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Vamos combater a credulidade (1) E. Macamo Passaram já alguns dias desde que as cidades de Maputo e da Matola foram abaladas por distúrbios na sequência da alta de preços. Muita tinta correu nos jornais e muita conversa foi feita na rádio e na televisão. Entretanto, o próprio governo já reagiu e está a colher todo o tipo de elogios e críticas. Entre os críticos há alguns que se vêem vindicados na sua opinião segundo a qual tudo isto teria a ver com a arrogância do governo. Eles consideram, portanto, que o governo, ao fazer concessões, estaria a fazer aquilo que já há muito devia ter começado a fazer, nomeadamente dialogar com o povo. Os distúrbios de 1 e 2 de setembro levantam questões interessantes sobre a nossa esfera pública. Páira no ar a sensação de que fins sempre justificam os meios, leitura esta que faço a partir da constatação da fraqueza da condenação pública da natureza violenta dos distúrbios. Tenho em mim que existe um ambiente intelectual que dificulta o nosso posicionamento claro contra a violência. É minha convicção, também, que essa dificuldade está ligada a um fenómeno ao qual gostaria de dar o nome de ”credulidade”. O fenómeno da credulidade verifica-se quando abordamos problemas sociais ou de questões de interesse público a partir de quadros de referência pré-estabelicidos. Partindo das nossas convicções sobre o que é correcto ou errado, o que é bom ou mau, aceitamos ou rejeitamos o que ouvimos ou lemos simplesmente na base do nosso quadro de referência. Se sou simpatizante da Frelimo e oiço alguém a criticar esse partido por uma outra razão a minha reacção espontânea e imediata é de rejeitar a crítica simplesmente por ela não caber no esquema dos bons e maus, do correcto e do errado que eu utilizo. O mesmo raciocínio se aplica aos que são simpatizantes de outros partidos, outras causas e outras crenças. Nestas condições, existe uma tendência de transformar o debate na esfera pública num mero alinhamento com posições pré-definidas e na defesa militante de convicções. Na circunstância, os méritos da questão sofrem, pois deles quase ninguém se ocupa. A credulidade constitui em minha opinião uma grande ameaça à qualidade do debate na esfera pública. As razões são simples. Os distúrbios de 1 e 2 de setembro podem, por uns, ser vistos como uma reacção legítima à indiferença do governo e, por outros, como uma reacção insensata em face de constragimentos que ultrapassam qualquer governo. Qualquer um de nós tem motivos muito fortes para alinhar com uma destas duas perspectivas. Não obstante, se a reflexão sobre estes distúrbios não for para além disso, isto é se as pessoas que reflectem sobre eles não estão dispostas a confrontarem corajosamente as suas convicções e procurarem saber se independentemente das suas convicções individuais os méritos da questão permitem ou não outros tipos de leitura, a coisa fica feia. Não poderemos, enquanto esfera pública, tirar as devidas ilações (e licções) de experiências como esta. Ainda que dolorosas, estas experiências fazem parte daquilo que torna uma sociedade possível. Seria bom se pudéssemos identificar meios através dos quais poderíamos prevenir completamente distúrbios ou protestos, mas é evidente que isso é algo que não está ao alcance de nenhuma sociedade. O que está ao alcance das sociedades é a capacidade de reflectir da melhor maneira possível sobre o que acontece(u) e tirar consequências. Em certa medida, portanto, o fenómeno da credulidade parece revelar que alguns de nós somos impenetráveis à razão. Estamos bastante comprometidos com aquilo que queremos acreditar. Ora, para além de isto fazer mal à nossa esfera pública faz também mal ao próprio

Vamos Combater a Credulidade

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Uma investidade social sobre a credulidade

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Vamos combater a credulidade (1)

E. Macamo

Passaram já alguns dias desde que as cidades de Maputo e da Matola foram abaladas por distúrbios na sequência da alta de preços. Muita tinta correu nos jornais e muita conversa foi feita na rádio e na televisão. Entretanto, o próprio governo já reagiu e está a colher todo o tipo de elogios e críticas. Entre os críticos há alguns que se vêem vindicados na sua opinião segundo a qual tudo isto teria a ver com a arrogância do governo. Eles consideram, portanto, que o governo, ao fazer concessões, estaria a fazer aquilo que já há muito devia ter começado a fazer, nomeadamente dialogar com o povo. Os distúrbios de 1 e 2 de setembro levantam questões interessantes sobre a nossa esfera pública. Páira no ar a sensação de que fins sempre justificam os meios, leitura esta que faço a partir da constatação da fraqueza da condenação pública da natureza violenta dos distúrbios. Tenho em mim que existe um ambiente intelectual que dificulta o nosso posicionamento claro contra a violência. É minha convicção, também, que essa dificuldade está ligada a um fenómeno ao qual gostaria de dar o nome de ”credulidade”.

O fenómeno da credulidade verifica-se quando abordamos problemas sociais ou de questões de interesse público a partir de quadros de referência pré-estabelicidos. Partindo das nossas convicções sobre o que é correcto ou errado, o que é bom ou mau, aceitamos ou rejeitamos o que ouvimos ou lemos simplesmente na base do nosso quadro de referência. Se sou simpatizante da Frelimo e oiço alguém a criticar esse partido por uma outra razão a minha reacção espontânea e imediata é de rejeitar a crítica simplesmente por ela não caber no esquema dos bons e maus, do correcto e do errado que eu utilizo. O mesmo raciocínio se aplica aos que são simpatizantes de outros partidos, outras causas e outras crenças. Nestas condições, existe uma tendência de transformar o debate na esfera pública num mero alinhamento com posições pré-definidas e na defesa militante de convicções. Na circunstância, os méritos da questão sofrem, pois deles quase ninguém se ocupa.

A credulidade constitui em minha opinião uma grande ameaça à qualidade do debate na esfera pública. As razões são simples. Os distúrbios de 1 e 2 de setembro podem, por uns, ser vistos como uma reacção legítima à indiferença do governo e, por outros, como uma reacção insensata em face de constragimentos que ultrapassam qualquer governo. Qualquer um de nós tem motivos muito fortes para alinhar com uma destas duas perspectivas. Não obstante, se a reflexão sobre estes distúrbios não for para além disso, isto é se as pessoas que reflectem sobre eles não estão dispostas a confrontarem corajosamente as suas convicções e procurarem saber se independentemente das suas convicções individuais os méritos da questão permitem ou não outros tipos de leitura, a coisa fica feia. Não poderemos, enquanto esfera pública, tirar as devidas ilações (e licções) de experiências como esta. Ainda que dolorosas, estas experiências fazem parte daquilo que torna uma sociedade possível. Seria bom se pudéssemos identificar meios através dos quais poderíamos prevenir completamente distúrbios ou protestos, mas é evidente que isso é algo que não está ao alcance de nenhuma sociedade. O que está ao alcance das sociedades é a capacidade de reflectir da melhor maneira possível sobre o que acontece(u) e tirar consequências.

