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UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS DA RELIGIO
Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio
DO CONFLITO DE JESUS COM OS JUDEUS
REVELAO DA VERDADE QUE LIBERTA EM JOO 8,31-59
CARLOS JOSU COSTA DO NASCIMENTO
So Bernardo do Campo
2010
Livros Grtis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grtis para download.
UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS DA RELIGIO
Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio
DO CONFLITO DE JESUS COM OS JUDEUS
REVELAO DA VERDADE QUE LIBERTA EM JOO 8,31-59
Por
CARLOS JOSU COSTA DO NASCIMENTO
Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia
Tese de doutorado apresentada em cumprimento s exigncias do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio
para a obteno do grau de doutor
So Bernardo do Campo, So Paulo, Brasil
2010
A tese de doutorado sob o ttulo DO CONFLITO DE JESUS COM OS
JUDEUS REVELAO DA VERDADE QUE LIBERTA EM JOO
8,31-59, elaborada por Carlos Josu Costa do Nascimento foi defendida e
aprovada em 31 de maio de 2010, perante a banca examinadora composta por
Paulo Roberto Garcia (Presidente/UMESP), Paulo Augusto de Souza
Nogueira (Titular/UMESP), Pedro Lima Vasconcellos (Titular/PUC-SP),
Milton Schwantes (Titular/UMESP), Johan Konings (Titutar/FAJE).
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia
Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Jung Mo Sung
Coordenador/Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio
Programa: Ps-Graduao em Cincias da Religio
rea de Concentrao: Literatura e Religio no Mundo Bblico
Linha de Pesquisa: Estudos Histrico-literrios do Mundo Bblico
4
Dedico este trabalho minha me Alice (In memoriam) que me deu o dom da vida,
um nome bblico (Josu), o exemplo de f e confiana em Deus nas provaes e dificuldades
e, sobretudo a semente em mim plantada, desde cedo, de amor Palavra de Deus.
Agradeo imensamente os valiosos auxlios recebidos pela IEPG e pela CAPES que
me foram imprescindveis para possibilitar minha pesquisa.
AGRADECIMENTOS
No possvel agradecer a todos os que contriburam e favoreceram meus estudos
nestes ltimos quatro anos. Muitas pessoas me ajudaram de diversas maneiras. Por todos os
lugares por onde passei e convivi, recebi direta e indiretamente, apoio e estmulo para
prosseguir na realizao deste desafiador doutorado, que por isso mesmo, um produto de
mutiro, de partilha, de comunho. A todos a minha profunda gratido. Todavia, nomino
alguns em particular que foram mais efetivos e fundamentais para a concluso de tudo.
Agradeo a Deus Pai, Senhor da Vida, que foi e continua sendo a razo de todo meu
pensamento e ao. Ad maiorem Dei Gloriam!
Agradeo aos meus pais, Gentil e Alice, que me conceberam e me educaram num
ambiente cristo de amor pleno e me deram exemplos de amor a Deus e doao ao prximo.
Agradeo ao Programa de Ps Graduao de Cincias da Religio pela oportunidade
de estudar num ambiente to respeitvel. Senti-me sempre bem, em casa. Obrigado a todos
os professores que me instruram com competncia e contriburam para minha formao
7
bblica nesses quatro anos que estive na UMESP. Obrigado a todos os funcionrios que me
beneficiaram com seus prontos servios.
Agradeo ao meu orientador Paulo Roberto Garcia pela pacincia constante, o
incentivo renovador, a seriedade de um pesquisador, os dilogos e sugestes, o respeito
delicado, a presena amiga de sua esposa Margarida, os cafs oferecidos para o Padre
durante os colquios e a amizade sincera que se fortaleceu nos encontros.
Agradeo minha Congregao Salesiana que investiu e acreditou em mim. Agradeo
ao meu ex-Inspetor e amigo Pe. Damsio Medeiros pela coragem em sustentar e defender
meu doutorado facilitando, apoiando e fortalecendo-me nos momentos de desnimo que
passei. Obrigado ao Pe. Benjamim Morando, atual Inspetor, pela compreenso e pacincia
nestes ltimos meses de pesquisa.
Agradeo aos amigos Luiz e Conceio Castanheira pelos cuidados e preocupaes
prprios de um pai e de uma me; aos amigos Ruben e Lenir Lozano pela amizade e pelos
encontros de alegria que me animaram na f e no estudo; minha tia Eliana pelos momentos
de conversa e carinho materno; minha irm Alissandra pelas palavras de nimo e
fortalecimento em todas as horas que precisei.
Agradeo aos meus irmos salesianos, em particular os que me acolheram na
comunidade da Mooca e da Casa Inspetorial. Um obrigado especial ao Pe. Marco Biaggi
pela abertura e confiana em acolher-me na ISSP.
NASCIMENTO, Carlos Josu Costa do. Do Conflito de Jesus com os Judeus Revelao da
Verdade que Liberta em Joo 8,31-59. So Bernardo do Campo: Universidade Metodista de
So Paulo, 2010. Tese (Doutorado em cincias da religio), 325p.
Sinopse
Esta tese tem como objetivo demonstrar que o conflito existente na comunidade
joanina e presente no texto uma estratgia literria do autor para construir identidade e
fortalecer a f dos seus leitores. Para isso escolhi uma percope (Jo 8,31-59) onde verifico e
comprovo essa dinmica. O texto produto literrio, tem lgica: incio, fim, coeso.
tambm produto relacional, responde a uma lgica redacional. O autor o protagonista do
texto e nele revela sua teologia. Busco entender sua vida e tudo dele para saber do seu texto.
O texto reflexo de uma realidade nas formas de expresso que redigido. H muitos
conflitos no texto. Para entender o conflito devo olhar a partir de sua complexidade literria.
Do conflito revelao da verdade que liberta da incredulidade, do medo, da insegurana,
da ideologia que escraviza, do mal que impede acolher Jesus, o Messias e Filho de Deus.
Palavras-chave: conflito, comunidade joanina, literatura e religio, identidade,
liberdade, verdade.
NASCIMENTO, Carlos Josu Costa do. From the Conflict of Jesus with the Judeans to the
Revelation of the Truth that Liberty in John 8,31-59. So Bernardo do Campo: Methodist
Universtity of So Paulo, 2010, Thesis (Doctorate in Religious Sciences), 325p.
Abstract
This dissertation has aimed to demonstrate that the conflict in the Johannine
community and the present text is a literary author's strategy to build identity and strengthen
the faith of its readers. For this I chose a pericope (Jn 8,31-59) where check and testify to
that dynamic. The text is literary product, is logical: start, stop, cohesion. It is also relational
product responds to a logic editing. The author is the protagonist of the text and it reveals
his theology. I try to understand her life and all of it to know of your text. The text reflects a
reality in the forms of expression that is written. There are many conflicts in the text. To
understand the conflict should look from its literary complexity. From conflict to the
revelation of the truth that freedom from disbelief, fear, insecurity, ideology that enslaves
the evil that prevents welcome Jesus, the Messiah and Son of God.
Key words: conflict, Johannine community, literary and religion, identity, liberty,
truth.
SIGLAS E ABREVIATURAS
AB Anchor Bible
Am.Rev.Anthrop. Annual Reviews of Anthropology
APSR American Political Science of the New Testament
BBR Bulletin for Biblical Research
Bib Biblica
BinInt Biblical Interpretation
BibOr Bblia e Oriente
BibTrans The Bible Translator
BS Bibliotheca Sacra
BTB Biblical Theology Bulletin
CBQ The Catholic Biblical Quarterly
CD La Ciudad de Dios
Com Communio
Con Concilium
Conv Convergncia
CR Currents in Research
CTQ Catholic Theological Quarterly
CuadTeol Cuadernos Teologicos
Didas Didaskalia
Diog Diogenes
Dial Dialog
EcumRev The Ecumenical Review
EstBib Estudos Bblicos
ER Estudos de Religio
GNLT Grande Lssico do Novo Testamento
HTR Harvard Theological Review
Int Interpretation (a Journal of Bible and Theology)
JBL Journal of Biblical Literature
JSHJ Journal for the Study of the Historical Jesus
JSNT Journal for Studies of the New Testament
JTS Journal Thelogical Studies
11
JCI Journal of Communication Inguary
JPR Journal of Peace Research
Jud Judaism
NTE New Testament Essays
NTS New Testament Studies
NRT NouvRevTheol
NovT Novum Testamentum
Pac Pacifica
P Pasos
Persp Perspective
PT Perspectiva Teolgica
Prot Protestantesimo
RevBib Revista Bblica
RivBl Rivista Biblica
RB Revue Biblique
RevCultTeol Revista de Cultura Teolgica
Revscphth Revue Das Sciences Philosophiques et Thologiques
RevThom Reviste Thomiste
RHPR Revue dHistoire et Philosophie Religieuses
RIBLA Revista de Interpretaao Bblica Latino-Americana
RivBibIt Rivista Biblica Italiana
Sal. Salesianum
Salm Salmanticensis
SBL Society of Biblical Literature
Sem Semeia
StTh Studia Theologica
TV Teologia e Vida
Th Themelios
Theo Theologika
Theol Theology
TET The Expository Times
TynBul Tyndale Bulletin
TWNT Theologisches Wrterbuch zum NT
VH Vivens Homo
VE Vox Evangelica
OS ESCRITOS DE JOSEFO (apenas os usados nesta pesquisa)
AJ Antiguidades Judaicas
GJ Guerra Judaica
AUTORES JUDAICOS
Ag Ageu
Esd Esdras
1Hen Henoc
Jub Jubileus
Test. Testamentos dos XII Patriarcas
Test Jud Testamento de Judas
12
Test Aser Testamento de Aser
Test Jos Testamento de Jos
Test Rub Testamento de Ruben
Tg. Ps.-J Targum Pseudo-Jonatas
PERGAMINHOS DE QUMRAN
MMM Manuscritos do Mar Morto (Qumran)
CD Aliana de Damasco
MQ Rolo do templo
IQM Rolo da Guerra
IQS Regras da comunidade
4QMMT Miqsat Maaseh h-TOrah; Halkhic Let
ANTIGOS AUTORES CRISTOS
HE Eusbio de Cesaria, Histria Eclesistica
Apol. Justino, Apologia
Dilogo Justino, Dilogo com Trifone
CC Orgenes, Contra Celsum
PG J. Migne, Patrologia Graeca
PL J. Migne, Patrologia Latina
2Clem 2 Clemente
OUTRAS ABREVIATURAS E SIGLAS
AT Antigo Testamento
AH Irineu de Lio, Adversus Haeresis
a.C. Antes de Cristo
cap. Captulo(s)
cf. confira, conforme
d.C. Depois de Cristo
QE Quarto Evangelho
ed., eds. Edio, editor (es)
Id. Idem, o mesmo
LXX Modo latino de escrever 70, um nmero redondo usado
para a traduo grega do AT (Septuaginta)
n. nmero
NT Novo Testamento
Op. cit. Obra citada
P Manuscrito em papiro (geralmente de um escrito bblico)
p. Pgina, pginas
par. (e) paralelo(s)
p. ex. por exemplo
s, ss e seguinte(s)
TEB Traduo Ecumnica da Bblia
v. (vv.) Versculo, versculos
vol. Volume
SUMRIO
INTRODUO..................................................................................................................................................... 16
CAPTULO I
A COMUNIDADE JOANINA NUM CONTEXTO PLURALISTA DO I SCULO .......................................... 23
1.1 As etapas da redao do Quarto Evangelho (Origens e Fontes) ........................................... 25
1.1.1 Teorias sobre as fontes literrias do Quarto Evangelho ........................................... 29
1.1.2 As origens histricas do QE (fases da redao) ......................................................... 33
1.2 A comunidade joanina e o seu ambiente scio-poltico-cultural-religioso no I sculo d. C. ... 36
1.2.1. A diversidade de grupos e movimentos (cristianismos) ....................................... 38
1.2.2 A situao poltica-cultural-social da Palestina no I sculo ....................................... 42
1.2.3 As razes e as idias da comunidade joanina neste contexto (Gnosticismo, Qumran,
