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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO Tércius Gondim Maia Os Precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Responsabilidade Internacional do Estado Brasileiro por violações aos direitos humanos causadas por decisões do Supremo Tribunal Federal: uma abordagem transconstitucional MESTRADO EM DIREITO Recife 2014

UNNI IVVE ERRSSIDDAADD ERFFEEDDEERRAALL … · Transconstitucionalismo - Direito internacional público - Direito estatal. 4. Precedentes judiciais. 5. Responsabilidade do Estado

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  • UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEE FFEEDDEERRAALL DDEE PPEERRNNAAMMBBUUCCOO

    CCEENNTTRROO DDEE CCIINNCCIIAASS JJUURRDDIICCAASS

    FFAACCUULLDDAADDEE DDEE DDIIRREEIITTOO DDOO RREECCIIFFEE

    PPRROOGGRRAAMMAA DDEE PPSS--GGRRAADDUUAAOO EEMM DDIIRREEIITTOO

    TTrrcciiuuss GGoonnddiimm MMaaiiaa

    OOss PPrreecceeddeenntteess ddaa CCoorrttee IInntteerraammeerriiccaannaa ddee DDiirreeiittooss HHuummaannooss ee aa

    RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee IInntteerrnnaacciioonnaall ddoo EEssttaaddoo BBrraassiilleeiirroo ppoorr vviioollaaeess aaooss ddiirreeiittooss

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    aabboorrddaaggeemm ttrraannssccoonnssttiittuucciioonnaall

    MMEESSTTRRAADDOO EEMM DDIIRREEIITTOO

    RReecciiffee

    22001144

  • Trcius Gondim Maia

    OOss PPrreecceeddeenntteess ddaa CCoorrttee IInntteerraammeerriiccaannaa ddee DDiirreeiittooss HHuummaannooss ee aa

    RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee IInntteerrnnaacciioonnaall ddoo EEssttaaddoo BBrraassiilleeiirroo ppoorr vviioollaaeess aaooss ddiirreeiittooss

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    aabboorrddaaggeemm ttrraannssccoonnssttiittuucciioonnaall

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Direito do Recife/Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em direito. rea de Concentrao: Direitos humanos, sociedade e democracia. Orientao: Professor Doutor Joo Paulo Allain Teixeira.

    RReecciiffee

    22001144

  • Catalogao na fonte

    Bibliotecria Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832

    M217p Maia, Trcius Gondim

    OOss pprreecceeddeenntteess ddaa ccoorrttee iinntteerraammeerriiccaannaa ddee ddiirreeiittooss hhuummaannooss ee aa

    rreessppoonnssaabbiilliiddaaddee iinntteerrnnaacciioonnaall ddoo eessttaaddoo bbrraassiilleeiirroo ppoorr vviioollaaeess aaooss ddiirreeiittooss

    hhuummaannooss ccaauussaaddaass ppoorr ddeecciisseess ddoo SSuupprreemmoo TTrriibbuunnaall FFeeddeerraall:: uummaa aabboorrddaaggeemm

    ttrraannssccoonnssttiittuucciioonnaall / Trcius Gondim Maia. Recife: O Autor, 2014. 154 f. Orientador: Joo Paulo Allain Teixeira. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CCJ.

    Programa de Ps-Graduao em Direito, 2014. Inclui bibliografia. 1. Direitos humanos. 2. Corte Interamericana de Direitos Humanos - Ordem

    internacional e ordem estatal brasileira - Supremo Tribunal Federal. 3. Transconstitucionalismo - Direito internacional pblico - Direito estatal. 4. Precedentes judiciais. 5. Responsabilidade do Estado. 6. Direito internacional pblico. 7. Coisa julgada (Direito internacional pblico). 8. Direito constitucional -Interpretao e construo. 9. Transconstitucionalismo - Corte Interamericana de Direitos Humanos - Supremo Tribunal Federal. 10. Brasil e a Conveno Americana de Direitos Humanos. I. Teixeira, Joo Paulo Allain (Orientador). II. Ttulo.

    340.1 CDD (22. ed.)UFPE (BSCCJ2014-001)

    javascript:LinkBuscaAssunto(parent.hiddenFrame.modo_busca,10750,'Direito_constitucional_-_Interpreta%C3%A7%C3%A3o_e_constru%C3%A7%C3%A3o',1);javascript:LinkBuscaAssunto(parent.hiddenFrame.modo_busca,10750,'Direito_constitucional_-_Interpreta%C3%A7%C3%A3o_e_constru%C3%A7%C3%A3o',1);

  • TTrrcciiuuss GGoonnddiimm MMaaiiaa

    OOss PPrreecceeddeenntteess ddaa CCoorrttee IInntteerraammeerriiccaannaa ddee DDiirreeiittooss HHuummaannooss ee aa

    RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee IInntteerrnnaacciioonnaall ddoo EEssttaaddoo BBrraassiilleeiirroo ppoorr vviioollaaeess aaooss ddiirreeiittooss

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    aabboorrddaaggeemm ttrraannssccoonnssttiittuucciioonnaall..

    Dissertao apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Direito da Faculdade de Direito do

    Recife/Centro de Cincias Jurdicas

    da Universidade Federal de

    Pernambuco como requisito parcial

    para a obteno do grau de Mestre.

    rea de concentrao: Direitos

    humanos, sociedade e democracia

    Orientador: Professor Doutor Joo

    Paulo Allain Teixeira

    A Banca Examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidncia

    do primeiro, submeteu o candidato defesa em nvel de Mestrado e o julgou nos

    seguintes termos:

    MENO GERAL: ___________________________________________________ Prof. Dr. Artur Stamford da Silva (Presidente/UFPE)

    Julgamento:_________________ Assinatura______________________________

    Profa. Dra. Flvia Danielle Santiago Lima (1 Examinadora externa / UNICAP)

    Julgamento: ________________ Assinatura ______________________________

    Prof. Dr. Bruno Csar Machado Torres Galindo (2 Examinador interno/UFPE)

    Julgamento:_________________ Assinatura_____________________________

    Recife, 31 de janeiro de 2014

    Coordenador: Prof. Dr. Marcos Antonio Rios da Nobrega

  • minha amada esposa, Ana

    Carolina, e s minhas

    queridas filhas Sophia,

    Beatriz e Lusa. Pois onde

    est o vosso tesouro, a

    estar tambm o vosso

    corao (Lucas, 12:34).

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao professor orientador e aos demais docentes que colaboraram com

    importantes observaes sobre a minha pesquisa.

    Registro tambm meu agradecimento aos servidores do Programa de Ps-

    Graduao em Direito da Universidade Federal de Pernambuco pela urbanidade e

    presteza no atendimento aos discentes.

    minha famlia, pelo apoio e compreenso ao longo dessa jornada.

  • RESUMO

    MMAAIIAA,, TTrrcciiuuss GGoonnddiimm.. Os Precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Responsabilidade Internacional do Estado Brasileiro por violaes aos direitos humanos causadas por decises do Supremo Tribunal Federal: uma abordagem transconstitucional. DDiisssseerrttaaoo ((MMeessttrraaddoo eemm DDiirreeiittoo))

    PPrrooggrraammaa ddee PPss--GGrraadduuaaoo eemm DDiirreeiittoo,, CCeennttrroo ddee CCiinncciiaass JJuurrddiiccaass // FFDDRR,,

    UUnniivveerrssiiddaaddee FFeeddeerraall ddee PPeerrnnaammbbuuccoo,, RReecciiffee,, 22001144.. No contexto da atual sociedade mundial multicntrica, o problema da proteo dos direitos humanos se emancipou do Estado, perpassando diversas ordens jurdicas, inclusive no estatais. A presente dissertao enfoca apenas a relao entre a ordem estatal e a ordem internacional no que respeita responsabilidade internacional do Estado por violaes aos direitos humanos causadas por decises judiciais. Fixadas tais balizas, a questo a saber se os precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos constituem uma nova forma de entrelaamento entre a ordem internacional e a ordem estatal brasileira, e, em caso positivo, se eles se impem com fora vinculante ao Supremo Tribunal Federal. O referencial terico adotado o transconstitucionalismo, segundo o qual a constituio em sentido moderno, na qualidade de mecanismo que possibilita a diferenciao entre os sistemas jurdico e poltico, existe apenas no plano estatal. Logo, no se trata do conflito entre uma multido de constituies na sociedade mundial. Trata-se, na verdade, de problemas jurdico-constitucionais que interessam simultaneamente a vrias ordens, sem que nenhuma delas detenha o primado da ultima ratio jurdica. Para resolver os conflitos entre essas ordens, faz-se necessrio a construo de uma racionalidade transversal que propicie o dilogo entre elas. Na relao entre tribunais internacionais e domsticos, o modelo de articulao o mais compatvel com o transconstitucionalismo, visto que possibilita o dilogo entre as Cortes, sem partir, de antemo, nem para a mera convergncia nem para a divergncia. O reconhecimento da jurisdio contenciosa da Corte Interamericana e o comprometimento do Estado brasileiro na soluo dos problemas essenciais do constitucionalismo criam a legtima expectativa de que os precedentes dessa Corte Internacional sejam considerados nas decises do Supremo Tribunal Federal, servindo para a reconstruir a prpria identidade da ordem constitucional brasileira. Os precedentes da Corte Interamericana constituem, portanto, nus argumentativos para o Supremo Tribunal Federal. Palavras-chave: 1. responsabilidade internacional; 2. transconstitucionalismo; 3. precedentes.

