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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Vanessa Elisa Margherita Maria Durando
Prestígio, solidariedade e esperteza:
práticas comerciais de senegaleses entre Turim e Dakar
CAMPINAS
2020
Vanessa Elisa Margherita Maria Durando
Prestígio, solidariedade e esperteza:
práticas comerciais de senegaleses entre Turim e Dakar
Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Doutora em
Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz
Este trabalho corresponde à versão final da tese
defendida pela aluna Vanessa Elisa Margherita Maria Durando
e orientada pelo Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz.
CAMPINAS
2020
Agência(s) de fomento e n°(s) de processo(s): FAPESP, 2012/13354-2
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Prestige, solidarity and cunning: commercial trade pratices of the
Senegalese between Turin and Dakar
Palavras-chave em inglês:
Migration
Trade
Moral values
Power
Área de concentração: Antropologia Social
Titulação: Doutor em Antropologia Social
Banca examinadora:
Omar Ribeiro Thomaz [Orientador]
Lorenzo Gustavo Macagno
Fernando Rabossi
Livio Sansone
Emilia Pietrafesa de Godoi
Data de defesa: 12-03-2020
Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social
Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)
- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-7030-8113
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2602580511061203
Durando, Vanessa Elisa Margherita Maria, 1973-
D931p Prestígio, solidariedade e esperteza: práticas comerciais de
senegaleses entre Turim e Dakar / Vanessa Elisa Margherita Maria
Durando. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.
Orientador: Omar Ribeiro Thomaz.
Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.
1. Migração. 2. Comércio. 3. Valores morais. 4. Poder. I. Thomaz, Omar
Ribeiro, 1965-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. III. Título.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Doutorado, composta pelos
Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 12 de março de 2020,
considerou a candidata Vanessa Elisa Margherita Maria Durando aprovada.
Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz (UNICAMP)
Prof. Dr. Lorenzo Gustavo Macagno (UFPR)
Prof. Dr. Fernando Rabossi (UFRJ)
Prof. Dr. Livio Sansone (UFBA)
Profa. Dra. Emilia Pietrafesa de Godoi (UNICAMP)
A ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de
Fluxo de Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Ao reparador de para-choques da feira de
Thiaroye e a todos os trabalhadores e
viajantes que, cruzando as fronteiras, se
re(inventam), criam, arriscam, sofrem e se
divertem.
AGRADECIMENTOS
A todos os colaboradores dessa pesquisa, os quais, com paciência e parceria, tornaram
possível essa etnografia.
Ao Departamento de Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas e,
especialmente, ao meu orientador Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz pelo respaldo
incondicional oferecido ao longo desses anos. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo (FAPESP), pelo suporte financeiro para a realização do doutorado (Processo n°
2012/13354-2). Ao Prof. Dr. Pier Paolo Viazzo do Dipartimento di Culture, Politica e Società
da Università degli Studi di Torino pelas orientações durante o Estágio de Pesquisa no
Exterior realizado com bolsa FAPESP (BEPE).
À Profa. Dra. Sandra Jaqueline Stoll, pelo amparo nos momentos mais desafiadores e
pelas sugestões que contribuíram substancialmente para a realização desse texto. À Profa.
Dra. Christine de Alencar Chaves, amiga de coração, pelos conselhos e acalentos. Aos meus
colegas todos, especialmente Catarina Casimiro Trindade e Ana Elisa Bersani, que me
ofereceram ajuda nos momentos difíceis. À Daniela Feriani, pela correção cuidadosa do texto.
À minha mãe, Gabriella, que nos deixou ao longo desse trajeto tendo me entregue os
ensinamentos mais preciosos. À minha querida irmã Francesca, pela presença e cuidados. À
Zigou Bâ e à minha filha Gaia, pela especial mediação em campo.
RESUMO
Na cidade de Turim (Itália), que é ponto de confluência de diferentes correntes migratórias, a
presença senegalesa se tornou significativa a partir da metade dos anos 80 do século passado.
Dedicando-se principalmente ao trabalho em fábrica e à venda ambulante, os migrantes, aqui,
como em outros lugares de chegada, construíram suas relações e práticas sociais circulando
(Tarrius, 1993), periodicamente, entre Itália e Senegal. O presente trabalho analisa,
etnograficamente, por um lado, as trajetórias migratórias desses viajantes e, por outro, como a
prática do comércio ambulante se insere nesse contexto. A partir das narrativas apreendidas e
da observação relativa à atuação dos meus interlocutores em uma feira do usado em Turim, o
Balôn, procurou-se entender como se constrói o trabalho ambulante focando no ethos que o
regula e como se articulam as práticas transnacionais de compra-venda de mercadorias que os
migrantes adquirem em loco e, sucessivamente, enviam via container para Dakar. Ao longo
da pesquisa, observou-se que valores morais como jom (dignidade, coragem), mana
(prestígio), mousse (esperteza), nimbale (solidariedade), dentre outros, modulam a construção
das relações sociais entre senegaleses que, diversamente do que a maioria dos textos
socioantropológicos sobre o tema sugere, não são sempre equânimes e pacíficas. Temos
presenciado dinâmicas de alianças, mas também de conflitos entre comerciantes, as quais,
então, passaram a problematizar a perspectiva, já consolidada na literatura sobre o tema,
segundo a qual a “solidariedade”, de matriz mouride, seria o princípio regulador das relações
entre migrantes. Colocando em foco os conflitos, com respaldo nas observações do sociólogo
senegalês Leyla Sall (2010), então, se enveredou por uma perspectiva política para mapear
quais são os critérios que ordenam e hierarquizam as relações entre comerciantes no contexto
das práticas econômicas acima descritas.
Palavras-chave: migração; comércio; valores morais; poder.
ABSTRACT
Turim in Italy has been a crossroads of many different migratory flows, the Senegalese
presence has become significant since the mid 1980’s. They mainly work in factories and as
street traders, building their relationships and social practices (activities) “circulating”
(Tarrius, 1993), periodically, between Italy and Senegal. This text on one side analyzes the
ethnographical and migratory routes of these travelers, and on the other side how commercial
practices take place within this context. Starting with a collection of narratives and the
observations of my interlocutors practices - that have been carried out in one of the oldest and
largest flea markets in Europe, called Balôn-. Theret has been an attempt to understand how
trade between Italy and Senegal functions focusing on the ethos that regulates them. We have
seen through field work that moral values such as jom (dignity, courage), mana (prestige),
mousse (cunning), nimbale (solidarity) are integral parts of the social and working life of the
Senegalese people. On the contrary to what most socio-anthropological texts on the subject
suggest. The relationships are not always fair-minded and peaceful. In this respect, we have
found a great deal of solidarity and alliance between traders but additionally have seen many
situation of conflict. All of these change make the persepective of “mourid solidarity” more
complex. Consolidated in the studies published, as regulatory principle of the interactions
between migrants in the labour market. In focusing on those conflict situations and at the
same time reflecting on Leyla Sall´s preciuos studies (2010), a political perspective has been
adopted to map out the patterns that structure and hierarchize the relationships between
traders in the above mentioned context.
Keywords: migration; trade; moral values; power.
Sumário
Introdução ---------------------------------------------------------------------------------------------- 12
Capítulo 1 - Contextualizando: migrações na Itália e senegaleses em Turim ------------- 17
1.1 Itália, país de migração -------------------------------------------------------------------------- 17
1.1.1 A Europa e os fluxos migratórios ------------------------------------------------------------ 17
1.1.2 Características das (i/e)migrações na Itália ------------------------------------------------- 20
1.2 Representação da mídia e da opinião pública sobre imigração: a “síndrome da
invasão” ------------------------------------------------------------------------------------------- 26
1.3 A presença senegalesa na Itália ----------------------------------------------------------------- 31
1.3.1 Migração senegalesa na Itália ------------------------------------------------------------------ 31
1.3.2 Turim, cidade de chegada de velhos e novos migrantes. A presença
senegalesa: uma perspectiva histórica --------------------------------------------------------------- 38
Capítulo 2 – “Ir e vir”: os sentidos das viagens ------------------------------------------------- 44
2.1 Migrações e questões de gênero ---------------------------------------------------------------- 44
2.2 Migrar para realizar um sonho, para “ser livre e valente” ------------------------------- 50
2.3 Migrar para trabalhar --------------------------------------------------------------------------- 61
2.4 “Viemos pegar o que é nosso”: migração e relações coloniais --------------------------- 77
Capítulo 3 – Vucumprá, comerciantes e business men: fazer negócios em Turim -------- 83
3.1 Andanças ------------------------------------------------------------------------------------------- 83
3.2 Vendas em bancas --------------------------------------------------------------------------------- 88
3.3 Atividade comercial e universo feminino: da venda nas feiras em Turim ao
“business” em Dubai ---------------------------------------------------------------------------------- 93
3.3.1 Desdobrando-se: prover aqui e cuidar lá. O caso de Khady Camara --------------------- 93
3.3.2 Quebrando padrões: desafios e aventuras. O caso de Coumba Mbaye ------------------100
Capítulo 4 - A feira Balôn (1): atuar no “centro” do mercado ------------------------------ 111
4.1 Preâmbulo ----------------------------------------------------------------------------------------- 111
4.2 Perambulando: as “paisagens” da feira ---------------------------------------------------- 127
4.3 Práticas comerciais senegalesas em Largo Borgo Dora --------------------------------- 140
Capítulo 5 – A feira Balôn (2): o “tira e põe” dos produtos contrafeitos ----------------- 153
5.1 Práticas comerciais senegalesas em Via Mameli, Via Lanino, Canale
Carpanini ---------------------------------------------------------------------------------------------- 153
5.2 Aqui e lá: espaço e tempos de atuação ------------------------------------------------------ 159
5.3 Juntos ou separados? Partilhas e modalidades de venda ------------------------------- 166
5.4 “O que você vende?”/“O que você quer?”: mercadorias diversas para contextos
múltiplos ----------------------------------------------------------------------------------------------- 174
5.5 O Balôn como espaço de negócios e sociabilidade: casos de honorabilidade e
esperteza ----------------------------------------------------------------------------------------------- 183
Capítulo 6 - Coisas que rodam -------------------------------------------------------------------- 192
6.1 Balôn como lugar de fluxo: coisas que chegam/coisas que vão ------------------------ 192
6.2 Biografia de uma geladeira -------------------------------------------------------------------- 196
6.2.1 Origem, primeiros desempenhos e possível fim -------------------------------------------- 198
6.2.2 Feira e múltiplos destinos --------------------------------------------------------------------- 199
6.2.3 Perspectivas de uma nova vida --------------------------------------------------------------- 201
6.2.4 Rumo ao Senegal: outras pessoas, outros valores ------------------------------------------ 203
6.2.5 Desempenhos na casa de Mame Diarra ----------------------------------------------------- 205
6.2.6 Alquimias e renascimentos: no Senegal não se morre (ou quase) ----------------------- 207
6.3 O circuito comercial: entidades, meios e dinâmicas relacionais ----------------------- 207
6.3.1 A constituição das redes: composição e características ------------------------------------ 209
6.3.2 Aquisição das coisas --------------------------------------------------------------------------- 216
6.3.3 Armazenamentos em Turim e envio para Dakar ------------------------------------------- 226
6.3.4 Passagem pelas alfândegas -------------------------------------------------------------------- 236
6.3.5 Armazenamento e redistribuição em Dakar ------------------------------------------------- 241
Reflexões finais --------------------------------------------------------------------------------------- 248
Referências Bibliográficas ------------------------------------------------------------------------- 250
12
Introdução
Na feira de coisas usadas Balôn, na cidade de Turim (Itália), a “xepa”
acontece após às 16 horas, quando carros e vans começam a entupir o canal
estreito, onde estavam posicionadas as bancas, em uma fila que procede lenta,
no meio de gritos e buzinas. Os vendedores juntam as mercadorias a serem
levadas embora, mas muitas permanecem no chão. As “sobras” ficam
amontoadas na espera do caminhão de lixo: são as coisas que ficaram
“encalhadas” e que, portanto, não compensa retirar e comercializar de volta.
Muitas pessoas circulam aguardando que os vendedores saiam para encontrar
e levar algo de interessante entre os montões de objetos. Frente a esses que
esperam, alguns ambulantes encenam um papel furioso. Muitos destroem as
sobras de suas mercadorias: quebram armários, pisam sobre peças eletrônicas,
arrebentam louças lançando-as no chão, rompem brinquedos. No lugar de
baixar os preços para vender os restos, como acontece frequentemente nos
mercados de rua, alguns vendedores estabeleceram, em acordo, a prática de
destruir os objetos. Essa devastação de coisas representa não apenas um ato de
provocação e de ressentimento frente aos que esperam suas saídas para catar
as sobras, mas também funciona como um dispositivo para obrigá-los a
comprar. O valor econômico das peças é paradoxalmente preservado
destruindo-as. Assim que os ambulantes deixam a praça, começa a “catação”.
Italianos, “estrangeiros”, jovens, velhos, homens, mulheres, crianças
procuram, atentas, observam, escolhem, levam, descartam. O que é rejeitado e
jogado de novo nos montões pode ser levado por outro. Os bens coletados são
levados na mão ou em sacolas, por vezes já ocupadas por outras peças. O
movimento das pessoas que coletam é silencioso.
Entre elas, reparei em um grupo que parecia proceder de forma mais
metódica e organizada. Por três sábados consecutivos as vi – eram três
mulheres, sempre as mesmas – deslocarem arrastando grandes sacos de lixo
entupidos de coisas. Em alguns momentos, elas se reuniam, conversavam,
paravam e esperavam. Chegava, depois, um carro dirigido por um homem, que
carregava todos os sacos, e elas, agora de mãos vazias, continuavam a busca,
até que, uma vez preenchido o porta-malas e os bancos, subiam no carro,
espremidas junto com as coisas, e se retiravam. Um dia, enquanto as pessoas
catavam, conversei com um menino nigeriano que me contou que elas,
também nigerianas, estavam juntando os objetos para serem revendidos na
Nigéria. Uma vez recolhida uma boa quantidade de coisas, eles as expediam
via container para aquela localidade, para serem vendidas. O que uns
consideram como “lixo” se transforma, assim, em “mercadoria” para outros1.
Foi a partir dessa observação, realizada durante a pesquisa de mestrado, que surgiu a
ideia, e a vontade, de desenvolver o projeto que originou o presente texto. O que me parecia
oportuno, para dar continuidade à etnografia que tinha produzido sobre a feira Balôn, era
seguir o fluxo das coisas (lixos e/ou mercadorias) que daqui passavam a circular em países
extra-europeus.
1 “Balôn: um mercado popular”, Vanessa Durando, UFPR, Curitiba, 2010.
13
O que logo surgiu, mapeando o campo empírico e bibliográfico para a escrita do
projeto de doutorado, foi que a prática comercial de itens usados era realizada por migrantes
de diversas nacionalidades a partir de vários países da Europa para África, assim como para
outros continentes. Esse tema já tinha amplo respaldo na literatura socioantropológica, sendo
objeto de estudo de etnografias como Congo-Paris, de Janet MacGaffey e Remy Bazenguissa-
Ganga, e Salaula: The World of Secondhand Clothing and Zambia, de Karen Tranberg
Hansen, dentre outros. Para seguir com esse tema no meu contexto de pesquisa restava,
portanto, recortar o campo, escolher uma rota que, a partir do mercado Balôn, fosse
observável e resultasse em um trabalho que acrescentasse à produção bibliográfica existente.
A minha inserção já parcialmente consolidada entre os ambulantes senegaleses que
trabalhavam na feira, a falta de pesquisas sobre esse tema na bibliografia relativa às práticas
comerciais senegalesas na Itália - as quais se referiam unicamente aos fluxos contrários (do
Senegal para a Itália) - e a minha vontade de trabalhar na África Ocidental contribuíram,
então, para realizar o recorte da pesquisa. Optei, assim, por etnografar o fluxo de coisas,
palavras e dinheiro movidos pelos comerciantes senegaleses de Turim para Dakar e, aqui,
analisar o consumo e a ressignificação econômica e simbólica das coisas.
Graças ao ingresso no curso de doutorado do Programa de Antropologia Social da
UNICAMP e ao financiamento da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo), entre novembro de 2012 e janeiro de 2013 realizei a primeira etapa da pesquisa de
campo. Nessa fase inicial, mapiei, a partir do mercado, espaços e atores envolvidos no
circuito e estreitei os laços com alguns dos colaboradores que teriam, sucessivamente,
participado da pesquisa. Nesse momento, percebi que a prática de adquirir e enviar coisas
para o Senegal não era exclusiva dos comerciantes que organizavam os containers, mas era
generalizada. Todos os meus informantes, de forma distinta, participavam desse fluxo com
múltiplas modalidades de aquisição e finalidades de envio: na Itália, as coisas podiam ser
compradas, recebidas como presentes, recolhidas como resíduos e encaminhadas utilizando
vários meios (mar, terra ou ar) até Dakar para se tornarem mercadorias, dons, objetos de uso
familiar e/ou formas de investimento. O universo pesquisado, portanto, era mais amplo do que
previa inicialmente e optei, então, por realizar um segundo recorte. Para dar conta de todas as
variáveis acima descritas, que caracterizavam o circuito, escolhi etnografar a modalidade de
envio das coisas mais complexa do ponto de vista da organização social: a exportação via
container organizada por comerciantes senegaleses que atuam também como correios,
enviando junto as próprias mercadorias, itens de seus conterrâneos.
Logo antes de voltar para o Brasil, em janeiro de 2013, um evento de ordem pessoal
14
teria contribuído a modificar o método da pesquisa. A gravidez da minha filha Gaia, esperada
há tempo por mim e pelo meu companheiro senegalês, revolucionaria a minha inserção em
campo. Aos olhos dos meus interlocutores, além de ser pesquisadora, estudante de pós-
graduação e esposa de um conterrâneo, eu me tornava a mãe de uma criança que muitos deles
passaram a tratar como “parente”.
As regras de parentesco que vigem entre senegaleses reverberavam de duas formas nas
relações que agora se estabeleciam com meus colaboradores em campo: a Gaia era
considerada “filha deles” pelo princípio patrilinear da descendência e pela lógica do
parentesco fictício segundo a qual meu marido era tido como “irmão” e, de outro lado, pelo
princípio endogâmico do casamento – eu, enquanto toubab (mulher branca, ocidental) era
considerada “esposa imperfeita”. Essa “imperfeição” nunca se tornou um elemento de
distanciamento com meus informantes, com exceção de algumas situações pontuais, mas
sempre pairou de forma implícita.
O vínculo de conjugalidade com um conterrâneo e de maternidade com uma “pel bu
ndao” (“pequena pel”, como Gaia era chamada, sendo meu marido dessa etnia) me levou, em
muitas ocasiões, a ser tratada e apresentada como “irmã” pelos meus colaboradores. O fato de
estar ocupando um lugar privilegiado e estratégico de observação em campo - que viabilizou a
análise de situações e dinâmicas que poderiam ter ficado obscurecidas ao pesquisador comum
-, transcendia, porém, a lógica do sistema de parentesco e se alinhava à partilha de
experiências. O que me aproximava a eles, de fato, era também o meu status de migrante.
Enquanto italiana que mora há vinte anos no Brasil, aos olhos dos meus interlocutores, eu era
uma pessoa que, como eles, decidiu mudar de país e se instalar em uma nova terra movida por
valores como coragem, aventura e vontade de melhorar. Esse compartilhamento de
perspectivas, ainda que consolidadas em espaços distintos, criou uma reciprocidade nos
nossos olhares que frequentemente se traduzia em empatia e, sempre, em respeito recíproco.
Nessa nova situação de mãe/esposa, conduzi a segunda etapa da pesquisa de campo
entre outubro de 2013 e março de 2014, durante a qual me concentrei nas práticas comerciais
dos meus interlocutores em Turim e planejei a ida para o Senegal. Nesse momento do
trabalho, a meu ver, já estava claro que a “solidariedade”, elemento que, segundo a maioria
dos textos socioantropológicos, ordenava as relações entre comerciantes senegaleses e, mais
em geral, entre migrantes, não representava o único regulador das relações sociais, as quais
me apareciam com evidentes matizes políticas. A obrigação de ajuda (ninbale), citada como
valor autorrepresentativo dos senegaleses, era um aspecto da moralidade dentre outros,
aparentemente contraditórios, como o prestígio (mana) e a esperteza (mousse), os quais não
15
eram explicitados nas narrativas dos meus informantes, mas surgiam como elementos
articuladores de situações e práticas por eles vividas. A partir da necessidade de explorar esses
aspectos que atuavam de forma hierarquizante, flexionei a análise em um sentido político,
utilizando, como base, a observação das práticas comerciais ambulantes na feira Balôn e em
outras regiões da cidade de Turim, as práticas de aquisição de coisas para o envio no Senegal
e a organização e expedição via container.
