exato, porque a parte essencial dessa passagem é a transformação dos direitos do homem em direitos fundamentais de igual conteúdo. Os direitos do homem não perdem, nessa transformação, em validez moral, ganham, porém, adicionalmente uma jurídico-positiva. A espada torna-se afiada. Primeiro, com isso, está efetuado definitivamente o passo do império das idéias para o império da história94.

Então, é preciso atentar que os direitos elencados na declaração não são os

únicos e possíveis direitos do homem: são os direitos do homem histórico, tal como este

92 BOBBIO, op. cit., p. 30. 93 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 177. 94 ALEXY, op. cit., p. 62.

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se configurava na mente dos redatores da Declaração após a Segunda Guerra

Mundial95.

Com o desenvolvimento da técnica, a transformação das condições

econômicas, as mudanças na organização da vida humana e das relações sociais,

criaram novos carecimentos e, portanto, novas demandas de liberdades e poderes.

Vale lembrar que, em seus primórdios, os direitos fundamentais apresentaram-

se sob um enfoque meramente individualista, onde eram garantidos ao homem − como

uma entidade isolada − “especialmente pela sua notória inspiração jusnaturalista, os

direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei"96, abstraindo as

particulares inerentes à sua condição econômica e/ou social.

A viga mestra desses direitos fundamentais propagados circundava unicamente

em uma proteção, ainda conforme Sarlet, “do indivíduo frente ao Estado, mais

especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do

Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder97”. Assim, pois,

exsurgiram estes “direitos de defesa”, ou “de liberdades”, considerados como os direitos

fundamentais de primeira dimensão98.

Contudo, o processo de industrialização e da assunção de diversos problemas

econômicos e sociais, substancialmente procedentes das relações de trabalho e da

crise do liberalismo, com o desenvolvimento de correntes socialistas, anarquistas e

95 BOBBIO, op. cit., p. 33. 96 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 97 SARLET, op.cit. 98 Nomenclatura adotada, entre outros, por Ingo Sarlet, Paulo Bonavides e Antônio Carlos Wolkmer, cfe. WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução aos Fundamentos de uma Teoria Geral dos novos Direitos In WOLKMER, Antônio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 7.

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reformistas, abriram caminho a uma nova faceta dos direitos fundamentais, qual seja,

aquela em que do Estado não são apenas esperados respeito e passividade, frente a

direitos individuais fundamentais, como também um agir em vista à justiça social e ao

ideário da igualdade99. Nascem os direitos sociais, ou “de prestações positivas”,

reputados direitos fundamentais de segunda dimensão.

Como ressalta Sarlet, estes direitos fundamentais “caracterizam-se, ainda hoje,

por outorgarem ao indivíduo direitos a prestações sociais estatais, como assistência

social, saúde, educação, trabalho, etc"100, a fim de garantir a dignidade humana

prescrita constitucionalmente. Ou seja, do Estado esperam-se atitudes

concretas/positivas no sentido de implementar políticas sociais públicas, que visem

proporcionar e/ou resguardar vida digna aos cidadãos, erradicar a pobreza e reduzir as

desigualdades sociais.

Como nesta segunda fase ainda se observava uma preocupação precípua com

o individual − o homem como figura central destes direitos − novas demandas,

agregadas a transformações sociais, econômicas e tecnológicas, vieram a evidenciar

uma premência de atenção não mais apenas ao homem individualmente considerado, à

“figura do homem-indivíduo101”, para também, da mesma forma e com o mesmo vigor,

protegê-lo em sua visão coletiva, difusa, universal.

Instituem-se, destarte, os direitos fundamentais de terceira dimensão, dotados

de altíssimo teor de humanismo e universalidade, buscando proteger o próprio gênero

humano, tendo emergido da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à

paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade102.

99 BITTAR, op. cit., p.55. 100 BITTAR, op. cit., p. 55. 101 BITTAR, op. cit., p. 55. 102 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 523.

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Exsurgiram, pois, nos dizeres de Perez Luño103, os “novos ou novíssimos direitos, quais

sejam, os direitos ecológicos, os direitos dos povos à autodeterminação e aos recursos

naturais, o direito ao desenvolvimento e o direito à paz”.

Os direitos fundamentais de terceira dimensão ficaram igualmente conhecidos

como “direitos de solidariedade” ou “de fraternidade”, por terem exigido “esforços e

responsabilidade em escala até mesmo mundial para sua efetivação” e por visarem a

defesa de grupos humanos (família, povo, nação)104.

Justamente essa ampliação e a transformação dos direitos fundamentais do

homem no processo histórico, observa José Afonso da Silva, dificulta definir-lhes um

conceito preciso, mormente quando se empregam várias expressões para designá-los,

tais como direitos naturais, direitos humanos, direitos individuais, liberdades

fundamentais, liberdades públicas e direitos humanos fundamentais105. Para ele,

"direitos fundamentais do homem" constituem a expressão mais adequada porque

além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No quantitativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos fundamentais106.

Ciente, enfim, de que os direitos fundamentais do homem são situações

jurídicas definidas em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana,

103 LUNÕ, Pérez, apud Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Direitos Fundamentais, 2ª ed., Coimbra Editora, 1998, p. 24. 105 SARLET, op.cit. 105 SILVA, op. cit., p. 179. 106 SILVA, op. cit., p. 182.

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Bobbio asseverou que, do ponto de vista da filosofia da história, o atual debate

assumindo os direitos do homem de forma cada vez mais intensa e ampla "pode ser

interpretado como um sinal premonitório do progresso moral da humanidade"107.

Nessa esteira de universalidade, qualquer Estado que se queira chamar

democrático de direito, deve reconhecer e assegurar minimamente os direitos

fundamentais dos indivíduos, assim compreendidos não apenas como naturais, mas

como frutos de uma conquista histórica e constitutivos do arquétipo moral da sociedade

moderna.

Ocorre que a organização social global, hoje, não é mais a mesma do pós-

guerra. Até a subseqüente estrutura, dividida no mundo capitalista e socialista, ruiu com

o muro de Berlim. Hoje grandes blocos econômicos e políticos estão a suplantar,

inclusive, em alguns casos, o próprio conceito de soberania, sob o processo

aparentemente irreversível da globalização. É o suficiente para dizer que as mudanças

históricas continuaram após a década de 50 e em velocidade cada vez mais crescente

e em termos cada vez mais complexos.

O processo do desenvolvimento mundialista está transformando as sociedades,

as culturas, as economias e as instituições políticas e jurídicas, nacionais e

internacionais, que lhe são inerentes. As transformações éticas e religiosas do mundo

contemporâneo determinam exigências que não somente derivam da área econômica,

comercial ou industrial, mas que levem em conta, também, das carências sociais e do

empobrecimento cultural108.

No dizer de Comparato:

107 BOBBIO, op. cit., p. 52. 108 HESPANHA, Benedito. Justiça comunitarista, política e constituição. In: Justiça do Direito, vol. 13, n. 13, pp. 35-52, 1999.

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A proteção jurídica da pessoa humana, na atual fase da evolução histórica, analogamente ao que aconteceu nas etapas precedentes, não está de modo algum isenta de riscos. O êxito na construção de um mundo comunitário, que assegure a todos a possibilidade de realizar o máximo a sua capacidade de amar, descobrir a verdade e criar a beleza, não nos é de antemão garantido. Quando consideramos, aliás, os fatos vividos no século XX, não podemos deixar de nos dar conta de que o processo histórico não se encaminha sempre, de modo cego e necessário, em direção a mais vida, mas pode também, nos conduzir ao limiar da morte. Pois foi justamente no século da consagração dos direitos supra-individuais, da criação da Organização das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que a humanidade conheceu a experiência sem precedentes do Estado totalitário, do massacre coletivo de duas guerras intercontinentais, da organização tecnológica do genocídio e da ameaça de destruição nuclear do planeta109.

Daí decorre o compromisso das novas sociedades em aperfeiçoar

constantemente a Declaração, em especial com o surgimento dos direitos sociais,

criando novos bens a serem tutelados, novos sujeitos, e particularizando o homem em

seu status. E isso vem sendo feito, com a declaração dos direitos das crianças, dos

idosos, das mulheres, atendendo a categorias particularizadas do status do homem.

Porém, é imperativo grifar que o problema que se afigura mais urgente em

relação aos direitos fundamentais do homem não tem origem filosófica ou jurídica, mas,

em um sentido lato, política. Como asseverou Bobbio:

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, mas sim qual é o modo mais seguro de garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados110.

O reconhecimento e a afirmação histórico-social dos direitos fundamentais ao

longo dos últimos séculos teve, pois, em sua essência, um profundo conteúdo ético a

impregnar o direito com suas declarações, consistente no respeito ao homem enquanto

tal, como um fim em si mesmo. Vale dizer, dotado de dignidade, cuja noção está

impregnada na essência, portanto, de todos os direitos fundamentais.

109 COMPARATO, op. cit., p. 404.

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2.2. O respeito à dignidade da pessoa humana como pressuposto ético-

jurídico dos direitos fundamentais

Se a Declaração Universal dos Direitos do Homem pela Assembléia da ONU

em 1948 pode ser assinalada sinal premonitório de um progresso moral da

humanidade, não menos correta é a constatação de que reflete, de forma definitiva, por

meio da positivação jurídica daqueles, o compromisso primeiro com a dignidade da

pessoa humana, ao professar, logo em seu artigo 1º que "todos os homens nascem

iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para

com os outros em espírito e fraternidade".

Inegavelmente, o preceito supracitado, seguramente inspirado pelas

catastróficas e bárbaras experiências das duas grandes guerras mundiais

experimentadas na primeira metade do século passado, revitalizou e positivou, com

ares de universalidade, os matizes de uma doutrina jusnaturalista acerca da concepção

de dignidade da pessoa humana, fundada na própria natureza humana e na posição

superior do homem no cosmos e que posteriormente fora definida em seus contornos

mais atuais pelo pensamento kantiano.

Como observa Sarlet111, é possível encontrar a idéia dignidade como valor

íntrínseco à pessoa humana já no Antigo Testamento - sem com isso reivindicar para a

religião cristã a originalidade ou exclusividade acerca da concepção de dignidade,

quando se professava que "o homem fora criado à imagem e semelhança de Deus", o

110 BOBBIO, op. cit., p. 25. 111 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, pp. 29-30.

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que fez o cristianismo extrair a conseqüência de que o ser humano é dotado de valor

próprio e distinto dos demais seres e objetos da natureza.

Tal concepção guarda semelhança com a concepção estóica de dignidade da

pessoa humana, profundamente ligada à idéia de liberdade pessoal de cada indivíduo

como responsável pelos seus atos e destino, critério distintivo das demais criaturas e

que faz os seres humanos, pela sua natureza, iguais em dignidade. Desvincula-se aqui

a idéia de dignidade da posição social do indivíduo e da necessidade de

reconhecimento pelos demais membros da comunidade, extraída do pensamento

filosófico e político clássico, o que permitia, por exemplo, dizer da existência de pessoas

mais dignas do que outras112.

Ocorre que, perpassando um longo caminho evolutivo, significativo, mas que

não é objeto do presente estudo, foi na seara do pensamento jusnaturalista dos séculos

XVII e XVIII que a noção de dignidade da pessoa humana passou por um processo de

racionalização e laicização, assim como a própria idéia de direito natural, mantendo,

contudo, o vezo básico de que todos os homens são iguais em dignidade e direitos113.

O ápice dessa evolução jusnaturalista pôde ser documentado já no artigo 1º da

Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, formulado em termos de que "os

homem nascem e são livres e iguais em direitos", conceito que, como se pode

perceber, foi retomado, quase que literalmente, no pórtico da Declaração Universal dos

Direitos do Homem de 1948, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, razão pela

qual, como dito alhures, esta tratou de revitalizar a noção, perdida em meio aos

horrores das guerras, de que a dignidade é um atributo inerente à natureza do homem,

pela sua condição de ser humano.

112 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. 113 SARLET, op. cit., p. 32.

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Mas foi com Kant que, segundo Sarlet, se completou o processo de

secularização da dignidade, partindo de uma autonomia do ponto de vista ético do ser

humano, o qual, dotado naturalmente de razão, pode determinar-se a si mesmo e agir

em conformidade com a representação de certas leis. A partir disso, a caraterística

racional do ser humano o distingue dos demais seres e faz com que, pela sua

autonomia de vontade, a faculdade de autodeterminação, cada homem constitua-se em

um fim em si mesmo, seja insubstituível e, por conseqüência, objeto de respeito, dotado

pela natureza humana de dignidade114.

Importante, a essa altura, grifar com tinta indelével o indissociável conteúdo

ético presente desde o nascedouro da noção de dignidade, que perpassou toda a sua

evolução e, ainda hoje, na sua concepção mais atual conferida pelo documento da

ONU, com base em premissas jusnaturalistas e kantianas, é adotado, como se verá

oportunamente, pelo texto constitucional da maioria dos países democráticos.

Contudo, é extremamente relevante observar que a dignidade da pessoa

humana funcionou, antes de mais nada − e ainda desenvolve essa função − como o

arquétipo ético para que fosse possível a positivação em nível universal dos direitos

fundamentais do homem. E isso se depreende não apenas do aspecto tocante à

construção histórica de seu conteúdo, mas, principalmente, de sua posição privilegiada

na ordem jurídica internacional a partir da Declaração de 1948, sendo seguida − como

se verá − pelos estados democráticos constitucionais que a estabeleceram como

fundamento em suas constituições.

Nesse sentido, é possível asseverar que na dignidade da pessoa humana

encontra-se o conteúdo ético para construir e fundamentar, já no plano jurídico positivo,

todo o sistema de direitos fundamentais, notadamente porque estes constituem nada

mais do que explicitações daquela, em maior ou menor grau de intensidade. É por

114 SARLET, op. cit. p. 33.

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intermédio do reconhecimento e da observância de uma gama de direitos minimamente

fundamentais à existência do ser humano, como, por exemplo, liberdade, segurança,

propriedade, educação, que se concretizará o respeito à dignidade da pessoa. Aliás, na

inversão do pólo, poder-se-ia dizer que a necessidade de observância e,

principalmente, concretização dos direitos fundamentais importa não no

reconhecimento da dignidade da pessoa, qualidade inata de todo ser humano, mas

(em) desdobramentos de seus específicos conteúdos e na imperiosa necessidade de

impedir a sua violação.