  • ABSTRACT

    MAIA, Trcius Gondim. TThhee PPrreecceeddeenntt ooff tthhee IInntteerr--AAmmeerriiccaann CCoouurrtt ooff HHuummaann RRiigghhttss aanndd IInntteerrnnaattiioonnaall RReessppoonnssiibbiilliittyy ooff tthhee BBrraazziilliiaann ssttaattee ooff hhuummaann rriigghhttss

    vviioollaattiioonnss ccaauusseedd bbyy ddeecciissiioonnss ooff tthhee SSuupprreemmee CCoouurrtt:: aann aapppprrooaacchh

    ttrraannssccoonnssttiittuucciioonnaall.. DDiisssseerrttaattiioonn ((MMaasstteerrss DDeeggrreeee ooff LLaaww)) Programa de Ps-Graduao em Direito, Centro de Cincias Jurdicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. In the context of today's global society multicentric, the problem of the protection of human rights has emancipated the state, passing various legal systems, including non-state actors. This dissertation focuses only on the relationship between the state order and international order with regard to international responsibility of the State for human rights violations caused by judicial decisions. Set such goals, the question is whether the precedents of the Court of Human Rights constitute a new form of entanglement between the international and Brazilian state order, and, if so, whether they impose tight binding to the Supreme Court. The theoretical approach is transconstitucionalism, whereby the constitution in the modern sense, as a mechanism that enables the differentiation between the legal and political systems, there is only the state plan. Therefore, it is not the conflict between a multitude of constitutions in the world society. It is, in fact, the legal and constitutional issues that concern several orders simultaneously, without any of them holds the primacy of legal ultima ratio. To resolve conflicts between these orders, it is necessary to build a cross rationality that fosters dialogue between them. The relationship between international and domestic courts, the articulation model is more compatible with transconstitucionalism since enables dialogue between Cortes, from without, beforehand, nor to mere convergence nor divergence. The recognition of the contentious jurisdiction of the Inter-American Court and the commitment of the Brazilian government in solving the basic problems of constitutionalism create a legitimate expectation that the International Court precedents that are considered in the decisions of the Supreme Court, serving to rebuild the identity of the constitutional order Brazilian. The court's precedents are therefore argumentative burden for the Supreme Court. Keywords: 1. international responsibility; 2. transconstitucionalism; 3. precedent.

  • ABREVIATURAS ADPF Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental

    CDI - Comisso de Direito Internacional

    CEDH Corte Europeia de Direitos Humanos

    CIJ Corte Internacional de Justia

    CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

    DH Direitos Humanos

    ECHR European Convention on Human Rights

    EctHR European Court of Human Rights

    EUA Estados Unidos da Amrica

    HC Habeas Corpus

    Min. - Ministro

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PIDCP Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos

    RE Recurso Extraordinrio

    STF Supremo Tribunal Federal

    TEDH Tribunal Europeu de Direitos Humanos

    TJUE Tribunal de Justia da Unio Europeia

  • SUMRIO

    Introduo ......................................................................................................... 13

    1 A evoluo da responsabilidade internacional do Estado. De uma abordagem civilista a uma abordagem constitucional ................................. 18

    1.1 Origem histrica da responsabilidade internacional do Estado ......... 18

    1.2 Transio da abordagem civilista para a abordagem constitucional . 22

    1.3 A ordem internacional, as ordens estatais e a questo dos direitos

    humanos ........................................................................................................... 31

    2 A responsabilidade internacional do Estado por atos e omisses do Poder

    Judicirio .......................................................................................................... 37

    2.1 Questo pacfica no Direito Internacional Pblico ............................... 37

    2.2 Denegao de justia .............................................................................. 39

    2.3 Inexistncia de hierarquia entre a jurisdio internacional e a jurisdio

    estatal. As excees processuais. A questo da coisa julgada .................. 42

    2.4 A questo do dano ................................................................................... 44

    3 Delimitao semntica do conceito de Constituio ........................... 46

    3.1 A Constituio no um conceito vazio de significado ...................... 46

    3.2 A Constituio do constitucionalismo moderno .................................. 48

    3.3 As convergncias e divergncias entre a Constituio do

    constitucionalismo e a constituio em sentido moderno do

    transconstitucionalismo .................................................................................. 51

    3.4 A incompatibilidade entre a Constituio em sentido moderno e as

    formaes sociais pr-modernas ................................................................... 54

    3.5 A sociedade mundial multicntrica ........................................................ 56

    3.6 A Constituio em sentido moderno como acoplamento estrutural entre

    poltica e direito ................................................................................................ 62

    3.7 A autonomia de todos os sistemas sociais, a primazia de alguns e a

    emergncia de uma nova ordem mundial ...................................................... 64

  • 4 O transconstitucionalismo na sociedade mundial ............................... 69

    4.1 Algumas premissas ................................................................................. 69

    4.2 Os acoplamentos estruturais e a racionalidade transversal................ 71

    4.3 O lado negativo dos acoplamentos estruturais e da racionalidade

    transversal ........................................................................................................ 76

    5 O transconstitucionalismo entre ordens jurdicas ............................... 80

    5.1 O sistema jurdico multicntrico ............................................................ 80

    5.2 Os nveis mltiplos do transconstitucionalismo .................................. 85

    5.3 A globalizao judicial e a fertilizao constitucional cruzada ........... 90

    5.4 Os modelos de convergncia, resistncia e articulao ...................... 95

    5.5 Modelo de articulao: o mais adequado abordagem transcontitucional

    .......................................................................................................................103

    6 O transconstitucionalismo entre o direito internacional pblico e o direito

    estatal ................................................................................................................ 105

    6.1 Do que realmente se trata ....................................................................... 105

    6.2 Inexistncia de hierarquia ....................................................................... 106

    6.3 O modelo de articulao no transconstitucionalismo entre direito

    internacional pblico e direito estatal ............................................................ 108

    6.4 As diferentes perspectivas de observao ........................................... 111

    6.5 A teoria da margem de apreciao ......................................................... 116

    6.6 A experincia europeia ............................................................................ 121

    7 O transconstitucionalismo entre a Corte Interamericana de Direitos

    Humanos e o Supremo Tribunal Federal........................................................ 128

    7.1 O Sistema Interamericano de Proteo aos Direitos Humanos ........... 128

    7.2 O Brasil e a Conveno Americana de Direitos Humanos ................... 130

    7.3 O transconstitucionalismo no Supremo Tribunal Federal ................... 133

    7.4 O transconstitucionalismo entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte

    Interamericana de Direitos .............................................................................. 137

    7.5 A conversao entre as Cortes sobre as leis de anistia............................ 140

  • Concluses ....................................................................................................... 148

    Referncias ....................................................................................................... 151

  • 13

    Introduo

    A garantia dos direitos fundamentais e o controle do poder, problemas

    jurdico-constitucionais que motivaram os diversos movimentos constitucionais que

    deram origem constituio em sentido moderno, extrapolaram os limites das

    fronteiras dos Estados, perpassando atualmente diversas ordens jurdicas (NEVES,

    2009, p. 256).

    O tratamento dispensado pelo Estado a seus nacionais, matria antes

    reservada ao seu domnio exclusivo, tornou-se relevante para outras ordens

    jurdicas, inclusive e especialmente para a ordem internacional.

    Com efeito, por fora do processo de internacionalizao dos direitos

    humanos, que se iniciou a partir do final da Segunda Guerra Mundial e que tem

    como marco histrico a Declarao Universal dos Direitos do Homem de 1948, o

    Estado passou a prestar contas de sua atuao em matria de direitos humanos a

    diversos organismos internacionais de monitoramento, de que so exemplos o

    Comit contra a Tortura e o Comit sobre a Eliminao da Discriminao Racial,

    dentre outros. Alm disso, o Estado passou a responder perante Cortes

    Internacionais sobre as violaes de direitos humanos que lhe so imputadas.

    A responsabilidade internacional dos Estados, antes restrita aos danos aos

    estrangeiros e submetida lgica da reciprocidade, incorporou contedos

    constitucionais com a emergncia do direito internacional dos direitos humanos. O

    standard internacional de proteo, que antes pautava a conduta dos Estados

    apenas em relao aos estrangeiros, universalizou-se e, mais do que isso, pretende

    se impor aos Estados com fora vinculante sob a alegao de se tratar de norma

    acobertada pelo prncpio do jus cogens, positivado no art.53 da Conveno de

    Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados.

    De fato, os direitos humanos, em contraposio aos direitos fundamentais,

    que valem dentro de uma ordem constitucional determinada, pretendem valer para

    qualquer ordem jurdica existente na sociedade mundial (NEVES, 2009, p. 253).

    Nesse contexto, pode-se concluir que:

  • 14

    O Estado deixou de ser um locus privilegiado de soluo de problemas constitucionais. Embora fundamental e indispensvel, apenas um dos diversos loci em cooperao e concorrncia na busca do tratamento desses problemas. A integrao sistmica cada vez maior da sociedade mundial levou desterritorializao de problemas-caso jurdico-constitucionais, que, por assim dizer, emanciparam-se do Estado (NEVES, 2009, p. 297).

    Sem desconhecer, portanto, que o problema da proteo dos direitos

    humanos se emancipou do Estado, perpassando diversas ordens jurdicas, inclusive

    no estatais, este trabalho focar sua ateno na relao entre a ordem estatal e a

    ordem internacional, mais especificamente na relao entre o Supremo Tribunal

    Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos no que respeita

    responsabilidade internacional do Estado por violaes de direitos humanos.

    Dentre os atos ilcitos que podem ser imputados ao Estado, sero

    consideradas apenas as violaes de direitos humanos causadas por decises

    judiciais.

    Fixadas tais balizas, ser investigado, inicialmente, se os precedentes da

    Corte Interamericana de Direitos Humanos constituem uma nova forma de

    entrelaamento entre a ordem internacional e a ordem estatal brasileira, distinta da

    forma tradicional consistente na incorporao de tratados (NEVES, 2009, p. 116), e,

    em caso positivo, se eles se impem com fora vinculante ao Supremo Tribunal

    Federal.

    Em outras palavras, cumpre aferir se os precedentes da Corte Interamericana

    constituem fonte normativa, agregando-se ao standard internacional de justia que

    serve de parmetro para aferio da responsabilidade internacional do Estado.

    Nesse contexto, a questo saber se a desobedincia a tais precedentes pelo

    Supremo Tribunal Federal seria suficiente para caracterizar a responsabilidade

    internacional do Estado brasileiro por violaes de direitos humanos.

    Delimitado e situado os termos do problema, o paradigma terico que

    orientar a busca de sua soluo ser o transconstitucionalismo, na linha proposta

    pelo constitucionalista Marcelo Neves.

    De incio, ser realizada uma breve anlise da evoluo histrica da

    responsabilidade internacional do Estado. O objetivo demonstrar a transio de

    uma abordagem estritamente civilista, voltada proteo dos estrangeiros e cuja

    consequncia era unicamente a reparao do dano causado, para uma abordagem

    constitucionalista, pautada por um standard universal de proteo que se pretende

  • 15

    vinculante a todos os Estados e cujo objetivo primordial o cumprimento das

    obrigaes internacionais.

    Esse processo de constitucionalizao do direito internacional pblico

    relativizou dogmas do direito internacional clssico construdos sob o paradigma

    westfaliano, especialmente os da soberania estatal absoluta, do voluntarismo e da

    reciprocidade entre os Estados na criao e no cumprimento das obrigaes

    internacionais.