Judasmo, Seguidores de Joo Batista) ............................................................................... 44
1.2.4 Concluses aps a anlise dos contextos ................................................................. 49
1.3 A teologia e o estilo literrio joaninos ..................................................................................... 52
1.3.1 A composio primria do QE ................................................................................... 52
1.3.2 O marcante estilo de controvrsia e disputa (polmicas) ..................................... 54
1.3.3 Qual o objetivo do autor com este estilo? ................................................................ 58
1.4 Os judeus no Quarto Evangelho e em 8,31-59..................................................................... 60
1.4.1 Quem eram os judeus do QE? ............................................................................... 60
1.4.2 O posicionamento do autor do QE diante dos judeus ........................................... 62
1.4.3 A polmica Judeus-Israel ........................................................................................... 64
1.5 Teoria scio-literria ................................................................................................................ 68
1.5.1 As fases literrias da redao .................................................................................... 69
1.5.2 O processo aps o conflito com a Sinagoga .............................................................. 71
1.5.3 O ambiente da comunidade do QE ........................................................................... 73
1.5.4 A evoluo literria e o contedo teolgico ............................................................. 74
1.5.5 Etapas de elaborao do QE ..................................................................................... 76
1.5.5.1 Primeira etapa: A tradio oral ao redor do Discpulo Amado ..................... 76
14
1.5.5.2 Segunda etapa: O conflito com os judeus (autoridades farisaicas) provoca
uma releitura das palavras de Jesus ......................................................................... 77
1.5.5.3 Terceira etapa: Os primeiros escritos comeam a circular nas comunidades e
a diviso interna da comunidade .............................................................................. 79
1.5.5.4 Quarta etapa: Redao final do Quarto Evangelho ...................................... 80
1.6 Concluso ................................................................................................................................ 82
CAPTULO II
A ESTRATGIA LITERRIA NA PERCOPE JOO 8, 31-59 ........................................................................ 86
2.1 O texto grego da percope Jo 8,31-59 .................................................................................... 88
2.2 A traduo da percope ......................................................................................................... 91
2.3 A percope e sua localizao no Quarto Evangelho ............................................................... 93
2.3.1 Jo 7 um incio de nova seo? ................................................................................ 94
2.3.2 Fim da unidade? ........................................................................................................ 95
2.3.3 (7,1-8,59) uma unidade com incio e fim ............................................................... 96
2.3.3.1 (7 8) onde o tema do conflito constri unidade ............................................ 105
2.4 Diviso da percope 8,31-59 ................................................................................................ 107
2.5 Anlise da percope Jo 8,31-59 ............................................................................................ 110
41b 47 : 121
49 59 : 122
2.6 Anlise literria de Jo 8,31-59 .............................................................................................. 122
2.7 Consideraes sobre a estratgia literria de Jo 8,31-59 .................................................... 162
CAPTULO III DO CONFLITO QUE GERA IDENTIDADE COMPREENSO DA COMUNIDADE JOANINA ................... 170
3.1 O conflito: chave hermenutica de compreenso .............................................................. 172
3.2. Estrutura dramtica e conflitual do QE ............................................................................... 177
3.2.2 Primeira parte: o Livro dos Sinais (Jo 1,19 12,50) ................................................ 184
3.2.2.1. Reconhecimento gradual acerca de quem Jesus Jo 1,1951................ 184
3.2.2.2 No sinal inicial de Can Jo 2,1-12 ............................................................. 187
3.2.2.3 A purificao do Templo Jo 2,13-22 ......................................................... 190
3.2.2.4 Breve sumrio da f e no-f Jo 2,23-25 .................................................. 192
3.2.2.5 A f inadequada de Nicodemos Jo 3,1-21 ................................................ 193
3.2.2.6 Rivalidade entre seguidores de Joo Batista e de Jesus Jo 3,22-30 ......... 195
3.2.2.7 O conflito com os Samaritanos Jo 4,4-42 ................................................. 196
3.2.2.8 Uma f que contrasta: o funcionrio real Jo 4,43-54 ............................... 199
3.2.2.9 No sbado, Jesus cura e d a vida, provocando um spero dilogo .......... 201
15
3.2.2.10 Divergncias acerca da eucaristia e rompimento da ................ 203
3.2.2.11 Discusses sobre a origem do Cristo Jo 7,1-52 ...................................... 206
3.2.2.12 Morrereis no vosso pecado: a recusa de Jesus Jo 8,21-30 ..................... 208
3.2.2.13 O cego de nascena I: paradigma de iluminao Jo 9,1-41 ................... 209
3.2.2.14 O cego de nascena II: a cura como Protesto contra o Templo ................ 212
3.2.2.15 O Bom Pastor contra os falsos pastores Jo 10,1-21 ............................... 214
3.2.2.16 O dom da vida conduz deciso do Sindrio de que Jesus deve morrer .. 216
3.2.2.17 A incredulidade dos judeus persiste Jo 12,37-50.................................... 218
3.2.2.18 Concluses do Livro dos Sinais .................................................................. 220
3.2.3 Segunda parte: o Livro da Glria (Jo 13,1 20,31) ................................................. 229
3.2.3.1 O anncio da traio de Judas: a separao das trevas e da luz ............... 230
3.2.3.2 O dio do mundo, as perseguies e o testemunho do Parclito ............... 231
3.2.3.3 Jesus se recusa a rezar pelo mundo Jo 17,1-26 .................................... 235
3.2.3.4 Na priso Jesus revela a identidade do agressor Jo 18,1-12 .................... 236
3.2.3.5 O julgamento do Filho de Deus Jo 18,28-19,16 ........................................ 238
3.2.3.6 Na morte a revelao da glria de Jesus Jo 19,17-42 .............................. 242
3.2.3.7 Tom: outro modelo emblemtico de incredulidade e f Jo 20,19-31 ..... 243
3.2.3.8 Pedro e Joo: Conflitos de autoridade na comunidade joanina ................. 244
3.2.3.9 Concluses do Livro da Glria ..................................................................... 246
3.3. A estrutura esttico-dinmica do QE revela conflitos na comunidade ............................... 250
CAPTULO IV AS FIGURAS DE ABRAO, JESUS E O DIABO NO CONFLITO DA COMUNIDADE JOANINA .................. 258
4.1 A filiao de Abrao ............................................................................................................. 269
4.2 A paternidade do diabo ....................................................................................................... 271
4.3 Pelo conflito, a busca de identidade .................................................................................... 273
4.4 A revelao da verdade que liberta ..................................................................................... 276
CONCLUSO ........................................................................................................................................ 280
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 288
1. Fontes primrias, Dicionrios e Enciclopdias ............................................................. 288
2. Estudos, Dissertaes, Teses, Comentrios em geral .................................................. 290
3. Estudos, Comentrios sobre o Evangelho de Joo ....................................................... 303
4. Revistas, Artigos ........................................................................................................... 309
INTRODUO
Talvez mais do que qualquer outro dos quatro evangelhos que foram includos
no cnon da igreja crist, o Quarto Evangelho (=QE)1 o mais misterioso e
problemtico. Quem o escreveu? Para quem foi escrito? Onde? Quando? Quais foram
as circunstncias sociais e religiosas dentro das quais ele apareceu? Por que foi
escrito? Por que o QE to diferente dos outros evangelhos, os chamados evangelhos
sinticos? O QE histria ou teologia? Se houve bastante concordncia sobre estas
questes ao longo dos sculos entre a grande maioria dos teolgos, isto mudou com o
incio do uso do mtodo histrico-crtico nos estudos bblicos. Hoje em dia estas e
outras perguntas semelhantes ainda esto abertas. Contudo, mesmo assim, tem havido
progresso nas pesquisas, as quais podem facilitar muito nossa tentativa de entender
a mensagem deste livro singular na biblioteca dos cristos primitivos. o que
intentamos realizar nesta pesquisa sobre a literatura e teologia joaninas.
Esse Quarto Evangelho, que na tradio catlica comparado a uma guia que
com seus olhos penetrantes desafia o brilho do sol, nos transporta, desde sua primeira
1 Ao longo deste trabalho usaremos esta sigla QE para referirmo-nos ao texto evanglico joanino.
17
pgina at a contemplao de Deus em seu mistrio eterno. Por trs deste Evangelho
est uma comunidade que nasceu de modo simples, foi crescendo e adquirindo um
jeito prprio de ser e de agir, profundo na sua reflexo e criativo na sua forma
literria. E de fato o texto revela os traos tpicos e peculiares dessa comunidade, que
ns chamaremos de a comunidade joanina ou do Discpulo Amado.2 Sua finalidade
teolgico-literria expressa com toda a clareza no final: Muitos outros sinais fez
Jesus ainda diante dos discpulos que no esto escritos neste livro. Estes, porm,
foram escritos para crerdes que Jesus o Messias, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais a vida eterna em seu nome (20,30-31). Aqui fica patente a inteno
querigmtica e, ligada a ela, a finalidade soteriolgica. Trata-se da f em Jesus Cristo
como Messias e Filho de Deus; nesta f o homem alcana a vida. Esta finalidade
a diretriz de toda a obra e se dirige aos cristos que viviam ao tempo de sua redao:
mostrar-lhes que Jesus de Nazar, e nenhum outro, o Messias e que s na f, na
messianidade e na filiao divina de Jesus est a salvao. Nenhuma outra questo
tratada de forma to ampla, como a pretenso de Jesus de ser o revelador e o salvador,
ou seja, como a sua messianidade.