Na mesma esteira, Miranda constata que os direitos fundamentais podem ser

conduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana, já que todos

eles, ainda que de modo e intensidade distintas e variáveis, apontam para a idéia de

proteção e desenvolvimento das pessoas, de todas as pessoas115.

Dessarte, no respeito à dignidade da pessoa humana radica a base dos direitos

fundamentais consagrados positivamente pela ordem jurídica nacional e internacional,

pois, na conclusão de Silva116, "a dignidade da pessoa humana é o valor supremo que

atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida":

Vem a calhar, nesta linha, o dito de Sarlet, sintetizando a ligação umbilical entre

a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais do homem:

Neste Contexto, verifica-se ser de tal forma indissociável a relação entre dignidade da pessoa e os direitos fundamentais que mesmo nas ordens normativas onde a dignidade ainda não mereceu referência expressa, não se poderá - apenas a partir deste dado - concluir que não se faça presente, na condição de valor informador de toda a ordem jurídica, desde que nesta estejam reconhecidos e assegurados os direitos fundamentais inerentes à

115 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Vol. IV, 3ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 181. 116 SILVA, José Afonso. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. In: Revista de Direito Administrativo nº 212, p. 94.

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pessoa humana. Com efeito, sendo correta, a premissa de que os direitos fundamentais constituem - ainda que com intensidade variável, explicitações da dignidade da pessoa, por via de conseqüência e, ao menos em princípio (já que exceções são admissíveis, consoante já frisado), em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa humana117.

Em verdade, se a dignidade da pessoa humana se projeta, em maior ou menor

intensidade, para o conteúdo essencial de todos direitos e garantias fundamentais do

homem, não se pode olvidar a dupla implicação decorrente deste postulado no sentido

de proteção e fomento aos direitos do homem.

A primeira é de caráter negativo, que impõe restrições ao poder público e

também aos particulares (há muito se percebeu que o Estado não é o único que pode

atuar como inimigo dos direitos fundamentais do homem, conforme já ressaltou

Steinmetz118) em relação a atitudes e intervenções que possam ferir a dignidade

pessoal, transformando o homem em mero objeto, despido de sua autonomia e

dignidade. Logo, são inadmissíveis ingerências que coloquem em risco o respeito à

pessoa mediante humilhações e ofensas atentatórias à capacidade de

autodeterminação.

Por outro lado, porém, há uma dimensão que se poder chamar positiva, a exigir

não a mera abstenção de ingerências atentatórias à dignidade, mas principalmente um

cunho prestacional de políticas e atividades de promoção e concretização dos direitos

fundamentais e da dignidade da pessoa humana.

Salienta Sarlet que

117 SARLET, op. cit., p. 84. 118 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. Malheiros Editores.

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como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de a dignidade gera direitos fundamentais (negativos) contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças. Como tarefa, da previsão constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da pessoa humana, dela decorrem deveres concretos de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção119.

Pode-se, então, pela dimensão e importância assumida em defesa da dignidade

da pessoa humana pelo progresso moral da humanidade, entender a posição

privilegiada conferida ao princípio da dignidade da pessoa humana pela ordem jurídica

internacional e pela dos estados democráticos de direito. É o que se passa a analisar.

2.3. A dignidade da pessoa humana como valor ético-jurídico máximo nos

cenários da ordem jurídica positiva internacional e no direito constitucional dos

estados democráticos

É verdadeiro, como bem assinalou Comparato, que a dignidade do ser humano,

qualidade inata da pessoa, "fonte e medida de todos os valores, está sempre acima de

todo o direito positivo", embora se reconheça que a expressão jurídica dessa dignidade

foi enriquecida no curso da história120. É que, como visto, a impregnação ética existente

desde o nascedouro na concepção de dignidade humana é fortíssima.

Desde logo, vale a advertência para que não se olvide da implicação ética no

conteúdo dos direitos fundamentais e na dignidade da pessoa humana:

119 SARLET, Ingo Wolfgang (org.) et al. Dimensões da dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre,: Livraria do Advogado, 2005., p. 32. 120 COMPARATO, op. cit., p. 30.

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Importa, no entanto, reconhecer que as reformas institucionais aqui apontadas serão natimortas, se não forem vivenciadas por um correspondente progresso no comportamento ético da humanidade. As instituições políticas, como bem assinalado por Montesquieu, são animadas por um espírito, que é o conjunto de valores e costumes vigentes no seio do povo. A regulação jurídica, só por si, é inoperante para modificar os costumes sociais, se não houver, concomitantemente, um largo e paciente trabalho de educação das sucessivas gerações, nos espírito do respeito universal à dignidade humana121.

Contudo, a positivação da cláusula de respeito à dignidade da pessoa humana,

a impregnar qualitativamente e quantitativamente o conteúdo dos direitos fundamentais

do homem, embora não fosse de previsão imprescindível no direito positivado, até

porque, como se ressaltou no item anterior, projeta seu significado, em maior ou menor

intensidade, no reconhecimento e na implementação de cada direito fundamental,

assume relevância no que diz com a necessidade sempre presente de

institucionalização destes direitos.

Isso porque se, como mencionado alhures por Bobbio, o grande problema não

é mais o do reconhecimento dos direitos fundamentais do homem, mas o de impedir,

apesar de solenes declarações, a sua contínua violação. Aliás, adverte Alexy que

"como mera declaração, um catálogo de direitos do homem permanece sem efeito. Os

direitos do homem devem ser transformados em direito positivo para o que seu

cumprimento esteja garantido"122.

No direito internacional, a Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945, já

em seu preâmbulo, afirma "nossa crença nos direitos fundamentais do Homem, na

dignidade e no valor da personalidade humana...". Logo após, em 10 de dezembro de

1948, na saudada Declaração Universal dos Direitos Humanos, também no preâmbulo,

as Nações Unidas afirmaram "o reconhecimento da dignidade inerente a todos os

componentes da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis". E, de forma

significativa, pela localização topográfica, dispuseram da mesma forma, no já citado

121 COMPARATO, op cit., p. 414. 122 ALEXY, op. cit., p. 57.

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artigo 1º. Além disso, o preâmbulo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e

Políticos, de 19 de dezembro de 1965, traz que "o reconhecimento da dignidade

inerente a todos os membros da sociedade humana... compõe o fundamento da

liberdade, justiça e paz mundial, no reconhecimento que esses direitos derivam da

dignidade inerente aos homens". Por sua vez, o preâmbulo da Convenção Internacional

das Nações Unidas sobre Tortura, de 1984, refere-se ao "reconhecimento de que esses

direitos derivam da dignidade inerente aos homens", repisado pela Convenção sobre o

Direito das Crianças, que fala da "dignidade inerente a todos os membros da

comunidade humana"123.

Como se verifica, o reconhecimento positivo da dignidade da pessoa humana,

em que pesem as suas origens remotas, somente ocorreu, salvo raras exceções, a

partir da metade do século XX, com o advento da Declaração Universal da ONU de

1948, espalhando-se, a partir daí, para o reconhecimento e positivação no âmbito

constitucional de diversos países.

A razão não seria outra senão, como apontado por Silva:

Em conclusão, a dignidade da pessoa humana constitui um valor que atrai a realização dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões, e, como a democracia é o único regime político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que significa dignificar o homem, é ela que se revela como o seu valor supremo, o valor que a dimensiona e humaniza124.

No âmbito constitucional europeu, recentemente, em dezembro de 2000, a

Carta de Direitos Fundamentais da União Européia consignou, em seu artigo 1º, que "a

dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida. Porém, tal

123 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.) et al. Dimensões da dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre,: Livraria do Advogado, 2005. 124 SILVA, José Afonso. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo, nº 212, p. 94.

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preceito já seguiu uma tradição inaugurada pela Lei Fundamental da Alemanha, no seu

artigo 1º, nº 1, ao declarar que "a dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-

la é dever de todos os poderes estatais". No mesmo sentido, a Constituição da

Espanha, cujo artigo 10, nº 1, estatuiu: "A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis

que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos

direitos dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social". Seguiu

idêntica trilha a Constituição portuguesa, já no seu artigo 1º: "Portugal é uma república

soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e

empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária"125. Colhem-se,

ainda, exemplos das Constituições da Grécia (artigo 2º, inciso I), da Irlanda

(Preâmbulo), da Bélgica (artigo 23), da Turquia (artigo 14, inciso IV), da Itália (artigo 27,

inciso II), e mais recentemente da Suíça (artigo 7º), na consagração expressa do

princípio da dignidade da pessoa humana. A própria Constituição da Rússia, em 1993,

rompendo com a tradição da União Soviética, passou a prever expressamente, no seu

artigo 12-1, que "a dignidade da pessoa é protegida pelo Estado. Nada pode justificar

seu abatimento"126.

No âmbito da América do Sul, além da Constituição brasileira (artigo 1º, inciso

III) e da paraguaia (Preâmbulo), pode-se referir a expressa previsão à dignidade da

pessoa humana nas Constituições de Cuba (artigo 8º), do Peru (artigo 4º), da Bolívia

(artigo 6º, inciso II), e do Chile que, a despeito da origem autoritária, assegura no artigo

1º que os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, reprisando a fórmula

da Declaração da ONU de 1948127.

O quadro acima citado, ainda que meramente ilustrativo, por incompleto, é

suficiente para mostrar de forma contundente que, no plano dos direitos internacional e

125 SILVA, José Afonso. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo, nº 212,, p. 94-6. 126 SARLET, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 64. 127 SARLET, op. cit., p. 64.

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constitucional-comparado, há uma tendência irreversível de expressar positivamente o

reconhecimento ao princípio da dignidade da pessoa humana como norma e valor

fundamental do estado democrático.

Como salienta Häberle,

a dignidade apresenta-se, de tal sorte, como 'valor jurídico mais elevado' dentro do ordenamento constitucional, figurando como valor jurídico supremo. O caráter pré-positivo da dignidade da pessoa humana, neste sentido, implicitamente é evocado. Característica é também a formulação da dignidade da pessoa humana como "fim supremo de todo o Direito" ou como determinação da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, que está na base de todos os direitos fundamentais128.

O Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, preocupou-se definitivamente

em defender os direitos e garantias fundamentais do homem, inscrevendo-os em

diversas oportunidades, em especial no Titulo II do diploma. Mas, principalmente,

seguindo a tendência dos direitos internacional e constitucional comparado, erigiu, logo

no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna, "a dignidade da pessoa humana" à condição de

"fundamento do Estado Democrático de Direito", valorizando a primazia do homem, da

pessoa humana.

Abriram-se, de uma vez por todas, as portas para uma verdadeira

transformação, pois seria ilusão pensar em fazer uma sociedade justa e fraterna em

uma ambiente democrático, como quer a Constituição, se não se começar com o

respeito à dignidade na base, no desenvolvimento da personalidade das pessoas que

compõem a sociedade.

128 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo. Dimensões da dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre,: Livraria do Advogado, 2005. pp. 93-4.

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Calha, mais uma vez, o dizer de Häberle:

Uma Constituição que parte da dignidade humana e de sua proteção deve preocupar-se com que essa dignidade (incluindo suas vinculações) seja vista com um objetivo pedagógico − desde as escolas até a regulamentação da atividade de radiodifusão −, mesmo onde a dignidade não esteja textualmente como constituindo objetivo pedagógico. Da previsão textual da dignidade deriva sua condição do objetivo pedagógico e educativo. A Constituição assume este compromisso perante si própria129.

Com efeito, a Constituição de 1988 erigiu a dignidade da pessoa humana para

além da condição de um princípio fundamental constitucional e geral de inspiração da

ordem jurídica, colocando-a como fundamento da República constituída em um Estado

Democrático de Direito; é valor fundante do País, da Democracia e do Direito, dirigente

de toda a base da vida nacional, inclusive da ordem social, política, econômica, cultural,

para além da jurídica130.

Prova desse compromisso fundante em todo o cenário da vida nacional, como

núcleo essencial da nossa Constituição, nos aspectos formal e material, é que a

dignidade da pessoa humana foi objeto de expressa previsão no bojo da Lei Magna ao

estabelecer a finalidade da ordem econômica como sendo a de assegurar uma

existência digna (artigo 170, caput) e ao disciplinar, na seara social, o planejamento

familiar no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 226, § 6º), além de

assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (artigo 227, caput).

Não há como fugir à observação de Bonavides:

Toda a problemática do poder, toda a porfia de legitimação da autoridade e do Estado no caminho da redenção social há de passar, de necessidade, pelo exame do papel normativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Sua

129 HÄBERLE, op. cit., pp. 93-4. 130 SILVA, op. cit., p. 92.

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densidade jurídica no sistema constitucional há de ser portanto máxima e se houve reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia de normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados131.

Inegável a densidade jurídica e moral da dignidade da pessoa humana, que se

consubstanciará, em grau máximo, com o respeito aos direitos fundamentais do

homem.

Contudo, tais direitos não são homogêneos nem harmônicos. Ao inverso,

muitas vezes, diante de uma situação concreta, apresentam-se conflitantes, dando azo

ao que se logrou chamar de colisão de direitos fundamentais.

A relevância do tema demanda, aqui, uma maior digressão, pois, em inúmeras

situações, é preciso restringir um direito fundamental para a tutela de outro.

2.4 Colisão de direitos fundamentais e de bens jurídicos.

Importa salientar, a esta altura, que não obstante a posição axiológica-

normativa privilegiada dos direitos fundamentais em um Estado que parte do

pressuposto fundante do respeito e proteção ao homem, com vistas à realização de

suas potencialidades e autonomia, nenhum direito é absoluto, idéia, que de resto, já

permeava o espírito da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ao

expressar, em seu artigo 4º, que "o exercício dos direitos naturais de cada homem só

131 BONAVIDES,Paulo. Prefácio. In SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

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tem por limites os que assegurem aos demais membros da sociedade a fruição desses

mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados pela lei".

Dessa advertência também não se olvidou quando da Declaração Universal dos

Direitos Humanos de 1948, em seu artigo XXIX, item 2:

No exercício de seus direitos e liberdades, todo homem estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

Como se nota nos enunciados supracitados, são possíveis casos de colisão

quando do exercício de um direito fundamental por parte de seu titular com o exercício

de um direito fundamental por parte de outro titular ou quando do exercício de um

direito fundamental entra em colisão com outros bens constitucionalmente tutelados,

considerados bens jurídicos da comunidade. No primeiro caso, conforme Canotilho, ter-

se-ia uma "colisão autêntica de direitos", ao passo que no segundo uma "colisão de

direitos em sentido impróprio"132.