    Buscar-se- demonstrar que, por fora desse novo cariz da responsabilidade

    internacional do Estado, o dano, material ou moral, e a culpa deixaram de ser

    elementos essenciais para sua configurao, bastando, para tanto, a ocorrncia de

    um ilcito internacional imputvel ao ente estatal.

    Em seguida, sero examinadas as hipteses de responsabilidade

    internacional do Estado decorrente de atos e omisses do Poder Judicirio, bem

    como a natureza da relao, segundo os preceitos do direito internacional pblico,

    entre as Cortes Internacionais e o Poder Judicirio estatal e seus reflexos no

    processo internacional que trata de violaes de direitos humanos causadas por

    decises judiciais.

    O captulo terceiro ser dedicado delimitao semntica do conceito de

    constituio, segundo o paradigma terico eleito para orientar a pesquisa. Essa

    delimitao importante para deixar claro que, segundo o transconstitucionalismo, a

    constituio em sentido moderno constitui um mecanismo peculiar aos Estados,

    inexistindo um equivalente funcional no plano internacional.

    O captulo quarto tratar do conceito de racionalidade transversal, proposto

    por Marcelo Neves a partir dos conceitos de acoplamento estrutural e de razo

    transversal, como mecanismo de aprendizado e influncia mtuos entre os diversos

    sistemas sociais autnomos da sociedade mundial multicntrica. Tambm sero

    abordados os aspectos que constituem o lado negativo da racionalidade transversal.

    Observadas tais premissas, ser examinado, no captulo quinto, o

    transconstitucionalismo entre ordens jurdicas. Diferente da Constituio transversal,

    que envolve a relao entre dois sistemas funcionais distintos poltica e direito o

    transconstitucionalismo entre ordens jurdicas envolve apenas um sistema funcional,

    no caso, o direito.

    O transconstitucionalismo entre ordens jurdicas decorre, na verdade, de uma

    diferenciao no interior do sistema jurdico em razo da existncia de uma

  • 16

    pluralidade de ordens jurdicas na sociedade. Tal como a sociedade mundial, o seu

    sistema jurdico tambm multicntrico, ou seja, as ordens jurdicas que o compem

    tm pretenso de autonomia e nenhuma delas ostenta a condio de centro

    supremo detentor da ultima ratio jurdica.

    No h, portanto, uma relao hierrquica linear entre os nveis mltiplos do

    sistema jurdico multicntrico. Na verdade, a paridade e o nexo circular entre as

    ordens apontam para a existncia de hierarquias entrelaadas entre elas (NEVES,

    2009, p. 237), razo pela qual existe uma contribuio recproca para a construo

    da identidade das ordens jurdicas envolvidas nos entrelaamentos, sem que

    nenhuma delas abdique de sua pretenso de autofundamentao.

    Ante tal contexto, ser ressaltada, no plano da construo de uma

    metodologia do transconstitucionalismo, que indispensvel a reconstruo

    permanente da identidade constitucional por fora de uma considerao

    permanente da alteridade (NEVES, 2009, p. 272). Isso implica uma disposio para

    um dilogo constitucional que rejeita, por conseguinte, um modelo de resistncia que

    caracteriza o provincianismo estatalista, mas, por outro lado, tambm no acata um

    inocente modelo de pura convergncia.

    Em vista disso, o modelo de articulao, ao defender a abertura ao dilogo

    com fontes estrangeiras e internacionais (JACKSON, 2005, p. 114), mas sem que

    isso implique uma necessria convergncia, o que se apresenta mais adequado

    aborgagem transconstitucional.

    O captulo sexto tratar, exatamente, da aplicao do modelo de articulao

    no transconstitucionalismo entre o direito internacional pblico e o direito estatal.

    Tambm sero consideradas as diferentes perspectivas de observao na soluo

    de problemas jurdico-constitucionais referentes proteo dos direitos humanos

    que interessam, simultaneamente, s ordens estatais e internacional.

    Ser abordada, ainda no captulo sexto, a experincia do

    transconstitucionalismo no mbito do Sistema Regional Europeu de Proteo dos

    Direitos Humanos, com nfase na teoria da margem de apreciao construda pela

    jurisprudncia da Corte Europeia de Direitos Humanos.

    O captulo stimo ter por objeto, especificamente, o transconstitucionalismo

    entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Supremo Tribunal Federal.

    Inicialmente, ser feita uma breve exposio do Sistema Interamericano de Proteo

  • 17

    dos Direitos Humanos baseado na Conveno Americana de Direitos Humanos e da

    relao da Repblica Federativa do Brasil com esse sistema regional de proteo.

    Em seguida, ser examinada a superao, pelo Supremo Tribunal Federal, de

    um entendimento jurisprudencial consolidado por dcadas no sentido de que os

    tratados internacionais, inclusive os de proteo dos direitos humanos, estavam

    situados no mesmo patamar hierrquico das leis ordinrias. Essa postura do

    Supremo Tribunal Federal demonstrou sua abertura ao dilogo transconstucional e

    diminuiu, de forma considervel, o potencial de conflitos entre suas decises e as da

    Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    Com efeito, o Supremo Tribunal Federal demonstrou, em diversas

    oportunidades, sua disposio ao dilogo transconstitucional no sistema mundial de

    nveis mltiplos ao considerar decises de cortes internacionais e de cortes

    constitucionais de outros Estados no s como obter dicta, mas como elementos

    construtores da ratio decidendi (NEVES, 2009, p. 167).

    Os exemplos de dilogo transconstitucional envolvendo o Supremo Tribunal

    Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, acima referidos,

    demonstram que no se trata simplesmente da imposio de decises da Corte

    Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ao Supremo Tribunal Federal (NEVES,

    2009, p. 144). A questo a saber, portanto, como os precedentes da Corte

    Interamericana so considerados pelo Supremo Tribunal Federal na soluo de

    problemas jurdico-constitucionais que interessam a ambas as Cortes.

    Por fim, no ltimo captulo constaro as concluses da pesquisa.

  • 18

    1. A evoluo da responsabilidade Internacional do Estado. De uma abordagem civilista a uma abordagem constitucional

    1.1 Origem histrica da responsabilidade internacional do Estado

    O reconhecimento de que o Estado responde por violaes aos direitos

    fundamentais, independente da nacionalidade do indivduo lesado, constitui um

    desenvolvimento da prpria histria da responsabilidade internacional do Estado,

    outrora restrita aos danos sofridos pelos estrangeiros.

    Com efeito, o reconhecimento da responsabilidade internacional por violao

    aos direitos do indivduo remonta s cartas de represlias existentes na Idade Mdia

    (RAMOS, 2004, p. 43), cujo pressuposto era o dever do prncipe de garantir a devida

    proteo a seus sditos que no conseguiam obter no pas em que se encontravam

    a reparao pelos prejuzos que haviam sofrido (DE VISSCHER, 1935, p. 370).

    O estrangeiro, portanto, deveria recorrer necessariamente s instituies do

    pas onde se encontrava para obter a reparao do dano sofrido. Apenas no caso de

    esgotamento dos recursos internos sem que lhe fosse garantida a devida justia, ele

    poderia recorrer proteo de seu soberano, que expedia em seu favor as

    denominadas cartas de represlias1, garantindo-lhe o direito de recuperar, mesmo

    pela fora, seu bem ou o equivalente necessrio reparao do prejuzo sofrido no

    estrangeiro (DE VISSCHER, 1935, p. 371).

    Os litgios que motivavam a expedio das cartas de represlias eram sempre

    de origem privada (CANADO TRINDADE, 1997, p. 25). Ao dano sofrido em uma

    relao de natureza privada se acrescentava o agravo decorrente da denegao ou

    recusa de justia, legitimando o estrangeiro a recorrer s cartas de represlias (DE

    VISSCHER, 1935, p. 371).

    Com a ascenso do Estado Moderno, concentrando poderes e politicamente

    organizado, a funo de proteo dos nacionais que se encontravam no exterior foi

    1 Outrora, prncipes e soberanos emitiam cartas de represlia no a estrangeiros mas somente a

    seus cidados ou sditos no exterior, e depois de terem estes esgotados todos os meios de solucionar a controvrsia no pas de residncia. Nos tempos modernos, a regra passou a aplicar-se no contexto do direito relativo responsabilidade do Estado por danos causados a estrangeiros (CANADO TRINDADE, 1997, p. 23).

  • 19

    assumida pelo Estado, que a exerce por meio da denominada proteo diplomtica

    (CANADO TRINDADE, 1979, p. 24).

    De um lado, afastou-se a justia privada exercida por meio das represlias,

    possibilitando, com base em uma concepo unitria de Estado uma sistematizao

    dos deveres e responsabilidades internacionais dos Estados (CANADO

    TRINDADE, 1979, p. 24), mas com as restries decorrentes da concepo de

    soberania estatal absoluta ento vigente.

    Com efeito, por meio da proteo diplomtica, o Estado toma para si, no

    exerccio de direito prprio e de acordo com seus critrios, o dano sofrido por seu

    nacional no estrangeiro, para reclamar a devida reparao ao Estado infrator.

    Conforme observa Canado Trindade, havia um reclamante queixando-se de um

    dano sofrido em outro pas ou Estado e supostamente engajando a responsabilidade

    desse ltimo (CANADO TRINDADE, 1997, p. 24).

    A proteo diplomtica tem como pressuposto o esgotamento dos recursos

    internos e visa a transportar para o plano internacional uma questo que deveria ter

    sido resolvida no plano domstico (DE VISSCHER, 1935, p. 374).

    Consolidou-se, dessa forma, a concepo de que o Estado responde, no

    plano internacional, por danos causados a estrangeiros.

    Os limites de tal responsabilidade, contudo, eram acanhados. Com efeito, o

    Estado somente poderia ser acionado no plano internacional por danos causados

    unicamente aos estrangeiros. O tratamento dispensado pelo Estado aos seus

    prprios nacionais no tinha relevncia para o direito internacional2.

    certo, por outro lado, que quando se fala em estrangeiro no se estar a falar

    de qualquer estrangeiro. De fato, o objetivo primordial do direito internacional pblico

    era conferir alguma segurana ao investimento de empresas da Europa ocidental e

    dos Estados Unidos em pases situados na periferia do capitalismo, notadamente na

    Amrica Latina, tendo em vista a conhecida instabilidade poltica desses pases.