Em certa medida, portanto, o fenómeno da credulidade parece revelar que alguns de nós somos impenetráveis à razão. Estamos bastante comprometidos com aquilo que queremos acreditar. Ora, para além de isto fazer mal à nossa esfera pública faz também mal ao próprio

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desenvolvimento do país. Sem uma atitude crítica como parte da forma como abordamos o país não vai ser possível contribuir de forma útil para o desenvolvimento deste país. É batalha antecipadamente perdida. Nos artigos que se seguem vou reproduzir alguns textos que já havia publicado no blog que tinha na internet (www.ideiascriticas.blogspot.com) e que tentavam ser um convite à reflexão crítica. Adapto-os às circunstâncias actuais para mostrar o que me parece estar errado na forma como lidamos com o assunto. Ao longo dos artigos vou tentar identificar formas de raciocínio que nos tornam reféns da credulidade e vou também fazer sugestões sobre como podemos escapar à credulidade reagindo ao que ouvimos ou lemos com uma atitude mais crítica. Com essas sugestões não vou querer impedir as pessoas de terem as suas convicções que isso é importante para a estabilidade emocional de cada um de nós. Estarei apenas a lançar um convite para que ao abordarmos o país tenhamos também como preocupação a necessidade de analisar os méritos duma questão independente de quem a expõe ou das nossas crenças.

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Vamos combater a credulidade (2) Dos da plausibilidade

E. Macamo

Porque é que argumentos problemáticos passam com tanta facilidade na nossa esfera pública? Um palpite que eu tenho conduz-me à noção de plausibilidade. É um pouco difícil defini-la, mas diria que é algo que está ligado ao tipo de suposições que nós fazemos em relação ao que ouvimos quando não estamos em condições de verificar tudo tim-tim por tim-tim. Se alguém nos diz que o paiol de Malhazine explodiu por desleixo, aceitamos por acharmos que isso encaixa muito bem na ideia que temos do funcionamento das nossas instituições. Isto é, fazemos uma suposição qualificada sobre a veracidade de uma afirmação que, do ponto de vista prático, pode ser considerada verdadeira na ausência de provas em contrário. Em relação ao paiol, por exemplo, consideramos plausível a ideia de que se trate de desleixo na ausência de outros elementos que poderiam mostrar o contrário. Aceitamos, portanto, a afirmação como sendo provisoriamente certa.

O nosso dia-a-dia está cheio deste tipo de argumentos. Eles obrigam-nos a usarmos o nosso senso-comum para decidirmos se vamos acreditar numa afirmação ou não. A base dessa crença (e desse senso-comum) é o que não fere o nosso sentido do que é normal. Sei que a coisa fica um pouco complicada, porque o que é normal entre nós não é assim tão fácil de determinar. Eu diria, por exemplo, que se alguém me viesse dizer que viu uma pessoa a voar esse relato estaria a violar o meu sentido do que é normal. Sei, contudo, que para outras pessoas isso não seria assim, aliás Quisse Mavota mostrou isso. Não obstante, este é um caso que não precisa de nos deter por muito tempo, pois está mais relacionado com a questão da coexistência de várias referências ontológicas no nosso quotidiano. O importante é reconhecer o papel que o nosso senso-comum desempenha na determinação da plausibilidade de uma afirmação e, como exercício crítico, confrontar esse senso-comum.

Na verdade, os nossos problemas com a plausibilidade na esfera pública começam quando confiamos demasiado neste senso-comum. Se alguém nos diz que os distúrbios de 1 de setembro eram protestos de gente afectada pela carestia da vida reagindo a um governo arrogante e o nosso senso-comum nos diz que há carestia e o governo é arrogante, então concluimos que de facto essa foi a causa dos distúrbios. Reparem que, em princípio, não é inconcebível que assim seja, mas no fundo a nossa única base de inferência é apenas o senso-comum. Portanto, argumentos plausíveis são frequentes, mas terrívelmente inseguros. Deixá-los ficar pela plausibilidade é o pior que podemos fazer no espírito da elevação da qualidade do debate.

No fundo, o que a plausibilidade nos diz é que precisamos de mais informação, pois um argumento plausível é um argumento provisório. Com mais informação, sobretudo informação que contraria a nossa afirmação, podemos talvez rever a nossa aceitação da conclusão. A questão que deveríamos colocar antes de fazer eco ao que é plausível é de saber o que precisaríamos de saber para estarmos seguros de que a conclusão segundo a qual os distúrbios foram protestos de gente afectada pela carestia da vida perante um governo arrogante é mais do que plausível. É sintomático que no calor das manifestações nenhuma das pessoas que escreveu textos de análise incendiários a sugerir esta explicação falou com os perpretadores. Há quem simplesmente somou 2 mais 2 e concluíu que só podia ser isso. Agora, atenção que com isto não quero dizer que não tenha sido isso (não sei o que foi), nem mesmo que não tenha havido pessoas que se fizeram à rua movidas por essas ideias.

O que está em causa é a nossa responsabilidade crítica como membros da esfera pública. Estamos dispostos a entrar em confrontação com o que nos é dito ou não? De que maneira o podemos fazer? Batendo simplesmente palmas? Defendendo? Ou interrogando o nosso senso-

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comum, fonte da plausibilidade do argumento que nos é servido? Penso que a interrogação do nosso senso-comum é o caminho. Interrogamo-lo simplesmente procurando uma base de informação mais sólida. Esta sugestão, por acaso, não vale apenas para o argumento do protesto. Vale também para a sugestão feita pelo Ministro do Interior, segundo a qual estaríamos perante bandidos. Olhando para o tipo de acções que caracterizaram os distúrbios podemos conferir plausibilidade a essa descrição. Mas para que ela seja mais do que plausível seria necessário olhar para a forma como a manifestação decorreu, comportamento da polícia e de diferentes grupos de manifestantes. Aqui também poderíamos constatar que se tratou mesmo de bandidos, ou não. Normalmente, quando vamos para além da plausibilidade colocamo-nos em posição de diferenciar e qualificar os nossos argumentos. Diferenciar e qualificar são coisas muito importantes para a saúde do debate. Nos nossos jornais e na internet anda muita gente que não vê virtude nisto.

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Vamos combater a credulidade (3) Dos comprometidos

E. Macamo

A credulidade tem várias manifestações (não confundir com “distúrbios”). Uma delas, sobre a qual me debruço neste texto, é de argumentar a partir duma posição de compromisso. Eu explico. Algumas intervenções no debate sobre os distúrbios de 1 de setembro foram no sentido de dizer que a carestia de vida é tanta que um pobre não tem outra alternativa senão revoltar-se violentamente. A credulidade intervem aqui para nos dizer que sim, essa situação explica tudo; ou que não, isso não explica nada. No primeiro caso queremos acreditar que sim enquanto que no segundo queremos acreditar no contrário. Antes de eu analisar os problemas inerentes à esta atitude vou explicar a natureza do argumento envolvido um bocadinho mais. A essência vai no sentido de dizer que a posição que uma determinada pessoa ocupa na sociedade (podia também ser a filiação religiosa, política, etc.) obriga-a a agir duma única maneira se não quiser ser incoerente. Um pobre, porque pobre, só pode reagir à carestia revoltando-se.