Consoante Alexy, "todas as colisões podem somente então ser solucionadas se

ou de um lado ou de ambos, de alguma maneira, limitações são efetuadas ou

sacrifícios são feitos. A questão é como isso deve ocorrer". E a solução, conforme o

autor, passa necessariamente por duas decisões acerca da estrutura dogmática dos

direitos fundamentais: a força vinculativa ou não dos direitos fundamentais e a distinção

entre regras e princípios, que estabelecerá a teoria dos limites, da colisão e do papel

dos direitos fundamentais no sistema jurídico133.

132 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Edições Almedina. Coimbra, p. 1.270. 133 ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado democrático de direito. Revista de direito administrativo, nº 217, p. 73.

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De plano, pode-se observar que, não tivessem os direitos fundamentais força

vinculativa para todos os poderes do estado democrático, o problema da colisão

desapareceria. Tal problema, no caso do Brasil, em face do disposto no artigo 5º,

parágrafo 1º, da Carta Magna, parece superado.

Por outro lado, seguindo na esteira de Alexy, as normas consagradoras de

direitos fundamentais devem ser interpretadas como princípios, ou seja, como

mandamentos de otimização com elevado teor de generalidade e abstração, exigindo a

satisfação e proteção de um bem jurídico da melhor forma possível, consideradas as

possibilidades jurídicas e fáticas. Como tais, não contêm mandamentos definitivos,

somente mandamentos prima facie, carecendo de conteúdo e determinação com

respeito aos princípios a eles contrapostos (que estabelecem as possibilidades

jurídicas) e as condições reais existentes (configuradoras das possibilidades fáticas)134.

A vantagem em relação ao sistema de regras é que este se constitui de normas

com prescrições valorativas para situações futuras que proíbem ou permitem algo de

forma categórica, exigindo a satisfação ou proteção de uma bem já no âmbito das

possibilidades fáticas e jurídicas. Daí porque, fossem os direitos fundamentais

interpretados como regras, em um conflito concreto a validade de um deles pereceria

em face do outro, enquanto, em se tratando de princípios, o caso concreto conferirá os

contornos da possibilidade de ponderação na definição de qual deles e em que

intensidade deva prevalecer, sem com isso acarretar a invalidade do direito

ocasionalmente preterido nas circunstâncias fácticas e jurídicas do caso concreto135.

Tal juízo de valoração de interesses em conflito corresponde à chamada

ponderação de bens jurídicos, que, por sua vez, se assenta no princípio da

proporcionalidade. Quando se mostra a colisão entre bens constitucionalmente

134 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionals, 1993, pp. 81-170.

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protegidos, faz-se necessário o sacrifício de um direito conflitante de forma proporcional

ao benefício obtido com o mesmo para solucionar a situação concreta.

Dito de um modo mais completo, segundo a teoria de Alexy: em primeiro lugar,

deve-se averiguar a compatibilidade entre o fim pretendido e os meios para sua

efetivação, vale dizer, se o sacrifício de determinado direito é meio idôneo para atingir o

fim perseguido; depois, em segundo lugar, há verificar se a medida restritiva de direitos

é indispensável, necessária, ou seja, se não há outra forma menos prejudicial para

resolver o conflito sem o sacrifício; por fim, em terceiro lugar, torna-se necessária a

ponderação de bens, também conhecida como proporcionalidade em sentido estrito,

cujo conteúdo se refere à valoração dos interesses em conflito, na medida em que, para

garantir um, há que sacrificar outro. A propósito deste, vale a máxima de que quanto

mais intensiva é uma intervenção em um direito fundamental, tanto mais graves devem

ser as razões que a justificam136.

Acerca do exposto, vale trazer a lume, em reforço à posição de Alexy, a

observação de Canotilho:

Como se deduz das considerações do texto, as normas de direitos fundamentais são entendidas como exigências ou imperativos de optimização que devem ser realizadas, na melhor medida possível, de acordo com o contexto jurídico e respectiva situação fáctica. Não existe, porém, um padrão ou critério de soluções de conflitos válidos em termos gerais e abstratos. A ponderação e/ou harmonização no caso concreto é, apesar da perigosa vizinhança de posições decisionistas, uma necessidade ineliminável137.

O próprio Alexy arremata:

135 ALEXY,. op. cit. pp. 111-4. 136 ALEXY, op. cit., pp. 111-4. 137 CANOTILHO, op. cit., p. 1.274.

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Em uma constituição como a brasileira, que conhece numerosos direitos fundamentais sociais generosamente formulados, nasce sobre esta base uma forte pressão de declarar todas as normas que não se deixam cumprir completamente simplesmente como não-vinculativas, portanto, como meros princípios programáticos. A teoria dos princípios pode, pelo contrário, levar a sério a constituição sem exigir o impossível. Ela declara que as normas que não se deixam cumprir de todo como princípios que, contra outros princípios, devam ser ponderados e, assim, são dependentes de uma 'reserva do possível no sentido daquilo que o particular pode exigir razoavelmente da sociedade'. Com isso, a teoria dos princípios oferece não só uma solução do problema da colisão, senão também do problema da vinculação138.

Não é demais salientar que o princípio da proporcionalidade não encontra na

Constituição Brasileira, como de resto também não na maioria da dos demais estados

democráticos de direito, enunciado normativo explícito, não obstante a relevância de se

identificar a sua fundamentação constitucional.

A propósito, dentre variados caminhos percorridos para justificá-lo

normativamente desde que a doutrina e a jurisprudência alemãs o desenvolveram no

segundo pós-guerra139, uma das principais hipóteses reside justamente em encontrar a

fundamentação normativa do princípio da proporcionalidade no princípio da dignidade

da pessoa humana, consagrado explícita ou implicitamente em todas as constituições

democráticas contemporâneas.

Trata-se de uma via que se aproxima muito daquela que enxerga na dignidade

da pessoa humana, conforme sustentado alhures, o núcleo material e essencial dos

direitos fundamentais, pois quando se viola o conteúdo essencial de um direito

138 ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado democrático de direito. Revista de direito administrativo, nº 217, p. 79. 139 Dentre os principais há citar os que deduzem o princípio da proporcionalidade do próprio Estado de Direito, os que o extraem do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, da cláusula do devido processo legal e até quem, como Alexy, enxerga uma “justificação jusfundamental”.

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fundamental do homem, transforma-se o titular em objeto, ofendendo diretamente a

dignidade de sua pessoa140.

Ocorre que o alto grau de abstração no conceito de dignidade da pessoa

humana não permite identificar pressupostos fáticos que indiquem a sua violação senão

em casos concretos. E, no caso concreto, os direitos fundamentais em colisão,

portadores do conteúdo da dignidade humana, têm pesos relativos. Daí porque o que

será ou não violação da dignidade humana, na hipótese de colisão de direitos

fundamentais, resultará da aplicação do princípio da proporcionalidade. Este elevado

grau de abstração indica a inconveniência de se fundamentar o princípio da

proporcionalidade exclusivamente com base em conceitos como dignidade humana141.

Diante dessas ressalvas, Steinmetz142 prefere seguir a orientação de Alexy, ao

vislumbrar um fundamento normativo superior, que toma por base o caráter principal

das normas de direitos fundamentais, significando que o princípio da proporcionalidade

é dedutível da própria natureza dos princípios enquanto mandamentos de otimização.

Ora, se os princípios podem ser realizados em diferentes graus, dependendo

das possibilidades fáticas e jurídicas, as máximas da necessidade, adequação e

ponderação de bens e interesses (que constituem o princípio da proporcionalidade) são

uma implicação lógica e normativa dos princípios, revelando o princípio da

proporcionalidade como um princípio formal para aplicação das normas-princípios143.

140 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2001, p. 164. 141 STEINMETZ, op. cit. p. 165. 142 STEINMETZ, op. cit., p. 165. 143 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionals, 1993, p. 112.

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Não obstante toda a argumentação, Steinmetz admite que “é certo que o

princípio da proporcionalidade tem como finalidade a salvaguarda da dignidade da

pessoa humana”144.

Pode-se agora, uma vez estabelecida a necessidade de uma leitura sobre o

prisma ético, adentrar na análise do processo penal, com seus conceitos e finalidades,

para fincar-lhes a correspondência com o valor ético-jurídico maior, a dignidade da

pessoa humana.

144 STEINMETZ, op. cit., p. 165.

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3. A BUSCA PELA VERDADE COMO VALOR EM UM PROCESSO PENAL "JUSTO"

E SEU LIMITE: O RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

Com a evolução do direito penal e o desaparecimento da punição da esfera

privada, o Estado passou a deter, com exclusividade, o direito de punir, abstratamente

previsto na lei penal que fixa regras de conduta e, ao mesmo tempo, limitar a punição

efetiva ao descumprimento das normas.

Destarte, soaria ilógica a vedação estatal, oriunda do monopólio da jurisdição,

de que indivíduos resolvessem pelo uso da força o litígio surgido se o Estado, quando

em um dos pólos do litígio, valesse da força para prevalecer seu interesse, prescindindo

da prévia e imparcial avaliação jurisdicional.

Uma vez praticado o ilícito penal por um indivíduo, surge para o Estado o

direito-dever de puni-lo. Entretanto, como lembra Tourinho Filho, todo o manejo de

poder, em especial o de restringir bens e interesses fundamentais do indivíduo, como a

liberdade, envolve a possibilidade de abusos, razão pela qual se reconheceu que o

próprio Estado somente poderia aplicar a pena mediante a observância de formalidades

previstas em lei e sempre por órgãos jurisdicionais145.

145 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 14. v. 1.

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Constitui-se o processo penal, portanto, o palco no qual se desenvolvem as

atividades do Estado (jurisdição) e das partes (autor e réu), sendo que nenhuma delas

poder-se-á sobrepor sobre as outras. Realçar excessivamente a jurisdição é sinal de

intervencionismo estatal na sociedade e nos indivíduos. Prestigiar em demasia a ação

penal é impedir a defesa e enfraquecer o Estado Democrático, do mesmo modo que

hipertrofiar a defesa implica quebra da paridade. Assevera Fernandes, a propósito, que

“reflexo desse posicionamento centrado é, na atualidade, o destaque dado ao exame

das garantias do devido processo legal, abrangendo-se nelas as garantias das partes e

da atividade jurisdicional”146.

Em verdade, lembra Figueiredo Dias, o processo penal traz na sua base o

problema fulcral das relações entre o Estado e a pessoa individual e a posição desta na

comunidade, sendo que as soluções concretas do direito processual penal dependem

fundamentalmente do estágio de evolução e desenvolvimento social e cultural de uma

certa comunidade, do grau de maturidade logrado pela sua consciência jurídica e das

concepções políticas de atuação estatal. No seu dizer, “o direito processual penal é

produto de uma longa evolução dirigida à escolha dos meios conducentes `a realização

ótima das tarefas próprias da administração da justiça”147.

3.1. O conteúdo e a finalidade do processo penal

Infringindo um homem com sua conduta o tipo penal, transmuda-se o direito de

punir e passa a ser um dever do Estado exigir a subordinação do interesse do

criminoso ao seu, nascendo, pois, a pretensão punitiva. A esse direito-dever opõe-se a

146 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Editora RT, 2003, p. 33. 147 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Ed., 1974, v.1, p. 60.

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pretensão do autor do crime em conservar a sua liberdade, resistindo, portanto, à

punição que lhe pretende impingir o Estado. Forma-se, assim, a lide penal, um conflito

de interesses só solucionável pela jurisdição que o compõe através do processo após

acionada pelo Estado Administração (ação penal pública) ou por um substituto

processual (ação penal privada)148.

Para Coutinho, beira à inutilidade falar da importância da lide para o processo

penal quando ela “está ao centro, no coração da estrutura. A jurisdição está lá

principalmente para resolvê-la; a ação é exercida para portá-la, na medida do

conflitante, à jurisdição; e essa, por um processo, necessariamente a ajusta”149.

A síntese da lide penal apresentada como o conflito de interesses entre o Estado

e seu direito-dever de punir e o autor do crime e seu direito de liberdade espraiou-se,

segundo observa Coutinho, com grande facilidade na teoria geral do processo brasileiro,

pelas mãos dos discípulos de Liebman, praticamente amarrando-a150.

Nessa forma de enxergar a lide como único e exclusivo conteúdo essencial do

processo penal, é possível afirmar que, enquanto o direito penal estabelece as sanções

aos transgressores de suas normas, é pelo processo penal que aquelas são aplicadas,

porquanto toda a pena é imposta processualmente. Vale dizer, o processo penal é o

instrumento do qual depende a efetivação do direito penal, de seus postulados e

finalidades.

Em razão disso, foi elevado à categoria constitucional o princípio da nulla poena

sine judicio, pelo qual não se pode conceber a aplicação de pena sem processo,

limitando-se, assim, o direito de punir do Estado, oriundo da violação de uma norma

148 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “A Lide e o Conteúdo do Processo Penal”. Curitiba: Juruá, 1998, pp. 125-6. 149 COUTINHO, op. cit., p. 126.

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penal incriminadora. Desse modo, o processo penal, que é o conjunto de formas e

procedimentos visando à composição do litígio penal pelo Estado-Juiz, constitui-se no

único instrumento legítimo e democrático para realização da pretensão punitiva.

Em outras palavras, o acolhimento do importante princípio nulla poena sine

judicio, presente em todos os sistemas democráticos do mundo, deixou patente a

vedação ao Estado de infligir pena ao violador da norma penal sem a comprovação de

sua responsabilidade mediante a decisão de um órgão jurisdicional previamente

competente e imparcial, tudo dentro do chamado devido processo legal, como prevê a

Constituição Federal Brasileira, no seu artigo 5º, inciso LIV.

Assim pensando, tem o processo penal uma finalidade mediata, que se

confunde com o fim do próprio direito − a paz sócia −, e uma finalidade imediata, de

caráter "instrumental", que é realizar, de forma "justa", a pretensão punitiva através da

garantia jurisdicional. Serve para obter a declaração de certeza, positiva ou negativa, do

fundamento da pretensão punitiva de um delito, ou seja, do fato típico. Um objetivo não

teórico, mas prático, limitado à declaração de certeza da verdade em relação ao fato

concreto e à aplicação de suas conseqüências jurídicas151, que são feitas por um órgão

dotado de poder jurisdicional e, portanto, imparcial, eqüidistante das partes envolvidas

no conflito.