    Nesse sentido observa Francisco Rezek:

    2 A proteo exclusiva aos estrangeiros era uma caracterstica marcante do direito internacional

    pblico at a primeira metade do Sculo XX. No obstante, deve-se registrar que o Tratado de Berlim, concludo em 13 de julho de 1878, imps aos pases balcnicos o dever de conceder a seus prprios nacionais certos direitos fundamentais democrticos, sendo que a violao a esse dever engendrava a responsabilidade internacional do Estado. O mesmo se diga em relao aos tratados de proteo de minorias celebrados sob os auspcios da Sociedade das Naes. Isso demonstra que havia um interesse jurdico da comunidade internacional a respeito da maneira como o Estado se conduzia em relao a seus prprios nacionais (COHN, 1939, p. 312).

  • 20

    O particular, objeto da proteo diplomtica, vinha a ser cada vez mais a empresa e menos o indivduo. O ente causador do dano e responsvel por sua reparao era, via de regra, um Estado em desenvolvimento, plantado no hemisfrio sul, quase sempre na Amrica Latina. Por seu turno o Estado patrial, outorgante da proteo, tendia a estar alinhado entre os exportadores de capital, de tecnologia, e de sditos tanto mais entusiastas do lucro em ritmo de aventura quanto resguardados, pelo providencial mecanismo, dos riscos que com lgica e justia se presumem inerentes a toda aventura (REZEK, 2011, p. 322).

    No por outra razo, a aferio do tratamento adequado ao estrangeiro

    tomava por base o parmetro estabelecido pelas naes europeias3 (RAMOS, 2004,

    p. 44).

    Alm disso, a vtima do dano, o estrangeiro, ou mais especialmente a

    sociedade empresria estrangeira a quem no se reconhecia a qualidade de

    sujeito de direito internacional - dependia da proteo de seu Estado nacional, que

    deveria endossar (teoria do endosso ou proteo diplomtica) a sua reclamao,

    isto , tornando-a sua (do Estado) (MELLO, 1994, pp. 452-453).

    Tal proteo ficava a depender, necessariamente, do juzo discricionrio do

    Estado, que poderia, por questes de convenincia e poltica internacional,

    simplesmente se negar a endossar a reclamao de seu nacional, ou, ao contrrio,

    exercer a proteo diplomtica independente de ter sido requerida por seu nacional

    (REZEK, 2002, p. 277).

    Com efeito, a questo se resolvia em uma relao bilateral entre Estados,

    mesmo sendo o particular estrangeiro a vtima do dano. Entendia-se que havia um

    dano indireto ao Estado de nacionalidade do estrangeiro, de tal sorte que o ente

    estatal ao conceder a proteo diplomtica estava exercendo um direito prprio, e

    no atuando em nome de seu nacional (RAMOS, 2004, p. 45).

    Amparada nesse entendimento, boa parte da doutrina e diversos governos do

    hemisfrio norte se opuseram denominada clusula ou doutrina Calvo, formulada

    pelo jurista argentino Carlos Calvo, segundo a qual o estrangeiro poderia, no ajuste

    contratual, renunciar previamente ao benefcio da proteo diplomtica. Referindo-se

    reao doutrina Calvo, observa Rezek:

    3 Verifica-se, portanto, uma clara assimetria entre direito e poder, ou seja, a instrumentalizao do

    direito internacional pblico pelas potncias do Hemisfrio Norte. Essa relao assimtrica entre direito e poder no plano internacional, indiscutivelmente ainda existente, constitui, segundo Marcelo Neves, um dos entraves para que se possa falar de uma Constituio em nvel mundial (NEVES, 2009, p. 92).

  • 21

    A doutrina e diversos governos do hemisfrio norte reagiram clusula Calvo do modo previsvel, estimando-a nula, e o fundamento jurdico dessa reao foi relativamente simples: a proteo diplomtica, segundo o direito das gentes, no direito prprio do particular, mas de seu Estado patrial. sempre o ltimo quem decide sobre o endosso da reclamao do sdito que se afirma lesado no estrangeiro, mesmo na ausncia de pedido formal deste. No se compreende, em tais circunstncias, que disponha o indivduo ou a empresa da prerrogativa de renunciar proteo diplomtica, entendida como um direito que no lhe pertence (REZEK, 2002, p. 277).

    Tratando-se, portanto, de uma relao bilateral entre Estados envolvendo, de

    regra, danos causados propriedade de empresas estrangeiras, a teoria da

    responsabilidade internacional do Estado foi construda segundo uma abordagem

    civilista. Nesse sentido, salienta Bernhard Graefrath:

    Consequentemente, tambm no surpreendente que as concepes da responsabilidade internacional, que foram desenvolvidas essencialmente na segunda metade do Sculo XIX e nos primeiros 40 anos do nosso sculo, partam exclusivamente do carter exclusivamente bilateral das obrigaes internacionais e se concentrem na proteo da propriedade privada (GRAEFRATH, 1984, p. 24. Traduo livre do autor).

    Por conta dessa concepo civilista, o dano,4 material ou moral (ACCIOLY,

    2002, p. 149; ACCIOLY, 1947, p. 41; MELLO, 1994, p. 448), e a culpa5 eram

    considerados requisitos essenciais para a configurao da responsabilidade

    internacional dos Estados.

    4 Com efeito, a importncia dada ao elemento dano para responsabilidade internacional do Estado

    consequncia do estudo do tema ter sido limitado, no sculo passado e no incio do atual, proteo de estrangeiros, tendo sido comum o exame do mrito da violao das obrigaes primrias dentro da anlise do conjunto de normas de responsabilizao internacional. No caso da proteo internacional aos bens e s pessoas estrangeiras, a obrigao internacional do Estado no causar dano injusto. Ora, se o Estado no gera dano ao particular, no cabe falar em responsabilidade internacional do Estado por ausncia de obrigao internacional violada. Assim, para a doutrina o elemento dano acabou sendo considerado como essencial na caracterizao da responsabilidade internacional do Estado (RAMOS, 2004, p. 201).

    5 Hugo Grotius, considerado o fundador do direito internacional moderno, orientou a responsabilidade

    internacional do Estado de acordo com as regras de responsabilidade estabelecidas pelo direito romano, ou seja, fundada na culpa, tendo sido seguido por Vattel, Oppenheim, Lauterpacht, Salvioli e Le Fur (COHN, 1939, pp. 246-247; RAMOS, 2004, pp. 94-95). Segundo a teoria subjetiva ou da culpa, um Estado, para ser responsvel perante o DI, necessita no apenas violar uma norma internacional, mas viol-la com culpa (MELLO, 1994, p. 450). certo que, posteriormente, Anzilotti formulou a teoria objetiva, segundo a qual a responsabilidade internacional decorre exclusivamente da violao objetiva de uma obrigao internacional pelo Estado, sendo irrelevante a presena da culpa para a sua caracterizao.

  • 22

    Em vista disso, entendia-se, outrossim, que as sanes no poderiam

    constituir parcela da responsabilidade internacional do Estado, que se resolvia

    unicamente na obrigao de ressarcir o dano causado6 (GRAEFATH, 1984, p. 24).

    Verifica-se, portanto, que a teoria da responsabilidade internacional do

    Estado, construda no perodo compreendido entre o final do Sculo XIX e a primeira

    metade do Sculo XX, seguiu uma abordagem civilista, pois girava, basicamente, em

    torno de uma relao bilateral entre Estados que tinha por objeto a obrigao de

    reparar o dano causado aos bens ou pessoa do estrangeiro.

    1.2 Transio da abordagem civilista para a abordagem constitucional7

    No obstante os limites acima apontados, restou consolidado que a forma de

    tratamento dispensada pelo Estado aos estrangeiros era relevante para o direito

    internacional, tendo em vista o interesse do Estado de nacionalidade do estrangeiro.

    No se tratava, portanto, de uma questo reservada ao domnio exclusivo do Estado

    em que se encontrava o estrangeiro.

    O mesmo no se diga, repita-se, em relao ao tratamento dispensado aos

    nacionais. Com efeito, por fora do princpio da soberania estatal absoluta ento

    vigente, o problema da observncia ou no dos direitos fundamentais em relao

    aos nacionais no ultrapassava as fronteiras do Estado, tratando-se de questo

    reservada ao seu domnio exclusivo.

    A partir do incio do Sculo XX, com o advento da Organizao Internacional

    do Trabalho, da Liga das Naes e do Direito Humanitrio e, de forma mais

    pronunciada, a partir do ps-guerra com o processo de internacionalizao dos

    6 certo que o desenvolvimento do direito internacional demonstrou a insuficincia da reparao do

    dano como nica consequncia da responsabilidade internacional do Estado (GRAEFATH, 1984, p. 29). Com efeito, predomina atualmente o entendimento de que a responsabilidade internacional no se esgota numa relao de natureza reparatria entre o Estado infrator e o Estado lesado, podendo implicar o surgimento de novas relaes jurdicas de cunho reparatrio, coercitivo e mesmo punitivo (RAMOS, 2004, p. 82). Esse foi o critrio adotado pela Comisso de Direito Internacional da ONU no projeto de codificao da Responsabilidade Internacional do Estado por ilcitos internacionais aprovado em 2001, conforme observa James Crawford: A third view, which came to prevail, held that the consequences of an internationally wrongful act cannot be limited either to reparation or to a sanction. In international law, as in any system of law, the wrongful act may give rise to various types of legal relations, depending on the circunstances (CRAWFORD, 2005, p. 79).

    7 No se pretende afirmar que houve a pura e simples superao e abandono da abordagem civilista,

    mas que se passou a levar em conta contedos de natureza constitucional no mbito da responsabilidade internacional do Estado, notadamente no que diz respeito s violaes de direitos humanos, o que implicou a relativizao de alguns dogmas do direito internacional pblico.

  • 23

    direitos humanos, o direito internacional, rompendo o dogma da soberania estatal

    absoluta, passou a reconhecer o indivduo como sujeito de direito internacional,

    admitindo intervenes no plano nacional com vistas proteo dos direitos

    humanos8.

    Os problemas que motivaram os diversos movimentos constitucionais que

    geraram a constituio em sentido moderno9 garantia dos direitos fundamentais e

    controle do poder extrapolaram os limites dos Estados, tornando-se relevantes

    para outras ordens jurdicas, inclusive no estatais (NEVES, 2009, p. XXI). Tais

    questes deixaram de ser de interesse exclusivamente domstico. Em vista disso,

    pode-se concluir que:

    O direito constitucional, nesse sentido, embora tenha a sua base originria no Estado, dele se emancipa, no precisamente porque surgiu uma multido de novas Constituies, mas sim tendo em vista que outras ordens jurdicas esto envolvidas diretamente na soluo dos problemas bsicos, prevalecendo, em muitos casos, contra a orientao das respectivas ordens estatais. (NEVES, 2009, p. XXI).