O argumento contém três elementos. O primeiro é, por assim dizer, uma premissa que contém provas da existência de um compromisso. Por exemplo, os “manifestantes” são pobres (afinal estavam a reclamar a subida de preços, vivem em bairros periféricos, dependem de chapa, etc.). Podíamos representar formalmente esta premissa com a seguinte frase: f (fulano de tal) tem compromisso com posição x de acordo com certas provas ao nosso dispôr (as condições sociais em que vive). O segundo elemento continua a ser uma premissa, mas desta feita o que ela faz é articular o posicionamento com uma outra coisa. Por exemplo: um pobre revolta-se quando a carestia da vida aumenta. A forma seria: normalmente, a posição x implica também posição y. Ou seja, um pobre (posição x) revolta-se quando a carestia de vida aumenta (posição y). Destas duas premissas resulta a conclusão deste argumento com base no compromisso, nomeadamente que f (fulano de tal) por ser x tem que fazer também y. Em moçambiquês: um verdadeiro pobre deve revoltar-se quando a carestia da vida aumenta! Esta conclusão é violenta porque impõe limites ao que podemos dizer, fazer ou pensar em virtude do lugar que ocupamos na sociedade. Corremos o sério risco de sermos acusados de incoerência se fizermos ou dissermos coisas que não encaixam na expectativa criada por este argumento. Se um indivíduo, apesar de ser pobre, dissesse que não é com manifestação que o problema se resolve, achamos que podemos com legitimidade levantar sérias interrogações em relação à genuidade da sua condição. Dizemos, indignados, que um indivíduo que diz isso não pode ser pobre! E este tem sido o problema nas nossas discussões na esfera pública. Ou obrigamos as pessoas a aceitarem as implicações práticas de ocuparem certos lugares na sociedade ou então a reconhecerem que estão a ser incoerentes.

Há saídas para este dilema. A primeira saída é simples. Que provas são essas que demonstram que f tem compromisso com posição x? No caso do pobre a coisa é simples. A situação está difícil no país e aquele que é pobre não pode esconder a sua condição. Nem tem necessidade de o fazer. Mas o conceito de pobre é vasto demais para poder comprometer todo o indivíduo que possa assim ser descrito. Há pobres muçulmanos, presbiterianos, católicos, ateus, operários, empregados domésticos, mulheres, jovens, do sul, da Frelimo, que vivem neste e não naquele bairro, etc. Cada uma destas pertenças ou identidades é um quadro de referência normativa que age sobre cada um desses indivíduos e impõe limites ao que ele faz ou pensa que devia fazer. Esta complexidade da noção de pobre não permite a ninguém deduzir o seu comportamento simplesmente a partir da constatação de que alguém é pobre. Há pobres que de certeza acreditam no respeito de propriedade alheia e na ordem. Não são vítimas de falsa consciência. São assim e ponto final. O uso indiscriminado da categoria de

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pobre para explicar porque algumas pessoas reagiram de forma violenta à carestia da vida (partindo do princípio de que esse foi o caso) parece-me assim problemático.

A segunda saída é central. Haverá excepções à regra segundo a qual a posição x implica posição y? Por exemplo, se um determinado pobre achar que certos pobres - com os quais ele devia solidarizar-se por ser também pobre - comportam-se duma maneira que viola os seus valores e, por causa disso mesmo, achar que lhes devia recusar a sua solidariedade, ele poderia dizer que ao fazer isso não estaria a ser incoerente consigo próprio porque o seu entendimento da conduta moral dum pobre obriga-o a condenar certas posturas. É verdade que algumas pessoas podem insistir com um princípio geral que diz que um pobre, independentemente das circunstâncias e da conduta de outros pobres, deve ser solidário com outros pobres. Aí, contudo, já estamos a entrar numa área que ultrapassa os limites da atitude analítica. Já não se trataria de reflexão crítica, mas sim de obediência. E na verdade, uma grande ameaça que páira sobre as nossas sociedades é este compromisso cego com certos princípios normativos gerais. É esta ideia nociva de que aquilo que consideramos correcto é correcto para toda a gente e em todas as circunstâncias.

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Vamos combater a credulidade (4) Dos com autoridade

E. Macamo

Houve gente que se pronunciou sobre os distúrbios de 1 de setembro, sobretudo intelectuais. Dentre eles houve os que disseram taxativamente que se tratou de protestos contra a carestia de vida devido à arrogância do governo. Alguns fizeram de caixa de ressonância e andaram a repetir “professor fulano de tal” disse isso. Esta é outra manifestação insidiosa e nociva da credulidade. Quando a gente se apoia na autoridade de alguém – um académico, um governante, etc. – para considerar justa uma determinada conclusão, a gente está a participar na esfera pública usando um argumento que pode ser problemático. Na verdade, o que se está a dizer nessas circunstâncias é que o professor fulano de tal está em posição de saber certas coisas e, em virtude disso, o que ele diz é muito provavelmente correcto. Por outro lado, está-se também a dizer que o professor fulano de tal é uma autoridade no assunto sobre o qual ele se pronuncia e, em virtude disso, o que ele diz é muito provavelmente correcto.

Estamos perante duas formas argumentativas. A primeira consiste duma premissa que diz que alguém está numa posição de saber se uma coisa é assim ou não. A segunda premissa é afirmativa no sentido em que diz que alguém diz que uma coisa é assim. Segue-se, então, a conclusão que basicamente diz que uma determinada coisa é provavelmente mesmo assim. Trocado em quinhentas: O professor fulano de tal está em posição de saber se os distúrbios são por causa da carestia e da arrogância do governo; o professor diz que os distúrbios foram um protesto contra a carestia e governo arrogante; logo, o os protestos foram contra a carestia e arrogância do governo. A segunda forma consiste duma premissa que diz que fulano de tal é especialista de uma área dentro da qual é feita uma determinada proposição. A segunda premissa é de que esse especialista diz que essa proposição (dessa tal área) é verdadeira (ou falsa). A conclusão aqui é de que essa proposição pode ser tida como sendo correcta (ou falsa). Vamos traduzir: O professor é especialista do comportamento das pessoas em contexto de carestia; o professor diz que os distúrbios foram protestos contra a carestia e arrogância do governo. Logo, os distúrbios foram protestos contra a carestia e governo arrogante.

O que precisamos de fazer nestas circunstâncias? Simplesmente bater palmas? Creio que não. Devemos analisar. Mas como? Bom, há pelo cinco perguntas que podemos colocar. A primeira seria: até que ponto é que uma determinada pessoa é credível como especialista (ou alguém que está em posição de saber). Ser apenas académico não é suficiente. Fez estudos? Qual é a qualidade desses estudos? As suas conclusões são corroboradas por outros estudos? A segunda pergunta seria: ele é realmente especialista da matéria em questão? Esta pergunta aplica-se mais a casos de natureza factual. Por exemplo, se um especialista em balística nos disser que a polícia atirou para matar não temos como não considerar esse depoimento válido. Terceira pergunta: podemos confiar no nosso especialista como fonte? Se, por exemplo, o professor é alguém que tem o hábito de explicar todo o fenómeno que ocorre no país com recurso à mesma ideia de que as pessoas estão a reagir ao esquecimento a que foram votados pelo Estado, devemos desconfiar dessa fonte. Se esse professor é alguém que não tem o hábito de reagir às críticas que se fazem ao seu trabalho com argumentos substantivos – e não simplesmente ataques pessoais – é imperioso duvidar. Quarta pergunta: o que o professor fulano de tal diz é também opinião de outras pessoas que estão, como ele, em posição de saber ou que são também especialistas? Aqui é preciso simplesmente informar-se mais. Finalmente, a quinta pergunta seria de saber se o nosso especialista tem provas para o que diz. No caso dos distúrbios seria difícil produzir provas, mas ter falado com os envolvidos ou testemunhas oculares é já um bom elemento. É verdade que as pessoas que consideramos como sendo autoridade em matéria deste género não tem outra maneira de sustentar os seus palpites senão