O ponto culminante do processo é o seu termo com a sentença do Estado-Juiz,

decidindo o mérito da pretensão deduzida e solucionando a lide, pela aplicação do

direito objetivo, no caso o penal. Após tomar conhecimento e fixar o conteúdo do litígio

a ser decidido, por intermédio da dedução da pretensão pelo autor, sendo viável a

relação processual (competência e inexistência dos chamados pressupostos

processuais negativos), passa-se à comprovação dos fatos alegados pelas partes, em

150 COUTINHO, op. cit., p. 125. 151 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 30. v.1

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conformidade com o ônus estabelecido pela lei. Produzem-se as provas pelas partes, e

o juiz, longe de um inerte espectador, deve dirigir a marcha da produção e cuidar para

que não se descure do esclarecimento de nenhum ponto importante para o deslinde da

causa. Encerrada a fase da instrução, as partes manifestam-se, escrita ou oralmente,

sobre os elementos de convicção coletados para demonstrar suas alegações. Chega-

se, agora, ao ápice, pois resta decidir a causa. O julgador reconstruirá os fatos

controvertidos, numa tarefa parecida com a de um historiador, com os elementos de

que dispõe, que são as provas produzidas, e aplicará sobre eles as conseqüências

jurídicas ditadas pelo direito, absolvendo ou condenado o acusado, num trabalho

lógico-mental. Como se vê, a sentença encerra o ato de vontade do Estado-Juiz que

compõe a lide, condenando ou absolvendo o acusado, mas este resulta de uma

operação intelectual.

Daí dizerem os autores que a sentença encerra um silogismo, que é um raciocínio formado de três proposições, em que a premissa maior é texto legal, a premissa menor, ou premissa fática, é o fato sub judice e, finalmente, a conclusão, que nada mais representa senão a subsunção do fato examinado à lei152.

Por evidente, o Estado somente busca a aplicação da pena criminal a quem

efetivamente é o autor do fato delituoso e cuja conduta no momento do delito não se

encontrava ao abrigo de quaisquer das excludentes da ilicitude ou dirimentes da

culpabilidade. Em última análise, somente se poderia considerar como atingida a

finalidade de realização do direito penal no processo em que a decisão, baseada na

apuração dos fatos dentro das normas estabelecidas, condene o culpado, na exata

medida de sua culpabilidade (nem mais, nem menos), e absolva o inocente,

reconhecendo o equívoco da acusação, seja porque o fato não existiu, não é ilícito, o

réu não é o seu autor, ou, em o sendo, estava sob o manto de uma causa de exclusão

da ilicitude ou da culpabilidade.

152 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 186. v.4

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Aqui reside o fim ético do processo penal enquanto ramo do direito: é

instrumento de realização da justiça, na seara penal. E, tão grande equívoco, tão

gritante injustiça como a condenação de um inocente é a absolvição de um culpado ou

a sua condenação aquém da responsabilidade que efetivamente lhe deveria ser

imputada pela prática do crime. Em quaisquer das hipóteses mencionadas, em igual

dimensão, erra o processo, pois foge de sua finalidade última, desviando-se do fim

justo: suum cuique tribuere: ao culpado, a pena pelo ilícito; ao inocente, absolvição.

Com o erro no deslinde do processo, arrasta-se à bancarrota, ao menos

naquele caso, a estrutura da justiça penal, a última barreira na salvaguarda dos mais

caros interesses do indivíduo para a vida em coletividade. Não se atingiu a justiça, mas

se fez, ao inverso, uma rematada injustiça.

Obviamente, pois, a relevância da solução (justa) da lide para o processo penal

chega a ser intuitiva, tal a evidência. Contudo, não esgota, única e exclusivamente, todo

o conteúdo e a finalidade do processo penal. E disso resulta a impossibilidade da

utilização de parâmetros e valores únicos e absolutos para concretização de um

processo penal justo.

Segundo observa Coutinho, “o certo é que o conflito de interesses

eventualmente existente não é suficiente para agasalhar o conteúdo do processo penal

em todas as suas formas e fases”153. Dito de outro modo, a lide penal está no centro, no

coração do processo, mas não reina absoluta.

Vislumbram-se situações em que não há verdadeiramente um conflito de

interesses nos limites da tradicional lide penal. A propósito, o caso em que o Estado,

provada a imputação, busca a condenação do culpado, ao passo que esse, mesmo

153 COUTINHO, op. cit., p. 137.

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ciente da culpa, luta com os freios processuais disponíveis para não sofrer a punição.

Note-se o conflito de interesses diverso do tradicionalmente apontado, onde conceitos

como direito de punir, pretensão punitiva e pretensão resistida merecem uma nova

leitura, servindo a jurisdição, portanto, para o acertamento do fato concreto. O conteúdo

da lide seria, pois, no dizer de Coutinho, o “caso penal”154.

A sanção penal, no processo penal, somente poderá ser aplicada, como já se

disse, pelo exercício da jurisdição. Cometido o crime, a pena só será executada a partir

da decisão jurisdicional, que demanda um pressuposto: a reconstituição do delito, do

fato pretérito, “na medida de uma verdade processualmente válida” a demonstrar a

culpabilidade do agente. “A jurisdição, então, atua para fazer o acertamento do fato, e o

processo é o meio que utiliza para concluir se o réu deve ser punido ou não”155.

Nessa linha, então, desvendar a finalidade do processo penal demanda uma

análise mais minuciosa, que não se resume na justiça oriunda da decisão que, pela

descoberta da verdade, soluciona o conflito entre o direito de punir do Estado e o direito

de liberdade do autor do crime. Não se trataria, apenas, da efetivação do direito penal.

Figueiredo Dias, ao negar que o processo penal tem por fim a afirmação,

exercício ou execução de direitos subjetivos como o processo civil (uma vez que

segundo ele, o Estado não tem um direito subjetivo à aplicação da pena), avista-o em

“obstar à insegurança do direito que existe ‘antes’ e ‘fora’ daquele, declarando o direito

no caso concreto, isto é, definindo o que para este caso é, hoje e aqui, certo”. Conforme

o autor, “longe de servir apenas ao exercício de direitos assegurados pelo direito penal,

visa a comprovação e realização, definição e declaração do direito do caso concreto”156.

Mais um, pois, a sustentar a ampliação do conteúdo do processo penal para o “caso

154 COUTINHO, op. cit., p. 138. 155 COUTINHO, op. cit. p. 138. 156 DIAS, op. cit., p. 46.

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penal” − na expressão cunhada por Coutinho −, e não apenas à aplicação do direito

penal.

Entretanto, sinalar o fim de declarar o direito no caso concreto importa (em)

reconhecer a complexidade prática de que tal fim se reveste, pois a decisão do

processo terá de apresentar não apenas a correção na condenação ou absolvição.

Para Figueiredo dias, a decisão terá de apresentar três atributos inarredáveis: ser

atingida de modo processualmente válido, ser justa segundo o direito substantivo e

tornar seguro o direito declarado. E somente a combinação simultânea, pela

ponderação desses três fatores nos casos concretos trazidos pela lide penal, pode

preservar a paz da comunidade jurídica, fim último do direito157.

Tal concepção resulta da ponderação de valores que conflitam no processo

penal, inserindo na disputa com a justiça o valor da segurança jurídica, sem ceder a

tentação de absolutizar um ou outro.

Na determinação do fim ideal do processo há ainda, por conseguinte, que subir mais um degrau relativamente aos puros valores da ‘justiça’ e da ‘segurança’, não cedendo a tentação fácil de os absolutizar: é fato comprovado nada haver de mais perigoso que a absolutização de valores éticos singulares, pois aí se inscreverá a tendência irresistível para uma santificação dos meios pelos fins. Importa sim reconhecer que se está aqui, como em toda a autêntica <questão de direito>, mesmo no cerne de uma ponderação de valores conflitantes, cujo resultado há de corresponder ao ordenamento axiológico do Direito, há de constituir a síntese das antinomias entre justiça e segurança encontrada no degrau mais elevado da ordem jurídica158.

A justiça é, por certo, um fim ético e jurídico do processo penal, como

fartamente se expôs acima. O próprio Figueiredo Dias admite que este “não pode existir

validamente se não for presidido por uma direta intenção ou aspiração de justiça”159,

157 DIAS, op. cit. p. 49. 158 DIAS, op. cit., pp. 44-5 159 DIAS, op. cit., p. 44.

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porém não se pode afirmar de forma absoluta que o verdadeiro fim do processo só

pode ser a realização da justiça (que tem como pressuposto a descoberta da verdade),

sob pena de obstar a aplicação de princípios como o do “in dubio pro reo” e de

institutos como a “coisa julgada material”, a impedir a renovação de um processo findo

e a estabelecer certas limitações para revisão de uma sentença injusta, à custa da

justiça material da decisão.

A segurança, porém, também é um importante fim ideal do processo, o que não

impede, por também não ser absoluta, institutos como o da revisão criminal a atacá-la

frontalmente em nome de uma exigência de justiça.

Somente sob o prisma dos valores justiça e segurança em constante

ponderação e sem absolutizações é que se poderá, então, fazer uma análise mais

clara, dentro do processo penal, dos limites pela busca pela verdade, como valor e

pressuposto para realização da justiça, objetivo primordial do trabalho.

3.2. A verdade como valor a ser perseguido para um processo eticamente

justo

Ora, se a justiça penal, enquanto valor ético do direito penal e processual penal,

somente se realiza ao cabo do procedimento com o exercício da função punitiva em

face daquele que efetivamente tenha cometido um crime e com a declaração de sua

improcedência quando o acusado não o praticou, então não soa desarrazoado crer que

a justiça, para efetivar-se, depende do descobrimento da verdade fática. Esta realidade

é pressuposto daquela.

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A busca pela verdade, portanto, deve ser o norte de todo o sistema processual,

enquanto sistema ético, vale dizer, atrelado aos valores morais predominantes na

sociedade de seu tempo.

No processo civil, ao inverso, quando os particulares em litígio podem dispor

livremente dos interesses e bens objetos da lide, o acordo ou a vontade de ambos

podem restringir a procura pela verdade e jungir a decisão do juiz àquilo que fora

formalizado dentro do processo pelas partes e a rejeitar eventualmente a demanda ou a

defesa por falta de provas.

Contudo, no processo penal a natureza pública do interesse repressivo exclui

limites artificiais que se baseiam em atos ou omissões das partes, cedendo raras vezes

concessões à verdade dita formal, quando não disponha de meios para assegurar a

verdade real160 (impossibilidade de revisão criminal em favor da sociedade e absolvição

por insuficiência de provas, por exemplo), valor indispensável para que se possa

alcançar a justiça na decisão da lide.

Em razão do interesse público em disputa, consubstanciado no direito de punir

do Estado em face do infrator da lei penal, que lhe opõe resistência com o não menos

importante direito de liberdade, fruto de conquistas históricas, a aplicação da pena

somente deve ocorrer no caso do acusado efetivamente culpado, e a absolvição, por

outro lado, no caso de o réu ser efetivamente inocente. Não há terceira via em

consideração da busca pela justiça. Fora dessas hipóteses, a serem apuradas no caso

concreto, por meio da prova, não há falar em justiça no processo penal. Logo, o fim

(valor) justiça no processo penal depende, intransigentemente, da descoberta da

verdade, aqui entendida como certeza sobre o fato criminoso e suas circunstâncias.

160 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 61.

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Olavo de Carvalho, embora em outro contexto, referiu que

em qualquer sistema de ética, o primeiro e mais fundamental dos valores é a verdade. Sem o prévio compromisso com a verdade, todos os demais valores podem ser falseados à vontade, tornando-os antivalores. Mesmo os mais sublimes, como a liberdade, a igualdade, o patriotismo ou a bondade, sem a verdade, nada são senão expedientes de ocasião para uso de farsantes e patifes161.

Se assim é em qualquer sistema ético, que se dirá em um processo judicial

penal, onde a "justiça" da decisão, como valor do próprio direito processual penal

acerca do conflito entre os interesses mais relevantes da sociedade e do indivíduo, está

indelevelmente ligada ao descobrimento da verdade fática controvertida na relação

jurídico-processual.

Não se olvida que, na realidade, a decisão de um processo criminal repousa

sobre a convicção que se gera na consciência do juiz da certeza sobre a verdade dos

fatos. Essa convicção consiste em um juízo sobre determinados elementos que são

carreados ao processo visando justamente formá-la, as provas. Provar algo é

demonstrar a outra pessoa uma verdade por nós conhecida. No processo, as partes (e

o próprio juiz), como se viu, trazem elementos visando demonstrar a verdade e, assim,

convencer este, permitindo a reconstrução mental dos fatos ocorridos, sobre os quais

recairá a aplicação da lei.

Não se pretende, aqui, adentrar na tormentosa seara filosófica acerca da

possibilidade da existência e do efetivo alcance da verdade real sobre um fato histórico

do cotidiano humano. Absolutamente, não, pois, ao menos para o propósito desta

pesquisa, é totalmente inútil a discussão infindável acerca da possibilidade de alcançar

a verdade absoluta, infalível. Aliás, é forçoso reconhecer, há argumentos ponderáveis

para sustentá-la como inatingível pelo homem, "porquanto a verdade absoluta é, na

161 CARVALHO, Olavo. Em nome do amor. Zero Hora. Porto Alegre, 10 mar. 2002. Opinião.

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realidade, transcendental". A propósito, a lição de Carnelutti é suficientemente

elucidativa:

Justamente porque uma coisa é uma parte, ela é e não é; pode ser comparada a uma moeda sobre cuja cara está gravado o seu ser e, sobre a coroa, o seu não ser. Mas para conhecer a verdade da coisa, ou digamos, da parte, necessita-se conhecer, tanto a sua cara, quanto a sua coroa; uma rosa é uma rosa, ensinava Francesco, porque não é alguma outra flor; queria dizer que para conhecer verdadeiramente a rosa, isto é, para chegar à verdade, é necessário conhecer não somente aquilo que a rosa é, mas também aquilo que ela não é. Por isso, a verdade uma coisa foge até quando nós não possamos conhecer todas as outras coisas e, assim, não podemos conseguir senão um conhecimento parcial dessa coisa. E quando digo uma coisa, refiro-me, também, a um homem. Em síntese, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós. Mais tarde isso me serviu para compreender, ou ao menos a tentar compreender, porque Cristo disse: Eu sou a verdade. Portanto, a minha estrada, começada por atribuir ao processo a busca da verdade, deveria ter substituído a investigação da verdade pela da certeza162.