Quando, durante a terceira etapa da pesquisa de campo (julho de 2014 e janeiro de
2015), tinha, finalmente, conseguido planejar uma viagem para Dakar junto com um
comerciante que finalizava o fechamento de um container, no final de agosto de 2014, surgiu
o primeiro e único caso de contaminação de Ebola no Senegal. Inconsolável, desmarquei a
viagem para Dakar e finalizei o campo em Turim recolhendo narrativas sobre as práticas
comerciais que queria ter observado em Dakar.
Decidida a realizar pelo menos em parte a proposta inicial do projeto, depois do
encerramento do programa de financiamento da FAPESP, em dezembro de 2016, viajei para
Dakar, onde permaneci fazendo pesquisa por três meses, até março de 2017. Mesmo que esse
breve tempo não tenha me permitido analisar em detalhes as práticas de revenda das
mercadorias e as modalidades de consumo da forma como tinha me proposto inicialmente,
consegui realizar um mapeamento de tais dinâmicas concretizando parcialmente a ideia que
tinha animado meu projeto desde o começo, isto é, etnografar o circuito comercial até Dakar.
O trabalho que apresento, portanto, foi desenvolvido a partir do percurso acima
descrito: o projeto inicial, como muitas vezes acontece durante a realização do trabalho
empírico, foi modificado em parte por contingências externas ao contexto da pesquisa (o
nascimento da minha filha, que atrasou a ida para o Senegal; o caso de Ebola que surgiu
sucessivamente) e, em parte, por elementos que o campo sugeriu e aos quais decidi dar espaço
(a importância de outros valores além da solidariedade, os quais caracterizam as relações e as
relativas posições ocupadas pelos meus interlocutores nos processos de interação que pautam
as dinâmicas comerciais). As lógicas e as formas de operar dos valores que compõem o
sistema moral senegalês no contexto das práticas comerciais ambulantes em Turim e da
exportação e importação de coisas no Senegal representam, portanto, o objeto dessa
etnografia.
O texto está dividido em seis capítulos: no primeiro, introduzo a situação dos
senegaleses enquanto migrantes na Itália e em Turim; no segundo, apresento os meus
interlocutores a partir das narrativas por eles produzidas sobre suas trajetórias migratórias e
profissionais; no terceiro capítulo, descrevo as modalidades de atuação dos ambulantes
16
senegaleses “na praça”, aprofundando especificamente o modus operandi das mulheres; no
quarto e quinto capítulos, analiso as práticas comerciais na feira Balôn, enfatizando,
respectivamente, as modalidades formais e extra formais de venda; por fim, no sexto capítulo,
ocupo-me do circuito comercial entre Turim e Dakar e das fases que o compõem, desde a
aquisição das coisas até o escoamento dessas em Dakar.
Nas reflexões finais, além de retomar brevemente as principais contribuições da
pesquisa, lanço questões e desdobramentos possíveis a partir dela. É importante ainda dizer
que as fotos que apresento ao longo do texto são de minha autoria e que os nomes dos meus
colaboradores foram modificados para tutelar a sua privacidade.
17
Capítulo 1
Contextualizando: migrações na Itália e senegaleses em Turim
1.1 Itália, país de migração
1.1.1 A Europa e os fluxos migratórios
Nas últimas décadas, desde o final do segundo pós-guerra, assistimos ao aumento
significativo dos fluxos migratórios internacionais. Grande parte desses fluxos é direcionada
para os países ocidentais, especialmente União Europeia, Estados Unidos, Canadá e também
Austrália. Há que se observar que a atual migração de pessoas oriundas da África, Ásia e
América Latina para os países europeus não representa um fenômeno novo nesse contexto,
pois, em diversas épocas, múltiplos fluxos migratórios intraeuropeus interessaram esses
mesmos países. Segundo Saskia Sassen (2008), por séculos as principais economias europeias
atravessaram ciclos de recepção de mão de obra estrangeira seguidos por fases de expulsão,
para depois voltar a novas fases de recebimento: as migrações foram, então, caracterizadas,
segundo a autora, por uma certa ciclicidade, tanto no que diz respeito às entradas e saídas de
“estrangeiros” quanto em relação às políticas adotadas pelos Estados, caracterizadas pela
alternância entre “abertura”/“fechamento”. Tais ciclos, de forma geral, ocorreram do sul em
direção ao norte da Europa: países como Alemanha, Inglaterra e França receberam mão de
obra principalmente da Itália, Espanha e Portugal. Além disso, entre as décadas de 1950 e
1970, a esses fluxos se sobrepuseram ondas migratórias oriundas de regiões extra-europeias
(América do Sul, África e Ásia, especialmente). Esses deslocamentos populacionais foram
associados, por um lado, à crise das economias de subsistência locais – algumas regiões como
o Senegal, por exemplo, sofreram períodos rigorosos de seca – e, por outro, como decorrência
de dinâmicas de refluxo posteriores à fase colonial. A partir da década de 1980, surgiu um
fenômeno novo: os fluxos migratórios começaram a se direcionar também para os países
europeus que, tradicionalmente, exportavam mão de obra, entre os quais a Itália. A migração
na Europa passou, então, a se caracterizar, de um lado, pela ampliação das regiões de chegada
e, de outro, por uma maior diversificação dos fluxos de proveniência.
Para entender essas mudanças, é preciso enquadrá-las nos contextos econômico e
institucional nos quais estão inseridas. Na década de 60 até o começo dos anos 70, o tipo de
demanda que norteava grande parte dos deslocamentos estava vinculado ao modelo fordista-
18
taylorista da economia, traduzindo-se em contratação de mão de obra não especializada pelas
indústrias. No entanto, a partir de 1973, ano da primeira crise petrolífera, o quadro econômico
mudou radicalmente. Este ano costuma ser considerado como o marco da crise do modelo
econômico acima citado e o começo da fase pós-fordista das sociedades industriais
(PUGLIESE, 2006: 80). A partir de então, a demanda de trabalho se modifica drasticamente
em todos os países ocidentais, reduzindo-se o emprego no setor industrial ao passo que o setor
terciário se destaca em expansão: na Europa, o modelo fundado sobre a grande empresa e a
produção em massa entra em crise, assim como a organização produtiva interna às empresas e
a relação entre estas, que são, na maioria, deslocadas em países não ocidentais.
Consequentemente, a ocupação a tempo indeterminado, nesse contexto, deixa de ser uma
perspectiva para os trabalhadores, reduzindo-se o número de profissionais que atuam dentro
do sistema de garantias até então implantado. Estas mudanças, de caráter econômico, se
refletem tanto sobre a forma de inserção dos migrantes no mercado de trabalho - aumento de
atividades temporárias e no setor informal – quanto nas dinâmicas de ocupação do espaço,
resultando em uma maior mobilidade e circulação dos sujeitos.
As mudanças dos fluxos acima citados – áreas de proveniência e destinação - geraram,
por parte dos Estados e da Comunidade Europeia, uma “preocupação política” (TAPINOS,
1996 apud PUGLIESE, 2006: 84) até então desconhecida, que passou a nortear a produção de
novas normas voltadas a regular as migrações internacionais. Se, anteriormente, os países de
destinação tinham exercitado um controle relativamente frouxo sobre os fluxos migratórios,
reconhecendo-os, inclusive, como fator de crescimento econômico, a partir de 1973 a
aplicação de políticas restritivas tanto pelos estados quanto por parte da Comunidade
Europeia passa a ter um papel cada vez mais significativo. O argumento alegado para
justificar essas resoluções é que os países europeus teriam alcançado “o limite” de presenças
“estrangeiras”. Esse discurso, que, como veremos, contradiz os dados, revela uma perspectiva
substancialmente discriminatória de tais políticas e contribuiu para a definição da Europa
como “fortaleza” (RICCIO, 2007). A partir dos anos 80, soma-se outro fator a esse quadro: as
políticas da migração começam a distinguir cada vez mais marcadamente entre cidadãos da
Comunidade Europeia (e sucessivamente da União) e os que têm origens externas, definidos,
em contexto italiano, com o termo “extracomunitários” (TAPINOS, 1996 apud PUGLIESE,
2006: 85). Essas distinções, que se tornam mais complexas a partir de 2004 com a entrada na
União dos países do leste europeu e, em 2007, da Bulgária e Romênia, os quais passaram a ser
classificados como “neocomunitários”, geraram uma “estratificação cívica” entre imigrantes
de origens diversas (MORRIS, 2002; LOCKWOOD, 1996). Essa noção aponta para um
19
acesso diferenciado aos direitos de cidadania, implicando o usufruto de direitos sociais
distintos por aquele denominados “comunitários”, “extracomunitários” e “neocomunitários”,
sendo os segundos penalizados em relação aos outros. Mais recentemente, a classificação
acima indicada é complementada pela categoria de “refugiados”. Atualmente, com o
agravamento da crise política na Síria e o aumento exponencial dos expatriados, a União
Europeia está assumindo uma posição de fechamento em relação a tal situação, o que desafia
as normas estabelecidas na Convenção de Genebra (1951) e na Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948). De fato, a política europeia de controle em relação à entrada de
refugiados nos países membros vem se exacerbando e assumindo caráter repressivo, em
especial em relação às entradas irregulares, que representam a forma mais comum de chegada,
principalmente nos Estados fronteiriços (Itália, Espanha, Grécia). Nestes países, estão sendo
tomadas medidas de contenção por meio do agrupamento e detenção das pessoas em
estruturas, frequentemente precárias, onde são presas por longos períodos (na Itália até
dezoito meses), ou encaminhadas para um penoso itinerário de deslocamentos de um centro
para outro, com a finalidade de realizar sua “identificação” e, sucessivamente, serem
acolhidas ou expatriadas.
O aumento desses fluxos migratórios tem alimentado na Europa a consolidação do que
pode ser considerada a “síndrome da invasão” (PUGLIESE, 2006), dominante tanto no senso
comum quanto no discurso midiático e político dos países europeus. Nesse contexto, tem
ainda que se considerar que a constituição do Estado Islâmico (2014), os ataques terroristas
por ele promovidos e sua propaganda político-religiosa, norteada pela ameaça ao “mundo
ocidental”, têm impactado fortemente a percepção (e recepção) dos migrantes e refugiados
oriundos do Oriente Médio e África norte-ocidental. O espectro do “terrorismo islâmico” tem
perpassado em larga medida as políticas migratórias marcadas pela restrição à circulação dos
migrantes pelas fronteiras, assim como no interior dos estados europeus, nos quais, em muitos
casos, sofrem situações explicitas de estigmatização. A condição do refugiado, principalmente
de nacionalidade síria, iraquiana e nigeriana, transita assim a um paradoxo: de sujeito “frágil”,
que busca amparo na nação de chegada, sua imagem é transformada em pessoa “brutal” que
pode ameaçar o país. “O risco de infiltrações de terroristas entre os migrantes irregulares”,
principalmente entre 2014 e 2017, ganha, assim, destaque, tornando-se discurso corrente para
se justificar atitudes discriminatórias e reforçar o controle dos fluxos migratórios sob o lema
da “segurança nacional”.
20
1.1.2 Características das (i/e)migrações na Itália
A Itália, tradicionalmente considerada “país de emigração”, tornou-se, ao longo da
segunda metade do século XX, “pais de imigração”. O momento de transição é geralmente
individuado em 1973, ano já assinalado, quando, pela primeira vez, o número das entradas no
país supera o das saídas (VIAZZO, 2008: 7). A Itália, então, começa a receber migrantes em
concomitância com a fase de mudanças políticas e econômicas acima citadas: enquanto os
países europeus, que até então tinham sido lugares de chegada dos fluxos, começam a
regulamentar tais deslocamentos com políticas de fechamento, a Itália, e sucessivamente
Espanha, Portugal e Grécia, se torna destino das migrações. A razão do direcionamento dos
fluxos migratórios para esses novos lugares pode ser atribuída, em parte, à dificuldade de
ingresso nos outros países europeus.
O quadro das migrações na Itália é caracterizado por dois fatores fundamentais, que o
torna peculiar em relação ao resto da Europa: o começo dos fluxos migratórios representou
um fenômeno inesperado, tanto é que não existiam normativas locais que o regulassem, e se
inseriu num contexto de migrações internas e de regresso de migrantes italianos que haviam
emigrado no exterior2, constituindo, assim, uma realidade complexa e estratificada. O início
do processo massivo de ingresso de “estrangeiros” tem sido localizado em 1975, quando se
registrou um saldo migratório de 30.000 unidades, valor modesto, mas simbólico, pois
representa o começo de um fluxo que se intensifica de forma exponencial e segue até hoje.
Dez anos depois, em 1985, os vistos de permanência subiram para 400.000, mas o fenômeno
ainda não era percebido com apreensão: esse sentimento surgirá no começo da década de 90,
quando a chegada de 20.000 refugiados albaneses desencadeou uma “crise migratória”
(VIAZZO, 2008: 8), caracterizada por alarmismo e xenofobia por parte da mídia e opinião
pública. Tais reações qualificam e acompanham os processos migratórios também atualmente,
o que tem gerado impactos políticos e sociais dos quais se tratará adiante.
Em 2000, o número de vistos de permanência concedidos pelo governo italiano a
estrangeiros aumentou de forma significativa, passando para 1,34 milhão. No ano seguinte, as
estatísticas revelam que os residentes “estrangeiros” são 1,24 milhão, número que dobrou em
4 anos, chegando a 2.402.157 (VIAZZO, 2008: 10). Se tem um progressivo aumento dos
2 As regiões do norte do país tinham sido, desde o pós-guerra até a década de 60, meta de migrações de pessoas
oriundas das regiões do sul, principalmente rurais, que se mudaram para encontrar trabalho como mão de obra
não especializada nas grandes indústrias de cidades como Milão e Turim. Por outro lado, muitos dos italianos
que tinham migrado para outros países europeus, como a Alemanha, voltavam à pátria pelas medidas restritivas
que nestes estavam sendo implantadas.
21
ingressos até 2017 quando, por conta também dos acordos que a Itália estabeleceu com a
Líbia sobre a contenção dos fluxos, o número das chegadas caiu drasticamente3. Atualmente
os dados IDOS4 5.260.000 migrantes residentes no país (IDOS, 2019), os quais representam
8,7% da população total. Em relação à distribuição territorial, desde o início observa-se que os
fluxos dos migrantes se concentraram principalmente nas regiões ao norte do país. Em 2017,
60,1% de estrangeiros residentes estão alocados no Norte, 25,4%, no Centro e 14,6%, no Sul:
a migração regular e estável se concentra, então, nas áreas setentrionais, que atraem o maior
número de mão de obra.
A composição da comunidade de migrantes variou muito ao longo dos anos. Se, em
uma primeira fase, e por um longo período, a população marroquina era a mais numerosa,
entre 2005 e 2010 esta foi superada pela comunidade romena, que até o final dos anos 90 não
estava incluída na lista das vinte nacionalidades mais representativas. No começo de 2015,
segundo as estatísticas ISTAT, temos 5.014.437 residentes “estrangeiros” e as principais
nacionalidades em ordem de presença são as que seguem:
Tabela I: Residentes “estrangeiros” na Itália em 2015, por nacionalidade. ISTAT
A composição apresentada acima é muito diversa daquela observada na década de 80,
quando era mais consistente o fluxo migratório constituído por mulheres filipinas, cabo-
verdianas, eritreias, somalis e salvadorenhas, e por homens marroquinos e tunisinos. Desde o
3 Em 2017 o número dos migrantes que entram no país pelo mar, a rota de acesso mais utilizada, corresponde a
119.310, um terço a menos dos que ingressaram no ano anterior. As chegadas diminuíram ainda em 2019,
contabilizando 7.521 casos. Essa ulterior redução é devida também ao número de mortos e desaparecidos durante
a travessia no Mediterrâneo: se pense que, de janeiro até outubro de 2019, 1.314 pessoas embarcaram e
faleceram ou sumiram no mar. 4 Centro Studi e Ricerche Immigrazione Dossier Statistico (2019).
22
começo da experiência de recepção de migrantes, pode-se observar uma variedade ampla de
nacionalidades e etnias, o que faz a migração para Itália um caso de interesse. Na região
metropolitana da cidade de Caserta, por exemplo, que não era uma área de marcado
desenvolvimento econômico, no final dos anos 80, contava-se a presença de vinte e sete
nacionalidades diversas (PUGLIESE, 2006: 109-10). Atualmente, as primeiras cinco posições
são ocupadas pelas mesmas nacionalidades, enquanto as sucessivas correspondem a migrantes
de origem oriental (Filipinas, Índia, Bangladesh) e africana (Egito e Nigéria). A presença dos
migrantes senegaleses, ainda que tenha diminuído em relação a de outras nacionalidades, se
manteve com um aumento médio do 8% entre os anos 2015 e 2017.
Outra característica dos fluxos migratórios na Itália é a composição de gênero: o
componente feminino sempre foi muito numeroso e hoje supera, de pouco, as presenças
masculinas. Se, por um lado, temos um relativo equilíbrio numérico, por outro existe uma
disparidade em relação ao país de proveniência: a percentagem masculina é preponderante em
algumas nacionalidades, como a magrebina e senegalesa, como veremos à frente, enquanto a
feminina caracteriza as nacionalidades do Leste Europeu (Romênia, Ucrânia) e Filipinas. Em
geral, esse segmento se dedica ao trabalho doméstico e cuidado aos idosos, enquanto o quadro
é mais complexo no caso dos migrantes de sexo masculino.
Do ponto de vista ocupacional, os migrantes têm sua trajetória marcada pelas
mudanças que caracterizaram a passagem da economia local pela fase pós-fordista. Na Itália,
como em outros países tradicionais de chegada, o incremento das atividades no setor terciário
e o aumento do caráter temporário do trabalho marcam as práticas profissionais atuais. Isso
tem uma importante consequência, que aprofundaremos melhor em seguida, observando o
caso senegalês: a instabilidade da ocupação na Itália pode contribuir a viabilizar um modelo
circular de migração, que se dá entre o país de chegada e o de origem5. Um fator que a
princípio poderia ser qualificado como negativo, então, nesse caso figura como um fator que
organiza o sistema de vida e trabalho desse grupo.
Atualmente, porém, segundo Saskia Sassen, esse modelo de migração vem sendo
afetado pelas políticas de “fechamento das fronteiras” europeias (2008: 23), processo do qual
resultou, em alguns casos, a consolidação de certas “comunidades estrangeiras” na Europa.
Na Itália, por exemplo, encontram-se os dois modelos: enquanto a comunidade romena pode
ser considerada relativamente fixa, em especial pela alta percentagem de mulheres
empregadas em trabalhos domésticos estáveis, a comunidade senegalesa, marcada por
5 Sobre migração circular ver HUGO, 2003; HAAS, 2005; BIECKMANS & MUSKENS, 2008.
23
tendência à atividade comercial, apresenta menor estabilidade na medida em que muitos dos
seus integrantes se deslocam com frequência, num “vai e vem” entre Itália e Senegal
(CASTAGNONE ET ALL., 2005).
Pugliese (2006) observa, com relação ao caso italiano, haver uma tendência à
estabilização dos fluxos migratórios como decorrência do processo de produção de
reagrupamentos familiares, casamentos “mistos”, seja entre italianos e “estrangeiros”, seja
entre migrantes, assim como em razão do número, cada vez mais elevado, de crianças
nascidas na Itália, tendo pelo menos um dos pais estrangeiro. De acordo com esse autor, em
2006, o número de reagrupamentos familiares representava cerca de um quarto da soma total
dos vistos de permanência emitidos, o que indicava o caráter já maduro da migração na Itália
(PUGLIESE, 2006: 111)6. Outro dado que precisa ser destacado é relativo aos nascimentos:
em 2012 os nascidos de pais estrangeiros foram cerca de oitenta mil, ou seja, 15% dos
nascimentos, que somados aos filhos de pais italianos e estrangeiros chega a cento e sete mil,
ou 20,1% do total. Em 2013, foram principalmente os reagrupamentos familiares (76.164
vistos de permanência) e os próprios nascimentos (77.705) os responsáveis pelo crescimento
da população imigrada: não se pode, então, ignorar a importância desta segunda geração de
jovens7, filhos de migrantes, que, por causa da legislação vigente8, permanecem na condição
de “estrangeiros” residentes no país, não possuindo a nacionalidade italiana.