    Fala-se, nesse contexto, de uma constitucionalizao do direito internacional

    pblico, no no sentido de que a ordem internacional tenha assumido a natureza de

    uma Constituio estatal em sentido moderno10 (NEVES, 2009, p. 92), mas no

    sentido da incorporao de contedos constitucionais pelo direito internacional

    pblico. Tal conjuntura acaba por exigir uma abordagem que aproxime o Direito

    Internacional do Direito Constitucional (MENDES, 2010, p. 255).

    Na verdade, o constitucionalismo abriu-se para esferas alm do Estado, no

    porque tenham surgido outras Constituies (no estatais), mas sim porque

    problemas constitucionais perpassam simultaneamente ordens jurdicas diversas

    (NEVES, 2009, p. 269), inclusive a ordem internacional.

    8 Sobre o processo de internacionalizao dos direitos humanos: BOBBIO, 2004, pp. 25-77 e

    PIOVESAN, 2011, p. 167-206.

    9 O conceito de Constituio em sentido moderno relaciona-se originariamente com o

    constitucionalismo como experincia histrica associada aos movimentos revolucionrios dos fins do sculo XVIII. O constitucionalismo apresenta-se inicialmente como semntica poltico-jurdica que reflete a presso estrutural por diferenciao entre poltica e direito no mbito da emergente sociedade multicntrica da modernidade. Mas a semntica constitucionalista reagiu construtivamente no plano das estruturas, servindo como ideologia revolucionria para o surgimento das Constituies como artefatos possibilitadores e asseguradores da diferena entre sistemas poltico e jurdico. (NEVES, 2009, p. 53).

    10 Pelo menos at o momento, apesar da forte juridificao no plano internacional, no parece to

    simples transferir o conceito de Constituio em sentido moderno, dependente de amplos pressupostos, a instncias globais de natureza internacional ou supranacional. Esse transporte conceitual importa, no mnimo, o reconhecimento de certas restries (NEVES, 2009, p. 92).

  • 24

    Nesse contexto, o reconhecimento do princpio do jus cogens (art.53 da

    Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969) e de obrigaes

    internacionais erga omnes, especialmente em matria de direitos humanos,

    acresceram uma verticalidade parcial no sistema horizontal do direito internacional

    pblico (NEVES, 2009, p. 90).

    De fato, desde o caso Barcelona Traction, julgado pela Corte Internacional de

    Justia, que se admite, em razo da natureza dos direitos envolvidos, que o ilcito

    internacional poder implicar o surgimento de relaes envolvendo vrios Estados e

    at mesmo toda a comunidade internacional (CRAWFORD, 2005, p. 79), no se

    restringindo, portanto, a uma mera relao bilateral entre Estados. Nesse sentido,

    vale transcrever o que restou consignado pela Corte Internacional de Justia no

    referido precedente:

    Uma distino essencial deve ser estabelecida em particular entre as obrigaes dos Estados em relao comunidade internacional como um todo e aquelas que nascem nas relaes bilaterais dos Estados no quadro da proteo diplomtica. Por sua prpria natureza, as primeiras concernem a todos os Estados. Considerada a importncia dos direitos em causa, todos os Estados podem ser considerados como tendo um interesse jurdico de que esses direitos sejam protegidos; as obrigaes de que se trata so obrigaes erga omnes

    11.

    Procedente, portanto, a concluso de Andr de Carvalho Ramos no sentido

    de que:

    A responsabilidade internacional deixa de ser exclusivamente um instituto relacional entre Estado-ofensor e Estado-vtima, para ser considerado um instituto relacional Estado-comunidade internacional em um verdadeiro contencioso de legalidade, o que particularmente correto em face da responsabilidade internacional do Estado por violao de direitos humanos (RAMOS, 2004, p. 89).

    Por fora desse processo de constitucionalizao do direito internacional

    pblico, houve uma sensvel mudana no parmetro de aferio da conduta dos

    Estados para fins de responsabilidade internacional.

    Verificou-se, inicialmente, uma universalizao do standard mnimo de

    proteo, que antes alcanava apenas os estrangeiros, com as ressalvas acima

    apontadas.

    11

    Affaire de la Barcelona Traction, Light and Power Company, Limited, 05.02.1970, p. 32. Traduo livre do autor.

  • 25

    Com efeito, o tratamento que o Estado deveria dispensar ao estrangeiro

    observava um standard internacional de justia, standard esse estabelecido pelo

    direito internacional (DE VISSCHER, 1935, p. 387), cuja inobservncia implicaria a

    responsabilidade do Estado no plano internacional (RAMOS, 2004, pp. 44-45).

    O standard internacional de justia, que antes alcanava apenas os

    estrangeiros, passou tambm a pautar a conduta dos Estados em relao aos

    nacionais. A garantia dos direitos fundamentais de seus prprios nacionais deixou

    de ser uma questo de exclusivo interesse do Estado, tornando-se relevante para o

    direito internacional.

    Decerto que a interveno internacional em favor dos direitos humanos no

    plano estatal implicou a relativizao do conceito tradicional de soberania absoluta

    do Estado (PIOVESAN, 2011a, p. 40), que deixou de constituir um bice

    intransponvel ao escrutnio do direito internacional. Nesse sentido ressalta Jeremy

    Waldron:

    No mais se admite que afirmaes vazias sobre a soberania nacional possam bloquear o escrutnio internacional a respeito da observncia dos direitos humanos. Por exemplo, tortura um assunto prprio do direito internacional mesmo quando um governo est torturando seus prprios nacionais no seu prprio territrio e no inconcebvel que prticas penais possam da mesma maneira se sujeitar ao escrutnio do direito internacional, particularmente quando envolvam um elemento corporal ou capital (WALDRON, 2005, p. 10. Traduo livre do autor).

    Ocorreu, portanto, a universalizao do standard internacional de justia.

    Mas, alm dessa universalizao, e na verdade intrinsecamente ligada a ela, ocorreu

    a positivao desse parmetro de proteo ao indivduo por normas internacionais

    promulgadas a partir do final da Segunda Guerra Mundial.

    Construiu-se, nas palavras de Lindgren Alves, toda uma arquitetura

    internacional de normas e mecanismos de proteo dos direitos humanos a partir da

    segunda metade do Sculo XX, tendo por pedra fundamental a Carta Internacional

    dos Direitos Humanos, constituda pela Declarao Universal dos Direitos do

    Homem de 1948, pelo Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Polticos e pelo

    Pacto Internacional Sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, estes ltimos

    aprovados pela Assembleia Geral das Naes Unidas em 16 de dezembro de 1966

    (ALVES, 1997, p. 24).

  • 26

    Formou-se, nas palavras de Bobbio, um consensus omnium gentium sobre

    um determinado sistema de valores, cuja prova histrica a Declarao Universal

    dos Direitos do Homem de 1948 (BOBBIO, 2004, p. 27).

    O consenso sobre um determinado sistema de valores de que fala Bobbio foi,

    na avaliao de Celso Lafer, reforado e adensado pela Conferncia de Viena

    promovida pela ONU, em 1993, sobre direitos humanos, que exprime, assim, a

    existncia axiolgica de um consensus omnium gentium sobre a relevncia dos

    direitos humanos para a convivncia coletiva (BOBBIO, 2004, pp. IX-X).

    De acordo com esse ponto de vista, a Carta Internacional dos Direitos

    Humanos expressa um consenso internacional sobre um mnimo tico irredutvel

    (PIOVESAN, 2011a, p. 41), constituindo o referencial bsico do Estado de Direito e

    servindo de baliza de avaliao da legitimidade de qualquer governo pela

    comunidade internacional e por seus prprios cidados (ALVES, 1997, p. 26).

    Os pressupostos tericos do transconstitucionalismo, contudo, no autorizam

    concluir pela existncia do referido consenso axiolgico na sociedade internacional

    contempornea, caracterizada pela complexidade e autonomia dos sistemas

    funcionais.

    De fato, de acordo com a abordagem transconstitucional, a Constituio em

    sentido moderno12, apesar de vinculada aos movimentos constitucionais do Sculo

    XVIII, no se distingue por determinado contedo axiolgico ou moral, mas pelo fato

    de possibilitar, no contexto da complexa sociedade multicntrica da modernidade, a

    diferenciao entre direito e poltica, alm de servir de acoplamento estrutural entre

    esses dois sistemas funcionais (Essa questo ser melhor examinada no Captulo III

    desta dissertao).

    A semntica dos direitos humanos, por sua vez, se desenvolve no contexto de

    uma pluralidade conflituosa de expectativas, valores e interesses, razo pela qual

    tem pouco a ver com o consenso, visto que emergem no contexto do dissenso

    estrutural que advm com o surgimento da sociedade moderna (NEVES, 2005, p.

    9).

    12

    Na presente dissertao, a expresso constituio em sentido moderno designa a delimitao semntica do conceito de Constituio, pressuposto terico do transconstitucionalismo. No se confunde com a expresso Constituio moderna, tambm ligada aos movimentos constitucionais do Sculo XVIII, mas que se distingue por seu contedo axiolgico.

  • 27

    Os direitos humanos, na verdade, servem, antes, para permitir a convivncia

    nas condies reais de dissenso estrutural (NEVES, 2005, p. 9), possibilitando a

    incluso jurdica de pessoas e grupos e a autonomia dos sistemas sociais13. Trata-

    se, portanto, de uma moral do dissenso, e no uma moral assentada em consensos

    sobre contedos14.

    O que h, na verdade, um consenso sobre procedimentos que possibilitem

    a convivncia com o dissenso poltico e jurdico sobre valores e interesses no

    Estado Democrtico de Direito, tornando-a suportvel na sociedade complexa de

    hoje (NEVES, 2006, p. 144).

    Deve-se registrar, ainda, a advertncia de Marcelo Neves no sentido de que a

    Declarao Universal dos Direitos do Homem de 1948, assim como as diversas

    cartas ou convenes proclamadoras de direitos humanos especficos ou no plano

    regional, principalmente em funo das relaes assimtricas entre direito e poder

    no plano internacional, apresenta uma baixa densidade de concretizao normativa,

    exercendo uma funo predominantemente simblica15 (NEVES, 2009, pp. 92-93).