Vale, entretanto, a advertência de Weingartner Neto, citando Fernandez –

Armesto, de que “há se livrar da armadilha pessimista da incredulidade pós-moderna,

‘resgatando a crença em verdades objetivamente verificáveis’, visto que não há ‘ordem

social sem confiança e não há confiança sem verdade ou, no mínimo, procedimentos

aceitos par apuração da verdade’”163.

Desse modo, Ferrajoli, ao afirmar que a “verdade processual” nada mais é do

que uma “verdade aproximada”, já assinalava que há uma diferença entre o

experimento de um fato presente e a prova de um fato passado, o que fulmina

letalmente o modelo ideal e inalcançável de verdade processual fática como

correspondência objetiva entre fato pretérito e fato provado164.

162 Extraído do texto de COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao 'Verdade, Dúvida e Certeza' de Francesco Carnelutti, para os Operadores do Direito. Anuário Ibero-Americano de Direito Humanos. p. 175). 163 WEINGARTNER NETO, Jayme. Honra, privacidade e liberdade de imprensa: uma pauta de justificação penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 102. 164 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 42.

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A verdade processual fática, como a verdade histórica, “é o resultado de uma

ilação dos fatos ‘comprovados’ do passado com os fatos ‘probatórios’ do presente”,

mediante um raciocínio lógico de inferência indutiva a partir das premissas de descrição

do fato probando e das provas praticadas e, na conclusão, a enunciação do fato que se

tem provado pelas premissas. Como em todas as inferências indutivas, a conclusão

tem, portanto, “o valor de uma hipótese de probabilidade na ordem de conexão causal

entre o fato aceito como provado e o conjunto de fatos adotados como probatórios”.

Em síntese, “sua verdade não está demonstrada como logicamente deduzida das

premissas, mas somente comprovada como logicamente provável ou razoavelmente

plausível de acordou com um ou vários princípios de indução”165.

Em realidade, as controvérsias judiciais fáticas repousam no choque entre

hipóteses explicativas contraditórias – por exemplo, uma que inclui a tese da

culpabilidade e outra a da inocência do acusado − amparadas em provas recolhidas, e

a tarefa de investigação judicial é suprimir o dilema em favor da hipótese mais plausível,

dotada de maior furor explicativo e compatível com o maior número de provas e

conhecimento adquiridos166.

Desse modo, igualmente quando se afirma uma verdade científica, a verdade

processual será afirmada sobre um fato pelo que sabemos acerca dele, ou seja, “em

relação ao conjunto de conhecimentos confirmados que possuímos”. Torna-se, pois,

uma aproximação, um acercamento da verdade objetiva, num papel de princípio

regulador a permitir seja asseverado que uma tese ou hipótese é mais plausível,

preferível ou mais aproximativamente verdadeira, pelo seu maior poder de

explicação.167

165 FERRAJOLI, op. cit., p. 44. 166 FERRAJOLI, op. cit., p. 44. 167 FERRAJOLI, op. cit., pp. 42-44.

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Por isso que, como lembra Mittermaier, no processo penal não há lugar para se

discutir a verdade transcendental, reivindicada pelos filósofos, como o conhecimento do

mundo metafísico, ou a verdade matemática, mas apenas a verdade empírica, aplicável

às coisas do mundo sensível e que nos basta para a direção de nossos atos, para que

se possa certificar a existência de certos acontecimentos passados no tempo e no

espaço. A verdade, em síntese, é a correspondência entre um fato real e a idéia que

dele forma o espírito humano, passando este por vários estágios, desde a convicção,

até atingir a certeza da verdade168. Em suas palavras:

Foi dito já que a verdade, ou os motivos de que decorre, imprimem um movimento à balança da consciência, e que este movimento corresponde a um estado determinado em nosso espírito. Nesse momento, sucede algumas vezes que sentimos essa forte segurança, que pode ser produzida pelo exato rigor da dedução matemática, nos acreditamos na posse da mais alta evidência, da verdade absoluta; em outras, as conchas da balança são apenas abaladas, e só podemos formar uma conjectura, entramos em desconfiança, concebemos uma suspeita, etc.; mas entre estes dois estados há possibilidade de muitos outros169.

Mittermaier refere que o juiz chega a considerar como verdadeiros os fatos,

mas sem a perfeita compreensão dos motivos, de forma quase intuitiva. Nesse ponto, a

convicção pode ser facilmente falaz, pois, somente

se a opinião do juiz descansa sobre motivos suficientes, de que ele tem a consciência, então, e só então, pode ele decidir afirmativamente e sua sentença passar por justa entre o povo. Ora, esse estado, em que o espírito tem os fatos por verdadeiros, apoiando-se em motivo plenamente sólidos, é a convicção propriamente dita170.

Para Mittermaier, até a decisão, dá-se no espírito um combate entre os motivos

pró e contra a convicção formada, principalmente trazidos ao processo por outras

provas e pelas possibilidades oriundas das regras de experiência e razão, que insistem

168 MITTERMAIER, C. J. A . Tratado da Prova em Matéria Criminal, tradução de Herbert Wüntzel Heinrich. Campinas. Bookseller,, 1997, p. 60. 169 MITTERMAIER, op. cit., p. 63.

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em apontar o sentido inverso dos motivos acolhidos pela convicção do espírito.

Somente após analisar e sopesar detidamente todos os motivos, pró e contra, caso

aqueles repilam vitoriosamente estes, que não mais têm a condição de abalar a

imponente massa dos motivos afirmativos, a convicção toma o nome de certeza. "É a

certeza que só nos parece bastante poderosa para regular os nossos atos, e a razão

aprova esta conclusão, pois que o homem, em seus esforços para atingir a verdade

histórica, não pode esperar adiantar-se a ela"171.

Dessa forma, a certeza, para existir, pressupõe um complexo de motivos

consagrados pela razão e pela experiência para embasá-la, que se impõe

satisfatoriamente diante de um cotejo imparcial e sério com os motivos que tendem à

solução contrária. Somente aparecerá no espírito a certeza de possuir a verdade

quando dissipados os meios e as possibilidades sérias em sentido contrário.

Conforme Malatesta,

a certeza diz: vejo relações de conformidade entre o meu pensamento e a verdade. O convencimento acrescenta: nessa visão intelectual não há erros, estou certo que o pensamento é conforme a verdade. A certeza é a afirmação preliminar da verdade, significando que a noção se apresenta como verdadeira; o convencimento é a afirmação necessária da posse da certeza, significando que a certeza é legítima, e que o espírito não admite dúvidas sobre aquela verdade172.

Na realidade, a certeza resulta dessa operação racional e experimental que

compara os motivos divergentes e convergentes consagrados pela prova do processo e

elimina um dos lados, por ser fora da realidade, destituído de credibilidade. A certeza,

como diz Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, "não significa o entrechoque de

170 MITTERMAIER, op. cit., p. 63. 171 MITTERMAIER, op. cit., p. 65. 172 MALATESTA, Framarino. A Lógica das Provas, tradução de J. Alves de Sá. p. 59. v.1

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provas ou conflito de elementos, mas sim, que um deles, racional e cientificamente, não

merece consideração, devendo ser desprezado". E acrescenta:

A certeza que se exige é a certeza moral, isto é, a persuasão produzida no ânimo do juiz, de acordo com a normalidade de agir das pessoas, de forma a excluir qualquer dúvida prudente. A certeza moral não se confunde com a certeza absoluta, pois esta, ao contrário do que ocorre com aquela, exclui qualquer possibilidade de erro, o que não é possível em se tratando de trabalho humano173.

Mais do que essa verdade, que se torna certa para o espírito humano diante da

racional e experimental comparação probatória, vale dizer, uma verdade fruto do

trabalho humano, não se poderia esperar. E o direito não a exige, nem poderia.

Novamente, a lição é de Mittermaier:

Entretanto, apesar de tudo, um dedicado amigo da verdade reconhecer que a certeza, que necessariamente o contenta, não escapa ao vício da imperfeição humana; que é sempre lícito supor o contrário daquilo que consideramos verdadeiro. Enfim, a fecunda imaginação do céptico, atirando-se ao possível, encontrará sempre cem razões para a dúvida. Com efeito, em todos os casos se pode imaginar uma combinação extraordinária de circunstâncias, capaz de destruir a certeza adquirida. Porém a despeito desta possível combinação, não ficará o espirito menos satisfeito, quando os motivos suficientes sustentarem a certeza, quando todas as hipóteses razoáveis tiverem sido figuradas e rejeitadas após maduro exame; então, o juiz julgar-se-á, com segurança, na posse da verdade, objeto único de suas indagações; e é, sem dúvida, essa certeza da razão, que o legislador quis que fosse a base para o julgamento. Exigir mais seria querer o impossível, porque em todos os fatos que dependem do domínio da verdade histórica jamais se deixa atingir a verdade absoluta. Se a legislação se recusasse a admitir a certeza todas as vezes que uma hipótese contrária pudesse ser imaginada, se veriam impunes os maiores criminosos, e, por conseguinte, a anarquia fatalmente introduzida na sociedade174.

Em síntese, o que se busca é aquele estado de espírito humano (certeza),

fundado nas provas do processo, de se possuir a verdade dos fatos. E, para a pesquisa

173 ARANHA, Adalberto José de Camargo. Da Prova no Processo Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 80.

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desta e formação daquele, não se pode impor limites excessivos, como se faz na esfera

do processo civil. Os interesses em disputa, na seara do processo penal, não os

permitem. Muito menos permitem, em nome da impossibilidade de alcançar uma

verdade absoluta, o discurso mendaz que tolha a investigação profunda e exaustiva

pelas partes ou pelo juiz, como se a formação da certeza deste, para dar base correta à

justiça, fosse de somenos importância.

Ora, se a justiça é um valor (também ético) do direito e, logo, a ser buscada

pelo processo como fim (não único, nem absoluto), e se não há possibilidade de

realizá-la, como se viu, sem a certeza sobre a verdade dos fatos, então a certeza sobre

a verdade dos fatos é um valor de grande escala a ser objetivado. Vale dizer, "deve

ser", como pressuposto para realização do valor justiça.

Hume, citado por Ferrajoli, fala de conceitos históricos e axiológicos para

apontar a impossibilidade de passar-se do plano natural, do "ser", para o plano dos

valores, do "dever ser"175. George Moore, como referido alhures, usou a chamada

"falácia naturalista" para demonstrar a mesma impossibilidade. A verdade, para o

processo como fim, é um valor e, portanto, como conceito axiológico, "deve ser"

alcançada.

Dito de outro modo, o mote do processo penal "deve ser", sempre, a busca pela

certeza da verdade. Talvez, não a alcance ou não seja sempre, em todos os casos, na

prática. Mas isso não invalida a regra, pois "deve ser", como valor, desimportando que o

seja efetivamente, na realidade. Assim como a decisão do processo "deve ser" justa,

mas nem sempre "é”.

174 MITTERMAIER, op. cit., p. 66.

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3.3. As garantias processuais como expressões da dignidade: o limite

ético-jurídico à pesquisa da verdade

Não se pode olvidar a relevância da busca pela verdade dentro do processo

penal que se pretenda justo, em razão de que ao juiz não é legítimo contentar-se com a

manifestação das partes, circunscrever-se aos aspectos por elas debatidos, como uma

forma de proclamar, ao final, a verdade consensual, também chamada de formal, mas é

imposto o dever de investigar como os fatos ocorreram na realidade, a fim de dar base

certa à decisão, como única forma de fazer valer a justiça.

Ocorre que o direito, enquanto criação humana, pode elaborar condições e

critérios de justificação das decisões por ele admitidas. Graças a essa faculdade, o

direito pode permitir a fundamentação dos juízos sobre a verdade, com controles

lógicos e empíricos de validade e invalidade, o mais possível subtraídas ao erro e ao

arbítrio. Essa técnica constitui garantias, limites e condições de legitimidade no

exercício do poder jurisdicional176, até mesmo para o descobrimento da verdade. Eis,

aqui, o ponto nodal.

Com efeito, na busca processual pela verdade, afora as naturais reservas da

falibilidade e limitações humanas, todo o meio de prova possível deve ser utilizado na

revelação exata da autoria, da existência e de todas as circunstâncias de uma infração

penal. É preciso, porém, preservar a dignidade humana na realização da justiça e,

portanto, gizar os contornos dos limites éticos na busca pela verdade dentro do

processo penal, de modo que se possa equilibrar as garantias necessárias do cidadão

com o direito da sociedade à justiça, ética e verdadeira.

175 FERRAJOLI, Luigi. Poder e Control. Barcelona: Ed. Promociones Publicaciones Universitária, 1986. 176 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 57.

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Dessarte, se a dignidade da pessoa humana é o postulado ético-jurídico de

primazia no plano do direito internacional, pelo reconhecimento que as declarações de

direitos do homem lhe conferiram, bem como a viga mestra da constituição dos estados

democráticos de direito, mormente a do Brasil, cujo conteúdo é fundamento do próprio

Estado − "fonte e medida de todos os valores", então o seu respeito nas projeções e

explicitações através da observância dos direitos e garantias fundamentais do homem

há de ser o parâmetro norteador, também, da atividade estatal envolvida no processo

penal.

No dizer de Costa Andrade, com a superação do modelo inquisitorial e a

inserção do modelo acusatório de processo penal no moderno estado de direito,

trazendo consigo uma nova ordenação constitucional assentada nos direitos

fundamentais e, especialmente, na dignidade da pessoa humana, não se pode admitir

transação quando, em qualquer ponto da regulamentação processual penal, estiver em

jogo o valor autônomo da pessoa. Do contrário, o imperativo de garantir a justiça

material que provém o estado de direito poderá ocasionar exatamente o contrário,

"como sucederá sempre que a verdade material seja lograda à custa de atentado à

dignidade humana ou a violação de outros princípios do Estado de Direito"177.

Nesse diapasão, uma breve recapitulação da evolução histórica dos direitos do

homem é suficiente para diagnosticar que o direito processual penal sofreu forte

influência desde o início desse período de transmudação do inquisitório para o

acusatório, pois a sua conexão com a observância dos direitos fundamentais se

percebe de uma forma muito mais direta do que até no próprio direito penal. Destarte,

desde a obra de Beccaria se verifica o ambiente propício para propugnar a abolição da

tortura para obtenção de confissão, limites para prisão dos acusados e garantias para o

177 COSTA ANDRADE, Manoel. Sobre proibições de prova em processo penal. Coimbra Ed., Coimbra, 1992, pp. 118-9.

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depoimento, enquanto no âmbito material se houve limitado a postulados genéricos

acerca da proporcionalidade e da finalidade da sanção penal178.