Às modificações qualitativas e quantitativas da migração na Itália tem correspondido,
ao longo dos anos, mudanças no campo das políticas. Depois de uma primeira fase, durante a
qual não existiam regulamentações específicas relativas ao ingresso no país e à permanência
de “estrangeiros”, a partir de 1986 foi decretada a primeira intervenção normativa, por meio
da qual o fenômeno migratório passou a ser reconhecido como fato significativo. Essa lei
contemplava unicamente a regulamentação dos migrantes enquanto “trabalhadores
dependentes”, isto é, empregados em empresas, o que refletia a convicção de que os migrantes
chegassem na Itália para satisfazer a demanda de emprego em tais contextos, subjugando a
complexidade do fenômeno migratório e a sua variada composição, caracterizada por uma
inserção ocupacional muito mais articulada e complexa, que incluía vendedores ambulantes,
6 Em relação aos casamentos, entre 2011 e 2012, foram realizadas 30.724 uniões, sendo pelo menos um dos
cônjuges estrangeiro. Desse total, 20.764 representam casais “mistos”. Esse número aumentou de cinco mil
unidades em relação ao ano anterior e equivale a 15% do total dos casamentos realizados no país (CARITAS,
2013: 12). 7 Ainda em termos numéricos se pense que os inscritos “estrangeiros” nas escolas no ano escolar 2013-2014
foram 802.785, 9% dos inscritos, dos quais, 51,7% nascidos na Itália. 8 Esta prevê a obtenção da nacionalidade pelo jure sanguinis, isto é, sendo filhos ou descendentes de cidadãos
italianos.
24
empregadas domésticas, artesões etc. (PUGLIESE, 2006: 126). A sucessiva lei Martelli9, de
1990, que teve uma função integrativa em relação à anterior, passava a aceitar oficialmente a
presença dos migrantes que vivem e trabalham na Itália, atribuindo-lhes não somente os
direitos de trabalho, mas também à saúde. Apesar da maior articulação dessa normativa, a
realidade institucional italiana se mostrou ainda despreparada para administrar o processo, de
fato, na segunda metade dos anos 90 aumentou a incidência de pessoas sem visto de
permanência.
Em 1995, foi apresentado um decreto contendo normas relativas às políticas sociais e
um novo plano de regularização do processo migratório mais restrito que o anterior. Mas foi
somente em 1998 que a Lei Turco-Napolitano regulamentou a matéria10. Se, por um lado, essa
normativa ampliou os direitos sociais dos migrantes, por outro tornou-se mais rígida em
relação aos ingressos. Foi formulada atendendo às orientações da União Europeia e, também,
às exigências da opinião pública, que se fez mais hostil em relação ao fenômeno migratório.
Em relação a seu impacto, observa-se que os mecanismos de controle se tornaram mais
rígidos e a aplicação das políticas sociais, inadequada. Considerada demasiadamente
permissiva, essa legislação foi alterada pelo governo de centro-direita eleito em 2001, que
promoveu, no ano seguinte, a Lei Bossi-Fini11. Segundo Pugliese (2006), um aspecto
significativo dessa lei é a sua incoerência, pois permitiu a muitos migrantes se tornarem
regulares e ao mesmo tempo dificultou a renovação do visto de permanência de quem já o
9 Esta lei incluía a possibilidade de regularização da permanência dos migrantes independentemente da
colocação profissional, o que resultou na formalização da permanência de 240.000 pessoas. Do ponto de vista
das políticas sociais, a lei disponibilizava fundos destinados ao acolhimento dos imigrantes e estabelecia que as
demandas fossem geridas pelos entes locais. Este dado revela uma postura substancialmente fechada das
políticas institucionais italianas, que, refutando o reconhecimento da cidadania jurídica, lhe negam o direito ao
voto e moldam sua inserção social, política e econômica no contexto onde operam. De fato, ainda que o status
jurídico de “cidadão” não garanta a igualdade de condição destes com a comunidade de chegada, assegura o
acesso aos direitos institucionais e sociais. Esta privação, do ponto de vista formal e legislativo, faz permanecer
as pessoas em uma dimensão de “fraqueza” em relação aos “cidadãos nacionais”, pois “filtram um conjunto de
dinâmicas políticas muito mais amplo de quanto seu status formal poderia suportar” (SASSEN, 2008: 14). 10 As novidades dizem respeito às condições de permanência dos migrantes e as modalidades de expulsão: se,
por um lado, se facilita a permanência regular através da constituição da “carta di soggiorno”, documento que
permite permanecer a tempo indeterminado no país depois de cinco anos de estadia com visto regular, pelo
outro, as medidas relativas às expulsões se tornam mais rígidas com a instituição dos ditos “centri di
identificazione ed espulsione” (CIE), espaços de detenção onde os migrantes “clandestinos” e quem cometeu
reatos considerados “graves” (“atentar contra a ordem pública”) são detidos e sucessivamente expulsos. Esta lei
visa também garantir alguns direitos sociais aos migrantes: a “carta di soggiorno” se estende também ao cônjuge
e aos filhos de menor idade, o reagrupamento familiar é garantido para os parentes assim como a assistência
sanitária pública, é prevista uma ação civil contra qualquer ato de discriminação racial, étnica ou religiosa. 11 Esta lei promove a regularização dos migrantes que acessaram informalmente no país e entende tornar mais
rígido e seletivo o ingresso regular dos novos migrantes (eliminando, por exemplo, as normas relativas ao
ingresso para procura de trabalho) assim como o processo para a renovação do visto de permanência, reforçando
as formas de repressão em relação aos “clandestinos” e irregulares (a permanência sem visto, por exemplo, passa
a ser considerada reato, punível com a prisão).
25
possuía, colocando em condição de irregularidade trabalhadores que até então tinham atuado
formalmente (2006: 133). Nos últimos anos, tem se sucedido a formulação de diversos
decretos de reajuste e a palavra “segurança” é a que mais aparece para qualificar as
normativas, revelando a crescente preocupação que acompanhou a intensificação dos fluxos.
Essa tendência, em 2018, culmina em uma ulterior reformulação da lei propósta pelo então
Ministro do Interior, Matteo Salvini (sucessor de Bossi, líderes do partido ultradireitista Lega
Nord). O novo decreto endurece tanto as medidas que possibilitavam o ingresso no país,
quanto as que se referem aos pedidos de regularização do visto de permanência e cidadania;
por outro lado triplica o valor financeiro investido para viabilizar a repatriação dos
migrantes12.
Considerando em perspectiva as resoluções institucionais adotadas pelo governo
italiano, percebe-se que, por um lado, estas têm se alinhado com as demandas de fechamento
de fronteiras da União Europeia e, por outro, têm sido acatadas e potencializadas,
principalmente por partidos conservadores e populistas, as exigências da opinião pública, que,
ao longo dos últimos anos, tem se tornando mais excludentes diante do contexto de crise
econômica e a ameaça de ataques terroristas associados à estabilização crescente, até 2017, do
Estado Islâmico. A definição da imigração como um “problema” é formulada a partir de uma
orientação que, segundo Pugliese (2006), parece “ter mais uma matriz ideológica”, da qual
resultam tomadas de posições preconceituosas às quais participam, do ponto de vista político,
tanto partidos de direita como de esquerda. O temor às reações do eleitorado nacional, que
deseja o fechamento, é um fenômeno que caracteriza há tempo as políticas dos países da
União Europeia. Daí uma crescente convergência no sentido da adoção de políticas restritivas
à imigração, que contrastam com o fato de os migrantes satisfazerem uma crescente demanda
de mão de obra especialmente por certos segmentos do mercado de trabalho.
Segundo Sassen (2008), a representação negativa sobre imigração baseia-se num
equívoco. Se esta é considerada simplesmente como o resultado da escolha de indivíduos que
buscam uma vida melhor, o fenômeno será visto, pelo país que os recebe, “como um processo
exógeno originado e configurado por condições externas a si próprio” (2008: 43).
12 Dentre as mudanças formalizadas pelo novo decreto temos: a abolição da proteção humanitária e a sua
substituição com um visto de permanência temporário para alguns “casos especiais” (vitimas de violência ou
abuso, pessoas oriundas de países em “excepcional situação de calamidade” etc.); o bloqueio dos pedintes asilo e
dos migrantes irregulares nas áreas de fronteira. Esse novo contexto legislativo contribui para que o ano 2019
tenha sido definido pela IDOS (Centro Studi e ricerche sull´immigrazione) como “annus horribilis” para a
imigração.
26
Consequentemente, tal país terá um papel passivo em relação ao processo, considerado fora
do próprio alcance, e sua função se limitará a encontrar um nicho para abrigar essa população.
Segundo esta perspectiva, na medida em que algumas das situações que caracterizam as
regiões de origem dos migrantes, como pobreza, sobrepopulação, conflitos, se agravam,
haverá paralelamente um crescimento da migração, e os países receptores reagirão
representando tal deslocamento como uma “invasão”. Tal discurso é, então, usado como
justificativa para a adoção de medidas restritivas. Essa visão, porém, desconsidera que as
condições econômicas, políticas e sociais do país receptor contribuem de várias maneiras para
estabelecer os parâmetros dos fluxos migratórios, garantindo sua continuidade de forma que
as migrações passam a ser parte integrante de como esses sistemas econômicos e sociais
operam e se reproduzem. Do ponto de vista global, por exemplo, esses países deveriam
reconhecer que quando optam por deslocar a produção de produtos para outros países, se
beneficiando de mão de obra a baixo custo, estão criando as pontes para futuras migrações
(SASSEN, 2008: 19). Isso sem contar os movimentos migratórios dos países que tiveram um
passado colonial. Sassen conclui: “Se o tamanho e a duração do fenômeno estão moldados
pelas condições existentes nos países de chegada, significa que razoáveis e eficazes políticas
migratórias são possíveis. Gerir, estruturado e condicionado, o fluxo migratório é muito
diferente de controlar uma ‘invasão’” (2008: 20) 13.
1.2 Representação da mídia e da opinião pública sobre migração: “a síndrome
da invasão”
Como mencionado acima, a migração tem sido qualificada como um “problema”
social e político pela União Europeia e os estados que a compõem, os quais, a partir de 1973,
passaram a promover políticas migratórias restritivas, alegando ter alcançado o “limite” de
ingressos. Este discurso, na Itália, é compartilhado pela imprensa e opinião pública que, com
a intensificação dos fluxos migratórios ao longo dos anos, passaram a pautá-los sob o
qualificativo “invasão”. Este tema se insere em um modelo representativo consolidado que
13 Como ainda a autora sugere, por exemplo, observando de forma mais atenta e sistêmica o fenômeno, as
políticas poderiam levar em conta as práticas dos fluxos circulares, que, como veremos no caso dos senegaleses,
estão vinculadas principalmente à integração da economia familiar nos países de origem, e incentivá-las
facilitando o trânsito trans-fronteiriço. De fato, as estatísticas indicam que quando os migrantes informais são
regularizados, frequentemente, estabelecem a própria residência permanente no país de origem e trabalham
poucos meses por ano no país de chegada. Isto se dá principalmente porque, existindo uma grande diferença de
renda entre estes países, é suficiente uma permanência limitada no país de migração (2008: 24).
27
retrata a migração como a chegada de “milhares de pessoas pobres” que buscam, no país
receptor, “uma vida melhor”.
No discurso midiático, a retórica da “invasão” toma forma metaforicamente em
reportagens que veiculam imagens do desembarque de migrantes nos litorais das regiões sul
do país. Esses fatos são caracterizados com alarmismo, sensacionalismo e, frequentemente,
ambiguidade. Para mostrar como essas narrativas se articulam, tomarei como exemplo uma
reportagem do dia 31 de julho de 2015, publicada no site da RAI (Radio Televisione Italiana),
intitulada: “Desembarques na Sicília: 4.000 imigrantes nas últimas 36 horas” 14.
O jornalista-repórter, posicionado na frente de um barco repleto de pessoas, atracado
no cais de Porto Empedocle, abre assim reportagem:
Nas últimas horas, estão chegando milhares de pessoas, mas não é uma
emergência, na realidade é a anunciada volta das boas condições climáticas
e, naturalmente, sempre o mesmo problema ligado à crise síria e libanesa, e,
então, à chegada de milhares de pessoas, imaginem, 4000 nas últimas 36
horas (ibidem).
A informação é construída de forma ambígua: de um lado se enfatiza ser grande o
número de migrantes que chegam através do Canal de Sicília (“milhares de pessoas”,
reiterado duas vezes), do outro, isso é qualificado como um acontecimento que não deve
suscitar um estado de “emergência”. Essa ambiguidade acompanha a matéria toda, que é
formulada a partir da tensão entre esses dois elementos. A essa fala, o jornalista do estúdio
rebate salientando a grande quantidade de pessoas que estariam se deslocando. Suas palavras
evocam a imagem ameaçadora “de uma iminente invasão”:
E estas notícias dos serviços secretos..., que falam de milhares e milhares de
pessoas prontas para serem colocadas sobre navios mães e barcos para
chegar até os litorais italianos, também estas... não é a primeira vez que as
escutamos... 15 . (Ibidem)
Os migrantes são representados não como agentes, pessoas ativas que articulam seus
próprios deslocamentos, pois “seriam colocados sobre os navios” por terceiros. Quem atua,
sujeito aqui subentendido, são gli scafisti (atravessadores, em português), articuladores das
14
Disponível em: <http://www.rainews.it/dl/rainews/media/Video-sbarchi-nelle-ultime-36-ore-4000-migranti-
022b5d89-61d2-417c-8069-3bce824ec830.html.>. Acesso em 20 ago. 2015. 15 Na fala sucessiva, o jornalista informa que, segundo o chefe do Estado-Maior, a quantidade de pessoas
chegando no país teria aumentado 224% entre 2012 e 2013.
28
travessias e alvos dos órgãos de segurança16. “O problema”, prossegue o repórter, é ligado a
um “fluxo” de pessoas que fogem das guerras nas áreas citadas e das regiões “pobres” da
África Subsaariana: a primeira componente seria intermitente, enquanto a outra é “constante,
não para”. Quem compõe esse fluxo são “pessoas pobres”, expressão que não se refere
somente à condição de fragilidade socioeconômica, mas tem também uma conotação moral.
Frente a esse êxodo, o jornalista destaca a importância da operação militar Mare nostrum,
instituída em 2014 e finalizada com o resgate dos navios em dificuldade, citando o custo da
operação (“nove milhões de euros por mês”) e sua eficácia em relação à diminuição de
naufrágios17. A reportagem conclui retomando a questão inicial, relativa ao caráter
emergencial do acontecido, mas de forma invertida: se, no começo, o jornalista afirmava
ambiguamente que a chegada de “milhares de migrantes” não representava uma
“emergência”, depois de ter especificado a natureza contínua do fluxo, termina alegando que
“então não se trata de uma emergência imprevista, trata-se de uma emergência que dura há
anos”. Temos, então, uma exaltação da gravidade do fato, negada no começo e explicitada
dramaticamente no final. A importância dada ao caráter contínuo do fenômeno torna o
acontecimento um dos numerosos casos de desembarques, que constituem uma situação de
“emergência permanente”.
Se o discurso midiático certamente impacta a opinião pública, representa também seu
espelhamento. O estereótipo dos fluxos migratórios como “invasão de pessoas pobres” é
reproduzido também por muitos italianos: é comum escutar esse tipo de discurso em lugares
públicos (bares, ônibus, feiras), onde pode assumir tons inflamados e se transformar em
situações de conflito. Desde que comecei minha pesquisa de campo em Turim, em 2012,
percebi um aumento da intolerância, justificado, por muitas pessoas, pela “crise econômica”.
O discurso anti-imigração na Itália se fez mais explícito e agressivo nos últimos anos, e se
caracteriza principalmente por narrativas que retratam: o aumento da ilegalidade, que seria
reconduzido aos migrantes, o que motiva a exacerbação da intolerância em relação, por
exemplo, às atividades informais realizadas por eles; a demanda por intervenção dos aparatos
de segurança, dos quais se espera serem mais presentes e eficientes; a atribuição da redução
16
Nesse sentido, em março 2015, foi instituída uma nova operação, a “agenda para a imigração”, que previa a
captura e destruição, pelas forças militares, das estruturas ilegais que sustentam a imigração. A operação incluía
“alto risco para terceiros” (os migrantes envolvidos). 17 É importante também salientar o traço nacionalista do nome desta operação militar, de fato, “nostrum”, em
latim “nosso”, qualifica de forma possessiva o território onde os resgates são realizados, e, consequentemente,
caracteriza a chegada dos migrantes como infração de tal espaço. Mas além do sentido literal do termo, a
expressão “mare nostrum” era usada pelos antigos romanos, na época do império, para definir o Mar
Mediterrâneo e, sucessivamente, foi adotada por Benito Mussolini na propaganda fascista, principalmente em
contexto colonial.
29
dos postos de trabalho devido ao aumento do número de migrantes empregados com um
salário menor; as reivindicações contra o Estado, entre as quais, uma das mais comuns é que
este estaria garantindo políticas de apoio aos migrantes em detrimento da população que se
considera “autóctone” 18. Essas narrativas anti-imigração não representam uma novidade,
pois já em 2000 eram utilizadas para se qualificar as “crises urbanas”, como eram definidas
por Allasino, Bobbio e Neri (2000), isto é, os conflitos interétnicos de matriz principalmente
racial e religiosa que se davam entre italianos e “estrangeiros”, agravados, sucessivamente,
pela sombria ameaça dos ataques terroristas do Estado Islâmico, o qual se acreditava
alimentar-se de ativistas que chegam como refugiados nos países da União Europeia e por
meio do recrutamento de migrantes de primeira e segunda geração já estabelecidos.
O fato de as migrações, hoje, serem encaradas com posturas de fechamento e
preconceito, segundo Sassen, não é novidade: também os fluxos intereuropeus eram
acompanhados de episódios de violência e discriminação. De fato, “argumentos equivalentes
eram usados no passado para os migrantes que pertenciam ao mesmo grupo religioso, racial e
cultural” (2008: 16). Existe, então, uma tendência a reproduzir tais temas como clichê,
esvaziados de um conteúdo concreto: se trata de perceber o “outro” em termos
“etnocêntricos”, como sugerido por Levi-Strauss (1952), uma vez que em situações
especificas, esse outro é qualificado com traços raciais, religiosos e/ou culturais “negativos”.
Essa postura é assumida não somente pela população local em relação aos migrantes, mas
também pode ocorrer entre os próprios migrantes, especialmente entre quem está estabelecido
há mais tempo e os recém-chegados (VIAZZO, 2008; PUGLIESE, 2006).
Contrastam com muitas dessas representações alguns dados sobre migração que não
são veiculados pela grande mídia, permanecendo desconhecidos por parte da opinião pública.
Os números percentuais das pessoas que migram desconstroem a imagem do “êxodo” e da
“invasão” apresentada acima. De fato, representam “uma pequena percentagem da população
de um país” (SASSEN, 2008: 21), de forma que em relação aos países de chegada, a
incidência é moderada considerando-se o número da população total residente. Por outro lado,
18Como exemplo desse discurso pode-se considerar a situação apresentada nessa reportagem, publicada no
endereço da rede social Facebook do partido político Lega Nord,
https://www.facebook.com/LegaNordUfficiale/videos/930568423652751/?pnref=story, na qual são entrevistados
italianos que declaram ter perdido emprego e casa, e agora moram em trailers estacionados nas ruas da cidade de
Roma. No subtítulo lemos: “Inacreditável! Assista e compartilhe. Italianos obrigados a morar em trailers
enquanto as casas vão para os clandestinos”, onde por “casas” se entendem as “casas populares” que a prefeitura
designa para os cidadãos (italianos e estrangeiros) em situações socioeconômicas precárias. Para uma análise
antropológica do discurso político da Lega Nord consultar: ARBARELLO, Alessandro. Non nelle mie contrade.