Mas, como realmente nasceu e se formou a comunidade joanina? O que significa
crer em Jesus Cristo no fim do I sculo? Como incorporou outros grupos e novos
membros em seu meio? Como ocorreu esse processo? Sabemos que, em torno do ano
80, quando o texto ainda no estava escrito, essa comunidade (composta de judeus
convertidos, samaritanos, pagos e outros) se viu envolvida por inmeros conflitos
2 Em toda esta pesquisa no usaremos o nome Joo para designar o autor do Quarto Evangelho.
Entendemos que o texto resultado da reflexo e meditao de um grupo (crculo/escola joanina)
de discpulos de Jesus. Demonstraremos que surgiram, ao longo da histria da redao, autores
posteriores que resumiram uma tradio que tinham disposio e que teologicamente redigiram. A
linguagem, estilo e teologia do Quarto Evangelho sugerem a idia de que no final da cadeia da
tradio est a personalidade de um evangelista e, em seguida, de um grupo, de alto gabarito, que deu
ao todo um cunho pessoal.
18
que vinham de fora e de dentro da mesma. Nessa poca o Templo de Jerusalm j
tinha sido destrudo, mas as lideranas judaicas decidiram eliminar todos os que
dessem adeso a Jesus. O QE revela esse conflito, praticamente, a cada captulo.
nesse contexto que o autor desenvolve sua estratgia literria e revela sua teologia.
Estamos certos que o autor escreveu o QE para fortalecer na f em Jesus, como
Cristo e como Filho de Deus, uma comunidade ou um grupo de comunidades.3 Esta f
certamente estava sendo atacada e posta em perigo. Neste sentido o Evangelho ,
como texto bsico dos judeu-cristos, um escrito de defesa e de confisso em favor
da f, em perigo, na messianidade de Jesus; um texto que buscava criar autntica
identidade de discpulos de Jesus. Encontramos no texto uma terminologia comum,
insistente, que a estratgia literria em alguns verbos como buscar, procurar,
conhecer, ver, crer e seguir.4 O contexto escolhido torna-se uma temtica que
prevalece nos relatos e narrativas, o tema do conflito, do drama, da crise; certo de
que a opo por Jesus a realizao do julgamento messinico. preciso fazer
escolhas: ser da luz ou das trevas, do alto ou de baixo, da carne ou do esprito, da
verdade ou da mentira, da vida ou da morte, da esfera de Deus ou do mundo, ser filho
ou ser escravo, ser de Deus ou do diabo. Dependendo da opo, se descobrir a
autntica natureza e identidade do verdadeiro discpulo de Jesus.
i, zhtei/te (O que procurais?, 1,38) so as primeiras palavras de Jesus aos
seus futuros discpulos, como tambm a pergunta dirigida a Maria Madalena na
manh de ressurreio (20,15). A exemplo de Jesus, que convida os seus discpulos a
vir e ver (e;rcesqe kai. o;yesqe Vinde e vereis, 1,39), o autor do texto joanino
3 O autor do QE dirige-se a uma comunidade crist, todavia tem pretenses de universalidade, como
verificaremos ao longo desta pesquisa. 4 Cf. CULLMANN, Oscar. Das origens do Evangelho formao da teologia crist, p. 93-104.
19
convida, quase provocando, seus leitores a se aproximar, a conhecer e a decidir-se,
com f renovada, quele que se apresenta como o caminho, a verdade e a vida
(14,6).5 E ainda o verbo permanecer () fala em favor deste sentido. preciso
que as palavras de Jesus permaneam nos que nele creem (8,31; 15,7), para que
tenham parte na liberdade do Filho (8,35) e deem frutos em abundncia. Esta a
condio para ser verdadeiro discpulo de Jesus. A alegoria da videira convida
insistentemente a permanecer em Cristo como ele permanece nos fiis (15,4-10).
Ao longo dos captulos deste trabalho demonstraremos que o autor do QE utiliza
de estratgias narrativas para escrever esta sua inteno e criar identidade. Notaremos
que, de fato, por trs do texto transparece o contexto conflitivo de hostilidade a Jesus
que a comunidade joanina vivia em meio ao diversificado cristianismo primitivo.
Porque o cristianismo nascente no era uma realidade unitria, como tambm o
judasmo neste perodo. Como escreve Josef Blank, ao lado do judasmo ortodoxo
coexistia tambm o heterodoxo. Basta pensar em Qumran; alm da presena e
influncia helenstica naquele momento histrico.6 partindo deste contexto que
compreenderemos melhor os discursos joaninos. E, de fato, em particular, percebemos
que a discusso com o judasmo da poca ocupa certamente um lugar de destaque em
todo o QE; muito til para a sua interpretao e para se precisar exatamente os
pontos polmicos.
5 O ato de ver se apresenta como uma necessidade, todavia ao ato da viso deve juntar-se o ato de f,
esta atitude interior de crer com o corao. Por isso, a vida de Jesus narrada no QE, no pensamento do
autor, no tem por objetivo proporcionar simplesmente um quadro exterior, cmodo, mas antes pr
em evidncia a identidade entre o Jesus encarnado e o Cristo eterno, em especial presente na
comunidade joanina, desafiado e desacreditado por alguns que duvidavam e at negavam. 6 Cf. BLANK, Josef, O Evangelho segundo Joo, 4/1a, p. 61.
20
Para concretizar nosso propsito:
O captulo I tem como objeto apresentar o ambiente, o contexto, a situao e a
realidade do I sculo d.C. no qual viveu a comunidade joanina. Iniciamos, porm,
situando a pesquisa do QE no momento atual, principalmente no que se refere s
etapas de formao do texto joanino (sua origem e fontes), visto que a definio de
uma teoria literria nos interessa para fundamentarmos nossa tese. O conhecimento do
ambiente poltico, cultural, religioso e social da Palestina deste perodo histrico
tambm de capital importncia para entendermos melhor os conflitos que haviam
entre os grupos e movimentos de ento. Nossa inteno mostrar ainda que a teologia
e o estilo literrio joaninos so reflexos do ambiente e da situao que a comunidade
enfrentava, isto , foram determinantes para influenciar a redao do texto evanglico;
que ser, em nosso entendimento, o estilo de controvrsia, de disputa e polmicas,
geradores de conflitos dentro e fora da comunidade do QE. Procuraremos ainda
definir quem so os judeus especficos do confronto com Jesus que aparecem no texto.
E por fim, apresentaremos nossa prpria teoria scio-literria sobre as etapas da
redao do texto e a teologia joanina.
Uma vez conhecido o ambiente e o contexto da comunidade joanina, nos
interessa aprofundar melhor o texto que foi produzido a partir dessa realidade. Por
isso o captulo II se ocupa em descrever a estratgia literria do autor demarcando a
percope 8,31-59 dentro da estrutura de todo o QE. Veremos que esta percope est
bem inserida dentro de uma unidade temtica dos captulos 7 8. O tema do conflito,
que percorre marcadamente estes captulos, o modo buscado pelo autor, que d
forma compacta e coerente e incita seus leitores a definirem-se diante da provocao
21
contrria. Apresentamos ainda a diviso da percope, nossa prpria traduo e a
anlise literria de cada versculo nela contido.
Depois de aprofundarmos o contexto da comunidade joanina e os recursos
literrios usados pelo autor para escrever sua mensagem aos seus imediatos
destinatrios, precisamos definir o que conflito e como ele se desenvolve no seio da
comunidade. Apresentamos no captulo III especificamente o conflito presente em
todo o Quarto evangelho, mostrando-o como chave de compreenso da teologia
joanina. Tal conflito, visto como uma estatgia literria do autor, interpretado como
revelador da comunidade que o vivia e gerador de identidade, como intenciona o
autor. Procuramos observar esta metodologia presente em quase todo o QE: h uma
estrutura dramtica e conflitual, esttica e dinmica cuja base o desentendimento e a
controvrsia. O autor estrutura sua narrativa sobre relatos de conflitos. Desde o incio,
no Prlogo, se delineia uma insistncia no embate, usando do dualismo, de hostilidade
entre realidades e foras opostas como trevas e luz, alto e baixo, verdade e mentira,
morte e vida, filhos e escravos, esprito e carne. Termos joaninos tpicos da sua
linguagem e teologia repetem-se ao longo dos captulos como glria, hora, sinal,
obra. Aps este percurso por todo o texto joanino, seguindo a diviso feita pelo autor
das duas grandes partes o Livro dos Sinais e o Livro da Glria, faremos nossa leitura
dos conflitos presentes.
O conhecimento desta dinmica literria joanina que percorre todo o QE
retornamos, no captulo IV nossa percope 8,31-59 para ilustrar os motivos do
conflito existentes na comunidade joanina, destacando em particular as figuras de
Jesus, Abrao e o Diabo como os temas principais das discusses dentro e fora da
mesma. O autor rene na unidade dos captulos 7-8 o debate sobre a autenticidade do
22
Jesus messinico, as resistncias, ataques e defesas dos membros, leitores do texto
joanino.
Na Concluso, enfim, apresentamos nossa tese de que o conflito gera identidade.
Interpretando a estratgia usada pelo autor conclumos que sua inteno era conduzir
seus leitores a uma opo de f slida e consciente no Messias e Filho de Deus,
reconhecido em Jesus Cristo e negado pelos Judeus da Sinagoga e por membros da
prpria comunidade, aos quais ele dirige seu texto evanglico.
CAPTULO I
A COMUNIDADE JOANINA NUM CONTEXTO
PLURALISTA DO I SCULO
Neste primeiro Captulo percorreremos uma trajetria que nos ajudar a
conhecer melhor como est a atual pesquisa sobre o Quarto Evangelho e a
investigao sobre as etapas da redao do texto evanglico. Nosso maior interesse,
porm, aprofundar o conhecimento sobre a o ambiente no qual surgiu este
Evangelho. Pretendemos saber quem eram os judeus que freqentavam a comunidade
joanina, os de dentro e os de fora da mesma. A partir desse conhecimento
fundamentaremos nossa hiptese sobre os conflitos existentes nesse contexto e com
estes protagonistas para defender nossa tese da identidade dos membros da
comunidade do Evangelho joanino. O progresso da investigao ir modelando e
precisando as caractersticas de toda a obra, contudo, neste incio faz-se necessrio
colocar as bases onde fundamentar toda a construo.