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pela interpretação dos dados ao seu alcance. A nossa tarefa como membros responsáveis da esfera pública é de encorajar essas pessoas a nos darem uma ideia dos dados que utilizam para essas interpretações bem como a nos dizerem porque acham que esses dados só possam ser interpretados dessa maneira. Aqui também fica evidente que há gente que prefere cair no comodismo de acreditar apenas em autoridade. Essa gente prejudica o país, pois, por vezes, o que passa por autoridade, visto de perto, pode não ser. É verdade que não é fácil alguém dizer que não sabe uma determinada coisa. Já me envolvi em problemas por ter dito isto várias vezes numa entrevista com perguntas formuladas de maneira muito deficiente. Quem diz “não sei” fica logo suspeito de não querer simplesmente emitir opinião (para agradar alguém!). Isto só fomenta a credulidade e deixa passar gente perplexa como todos nós por autoridade.

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Vamos combater a credulidade (5) Dos das consequências

E. Macamo

Suponhamos que estamos a discutir os méritos de deixar meninos da rua guardarem os nossos carros. Alguém podia dizer, por exemplo, que se deixássemos de pagar aos miúdos por esse serviço a criminalidade em Maputo iria aumentar. E como sabemos que a criminalidade não é boa coisa, concluiríamos que não devemos parar com a prática de deixar os miúdos guardarem os nossos carros. Há, evidentemente, uma forma positiva de contrariar este argumento. Alguém podia dizer, por exemplo, que deixar os miúdos guardarem os nossos carros encoraja-os a ficarem longe da escola. E como sabemos que não ir à escola é mau, a conclusão que podemos tirar é que devemos parar com essa coisa de eles guardarem os nossos carros. Reparem que em ambos os casos a forma do argumento é a mesma. Há uma premissa segundo a qual se A acontecer, boas (ou más) consequências vão muito provavelmente advir. A conclusão que se segue é que A não devia (ou devia) acontecer.

Em princípio não há nada de errado neste raciocínio. É normal e frequente no nosso quotidiano. Pode ser problemático quando utilizado em contextos mais sérios onde precisamos de mais informações para chegarmos a conclusões sólidas. Pode ser também problemático quando quem nos ouve não nos interpela devidamente e deixa-se levar pela mera plausibilidade da conclusão. A melhor forma de interpelar tais argumentos é colocando três perguntas. A primeira quer saber quão forte é a probabilidade de que as consequências referidas vão mesmo advir. A pergunta não é inocente. No caso de guardar carros, por exemplo, se alguém dissesse que a consequência seria o aumento da criminalidade caso parássemos, podíamos perguntar se (i) a lavagem de carros é a única alternativa de ganhar dinheiro lícito que esses miúdos têm, (ii) se a nossa polícia é assim tão má ao ponto de recearmos que ela não seja capaz de controlar a situação e (iii) que tipo de criminalidade vai aumentar e se não haverá formas de a conter, etc. Só analisadas estas questões é que podemos ter a certeza de que a probabilidade apontada seja forte.

A segunda pergunta aprofunda o assunto. Ela quer saber que provas existem, se é que existem, que sustentam a convicção de que as consequências referidas advirão caso A acontecer. Estas provas podem ser experiências de outros países, estudos ou relatórios. Finalmente, a terceira pergunta procura saber se há consequências opostas que deveriam ser tomadas em consideração. Por exemplo, no caso do argumento segundo o qual párar com a prática de deixar os miúdos guardarem os carros poderia conduzir ao aumento da criminalidade poderíamos perguntar se isso (i) não os libertaria para outras actividades úteis, (ii) se isso não obrigaria o município a melhorar as condições de segurança de automóveis através da criação de parques de estacionamento, etc., (iii) se isso não aliviaria os automobilistas da chantagem de alguns desses miúdos, etc. Quer dizer, fazendo estas três perguntas não ponho necessariamente em causa a pessoa que argumenta com recurso às consequências, mas coloco sobre mim mesmo a exigência de ser crítico em relação ao que me é dito.

Na discussão do que fazer face aos distúrbios ocorridos somos constantemente confrontados com o argumento segundo o qual a ausência de concessões por parte do governo só pode conduzir ao caos. Colocando as três perguntas acima mencionadas podemos facilmente ver que esta é uma conclusão bastante arrojada. Já agora, mesmo o meu argumento contra o mau precedente que estas concessões representam para o nosso sistema político pode ser interpelado desta maneira. Os perigos que qualquer um de nós é capaz de discernir e aventar como hipótese são suficientemente reais. Mas não é o simples facto de nós aventarmos esses perigos que vai fazer com que eles ocorram. A sua simples aceitação pode ser responsável pela inevitabilidade. É por causa disto que vejo com muita apreensão este tipo de argumentos

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na nossa esfera pública. Se há algum analista que devia estar sob suspeita constante, esse é aquele que argumenta desta maneira. Cada moçambicano devia ser equipado com uma sirene que devia começar a tocar logo que alguém se pusesse a servir este tipo de argumentos ao público. A sirene não teria o objectivo de calar a pessoa, mas de convidar os ouvintes a colocarem as três perguntas propostas mais acimas. Só assim é que um pouco de sanidade regressaria à nossa esfera pública.

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Vamos combater a credulidade (6) Dos da opinião popular

E. Macamo

Uma coisa que fomenta a credulidade entre nós é a ideia de que existe uma coisa chamada opinião popular. Por exemplo, ouvimos dizer que na localidade de Longe (na Zambézia) há pessoas que estão a matar outras por acharem que estas estejam a amarrar a chuva; alguns analistas dizem-nos que isso corresponderia a uma crença popular. Os mesmos analistas diriam que essa violência não é irracional em virtude de corresponder a essa crença popular. Ora, o apelo à opinião popular tem uma estrutura argumentativa muito simples. A premissa geral é a seguinte: A (um fenómeno, crença, etc.) é geralmente aceite como sendo verdadeiro. Vamos lá, a ideia de que pessoas possam amarrar a chuva é aceite como sendo verdadeira. A segunda premissa consiste numa presunção: Se A (a crença na ideia de que certas pessoas possam amarrar a chuva) é geralmente aceite como sendo verdadeira, existem, então, razões a favor de A (isto é, da crença na ideia de que certas pessoas possam amarrar a chuva). Notem a circularidade do argumento. A sua conclusão é de que existem razões a favor de A, isto é a favor da legitimidade da crença.