Para Castanho de Carvalho, o abandono do sistema inquisitório e a passagem

para o acusatório marcaram no processo penal o incipiente e antigo sentimento de

dignidade que culminou com a revolução Francesa, ensejando para a doutrina

processual a evolução do processo como relação jurídica, onde o acusado passou à

condição de sujeito processual e não mais de mero objeto. Em suas palavras

está assegurado constitucionalmente, pelo princípio da dignidade, um Direito Processual que confira ao acusado o direito a ser julgado de forma legal e justa, um direito a provar, contraprovar, alegar e defender-se de forma ampla, em processo público, com igualdade de tratamento em relação à outra parte da relação processual179.

Com efeito, já na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789

prenunciava-se o parâmetro ético-jurídico a ser desenvolvido, constando do artigo 7º

garantias de um processo legal, essencialmente vinculadas à dignidade da pessoa

humana, ao se consagrar que "ninguém poderá ser acusado, detido ou preso, senão

nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por ela prescritas",

enquanto o artigo 9º prescreveu a proibição de arbitrariedade em prisões e detenções

"dado que todo homem dever ser presumido inocente até que tenha sido declarado

culpado"180.

Mas é na Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Assembléia da

ONU, em dezembro de 1948, cuja importância histórica no comprometimento universal

com o respeito à pessoa humana já foi suficientemente sublinhada, que se encontram

178 BACIGALUPO, Enrique. Justicia Penal Y Derechos Fundamentales. Marcial Pons. Madrid, 2002, p. 131. 179 CASTANHO DE CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti. Processo Penal e Constituição – Princípios Constitucionais do Processo Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 30. 180 Citado conforme COMPARATO. A afirmação histórica dos direitos humanos. p. 139.

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os mandamentos necessários para responder à pergunta acerca dos valores éticos e

jurídicos regentes do processo penal em um estado democrático de direito:

Artigo IX. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo X. Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres, ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Artigo XI. 1. Todo homem acusado de um fato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa181.

A projeção da dignidade explicitou-se, de modo mais detalhado, no Pacto

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pela Assembléia Geral da

ONU-, em dezembro de 1966, quando se prescreveu, além de proibições a prisões

arbitrárias, o direito a um julgamento por tribunal competente e independente (juiz

natural) e a presunção de inocência, as garantias dos acusados a informações da

acusação formulada, aos meios necessários à defesa, ao direito de presença nas

audiências, de inquirir testemunhas de acusação e obter depoimentos de testemunhas

de defesa, não se obrigando a incriminar-se, ao duplo grau de jurisdição, e a proibição

de duplo processo pelo mesmo fato delituoso (artigo 14, itens 1 a 7)182.

Descendo do plano internacional, a Constituição Brasileira que, repita-se,

fundou o estado democrático sob o pilar do respeito e promoção da dignidade humana,

não escondeu o nítido significado da necessidade de respeito ao homem durante a

persecução penal, explicitando, no artigo 5º, que estabelece no rol explícito de direitos e

garantias fundamentais a tutela jurisdicional (inciso XXXV), o devido processo legal

como pressuposto para privação da liberdade (inciso LIV), o juiz natural (incisos XXXVII

e LIII), o tratamento paritário entre as partes (inciso I), a proibição de provas obtidas por

meios ilícitos (inciso LVI), o contraditório, a ampla defesa (incisos LV e LXII) e a

181 COMPARATO. A afirmação histórica dos direitos humanos. p. 218. 182 COMPARATO, op. cit., p. 277.

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presunção de inocência (inciso LVII), além da publicidade dos julgamentos e motivação

dos atos decisórios, agora no artigo 93, inciso IX, da Carta Magna. Ora, é na

observância dessas garantias processuais que se estará atendendo ao princípio da

dignidade da pessoa humana no processo penal.

Daí porque ao processo penal, que deve promover a busca por uma justiça,

também deve impor-se um limite em nome dos próprios interesses que busca realizar.

Dito por Hassemer, trata-se de fundamentalmente evitar que o "estado se inflija a si

próprio a perda de dignidade, distanciação e superioridade que encurta a diferença

ética entre a perseguição do crime e o próprio crime"183.

Conforme Bacigalupo, é no reconhecimento dos direitos fundamentais dos

indivíduos como garantias processuais que se pode medir o caráter autoritário ou liberal

de uma sociedade. Em sociedades arbitrárias as garantias individuais do devido

processo legal são sensivelmente mais estreitas que em uma sociedade liberal, já que

a restrição de direitos fundamentais no processo importa numa proteção bastante

inferior do acusado. A redução das garantias aumenta o risco de condenação de

inocentes, ao passo que uma maior proteção do acusado aumenta o risco de

absolvição de culpados184.

Admite, entretanto, o autor, que uma fórmula de equilíbrio capaz de satisfazer

todos os pontos de vista é difícil de encontrar, mas é preciso cuidado em relação a

certas soluções que postulam um desmantelamento do processo penal para garantir

uma maior eficácia na persecução criminal, pois, levadas ao extremo, sugerem o

183 Apud COSTA ANDRADE, Manoel. Sobre proibições de prova em processo penal. Coimbra Ed., Coimbra, 1992, p. 120. 184 BACIGALUPO, Enrique. Justicia Penal Y Derechos Fundamentales. Marcial Pons. Madrid., 2002, p. 133.

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esquecimento da função primordial do estado democrático de direito, que é a proteção

da liberdade185. Exato, do ponto de vista jurídico.

Parece, contudo, que também do ponto de vista ético o Estado nunca soube

dosar com exatidão as necessárias garantias do cidadão com a garantia da sociedade

na busca por justiça. Qual o limite para alcançá-la? Bonfim responde que "o limite é

análise e a advertência que a história registra em seus excessos, suas advertências. O

limite é a afronta à ética, como referido, a própria advertência dos excessos registrados

na história. Nem um passo atrás, nem um adiante"186. Evidentemente, só se poderá falar

em uma ética pautada no respeito à dignidade da pessoa humana, e os excessos

dizem com as violações cometidas aos direitos fundamentais do homem.

É certo que a procura pela verdade no processo penal, um dos lugares por

excelência em que se tem de encontrar solução do conflito entre as exigências

comunitárias e a liberdade de realização da personalidade individual, não raras vezes

impõe àquelas uma agressão à esfera desta. Mas, no dizer de Figueiredo Dias:

Daqui que o interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade tenha de pôr-se limites – inultrapassáveis quando aquele interesse ponha em jogo a dignitas humana que pertence mesmo ao mais brutal delinqüente; ultrapassáveis, mas só depois de cuidadosa ponderação da situação, quando conflitue com o legítimo interesse das pessoas em não serem afetadas na esfera de suas liberdades pessoais para além do que seja absolutamente indispensável à consecução do interesse comunitário. É através dessa ponderação e da justa decisão do conflito que se exclui a possibilidade de abuso de poder -–da parte do próprio Estado ou dos órgãos a ele subordinados – e se põe a força da sociedade ao serviço e sob o controle do Direito; o que traduz só, afinal, aquela limitação do poder do Estado pela possibilidade de livre realização da personalidade ética do homem que constitui o mais autêntico critério de um verdadeiro Estado de Direito.187

185 BACIGALUPO, op. cit., p. 144. 186 BONFIM, op. cit., p. 128. 187 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Ed., 1974, v.1, p. 59.

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Desponta indiscutível, pois, a dignidade da pessoa humana, presente no

conteúdo essencial de cada direito fundamental do homem, como patamar de limite

ético e jurídico imposto pela própria noção de princípio fundante do Estado Democrático

de Direito à busca da verdade dentro do processo penal. Ainda que valores muito

importantes, como de fato são, aqueles instrumentalizados pelo processo, não há falar

em ultrapassar a barreira da dignidade humana na sua concretização, salvo,

excepcionalmente, quando o objetivo seja o de tutelar os portadores de igual dignidade,

num juízo concreto e acurado de ponderação de interesses conflitantes. Ao inverso,

resulta que, em regra, não há óbice outro justificável para tolher a busca da verdade

com pressuposto à realização da justiça penal. Em outras palavras, há que se buscar

sempre uma maior amplitude e esgotamento dos meios de apuração da verdade, sem

restrições inúteis ou equivocadas, sob pena de transigirmos com um dos principais fins

do processo penal: a justiça. Um limite apenas: o respeito à dignidade da pessoa

humana.

3.4 A abertura dos meios de prova e o princípio de in dubio pro reo

Não obstante se tenha evoluído muito nos campos científico e tecnológico,

conferido a possibilidade de utilização de modernos meios para a descoberta da

verdade, a prova no processo penal brasileiro continua restrita, via de regra, aos meios

tradicionais.

O mais grave é que a não-utilização de certos meios de prova, como, por

exemplo, até há bem pouco tempo, a interceptação telefônica e a quebra do sigilo

bancário, deriva de um discutível padrão ético que colocava (des)valores individuais a

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restringir o direito coletivo de obter uma justiça mais correta e efetiva, sob o manto de

uma (in)evolução histórica que insiste em exaltar a visão do Estado opressor.

Houve tempos históricos em que, efetivamente, predominou o chamado “direito

penal do terror”, com sanções assustadoramente cruéis, épocas em que o processo

penal não permitia ao acusado as mínimas garantias de defesa, com a inquisição

pautando o sistema probatório pelas ordálias, juízos divinos e confissões arrancadas à

tortura. Esse passado remoto e já sepultado há tempo foi o palco de erros judiciários

positivos e escancarados, onde muitos inocentes foram condenados. Era uma época, e

isso não se pode esquecer, em que a decantada “justiça” nunca passou de um

“arremedo”, porquanto vinculada estreitamente aos interesses palacianos de tiranos e

monarcas188.

Forjou-se, num ambiente propício, como forma de reação, o nascimento de

vários princípios de defesa dos direitos humanos e, especialmente, dos acusados do

cometimento de infrações penais, dentre eles o clássico “in dubio pro reo”. Qualquer

dúvida, assim, resolver-se-ia favoravelmente ao acusado de um crime, já que pouca ou

quase nenhuma chance detinha para provar sua inocência durante a persecução penal,

que, de tão dirigida, proporcionava uma margem de erro muito significativa no

descobrimento da verdade. 189

Através dos anos, entretanto, a (r)evolução no modo de pensar e de legislar,

encarregou-se de alijar a existência de distorções na apuração dos delitos e na punição

dos criminosos. Hoje as penas cruéis foram abolidas pelas Constituições e nelas

consagrados o amplo direito de defesa, o contraditório, a isonomia processual, o devido

processo legal, entre outros, como garantias fundamentais do indivíduo.

188 BONFIM, op. cit., p. 119-137. 189 BONFIM., op. cit. p. 119-137.

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Isso importa que lições elocubradas na época em que nenhuma garantia era

assegurada ao acusado, em que a justiça penal era apenas arremedo, feita por juiz

manietado e pelo inexorável verdugo do réu, estigmatizado na figura do acusador,

estão descontextualizadas. Outrora, o ambiente era propenso às condenações injustas

e ao coroamento de erros irreparáveis. Atualmente, com a centralização do processo a

garantir a isonomia entre ação e defesa, além das garantias da jurisdição, pouco

espaço restou ao arbítrio.

Hoje, diferentemente, se limites há na questão de provas, dizem respeito à

acusação, pois na prática forense e acadêmica tudo se tem admitido em nome do

“amplo direito de defesa” e de “Sua Excelência o Réu”, "O Príncipe do Direito Penal". A

mais significativa das penas e, também, a mais eficaz (a privativa de liberdade, que

nada possui de cruel), resume-se, na prática, à aplicação pálida em poucos casos,

talvez não os mais graves. Isso quando é possível, pois, como assinala Bonfim, a

inversão total dos parâmetros da justiça hodierna faz, na esteira do princípio “in dubio

pro reo”, com que o Estado, para provar a culpabilidade de um acusado, tenha de

procurar uma “verdadeira agulha no palheiro”, ao passo que o próprio réu assume a

tarefa, ao abrigo de "todas" as garantias processuais (mentir, ficar calado, ou outras

coisas piores) de esconder a agulha cada vez mais190.

Nesse diapasão, cristaliza-se exatamente o inverso de outrora, sendo a vítima

da política penal liberalizante a própria e impotente sociedade, que assiste assustada

ao acréscimo da criminalidade. Com certeza, no ambiente onde o acusado detém todas

as garantias, é o próprio “in dubio pro reo” que hoje conduz à imensa maioria dos erros

judiciais, lastrando a absolvição de autênticos celerados porque o julgador tem dúvida

sobre esse ou aquele aspecto formal do processo e recusa-se a pesquisar ou permitir a

pesquisa mais aprofundada da verdade.

190 BONFIM, op. cit., p. 137.

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E, aqui, o direito afasta-se de seu paradigma ético. Para evitar a injustiça pelo

excesso no pólo oposto, já que, segundo Aristóteles, citado alhures, "in medio virtus",

não se pode permitir a impregnação do processo penal com um conteúdo de ética

estritamente individualista. É preciso recordar, sempre, o que foi dito acerca da

necessidade de que a ética do consenso prepondere sobre a individual. Bittar é claro ao

referir que

Deve-se ter presente, portanto, quando se discute ética e seus limites, que as vigas do corpo social, com suas estruturas e instituições, reclamam da eticidade humana esse tipo de preocupação com o consenso, onde não há espaço para exacerbação do individualismo, mas para o florescimento dos indivíduos e de suas diversas éticas. Paradoxal ou não, a única garantia do indivíduo é o coletivo, e não o individual191.

E arrematou:

O direito deve espelhar uma preocupação com a ética do consenso. De fato, suas preocupações se direcionam para o âmbito do coletivo e se projetam no sentido da defesa dos interesses públicos. Os próprios interesses individuais são regulados juridicamente na medida em que possam ter repercussões na vida pública como um todo. Instrumento social que é, o direito deve colocar-se a serviço dos interesses da coletividade192.