Especificamente, no ponto 1.1 abordada as origens e as fontes do QE.
Percorre-se a histria (como um excursus) das etapas de redao, as vrias hipteses
24
dos autores que desde o princpio da pesquisa joanina formularam suas posies, e o
progredir da pesquisa de ontem at hoje, tendo Rudolf Bultmann como o divisor das
guas nesta pesquisa sobre a histria redacional e literria do QE.
Continuaremos procurando a origem da comunidade na qual foi gerada a obra
(1.2): o ambiente plurietnico e religioso no qual nasceu e cresceu. Interessa-nos
tambm conhecer mais o gnero literrio e a teologia caractersticas do QE, com seu
estilo marcadamente de controvrsia e hostilidade (1.3.).
Trataremos ainda dos judeus, procurando saber quem eram eles e como
agiram e reagiram no confronto com a comunidade(s) joanina(s) (1.4.).7 Afirmaremos
que havia uma numerosa quantidade de grupos, partidos e movimentos no primeiro
sculo; e nesta pluralidade de idias e expectativas de cada grupo que se encaixa a
comunidade joanina, a qual respira o mesmo ar e se alimenta do mesmo po. O
que aconteceu antes e depois da destruio do Templo (ano 70 d.C) muito
importante para compreendermos a comunidade joanina, inserida, vtima e
protagonista da sua prpria histria neste contexto social, poltico, econmico,
religioso e cultural da Palestina. O que acontecia com um judeu que aceitasse e cresse
em Jesus como o Messias? A controvrsia se d dentro dos limites do prprio
Judasmo; uma briga em famlia, intra-eclesial, se poderia dizer.
O QE aparece, depois de todo esse percurso, muito ligado ao ambiente no qual
surgiu. A nossa escolha de conhecer melhor esse contexto foi proposital para dar
7 O termo no QE tem sido motivo de controvrsia e discusso por um tempo prolongado ao
longo da histria e da pesquisa deste evangelho (cf. bibliografia em Raymond E. BROWN, El
Evangelio segun Juan I, tambm no artigo de Ricardo PIETRANTONIO: Los en el
Evangelio de Juan, RevBib 47:1-2, 1985, p. 27-41). Com efeito, contrariamente aos Sinticos o QE
usa o termo muito freqentemente (69 vezes). Ultimamente uma srie de estudos aprofundou e tentou
esclarecer o panorama. Reenvio nossa bibliografia a abrangente discusso sobre este tema.
25
apoio e fundamento teoria literria que apresento no ltimo ponto deste captulo
(1.5.). um pressuposto fixo de que no se entender a teoria literria sem se entender
a realidade circunstante da comunidade joanina.
1.1 As etapas da redao do Quarto Evangelho (Origens e
Fontes)
Pode-se afirmar que o redator do QE utiliza tradies e fontes comuns aos
evangelhos Sinticos, contudo no se pode afirmar dependncia literria entre os
documentos.8 Percebe-se que o texto foi produzido, isto , elaborado em vrias
etapas; usou-se de material variado e existente na poca e no lugar onde o autor ou os
autores viveram. Isso tudo, como escreve Brown, nos faz concluir que o Evangelho
no foi composio de um nico autor que escrevia suas recordaes e reflexes.9
A partir destes questionamentos foram levantadas vrias hipteses para
esclarecer as divergncias. Teoria das mudanas, modificaes acidentais e
reorganizao dos textos (Wikenhauser, Boismard). Teoria das fontes mltiplas
(Macgregor, Morton, Bultmann). Teoria das redaes mltiplas (E. Schwarz,
Wellhausen, W. Wilkens, Parker). As discusses antes de Bultmann giravam,
sobretudo em torno da paternidade e da origem do QE. O processo de descobrimento
das origens e das fontes do QE teve enormes avanos. Chegou-se concluso que o
texto que temos hoje deve ser fruto de um longo e complexo processo redacional.10
Tudo comeou por volta do ano 50 com relatos de Jesus narrados e interpretados
como sinais. Com o tempo foram sendo modificados com acrscimos e enxertos.
8 Aprofundamentos mais especficos sobre o QE e os Sinticos encontram-se em: BLINZLER, Josef.
Giovanni e i Sinottici. Rassegna informativa. (Studi Biblici 5), Brescia: Paideia Editrice, 1969. 9 BROWN, Raymond. El Evangelio segun Juan I-XII. p. 26.
10 KONINGS, J. A memria de Jesus e a manifestao do Pai no Quarto Evangelho. In: Perspectiva
Teolgica 51, 1988, p. 177.
26
Quanto ao problema da origem histrica do QE, Bultmann o define como o
enigma de onde se coloca o Evangelho de Joo em relao com o desenvolvimento do
cristianismo das origens e explica dizendo que no se pode considerar pertencente a
nenhuma das trs razes do desenvolvimento doutrinal que se pode distinguir na Igreja
primitiva, que so: o cristianismo helenstico (Paulo), o cristianismo judeu-helenstico
(I Clemente, o Pastor de Hermas, Hebreus, a Carta de Barnab), ou o cristianismo
palestins (os Evangelhos Sinticos).11
O QE deve ser despido, segundo Bultmann, do seu revestimento estranho e
extico que o evangelista pegou emprestado da sua fonte gnstica (dos Mandeus, em
particular). Na verdade, Bultmann diz que a originalidade da literatura joanina teria
provindo, alm de fontes comuns aos Sinticos, de fontes aramaica ou siraca, de
natureza gnstica ou proto-gnstica; que os discursos de revelao, se no foram
compostos em lngua semtica, teriam sido ao menos pensados de acordo com o estilo
e a poesia semtica, com paralelismos e antteses ocupando papel primordial, em
harmonia com o contedo dualista. Dessa fonte proviriam no somente o prlogo, as
palavras e os discursos do Jesus joanino, mas toda a linguagem dualista que
transparece no pensamento do redator e se encontra espalhada por toda a literatura
joanina.12
E continua dizendo que a tarefa do exegeta simplesmente aquela de
assegurar que a carne no seja confundida com a pele, o mito entendido como a
mensagem. O instrumento literrio, definitivamente, no a prpria mensagem.13
Contudo, o trabalho de Bultmann vulnervel em muitos pontos. No existe um
consenso entre os estudiosos do gnosticismo sobre as origens deste movimento nem
sobre a data em que comeou a circular. No sabemos de fato se o gnosticismo era
11
BULTMANN, Rudolf. The Gospel of John. A Commentary, p. 4-7. 12
Id., p. 7-8; Encontramos as mesmas afirmaes em Teologia do Novo Testamento, p. 438-440. 13
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, p. 70.
27
suficientemente formado j no final do II sculo a.C., para que tenha exercido tal
influncia como atesta a teoria de Bultmann.
J Charles Dodd, como resultado de sua ponderada e meticulosa investigao
diz que o QE apresenta contatos com uma tradio original aramaica, isto , com os
incios mesmo do cristianismo. Este Evangelho o nico que introduz termos
aramaicos em primeira mo no seu escrito. Quando os Sinticos tm, em lugares, se
no paralelos, ao menos anlogos, os termos Cristo, Pedro, o QE tem Messias,
Cefas.14
Algumas variantes na traduo de certos termos aramaicos se explicam talvez
por este mesma razo; o termo matela (o mashal hebraico) traduzido pelos
Sinticos com parbola ( ), enquanto no QE se traduz com provrbio
( ), porm com o mesmo sentido de parbola (cf. Jo 10,6; 16,25.29). O termo
bisera (basar) que os LXX traduzem umas vezes com corpo ( ) e outras com
carne ( ), o traduzem os Sinticos por corpo e no texto joanino com carne (cf. Jo
6,51; 19,18). Como tambm afirma Dodd que a tradio pr-cannica deste Evangelho
contm algumas expresses que delatam uma ambientao judaica, mais precisamente
judaico-crist.15
Tambm as indicaes geogrficas, nomes de lugares, indicaes
cronolgicas, a situao poltica da Judia (narrao da Paixo) permitem constatar
uma tradio muito antiga, de um notvel conhecimento topogrfico da Palestina e de
Jerusalm, especificamente e de uma procedncia de crculos judaico-cristos em
contato com a sinagoga,16
possivelmente anterior ao ano 66 d.C.17
14
Cf. Jo 1,41: Encontramos o Messias (que se traduz Cristo = Ungido): eurh,kamen to.n Messi,an( o[ evstin meqermhneuo,menon cristo,j; Jo 1,42: tu te chamars Cefas (que se traduz Pedro): su. klhqh,sh| Khfa/j( o] ermhneu,etai Pe,troj
15 Algumas aluses a crenas difundidas no judasmo: o Messias devia permanecer como um personagem
desconhecido at que Elias no o identificasse (Ecl 48,1; Mal 3,1; 4,4; Jo 1,21.26); a opinio do Sumo
sacerdote qualificada de profecia e explicada por razo de sua funo (cf. Jo 11,50s); a passagem de
Jo 1,48 com a possvel aluso histria de Susana. 16
Os nomes Gabbatha junto a Pavimento: Jo 19,13 = no lugar chamado Pavimento, em hebraico
28
Helmut Koester outro autor que trouxe grandes avanos na pesquisa da fonte
gnstica para o QE e os Sinticos. Ele v parentesco e proximidades literrias entre
o QE e os escritos reconhecidamente pr-gnsticos da biblioteca de Nag Hammadi
(descoberta em 1947), em particular o Evangelho de Tom e o Dilogo do Salvador.
Koester diz que os discursos e dilogos do Jesus joanino devem-se a um longo
processo de interpretao dos ditos originais de Jesus, processo cujos reflexos podem
ser encontrados seja nos evangelhos sinticos, seja em outros escritos, como o
Evangelho de Tom, O Dilogo do Salvador e o Apcrifo de Tiago.18
Segundo este
autor, o Evangelho de Tom em seu desenvolvimento, testemunho de uma trajetria
que leva da primitiva interpretao espiritualizante dos ditos de Jesus ao
reconhecimento pleno do potencial gnstico dessa compreenso de Jesus como mestre
de sabedoria divina. E que O Dilogo do Salvador tem estreitas relaes com o
Evangelho Joanino remetendo assim a uma origem sria do mesmo, datada no sculo
I.19
Aprofundaremos mais acuradamente esse tema adiante neste trabalho.