Neste ponto interveem duas perguntas fundamentais. A primeira é simples: que provas existem que sustentam a ideia de que A seja geralmente aceite? A porca torce o rabo neste ponto, pois os analistas que gostam de fazer este tipo de afirmações não gostam de diferenciar. Não conseguem ver que dentro do mesmo povo há os que creem numa determinada coisa, outros que não creem e ainda outros que estão indecisos. Para os nossos analistas é tudo mesma coisa. Só lhes interessa estabelecer que alguém acredita numa determinada coisa e, partindo daí, inferir que a crença é de toda a comunidade. Mas aqui não estou a dizer nada de novo: o importante não é saber que as pessoas fazem, por exemplo, linchamentos em reacção à ausência do Estado; o importante é saber quando e que pessoas fazem linchamentos em reacção a que tipo de ausência de Estado. Igualmente, o importante não é saber que um Estado apreendido como sendo indiferente possa estar na origem da crença segundo a qual os seus próprios agentes estariam a espalhar a cólera, mas sim apurar que tipo de pessoas dentro duma comunidade reagem assim e quando essa reacção se torna violenta. Enfim, o importante não é dizer que a crença na capacidade de certas pessoas de amarrar a chuva é racional do ponto de vista das vivências duma determinada comunidade, mas sim saber quem são essas pessoas dentro de que comunidades que pensam dessa maneira e, sobretudo, porque os outros não partilham essa crença. Estas são coisas elementares não só das ciências sociais como também de qualquer abordagem crítica das coisas da vida.

A segunda pergunta é exigente: mesmo se A é geralmente aceite como verdadeiro existirão razões que nos possam fazer duvidar? Aqui o rabo da porca fica um nó. A primeiríssima razão é que não são todos que acreditam nisso; duvido, por exemplo, que as vítimas destas barbariedades acreditem. A segunda é que não estão todos a participar na matança dos que amarram a chuva. Enfim, a necessidade de compreender não nos obriga a justificar seja o que for. Obriga-nos apenas a situar as coisas no seu devido lugar e, se formos sérios no nosso compromisso com a visão científica do mundo, a não dar crédito a formas excêntricas de pensar só porque queremos “compreender”. Sobretudo quando essas formas excêntricas de pensar reclamam vidas humanas. Não existe nenhum manual de ciências sociais que define a compreensão desta maneira.

Para não ser mal entendido: não estou a dizer que as autoridades policiais devam ser brutais para com todos quantos têm este tipo de crenças. As nossas autoridades dum modo geral têm de ter sensibilidade para o tipo de condições e contextos que não só tornam possíveis estas crenças como também permitem que elas assumam carácter violento. Essas condições e esses contextos precisam de ser estudados, mas a função da polícia não pode ser de suspender a

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acção por respeito a crenças locais que têm a sua razão de ser dentro de sistemas de valores e concepções do mundo que entram em choque com o tipo de sociedade que queremos construir, sobretudo porque elas ferem o que aprendemos na escola e custam a vida a pessoas inocentes. O membro da esfera pública que defende esse tipo de postura está a colocar-se à margem das coisas. O mesmo podemos dizer em relação a algumas abordagens dos distúrbios de 1 de setembro. Uma boa parte delas parte simplesmente da ideia de que por detrás dos distúrbios estaria uma crença popular no abandono a que o povo foi votado pelo Estado, razão pela qual o povo não viu outro meio de reagir senão pela violência. Não vou insistir com o leitor para duvidar porque não o quero colocar na situação difícil de ser condenado por um coro de vozes que lhe vão dizer “só não vê quem não quer ver!”. Estamos mal. De qualquer maneira o conselho fica: duvide deste tipo de argumento e das pessoas que o apresentam. Duvide, por favor!

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Vamos combater a credulidade (7) Dos da classificação

E. Macamo

Se eu dissesse que todos os países situados no continente africano são africanos poderia, validamente, concluir também que Moçambique – por se situar também no continente africano – é um país africano. Estou a fazer uma classificação verbal da noção “país africano”, classificação essa que me é facilitada pela convenção geográfica. O que acontece, porém, é que esta facilidade nem sempre existe. E justamente por ela não existir podemos nos tornar bastante crédulos em relação ao debate na esfera pública. Na verdade, há muitos argumentos baseados na classificação verbal na nossa esfera pública e que dependem do uso corrente de certas palavras no quotidiano. Por exemplo, em Maputo dizemos que toda e qualquer pessoa que falta à sua palavra, não se compromete e tem sempre saída para situações difíceis é um “mafioso”. Partindo dessa classificação verbal poderíamos concluir, olhando para um indivíduo que faltasse à palavra, não se comprometesse e sempre tivesse saída para situações difíceis, que essa pessoa é “mafiosa”.

Estamos, portanto, a dizer que uma certa entidade individual contém uma determinada propriedade e que a posse dessa propriedade implica a presença de uma outra propriedade. Se provarmos que uma pessoa tem determinadas características que definimos como sendo “mafiosas”, então essa pessoa é mesmo mafiosa. Isto é normal no quotidiano, na verdade, tão normal que estamos sempre a argumentar dessa maneira. Quando dizemos que o governo é arrogante fazemo-lo em função de premissas classificatórias que supomos estarem presentes na conduta do governo. Reparem, contudo, que estes argumentos baseados na classificação verbal têm um teor normativo muito elevado que pode limitar a discussão. Por exemplo, alguém pode dizer “essa ideia compromete as metas definidas”, logo, “essa ideia está errada”. Este é o ambiente do que, no país, se chama de “seguidismo”, “bajulação”, “yes-man”, “lambe-botismo”, etc.

Há remédios críticos para isto. E são duas perguntinhas. A primeira pergunta é de saber que provas existem realmente de que uma determinada entidade contém determinada propriedade. Por exemplo, que provas existem realmente de que a “conjuntura internacional” contenha as premissas classificatórias que justificariam o uso dessa noção para justificar a alta de preços? A segunda pergunta seria de saber se a classificação verbal contida na premissa classificatória deriva de uma definição objectiva ou de uma definição que pode ser questionada. Por exemplo, eu poderia argumentar que mesmo se de facto a alta de preços constitua uma reacção directa à conjuntura internacional, essa mesma conjuntura pode permitir que o governo comece a fazer coisas que noutras circunstâncias não poderia fazer. Estou a pensar, por exemplo, no relaxamento das medidas de ajustamento estrutural que poderiam permitir outros tipos de intervenção do governo na economia. Estou a ver também a possibilidade de o trigo produzido no país em condições ineficientes ganhar oportunidades no mercado em resultado da alta do produto internacional. Constrangimentos são também oportunidades. O truque é colocar as perguntas certas para se poderem identificar essas oportunidades.