    No h como deixar de reconhecer o acerto dessa observao16. Com efeito,

    para alm do significado manifesto consistente na eficcia jurdica e efetividade

    dessa arquitetura normativa a que se refere Lindgren Alves, no h dvida de que o

    que mais importou, no contexto histrico de sua promulgao, foi o seu significado

    poltico, consistente em uma resposta ou satisfao da sociedade internacional s

    atrocidades cometidas por ocasio da Segunda Guerra Mundial.

    13

    Quer dizer, em uma sociedade altamente complexa s seriam possveis consensos temporrios, casusticos em determinados contextos, construdos para determinada situao, nunca uma legitimao garantida racional e institucionalmente, seja quanto a contedos estimativos, seja quanto a procedimentos argumentativos (ADEODATO, 2002, p. 315).

    14 Nas condies presentes da sociedade mundial, s os princpios de uma moral do dissenso

    podem ter o carter universalista e includente no sentido do acesso de toda e qualquer pessoa, independentemente de seus interesses, expectativas e valores, a procedimentos discursivamente abertos (NEVES, 2006, p. 130).

    15 Pode-se definir a legislao simblica como produo de textos cuja referncia manifesta

    realidade normativo-jurdica, mas que serve, primria e hipertroficamente, a finalidades polticas de carter no especificamente normativo-jurdico (NEVES, 2011, p. 30). Na legislao simblica prevalece, portanto, seu significado poltico-ideolgico latente em detrimento do seu sentido normativo-jurdico aparente (NEVES, 2011, p. 29).

    16 Vale registrar que o prprio Norberto Bobbio fez a seguinte advertncia quanto questo da

    efetivao das normas internacionais de proteo dos direitos humanos: Poder-se-iam multiplicar os exemplos de contraste entre as declaraes solenes e sua consecuo, entre a grandiosidade das promessas e a misria das realizaes. J que interpretei a amplitude que assumiu atualmente o debate sobre os direitos do homem como um sinal do progresso moral da humanidade, no ser inoportuno repetir que esse crescimento moral no se mensura pelas palavras, mas pelos fatos. De boas intenes, o inferno est cheio (BOBBIO, 2004, p. 60).

  • 28

    No obstante, conforme observa o prprio Marcelo Neves, a funo simblica

    dos direitos humanos exerce uma funo ambivalente17, pois, se de um lado, pode

    servir para encobrir uma realidade de negao de direitos, ensejando a opresso

    poltica, de outro, pode servir afirmao e realizao generalizada de direitos

    relacionados com a incluso jurdica em condies de dissenso estrutural (NEVES,

    2005, p. 3).

    Com efeito, Marcelo Neves reconhece que os denominados direitos humanos

    fortes ou em sentido estrito, os chamados direitos de defesa ligados tradio liberal

    em contraposio aos direitos humanos frgeis, no caso, os direitos sociais e

    grande parte dos direitos humanos de terceira gerao contam com perspectivas

    de positivao e implementao processual em escala mundial, especialmente na

    esteira de transformaes no direito internacional, notadamente no mbito do jus

    cogens (NEVES, 2009, p. 252; NEVES, 2005, pp. 12-13).

    Referindo-se aos denominados cdigos privados das corporaes

    transnacionais, Teubner faz a seguinte observao:

    Note-se: legislao meramente simblica existe, de fato, hoje, tambm no direito privado. Mas h alguns estudos empricos que merecem especial ateno. Eles demonstram que em alguns casos os cdigos trouxeram mudana real; ou seja, aprimoraram as condies de trabalho, incrementaram a proteo ambiental e foraram os standards de direitos humanos (TEUBNER, 2012, p. 111).

    Logo, mesmo que se reconhea a baixa concretizao de normas

    internacionais de proteo dos direitos humanos, no se pode deixar de reconhecer

    seu valor, como tambm dos diversos organismos de controle de aplicao de tais

    normas, no processo de afirmao e realizao dos direitos humanos.

    Alm da universalizao e positivao, organismos internacionais, como a

    Comisso de Direito Internacional da ONU, e tribunais internacionais criados pelos

    prprios Estados, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, j

    reconheceram, com base no art. 53 da Conveno de Viena de 1969 sobre o Direito

    17

    Em suma, h tambm uma ambivalncia da fora simblica dos direitos humanos no que concerne sua concretizao normativa e realizao no plano internacional ou global: a textualizao na Carta da ONU e em diversos tratados, convenes e declaraes, assim como o discurso da Assembleia Geral e da frgil esfera pblica global tm, antes, uma fora simblica positiva, enquanto a prtica poltica arbitrria do Conselho de Segurana e das grandes potncias mundiais vincula-se principalmente a um uso negativo da fora simblica dos direitos humanos, o qual no s encobre o jogo de interesses que, com frequncia, est na base do intervencionismo, mas tambm importa, muitas vezes, violaes escandalosas aos direitos humanos (NEVES, 2005, p. 25).

  • 29

    dos Tratados18, a qualidade de jus cogens de diversas normas internacionais de

    proteo dos direitos humanos, especialmente dos denominados direitos de defesa

    ou de primeira gerao (RAMOS, 2008, pp.27-29).

    Deve-se destacar, ainda, que o direito internacional dos direitos humanos

    acabou por reconhecer a qualidade de sujeito de direito internacional do indivduo,

    admitindo, inclusive, a possibilidade de peties individuais diretas aos rgos

    internacionais encarregados de seu controle19 (ALVES, 1997, p. 15).

    Esse processo de constitucionalizao do direito internacional pblico

    relativizou dogmas do direito internacional clssico construdos sob o paradigma

    westfaliano, especialmente os da soberania estatal absoluta, do voluntarismo e da

    reciprocidade entre os Estados na criao e no cumprimento das obrigaes

    internacionais20.

    A responsabilidade internacional dos Estados, por certo, no ficaria imune s

    transformaes do direito internacional pblico. Com efeito, ela no mais se restringe

    mera obrigao de reparar danos causados a estrangeiros segundo uma

    concepo civilista, passando a enfatizar o escopo de garantir o cumprimento de

    obrigaes internacionais. Nesse sentido conclui Bernhard Graefrath:

    A responsabilidade internacional no pode ser mais entendida como uma espcie de obrigao civil de reparar o dano. Ela no pode ser mais orientada ou restrita proteo dos interesses do capital estrangeiro. Ela, pelo contrrio, serve estabilizao e execuo de regras acordadas entre

    18

    O art.53 da Conveno de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados no discrimina as normas internacionais acobertadas pelo princpio do jus cogens. Limita-se a definir que norma imperativa de direito internacional geral aquela aceita e reconhecida pela comunidade internacional como um todo, em relao a qual no se admite nenhuma derrogao e que s pode ser modificada por norma ulterior da mesma natureza. No obstante, o art.60, 5, da mesma Conveno veda a extino, em caso de violao por uma das partes, das disposies sobre a proteo da pessoa humana previstos em tratados de carter humanitrio, afastando a lgica da reciprocidade prpria do direito internacional clssico pela noo de garantia coletiva e reconhecendo, nesse caso especfico, a qualidade de jus cogens da referida norma de proteo (ALVES, 1997, p. 16).

    19 Quanto a esse particular aspecto, por fora do disposto no Protocolo n 11, de 1 de novembro de

    1998, Conveno Europeia de Direitos Humanos, reconheceu-se a qualquer indivduo, grupo de indivduos ou organizao no governamental o direito de petio diretamente Corte Europeia de Direitos Humanos, sem necessidade de intermediao da Comisso Europeia de Direitos Humanos, rgo que acabou sendo extinto.

    20 Na linguagem utilizada por historiadores e cientistas polticos, o chamado sistema internacional

    westfaliano o sistema do Direito e das relaes internacionais que emergiu do Tratado de Westflia, de 1648, pondo fim Guerra dos Trinta Anos e selando a paz na Europa por meio de um instrumento jurdico destinado a regular as relaes interestatais. Matriz do sistema internacional at o estabelecimento da Liga das Naes, que pretendeu, com pouco xito, reordenar a comunidade internacional, o sistema westfaliano tinha como nico sujeito de direito o Estado soberano e como axiomas a soberania, a autodeterminao, a igualdade entre as Partes Contratantes e a reciprocidade entre os Estados no cumprimento das obrigaes (ALVES, 1997, pp. 14-15).

  • 30

    sujeitos iguais, para a garantia de direitos sob a lei internacional (GRAEFRATH, 1984, p. 29. Traduo livre do autor).

    Por fora dessa nova abordagem, o dano deixou de ser considerado elemento

    essencial da responsabilidade internacional. Conforme salienta Bernhard Graefrath:

    A violao de uma obrigao internacional que pode ser atribuda ao Estado

    suficiente para estabelecer sua responsabilidade internacional. Aps uma breve

    discusso, este ponto de vista foi geralmente aceito na Comisso de Direito

    Internacional. (GRAEFRATH, 1984, p. 34. Traduo livre do autor).

    No apropriado, por outro lado, falar em dano jurdico como elemento

    essencial da responsabilidade internacional do Estado, visto que essa noo

    consistente na mera violao da norma internacional - simplesmente reproduz o

    conceito de ilicitude21.

    Essa nova abordagem demonstra que o direito internacional contemporneo

    se afastou da concepo civilista de responsabilidade centrada na ideia de

    reparao do dano, especialmente, do dano patrimonial passando a enfatizar a

    importncia do cumprimento das obrigaes internacionais e do restabelecimento da

    igualdade nas relaes internacionais, independente da ocorrncia de dano material

    ou moral (GRAEFRATH, 1984, p. 36).

    A prova disso so as reiteradas condenaes proferidas por Cortes

    Internacionais de Direitos Humanos para que os Estados adquem suas leis e

    procedimentos administrativos aos standards por elas estabelecidos. Nesse sentido,

    referindo-se experincia do Sistema Regional Europeu de Direitos Humanos, relata

    Flvia Piovesan:

    A respeito das medidas gerais a serem impostas pela Corte, estas podem compreender importantes alteraes normativas. A ttulo de exemplo, merecem ateno: a alterao da law on contempt of court no Reino Unido Sunday Times vs. United Kingdom; mudanas afetas s regras de correspondncias de presos Silver e outros vs. United Kingdom; alterao em procedimentos criminais Assenov e outros vs. Bulgria; abolio de punio corporal na Isle of Man Tyrer vs. United Kingdom; abolio de punio corporal em escolas Campbell e Cosans vs. United Kingdom; discriminalizao (sic) da prtica consensual homossexual na Irlanda do Norte Dudgeon vs. United Kingdom; alterao de regras imigratrias discriminatrias caso Abdulaziz, Cabales e Balkandali vs. United Kingdom (PIOVESAN, 2011a, p. 115-116).