Gabbatha = eivj to,pon lego,menon liqo,strwton( ~Ebrai?sti. de. Gabbaqa ;Golgotha junto a ao chamado Lugar da Caveira: Jo 19,17 = saiu e chegou ao chamado Lugar da Caveira, em hebraico chamado
Golgotha = xh/lqen eivj to.n lego,menon Krani,ou To,pon( o] le,getai ~Ebrai?sti. Golgoqa. 17
DODD, C. Historical Tradition in the Fourth Gospel, p. 423-432. Mais detalhes da teoria de C. Dodd
encontra-se na obra de PONGUT, Silvestre. El Evangelio segn Juan. Cartas de San Juan, p. 32-37. 18
KOESTER, Helmut. Ancient Christian Gospels: Their History and Development, p. 256-267. A
descoberta da biblioteca de Nag Hammadi possibilitou o acesso a vrios escritos que auxiliam na
reconstruo da evoluo dos ditos, discursos e dilogos que certamente circulavam na comunidade
joanina e estiveram presentes nas fases iniciais da composio do texto do QE. Eis alguns exemplos:
As palavras sobre a luz em Jo 11,9-10 e 12,35-36 encontram paralelo no Evangelho de Tom 24b. Jo
8,52: Se algum guardar minha palavra, jamais provar a morte, uma variante do Evangelho de
Tom e citado como dito de Jesus no Dilogo do Salvador 104 (147,18-20); Jo 16,24 (pedir
receber alegrar-se) atestado como palavra de Jesus no Dilogo do Salvador 20 (129,14-16); a
recompensa dos que no viram e, contudo creram (Jo 20,29) aparece no Apocryphon de Tiago 12,31-
13,3. A afirmao dos discpulos de que Jesus est agora falando abertamente e no mais em
parbolas (Jo 16,29) aparece como um dito de Jesus no Apocryphon de Tiago 17,1-6. O Evangelho de
Tom, alm disso, apresenta vrios ditos de Jesus no estilo Eu, raros nos Evangelhos Sinticos, mas
freqentes no QE. Cf. KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento 2, p. 196. 19
O Dilogo do Salvador um testemunho importante de uma discusso que o QE continua em seus
dilogos e discursos. Em toda essa tradio de interpretao, Jesus lembrado como mestre de
sabedoria que permanece vivo em suas palavras e que desafia seus discpulos a descobrirem em si
mesmos como a verdade se tornou realidade em suas vidas. Somente no conhecimento do eu a
revelao se torna efetiva, porque aqui os crentes se tornam iguais a Jesus, na medida em que
alcanam o conhecimento de sua prpria origem e destino. Aqui esto as razes da teologia gnstica.
29
Voltando a Bultmann encontramos em sua obra a afirmao que o tema central
de todo o QE a revelao. O Revelador vem terra para dizer uma coisa e uma s:
que Ele o Revelador.20
Bultmann v a mensagem central do QE como um convite
f e no quer permitir que esta mensagem fique obstaculada pelos seus rudimentares
equipamentos gnsticos. A f crist significa crer em Jesus Cristo e reduzir este ato de
f a uma afirmao ou a uma srie de afirmaes significa faz-lo tornar-se
irreconhecvel. Porque, depois de tudo, as palavras de Jesus no so afirmaes
didticas, mas um convite ou uma chamada a uma deciso. A nica finalidade da
vinda de Jesus sobre a terra, segundo Bultmann, a de revelar, de sinalizar a presena
de Deus no mundo e de provocar uma adequada resposta humana.
1.1.1 Teorias sobre as fontes literrias do Quarto Evangelho
Com relao s fontes literrias do QE Bultmann apresenta basicamente trs
fontes que serviram de suporte para a redao do Evangelho: dos Sinais (Semeia-
Quelle), dos discursos de revelao, o relato da Paixo e da Ressurreio. O autor
percebe que na fonte dos sinais o incio se d no captulo 2,11 (Esse incio dos sinais,
Jesus o fez em Can da Galilia...) e 4,54 (Foi esse o segundo sinal que Jesus fez ao
voltar da Judia para a Galilia). Tambm outros textos serviram para fundamentar
as afirmaes de Bultmann: (2,18.23; 3,2; 6,2; 7,31; 9,16; 11,47; 12,18.37; 20,30).
Dessa maneira o evangelista teria selecionado um nmero de milagres realizados por
Jesus: (2,1-12; 4,46-54; 5,1-9; 6,1-25; 9,1-7; 11,1-44) presente na fonte, juntamente
com algumas narraes. E o texto 1,35-49 poderia ser o que introduziria a fonte dos
Paulo reconheceu isso em sua exposio em 1 Corntios, e o autor do QE precisou entender-se com
essa tendncia gnstica da interpretao dos ditos de Jesus. Cf. KOESTER, Helmut. Introduo ao
Novo Testamento. Histria e Literatura do cristianismo primitivo, p. 169-171. 20
Para compreender melhor a posio de Bultmann preciso fazer, segundo Ashton, a distino que faz
entre f e religio. A religio encadeada na terra; a f vaga livremente. A religio o objeto prprio
do estudo histrico; a f uma questo teolgica.
30
sinais. Bultmann acredita que foi a partir da fonte dos discursos de revelao que o
evangelista desenvolveu sua pregao. O texto primitivo, fruto do pensamento
gnstico oriental, foi modificado com uma conotao crist, colocado na boca de
Jesus de forma cristianizada e desmitologizada.21
Diz tambm que o autor pertencera a
um grupo gnstico de discpulos de Joo Batista e depois se convertera ao
cristianismo e que as grandes influncias semticas no Evangelho se explicam mais
pelo uso das fontes do que pelo grego do evangelista. Finalmente, Bultmann postula a
interveno de um redator eclesistico. A sua influncia foi de carter literrio e
teolgico; introduziu uma ordem prpria ao material deixado pelo evangelista. Porm,
a influncia teolgica foi mais importante: agregou referncias aos sacramentos (ao
batismo: gua em 3,5; a eucaristia em 6,51-58; ao batismo e a eucaristia em 19,34-35),
a escatologia final nas passagens como 5,28-29 e 12,4-8. No que se refere aos dados
histricos, procurou harmoniz-los com os dados dos Sinticos.
Marie-mile Boismard tem sua prpria hiptese das fontes literrias do QE.
Apresenta-a dividindo-a em quatro etapas redacionais, com a interveno de trs
autores (JoI, JoIIA, JoIIB, JoIII). Boismard aplicou quatro critrios para separar seu
procedimento: 1) as adies em forma de glosa, correo ou ratificao; 2) as
duplicaes ou repetio de contedos; 3) textos aparentemente deslocados de seus
contextos de origem; 4) textos estilisticamente semelhantes, com base numa lista de
mais de 400 caractersticas de estilo. O autor descobriu como resultado da primeira
etapa de redao um evangelho inteiro, semelhante aos Sinticos, tendo a parte os
discursos prprios do QE. Sua segunda fase redacional teria sido realizada pelo
presbtero Joo, autor das Cartas, com o acrscimo de passagens sinticas e de alguns
discursos de Jesus. Na terceira etapa, o evangelista teria efetuado a organizao do
21
BROWN, Raymond. The Gospel according to John (I - XII), p. 31.
31
Evangelho a partir do ano judaico, alm de revelar certa influncia de Qumran. A
quarta etapa poderia ser atribuda a outro autor, o qual teria acrescentado as glosas e
invertido algumas passagens do texto.22
A grande contribuio de Boismard foi a de
realizar uma minuciosa e acurada crtica literria, o que estimulou e at facilitou o
estudo da histria das origens da comunidade joanina.
Rudolf Schnackenburg, outro pesquisador joanino, no considera a teoria
bultmaniana convincente no seu todo, mas admite a probabilidade do QE ter se
utilizado da fonte de sinais escrita. O autor do QE utilizou da tradio e fontes orais
de forma livre e soberana. H um primeiro estgio da tradio e depois foram
incorporados novos textos por um redator final. Este encontrou uma mltipla tradio
e foi formando lentamente seu evangelho sem que tenha chegado a dar uma concluso
definitiva. Entre as tradies que o evangelista foi elaborando, se podem reconhecer
somente com dificuldades fontes escritas. A utilizao direta dos Sinticos no
pensvel; s se pode pensar em um conhecimento parcial da tradio sintica. Para a
tradio prpria ele utilizou de narraes orais, de originalidade independente e
procedentes de informao muito antiga (os logia, por exemplo). Em algumas
passagens Schnackenburg admite elementos prprios da liturgia e do Kerygma.23
22
BOISMARD, Marie-mile. Lvangile de Jean. Sinopse des quatre vangiles, vol. 3, 1977. 23
Cf. SCHNACKENBURG. Rudolf. Il Vangelo di Giovanni I, p. 93-102. Schnackenburg, na sua
pesquisa, faz ainda um peculiar comentrio s origens do QE dizendo que um trabalho de
sincretismo, no qual os componentes helensticos e gnsticos no podem ser eliminados. Segundo o
autor, torna-se extremamente difcil encarnar o QE a uma rea bem definida e a um ambiente
claramente reconhecvel. Porque a inteira cultura do evangelista era sincretista, e a metade oriental do
Imprio Romano, a nica metade em questo com lugar de origem do QE, contm diversas regies e
cidades similares: Sria e Antioquia, sia Menor e feso, Egito e Alexandria. O problema
ulteriormente complicado quando iniciamos a distinguir o ambiente do autor, o mbito intelectual do
lugar de origem, e talvez tambm as fases do desenvolvimento do mesmo trabalho. Cf. ASTHON,
John, Comprendere il Quarto Vangelo, p. 103. Queremos esclarecer que para ns, o autor do QE tinha
um projeto, uma lgica e ordenou seus escritos, seus ou recolhidos, mas tambm recebeu influncia do
ambiente e da cultura que o circundava no seu momento histrico. Ele no somente um simples
compilador, mas respondia s necessidades e desafios da comunidade no lugar e na situao em que se
encontravam. H no QE uma unidade estilstica e temtica, como demonstraremos mais adiante.