Ora, o que se verificou entre nós quando o governo falou da conjuntura internacional foi simplesmente rejeitar ou aceitar esse argumento. Ninguém – eu também não – teve o cuidado de perguntar de que maneira exacta é que essa conjuntura afecta o país e que novas oportunidades surgem daí. Infelizmente, há quem se deixe vitimizar ou calar a boca por argumentos baseados na classificação verbal. A minha crítica ao discurso anti-corrupção parte do meu desiderato de resistência a estas classificações verbais. Não é que esteja a favor da corrupção ou negue a sua existência; é que me incomoda o elemento normativo que conduz a

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um clima que o antropólogo português José Teixeira memorávelmente chamou de “denúncia” numa discussão na internet. A minha crítica aos “críticos” parte também do meu desiderato de resistência ao uso descuidado que eles fazem de classificações verbais. Um exemplo particularmente pertinente é o uso de expressões como “democracia”, “injustiça”, “competência”, “corrupção”, “integridade” e várias outras com um teor normativo muito elevado para classificar acções do governo ou a postura dos próprios críticos e, por via disso, colocar um manto de penumbra total sobre os assuntos. Ou seja, o uso destas classificações permite a criação de um ambiente dentro do qual o governo é automaticamente identificado com tudo quanto é contrário à justiça e democracia, enquanto que aqueles que se arrogam a prerrogativa de classificar se identificam automaticamente com tudo quanto é justo e democrático. Este tipo de gente é, por exemplo, muito hostil à pergunta crítica porque ela obriga-nos a diferenciar e quando diferenciamos podemos chegar à conclusão de que uns não são realmente como gostariam de ser vistos. Os distúrbios de 1 de setembro e as reacções que os acompanharam mostram claramente – pelo menos a mim – que muita gente no país que diz ser democrata de democrata tem muito pouco.

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Vamos combater a credulidade (8a) Dos das correlações

E. Macamo

Vou ter que discutir o tema das correlações em três textos seguidos. Acho importante fazer isto porque a problemática que vou tratar tem estado, do lado académico, no centro de como abordamos um bom número de fenómenos sociais no nosso país. O tipo de argumento que me interessa, e que pode fomentar a credulidade, consiste em chegar a conclusões a partir da constatação de correlações e partir dessas correlações para uma causa. No fundo, não há nada de errado neste procedimento e, aliás, a responsabilidade pelas conclusões que são tiradas não pertence aos autores, mas sim a nós os leitores que preferimos dá-las por adquirido.

Existe, felizmente, um trabalho científico da autoria do Professor Carlos Serra do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane com o título Cólera e Catarse, realizado em 2002 na província de Nampula, que, em minha opinião, usa este tipo de argumento. Talvez seja bom dizer de imediato que a minha análise não põe em causa a autoridade científica do autor. Faço este reparo porque quando publiquei este texto pela primeira vez na internet houve reacções bastante agressivas de gente que ignorou os reparos metodológicos que fiz e preferiu questionar as minhas motivações. Que a crítica por pares faz parte da vida académica passou completamente despercebido a essas pessoas. Sendo o Professor Serra o sociólogo mais produtivo ao nível da pesquisa no país e, ainda mais, debruçando-se sobre fenómenos de grande interesse público – e politicamente relevantes – é importante não só prestar atenção ao que ele diz, mas proporcionar aos interessados instrumentos com os quais eles possam digerir essa produção sem caírem na credulidade como alguns têm, infelizmente, feito.

Vou começar por expôr a obra de forma breve e, no artigo a seguir a este, vou tecer comentários à sua volta. O estudo debruça-se sobre os ataques contra agentes de saúde em Nampula perpretados por populares que acreditavam que estes eram quem causava a cólera. Segundo os autores – a pesquisa foi feita por uma equipa de investigadores – a crença popular (de que a cólera é introduzida pelo governo através do cloro) não é algo irracional como alguns de nós nos sentiríamos inclinados a crer. Ela documenta uma crítica popular ao Estado que não é dialogante, é ineficaz na solução dos problemas do povo, é representado por funcionários alheios aos anseios do povo e tudo isto num ambiente de privações. Na verdade, segundo o estudo a crença pode ser irracional do ponto de vista da explicação científica das causas da cólera, mas perfeitamente coerente com aquilo que os autores do estudo chamam de “consciência de privação”.

De certa forma, portanto, o estudo diz-nos que esta crença é o resultado de um Estado, digamos, problemático contra o qual os populares reagem. Do ponto de vista formal, a estrutura do argumento é simples e consiste de uma premissa apenas. A premissa diz que existe uma correlação entre A (natureza do Estado) e B (crença popular). A conclusão é de que A é a causa de B. A hipótese formulada para o estudo gira em torno deste argumento: “A crença de que a cólera é introduzida pelo governo em Nampula através do cloro (fenómeno) é um indicador de insegurança popular (nível 1) ampliada pela tensão política (nível 2).”. Já na preparação da problemática os investigadores haviam anunciado a intenção de “desnudar o mito da cólera” através da obtenção de “... conhecimento das opiniões dos cidadãos sobre o Estado no concernente à prestação de serviços essenciais como água, saúde e educação”. O estudo confirma o nível 1 (a crença como indicador de insegurança popular), mas não encontra sustento para o nível 2 (a crença é ampliada pela tensão política).

Para este efeito, os investigadores entrevistaram várias pessoas em alguns distritos da província de Nampula. Essas entrevistas produziram depoimentos muito interessantes que, na

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interpretação dos investigadores, revelam um mal-estar popular em relação ao papel do Estado. Os dados obtidos desta maneira em todos os distritos inquiridos convergem na apreciação negativa do papel do Estado e de algumas ONGs, por um lado, e na reacção que consiste em atacar os agentes do Estado e das ONGs como vectores do mal. O estudo critica duramente aqueles entrevistados, na sua maioria representantes do Estado, que atribuem a acção popular ao analfabetismo e à ignorância. Ele tenta mostrar que a crença não tem nada de irracional, mas é uma reacção à indiferença e oportunismo dos agentes do Estado. Os leitores que acompanham a produção do autor principal vão notar que se trata, na essência, do mesmo argumento que é utilizado para explicar os linchamentos e, porque não, distúrbios como os de 5 de fevereiro e 1 de setembro: falta de confiança no Estado, logo, reacções populares bizarras encontram a sua lógica no comentário crítico que tecem sobre esse Estado. Amanhã vou prosseguir com uma leitura crítica.

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Vamos combater a credulidade (8b) Dos das correlações

E. Macamo

Como ler criticamente um estudo tão bem feito como este? Ainda há espaço para distância crítica? A correlação entre apatia do Estado e crença no mito da cólera é, nos dados apresentados pelo estudo, tão elevada que não pode haver outra maneira de interpretar os resultados. Existem basicamente três estratégias para interpelar criticamente este tipo de argumento. Todas elas consistem em perguntas. A primeira pergunta é a seguinte: será que existe mesmo uma correlação entre A e B? A segunda não menos importante é a seguinte: haverá alguma razão para supor que a correlação não seja simplesmente pura coincidência? Finalmente, a terceira pergunta é: é concebível que haja um terceiro factor (digamos C) que constitui a causa de A e B? Esta última pergunta não é inocente. Na verdade, há muitas correlações que fazemos no quotidiano e que se explicam, muitas vezes facilmente, com recurso a uma terceira variável. Por exemplo, podíamos associar a quantidade de estragos num incêndio ao número de bombeiros que o debelaram e concluirmos que os bombeiros são a causa do estrago. Contudo, pode ser que o tamanho do incêndio tivesse exigido mais bombeiros pelo que o próprio tamanho é que seria responsável pelos estragos. Por conseguinte, a nossa distância crítica tem que nos conduzir a eliminar outros factores que possam estar por detrás da correlação imputada. Pensar criticamente significaria, neste caso, justamente eliminar esses factores.