Un´etnografia padana per un´antropologia delle societá complesse. In: SACCHI, Paola & VIAZZO, Pier Paolo
(orgs.) Piú de um sud. Studi antropologici sull´immigrazione a Torino, Milano: 2008.
30
existe também um consistente fluxo de retorno aos países de origem, quando as condições
políticas e militares o permitem. Em relação à percentagem de presenças “estrangeiras” na
Itália, a incidência de 8,7% representa uma média modesta em relação a outros países
europeus. Um aspecto positivo é que, até 2017, as novas presenças têm compensado os baixos
índices de natalidade da população local19. Para além disso, as condições de vida dos
italianos, hoje, dependem, em larga medida, dos migrantes, que garantem o funcionamento de
setores do mercado de trabalho abandonados pela mão de obra nacional, provendo, por
exemplo, a assistência aos idosos, profissão realizada por muitas mulheres migrantes,
substituindo, assim, um serviço que o sistema público não garante (PUGLIESE, 2006: 57).
Também do ponto de vista econômico, a riqueza que os migrantes têm produzido é
indispensável ao equilíbrio financeiro do país. Segundo os dados indicados no dossiê “Il
valore dell´immigrazione” 20, realizado pela Fondazione Leone Moressa, em 2014, eles têm
contribuído com 8.8% do PIB (Produto Interno Bruto) e as empresas, com 8,2% do total das
empresas nacionais. Portanto, se no plano das representações do senso comum a migração é
pensada como resultante de uma condição de “pobreza” econômica, as contribuições
econômico-financeiras que aporta ao país são atualmente indispensáveis.
Apesar dessas evidências (contribuição financeira – deve-se levar em conta também o
crescimento do consumo de produtos extraeuropeus, mobilizado pelo chamado “comércio
étnico” -; e contribuição demográfica), as políticas permanecem definindo a interação entre as
pessoas que migraram e os italianos por meio do termo “integração”. Essa noção, que
pressupõe um encontro dualista e antagônico entre dois sujeitos genéricos (“migrante
estrangeiro” versus “italiano autóctone”), reverbera uma perspectiva hierarquizante e
englobadora, apontando para a assimilação do outro, para a incorporação de algo externo, ao
qual é negada, a priori, qualquer forma de contribuição, pois deve passar a compor um todo
concebido como inalterável. Essa expressão, assim como o termo “extracomunitários”
regularmente usada para indicar os migrantes extraeuropeus, revela o ethos da relação que,
não somente o Estado, mas também grande parte dos italianos mantêm com os migrantes, o
19 Essa tendência tem diminuído nos últimos 2 anos: se até 2017 os migrantes têm sustentado os índices dos
nascimentos, em 2018 se registra uma diminuição de 3,7% (CARITAS, 2018) que contribuiu, em 2019, para uma
crise demográfica no país. Enquanto se sustenta a retorica da invasão “estrangeira”, de fato, a Itália alcança o
recorde negativo de nascimentos em 2018 (4% negativo) e sofre pela migração de jovens e recém-formados no
exterior (128.000 pessoas expatriaram em 2018, dos quais o 40% tem entre 18 e 34 anos). Essas situações fazem
com que a Itália seja, hoje, a nação com idade média mais elevada da Europa, junto com a Alemanha (ISTAT,
2019). 20
É o resultado de um projeto que tem como objetivo contrastar a reprodução de estereótipos sobre as atividades
econômico-financeiras da população imigrante veiculados pela mídia. Disponível em:
http://www.fondazioneleonemoressa.org/newsite/immigrazione-e-stereotipi-2/. Acesso em: 23 de junho de 2015.
31
qual está pautado pela crença, equivocada, que as pessoas que se deslocam o fazem
unicamente por necessidade, decidindo trocar o lugar de origem por um país que consideram
“melhor”. Essa interpretação sobre a natureza da prática migratória se torna, então, um
paradigma a partir do qual se desdobra a expectativa segundo a qual a inserção do outro
deveria seguir um itinerário dedutivamente moldado pelos pressupostos acima citados: se os
migrantes, sujeitos frágeis, abandonam o próprio país e passam a viver e trabalhar em um
lugar “melhor”, que lhe oferece, potencialmente, a possibilidade de prover às suas
necessidades, eles devem se adaptar ao novo contexto, no qual possuem mais deveres do que
direitos. Essa é a lógica que norteia o senso comum, constituindo uma das barreiras com as
quais se deparam, cotidianamente, as pessoas que migraram21.
1.3 A presença senegalesa na Itália
1.3.1 Migração senegalesa na Itália
Na segunda metade dos anos 80, sob o sol escaldante do verão nas praias dos litorais
italianos, circulavam vendedores africanos com grandes volumes de mercadorias penduradas
em pranchas, dispostas ao longo dos braços e sob os ombros. Com passos lentos se
aproximavam, se agachavam perto dos banhistas e com poucas palavras, em um italiano
improvisado, ofereciam colares em couro, pulseiras em osso, pequenos animais em madeira,
batiques e tecidos, objetos artesanais produzidos na África Ocidental. Os “vucuprá”, como
eram chamados pelos italianos, foram os primeiros migrantes senegaleses, pioneiros dos
futuros múltiplos fluxos migratórios, que iriam recompor a sociedade italiana. O termo
“vucumprá” é um neologismo que remete à expressão “vuoi comprare?” (“quer comprar?”), e
21 Essa representação do fenômeno migratório como deslocamento linear por parte de pessoas sem recursos entre
dois espaços antitéticos, “pobre” e “rico”, tem parte de sua ascendência nas memórias sobre as migrações que
interessaram o próprio país, direcionadas tanto para o exterior quanto, internamente, do sul ao norte do estado.
Os pobres agricultores, com malas de papelão, à espera dos navios para a “América” no século XIX; os que
partiam para as grandes cidades no norte da Itália na década de 60; o sofrimento pelas discriminações xenófobas
e pelas dificuldades de adaptação vividas são imagens compartilhadas sobre esse fenômeno, representadas
também no campo das artes (se pense, por exemplo, à canção anônima “Mamma mia dammi cento lire” ou ao
filme “Rocco e i suoi fratelli” de Luchino Visconti). O que parece evidente, hoje, em relação ao passado
migrante que os italianos guardam em seus imaginários é uma falta de elaboração dessas experiências e de
transposição positiva para com os migrantes que atualmente vivem na Itália. Durante a pesquisa de campo,
observei, por exemplo, que os italianos que têm uma atitude mais conflituosa com os “estrangeiros” são os que
migraram do sul para o norte da Itália e a segunda geração dessa comunidade. As narrativas por eles articuladas
são, frequentemente, de cunho reivindicatório, pautadas sobre uma lógica comparativa (“nós”/”eles”), em que se
alega uma postura favorável do Estado frente aos novos migrantes, inexistente na época em que eles se
instalaram.
32
se tornou uma forma depreciativa e xenófoba de definir os vendedores ambulantes, ainda hoje
utilizada.
A chegada dos primeiros migrantes senegaleses na Itália se insere em um fluxo
compósito que teve início na região do Baol, no Senegal, na década de 1970, quando, de
acordo com Diop (2008), a produção de amendoim foi comprometida por uma grave seca que
assolou o país, levando a um maciço fenômeno migratório de agricultores murid22.
Os fluxos se direcionaram em um primeiro momento para os grandes centros urbanos
do Estado Senegalês, Dakar principalmente, depois para o exterior, rumo à França e, a partir
da década de 80, para outros países ocidentais. Os migrantes se autodefiniam “modou
modou”, termo ainda hoje utilizado,
que deriva da alteração do nome de
Cheikh Ahmadou Bamba
(CASTAGNONE et all., 2005: 9),
momadou momadou, e explicita sua
matriz murid. A migração dentro do
próprio Senegal, definida na tradição
oral com a metáfora “penicilina para a
doença da seca” (ibidem, p.10), teve o
suporte da confraria que ofereceu
respaldos institucionais e morais aos
migrantes. Os recém chegados se
estruturavam em daa´ira, associações
religiosas que reúnem os discípulos,
as quais começaram a surgir na fase
das primeiras migrações internas para
áreas urbanas e serviram como elo de ligação entre os talibée23 migrados e seus guias
espirituais24, tendo, assim, como função principal a inserção dos migrantes nos novos locais
22 Adeptos do Muridismo. 23 Discípulos da confraria murid. 24 Chamados de marabut ou shaykh. Se a entrega a Deus é típica do Islã ortodoxo, no Sufismo é imprescindível a
entrega ao marabuto. Isso é particularmente verdadeiro para os discípulos senegaleses. Nesse sentido, Cheikh
Amadou Bamba, fundador da confraria Murid, afirmava: “a verdade está no amor ao próprio shaykh” (DIOP,
1981: 315). A figura do marabuto é, portanto, fundamental no misticismo sufi, pois ele tem a função de guia
espiritual e de mediar a conexão entre o talibé e Deus. De fato, ele representa a conexão com o fundador da
confraria que, por sua vez, garante a intercessão com Deus por meio do profeta Mohamed. Temos, então, graus
de proximidade a Deus dependendo da posição ocupada pelos sujeitos, mas também da quantidade de graça, a
baraka, acumulada. Esta é a marca concreta do poder espiritual (consequência da baraka, por exemplo, é a
Muridismo
Confraria sufi fundada por Cheikh Amadou Bamba, à qual
muitos dos meus informantes pertence. O sufismo nasce
como doutrina eclética influenciada pelo neoplatonismo
grego, monaquismo sírio cenobítico, doutrina hindu dos
Vedas e pelo mazdeísmo persa antigo. O que sustenta as
práticas sufi é a tasawwuf, vocação mística, que surge e se
desenvolve como contraposição às injustiças sociais e às
imperfeições humanas, apelando a uma completa
purificação interna do adepto. Os discípulos sufi se dedicam
intensamente à prece como meio para se aproximar a Deus,
realizando, principalmente, práticas noturnas nas quais a
meditação corânica tem um papel central. Estas têm como
objetivo a expulsão das fraquezas e impurezas da alma
humana (vícios, desejos, paixões) e visam o conhecimento
de Deus por meio do êxtase, fana, que representa o estágio
final da alma perfeitamente purificada (PIGA, 2000: 12).
Para alcançar este fim, o discípulo precisa trilhar um
caminho iniciático, tariqa, gradual, linear e ascético, um
método pontuado por prescrições e rituais, mediado por um
guia espiritual. A renúncia ao mundo profano, o
arrependimento e a meditação são os meios utilizados ao
longo deste caminho, regido por uma tensão moral
constante para o bem, o qual se pretende alcançar também
por práticas de mortificação da carne, como o jejum e a
solidão.
33
de chegada (PIGA, 2000: 48). A finalidade dessas associações era principalmente social, de
previdência e ajuda entre seus membros. Essa estratégia de inserção foi e é utilizada também
em outros contextos de chegada25, onde pode passar também a incluir senegaleses adeptos de
outras confrarias, como a Qādiriyya e a Tijāniyya, podendo, então, ser considerada uma
prática constitutiva das dinâmicas do processo migratório senegalês na sua fase inicial. A
confraria murid, de fato, mostra uma excepcional capacidade de adaptação em novos
contextos socioeconômicos por meio da translação de valores e instituições. A organização
religiosa, nesse sentido, tem um papel central para a constituição, manutenção e reprodução
das redes transnacionais. O muridismo, segundo Riccio (2007), fornece uma “moldura
simbólica” que produz sentidos em relação às experiências migratórias (2007: 88): o valor do
trabalho, a humildade, a perseverança, a paciência, a honestidade e a solidariedade, dos quais
a confraria é porta-voz, são ressignificados nos novos contextos de vida e de trabalho dos
migrantes, oferecendo um valioso respaldo não somente durante as fases de adaptação, mas
também em seguida, especialmente nos momentos de dificuldades que a vida em outro país
proporciona. Além dessa função simbólica e moral, do ponto de vista prático, como Ottavia
Schmidt di Friedberg sugere (1994: 203), por um lado o migrante não se encontra sozinho em
um ambiente estranho e, de outro, a sociedade de chegada não se depara com indivíduos
desraigados, mas com um grupo articulado. Mesmo que o papel moral da confraria, assim
como a literatura socioantropológica produzida na Itália e em outros contextos ressaltou,
represente uma força voltada a “preservar” valores considerados tracionais e a conter
possíveis práticas em desacordo com seus preceitos (RICCIO, 2000; CASTAGNONE ET
ALL, 2005), as formas de lidar com esse quadro de prescrições não é linear e pode ser
acompanhada, como veremos, por práticas ambivalentes. No processo de inserção, a
organização de associações, também no campo extrarreligioso, articuladas segundo uma
ampla variedade de modelos, se revelou uma forma eficaz e orientada para praticar a
“solidariedade” e a ajuda mútua entre os migrantes, assim como para administrar as relações
realização de milagres), adquirida através da prática religiosa de forma humilde, persistente, paciente,
disciplinada, e pode ser oferecida pelas autoridades espirituais aos adeptos, através das bênçãos, mas também por
meio de suas próprias presenças físicas. O talibée tem a obrigação de fazer doações ao marabuto, que, devendo
se dedicar exclusivamente à vida espiritual, não deve trabalhar, sendo, então, mantido por seus discípulos. A
submissão absoluta e incontestável destes ao guia espiritual é, portanto, considerada imprescindível no
misticismo sufi e é sancionada de forma que o primeiro, tornando-se um iniciado, deve amar e se referir ao
segundo de forma integral, seguindo-o, obedecendo-o, imitando-o, assistindo-o até sua morte. Daí a excepcional
importância dos marabutos e sua capacidade de influenciar, de forma marcante, a vida religiosa e social de seus
discípulos. 25 Em outros estados da África, como no Egito, na França (BAVA, 2002;2003;2005), Espanha e outros países da
União Europeia como a Bélgica, nos Estados Unidos (STOLLER, 2002) e também, mais recentemente, na
Argentina e Brasil (TEDESCO & KLEIDERMACHER, 2017), entre outros.
34
com as instituições dos contextos de chegada e de origem (RICCIO, 2007). Como veremos no
caso dos senegaleses que observei em Turim, porém, estas estratégias associativas e a
constituição de redes pautadas na noção de “ajuda” têm desdobramentos complexos,
implicando também em conflitos e relativas negociações.
Por outro lado, a perspectiva prevalentemente “mouridológica” assumida pela literatura
socioantropológica, segundo o sociólogo senegalês Leyla Sall (2010), pode representar um
limite pois:
La « mouridologie » consiste en une focalisation des chercheurs sur les
réseaux de la confrérie mouride, au détriment des réseaux non mourides. Par
conséquent, l’essentiel des travaux de recherche concernant les activités
commerciales des Sénégalais à l’étranger porte sur les membres de cette
confrérie (2010:62).
Nesse sentido, o enfoque “mouridológico”, que ainda atualmente tende a ser adotado
como pressuposto analítico por muitos pesquisadores, comporta também uma restrição da
observação que recai sobre a diversificação étnica dos migrantes:
l’une des conséquences de la « mouridologie migratoire » est la «
survisibilisation » des réseaux migratoires mourides, au détriment d’autres
réseaux sénégalais non mourides. Aussi, en Europe du moins, la croyance
populaire veut que tous les commerçants sénégalais soient mourides, d’où la
non-prise en compte des réseaux commerçants toucouleurs et soninkés
(majoritairement tidjanes) (ibid.).
Voltando à questão da origem dos fluxos migratórios senegaleses, os primeiros
migrantes que saíram do Senegal se deslocaram para a França e, na segunda metade dos anos
80, devido principalmente às medidas restritivas que o país vinha tomando em relação às
entradas dos estrangeiros, estes começaram a se direcionar para a Itália. Os relatos sobre as
primeiras entradas em território italiano apontam para um fluxo proveniente da França, que
cruzava as fronteiras italianas de trem rumo as cidades do norte (Genova, Turim, Milão), e
outro fluxo, proveniente do Senegal, que se dirigia por mar aos territórios do sul da península,
em especial para as grandes cidades meridionais (principalmente Nápoles e Roma).
Como veremos etnograficamente no capítulo a seguir, as razões que movem as pessoas
a migrarem são múltiplas: desejo de ampliar os próprios conhecimentos, anseio de liberdade e
autonomia, vontade de encontrar condições melhores de sustento e de adquirir prestígio no
meio social de origem, dentre outros. Esse quadro complexo de motivações e expectativas se
distancia profundamente da imagem estereotipada do migrante que, como vimos acima, é
compartilhada pelo senso comum e por parte das políticas promovidas pelo Estado. Se, como
35
se disse acima, o começo do fluxo migratório senegalês na Europa é associado a uma razão
econômica - crise da produção do amendoim -, perspectiva geralmente compartilhada pelos
antropólogos e sociólogos que se ocuparam desse tema, precisa também considerar que a
representação positiva do “viajante”, como veremos adiante, bem como outras questões, é um
potente incentivo para migrar.
Durante os últimos trinta anos, na Itália, a migração senegalesa representou a presença
mais significativa de pessoas oriundas da África Subsaariana e adquiriu peso a partir da
década de 80. Em 1992, contando com mais de 24 mil presenças (dentre os quais 97% são de
gênero masculino), a comunidade senegalesa na Itália situava-se em sexto lugar entre os
migrantes oriundos de países externos à Comunidade Europeia. Apesar da presença desses em
solo italiano ter aumentado nos vinte anos sucessivos em 282%, o crescimento dos fluxos
internacionais, especialmente os provenientes do Leste Europeu, reduziu a incidência dessa
comunidade, que, em 2013, se torna a décima quinta por número de presenças.
Até primeiro de janeiro de 2014, os senegaleses com visto regular de permanência
eram 97.781, isto é, 2,5% dos imigrantes “não comunitários” na Itália. Em 2018 os
considerados regulares eram 105.240, se tornando a decima segunda comunidade, composta
por 74,4% de homens com idade média de 34 anos (ANPAL, 2018). A composição de gênero
é a mais polarizada dentre todas as comunidades imigradas na Itália. Frente a essas últimas, os
senegaleses têm uma média etária mais avançada. Em relação à distribuição territorial, a
região Norte da Itália é a mais acorrida, abrigando 64,4% deles26. Com referência à ocupação,
os senegaleses atuam prevalentemente na área de comércio, identificada como ocupação
primária (35%); outro setor que se destaca é o industrial, onde trabalham principalmente
como operários não especializados (30,4% dos imigrantes) (ibid.). No contexto do trabalho
comercial, como veremos à frente, se destaca o número de empresas individuais, que equivale
ao 87,7%. O índice de ocupação, que corresponde ao 62,2% é um dos maiores entre os
residentes “não comunitários” e interessa principalmente a componente masculina (76,3%)
(ibid.). Apesar das mulheres terem uma baixa taxa de emprego, isso não significa que sejam
inativas pois, como descreverei sucessivamente, atuam principalmente em âmbito informal
trabalhando em contextos ligados à esfera doméstica (restaurantes, atendimento a idosos e
crianças, preparação e venda ambulante de comida senegalesa) e comercial.
26 A primeira meta é a Lombardia, onde mora o 32,9% dos migrantes, enquanto no sul da península as presenças
somam o 16,9%, que se concentra principalmente na Sardegna. Esse número é superior à média dos residentes
não comunitários na mesma região (ANPAL, 2018).
36
Embora umas das características da comunidade senegalesa seja o alto número de
vistos de permanência de longo prazo, emitidos principalmente por motivos de trabalho,
prevalece um modelo migratório de tipo circular, segundo o qual o homem é quem se desloca
entre Itália e Senegal, onde permanece a família, com intervalos temporais mais ou menos
amplos. Essa forma fluida de vivenciar a experiência migratória pode ser resumida pela
expressão “vai e vem” que Eleonora Castagnone, F. Ciafaloni, E. Donini, D. Guasco e L.
Lanzardo (2005) utilizaram para intitular o primeiro livro publicado sobre as trajetórias
transnacionais dos migrantes senegaleses na Itália27. O aspecto de circularidade da migração
senegalesa representa uma dinâmica estrutural, um marco do processo de expatrio. Essa
característica é sustentada por numerosos trabalhos históricos e socioantropológicos sobre as
práticas migratórias senegalesas que se referem a uma ampla variedade de fluxos dentro do
próprio Senegal e entre esse último e diversos contextos de chegada28.