32
Raymond Brown apresenta sua teoria sobre a formao do QE resumindo-as em
cinco etapas e ligando-as com a situao e problemticas vividas pela comunidade. A
primeira etapa descrita com a existncia de materiais independentes das tradies
sinticas que traziam atos e ditos de Jesus; a segunda etapa os materiais com relatos
sobre palavras de Jesus que so desenvolvidos em meio comunidade atravs da
pregao e do ensino oral; a terceira etapa trata a primeira redao do Evangelho a
partir da organizao dos materiais j citados (provavelmente tal reao j fora em
grego e no em aramaico). A quarta etapa mostra que uma nova redao feita diante
de problemas surgidos na comunidade, adaptando os textos para os novos objetivos e
interesses; quinta etapa a redao final feita por um redator que no o evangelista.
Tal redao acrescentou textos da tradio joanina.24
J. L. Martyn tambm apresentou sua teoria sobre a composio literria do QE.
Segundo John Ashton, a obra de J. L. Martyn (History and Theology in the Fourth
Gospel) provavelmente a mais importante e relevante monografia sobre o Evangelho
joanino depois do comentrio de Bultmann. Martyn fundamenta sua teoria em trs
fases: 1) nesta fase inicial, a comunidade joanina (de judeus convertidos), vive e age
em um ambiente e em uma situao judaicos (a Sinagoga), e caracteriza-se pela
apresentao da tradio sobre Jesus em forma de homilias. Um dos pregadores
recolheu as tradies e homilias sobre Jesus e elaborou um primeiro texto (esboo) do
evangelho; 2) nesta segunda fase acontece uma grave tenso entre os que acreditam
em Jesus e os judeus (fariseus) e d-se uma ruptura. Tal rompimento conduz
perseguio e at a execuo de alguns membros da comunidade crist seguidora de
Jesus por parte das autoridades da sinagoga. Nesta situao, a comunidade forada a
reformular suas concepes sobre Jesus. Usam ento do dualismo para apresentar
24
BROWN, Raymond. El Evangelio segn Juan I XII, p. 36-42.
33
Jesus: Aquele que vem do alto (3,31), desprezado pelos seus (1,11), quem O aceita
odiado pelo mundo (17,14.16), os que nEle crem so chamados de verdadeiros
israelitas e no mais judeus (1,47); 3) a terceira fase caracterizada pela tenso entre a
comunidade joanina e outros grupos afins. Pelo menos quatro grupos: a sinagoga dos
judeus, judeus a que procuram serem fiis a Jesus, a mesma comunidade joanina e
outras comunidades de cristos influenciados pelo judasmo.
1.1.2 As origens histricas do QE (fases da redao)
Podemos considerar J. L. Martyn um que mais contribuiu na pesquisa joanina
com suas observaes sobre a correlao entre a histria literria do QE e a histria da
comunidade.25
Diz Martyn que o QE narra a histria de um evento real na vida da
comunidade de tal modo que pode ser visto como uma reconstruo de um episdio
no ministrio de Jesus. Inicia com o captulo 9 (a cura do cego mendicante), que
plausivelmente constri um drama. Todos os principais protagonistas, compreendido
Jesus, tem as prprias analogias na experincia da comunidade: o cego mendicante
um convertido cristo, O Sindrio o conselho local judaico; Jesus um profeta do
ltimo dia que fala em seu nome. Os pais do cego so membros da comunidade
joanina.
Tantos outros autores se debruaram para descobrir as razes histricas e
literrias da comunidade onde nasceu o QE. Cada um deu sua contribuio cientfica e
vlida. Snen Vidal outro autor, mais recente, que conseguiu sintetizar vrios
estudos (como as de Bultmann, Wengst, Brown, Culmann, Boismard) e harmoniz-los
25
Cf. TUI, Jos-Oriol. Escritos Joaninos e Cartas Catlicas, p. 123-125; ASHTON, John.
Comprendere il Quarto Vangelo, p. 113-115.
34
na sua teoria. Segundo Vidal,26
as tradies bsicas (TB) consistiriam em textos de
origem diversas, relativos a aes/ditos de Jesus; so os textos mais primitivos e,
portanto, mais prximos do Jesus Histrico, e que esto na base dos demais
Evangelhos. Nesta base esto os relatos sobre Jesus e sobre Joo Batista (1,19-33;
1,37-49; 3,23-30), tendo uma clara inteno apologtica; assim tambm o relato
independente da converso dos samaritanos em Sicar (4,5-41). A estes foi
acrescentada certa coleo de milagres, que transparece em Marcos, bem como os
relatos da Paixo, fonte comum tambm aos Sinticos.
Para Vidal o primeiro escrito do QE seria o texto surgido do trabalho redacional
inicial, no qual foram unidas as tradies bsicas (relatos sobre Joo Batista, de
milagres, da paixo), na forma de uma histria da paixo de Jesus, mas com a inteno
de ser uma etiologia da comunidade joanina (E1). A trajetria do Jesus joanino lida
como reflexo da trajetria histrica da comunidade joanina. E seu contexto scio-
histrico seria, portanto o do conflito com as autoridades farisaicas e a expulso da
sinagoga nos anos 80. Assim teria nascido o segundo Evangelho com a releitura dos
primeiros escritos sob nova tica (E2). Isto teria acontecido provavelmente na dcada
de 90 100, marcada por grandes perseguies aos cristos em geral. Em seguida
nova edio teria sido feita pela comunidade joanina (E3) com novas glosas ao longo
do texto e o cap. 21. A comunidade atravessava um processo de institucionalizao
apostlica. H um grande esforo com relao tica do amor fraterno e a expectativa
pelos acontecimentos escatolgicos futuros. Vidal conclui dizendo que o QE foi
escrito por vrias pessoas num largo espao de tempo entre uma redao e outra,
possivelmente unidos em torno de uma mesma tradio ligada ao discpulo amado.
26
Teoria presente nas pginas de 13 a 40 do livro de VIDAL, Senn. Los escritos originales de la
comunidad del discpulo amigo de Jess.
35
A investigao sobre as fases da redao do QE conseguiu aprofundar e
conhecer melhor seus processos. A crtica literria (anlises estilsticas) ofereceu a
possibilidade de delimitar os diversos documentos dentro de uma mesma obra ou
dentro de uma determinada tradio. Distinguiram-se no QE diversos nveis literrios,
como vimos antes nas numerosas passagens que no parecem suficientemente
pertinentes a seu contexto atual. Isso tudo levou a concluir que vrias aporias so
presentes no texto e indicam fases histricas literrias na sua composio. Uma escola
joanina, isto , um grupo-autor foi elaborando o texto na base de releituras constantes
e que so constatveis, inclusive, na forma literria do prprio texto, como
provaremos mais adiante, na nossa percope 8,31-49. A obra literria foi elaborada
lentamente numa tradio oral a partir de necessidades catequticas, apologticas,
missionrias, de busca de identidade.27
Descobriu-se tambm que o QE tem uma peculiaridade, a qual no pode vir do
cristianismo primitivo ou somente de uma tradio oral; deve ter surgido de outro
meio cultural. Tal meio que proporciona um documento base que vai ser o ncleo da
apresentao da pessoa de Jesus. Trata-se de um conjunto de discursos de um
revelador gnstico, que seria utilizado como base e, depois, constituiria o centro da
cristologia do QE. Para os textos narrativos, Bultmann prope como vimos
anteriormente, uma Semeia Quelle (fonte literria dos sinais); para o relato da Paixo,
outra fonte. Contudo, para Bultmann, o ponto central do desenvolvimento do QE
constitui-se pelo conjunto dos discursos de revelao. Passou-se ento, aps
Bultmann, a novas pesquisas e avanos: do autor histria da literatura joanina e aos
diversos momentos dessa histria como contexto social da comunidade (Sitz im
Leben), aonde vo surgindo os diversos nveis que compem o Evangelho.
27
RUBEAUX, Francisco. As razes do Quarto Evangelho. In RIBLA 22, p. 64.
36
Comearam a aparecer novas hipteses sobre as etapas que marcam a progressiva
redao do QE. Quanto ao lugar que ocupa no cristianismo primitivo temos o estudo
de E. Ksemann, discpulo de Bultmann. A questo gnstica continua crescendo como
objeto de aprofundamento e novas descobertas. Como tambm exegetas que escrevem
sobre um sincretismo geral existente na poca da comunidade joanina. Conclui-se que
o QE surgiu num contexto judaico, numa comunidade judeu-crist, marcada por uma
forte polmica com uma ou vrias determinadas formas de interpretar o judasmo e a
pessoa de Jesus Cristo.
Podemos dizer ainda que aps a descoberta dos manuscritos de Qumran e os
estudos comparativos com a literatura do QE, nota-se sempre mais uma aproximao e
at, certa influncia. O aprofundamento desse estudo vai conquistando novos espaos
e pesquisadores e se afirmando como literatura paralela e contempornea
comunidade joanina, como tambm forma de pensar e de estruturar a mensagem.
Aprofunda-se tambm a relao do QE com as chamadas cartas joaninas.28
Veremos
no ponto seguinte justamente o contexto no qual surgiu a composio do QE.
1.2 A comunidade joanina e o seu ambiente scio-poltico-cultural-
religioso no I sculo d. C.
O QE produto literrio do seu tempo e do seu espao. O autor quer narrar a
vida, morte, ressurreio e ensinamentos de Jesus segundo e direcionado s realidades
e necessidades do seu lugar e momento histrico. A mensagem do evangelista ,
portanto, influenciada e moldada pela situao em que sua comunidade vive. Por que
o autor escreveu esta narrativa de determinada maneira? Por que incluiu certos fatos?
28
TUI, Jos-Oriol, Escritos Joaninos e Cartas Catlicas, p. 138-145.
37
Por que omitiu outros? Encontramos as respostas a estas perguntas ao examinarmos o
contexto social, poltico, cultural, religioso da comunidade joanina. o conhecimento
deste contexto que nos ajudar a entender melhor a natureza e o sentido do Jesus do
autor joanino. Inclusive entenderemos melhor por que escreveu em 20,31: Esses foram
escritos para crerdes que Jesus o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais vida em seu nome.
Primeiro, num contexto mais amplo, precisamos compreender o contexto
histrico e poltico no qual deve ser investigado o QE. O livro foi escrito no final do
sculo I do Imprio Romano. Augusto (antes Otaviano), filho adotivo de Jlio Csar,
tornou-se primeiro imperador romano depois do colapso da repblica romana e da
suposta cessao das guerras civis que dominaram a vida e a poltica durante pelo
menos a segunda metade do sculo I a.C. Nesse perodo, portanto, que nasceu Jesus
e viveu a comunidade joanina. Do ponto de vista de Roma e das poucas autoridades
romanas do sculo I que teriam ouvido falar deste grupo, Jesus e os movimentos
subseqentes reunidos em torno dele eram grupos judaicos do Oriente. Para Roma,
escreve A. Overman, os movimentos de Jesus faziam parte do imprio do Oriente.