    21

    Observa Andr de Carvalho Ramos que, para parcela da doutrina, o resultado lesivo tido como ocorrido aps a mera constatao da violao da norma primria. O dano seria jurdico, ento. Caso seja aceito que o dano resultado da violao da norma internacional, sendo ento um dano jurdico, ele restaria absorvido pelo fato internacionalmente ilcito (RAMOS, 2004, p. 200).

  • 31

    Deve ser destacada, ainda, a nfase ao aspecto preventivo, pois no mais

    necessrio esperar a ocorrncia do dano para que surja a responsabilidade

    internacional do Estado (GRAEFRATH, 1984, p. 38). A questo, portanto, deixa de

    ser a mera a alocao de danos, passando a ser mais importante a regulao das

    atividades dos Estados com vistas a evitar a ocorrncia de danos (GRAEFRATH,

    1984, p. 38).

    A culpa, por sua vez, tambm deixa de ser elemento essencial da

    responsabilidade internacional dos Estados. Tal como ocorreu em relao ao dano,

    a exigncia da culpa para fins de caracterizao do ilcito internacional vai depender

    do contedo da obrigao internacional violada. Nesse sentido observa James

    Crawford que, na ausncia de qualquer requisito especfico de um elemento mental

    no que diz respeito obrigao primria, somente o ato do Estado que importa,

    independente de qualquer inteno (CRAWFORD, 2005, p. 84. Traduo livre do

    autor).

    1.3 A ordem internacional, as ordens estatais e a questo dos direitos humanos

    A questo da proteo dos direitos fundamentais, um dos problemas que

    motivaram o constitucionalismo, ultrapassou as fronteiras dos Estados, tornando-se

    relevante para outras ordens jurdicas, inclusive para a ordem internacional.

    Verificou-se, nesse contexto, uma clara aproximao entre o direito

    constitucional e o direito internacional pblico tendo em vista a questo atinente

    proteo dos direitos humanos. De um lado, o direito internacional incorporou um

    problema tipicamente constitucional, qual seja, a proteo dos direitos fundamentais.

    De outro, as ordens estatais se abriram para o direito internacional, ratificando

    normas internacionais de proteo dos direitos humanos, alm de se submeterem

    aos respectivos rgos de monitoramento e jurisdio de tribunais internacionais.

    Com efeito, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial comeou-se a

    construir os sistemas universal e regionais de proteo dos direitos humanos22.

    O sistema universal, protagonizado pela Organizao das Naes Unidas,

    est ancorado na denominada Carta Internacional dos Direitos Humanos, composta

    pela Declarao Universal de 1948, pelo Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e

    22

    Sobre os sistemas universal e regional de proteo dos direitos humanos e seus instrumentos normativos e no normativos: Alves, 1997; Piovesan, 2011; Piovesan, 2011a.

  • 32

    Polticos e pelo Pacto Internacional Sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais,

    ambos de 1966.

    No satisfeita com esse aparato normativo de carter abrangente e universal,

    as Naes Unidas deram incio ao que Bobbio denomina de processo de

    especificao dos direitos humanos (Bobbio, 2004, p. 58), ou seja, edio de

    normas de proteo voltadas no ao sujeito abstrato homem, mas a determinados

    indviduos ou grupos de indviduos ou contra certos tipos de violao (ALVES, 1997,

    p. 84).

    Com efeito, percebeu-se a necessidade de conferir a determinados grupos

    uma tutela especfica e particularizada, em face de sua prpria vulnerabilidade

    (PIOVESAN, 2011, p. 247). Tais normas integram o sistema especial de proteo,

    no plano internacional (PIOVESAN, 2011, p. 245).

    Destacam-se, dentre tais normas especiais de proteo, a Conveno

    Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discrimao Racial (1965),

    a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discrimao Contra a

    Mulher (1979), a Conveno contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas

    Cruis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Conveno sobre os Direitos da

    Criana (1989) e a Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia

    (2006).

    Ao lado do sistema geral de proteo, portanto, construiu-se, em carter

    complementar e no excludente do primeiro (PIOVESAN, 2011a, p. 42), o sistema

    especial, que visa a proteger o sujeito de direito concreto, na peculiaridade e

    particularidade de suas relaes sociais, afirmando-se o reconhecimento de sua

    identidade prpria (PIOVESAN, 2011, p. 246).

    O arcabouo de proteo, contudo, no se restringe ao sistema universal.

    Com efeito, agregaram-se ao sistema universal de proteo dos direitos humanos,

    construdo no mbito da Organizao das Naes Unidas, os denominados sistemas

    regionais de proteo23, todos com o mesmo objetivo: a integridade da pessoa

    humana como princpio e fim da convivncia societria (ALVES, 1997, p. 270).

    23

    Necessrio atentar, contudo, que alguns elementos dos sistemas regionais, como a Declarao Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Conveno Europeia para a Preveno da Tortura e Tratamentos ou Punies Desumanos ou Degradantes, precederam os instrumentos internacionais da ONU (Alves, 1997, p. 270).

  • 33

    De fato, ao lado do sistema universal de proteo, coexistem os sistemas

    regionais de proteo, que buscam internacionalizar os direitos humanos no plano

    regional, particularmente na Europa, Amrica e frica (PIOVESAN, 2011a, p. 85).

    Quanto razo que justifica a criao desses sistemas regionais, explica

    Lindgren Alves:

    A rationale dos sistemas regionais se encontra na maior homogeneidade cultural e institucional de seus membros, que, em princpio, deveria propiciar maior efetividade a suas disposies e a seus mecanismos (ALVES, 1997, p. 270).

    Convivem, dessa forma, o sistema universal composto pelos sistema geral e

    especial de proteo e os sistemas regionais de proteo, integrados pelos

    sistemas europeu, interamericano e africano24, todos voltados ao mesmo fim, qual

    seja, proteo dos direitos humanos, e todos contando com seus respectivos

    aparatos normativos e institucionais prprios.

    Ocorre, no entanto, que no obstante toda essa ramificao de normas e

    mecanismos que compem a intrincada arquitetura internacional hoje existente para

    proteger os direitos de todos os indivduos e coletividades, independentemente das

    respectivas nacionalidades (ALVES, 1997, p. 85), no se deve esquecer que os

    Estados no abdicaram de sua prerrogativa de garantir a devida proteo a tais

    direitos.

    De fato, a proteo dos direitos humanos continua a ser um problema

    constitucional, cuja soluo interessa s ordens estatais. Logo, a essa intricada

    arquitetura acima referida, no se pode esquecer de agregar as normas e

    mecanismos de direito interno voltados proteo dos direitos humanos.

    Os problemas jurdico-constitucionais referentes aos direitos humanos,

    contudo, no so relevantes apenas para o direito internacional pblico e para o

    direito estatal. De fato, na sociedade internacional convivem, tambm, ordens

    transnacionais, que, de acordo com a linha doutrinria proposta por Marcelo Neves a

    partir do entendimento de Teubner, consistem em:

    Ordens normativas privadas ou quase pblicas que surgem e se desenvolvem no plano global independentemente tanto do Estado e de suas fronteiras quanto de ordens construdas com base em Estados, ou seja, supranacionais e internacionais (NEVES, 2009, p. 84).

  • 34

    O transconstitucionalismo envolve, tambm, as ordens supranacionais, ou

    seja, aquelas que, mesmo tendo sido constitudas por Estados por meio de tratados,

    produzem normas e decises que vinculam diretamente os cidados e rgos dos

    Estados-membros, sendo paradigmtica a Unio Europeia (NEVES, 2009, p. 84).

    Por fim, no devem ser esquecidas, nessa intricada rede que caracteriza o

    transconstitucionalismo, as ordens extraestatais de coletividades nativas, cujos

    pressupostos antropolgico-culturais so se compatibilizam com o modelo de

    constitucionalismo de Estado (NEVES, 2009, p. 216).

    Dessa forma, um mesmo caso de violao de direitos humanos pode envolver

    diversas ordens. Com efeito, trata-se de problema que relevante no apenas para

    a ordem estatal, mas tambm para o respectivo sistema regional de proteo, ao

    sistema universal de proteo, geral e especial, e, no caso da Europa,

    Comunidade Europeia. De se considerar, ainda, as ordens jurdicas transnacionais e

    as ordens locais extraestatais.

    Nesse sentido, observa Marcelo Neves:

    A questo dos direitos humanos, que surgiu como um problema jurdico-constitucional no mbito dos Estados, perpassa hoje todos os tipos de ordens jurdicas no sistema jurdico mundial de nveis mltiplos: ordens estatais, internacionais, supranacionais, transnacionais e locais. Constitui uma questo central do transconstitucionalismo (NEVES, 2009, p. 256).

    A soluo dos problemas jurdico-constitucionais referentes a direitos

    humanos interessa, simultaneamente, a diversas ordens jurdicas, fazendo com que

    mais de um tribunal possa ser invocado para solucionar o caso (NEVES, 2009, p.

    132).

    Ocorre que essas diversas ordens tm pretenso de autonomia e no esto

    ligadas entre si por algum vnculo hierrquico. Alm disso, no h normas ou

    consenso entre os tribunais sobre a forma de solucionar os conflitos de competncia

    (NEVES, 2009, p. 132). Verifica-se, portanto, dentro do mesmo sistema funcional da

    sociedade mundial moderna, o direito, a coexistncia de uma pluralidade de ordens

    jurdicas, sendo que:

    Cada uma das quais com seus prprios elementos ou operaes (atos jurdicos), estruturas (normas jurdicas), processos (procedimentos jurdicos) e reflexo de identidade (dogmtica jurdica). Disso resulta uma diferenciao no interior do sistema jurdico (NEVES, 2009, p. 116).

    24

    Adicionalmente, h um incipiente sistema rabe e a proposta de criao de um sistema regional asitico (PIOVESAN, 2011a, p. 87).

  • 35

    Essa pluralidade de ordens jurdicas, decerto, se, de um lado, pode levar a

    uma disposio para cooperao25, at mesmo em razo do escopo que se

    apresenta comum para todas, tambm pode levar a conflitos frequentes entre

    perspectivas judiciais diversas (NEVES, 2009, p. 117).

    Desnecessrio afirmar que tais conflitos tambm ocorrem na relao mantida

    entre a ordem estatal brasileira e o Sistema Interamericano de Proteo dos Direitos

    Humanos. Como exemplo de conflito entre as referidas ordens, pode-se citar a

    questo da priso do depositrio infiel.