Por isso, a despeito da inflação legiferante em matéria penal, com a

criminalização de condutas e o recrudescimento de certas sanções, muitos criminosos

contam, em verdade, com a incapacidade estatal para provar sua culpa dentro do

processo penal. De nada adianta um sistema rigoroso na cominação da sanção e falho

no processo para aplicá-la. E tal incapacidade, ao lado de outras variáveis econômicas

e sociais, deriva das restrições aos meios de prova calcadas em um "suposto padrão

ético", as quais, bem analisadas, estão impedindo a concretização de valores muito

caros à sociedade.

191 BITTAR, op. cit., p. 51. 192 BITTAR, op. cit., p. 51.

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Há que buscar, assim, uma análise crítica do sistema probatório no processo

penal brasileiro, com a inclusão de novos meios de provas e dissecação dos antigos,

sob o prisma da repressão à criminalidade moderna, que preserve a dignidade justiça,

mas não impeça o descobrimento da verdade como valor maior do sistema ético e

justo.

Com efeito, grande número de culpados esconde-se na esteira do consagrado

princípio de que a dúvida os favorece, e muitos inocentes, mesmo absolvidos, carregam

para sempre o fardo desta dúvida, não podendo ter a inocência cabalmente

reconhecida, mesmo que ainda não se tenham esgotado todos os meios de prova,

justamente em razão de arroubos "supostamente éticos", mas na verdade

acobertadores de interesses inconfessáveis.

Bonfim é contundente em sua crítica:

Hoje, o que se vê, é um sem número de absolvições de grandes (e pequenos) criminosos, lastradas no art. 386, VI, do Código de Processo Penal: insuficiência de provas. Se Beccaria - marco de todo o humanismo penal - hoje estivesse vivo, reciclaria muitos de seus conceitos agregando novas observações. Alargaria sua visão para questionar a defesa social mais a fundo. As vítimas do Estado a seu tempo - eram os réus, vitimados em processos penais inquisitoriais -, e, são hoje representadas pelas vítimas dos criminosos comuns, identificáveis, particularizados mesmo! Incumbe, nesse sentido, o direito adjetivo instrumentalizar convenientemente o direito substantivo. Depois o caminhar da ciência não se pode colocar na estática de ontem, o homem. Disse-o Calamandrei que o “Juiz é o direito tornado homem”. O homem é processo, e processo é desenvolvimento. A vida é realidade palpitante. Respeitantes os postulados já clássicos, humanísticos, que se preserva a dignidade, não se pode tolher o direito de ampliar e pesquisar o próprio homem, pena de continuarmos a coser e amarrar processos no século vindouro, lavrar sentenças com pena de peru e deixar à Justiça um papel apaspalhante que invoca o vetusto in dubio pro reo, quando toda a sociedade já não tem mais dúvida quanto à responsabilidade do delito... Monteiro Lobato falou de um magistrado que dava audiência de cócoras. Vamos levantar e progredir! Olhar o crime de frente e combatê-lo. O caipirismo tem ora e lugar. Não combate o Estado essa massa de criminalidade organizada e nem mesmo a criminalidade de massa, a golpes de inocência, como os afetos e piedosos

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conselhos de mãe, adicionados à marteladas de plástico (algumas penas, de tão brandas, podem assim ser comparadas)193.

É preciso, contudo, deixar claro que não se trata de um ataque ao princípio do

"in dubio pro reo", considerado o núcleo essencial do direito fundamental à presunção

de inocência, sem o qual esta garantia estaria esvaziada de conteúdo194.

Absolutamente, não.

Como diz Figueiredo Dias, “enquanto se tome como equivalente do princípio in

dubio pro reo, a presunção de inocência pertence sem dúvida aos princípios

fundamentais do processo penal em qualquer Estado de Direito”195.

Em realidade, o que propugna, numa época de incríveis avanços tecnológicos,

é a abertura dos meios de prova, permitindo uma investigação científica ampla, pois,

ante a possibilidade de desvendar delitos através de escutas telefônicas, filmagens,

quebra dos sigilos fiscal e bancário, infiltração de agentes, incentivo a delações, entre

outros meios, não se pode deixar que estes instrumentos revertam-se, pura e

simplesmente, em empecilhos criados a título de garantias e que não mais encontram

justificativa ética plausível como limitação à busca do valor verdade no processo penal.

Ocorre que, na realidade, ao aplicar o princípio in dubio pro reo, absolvendo o

acusado pela insuficiência de provas, busca-se uma saída política para o processo

imposta pela garantia da presunção de inocência, em que a verdade formal ganha vez

para evitar a temeridade de condenar um inocente à pena criminal, pois as provas não

conferem a certeza acerca do que realmente ocorreu. "Dos males, o menor", mas nem

por isso deixa de ser um mal.

193 BONFIM, op. cit., p. 132. 194 BACIGALUPO, op. cit., p. 145. 195 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Ed., 1974, v.1, p. 214.

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Não se trata, tampouco, de uma priorização da acusação ou retrocesso na

questão da divisão do ônus probatório, até porque, como bem vislumbra Figueiredo

Dias,

não é correto que a absolvição por insuficiência de provas constitua uma decisão desfavorável à acusação, mormente no caso da ação penal pública. Com efeito, não é função do Ministério Público, titular dessa espécie de ação, sustentar a todo o custo a condenação do acusado196.

Na hipótese de que o acusado fosse efetivamente culpado, deixa-o impune,

fulminando o legítimo direito de punir do Estado. Há, assim, violação da regra moral e

jurídica sintetizada com precisão por Cordeiro Guerra: "É preciso que se proclame um

principio novo - de que ninguém tem o direito à impunidade de seus crimes"197.

Por sua vez, tocante ao acusado inocente, Carnelutti alertou para o tormento da

absolvição por insuficiência de provas, pois o juiz, se não diz que o réu é culpado,

também não o afirma inocente. Assinala, definitivamente, que não houve provas para

condená-lo:

Que um seja acusado quer dizer que provavelmente, senão certamente, cometeu um delito; o processo, ou melhor, o debate serve, por isso mesmo, para resolver a dúvida. Ao invés, quando o juiz absolve por insuficiência de provas, não resolve nada: as coisas permanecem como antes. A absolvição por não ter cometido o fato ou porque o fato não constituiu delito anula a imputação; com a solução da absolvição por insuficiência de provas, a imputação permanece. O acusado continua a ser acusado por toda a vida. Não é um escândalo também isto? Nada menos do que uma confissão de impotência da justiça198.

196 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Ed., 1974, v.1, p. 212. 197 CORDEIRO GUERRA, João Baptista. A arte de acusar. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 61. 198 CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Tradução de José Antônio Cardinalli. São Paulo: CONAN, 1995, p. 61.

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Daí porque a sociedade e o indivíduo inocente, pode-se asseverar, têm o

irrestrito interesse no descobrimento da verdade durante o processo, pois somente

assim poder-se-á fazer, ética e definitivamente, a verdadeira justiça para com ambos.

Neste contexto de abertura probatória, não se olvida que a utilização de

determinados elementos de prova envolve, em maior ou menor intensidade, a

necessidade de gizar os contornos da compreensão, ordenação, tutela e, até mesmo,

sacrifício de determinados valores pessoais e comunitários de elevado significado nas

searas da ética e do direito.

Desde casos mais simples, como a possibilidade das buscas domiciliares em

cotejo com o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio (artigo 5º, inciso XI, da

Constituição Federal), perpassando pela quebra de sigilo de dados bancários (Lei

Complementar nº 105/2001) e pela captação de sinais eletromagnéticos, óticos e

acústicos, em contraposição ao direito de privacidade e imagem (artigo 5º, inciso X, da

Constituição Federal), até a interceptação de conversas telefônicas (Lei nº 9.296/96) em

relação ao direito de sigilo de dados e comunicações telefônicas (artigo 5º, inciso XII, da

Carta Magna), muito se poderia analisar sobre o prisma das possibilidades de

utilização, ou não, como elementos probatórios para a busca da verdade no processo

penal sem incidir em ofensa ao limite ético-jurídico estabelecido pelo conteúdo de

dignidade da pessoa humana em cada um dos direitos fundamentais apontados.

Portanto, inúmeros aspectos e figuras da legislação processual penal brasileira,

no que diz respeito aos meios probatórios destinados ao esclarecimento dos fatos

deduzidos na lide penal, mereceriam detalhada análise sob o prisma do limite ético-

jurídico para a busca da verdade real.

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Ocorre que uma revisitação completa dos meios probatórios disponíveis, além

de impossível do ponto de vista fático (pois vige, em face do princípio da persuasão

racional do juiz, expresso no artigo 157 do Código de Processo Penal, a liberdade dos

meios de prova), refugiria ao propósito desta pesquisa.

Dessa forma, ainda que com um certo conteúdo de arbitrariedade, opta-se por

buscar a concretização do que fora exposto na análise concreta da expressão de um

dos direitos fundamentais aplicáveis ao processo penal, que é o direito do indivíduo

acusado de não produzir provas da verdade de um fato que o incrimine ("nemo tenetur

se ipsum accusare"), como algumas de suas repercussões possíveis nos meios

probatórios previstos na legislação pátria.

3.5. Concretização: o exemplo da verdade auto-incriminadora

Tanto a Constituição Federal do Brasil, no seu artigo 5º, inciso LXIII, como o

Código de Processo Penal Brasileiro, no seu artigo 186, reconheceram ao acusado o

direito de permanecer em silêncio, vedando qualquer interpretação desfavorável pelo

exercício deste, corolário do princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova

contra si ou se incriminar (nemo tenetur se detegere). Basicamente, nessa linha, o

exercício regular de um direito não lhe poderia trazer conseqüências desfavoráveis.

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Trata-se de um direito do suspeito ou acusado, derivado do respeito à

dignidade da pessoa humana, que se concretiza como o direito de negar toda

colaboração com a acusação sem que isso lhe reflita conseqüências negativas199.

Não impende, aqui, sobre o acusado, o dever de colaboração com a verdade,

concretizado, em um primeiro plano, no direito ao silêncio.

Com efeito, atentaria contra a dignidade da pessoa humana, princípio jurídico

fundamental insculpido na Constituição Federal (artigo 1º, inciso III) e limite ético-moral,

pois fruto de uma consolidação histórica, obrigá-la a falar quando acusada de um delito.

Em síntese, obrigá-la, a qualquer custo, a produzir prova contra si, violentando o

instinto nato de autopreservação em qualquer indivíduo. Seria repugnante, sob o ponto

de vista moral, e sobre isso nenhuma dúvida paira, que a busca pela verdade, aqui,

esbarra na parede intransponível do respeito à dignidade humana.

A propósito, discorre Costa Andrade, citando Dingeldey, que o princípio

garante, em íntima conexão com a concepção de dignidade Kantiana,

"que o indivíduo não será reduzido a mero objeto da atividade estatal e visa realizar uma proteção completa da liberdade individual de cada cidadão. Ora, essa liberdade é posta em perigo quando o argüido é convertido em meio de prova contra si próprio. Só quando se reconhece ao indivíduo um direito completo ao silêncio no processo penal, se lhe assegura aquela área intocável de liberdade humana, em absoluto subtraída à intervenção do poder estatal"200.

De forma pertinente, também, citando Castanheira Neves, resume:

199BACIGALUPO,, op. cit., p. 181. 200 COSTA ANDRADE, op. cit., p. 125.

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"O que ninguém exige hoje, superadas que foram as atitudes degradantes do processo inquisitório (a recusar ao réu a qualidade de sujeito do processo e a vê-lo apenas como meio e objeto de investigação), é o heroísmo de dizer a verdade auto-incriminadora"201.

Porém, o direito à não-colaboração com a acusação não pode, caso o acusado

resolva voluntariamente abrir mão do seu direito ao silêncio, servir de justificativa para a

mentira. Nenhuma dignidade estar-se-á, aqui, protegendo.

3.5.1. O direito à mentira

Enquanto o Estado move uma estrutura inteira para conferir ao acusado um

julgamento dentro do contraditório, onde se busca esclarecer os fatos para chegar à

verdade e, então, permitir uma decisão justa, aceitar que o réu procure distorcer

conscientemente os fatos, falte com a verdade, prejudique o andamento do processo,

aplique um duro golpe na justiça. Nada mais imoral, mais eticamente reprovável.

Já é passado, pois, o momento de tipificar, na legislação penal brasileira, o

delito de perjúrio e impor ao acusado o dever da verdade quando deseje abrir mão do

direito ao silêncio.

Ao acusado, se convier, dentro de seu direito, o silêncio. É o respeito que se

deve à dignidade de sua pessoa, antes de mais nada, a tutelá-lo. Pode, inclusive − e

isso é importante −, avaliar a conveniência para sua defesa da atitude de falar ou ficar

201 COSTA ANDRADE, op. cit.,.p. 121.

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calado. Agora, se falar, que diga a verdade sobre os fatos, uma vez que não pode

confessar culpa.

Note-se, o homem é livre para a escolha do caminho a ser seguido e isso é um

pressuposto da própria ética. Agora, é pela escolha adotada que se medirá o (des)valor

moral de sua conduta. Como referido acima, em qualquer sistema ético, quando se

transige com a verdade, qualquer outro valor pode ser falseado à vontade, tornando-se

antivalor. Quando se invoca o "respeito" à pessoa humana para legitimar o direito de

mentir, então tudo está perdido.

Dessarte, é incompreensível e injustificável a complacência legal com a mentira

do réu. É preciso ter em mente, definitivamente, que não mais se sustenta a visão

processual de desigualdade entre o Estado e o acusado, tendo aquele como opressor e

este como oprimido, ao ponto de manter absurdas prerrogativas legais em benefício do

réu.

Urge restabelecer a isonomia processual, equilibrar as posições, pois se o

poder público tem o dever de agir eticamente para provar a culpa do acusado, a

recíproca deve ser verdadeira em relação à inocência. Este, é lógico, não necessita

provar a sua inocência, que vem presumida, mas não é por isso que lhe é permitido

assumir posturas processuais eticamente reprováveis para atrapalhar a realização da

justiça.

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3.5.2 O direito à não-participação em atos instrutórios

Não há dúvida, pois, quanto ao reconhecimento de que princípio que ninguém é

obrigado a produzir prova contra si encontra assento nos postulados éticos e jurídicos

norteadores do processo penal, como forma de garantir a dignidade do acusado ou

suspeito de um ilícito penal, que não pode, jamais, ser reduzido a mero objeto de

intervenção estatal.