Estavam entre os povos, lnguas e culturas diferentes com os quais Roma entrou em
conflito a partir do fim do sculo II a.C. os seguidores de Jesus e as comunidades a ele
congregadas viviam na fronteira do Imprio. O Oriente crescia em importncia
econmica e poltica para Roma.29
29
Andrew Overman diz que um exemplo desse crescimento se v na carreira e nas realizaes de
Pompeu, o Grande, que, se dizia, pacificou o Oriente, reorganizou-o administrativamente, f-lo seguro
para comrcio e viagens e governou terras orientais to longnquas quanto o rio Eufrates para a rbita
e o controle de Roma. Cf. OVERMAN, Andrew J. Igreja e Comunidade em crise, p. 16.
38
1.2.1. A diversidade de grupos e movimentos (cristianismos)
Desse contexto histrico-poltico maior vamos ao menor e mais especfico.
Perguntamo-nos como era a situao cultural, religiosa e social antes e aps a guerra
dos judeus na Palestina do I sculo d.C. Sabemos que o perodo que se seguiu
guerra judaica de 66-70 d.C. foi decisivo para a formao da simblica religiosa que
recriaria o judasmo (javismo) e as novas formas de cristianismo. As recentes
pesquisas exegticas dialogam com as cincias sociais, (como a antropologia cultural,
a sociologia, a psicologia, a lingstica) para descobrir e compreender mais a fundo as
estruturas existentes na poca da comunidade joanina, que condicionaram sua atuao.
A identidade da comunidade do QE foi um processo que lentamente se organizou no
confronto e dilogo com tantas foras contrrias e em mudana.30
Elaine Pagels
chega a afirmar que os documentos encontrados em Nag Hammadi foram escondidos,
enterrados nos penhascos, porque seriam parte (causa, reflexo) de uma disputa crtica
na formao do incio do cristianismo. O que nos faz reconhecer que nos primrdios
do cristianismo existia diversidade de textos, opinies, concepes, grupos. As foras
existentes nos grupos de ento, segundo Pagels, desempenharam um papel
predominante na rejeio de outros pontos de vista como herticos e na uniformizao
da verdade, ou da ortodoxia, como no caso da tradio catlica que se
institucionalizou radicalmente insistindo que s poderia haver uma nica igreja e fora
dela, no h salvao.31
Apenas os membros desta igreja so os cristos ortodoxos
(do pensamento correto). Quem quer que desafiasse o consenso, argumentando a
favor de outras formas de ensinamento cristo, era declarado herege e expulso. Assim,
neste seguimento, quando os ortodoxos obtiveram apoio militar, algum tempo depois
30
R. Brown pesquisou profundamente a histria da comunidade joanina. Ele mostra a evoluo e as
etapas na formao da comunidade no seu livro A comunidade do Discpulo Amado (1979). 31
Atribui-se a Ireneu de Lio a frase Extra ecclesiam nulla salus, contudo no existe uma comprovao
histrica e documentria que realmente seja ele mesmo o autor desta frase.
39
de o imperador Constantino tornar-se cristo no sculo IV, o castigo para quem se
desviasse do pensamento correto (da ortodoxia), era a classificao de heresia e a
excluso da comunho.32
Aprofundaremos isso mais adiante.33
Continuemos a
verificar como foi o surgimento desta diversidade de grupos e dos conflitos nos incios
do cristianismo primitivo.
Os anos que se seguiram mais ou menos 30 at o final do sculo I definiram
as estratgias das expresses e formas religiosas (diversas) subsistentes. A guerra
ocasionou o desaparecimento de muitas seitas e movimentos menores, mesmo que
alguns elementos de escritos apocalpticos subsistiram numa nova dispora. Os
zelotas, derrotados militarmente, saem de cena, embora alguns focos de resistncia
armada judia ainda continuem se manifestando at 135; mas no temos confirmaes
documentrias ou histricas de que exista continuidade dos zelotas para estas novas
revoltas. Com o Templo destrudo e a funo sacerdotal acabada fundamentos do
poder, os saduceus desapareceram definitivamente. Os essnios, retirados no deserto
de Jud, talvez participaram da guerra, mas foram destrudos, todavia deixaram um
legado de escritos nas grutas de Qumran. Os samaritanos submergem na histria como
um grupo menor e permanecem at os dias de hoje sem muita expresso. Os fariseus
so os nicos que se estabelecem e se fortalecem depois do 70-ps guerra como um
movimento que d maior importncia piedade e ao amor Torah. Nasce o judasmo
32
Cf. PAGELS, Elaine, Os Evangelhos Gnsticos, xviii-xxi. 33
Como exemplo desta questo na poca em relao ao QE, cito Ireneu de Lio que escreveu a
Heraclio, o qual j se tinha apropriado deste evangelho, interpretando-o dentro do sistema teolgico
gnstico: Tu, carssimo, nos tinhas pedido que expusssemos as doutrinas secretas dos discpulos de
Valentim, e mostrssemos as divergncias que h entre eles e os refutssemos. Mas, se para a simples
exposio foi suficiente um livro, foram necessrios vrios para a refutao. (...) Neste terceiro livro
aduziremos as provas tiradas das Escrituras para te fornecer argumentos oportunos para refutar
completamente todos os que de qualquer forma ensinam a mentira. IRENEU DE LIO, Contra as
heresias, Livro III, p. 245. Parece que inicialmente os cristos de tendncia gnstica aceitavam mais
facilmente o QE do que os cristos no-gnsticos. Diante disso era preciso garantir sua ortodoxia.
40
formativo34
em Jmnia por volta do ano 90 que significa a nova imagem e identidade
do judasmo.35
Nesse lugar acontece um snodo que define o cnon da Bblia hebraica
e exclui quem no se enquadra nas suas novas regras fixadas. Podemos dizer que o
rabinado quem comanda e institucionaliza o judasmo conseguindo se impor tambm
fora da Palestina, na dispora.36
Com o passar do tempo surge a Mishnah e o Talmude,
produtos dessa nova religiosidade e interpretaes dos rabis fariseus.37
nesse
contexto que o cristianismo tenta afirmar-se, num movimento que tenta se impor, em
meio a uma pluralidade judaica de movimentos e expresses que tornam cena.38
Assim escreve Paulo R. Garcia:
O perodo que cerca o movimento de Jesus em especial do
segundo sculo a.C. at o segundo sculo d. C pode ser
considerado como um perodo de uma riqueza e, ao mesmo
tempo, de uma conflitividade sem par na histria do judasmo
e da cultura israelita-judaica.39
Podemos dizer que o cristianismo luta para se afirmar no somente diante do
desafio da nova configurao judaico-farisaica, mas tambm diante de outros
34
Este termo judasmo formativo de uso comum atualmente entre os estudiosos do judasmo e foi
criado por Jacob Neusner, dedicado especificamente ao aprofundamento do judasmo antigo. Neusner
entende por judasmo formativo o perodo que comea com o a elaborao da Mishnah no 2 sculo
depois de Cristo at a composio final do Talmud no 6 sculo depois de Cristo. 35
Seguimos neste trabalho exatamente esta compreenso de judasmo formativo que defendida na tese
do Prof. Paulo Roberto Garcia (Tese doutoral O Sbado do Senhor teu Deus. O Evangelho de Mateus
no Espectro dos Movimentos Judaicos do I Sculo, p. 44-49). Na perspectiva da sua proposta tambm
aceitamos aqui esta definio, mesmo com crticas a NEUSNER, pois consideramos tardio demais o
nascimento deste tipo de judasmo. Ele nasceu bem antes do perodo que Jacob Neusner estabelece. 36
Pierre Grelot, um estudioso do judasmo da poca de Jesus, diz que a reforma que os doutores fariseus
ou mais exatamente, os da escola de Hillel ali operaram, foi recebida em toda parte sem
contestao, tanto no Egito de lngua grega como na Mesopotmia de lngua aramaica, onda as
comunidades judaicas eram numerosas e muito florescentes. A academia de Jmnia foi acrescida de
um tribunal (Beth dn) que herdou, por fora das circunstncias, uma parte dos poderes outrora
confiado ao Sindrio. Cf. GRELOT, P. A Esperana Messinica no Tempo de Jesus, p. 142. 37
NEUSNER, J. The formation of Rabbinic Judaism: Yavneh form A.D. 70-100, ANWR II., 19.2, p.3-42. 38
Paulo R. Garcia escreve que o judasmo formativo escondeu muitas tradies que reapareceram na
mstica judaica novamente depois de 4 sculos. Muitos movimentos e grupos conservaram suas
memrias mesmo depois da destruio do Templo em 70 d.C. Cf. GARCIA, Paulo Roberto. Jesus, um
Galileu frente a Jerusalm: Um olhar histrico sobre Jesus e os Judasmos de seu tempo, p. 264. 39
Id., p. 266.
41
cristianismos. Como escreve Nstor O. Mguez em seu artigo,40
comunidades crists
se formaram e se fortalecem antes da guerra. Algumas se dispersaram e buscaram
refgio em aldeias crists da Galilia e do sul da Sria. Certamente por ali encontraram
outras fontes literrias e entraram em contato com outras expresses de cristianismos.
Tudo isso influenciou e determinou o rumo das comunidades crists primitivas e os
textos que da surgiram. Para ns interessa descrever as origens da comunidade que
chamamos de joanina por ter Joo, o discpulo amado de Jesus, como seu fundador.
O movimento de Jesus, continua Paulo R. Garcia, teve grande impulso,
conforme o evangelista Lucas, no dia de Pentecostes (At 2,1-36), o anncio da Boa-
Nova comeou com ardor e vigor seguindo a ordem dada por Jesus de evangelizar nas
sinagogas da Galilia (Mc 1,14) depois da Ressurreio (Mc 14,28; 16,7; Mt 28,10).
Esta primeira etapa do anncio da Boa-Nova do Reino entre os judeus (dos anos 30 a
40), segundo Carlos Mesters e Francisco Orofino, termina com a crise provocada pela
poltica do imperador Calgula (37-41) e pela perseguio dos cristos por parte do
rei Herodes Agripa (41-44).41
Estas primeiras comunidades, antes e depois da morte
de Jesus, eram sustentadas e animadas por missionrios ambulantes (Mt 10,8; Lc
10,9). O crescimento, tanto geogrfico como numrico, obrigou estas comunidades a
se organizarem com novas lideranas (At 6,2-6; cf. Lc 9,1-6; 10, 1-9.17-24; Mt 10,5-
15; Mc 6,7-13).