    Com efeito, enquanto o art.5, LXVII, da Constituio brasileira admite a

    possibilidade de priso do depositrio infiel, o art.7, n 7, da Conveno Americana

    de Direitos Humanos no prev essa hiptese de priso civil, admitindo-a apenas no

    caso de inadimplemento voluntrio da penso alimentcia. A legislao

    infraconstitucional brasileira, amparada no referido dispostivo constitucional, por sua

    vez, disciplinava a priso do depositrio infiel.

    A questo envolvendo a priso do depositrio infiel, portanto, poderia ser

    invocada perante o Supremo Tribunal Federal, como tambm perante a Corte

    Interamericana de Direitos Humanos.

    Pois bem. Instaurado o conflito perante o Supremo Tribunal Federal, a Corte

    brasileira, no julgamento do RE 466.343/SP, do RE 349.703/RS e do HC 87.585/TO,

    acabou revendo jurisprudncia j consolidada no sentido de que os tratados

    internacionais, independente de seu contedo, estavam situados no mesmo patamar

    hierrquico das leis ordinrias26. Por fora de tal entendimento, entendia-se que os

    conflitos entre tratados e leis internas deveriam ser solucionados pelos critrios de

    soluo de antinomias que envolviam espcies normativas de mesmo patamar

    hierrquico, ou seja, pelos critrios cronolgico e de especialidade.

    Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, revendo esse entendimento j

    consolidado na sua jurisprudncia, acabou por concluir que os tratados de direitos

    25

    No se pode perder de vista que, hoje, vivemos em um Estado Constitucional Cooperativo, identificado pelo Professor Peter Hberle como aquele que no mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referncia para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais Trecho do voto do Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 349.703/RS, p. 721.

    26 Este entendimento jurisprudencial foi consolidado no julgamento do RE n 80.004/SE, Rel. Min.

    Xavier de Albuquerque, Rel. p/ o acrdo Min. Cunha Peixoto, julgado em 1.06.1977, DJ 29.12.1977.

  • 36

    humanos, quando no aprovados segundo o procedimento estabelecido no art.5,

    3, da Constituio Federal, tm o status normativo de supralegalidade, ou seja,

    situam-se abaixo da Constituio, mas acima da legislao interna.

    Em razo do reconhecimento do carter supralegal da Conveno Americana

    de Direitos Humanos, concluiu-se que ela tornou inaplicvel a legislao

    infraconstitucional brasileira que admitia a priso do depositrio infiel no caso, o

    art.1.287 do Cdigo Civil de 1916, o Decreto-lei n 911/69 e o art.652 do novo

    Cdigo Civil.

    Na discusso que se travou para a soluo desse conflito, parece claro ter

    sido colocado no primeiro plano o esforo com vista formao de uma

    racionalidade transversal, que se mostre suportvel para ambas as ordens jurdicas

    envolvidas (NEVES, 2009, p. 146).

    Com efeito, de um lado, foi superada a jurisprudncia consolidada da Corte

    no sentido de que os tratados internacionais esto situados no mesmo patamar

    hierrquico da legislao interna, que, caso fosse mantida, poderia levar a um

    conflito insupervel entre o STF e a CIDH (NEVES, 2009, p. 146). Mas, por outro

    lado, no foi acolhida a tese da supraconstitucionalidade dos tratados de direitos

    humanos ou de sua natureza constitucional, seguindo-se o caminho do meio

    consistente na adoo do argumento em favor da validade supralegal e

    infraconstitucional da Conveno (NEVES, 2009, p. 145).

    A questo, portanto, como resolver esses conflitos sem a imposio top

    down na relao entre ordens (NEVES, 2009, p. 118), ou seja, sem considerar que

    uma das ordens detm o primado definitivo, a ultima ratio jurdica (NEVES, 2009, p.

    117), tal como ocorreu, por exemplo, nesse conflito envolvendo o Supremo Tribunal

    Federal e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos a respeito da possibilidade

    de priso do depositrio infiel.

    Ao desafio de responder essa questo se prope o transconstitucionalismo,

    paradigma terico que orientar a busca da soluo do problema de que trata esta

    dissertao.

  • 37

    2 A Responsabilidade Internacional do Estado por decises do Poder Judicirio

    2.1 Questo pacfica no Direito Internacional Pblico

    A doutrina e a jurisprudncia internacionais no tm dificuldade em

    reconhecer a responsabilidade internacional do Estado por atos e omisses do

    Poder Judicirio27.

    Nos termos do art.2 da proposta de Codificao da Comisso de Direito

    Internacional da ONU, a responsabilidade internacional decorre de uma conduta,

    consistente em uma ao ou omisso ou na combinao de ambas, imputvel ao

    Estado e que constitua violao de uma obrigao internacional (CRAWFORD,

    2005, p. 81).

    preciso, inicialmente, um juzo de imputao da ao ou omisso ao

    Estado. Reconhecida a imputao, realiza-se, em seguida, um juzo sobre a ilicitude

    da conduta. Nesse sentido, a Corte Internacional de Justia, no Affaire Relative au

    Personnel Diplomatique et Consulaire des tats-Unis Thran, exps, de forma

    didtica:

    De incio, ela deve determinar em que medida os comportamentos em questo podem ser considerados como juridicamente imputveis ao Estado iraniano. Em seguida, ela deve pesquisar se eles so compatveis ou no com as obrigaes que incumbem ao Ir em virtude dos tratados em vigor ou de outra regra de direito internacional eventualmente aplicvel. Os acontecimentos que ensejaram as reclamaes dos Estados Unidos esto escalonados em duas fases que devem ser consideradas separadamente

    28.

    A imputabilidade o nexo que liga o ilcito a quem responsvel por ele

    (MELLO, 1994, p. 448). Trata-se de um nexo jurdico, e no natural, entre

    determinada ao ou omisso e o Estado (KELSEN, 2011, p. 67; RAMOS, 2004, p.

    111). Para o direito internacional, o Estado considerado como entidade nica,

    singular, que atua por meio de seus rgos e agentes, razo pela qual a imputao

    de determinada conduta ao Estado , necessariamente, uma operao normativa

    (CRAWFORD, 2005, p. 83).

    27

    Em 1947, Hildebrando Accioly j consignava: ...j ponto por assim dizer incontroverso que a responsabilidade internacional do Estado por danos causados a estrangeiros pode resultar de atos do seu rgo judicirio, ou do exerccio de funes judicirias (ACCIOLY, 1947, p. 44).

    28 Cour Internationale de Justice. Affaire Relative au Personnel Diplomatique et Consulaire des tats-

    Unis Thran. Arrt du 24 MAI 1980. p.29. Traduo livre do autor.

  • 38

    No obstante as intricadas questes que envolvem o juzo de imputabilidade

    em matria de responsabilidade internacional do Estado, notadamente no que diz

    respeito a atos praticados por particulares sem qualidade oficial, no h controvrsia

    quanto imputabilidade ao Estado dos atos praticados por seus rgos, pouco

    importando a funo que exeram ou a posio que ocupem na estrutura estatal29.

    Nesse sentido claro o disposto no art.4 do projeto de codificao da Comisso de

    Direito Internacional da ONU:

    Artigo 4

    Conduta de rgos do Estado

    1. A conduta de qualquer rgo estatal ser considerada um ato do Estado sob o direito internacional, mesmo que o rgo exera funes legislativas, executivas, judiciais ou qualquer outra funo, qualquer que seja sua posio na organizao do Estado, e qualquer que seja seu carter como um rgo do governo central ou como uma unidade territorial do Estado. 2. Um rgo inclui qualquer pessoa ou entidade que tenha esse status de acordo com o direito interno do Estado

    30.

    O Estado, portanto, responde no plano internacional pelos atos e omisses de

    todos os seus rgos, sendo irrelevantes, para fins de caracterizao da

    responsabilidade internacional, as prerrogativas institucionais de independncia e

    autonomia porventura reconhecidas em favor de qualquer rgo estatal31.

    A ilicitude, por sua vez, consiste na violao de obrigaes internacionais

    estabelecidas no apenas em tratados ou convenes, mas tambm no costume e

    nos princpios gerais de direito (ACCIOLY, 2002, p. 149). A ilicitude, portanto, deve

    ser avaliada em face das chamadas obrigaes primrias (RAMOS, 2004, p. 110).

    incorreto, portanto, falar em responsabilidade internacional de qualquer

    rgo estatal. A responsabilidade internacional sempre e unicamente do Estado,

    29

    Les actes des organes de lEtat sont pratiqus par action individuelle ou collective. Mais, pour engendrer la responsabilit internationale, lauteur ou les auteurs de tels actes doivent avoir agi en leur qualit propre dorganes de lEtat. Lactivit de chaque Etat se manifeste, naturellement, travers ces organes, qui dailleurs reprsentent, dans leur ensemble, des sphres daction diferentes. En effet, lesdits organes appartiennent lactivit administrative, lactivit legislative, ou lactivit judiciaires de lEtat. (ACCIOLY, 1959, p. 371).

    30 Traduo livre do autor.

    31 La sparation des pouvoirs, lindpendance de la fonction juridictionelle envers lexcutif, sont des

    rgles de rpartition des comptences internes. On ne peut les invoquer comme une raison de principe contre la responsabilit internationale de lEtat en raison de lattitude de ses tribunaux. Il ne sagit ici ni de lexcutif ni du judiciaire, ni des rgles constitutionnelles qui, dans lordre interne, gouvernent leurs activits et leurs relations rciproques. Dans lordre international, lEtat se prsente toujours dans son unit. Ses tribunaux sont ses organes; leur attitude, comme celle de tout autre organe de lEtat, est susceptible dengager la responsabilit tatique. (DE VISSCHER, 1935, p. 376).

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    que, na qualidade de ente unitrio32 e abstrato, no age por si mesmo, mas por

    intermdio de seus rgos.

    Dentre tais rgos, figura o Poder Judicirio. Seus atos e omisses so

    imputveis ao Estado e, desde que constituam violaes a obrigaes

    internacionais, ensejam a responsabilidade internacional do ente estatal (KELSEN,

    1953, p. 90). Com efeito, para o direito internacional, as decises judiciais

    constituem simples manifestao da atividade do Estado, tal como as aes

    praticadas pelos demais rgos estatais (DE VISSCHER, 1935, p. 377). Nesse

    sentido observa Accioly:

    O direito internacional toma a deciso ou o ato de um tribunal nacional simplesmente como uma das manifestaes da atividade do Estado; se em tal manifestao existe a violao de obrigaes internacionais, o Estado deve