A dificuldade surge quando se afasta da conseqüência mais evidente e visível

do referido princípio, que é o direito ao silêncio, para nortear a sua aplicação em uma

zona cinzenta de situações com que o sujeito processual se depara na investigação ou

instrução criminal e que lhe são coativamente impostas na busca de elementos para

formação do esclarecimento do fato e suas circunstâncias: exames periciais, buscas

pessoais, acareações e reconhecimentos, por exemplo.

Costa Andrade aponta que os tribunais superiores alemães, tanto o Tribunal

Federal como o Tribunal Constitucional Federal, têm estabelecido um critério que apela

para a distinção entre a colaboração ativa e mera passividade, entendendo que não se

pode forçar o acusado a uma atividade positiva, mas é lícito impor-lhe coativamente um

dever de tolerância passiva202.

Nessa linha, passaram a admitir, por exemplo, a condução coercitiva do

acusado para reconhecimento e a possibilidade de que este seja fisicamente obrigado a

manter a cabeça erguida ou determinada expressão facial durante o ato, uma vez que

202 COSTA ANDRADE, op. cit., pp. 127-132.

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estaria, em verdade, impedindo a frustração, pelo suspeito, de um dever de tolerância,

e não o coagindo a uma atividade positiva e voluntária203.

Negaram, pelo mesmo parâmetro, a obrigação do suspeito em soprar em

aparelho de medição para testes alcoólicos, bem como de fornecer a sua voz para

gravação com finalidade de perícia fonética para identificar a voz captada em escuta

telefônica204.

O referido autor, ao analisar criticamente a questão e apontar a inexistência de

diferença qualitativa entre a ação e a omissão, é enfático ao observar que “não se é

apenas instrumento da própria condenação quando se colabora mediante uma conduta

ativa, querida e livre, mas também quando contra a vontade uma pessoa tem de tolerar

que o próprio corpo seja utilizado com meio de prova”205, sendo que a dignidade da

pessoa humana é atingida não apenas quando compelida a uma ação, mas também

quando forçada a tolerar uma ação sobre si.

A questão da aplicação e extensão da garantia fundamental de não se auto-

incriminar, em verdade, perpassa, uma vez mais, pelo plano da dignidade da pessoa

humana.

Já foi suficientemente repisado que a dignidade humana, sob os aspectos moral

e jurídico, refere-se à proteção da pessoa enquanto fim em si mesmo, não permitindo

seja reduzida à condição de objeto para satisfação de interesses ou fins alheios. Assim,

no dizer de Vieira,

203 COSTA ANDRADE, op. cit., p. 130. 204 COSTA ANDRADE, op. cit., p. 129. 205 COSTA ANDRADE, op. cit.,pp. 127-8.

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embora a dignidade esteja intimamente associada a idéia de autonomia, de livre escolha, ela não se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra – qual seja, o da ausência de constrangimentos. A dignidade humana impõe constrangimentos a todas as ações que não tomem a pessoa como fim206.

Não se pode conferir à garantia processual em evidência, sob pena de

desvirtuar a própria finalidade do princípio e, por conseguinte, do núcleo essencial da

garantia fundamental, a extensão de inviabilizar qualquer ato investigatório da verdade

envolvendo o acusado. Caso contrário seria inadmissível, em um extremo factível, por

exemplo, uma busca pessoal, pois se estaria obrigando o suspeito a tolerar um ato

interventivo de terceiro sobre a sua pessoa. A eventual apreensão daí resultante seria

ilícita. Nada mais absurdo.

Repete-se que a utilização de determinados elementos de prova envolve, em

maior ou menor intensidade, o sacrifício de determinados valores pessoais e

comunitários de elevado significado nas searas da ética e do direito. O que se faz

imperativa é a necessidade de gizar os contornos da compreensão, ordenação, tutela

da forma como isso se dará.

Já foi suficientemente repisado que o processo penal precisa equacionar de

forma equilibrada o problema fulcral das relações entre o exercício da pretensão

punitiva do Estado e o direito de liberdade da pessoa individual, sendo que as soluções

concretas do “caso penal” devem ponderar os valores em questão: direito de punir,

justiça e dignidade da pessoa humana. Ao que parece, no caso, os Tribunais

Superiores da Alemanha estão equacionando esse problema de forma proporcional e

equilibrada.

206 VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 67.

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II. CONCLUSÕES

A ética é o saber que tem como objeto de estudo a moral, que, por sua vez,

compreende as regras e valores inculcados na consciência dos indivíduos em suas

relações com outrem, em sua convivência. Uma saber prático, humano, que por ser

produto cultural não pode jamais vir dissociado das perspectivas individuais e sociais

inerentes ao seu tempo e a seu espaço. Pode-se dizer, sujeito às constantes

transformações do homem-social, de sua forma de vida, de seu comportamento, de

seus valores.

Pressupõe, para sua análise, a liberdade individual, pois não se qualifica ética

ou aética uma conduta determinada fatalisticamente, onde o indivíduo não tenha a

opção de escolha consciente da realização dessa conduta, visando um fim almejado.

Esse fim, que é o motivo determinante da conduta, será o valor perseguido pelo homem

em sua escolha, e poderá ser moral, amoral ou imoral. Vale dizer, o homem livre e

consciente pauta suas ações, ou não, pelo conjunto de referenciais axiológicos

fornecidos pelas regras morais de seu tempo e, justamente por ser a escolha livre, será

ética ou moralmente sujeita ao juízo de aceitação ou reprovação social.

Em todos os tempos e locais, a moral buscou cimentar a trilha da civilização

humana para o alcance de seu fim último, o "bom" ou o "bem". Porém, como todo valor

possui um conteúdo arbitrário, a divergência, na realidade, surgiu acerca do que

consistia o "bom", cuja vagueza conceitual permitiu a mudança de suas características

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desde os tempos da filosofia grega, passando pela romana, pela idade média, moderna

e até os dias atuais, onde profundas mudanças ainda se mostram latentes. O conceito

de 'bom", por certo, não restará jamais imune às vicissitudes morais do homem e hoje,

na atualidade, consiste na tentativa de equilíbrio entre os interesses de cada indivíduo e

a necessidade de que o Estado possa proporcionar, a todos, o bem social. Não sufocar

aquele, mas não apequenar este é o conflito ético que se coloca mais a lume na

atualidade, que somente pode encontrar resposta em uma ética de consenso, onde se

permita o florescimento da ética individual, sem arroubos de egoísmo e intolerância com

os demais. A única forma de desenvolvimento do homem individual é o

desenvolvimento da sociedade.

O direito, como o mais importante meio de controle social, por impor

coativamente suas normas, não pode prescindir, na sua elaboração, aplicação e

transformação, do sentimento moral vigente no seio social. Talvez mantenha, mesmo

sendo imoral ou antiético, a validade sob o ponto de vista jurídico. Mas aí o que o

assegurará é tão somente a força; deixará de ser direito, para transmudar-se em arbítrio

puro, e terá muito mais dificuldade para impor sua observância.

Longe de atuarem em descompasso, os sistemas de controle social estão

intimamente relacionados, e o direito, embora o mais relevante deles, pela

coercibilidade de que dispõe, não pode prescindir, enquanto necessite de legitimidade,

da observância das regras morais consubstanciadas no seio de uma sociedade. E há

de ter sempre em vista, como valor último para o alcance da paz social, a realização da

justiça. Esta, pode-se dizer, é o ideal moral do direito, que "deve ser" justo. A justiça,

sob ponto de vista ético, é o bom do direito, a excelência moral no dizer de Aristóteles.

Cabe lembrar que a justiça, enquanto valor, possui sempre um conteúdo

arbitrário, o que impede uma concepção de justiça absoluta, salvo na idéia platônica de

uma justiça transcendental. Mas, não é por isso que qualquer ato ou conduta se possa

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considerar justa, há que ter, no mínimo, conformidade com os padrões razoáveis de um

tempo. A justiça, também, não pode fugir de sua essência histórico-cultural. Dessa

forma, o direito, a moral e a justiça, aferrados umbilicalmente às vicissitudes históricas,

precisam equilibrar em suas balanças e reformular seus padrões em consonância com

estas.

Nesse contexto, após a Revolução Francesa, no Século XVIII, evoluiu-se no

sentido de guardar a pessoa humana como centro das atenções, e o respeito ao

homem, como ser livre, dotado de autonomia e sendo um fim em si mesmo, aflorava

como parâmetro ético e justo para o direito como um todo. E assim se positivou, já no

século XX, na Declaração dos Direitos Universais do Homem, pela Assembléia Geral da

ONU, como um sinal concreto do progresso moral da humanidade.

No perpassar desse caminho secular logrou-se estabelecer, então, uma gama

de valores consistentes em direitos fundamentais inerentes à condição humana.

Independentemente da nacionalidade do indivíduo, o respeito à sua pessoa passou a

representar o sinal de que se tem um parâmetro atual para nortear os sistemas éticos e

jurídicos em um escalonamento de valores.

A partir de então, confirmou-se o compromisso das gerações seguintes em

aperfeiçoar constantemente a Declaração de 1948, em especial com o surgimento de

outras dimensões de direitos fundamentais além dos de liberdade, como os direitos

sociais e os de fraternidade, criando novos bens a serem tutelados, novos sujeitos e

particularizando o homem em sua condição, como a declaração dos direitos das

crianças, dos idosos, das mulheres.

A dignidade da pessoa humana funcionou como o arquétipo ético para que

fosse possível a positivação em nível universal dos direitos fundamentais do homem e

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assumiu o merecido status que se exige em um Estado Democrático de Direito. E,

como tal, mereceu agasalho em local de privilegiado destaque nos textos

constitucionais modernos.

Nesse sentido, é possível asseverar que na dignidade da pessoa humana

encontra-se o conteúdo ético para construir e fundamentar, já no plano jurídico positivo,

todo o sistema de direitos fundamentais, notadamente porque estes constituem nada

mais do que explicitações, em maior ou menor grau de intensidade, daquela. A

necessidade de observância e, principalmente, concretização dos direitos fundamentais

importa não no reconhecimento da dignidade da pessoa, qualidade inata de todo ser

humano, mas em desdobramentos de seus específicos conteúdos e na imperiosa

necessidade de impedir a sua violação.

O direito, em um de seus ramos mais importantes para o fim de paz social, o

direito penal, posto que tutela os bens mais caros à manutenção da ordem em

sociedade e socorre todos os demais ramos do direito quando violados, não poderia

ficar alheio a essas transformações. Enterrou-se, definitivamente, o chamado "direito

penal do terror", típico de um Estado autoritário e absolutista, para progredir

moralmente ao reconhecer garantias individuais aos cidadãos e limitar o poder do

Estado. Fortaleceu a parte mais fraca no embate.

A prática de um ilícito penal faz nascer para o Estado o direito-dever de punir o

seu autor. Contudo, como esse direito-dever importa na restrição de bens e interesses

fundamentais do indivíduo como a liberdade, o próprio Estado somente pode aplicar a

pena mediante a observância de formalidades previstas em lei e sempre por órgãos

jursidicionais.

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Vale-se o direito penal, para sua efetivação, de um instrumento, que é o

processo penal. É aqui que se pode falar em realização ou não da justiça para quem é

acusado de infringir a lei do Estado e atacar bens de grande importância. Daí porque

equivoca-se quem vê no processo penal apenas um instrumento de garantia dos

direitos do acusado, pois é também um instrumento de realização de justiça, um valor

caro a todos, acusados ou não, criminosos ou não. A justiça é o fim ético do processo

penal.

Dessarte, para que seja justo, o processo penal, ao seu termo final, deve

apontar a culpa do culpado e reconhecer a inocência do inocente. Fora disso podem

existir soluções menos ruins, menos injustas, mas injustas também, como sentenciar

que não se pode dizer que o acusado é culpado, por insuficiência de provas, e por isso,

absolvê-lo.

O ideal ético do direito, então, não raras vezes escoa pelo ralo cada vez mais

largo das injustificáveis restrições para a descoberta da verdade, que é pressuposto da

decisão certa, justa. Por ele passa, também, grande número de culpados, que se

escondem na esteira do consagrado princípio de que a dúvida os favorece.

É preciso revisar os (pre)conceitos. O processo penal não pode ficar alheio a

essa realidade e continuar a contentar-se com soluções alheias à justiça. É

imprescindível abrir os meios de prova, de esclarecimento da verdade, para atingir a

decisão justa, respeitando apenas o limite ético da dignidade da pessoa humana. Nada

mais, nada menos. Um sistema penal que se encontra fora de seu tempo torna-se

ininteligível para seus destinatários.

O direito processual penal precisa acordar o olhar a sua volta. A sociedade

evoluiu e a crise, hoje, se há, não é do Estado e de suas instituições, mas do homem e

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de sua moral. Ou o direito realinha seu rumo, ou perde-se também. Qual o rumo?

Honeste vivere, alterum no laedere, suum cuique tribuere. O homem, para ser

moralmente bom, que viva honestamente e não lese ninguém. A justiça, para que seja

moral, que dê a cada um o que é seu: ao culpado, a pena; ao inocente, o

reconhecimento de sua honestidade.

Para tanto, há que preponderar, no processo penal, o caminho da verdade

como pressuposto de um (não o único, pois há a segurança na solução do caso

concreto), fim moral desse ramo do direito, a justiça.

Leia-se a verdade não como absoluta, transcendental, mas a verdade

processual, aquela apurada segundo os procedimentos válidos de coleta de elementos

que permita, no choque de possibilidades exsurgido no processo, racionalmente optar

por uma das versões e desprezar as demais. Os limites para sua pesquisa apenas se

justificam quando amoldados ao padrão ético vigente, que deve dosar adequadamente

o interesse individual dos acusados, com o necessário respeito à dignidade da pessoa

humana, mas jamais perder de vista de que é instrumento para a proteção dos valores

mais caros da sociedade, sem a qual o homem não existe, nem os seus direitos são

assegurados. Por exemplo, garante-se ao acusado ou suspeito, em respeito à sua

dignidade, o direito de não produzir prova contra si. Em uma expressão imediata,

atentaria ao princípio em evidência obrigá-lo a falar e, para tanto, assegura-se-lhe o

silêncio. Ao inverso, nenhuma finalidade ética ou jurídica em vislumbrar dignidade no

direito à mentira, caso renuncie ao silêncio. Do mesmo modo, não se poderia obrigá-lo

a praticar uma conduta para incriminá-lo, o que não impede o dever de tolerância a

condutas voluntárias de outrem na apuração do fato.

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