J nesta primeira etapa, onde os evangelhos tm sua origem, aparecem
divergncias. Num extremo havia o grupo ao redor de Estvo, ligados aos judeus da
dispora (leitura da Bblia para incultur-la no mundo helenista) e no outro, havia o
40
MGUEZ, Nestor O. Contexto sociocultural da Palestina. In: RIBLA 22, p. 32. 41
MESTERS, Carlos e OROFINO, Francisco. As primeiras comunidades crists dentro da conjuntura da
poca As etapas da histria, do ano 30 ao ano 70. In: RIBLA 22, p. 35.
42
grupo dos judeus ligado aos escribas e fariseus de Jerusalm (defendiam a fidelidade
estrita lei de Moiss e Tradio dos Antigos Mc 7,5; Gl 1,14). Entre estes dois
extremos existem outros grupos: alguns ligados s comunidades da Galilia (cf. Mc
16,7; 14,28), outros ligados a Tiago e aos irmos de Jesus (cf. Mc 3,31-34; Gl 1,19;
2,9; At 12,17; 21,28), outros ainda aos samaritanos (cf. Jo 4,39-42). Esta variedade de
grupos e tendncias revela a riqueza da vivncia da Boa-Nova do Reino, mas tambm
mostra que existiam conflitos e tenses que se acentuavam cada vez mais.
1.2.2 A situao poltica-cultural-social da Palestina no I sculo
A conjuntura poltica na Palestina tomou propores graves durante o governo
do Imperador Calgula. Muitas revoltas e levantes aconteceram entre os judeus nesse
perodo. O sentimento anti-romano cresceu perigosamente fazendo ressurgir novos
movimentos nacionalistas. A rebelio contra Roma foi se fortalecendo. O Zelo pela
Lei e pelo Templo aumentou. Os zelotas se organizaram e movimentos messinicos
surgiram. Essa nova conjuntura poltica e social repercutiu, logicamente, nas
comunidades crists que, por causa disso, iniciaram misses para fora da Palestina
(sia Menor, Grcia e Itlia).42
No ano de 68 com o imperador Nero surgem novas
revoltas e at golpes militares. Vespasiano enfim vence e assume o poder romano e
seu filho Tito destri o Templo de Jerusalm em 70. A estas alturas os apstolos da
primeira gerao j morreram e as comunidades crists entram numa nova fase. Novas
perseguies aos cristos dilaceram as comunidades e isso tudo coloca em crise a
identidade de muitos grupos. Nesse contexto, judeus e cristos se dividem mais
radicalmente e se tornam inimigos, ao invs de se unirem para resistirem opresso
romana. Depois do ano 70, muitas doutrinas e religies diferentes, tanto gnsticas
42
Id., p. 35-39.
43
como mistricas, comeam a invadir o Imprio Romano. Carlos Mesters e F. Orofino
descrevem muito bem esta realidade plurirreligiosa que se vivia no final do I sculo:
O que mais impressiona e chama a ateno nestes primeiros
quarenta anos da histria das comunidades crists a
diversidade de grupos, movimentos, tendncias e doutrinas.
Parte dessa diversidade herana do judasmo: Fariseus (At
15,5), Joanitas (19,1-7), Proslitos (At 13,43), Tementes a
Deus (At 10,1; 18,7; 22,12), Samaritanos (At 8,5-6; Jo 4,39-
40), movimentos messinicos (Mt 24,4-5.23-24), os falsos
irmos (Gl 2,4; 2Cor 11,26), os chamados Balaamitas (Ap
2,14), desconhecidos para ns, e outros. Parte vem da origem
diversificada de pessoas e lugares; comunidades fundadas por
Jesus na Galilia, outras fundadas por Paulo, Apolo, Pedro ou
Cefas (1Cor 1,12), outras ligadas a Joo, a Tiago (At 12,9;
21,18; Gl 1,19; 2,9) e aos irmos de Jesus (cf. Mc 3,31-35).
Outra parte fruto da insero no mundo helenista e da
assimilao da sua cultura na vida das comunidades:
Nicolatas (Ap 2,6), Gnsticos (Cl 2,16-19). No fcil
reconstruir o iderio exato de todos estes movimentos e
grupos. Uns so aceitos com naturalidade, outros so
condenados como herticos.43
Encontramos nos Evangelhos sinais que demonstram essas divises e
diversidade de grupos dentro das comunidades que produziram o texto. Notamos
problemas internos e externos que precisam ser resolvidos, problemas teolgicos e
culturais que precisam ser esclarecidos. No QE nota-se uma surpreendente quantidade
de dados que oferecem a possibilidade de compor uma representao da natureza e da
43
Id., p. 43. Flavio Josefo, historiador judeu do sculo I d.C. descreve tambm muitas das escolas mais
populares do judasmo de seu tempo: os essnios, em geral associados aos habitantes de Qumran e aos
Manuscritos do mar Morto, os fariseus, os saduceus e um grupo revolucionrio, a quarta filosofia
(Guerra Judaica II, 119-66; Antiguidades judaicas XVIII, 11-17). Alm desses, Josefo descreve
alguns grupos menos oficiais, grupos populares que tambm alegavam ter tradies, heris e, acima
de tudo, expectativas para Israel. Esses grupos eram variadamente classificados como bandidos,
rebeldes, movimentos populares, sicrios ou mesmo zelotas. Outros grupos associados ao Templo,
como os samaritanos e numerosos grupos apocalpticos no mencionados por Flvio Josefo. Cf.
OVERMAN, Andrew J., Igreja e Comunidade em crise, p. 18-19.
44
histria da comunidade. Particularmente encontramos no captulo 8 do QE um
declarado conflito entre Jesus e os judeus que reflete claramente o quanto a
comunidade se enfrentava com grupos divergentes no seu seio e no seu trio, isto ,
dentro dela e fora dela. Controvrsias teolgicas que ameaavam destruir e dilacerar a
unidade da comunidade, pois na percope 8,31-59 chegam a violncia, levando
excluso os que no aceitavam nem acreditavam em Jesus do jeito dos joaninos.44
1.2.3 As razes e as idias da comunidade joanina neste contexto
(Gnosticismo, Qumran, Judasmo, Seguidores de Joo Batista)
As motivaes que encontramos no texto do QE so de defesa e afirmao na f
em Jesus Cristo, como que proclamando veementemente isso aos contrariadores:
Esses foram escritos para crerdes que Jesus o Cristo, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais a vida em seu nome (20,30-31). Como adeso a uma pessoa, a f
sujeita mudana, a evolues e aprofundamentos, uma atitude viva e dinmica.45
Nota-se e sente-se nestes versculos a necessidade de confirmar a f dos membros da
comunidade, talvez provados e abalados por doutrinas, idias, interpretaes
diferentes e perigosas que tomam conta das comunidades e tornam difcil a confisso
de f. Ora, somente na proclamao da f em Jesus, Cristo, Filho de Deus, que se
pode encontrar a vida plena. Da verdade confessada na f em Jesus vida plena. Se
algum se afastar da verdadeira f, tambm se afastar da fonte da verdadeira vida.46
44
R. Brown, no seu livro A Comunidade do Discpulo Amado, p. 74-95, identifica trs grupos que esto
presentes na comunidade joanina: O primeiro seria aquele formado pelos que conseguiram se manter
na sinagoga e no foram expulsos. Evitavam confessar publicamente que Jesus era o Cristo (cf. Jo
9,20-22; 12,42). O segundo grupo seria composto por cristos reconhecidos publicamente, contudo
tinham divergncias teolgicas doutrinrias que os cristos joaninos consideram inaceitveis (cf. Jo
6,60-66). O terceiro grupo estaria representado pelos nomes da lista dos doze apstolos, exceto Judas
Iscariotes (Pedro, Andr, Filipe, Tom, Judas e Natanael). O autor do QE parece insistir num contraste
entre duas figuras paradigmticas dos discpulos de Jesus: Simo Pedro e o Discpulo Amado. 45
Poucas vezes o autor do QE usa o substantivo f, usa mais o verbo crer (98 vezes). A atitude de
crer uma exigncia fundamental para o seguidor de Jesus na comunidade joanina. 46
RUBEAUX, Francisco. As razes do Quarto Evangelho. In: RIBLA 22, p. 65.
45
Portanto a comunidade precisa definir-se, decidir suas verdades. Diante da real
ameaa de diviso se exige uma confirmao de f, uma carta de identidade.47
As idias gnsticas circulavam entre os pensadores e se difundiam. No tinha
sistematizao nem se constitua em movimento organizado, mas havia basicamente
uma viso e idias que invadiram aos poucos as maneiras de pensar da poca.48
A
comunidade joanina provavelmente teve contato e recebeu influncia disto.49
Deste
pensamento gnstico baseado no dualismo grego de esprito e matria e na
necessidade de se ter um intermedirio entre a humanidade e a divindade, surgem
vrias teorias teolgicas e alguns grupos comeam tambm a querer reler o evento
Jesus de Nazar com os conceitos prprios deste modo de pensar. possvel que a
comunidade do QE quisesse expressar a mensagem evanglica num vocabulrio
prprio aos gnsticos, mas, se o fez, foi para reforar diante da gnose as afirmaes de
f como a criao, a redeno, que so obras do mesmo logos (Prlogo). A escola
joanina insiste ainda na encarnao como realidade histrica e inseparvel da pessoa
47
Senn Vidal escreve que a concluso do QE (20,30-31) tinha uma inteno etiolgica, de
justificao da f comunitria em Jesus como profeta messinico (no de tipo poltico) que era a
confisso fundamental dos grupos joaninos dos primeiros tempos da comunidade. Cf. VIDAL, S., Los
escritos originales de la comunidad, p. 18. 48
Gnosticismo a viso de mundo baseada na experincia de Gnose, que tem por origem etimolgica o
termo grego gnosis, que significa "conhecimento". Mas no um conhecimento racional, cientfico,
filosfico, terico e emprico (a "episteme" dos gregos), mas de carter intuitivo e transcendental;
Sabedoria. usada para designar um conhecimento profundo e superior do mundo e do homem, que
d sentido vida humana, que a torna plena de significado porque permite o encontro do homem com
sua essncia eterna, centelha divina, maravilhosa e crstica, pela via do corao. uma realidade
vivente sempre ativa, que apenas compreendida quando experimentada e v