Colocadas as coisas desta maneira, podemos começar a ver alguns problemas com o estudo. Em relação à primeira pergunta (será que existe mesmo uma correlação entre A e B?) podemos, socorrendo-nos dos dados facultados pelo estudo, dizer que de facto existe uma correlação entre a apatia do Estado e a crença popular. Os vários depoimentos são prova disso. Abro aqui, porém, um parêntesis para dizer que seria interessante perguntar também se em todo o lado onde se manifesta este tipo de crença o Estado é visto como sendo apático ou, dito de outra maneira, porque sendo o nosso Estado geralmente apático (suponhamos) não se verificam estas crenças noutros pontos do país com a intensidade que elas têm em Nampula? Estas perguntas são particularmente pertinentes na consideração da terceira pergunta mais adiante.

A resposta à nossa segunda pergunta (haverá alguma razão para supor que a correlação não seja simplesmente pura coincidência?) é menos linear. Há um investimento normativo muito forte por parte dos investigadores para estabelecer a responsabilidade do Estado. A (ir)responsabilidade do Estado é a resposta padrão dos estudos feitos pela Oficina de Sociologia. Porque há linchamentos? Porque há privatização da justiça face à inoperância do Estado. Porque as pessoas frequentam as igrejas pentecostais? Porque estão a reagir à ausência do Estado cuja responsabilidade é escondida pelo discurso da culpa pessoal das preces feitas nessas igrejas. O que quero dizer com isto é que o estudo foi feito com a intenção de “desnudar o mito da cólera” através da obtenção de “... conhecimento das opiniões dos cidadãos sobre o Estado no concernente à prestação de serviços essenciais como água, saúde e educação”. Conhecidas que são as “insuficiências” do nosso Estado, era concebível que o discurso popular fosse diferente do apurado? Não me parece. Em certa medida, portanto, o estudo confirmou a sua própria profecia.

Contudo, há aqui e ali elementos interessantes que vão sobressaíndo dos depoimentos populares. Por exemplo, fala-se de conflitos entre duas interpretações do Islão; fala-se de conflitos entre os jovens e os mais velhos; fala-se de conflitos entre mulheres e homens, embora (tendo em conta o facto de se tratar de sociedades matrilineares) me pareça haver exagero na apresentação da novidade do protagonismo feminino. Estes conflitos são secundarizados no estudo e não merecem a atenção prolongada dos investigadores. O que me

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parece uma pena. Na verdade, teria sido interessante cruzar estes conflitos com o perfil social daqueles que se envolveram no ataque aos agentes da autoridade e procurar saber se aí também há correlações a fazer. É verdade que do ponto de vista da pesquisa seria difícil encontrar pessoas que tivessem a coragem de dizer que cometeram delitos, mas mesmo assim a partir dos depoimentos teria sido possível estabelecer correlações entre estes outros conflitos e as crenças. Os autores não fizeram nada disso e esta omissão parece-me constituir o calcanhar de aquiles de um estudo que, de outro modo, é um excelente exemplo da pesquisa social empírica. A responsabilidade, porém, não está nos autores, mas naqueles que vão ler o estudo sem procurar interpelar as suas conclusões para além do que foi dito.

À terceira pergunta (é concebível que haja um terceiro factor (digamos C) que constitui a causa de A e B?), para voltarmos à vaca fria, podemos responder afirmativamente. Podíamos dizer que a crença em si é manifestação de ignorância ou de estruturas tradicionais de pensamento, mas que isso em si não é fundamental. O que é fundamental é explicar a reacção violenta na sequência da crença. Aí podíamos dizer que quer a reacção violenta, quer a apatia do Estado são fenómenos que são explicados pelo desmoronamento das estruturas de autoridade naquela região de modo que a nossa atenção não se deve cingir apenas às críticas ao Estado, mas às transformações que ocorrem naqueles meios. E, de facto, os vários outros conflitos mencionados, mas não aprofundados, revelam que a questão da autoridade é fulcral. É interessante notar que as pessoas, no fundo, sabem que o cloro não causa a cólera. Desconfiam das intenções dos representantes do Estado, mas esta desconfiança não explica a sua reacção violenta. No artigo a seguir fecho esta mini-série de três artigos.

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Vamos combater a credulidade (8c) Dos das correlações

E. Macamo

Quando publiquei, pela primeira, a crítica que o leitor viu nos dois artigos anteriores Josué Muchanga, um internauta perspicaz, fez o comentário que reproduzo em seguida:

...as privações extremas conduzem necessariamente ao boato e aos linchamentos? Podemos então assumir que em Moçambique sempre que ocorrerem "privações de todo o tipo" teremos que esperar boatos e assassinatos de gente inocente? Este debate está muito excitante. As contribuições dos intervenientes são magníficas, contudo, a questão levantada pelo anónimo (acima assinalada em itálico) acaba por suscitar outras inquietações, diversas das tratadas por Elísio [Macamo] neste artigo. A questão em causa é se será razoável transformarmos o estudo do professor Carlos Serra em proposições gerais? Podemos generalizar os resultados do estudo para outras circunstâncias similares? Tenho as minhas reservas. Suponho que este estudo apenas procura perceber e explicar situações particulares de determina comunidade em certa região. Ao tentarmos transformar os resultados de estudo em lei, modelo ou proposições gerais, corremos o risco de repetir os problemas já denunciados primeiro por David Hume e depois por Karl Popper e David Miller, sobre as questões ligadas à validade do método indutivo. Portanto salvo melhor opinião, julgo que a validade do estudo do professor Carlos Serra circunscreve-se apenas às particularidades e circunstâncias que o determinaram. Ao fazermos generalizações estaríamos a exportar alguns resultados que nada têm a ver com as outras circunstâncias em estudo.

As críticas que teci ao estudo, repito, não o invalidam, nem põem em causa a autoridade científica do autor. Elas põem em causa o modelo explicativo, o mesmo que uma boa parte dos nossos pensadores empregam para abordar os problemas do país. Leis universais do tipo “sempre que o governo for indiferente as pessoas vão agir assim e assado” são úteis, num primeiro momento, como ponto de partida para a formulação de hipóteses e, acima de tudo, para a focalização da atenção num objecto e num universo concreto. No caso da cólera, dos linchamentos ou da chuva amarrada, por exemplo, partimos daí para a descrição das pessoas envolvidas, suas características sociais, suas motivações, sua inserção nos meios em questão e, muito importante, o que os torna diferentes dos outros. Num segundo momento, porém, leis universais são um grande problema porque sugerem um tipo de conhecimento que as ciências sociais dificilmente podem produzir. Sugerem uma capacidade de previsão de fenómenos sociais que o objecto das ciências sociais se recusa a nos disponibilizar. A sociedade constitui-se historicamente e subtrai-se, por essa via, muitas vezes ao olhar vaticinador da ciência. Não é que não seja possível de nenhuma maneira tecer vaticínios sobre fenómenos sociais. Afinal sabemos, por exemplo, que a educação melhora as possibilidades de se conseguir emprego. Mas vejam bem: melhora, não garante. Precisaríamos de um mundo muito bem controlado para realizarmos as nossas profecias.