As dinâmicas transnacionais que marcam a experiencia migratória envolvem diversos
aspectos da vida dos senegaleses: as viagens de ida e volta entre Itália e Senegal; a
comunicação com o núcleo familiar no país de origem, bem como com parentes e amigos
migrados em outros países - prática hoje cada vez mais intensa com o auxílio das novas
tecnologias (Viber, Facebook, Watshapp, Istagram ecc.) -, por meio das quais mantêm e
fortalecem suas redes; a circulação de dinheiro por meio de remessas enviadas para a família,
que, como veremos à frente, é realizada por vias formais e informais; a circulação de objetos
promovida principalmente pelas atividades comerciais de importação-exportação; e ainda as
27 CASTAGNONE E.; CIAFALONI F.; DONINI E.; GUASCO D.; LANZARDO L. Vai e vieni. Esperienze di
imigrazione e di lavoro di senegalesi tra Louga e Turin. Ed. Franco Angeli: Milano, 2005. Os principais textos
socioantropológicos publicados na Itália sobre o fenômeno são o de CASTAGNONE et all. (2005), que se baseia
em pesquisa realizada entre a cidade de Turim e Louga, no Senegal. Esse trabalho salienta, através de histórias
de vida, principalmente a relação dos imigrantes com o trabalho, revelando a insurgência de uma dinâmica
migratória circular. Ceschi e Stocchiero (2006) coordenaram outro volume, pautado na proposta de pesquisa-
ação, que foca principalmente as dinâmicas associativas e de empreendedorismo em quatro cidades do Norte da
Itália (Bérgamo, Brescia, Milão e Turim). As modalidades associativas vão da micro-associação constituída por
pessoas instaladas em diversos lugares na Itália e oriundas da mesma aldeia, a associações religiosas como as
d´aira, sobre a qual se comentará em seguida, até outras ainda, principalmente de caráter laico, que reúnem
pessoas que moram em lugares próximos no país de chegada. Ceschi (2006) evidencia o caráter transnacional
das atividades e enfoca atividades empreendedoras e trabalho autônomo. A literatura produzida na Itália sobre
migração senegalesa tem se voltado principalmente para temas do associacionismo e empreendedorismo, pois
muitos dos textos estão atrelados a projetos de intervenção, de caráter público e privado, com finalidade de
inclusão/assistência social. Os trabalhos de Riccio (2000; 2002; 2007; 2008), e principalmente o texto “Toubab e
vu cumpra”, exploram as interações entre imigrantes, sociedade de chegada e de origem, e, metodologicamente,
propõem trabalhar com estas três realidades em uma perspectiva “transnacional”, segundo a proposta de Hannerz
(1998). Numa perspectiva transnacionalista, o trabalho da Sinatti (2009), por outro lado, observa a imigração do
ponto de vista do contexto de origem, incluindo as expectativas de volta e as representações sobre a permanência
dos migrantes na Itália. Além disso, pesquisa o processo de volta no país de origem do ponto de vista dos
mesmos migrantes e das pessoas que permanecem no Senegal. 28 Dentre outros, se veja Maestro (2006); Tall & Tandian (2011); Flahaux et all (2011).
37
ações atreladas a projetos filantrópicos e “interculturais”, promovidos por meio de
associações fundadas na Itália. Essa aspiração de “dupla presença”, parafraseando Sayad às
avessas (1999), pode ser ilustrada pela expressão formulada por uma mulher de Louga, esposa
de um migrante, que, em relação à pergunta sobre onde o marido morava, respondeu: “vive
aqui e trabalha lá” (CASTAGNONE ET ALL., 2005: 156). Essa perspectiva, que é
compartilhada pela maioria dos meus interlocutores, indica um estreitamento da noção de
espaço, que não se refere somente à frequência das viagens de volta, as quais podem ser
realizadas em lapsos de tempos amplos, mas, principalmente, como tratarei no capítulo a
seguir, refere-se à qualidade e forma de se vivenciar os vínculos sociais.
Ao longo dos últimos trinta anos, a comunidade senegalesa cresceu de forma
significativa e os percursos de estabilização se diversificaram: a partir de um modelo
substancialmente simplificado de migrante voltado para o comércio ambulante e pertencente à
confraria murid passou-se a uma complexificação desse quadro. O que se pode observar
atualmente é que a daa´ira, ainda que continue ativa como espaço associativo e religioso,
perdeu seu papel primário de mediação entre migrantes e sociedade receptora. Tal função é
hoje exercida principalmente pelos migrantes estabelecidos, que se tornam o elo que viabiliza
novas inserções: a entrada de novos sujeitos acontece no interior das redes de parentesco e
amizade. Nesse processo, temos, desde 2005, uma tendência à chegada de homens mais novos
e de origem urbana (CASTAGNONE, 2008). A opção pelo comércio ambulante como
primeira atividade exercida pelos recém-chegados continua sendo privilegiada, ao passo que
entre comerciantes mais “velhos” houve uma tendência à formalização da atividade por meio
da criação de empresas comerciais (CESCHI, 2006). Se na década de 90 e até 2010 as
atividades nas fábricas representaram a segunda atividade professional exercida, como se
mencionou acima, a crise econômica que afetou a Itália na última década e as mudanças nas
leis trabalhistas (chamadas de “flexibilização do trabalho”, que estimularam o aumento da
contratação terceirizada por tempo determinado) reverberaram nesse setor, provocando um
retorno massivo dos senegaleses para as atividades comerciais ambulantes, como forma de
responder à precariedade do emprego.
Também tem se observado, entre os migrantes que se estabeleceram na década de 80 e
90, uma tendência ao retorno para o Senegal, dado difícil de se contabilizar na Itália, mas que
pode ser percebido mais claramente no Senegal. Como Sinatti (2009) retrata, e também pude
perceber durante a pesquisa em Dakar, essa tendência ao retorno, que se reforça entre 2010 e
2015, é associada à crise econômica e também ao desejo de voltar a viver junto com a família,
motivação alegada principalmente pelos migrantes mais “velhos”, os quais, além de ter
38
cumprido o dever de provedores, também exauriram as experiências de descoberta que os
tinham animado à partida. O retorno, como meta prevista em um futuro indefinido, é um
objetivo compartilhado por todos meus interlocutores, representando outro elemento que
caracteriza o modelo migratório senegalês29.
1.3.2 Turim, cidade de chegada de velhos e novos migrantes. A presença
senegalesa: uma perspectiva histórica
A cidade de Turim, onde desenvolvi a pesquisa de campo, foi um importante polo
industrial centrado na atividade metalomecânica, mais especificamente na produção de
automóveis, atividade dominante até 1973, ano da primeira crise petrolífera. A FIAT (Fábrica
Italiana Automobili Torino) nasceu aqui em 1889 e a dinâmica de produção fordista que a
estruturava caracterizou o sistema econômico e sociopolítico da cidade até a década de 80.
Turim, na beira das Alpes, que tinha presenciado à “resistência” durante a segunda guerra,
teve uma tradição operária e comunista que se deparava com uma elite de ascendência
monárquica e militar30. Foi, então, no entorno da “grande fábrica” ou “mamma Fiat”, como
era chamada pelo torinenses empregados nesse setor, que a cidade se moldou, também do
ponto de vista demográfico. O marco mais evidente, nesse sentido, foi registrado entre 1951 e
1961, quando a variação demográfica da população sinalizou um aumento de 42,4%,
passando de 719.300 a 1.025.822 habitantes. Tal crescimento decorreu em parte do
incremento do índice de natalidade, mas, sobretudo, da chegada de novos moradores. O
“boom econômico” ocorrido na Itália no final dos anos 50 do século XX, de fato, promoveu
um aumento significativo da produção e, consequentemente, a demanda por um maior número
de trabalhadores nas fábricas. Nessa época, conforme lembram alguns migrantes do sul da
Itália, era comum encontrar, nos trens que ligavam as grandes cidades do norte ao
mezzogiorno31, numerosos cartazes que convidavam os moradores do sul a trabalharem como
operários em Turim. O modelo fordista de produção não exigia mão de obra especializada, o
que representou uma alternativa profissional para os migrantes com baixo nível de
escolaridade, que trabalhavam principalmente nas linhas de montagem.
29 Sobre retorno e reinserção dos migrantes no Senegal se veja também, Sinatti (2011), Flahaux (2009; 2014). 30 Foi capital da Itália desde a unificação em 1861 até 1865. A monarquia sabauda torinesa liderou o estado até
1946, quando Umberto II foi deposto por ter sido proclamada a república. 31 Sul da península.
39
A chegada desses “novos moradores” não era novidade em Turim. Entre 1853 e 1930,
a cidade já havia acolhido pessoas que vinham das regiões rurais próximas, dos vales e das
montanhas alpinas. A migração de habitantes da região sul do país, entre os anos 50 e 70 do
século passado, porém, se destaca como um fenômeno sem precedentes. De acordo com os
dados de Enrico Pugliese (2002), em L´Italia tra migrazioni internazionali e migrazioni
interne, nesse período, o “êxodo agrícola” provocado pela busca de emprego na indústria
envolveu 6.500.000 trabalhadores que abandonaram suas próprias terras (PUGLIESE, 2002:
44). A maioria dos migrantes era homens jovens e vinha, sobretudo, das regiões de Puglia,
Calabria e Sicilia. Uma vez empregados, passavam a trazer para a cidade os demais
familiares, tornando, assim, a migração um movimento em caráter definitivo. A estrutura
urbanística da cidade, porém, não estava preparada para receber um número tão elevado de
pessoas. Os novos residentes passaram, em parte, a habitar casas degradadas, porões ou
construções abandonadas. A dificuldade encontrada por esses migrantes em achar moradia
surgia também da recusa dos torinenses em alugar os apartamentos. Na memória de alguns
destes migrantes, ainda estão presentes os cartazes pendurados nos edifícios com os dizeres:
“não se aluga para meridionais”. O processo de inserção dessa população foi, portanto, tenso e
difícil, marcado por episódios de intolerância e discriminação, que ecoam hoje, em termos
recriminatórios, nas narrativas formuladas por esse grupo em relação ao mais recente fluxo de
migrantes transnacionais. As implicações sociais, econômicas e culturais dessa mobilização
foram marcantes, transfigurando o sistema social local.
Se o ano 1973 representou o ápice da produção industrial, foi seguido de uma fase de
encolhimento. Na década sucessiva, registra-se uma queda de 4,4% da população residente, o
que se acentuou em nove pontos percentuais na década seguinte. Esse declínio populacional
estabilizou-se nos últimos 10 anos em razão do novo afluxo populacional, decorrente dos
movimentos migratórios transnacionais. Se, do ponto de vista sociocultural, a onda migratória
dos anos 60 tinha proporcionado profundas mudanças, começa, então, aqui, uma fase de
transformação econômica que mudará ulteriormente a cidade. Mesmo que a produção
industrial continuar sendo a atividade dominante, a entrada no mercado de novas empresas de
grande e médio porte, organizadas de forma mais flexível e descentralizada, começou
gradativamente a substituir a administração monolítica e rigidamente hierarquizada que
caracterizava o modelo instituído pela FIAT. Sujeitos, empresas e pessoas se tornavam, assim,
mais autônomos e móveis. Essa renovação da organização industrial afetou também o
desenvolvimento do setor terciário e, mais recentemente, algumas políticas públicas
promovidas pela Prefeitura voltadas à reforma urbana e organização de grandes eventos,
40
como as Olimpíadas de Inverno de 2004, tendo em vista o desenvolvimento do potencial
turístico da cidade. Foi nesse contexto socioeconômico que se inseriu o afluxo das migrações
extraeuropeias em Turin, que, como a maioria dos grandes centros urbanos do país, tornara-se
um dos polos de atração dos migrantes.
Alguns dados podem ajudar a entender as recentes mudanças ocorridas no perfil
demográfico da cidade. Entre 1996 e 1999, verificou-se um aumento de 20 para 40 mil novos
moradores estrangeiros. No ano 2000, os migrantes representavam 2,4% da população total,
número que, em 2006, subiu para 9,4%: de um total de 900.736 habitantes, 84.854 eram
estrangeiros (30,2% romenos; 18,2% marroquinos; 7,1% peruanos e 5,6% albaneses, seguidos
por chineses, egípcios, filipinos, nigerianos, brasileiros, tunisianos, senegaleses e
equatorianos, para citar as presenças mais significativas). Muitos destes (51% homens e 49%
mulheres) atuam como mão de obra “não qualificada”, como operários do setor
metalomecânico e empregados do setor urbanístico, embora também estejam inseridos na
esfera do comércio. Em 2014, o número dos migrantes residentes, em diminuição nos últimos
dois anos, foi de 138.076, cerca de 15,5% da população total. As nacionalidades com maior
incidência são atualmente os romenos, que representam 40% do total dos estrangeiros, os
marroquinos, que são 14%, seguidos dos peruanos (6%), chineses (5%) e albaneses (4%). A
comunidade senegalesa conta 1565 pessoas e ocupa o décimo primeiro lugar em ordem de
presenças32.
A comunidade senegalesa, objeto dessa etnografia, se inseriu, portanto, em uma
sociedade estratificada que inclui, respectivamente, uma leva de migrantes vindos dos
arredores rurais e depois os “meridionali” provenientes do sul do país. Este movimento se
sobrepôs às mudanças econômicas acima mencionadas, gerando resistência por parte da
população já instalada e os novos moradores da cidade. Atitudes conflituosas em relação aos
recém-chegados, de fato, são frequentes, apresentando-se como episódios de intolerância que
se repetem de forma não muito diferente do que acontecia, em outros tempos, em relação aos
migrantes do sul do país. Viazzo (2003) evidencia que muitos dos estereótipos hoje atribuídos
aos migrantes estrangeiros como “primitivismo”, “falta de educação”, “sujeira”, “violência” e
“tendência à delinquência” são os mesmos que se atribuíam aos “meridionali”. Parece
importante, nesse sentido, não observar as migrações isoladamente, mas estabelecer uma
continuidade na análise dos diversos fluxos migratórios como parte de um processo que,
embora diversificado, apresenta algumas características recorrentes.
32 Ufficio Statistica del Comune di Torino. Disponível em:
<http://www.comune.torino.it/statistica/dati/stranieriterr.htm>.
41
Hoje, a intolerância em relação aos novos migrantes integra as “crises urbanas”
(ALLASINO et all, 2000), contexto em que se verificam protestos violentos e improvisados
de cidadãos italianos tendo como alvo os “estrangeiros”. Segundo Allasino, Bobbio e Neri
(2000), esses últimos são identificados como responsáveis pelos “problemas” locais, como
prostituição, tráfico de drogas, e aumento da criminalidade. A abertura de centros de
acolhimento e episódios que envolvem conflitos de convivência com a alteridade são temas
que suscitam reiteradas acusações em relação aos estrangeiros, motivando reivindicações por
parte dos moradores locais. Para responder à questão da segurança, foram instituídas várias
políticas públicas. No caso específico de Turim, os autores identificaram cinco medidas
adotadas pela Prefeitura: o reforço do controle policial sobre o território para garantir a ordem
pública; a requalificação urbana; a estruturação de serviços sociais, iniciativas interculturais e
mediações de conflitos; e também a promoção de “políticas para o desenvolvimento”,
voltadas à recuperação de áreas degradadas, por meio do estímulo ao desenvolvimento de
atividades econômicas e comerciais; assim como a promoção de “projetos integrados”, que
visam a abordar os conflitos usando estratégias mistas (sociais, econômicas, culturais).
A forma de inserção e organização dos primeiros migrantes senegaleses em Turim
representa um exemplo da importância do papel da confraria, citado no item acima. Segundo
Donald Carter (1991), antropólogo que etnografou parte do processo em 1982, foi constituída
uma daa´ira por iniciativa espontânea dos talibée33, murid que se instalaram na cidade. As
atividades centrais eram organizativas e de assistência: voltavam-se ao respaldo dos recém-
chegados em relação à regulamentação de documentos e busca de uma ocupação (a maioria
dos membros da daa´ira encontraram trabalho estável como operários e/ou integrando
equipes de faxineiros de grandes empresas). A confraria organizava também festas religiosas e
exposições. Após três anos de atividades, a daa´ira acolheu um marabuto, Djilly F., como
guia espiritual34, que se declarava descendente de uma das famílias fundadoras da ordem.
Jovem e empreendedor, ele se dedicou pessoalmente ao cuidado das necessidades individuais
dos membros. O marabuto tomava decisões legitimadas em assembleias, tanto de carácter
organizativo como religioso, sendo sua função primeira mediar as relações entre os talibée e
as instituições em Turim, garantindo aos sindicados e empresas lealdade no trabalho, tratando
33 Alocados, na época, em apartamentos que definiam “casas-aldeias”, pois recolhiam um grande número de
pessoas, que geralmente pertenciam à mesma aldeia, em espaços restritos. A maioria dos migrantes era oriundo
da região de Louga. 34 A pesquisa de Carter, conduzida junto com um grupo de sociólogos, focou principalmente nas narrativas do
guia espiritual, que era uma das poucas pessoas que falava francês, se dedicando pouco ao diálogo com os
talibée (Castagnone et all., 2005: 21), por isto não se tem dados relativos a dinâmica inicial de legitimação do
próprio marabuto.
42
com a prefeitura dos vistos de permanência e das viagens de volta para o Senegal, cumprindo
as práticas sanitárias e organizando a vida de um grupo de trabalhadores menos instruídos,
que dificilmente teriam conseguido se orientar sozinhos no novo contexto social. O jovem
marabout, que no começo de sua atividade morava junto com seus discípulos, passou, mais
tarde, a alugar um apartamento para sua moradia pessoal, além de viajar de carro com um
motorista e fazer frequentes viagens ao exterior. Sua autoridade era garantida, de um lado, por
sua capacidade de resolver questões práticas e, de outro, pela posição hierárquica que
ocupava.35 Nesse sentido, é importante destacar duas decisões que foram tomadas à época,
que por anos foram respeitadas: a primeira foi proibir a prática do comércio ambulante
informal pelos senegaleses sediados em Turim, porque esta criava conflitos com migrantes de
outras nacionalidades e com a Segurança Pública, e a segunda foi a transferência da
celebração da festa de sexta-feira para o domingo, para evitar problemas com o regime de
trabalho das empresas.
Entre 1990 e 1995, no entanto, a confraria entrou em crise e se transferiu para outra
cidade, Brescia, onde o mercado do trabalho siderúrgico era mais estável. Os motivos do
desaparecimento da organização em Turim são atribuídos a duas questões: os conflitos do
marabuto com os discípulos e com o Khalifa que visitou a daa´ira daquela cidade. Esses
acontecimentos permaneceram ao conhecimento restrito do grupo. Após essa mudança os
pesquisadores passaram a observar que: o marabuto desapareceu de Turim e se mudou para
uma cidade vizinha, assim como numerosos membros da confraria, que se deslocaram para
Brescia; o número dos moradores nas “casas-aldeias” diminuiu; o envolvimento dos
senegaleses no tráfico de drogas se tornou evidente, assim como a cooperação dos taxistas que
atuam informalmente com a prostituição nigeriana (CASTAGNONE ET ALL, 2005: 24).
Explicação para estas mudanças foi oferecida aos pesquisadores por alguns migrantes
senegaleses e marroquinos, que declararam “ter ouvido” que o marabuto de Turim era um
falsário, que se utilizara de nome homônimo para inserir-se na confraria e o Khalifa tinha
declarado “desumana” a condição de vida dos talibée. O marabuto foi, então, destituído do
cargo com consequente dissolução da daa´ira, que ele liderava.
A gênese do processo migratório senegalês em Turim, acima descrita, é
representativa no sentido que evidencia algumas dinâmicas que, como veremos, são hoje
recorrentes no processo de construção das relações entre conterrâneos e na produção de
35 O marabuto, de fato, como se comentou acima, tem absoluta legitimidade sobre os talibée. A posição
subalterna e de radical passividade que estes precisam assumir frente a ele é expressa claramente em uma
metáfora usada por Cheikh Amadhou Bamba: “o talibée deve ser como um morto nas mãos de quem lava os
cadáveres” (PIGA, 2000: 76).
43
lógicas e práticas: a tensão entre um discurso solidário e práticas de conflitos, a centralidade
do controle moral como regulador da circulação, o uso de artimanhas para a autoafirmação
individual associada ao prestígio, a flexibilização das normas religiosas e morais são algumas
das questões que retomaremos.
No capítulo a seguir, as questões aqui apresentadas em termos sócio-históricos serão
retomadas a partir da perspectiva dos meus interlocutores: a migração, as relações de
parentesco e com a sociedade de chegada e o trabalho serão abordados a partir de suas
narrativas.
44
Capítulo 2 - “Ir e vir”: os sentidos das viagens
2.1 Migrações e questões de gênero
No presente capítulo, desenvolvo a etnografia a partir de vinte e uma entrevistas que
realizei em Turim e em Dakar, abordando a trajetória de vida e profissional de meus
interlocutores. A maior parte das pessoas que entrevistei chegou em Turim na metade dos
anos 1990, portanto, num fluxo migratório posterior ao dos primeiros migrantes senegaleses
que, como citado acima, se instalaram na cidade na década de 80. Dois dos entrevistados
entraram na Itália antes desse período, respectivamente, em 1983 e 1987, enquanto outros três
chegaram em 2006, 2007 e 2010. Meus interlocutores têm idade média de trinta e cinco anos,
apenas um deles é mais novo, tinha vinte e três anos à época da entrevista, enquanto o mais
velho tinha sessenta e um. A baixa incidência de mulheres entre os entrevistados, quatro no
total, caracteriza, como se disse, a dinâmica migratória senegalesa como um todo, tanto na
Itália quanto em outros países de chegada. Ainda que o universo explorado nesta pesquisa seja
muito restrito, a idade média e a incidência de gênero de meus interlocutores refletem
características demográficas de âmbito mais abrangente.
A prevalência masculina dos migrantes é explicada em termos prescritivos por
Coumba Mbaye36, uma das minhas interlocutoras. Numa das entrevistas realizadas, ela
comenta: “uma mulher não deveria migrar (...) porque, segundo eles [os homens], você deve
casar, ter filhos, cuidar da família... e ficar ali (...). Dificilmente uma mulher casada deixa o
marido lá onde vive.”37 Papel da mulher é “cuidar da família”, primeiramente no lugar de
origem e, depois do casamento, no contexto familiar do marido. “Ficar ali” aponta para o
vínculo prescritivo que a mulher mantém com o espaço patrilocal ocupado depois do
casamento, mas também indica, de forma mais geral, o universo doméstico como definidor de
identidade de gênero. Nesse sentido, Coumba comenta: “No nosso país, as mulheres devem
ficar unicamente dentro de casa”. Essas afirmações sugerem qual é o espaço de circulação
feminino segundo as regras socialmente estabelecidas no contexto de origem, que, como
36 Coumba, em 2014, tinha 38 anos. Pertencente à etnia lebou, ela nasceu em Dakar, casou-se no Senegal e teve
um filho. Após a separação do marido, deixou Senegal junto com o filho. Chegou à Itália em 1998. Atuou em
diversas áreas, como observaremos a seguir, entre as quais o comércio. Atualmente, é casada com um italiano
com o qual teve um filho. À época da pesquisa de campo, trabalhava como auxiliar de enfermagem em um
hospital público. 37 Entrevista, em 17 de novembro de 2014.
45
veremos melhor em seguida, inclui também ambientes não estritamente domésticos, mas a
eles ligados. É importante ressaltar a manifestação de tensão em relação a tal prescrição, que é
apresentada, pela Coumba, como uma dinâmica exógena, sendo uma regra estabelecida por
“eles”, os homens, e da qual ela, então, toma distância. Essa postura de desidentificação em
relação às regras de diferenciação de gênero é compartilhada por outras mulheres migrantes
com as quais, também informalmente, conversei em Turim, assim como em Dakar. Por vezes,
estas se posicionam de forma crítica frente ao papel considerado “de submissão e controle”
que devem manter em relação aos homens, assim como em relação à prática da poligamia.
As relações sociais entre homens e mulheres no espaço doméstico em Dakar são
analisadas por Lecarne-Frassy38 (2000) em termos políticos. Segundo a autora, a divisão de
gênero das atividades, que prevê, por um lado, a fecundidade, a educação dos filhos e o
trabalho doméstico enquanto deveres femininos, e, por outro, o sustento de mulheres e filhos
como obrigação masculina - divisão característica da sociedade patriarcal -, marca fortemente
as relações e, principalmente, os discursos masculinos:
Les hommes du groupe étudié voient lês femmes comme un groupe place
sous leur autorité indiscutée – ou presque. Tout se passé comme si le
marriage, indissociable de la compensation matrimonial versée par le mari
aux parents de l´épouse, créait une dette inextinguible de l´épouse. (2000:
209).
E acrescenta: “[l´homme] beneficie d´une autorité legitime dans l´espace domestique,
qui peut prendre la forme d´une domination absolue” (ibidem).
Tal forma de dominação é parafraseada por Coumba, que relata a respeito da
autoridade masculina: “o homem decide tudo, faz o que quer”. Em outras ocasiões, escutei
esta mesma narrativa associada, por exemplo, a episódios de violência doméstica, ou à
poligamia. Se, por um lado, a fala de Coumba reafirma a posição de poder ocupada pelo
homem frente a mulher, frequentemente legitimada do ponto de vista religioso nas narrativas
dos próprios homens - que citam as prescrições islâmicas de gênero como modelo a ser
seguido, por outro, existe também um domínio feminino, mais especificamente materno,
associado à esfera afetiva e emocional em relação aos filhos. A mãe, de fato, representa a
referência educativa para esses últimos e sua centralidade se reflete na crença, amplamente
compartilhada, de que a conduta e sentimentos maternos determinam o jeito de ser das
38 Ver especificamente o capítulo “La dynamique des rapports sociaux entre femmes et hommes” em
Marchandes dakaroises entre maison et marche, L´Harmattan, 2000. Trata-se de uma etnografia sobre o trabalho
de um grupo de mulheres, comerciantes de peixe, do bairro de Dalifort, em Dakar.
46
próprias crianças e dos adultos que virão a ser. Além disso, percebe-se que há um
envolvimento significativo das mulheres também no âmbito da produção de renda para o
sustento da família. As relações entre homens e mulheres, como Lecarne-Frassy (2000) ilustra
etnograficamente, embora estejam pautadas pelas prescrições comentadas acima, se
inscrevem historicamente e são permanentemente negociadas. Nesse sentido, o conjunto de
regras que prevê as mulheres atuando na esfera privada como cuidadoras e os homens na
esfera pública como provedores produz um modelo que é flexionado na dimensão das práticas
sociais. De acordo com a autora acima citada (2000), três processos, respectivamente de
ordem política, social e econômica, vêm redefinindo o modelo acima apresentado: o recente
nascimento do Estado Nacional, o processo de urbanização e a crise econômica internacional.
Em relação ao primeiro ponto, o Estado Nacional, em 1973, institucionalizou o Code de la
famille, no qual se reconhece as mulheres como figuras jurídicas e lhes são garantidos
direitos. Atualmente, principalmente entre as mulheres com um maior nível de instrução, tem-
se desenvolvido um discurso relativo aos próprios direitos, visando uma menor desigualdade
das relações de gênero (LECARNE-FRASSY, 2000: 125).
O processo de urbanização que interessa a cidade de Dakar, por outro lado, no
contexto da crise econômica internacional, identificado na deflação dos termos de troca entre
regiões norte e sul do planeta e os planos de ajustes econômicos impostos pelo FMI (ibidem:
164), impacta sobre a sociedade senegalesa na medida em que as mulheres passam a ser
arregimentadas pelo mercado, vindo a participar da composição da renda familiar através do
exercício de atividades como o comércio e a criação de cooperativas (CESCHI, 2006: 78),
desconfigurando então, parcialmente, os parâmetros de organização social acima citados. A
definição de tais parâmetros, em termos de gênero, é moldada principalmente pela moral
“árabe” que determina uma restrição à circulação feminina, segundo a qual as mulheres
devem permanecer afastadas do “mundo exterior” (BORSERUP, 1983: 207 apud LECARNE-
FRASSY, 2000). Este último é considerado como “espaço de encontro com o outro” e, nesse
sentido, Balandier (1985), citado por Lecarme-Frassy (2000: 21), afirma: “la sexsualité est
socialisée; le partage sexsuel des activités atraverse tuot le champ de la societé et de la
culture”. Essa regra impacta a tradição pré-islâmica que via o comércio, inclusive de longas
distâncias, como domínio também feminino. Nesse sentido, como trataremos no capítulo a
seguir, as mulheres não abandonam tal prática, mas a realizam com modalidades específicas.
Coerentemente com esse cenário, que vincula fortemente a figura feminina ao
universo doméstico, segundo Coumba Mbaye, as mulheres que migram são as que “não têm
marido”, isto é, aquelas que romperam vínculos de conjugalidade. Essa afirmação reflete
47
também os dados que recolhi, sugerindo que nem sempre a separação conjugal resulta em
reagrupamentos familiares: as migrantes em Turim são frequentemente divorciadas, isto é,
mulheres que, depois da separação, escolheram deixar seu país de origem acompanhadas ou
não pelos próprios filhos39. Tratando-se de uma sociedade patrilocal, em caso de divórcio, a
regra consiste no retorno das mulheres para o universo social da família de origem, enquanto
os filhos deveriam permanecer na casa do ex-marido, sendo criados pelas irmãs dele e pela
sogra. A fase da separação conjugal, então, representa um momento em que o sistema de
controle sobre a mulher enfraquece, na medida em que se encontra momentaneamente
rompido o vínculo de obrigações com ambos os núcleos familiares, gerando, então, uma
situação de parcial suspensão, que oferece a possibilidade concreta da viagem, da saída, não
sempre bem aceita pela família de origem. Os dados que observamos e parte das narrativas
que recolhi sugerem que a migração, nesses casos, se apresenta como possibilidade de
emancipação e, ao mesmo tempo, como alternativa de se subtrair à condição, por vezes
constrangedora, do retorno à casa paterna. Pode-se, então, perceber uma certa proximidade
nas motivações de homens e mulheres para a migração: os primeiros, como veremos com
mais detalhes em seguida, buscam na “aventura” da viagem um modo de exercitar a
“liberdade”, além de novas frentes financeiras; as segundas procuram novas oportunidades de
circulação social, portanto também “maior liberdade”, em novos contextos sociais. A
“aventura” e a busca de “liberdade” enquanto perspectivas associadas ao expatrio se
aproximam, ainda que em tempos e espaços diferentes, das que O.R. Thomaz (2012)40 aponta
em relação à migração de jovens camponeses moçambicanos para a África do Sul, na época
do apartheid. No nosso caso, se a trajetória dos homens é não somente aceita, mas
incentivada no contexto de origem, a das mulheres, muitas vezes, encontra entraves no
Senegal e, como apresentarei melhor no capítulo sucessivo, coerção pelos conterrâneos no
exterior.
Durante a pesquisa de campo, que foi desenvolvida principalmente em espaços
públicos de Turim (ruas e feiras), percebi uma certa invisibilidade das mulheres senegalesas.
Consegui encontrar algumas delas trabalhando nesses locais como vendedoras de benhe, café
touba e comida típica senegalesa como ceebu yapp, ceebu jen e maafe41, preparadas nas
39 Três das mulheres que entrevistei eram separadas dos maridos quando viajaram. Nessa mesma situação se
encontravam outras mulheres com as quais conversei durante o trabalho de campo, como as vendedoras que cito
em seguida. 40 “Lobolo e trabalho migratório: reprodução familiar e aventura no sul de Moçambique” em “Travessias
antropológicas: estudos em contextos africanos” org. Wilson Trajano Filho, 2012. 41 Respectivamente: begne é um doce frito feito com farina di grano ou milho verde e especiais; o café touba é
um tipo de café com especiarias, produzido na região de Touba; ceebu yapp é um prato misto composto de arroz
48
próprias casas, transportadas em carrinhos de mão e oferecidas nas feiras ou em frente às lojas
senegalesas, especialmente para conterrâneos. Esses últimos, muito mais presentes “na
praça”, como aprofundaremos sucessivamente, ocupam esses mesmos espaços como
passeantes/clientes e/ou vendedores ambulantes trabalhando de maneira formal e informal.
Enquanto os comerciantes senegaleses têm italianos e sujeitos de outras nacionalidades como
clientes, as mulheres tendem a desenvolver suas atividades quase exclusivamente entre e para
conterrâneos, optando, como se citou acima, por oferecer seus serviços de produção e venda
de alimentos típicos para os homens da mesma comunidade. Essa prática se adequa às
prescrições de gênero acima citadas e, mesmo que exercida em espaço público, restringe as
interações com os sujeitos masculinos do grupo.
O contato com as mulheres senegalesas durante a pesquisa foi bastante difícil: os
primeiros encontros foram quase todos barrados por atitudes de relutância, que me pareceram
remeter a uma certa desconfiança, mas também foram dificultados pelo fato de não
compartilharmos os mesmos idiomas42. Segundo alguns informantes masculinos, muitas
senegalesas que vivem em Turim não falam o italiano pelo fato de “ficarem muito entre elas”
e “serem fechadas”. Estas duas afirmações remetem à divisão tradicional de gênero,
sustentada pelas etnias às quais pertencem e seu sistema de prescrições apresentado
anteriormente, cujas inflexões se podem perceber tanto nas dinâmicas de inserção na
sociedade de chegada quanto em relação às atividades profissionais realizadas pelas mulheres.
A desconfiança, a reticência diante da sociedade de chegada, devem ser também
entendidas como consequências da pressão que elas sofrem por parte de seus conterrâneos
homens. Estes, como citei anteriormente, exercem sobre elas uma observação constante: essa
prática coercitiva, realizada principalmente por meio de fofocas e “rumores”, é constitutiva de
um sistema de controle moral ao qual todos os senegaleses estão sujeitos, representando,
portanto, um aspecto estrutural da vida dos migrantes. Em relação às mulheres, porém, a
coerção é mais opressiva pois elas, ao migrarem, se subtraem ao domínio direto da família de
origem e à regra que as quer ligadas a esse espaço doméstico. Na Itália, de fato, as migrantes,
por um lado, tendem a reproduzir as prescrições tradicionais, e isso se reflete nas modalidades
e espaços de circulação - constituídos principalmente pelos domicílios e os lugares públicos
frequentados com finalidades religiosas ou profissionais -, mas também, por outro lado,
branco, carne (de boi ou de carneiro) e batatas ou verduras; ceebu jen contém arroz, peixe com mandioca e
verduras juntas com um túbero chamado naué; enquanto que o maafe é preparado com pasta de amendoim que
acompanha carne (de boi ou de carneiro), batatas doces e outros tipos de batatas. 42 A maioria delas conhece pouco a língua italiana, algumas não falam o francês e minha fluência na língua
wolof era insuficiente para desenvolver uma conversa mais complexa.
49
podem flexionar e ressignificar as regras. Essas últimas situações representam casos
significativos que etnografaremos há frente.
O comércio de itens que extrapolam o gênero alimentar também é praticado pelas
senegalesas, segundo regras específicas. Como tratarei no capítulo a seguir, o domínio das
mulheres e dos homens no campo do comércio, na Itália, se diferencia principalmente em
termos de tipologia de produtos e formas de venda. As primeiras comercializam, em sua
maioria, itens vinculados ao universo doméstico (alimentos, tecidos, roupas, bijuteria) e aos
cuidados femininos (pentear, trançar, tratar dos cabelos, principalmente) atuando ou como
vendedoras ambulantes itinerantes ou como comerciantes estabelecidas em lojas próprias ou
de conterrâneos, sendo tais artigos direcionados a uma clientela restrita, oriunda da África
Ocidental (principalmente senegaleses, mas também malianos, gambianos e nigerianos). Já os
homens vendem mercadorias de um universo mais amplo: comercializam desde produtos
chineses e itens falsificados até objetos artesanais africanos e orientais, roupas, pôster de
personagens famosos etc.. Eles atuam seja como vendedores ambulantes itinerantes e com
bancas, seja como comerciantes em lojas próprias ou de conterrâneos. Além disso, muitos
homens e mulheres se engajam em atividades de comercio transnacional baseadas na
exportação de peças da Itália para o Senegal. Essa prática, sobre a qual trataremos no último
capítulo, pode ser realizada de forma mais ou menos estruturada pelos senegaleses, os quais
desenvolvem mansões diversas e promovem o fluxo de produtos distintos segundo as
prescrições de gênero.
A restrição em relação aos produtos e espaços de circulação das mulheres migrantes,
bem como sua submissão a práticas coercitivas masculinas, porém, não as colocam
necessariamente em uma posição subordinada nos contextos familiares de origem. De fato, a
maioria das mulheres que observei, as quais na Itália permaneciam solteiras, foram impelidas
– como ocorre entre os homens - a produzir renda não apenas para si próprias e para os filhos,
mas também para outros parentes, passando, portanto, a ser provedoras da família no Senegal.
Dessa forma, tal como os migrantes masculinos, elas se tornam figuras centrais em termos de
expectativas de ajuda por parte dos parentes, assim como referência e suporte na acolhida de
conterrâneos recém-chegados que integram suas redes de relações sociais.
A prática migratória pode levar a mulher a ocupar um papel de relevância na família
de origem, como no caso de uma das minhas interlocutoras: Khady Camara43. Ela tem marido
e filhos no Senegal e veio para Itália há “vinte anos”. A escolha do expatrio, nesse caso, é
43 Tem 61 anos, de etnia peul, é nascida em Dakar, onde é casada e tem quatro filhos. Migrou para a Itália em
1995. Atua como cozinheira, cuidadora de idosos, comerciante.
50
assim explicada: “meu marido perdeu o trabalho no banco. Meu irmão, que morava em Turim,
me mandou o dinheiro e vim aqui para trabalhar, para sustentar meus filhos”44. A aquisição do
papel de provedora, exercido também em relação ao marido, que recebe uma aposentadoria
complementada pela renda dela, levou Khady a se autodefinir como capofamiglia (chefe de
família). O exercício da função provedora pela mulher, pouco explicitada nas narrativas
masculinas, me pareceu também central no contexto que observei em Dakar, onde, como
Lecarne-Frassy aponta (2000), apesar do tempo restrito de pesquisa, descortinou-se um
panorama em que as mulheres adultas e casadas, em sua maioria, trabalham, principalmente
como comerciantes, integrando ou respondendo sozinhas pela renda familiar. Adiante
aprofundaremos etnograficamente a trajetória de vida e professional de Khady Camara e de
outra migrante, Coumba Mbaye, dando ênfase no empreendimento das práticas comerciais
que desenvolvem, e observaremos como negociam e flexionam os parâmetros prescritivos
morais e de gênero.
2.2 Migrar para realizar um sonho, para “ser livre e valente”
A proveniência dos meus interlocutores masculinos é heterogênea. Originários das
cidades de Dakar, Casamance, Louga e Touba, na maioria dos casos, antes de se
estabelecerem na Itália, migraram para outros lugares: quase todos moraram em um ou dois
países europeus (França, Espanha, Portugal, especialmente) e muitos também viveram e
trabalharam em outros Estados da África Ocidental. Nesse sentido, Serigne Mansour Tall
(2008) distingue entre uma ancienne migration e uma nouvelle migration sénégalaise (2008:
38). A primeira, segundo esse autor, se estendeu até as décadas de 60 e 70 do século XX e foi
constituída principalmente por migrantes de etnia soninké e pular, originários dos vales ao
redor do rio Senegal, que se deslocaram respectivamente para a França e países da África
Ocidental e Central. O segundo fluxo teve início na metade da década de 80 do século
passado, tendo como metas a Europa do Sul (Itália e Espanha), os Estados Unidos e o Canadá
(TALL, 2011). Nos anos 70, segundo Tall, se observa a complexificação das condições
políticas e econômicas em alguns países a que se destinavam os senegaleses na África, como
Gabão, Costa do Marfim, Congo, Camarões e Zaire, bem como mudança nas normas de
entrada dos senegaleses na França, que, a partir de 1974, passaram a precisar de visto de
44 Entrevista, 10 outubro de 2014.
51
permanência para entrar nesse país. Essas conjunturas contribuíram para redirecionar os
migrantes senegaleses para novas metas, sendo, segundo o autor, os Estados Unidos e Canadá
os destinos procurados pelos mais instruídos e a Europa do Sul, pelos comerciantes. Além das
rotas mencionadas, é importante salientar que a migração como prática de deslocamento
dentro do Senegal (rural/urbano e rural/rural) e para países fronteiriços é intensa e assume,
muitas vezes, o caráter de itinerância, como se verá adiante, rompendo-se, dessa forma, a
imagem estereotipada desse tipo de trajetória como sendo linear, unívoca e de matriz
definitiva.