Quem, sob o peso da credulidade, lê estes estudos como a revelação da verdade viola vários mandamentos formulados brilhantemente pelo Professor Serra no seu “decálogo do sociólogo” no livro “Combates pela mentalidade sociológica”, sobretudo no que diz respeito à atitude crítica. Quem é refém da credulidade facilmente vê nas críticas que eu formulei manifestações do que, segundo um comentário que li na internet, “(É) em meu entender fascinante analisar os discursos ‘analíticos’ (com verniz dito científico) que continuam a ser produzidos para fazer da revolta popular de 1/3 de Setembro uma machamba exclusivamente moral, abundantemente plantada com epítetos, condenações veementes, externalismos causais sem fim e ideias de circunstância que nunca terão continuidade em pesquisa real (...) “(na verdade, há muitos doutos habitantes de pesquisas que jamais serão feitas, mas que tudo fazem para passar a imagem de especialistas atarefados)”.

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Da credulidade passamos facilmente à celebração de soluções mais problemáticas ainda do que o problema levantado. Com efeito, já que a explicação recai sobre o Estado, o instinto totalitário que estimula muitos “críticos” sugere uma revolução, isto é a transformação radical do estado para passar a servir os interesses do povo. Não estranha, na verdade, que ninguém considere oportuno condenar a violência dos distúrbios. Tratou-se, na opinião dos crédulos, duma violência necessária. Esta atitude disvirtua o sentido das ciências sociais e do pensamento crítico. Mesmo partindo do princípio de que não podem prognosticar certas coisas, elas podem contribuir com conhecimento que permita às autoridades, às comunidades e aos indivíduos reagirem com medida e se protegerem das consequências mais nefastas de certos actos. No caso da cólera ou, já agora, de distúrbios por causa da carestia da vida, podemos contribuir com reflexões sobre o perfil dos envolvidos; podemos identificar os mecanismos sociais que falharam e permitiram que a insatisfação desembocasse na violência; podemos investigar as formas de reacção das autoridades e ver em que medida elas podem contribuir para a escalada, e como evitar isso. Enfim, há uma série de elementos que podemos procurar recolher como contribuição não para evitar que certas coisas aconteçam – que isso é quase impossível – mas sim para reagir com maior eficácia às suas consequências.

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Vamos combater a credulidade (9) Da dor de pensar

E. Macamo

Cheguei ao fim da série. Muita coisa ficou ainda por ser dita. Construir a democracia não é empresa fácil, sobretudo quando nem é evidente porque é preciso construir essa democracia. Conflitos fazem sociedades. A procura de soluções para esses conflitos reforça o sentido de comunidade. No nosso país parece ainda existir uma grande indefinição em relação ao que queremos como nação. Cada um de nós tem frases feitas na ponta da língua, frases do tipo “acabar com as desigualidades”, “reforçar a auto-estima”, “promover o empreendedorismo”, “eliminar a pobreza”, “promover a justiça social”, “acabar com a corrupção”, etc. são frases que apontam para objectivos nobres e a vozearia que a sua proclamação excitada provoca pode, por vezes, sufocar a voz mais tímida que nos devia unir.

Há filósofos, representados pelo americano Michael Walzer, que defendem uma visão minimalista da moral. Os argumentos que apresentam para tal parecem-me pertinentes para a reflexão que se impõe sobre os distúrbios de 1 de setembro bem como sobre a facilidade com que muitos de nós caimos nas malhas da credulidade conferindo credibilidade ao que dizem falsos profetas. O que esses filósofos dizem é simplesmente que a moral tem um lado fino e outro lado denso. O fino assenta simplesmente no reconhecimento, pelo menos à distância, do que é bom ou mau. Qualquer um de nós tem a capacidade de se indignar pelo sofrimento do outro. Saber que há gente que passa privações, não sabe onde encontrar os meios de garantir a sua próxima refeição, etc., dói a qualquer pessoa. A capacidade de sentir essa dor faz de nós humanos. Não obstante, o sofrimento visto à distância e o sofrimento que precisa de ser abordado de forma prática de perto são coisas diferentes. O que faz a diferença é o lado “denso” da moral, pois deste lado o que é mau ou bom, é-o em função da vivência de cada um de nós, das experiências que vamos colhendo no dia a dia. É por isso que podemos facilmente criticar o governo pela pobreza, mas no nosso próprio dia-a-dia nada fazemos para a aliviar ajudando os mais necessitados por iniciativa própria.

Quem quiser abordar problemas morais práticos a partir do lado “denso” e só desse está condenado ao fracasso, pois o único argumento que ele pode esgrimir é o da força. Por exemplo, um dos problemas do auxílio ao desenvolvimento – nesta perspectiva – é justamente de que ele não é apenas a manifestação de indignação perante o sofrimento do outro, mas também a tentativa de resolver essa situação impondo a sua visão moral aos outros, cuja vivência e história são necessariamente outras e, consequentemente pouco susceptíveis de mudarem sem resistência e subversão. É daí que não basta proclamar o combate à pobreza: é preciso também introduzir a democracia, o estado de direito, isto mais aquilo, etc. Corremos este risco sempre que participamos no debate público convencidos de que o que nós julgamos bom é bom para todos. Na verdade, o único que precisamos de reconhecer – e aceitar como uma questão de princípio – é que cada um de nós tem a capacidade de se indignar pelo sofrimento dos outros e, partindo daí, lutarmos por um espaço de reflexão pública que não comprometa a possibilidade de continuarmos a conversar.

A condição para fazermos isto é oferecer resistência à credulidade. A credulidade está a matar o nosso país lentamente e aos bocadinhos. Aceitar tudo quando parece encaixar naquilo que consideramos correcto sem o mínimo cuidado de interpelar é a pior maneira de evitar que o país morra. Ver tudo sempre na perspectiva de quem está a favor ou contra o governo é a forma mais certa de garantir que o país se despedace. Usar os fóruns nacionais de debate – nos jornais e na internet – para chamar de ladrões, arrogantes e oportunistas aos que, à sua maneira, tentam dar o seu contributo para um Moçambique melhor é a maneira mais segura de comprometer a viabilidade deste país. Seria estranho se o governo moçambicano fizesse tudo certo; seria estranho que não cometesse erros, não tivesse indivíduos só interessados

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consigo próprios. Na verdade, o tipo de análises que têm sido feitas na sequência dos acontecimentos de 1 e 2 de setembro estão de forma muito curiosa e perversa a conduzir o governo a agir mais de forma politicamente oportunista. Para salvar a sua pele preferiu “ceder”, mas o que isso significa para o programa do governo e para as metas mais gerais de desenvolvimento só os espíritos é que sabem; o Chefe de Estado corta viagens, mas o que acontece ao dinheiro assim poupado, o que teria advindo da sua deslocação, etc. são questões que não interessa discutir e, curiosamente, nenhum crítico as levanta. E o que é mais grave ainda, pelo menos para mim, é que ainda nem começamos a discutir as implicações duma cultura política determinada a partir da rua por gente zangada, mas sem nenhum programa político. Só que para começarmos a abordar isto tudo tínhamos que abandonar a credulidade, algo que custa muito, pois implica pensar. E pensar dói.