O primeiro impacto, no momento da chegada à Europa, foi desnorteador para muitos.
Cheikh Lô45 descreve assim suas primeiras impressões:
Eu pensava, honestamente, de encontrar uma vida mais fácil (…) fiquei um
pouco chocado quando cheguei na França e vi meus conterrâneos, a forma
como viviam…: amontoados todos dentro de um quarto, em quinze pessoas,
fiquei um pouco chocado, o primeiro impacto não era positivo, não era
positivo porque eu era acostumado a ter o meu quarto (...). Fiquei chocado
quando vi todas essas pessoas em quinze em um quarto, e de manhã todos a
se colocarem um monte de gri-gri!46 (risos). Não tinham problemas de
higiene, mas fiquei igualmente chocado tanto que uma semana depois queria
voltar. No final, eu consegui, resisti graças a meu primo que insistiu muito
para que ficasse e conseguiu me fazer permanecer.47
A experiência aqui descrita se refere à de um integrante da onda migratória da década
de 80 e retrata uma condição de moradia que se verificava também na Itália com modalidades
parecidas. Essas moradias coletivas constituídas na Europa - “casas aldeias”, como eram
chamadas – se caracterizavam por serem espaços domésticos compartilhados entre pessoas
que pertenciam ao mesmo lugar de origem - aldeias ou bairros -, em geral parentes ou amigos,
que tinham enfrentado a experiência migratória juntas ou em um lapso de tempo
relativamente próximo. Esse tipo de residência atualmente não existe mais, pois se modificou
a forma de inserção dos migrantes senegaleses oriundos dos fluxos sucessivos. Hoje, esses
podem contar com familiares ou amigos já estabelecidos, que possuem seus próprios
apartamentos ou os alugam, podendo, dessa forma, hospedar os conterrâneos em lugares mais
amplos e confortáveis. Isso não implica, porém, que o “choque” dos recém-chegados seja
menor: a forma considerada “individualista” dos italianos viverem, as situações de
45 De etnia pel, tem 56 anos, nasceu em Dakar, mora na Itália desde 85. Foi casado com uma mulher senegalesa
no Senegal e com uma mulher italiana da qual agora é separado. Tem um filho na Itália e um no Senegal.
Atualmente, convive com uma mulher italiana. Foi militar no Senegal e em Turim atuou como operário e
comerciante, atualmente é comerciante. Entrevista, 16 de janeiro de 2014. 46 Amuletos. 47 Entrevista, 16 de janeiro de 2014.
52
preconceito às quais os migrantes são submetidos, bem como o estilo de vida do norte da
Itália, caracterizado por um ritmo “frenético” da vida cotidiana e do trabalho são os
argumentos citados para qualificar o impacto negativo da chegada, amenizado por impressões
positivas (qualidade das infraestruturas urbanas e o “alto” padrão de vida da maioria da
população).
Esse “choque” na chegada pode ter como consequência o retorno temporário ao país
de origem48: tais retornos, quase em seguida à migração, servem, estrategicamente, como
forma de ajuste, pois amortecem o impacto e, ao mesmo tempo, anunciam uma modalidade
própria de migrar e viver, o “vai e vem” a que se refere (CASTAGNONE, 2005). Essa prática,
de fato, como veremos, se dá também nas fases sucessivas, quando os migrantes já estão
estabelecidos, sob condições específicas. Como vimos acima, no caso de Cheikh, a volta
enquanto opção escolhida para o enfrentamento do primeiro impacto com a nova realidade
não se concretiza graças aos pedidos, e certamente aos suportes, de seu primo. A força dos
vínculos sociais é uma característica do tipo de sociabilidade que existe entre meus
interlocutores e a rede que se constitui é central na determinação de destinos, metas e escolhas
individuais.
As motivações que levaram os entrevistados a migrar se articulam em um quadro
complexo, no qual, além das questões estritamente econômicas, sobressaem a vontade de
explorar novos espaços e encontrar oportunidades diversas, não somente financeiras, mas
existenciais. A viagem pode ser vista como a concretização de um “sonho”, como no caso do
Cheikh, citado acima:
Viajei assim, como muitos outros jovens da época, com o sonho de vir para
Europa... era um sonho ver este grande país rico, desenvolvido e tudo mais,
tinha o sonho de colocar os pés aqui... desde criança, assistindo os filmes, eu
tinha este sonho de ir para Europa, de chegar até lá, de ver... porque para nós
era um espelho, não é? Um modelo de vida positivo.
48 Como no caso de François Sané. De etnia diola, nasceu em Casamance, tem 35 anos. Professor de matemática
e física no Senegal, na Itália ele dá aulas particulares de francês, wolof, matemática e física e atua em outros
setores, como veremos à frente. Atualmente, pratica também o comércio. É casado na Itália com uma italiana e
tem dois filhos. Chegou em Turim em 2007, experiência sobre a qual relata: “Quando cheguei aqui, depois de
dois meses voltei para o Senegal, não queria estar aqui porque era difícil demais (…) fiquei dois meses no
Senegal e voltei para a Itália” (entrevista, 11 de fevereiro de 2014). O mesmo narra também Ibrahima Diajne:
“Em 87, comprei a passagem e viajei, fiquei na Espanha por três meses, mas não gostei muito e voltei para o
Senegal. Depois que cheguei lá quis de novo viajar para a Europa” (entrevista, 3 de março de 2014).
53
A imagem de uma terra “rica e desenvolvida” sugeria-lhes a possibilidade de uma
melhoria da qualidade de vida49. O imaginário, nesses casos, é ativado especialmente pela
mídia, no entanto, pode também ser acionado por narrativas dos migrantes que voltam
regularmente ao Senegal, destacando-se, como trataremos em seguida, a forma como são
recebidos e considerados.
A ideia da Europa como “eldorado” (RICCIO, 2007) é tão arraigada que se mantém
inalterada também frente às notícias sobre a crise econômica europeia, veiculadas tanto pelos
meios de comunicação de massa quanto por quem retorna. O argumento da “crise” é
frequentemente acionado, principalmente pelos migrantes que vivem na Itália há mais tempo,
para justificar entre familiares a diminuição de suas remessas ao país de origem. Apesar disso,
a atração que a Europa exerce sobre o imaginário de quem fica permanece forte. A posição
dos migrantes em relação a esse chamado é muito delicada: desestimular um amigo ou
parente a migrar pode ser interpretado negativamente, pois essa atitude se contrapõe à noção
de “destino”, constitutiva da religião islâmica, segundo a qual não existe uma correspondência
efetiva entre condições reais e caminhos possíveis. Em uma perspectiva determinista,
oportunidades, entraves, encontros “já estão escritos”, como muitas vezes ouvi dizer, isto é,
marcados por uma causa sobrenatural. Diante disso, a atitude considerada moralmente correta
é alertar sem interferir e, caso a opção seja por viajar, se dispor a apoiar o recém-chegado.
Do ponto de vista de quem fica no Senegal, na perspectiva masculina, a partida para
viver em outro país é geralmente qualificada como ato de valentia. Quem faz essa escolha
possui jom, isto é, coragem, destemor, determinação (mas também orgulho, amor-próprio,
dignidade), qualidade que, como veremos também sucessivamente, representa o aspecto
positivo mais importante do universo moral senegalês no contexto pesquisado e é acionado
também em outras esferas semânticas50. É importante ressaltar que quem se afasta fisicamente
do próprio meio familiar permanece mantendo obrigações em relação a este. A natureza de
tais deveres, principalmente para os homens, mas, como relatamos anteriormente, também
para as mulheres, é também econômica: como dizem, eles precisam prover os parentes e,
quando migram, passam a efetivar esse papel por meio de remessas materiais e/ou financeiras.
O respaldo financeiro que proporcionam aos familiares é uma prática central em torno à qual
49 Assim como nas palavras de Mamadou Fall: “Pensávamos em uma vida melhor como se via na TV, nos
documentários, pensávamos numa vida melhor, por isso vim para cá” (Entrevista, 5 de dezembro de 2013). 50 Esse foi o termo que escutei com mais frequência nas narrativas dos meus interlocutores, não somente para
qualificar a adequação moral de alguém frente a uma situação, mas como elemento constitutivo da noção de
pessoa. Ter ou não ter jom representa um discriminador que divide os sujeitos entre honrados e horáveis ou
indignos.
54
é tecida uma aura de reconhecimento, mas também de expectativas que enredam os migrantes.
Ao lugar de reconhecimento que passam a ocupar por ter exercido valentia e coragem ao
escolher “partir” e por estar cumprindo o papel de provedores exigido, de fato, corresponde
uma dimensão de demanda, que se traduz em severas pressões, consideradas por eles como
esmagadoras, porém justificadas, como veremos melhor à frente, por um outro imperativo
moral ao qual são submetidos, isto é, a obrigação à ajuda. Como veremos, a função de
corresponder a essas demandas se, por um lado, é árdua, tem como reverso a aquisição de um
status de prestígio diante da sociedade de origem, almejada pela maioria dos migrantes51.
A construção do status de prestígio é alimentada, por um lado, pela ostentação da
riqueza e/ou pela simulação de ter alcançado essa condição, que, como veremos, constitui um
elemento estratégico da autorrepresentação dos migrantes para com os parentes e amigos no
Senegal e, do outro lado, como Riccio (2007) sugere, pela representação dos migrantes
enquanto modelos de sucesso por seus conterrâneos locais. Segundo o autor, “os retornos
periódicos”, especialmente quando acompanhados da ostentação acima citada, influenciam a
imaginação das pessoas que permanecem e, dessa forma, constituem um estímulo simbólico e
moral à partida” (2007: 47). O autor acrescenta: “estes novos modelos de referência que
revolucionam as categorias sociais de poder e prestígio são estruturados mais sobre o saber
prático e a disponibilidade à aventura migratória que sobre o itinerário clássico de
escolarização proposto pela tradição retórica da modernização pós-colonial” (idem: 49),
representando uma alternativa a esta última. Deve-se também considerar que o aporte
financeiro produzido pelos migrantes em forma de remessas enviadas para o Senegal
contribui na construção positiva desse modelo.
A relevância dessas remessas pode ser expressa em relação ao produto interno bruto
(PIB) do país de origem: acredita-se que, a partir dos anos 90 do século passado, o fluxo de
remessas transferidas por meio de canais oficiais representava 3% do PIB (CASTAGNONE et
all., 2005) e foi crescendo respectivamente para 6% em 2001, 8,6% em 2007 até 12,1% e em
2017 por um valor equivalente a 2.220 milhões de dólares (ANSD, 2018), ao qual se devem
somar os fluxos informais, que, segundo o Banco Africano de Desenvolvimento (AFDB),
representariam cerca do 46%. Em algumas regiões do Senegal, por exemplo em Louga, as
remessas já chegaram a somar 90% das rendas familiares. Em razão desse aporte econômico,
criou-se uma gratidão social à figura do migrante, que pode ser visto como herói, como nos
51 É interessante destacar como a representação dos migrantes em Dakar tenha se modificado: inicialmente, de
fato, os modou-modou que sazonalmente da região rural se deslocavam na capital para fazer pequenos comércios
eram vistos negativamente (RICCIO, 2007), enquanto que, após ampliar seus deslocamentos para a Europa e
aumentar suas rendas, passam a ser considerados, como dito acima, sujeitos prestigiosos.
55
textos das canções do álbum intitulado Immigrés, lançado em 1988 pelo cantor senegalês
Youssou N´Dour.
Por quanto o aspecto econômico seja considerado central, o que parece atrair e
retroalimentar a prática migratória não são apenas seus resultados financeiros e/ou materiais,
mas também a forma como essa prática é realizada. Exemplar é a fala de Cheikh Lô a esse
respeito:
(Eu) tinha um primo na França. Ele comprava as mesmas coisas que eu
compro agora e ia para a França vendê-las. As coisas caminhavam bem para
ele: ficava seis, sete meses lá (...) não ficava fixo ali, digamos, nove meses
na França e três no Senegal... assim fui tomado por essa paixão.
A “paixão” à qual Cheikh se refere é a atividade comercial translocal, mas também a
modalidade de “ir e vir” que essa prática econômica viabiliza. O “vai e vem” da Itália para o
Senegal, e vice-versa (CASTAGNONE et all., 2005), pode se traduzir em viagens anuais ou
até mais frequentes entre os dois países, com duração média de um até quatro meses,
dependendo da ocupação do sujeito. Os retornos periódicos ao Senegal são motivados,
conforme as falas de meus interlocutores, pela nostalgia e necessidade de visitar os parentes,
com os quais mantêm deveres tanto afetivos quanto econômicos, além do objetivo de
encaminhar e monitorar atividades econômico-financeiras para os próprios migrantes e seus
familiares. A intensa sociabilidade que caracteriza os vínculos entre senegaleses explica
também a necessidade de um estreitamento do espaço que os separa. Essa dinâmica
migratória circular remete, então, a valores fundamentais para a comunidade pesquisada: por
um lado, garante a manutenção dos laços com a família de origem, assim como com as
esposas e os filhos que permanecem no Senegal e, por outro, reafirma autoridade e prestígio
no próprio meio social.
A pessoa que circula é percebida, e se percebe, como autônoma e livre pelo fato de ter
experiência de vida em diversos lugares: ela domina e conhece uma gama maior de espaços
geográficos e sociais. Nesse sentido, a viagem é também considerada como forma de
emancipação: se migra pelo yokuté - em wolof, “vontade de melhorar” (idem: 2005) -, mas
também pelo desejo de conhecimento. Essa perspectiva, já presente na narrativa de Cheikh Lô
- “eu tinha este sonho de ir para Europa, de chegar até lá, de ver” -, é proposta também por
Babacar Diop52: “eu já tinha viajado para Mali, Camarões, Nigéria, Costa do Marfim, Gana
52 De pai nigeriano e mãe senegalesa, tem 50 anos, nasceu em Dakar onde é casado com uma mulher e tem
quatro filhos. Atua como técnico de geladeiras e aquecedores e comerciante.
56
(…), aí quis ir para Europa para ver como era.” Nesse último caso, a migração para a Europa
é considerada como continuação de uma experiência de viagem prévia que, nas suas palavras,
tinha começado no Mali, “assim, sem pensar”. Ou seja, “ver” é sinônimo de conhecer,
descobrir e, com isso, acumular novas experiências.
A modalidade circular da migração senegalesa já era experienciada pelos primeiros
migrantes que inauguraram o fluxo na Itália, na metade dos anos oitenta do século passado.
De fato, três ou quatro meses ao ano, na estação estiva, comerciantes senegaleses se
deslocavam para as praias italianas, vindo do Senegal ou de outros países europeus, para
vender artesanato e bijuteria. “Ir e vir” se tornou, então, uma forma consolidada de
deslocamento à qual todos os migrantes aspiram, mas que se realiza sob condições
específicas: tem que se ter tempo, possibilidades formais (visto de permanência) e econômicas
(dinheiro para despesas de viagem, uma quantia para a estadia, além da disponibilidade de
valores a serem doados a amigos e parentes). A viagem de volta ao Senegal é sempre
considerada onerosa, principalmente por causa desse último item, representando o maior
impasse para quem deseja voltar temporariamente. Atender às demandas de parentes e amigos
do país de origem, as quais não cessam a distância, mas, ao contrário, se multiplicam,
representa, como já se disse, uma obrigação. As condições citadas nem sempre são
realizáveis, resultando em períodos mais ou menos longos de permanência na Itália, na
tentativa de ampliar os recursos, o que resulta, segundo meus interlocutores, em sofrimento e
saudade da família.
Essa modalidade de idas e retornos frequentes entre países não é praticada somente
pelos migrantes senegaleses na Itália, mas, como já mencionamos, fundamenta o modo dos
senegaleses migrarem, como Serigne Masour Tall e Aly Tandian descrevem no artigo
“Migration circulaire des Sénégalais. Des migrations tacites aux recrutements organisés”
(2011). Segundo os autores:
La migration circulaire a été longtemps pratiquée par les Sénégalais, de
manière certes spontanée, bien avant qu´elle ne soit inscrite dans l´agenda
international comme une piste de gestion concertée des migrations
internationales et comme um moyen de réconcilier le couple migration et
développement. En effet, les migration sénégalaises étaient de courte durée
et étaient caractérisées par des retours fréquents suivis de ré-émigration
selon la force et la nature des réseaux de départ.
E ainda:
57
La migration circulaire est tout simplement une migration temporaire de
personnes quittant leur pays d´origine pour exercer une activité économique
dans un autre pays et revenir ensuite dans leur pays d´origine après une
durée determinée. Tout de même, une approche de l´histoire des migrations
internationales sénégalaises montre qu´elles ont été solvente circulaires et
spontanées.
A modalidade circular foi observada tanto em relação aos fluxos no interior da África
Ocidental (Gabão e Costa do Marfim, por exemplo) quanto aos fluxos transnacionais para a
Europa. Segundo os autores, quanto mais as destinações são próximas, mais frequentes são os
retornos. Na França, por exemplo, os migrantes têm realizado um sistema migratório chamado
noria, um modelo rotativo, que, além das idas e voltas regulares, inclui a substituição do
migrante por outro membro da família ou irmão social, uma vez que o primeiro tenha
encerrado sua estadia no exterior. Segundo Tall e Tandian (2011), a construção desse fluxo
específico, que tem origem no vale do Rio Senegal, e a duração da experiência migratória
obedecem às lógicas familiares, segundo as quais os diferentes membros da família teriam
papeis e responsabilidades específicas, coletivamente estabelecidas (2011: 04).
A ênfase que os autores atribuem à busca de uma melhoria econômica como
motivação central que propulsiona os deslocamentos deveria ser, a nosso ver, relativizada, no
sentido de incluir outros elementos, como o desejo de conhecimento, autonomia e liberdade e
o anseio de adquirir um papel de destaque no próprio meio social (o que chamamos de status
de prestígio), como descrito acima, os quais enredam de forma mais complexa o conjunto de
motivações e expectativas relativas à viagem. Uma análise unicamente econômica, de fato,
reduz o quadro, simplifica-o, uma vez que desconsidera aspectos que os próprios migrantes
identificam como significativos, os quais compõem o sistema migratório determinando
lógicas e práticas específicas. A própria modalidade circular se dá em parte em razão dessas
outras motivações, ao mesmo tempo que as reafirma e reforça.
A prática de deslocamento dos migrantes senegaleses não se limita à circulação entre
país de origem e de chegada, mas pode assumir uma forma nomádica. De fato, como se
percebe tanto pelas trajetórias migratórias de meus interlocutores quanto nos dados coligidos
em outras pesquisas (Castagnone 2005, Riccio 2007, Ceschi 2006, Tall, 2008), a mobilidade
dos migrantes pode ser marcada por fases de circularidade e outras de verdadeira itinerância,
que são intercaladas com voltas periódicas ao país de origem, enquanto meta final dos
percursos. Nessa perspectiva, trajetórias caracterizadas por saídas temporárias para países da
58
África Ocidental, assim como sucessivas mudanças no interior da Europa, marcadas por
estadias de alguns anos em diversos países, são comuns entre meus informantes.
A migração constituída por idas, retornos e novas partidas não é característica somente
da prática senegalesa, mas de outros grupos de migrantes africanos, por exemplo,
marroquinos. Sobre a modalidade desses fluxos, Alain Tarrius (1993) estudou o caso dos
comerciantes magrebinos em Belsunce, bairro histórico de Marselha. Sua pesquisa, iniciada
em 1985, se debruça sobre a análise das trocas comerciais e financeiras promovidas por esses
comerciantes migrados na França, os quais traçam redes transnacionais que enredam diversos
países, em especial França, Espanha, Itália, Marrocos. A partir da observação das modalidades
de trânsito desses atores, dos quais se tratará mais especificamente à frente com um cunho
etnográfico, o autor formula a noção de “território circulatório” (1993). Segundo Tarrius
(1993), os migrantes magrebinos em Marselha, assim como outros que passaram a circular na
Europa a partir da segunda metade do século XX, procuram escapar aos projetos das políticas
públicas dos países de chegada, os quais pautam uma noção de cidadania que privilegia os
processos de “migração/inserção”, pressupondo um migrante sedentário. As duplas
mobilidade/sedentarismo e identidade/alteridade são, então, segundo Tarrius (1993), pontos de
partida para se compreender as articulações produzidas entre trajetórias singulares, destinos
coletivos e redes transnacionais. Segundo o autor, a noção de “movimento” se constrói a partir
da prática de deslocamento entre lugares, observável nas trajetórias individuais dos migrantes
e em suas narrativas. Por outro lado, o “território” não deve ser entendido como mero espaço
no qual os migrantes se fazem presentes: ele surge enquanto dimensão na qual os indivíduos
reconhecem ter compartilhado uma história comum. “A noção de território circulatório consta
numa certa socialização dos espaços suportada pelos deslocamentos” (1993: 46). As redes se
viabilizam, então, do ponto de vista espacial, pela recomposição da descontinuidade dos
lugares através dos deslocamentos e das trocas e, do ponto de vista temporal, através da
memória.
O aspecto circular da migração senegalesa não envolve somente as pessoas, mas
também coisas, dinheiro e palavras. O trânsito das coisas, como veremos no último capítulo,
envolve principalmente as mercadorias, mas também outros itens, como presentes e objetos
considerados úteis ou necessários (remédios e alimentos, por exemplo), transportados tanto
via contêiner quanto por meio de correios que atuam informalmente (os chamados “GP”). A
prática de enviar remessas de bens e/ou dinheiro, como veremos, inclui dinâmicas formais e
extraformais. Em relação à circulação de palavras, o uso cada vez mais frequente das redes
sociais, principalmente por parte dos migrantes mais jovens, define novas formas de
59
socialização entre contextos de origem e de chegada, assim como entre migrantes instalados
em diversos países. A frequência com a qual se movem esses itens é intensa e proporciona a
percepção de uma implosão das distâncias e de uma certa ubiquidade do migrante, que se faz
presente e age “aqui e lá”53.
Se, como vimos, a experiência migratória pode ser vista como aventura, como
percurso de formação, de busca, de descoberta, essa também comporta aspectos
problemáticos. Para além do desafio que envolve o deslocamento de pessoas de nacionalidade
africana para a Europa, devido às políticas restritivas analisadas no primeiro capítulo, o
domínio de espaços múltiplos requer conhecimentos e esforços por parte do migrante, que,
por um lado, busca se perceber como sujeito adequado “aqui e lá” e, por outro, deve gerir
realidades muito distintas. A esse respeito, Ibrahima Diajne54 afirma:
Vir para Europa estragou meus pensamentos, porque, quando estava aqui,
pensava no Senegal e, quando voltei para lá, comecei a pensar que talvez
fosse melhor ficar aqui, ficar 2 ou 3 anos e depois retornar. Se tivesse
conhecido somente o Senegal, não teria tido esses pensamentos. Quando
você conhece duas coisas, começa a pensar se é melhor uma ou a outra.55
A possibilidade de escolha, que advém da liberdade, se traduz, então, em dúvida,
próxima à condição que Sayad define como “dupla ausência” (1999). Esse status de
suspensão implica uma condição de estranhamento, tanto no exterior como no país de origem,
podendo se traduzir em condições de isolamento. Na ocasião de uma conversa, Cheikh Sou56
descreveu assim suas voltas para Dakar, onde tem esposa e filhos:
Quando volto para lá, não estou mais acostumado com muitas coisas, assim
me fecho em um quarto e fico ali... porque lá não é como aqui, sempre tem
alguém em casa, é um vai e vem ... aí as pessoas me dizem `você agora é
italiano´.
Apesar da modalidade migratória do “vai e vem” permitir renovar a manutenção do
contato com mais territórios, o migrante, frequentemente, se depara com a experiência do
53 Possibilitando, então, a afirmação citada no capítulo anterior: segundo a esposa de um migrante sediada no
Senegal, seu marido “trabalha lá e mora aqui”. 54 De etnia wolof, tem 55 anos, nasceu na região rural de Louga, onde praticava comércio de cavalos. Na Europa,
foi operário e comerciante. Chegou na Itália em 1987. Atualmente, trabalha com comércio. É casado no Senegal
e tem 3 filhos que moram lá. 55 Entrevista, 3 de março de 2014. 56 De etnia pel, nasceu em Dakar, tem 45 anos, chegou à Itália em 85. Trabalhou como operário e com comércio
de coisas novas e usadas da Itália para o Senegal. É casado no Senegal, onde tem três filhos.
60
desarraigamento, que pode surgir em forma de estranhamento no meio social no qual está
inserido ou individualmente, como sentimento de inadequação. Ter uma atitude europeia ou
ter se tornado um toubab (“ocidental”, em wolof) não é uma (auto)qualificação dada, mas
situacional, e pode carregar uma acepção negativa, indicando falta de solidariedade,
tolerância, dignidade, moderação e hospitalidade, valores considerados importantes no
Senegal (RICCIO, 2007: 61). A ruptura com o contexto de origem se torna mais grave e
adquire as feições de uma cobrança, quando o migrante reconhece as obrigações ligadas ao
próprio papel tradicional, que deveria, mas não consegue, exercer. A situação citada por
Lamine Bâ57 pode servir como exemplo. Ele me contou que, durante uma volta para Touba,
foi a um funeral. Quando saiu de casa para participar da cerimônia “com roupas ocidentais”, a
irmã o alertou que deveria vestir o traje tradicional e prosseguiu a narrativa, comentando:
Mas eu não estava nem aí, e fui assim mesmo. Quando aconteceu a
cerimônia, eu estava de calça curta no meio de todas aquelas pessoas que me
olhavam, o único vestido assim (...) E eles deviam estar pensando que eu
estava louco, porque é isso que pensam. Fiquei com muita vergonha. Porque
agora que nossos pais morreram, nós estamos no lugar deles.
Se, num primeiro momento, ele achou desnecessário acatar o conselho da irmã,
sucessivamente o sentimento de inadequação toma forma a partir da percepção de
estranhamento nos olhares alheios. A “vergonha” surge em relação ao papel que ele deveria
desempenhar, isto é, representar a família perante os demais, uma vez que, sendo ele agora o
homem mais velho, deveria assumir o lugar do pai.
Por vezes, o estranhamento de novos hábitos adquiridos durante prolongada ausência
pode desembocar em embates verbais entre os migrantes e seus conterrâneos no Senegal,
como no caso contado por Cheikh Lô:
Querendo ou não, eu sou italiano pela metade, no sentido que penso
como eles... uma parte da minha vida passei aqui (na Itália),
(portanto) eu sou também daqui. Cheguei aqui com vinte e quatro,
vinte e cinco anos, agora estou com cinquenta e seis, alguma coisa
acabei absorvendo (...). Às vezes, quando vou para o Senegal, me
tratam como estrangeiro. As pessoas me olham um pouco assim...,
porque tenho umas atitudes, sem me dar conta, como os europeus (...)
porque às vezes vou nos escritórios e (...) aqui tudo, digamos,
funciona em comparação ali, e quando fico um pouco mais de tempo a
esperar na fila ou vejo alguém que me passa na frente, começo a ficar
57 De etnia pel, tem 53 anos, nasceu em Touba, é casado no Senegal com uma esposa com a qual tem dois filhos,
foi casado na Itália com uma mulher senegalesa com a qual teve uma filha que, atualmente, mora em Turim.
Lamine trabalha com comércio ambulante.
61
puto e as pessoas dizem ´mas o que você quer, só porque você vem de
fora’ (...) sabe essas coisas assim? Eu levo as coisas de um jeito um
pouco mais decidido, enquanto eles sempre estão tranquilos, não estão
nem aí! E, talvez, tenham razão! Um dia, um velho me falou assim:
`vocês, na Europa, tem hora, mas aqui estamos na África, e nós
temos... o tempo!
Os relatos citados evidenciam a complexidade da experiência que os deslocamentos,
que constituem o modelo circular da dinâmica migratória senegalesa, implicam. Esses, de
fato, produzem impasses, estranhamentos, tensões negociadas e redefinidas situacionalmente.
Do ponto de vista teórico, nas ciências sociais se tem discutido a mobilidade transnacional ou
translocal enfatizando a fluidez do movimento, desconsiderando, muitas vezes, as
complexidades que o tornam possível. A nosso ver, é importante não perder de vista a
dimensão desafiadora que envolve os deslocamentos: circular requer conhecimentos, recursos,
esforço, planejamentos e elaboração de estratégias que demandam ressignificações
contingentes; requer capacidades específicas, que podem ou não ser adquiridas com a
experiência. O anseio da viagem pode fracassar, como no caso de Cheikh Fall58, que, depois
de uns anos de estadia na França e sucessivamente no Brasil, se deslocou para os Estados
Unidos pela fronteira mexicana, foi preso, detido por quase um ano, e repatriado. A
circularidade pode ser interrompida por períodos forçados de sedentarismo, devido à falta de
documentos regulares ou de recursos financeiros, tornando-se, então, fases sofridas para os
migrantes, os quais, além de dever lidar com a frustração de não conseguir alcançar seus
objetivos, se deparam com as cobranças dos familiares no Senegal, o que pode levar a
impasses nas relações afetivas. Há todo um conjunto de estranhamentos, como vimos, de
ajustes circunstanciais que a circulação entre territórios geográficos e culturais distintos
implica. Reconhecer esses aspectos não somente restitui etnograficamente a complexidade
dos movimentos translocais, mas também nos permite o reconhecimento de habilidades
duramente aprendidas, que fazem nossos interlocutores os viajantes que são.
2.3 Migrar para trabalhar
Se migrar, para uma parte de meus informantes, pode ter sido motivado pelo desejo de
liberdade e pelo yokuté (vontade de melhorar, expansão do conhecimento), pode também
58 De etnia wolof, tem 32 anos, é nascido em Dakar, não é casado e atua como operário e comerciante.
62
associar-se à busca de trabalho e à melhoria econômica. Tais razões podem ser motivações
primárias59 ou aparecer complementarmente àquelas citadas. Ainda assim, na trajetória dos
migrantes, a questão do trabalho representa uma motivação central. Todos meus interlocutores
exerciam uma profissão no Senegal antes de expatriar (eram, na maioria, comerciantes) e, do
ponto de vista financeiro, consideravam a viagem uma ocasião para incrementar suas rendas.
Desenvolver uma atividade remunerada é necessário não somente para garantir a
própria sobrevivência, mas, como se disse anteriormente, envolve a obrigação de ajuda
financeira à própria família e aos conhecidos que estejam necessitados. Tal demanda, como
vimos, é constante e reforçada pela representação da Europa como “eldorado” (RICCIO,
2007): segundo essa visão, quem mora em um país europeu sempre tem como ajudar, pois tem
acesso a uma gama mais ampla de recursos materiais. Realizar ou não a obrigação de ajuda é,
então, interpretado como boa ou má vontade. No caso dos homens, as pressões para se
cumprir essa obrigação são mais severas: eles devem exercer o papel de provedores não
somente em relação às próprias mulheres e filhos, mas também, quando necessário, à família
de origem, sendo essa uma função esperada especialmente em relação ao primogênito.
Espera-se dos homens que, uma vez adquiridas as condições financeiras, eles deixem a
moradia paterna e passem a ter sua própria casa. Essa é considerada uma forma de
emancipação e representa a aspiração primária dos homens casados. Portanto, entre os
migrantes de sexo masculino, observou-se que comprar a própria casa e fazer investimentos
para viabilizar uma atividade remunerada no país de origem, que envolva também os parentes,
são seus objetivos principais. Para isso, é destinada parte de suas rendas obtidas em atividades
profissionais desenvolvidas na Itália60.
A perspectiva de uma melhoria da renda no país de chegada alimenta a prática de
“poupar dinheiro”, considerada inviável no Senegal pela maioria das pessoas com as quais
conversei. Fica evidente, na fala de meus interlocutores, que a poupança se apresenta como
possibilidade tanto pela expectativa de exercício de atividades mais rentáveis quanto pelo
ganho em uma moeda “forte”, isto é, com um elevado valor de troca.61 Nesse sentido, apesar
59 Disse-me, por exemplo, Ibrahima Diajne: “Migrei pela pobreza” (entrevista, 3 de março de 2014) e Pape Kâ,
por sua vez, afirmou: “Vim aqui para trabalhar. Porque sem trabalhar não se pode fazer nada. Suamos para ter
dinheiro”. Este último é de etnia pel, tem 32 anos, nasceu na região rural de Louga. No Senegal, era fotógrafo; na
Itália, trabalhou como operário e comerciante. Atualmente, é comerciante, vende mercadorias contrafeitas, no
Senegal tem duas esposas e três filhos. Chegou à Itália em 2010. Entrevista, 12 de março de 2013. 60 Sobre as modalidades desses investimentos e das remessas financeiras trataremos no capítulo 5. 61 A valorização ou desvalorização das moedas do país de chegada, como critério que influencia as rotas
migratórias, ficou também explícito em algumas narrativas recolhidas no Brasil, onde alguns migrantes, em
2015, se queixavam da desvalorização do real e cogitam se deslocar para outros países onde o câmbio fosse mais
conveniente.
63
dos entrevistados não explicitarem tal motivação de forma direta, pode-se aventar que muitos
daqueles que migraram na metade dos anos 90 do século passado podem ter sido motivados
também pela desvalorização da moeda CFA (Colonies Françaises d'Afrique) que, em 94, foi
reduzida de 50% sob a pressão do Fundo Monetário Internacional e da França.
A dedicação ao trabalho, além de ser motivada pelas razões acima, tem outro papel
central na cotidianidade dos meus interlocutores. Representa um valor espiritual e meio de
reconhecimento social no muridismo, ao qual muitos dos meus interlocutores pertencem.
Segundo a perspectiva murid, o trabalho, principalmente manual, é concebido como um
exercício espiritual que aproxima o indivíduo a Deus, podendo substituir a prece. Essa
substituição é aceita e reconhecida somente por alguns setores da confraria, como a Ordem
dos Baye Fall62. A finalidade dos murid é obter a “felicidade nos dois mundos”, terreno e
espiritual, sendo o trabalho considerado o caminho mais rápido para alcançá-la. A exortação
dessa atividade pode ser explicitada por meio de um ditado atribuído a Cheikh Amadou
Bamba: “trabalha como se nunca fosse morrer e reze como se fosse que morrer amanhã”. Essa
lógica oferece um importante suporte aos migrantes nas fases profissionais de maior esforço e
dificuldade, enfrentadas com rigor e determinação. Tais perspectivas têm alimentado, por
parte dos italianos, a representação dos senegaleses empregados nas fábricas como “bons
trabalhadores”.
A maioria dos meus interlocutores trilhou um percurso escolar breve: alguns foram
alfabetizados e frequentaram a escola corânica sem prosseguir nos estudos, enquanto outros
chegaram a terminar o que, no Brasil, equivale ao primeiro grau. Essa baixa escolarização é
por eles compensada por uma marcada versatilidade no campo das experiências profissionais.
A maioria dos entrevistados desenvolveu diversas atividades, apesar de cada um pertencer a
62 Seita murid, que tem como referência espiritual o shaykh Ibrahim Fall, discípulo mais devoto de Cheikh
Amadou Bamba. Esse último ocupou a maior parte de sua existência, seguindo os fundamentos sufi tradicionais,
ensinando, escrevendo, meditando e rezando distante da vida pública. A opção pelo recolhimento o levou a não
se ocupar diretamente da organização dos talibée, que foi delegada ao discípulo Ibrhaim Fall. De forma que, se
Bamba foi a referência espiritual para a constituição da Confraternidade Murid, Ibrhaim Fall teve um papel
fundamental como organizador e coordenador dos talibée, contribuindo para fundação e estruturação da ordem.
Ele criou uma instituição central para o funcionamento da confraria: as daara rurais. Estas são constituídas por
grupos de talibèe, que oferecem seu trabalho ao marabuto, cultivando suas terras, em troca da obtenção da
baraka. As daara, tiveram, e têm, um importante papel na formação espiritual dos discípulos, pois estes,
prestando serviço sem remuneração, praticam a humildade. Trabalhar nas daara rurais, como resultou da minha
pesquisa, pode representar uma atividade temporária: parte dos meus informantes relataram ter participado de
tais contextos quando crianças, ou seja, essa atividade acompanhava o estudo nas escolas corânicas. Um de meus
interlocutores afirmou ter trabalhado “pelo coração”, evidenciando que a devoção o moveu à tal escolha. Há que
se ressaltar, porém, que para além do exercício espiritual, as daara exerceram um papel central em relação à
produção do amendoim na região do Baol, o que contribuiu para a manutenção econômica de país por décadas.
Assim, além de sua importância econômica, elas contribuíram a formar uma noção de trabalho específica no
contexto dessa confraria.
64
uma determinada casta que, tradicionalmente, prescreve a atuação numa área profissional
específica, ensinada de pai para filho. Na etnia wolof, assim como em outras etnias que
compõem a população pesquisada (hal pulaar, a qual inclui pel e toucouleur; diola;
mandingo; serer, principalmente), existe uma divisão principal entre géér e neeno: os
primeiros são agricultores, pescadores, criadores, sua função é produzir alimentos, enquanto
que os segundos são artesãos e cantores (DIOP, 1981). Segundo Diop (1981), há uma ligação
entre castas, profissão e função social; suas relações são interdependentes e obedecem a uma
estrutura hierárquica. Os géér, de ranking superior, tradicionalmente, têm obrigação de
oferecer assistência material aos neeno, os quais prestam serviço para eles como artesãos,
músicos, contadores de histórias, dançarinos, entre outros63. A endogamia caracteriza cada
casta e até hoje é parcialmente respeitada64.
Alguns de meus interlocutores, no começo de suas trajetórias profissionais, praticaram
as atividades prescritas pelas castas às quais pertencem, sendo, aos poucos, porém,
abandonadas em favor de ocupações consideradas mais rentáveis ou mais afeitas aos seus
gostos. Em relação a este último caso, por exemplo, Lamine Bâ, da casta geer, em uma
ocasião, me contou da transição profissional que interessou sua família, originária da região
rural próxima da cidade de Mbacke, que passou do exercício da atividade agrícola, praticada
tradicionalmente pelo avô, para a atividade comercial. Segundo o relato dele, seu pai, quando
criança, participou de um funeral e, nessa ocasião, disse à sua mãe que o morto “tinha sorte
porque não precisaria mais trabalhar a terra”. Ouvindo isso, a mãe lhe prometeu que poderia
atuar em outra área. O rapaz iniciou, assim, sua trajetória profissional ajudando um
comerciante amigo de família e, posteriormente, passou a atuar de forma autônoma. No
período da seca, no ano de 1970, já casado e com filhos, se mudou para Dakar, deixando a
63 Diop, em seu livro La sociedade wolof. Les systemes d´inegalite et de domination (1981), trata a questão das
castas em relação à organização social wolof, mas estas mesmas classificações têm correspondências nas outras
etnias acima citadas. A casta neeno tem subdivisões internas, a principal é entre sab-lekk (literalmente, os que
vivem de seus cantos), que são músicos, cantantes e historiadores, também chamados griot ou gwel em wolof; e
jef-lekk (etimologicamente, os que vivem de seus ofícios), os artesãos. Estes últimos se dividem ulteriormente
em subgrupos, dependendo do tipo de atividade desenvolvida: tegg (joalheiros e ferreiros), uude (sapateiros),
ràbb (tecelões) etc. Além dos geer e neeno, existe uma terceira casta: os noole, que é considerada separada e
“marginal” em relação às outras. Esta última inclui bufões, servidores e cortesãs, e representa a casta
hierarquicamente inferior. As mudanças de profissão no contexto deste sistema não são recentes; algumas podem
ser remetidas à época pré-colonial, tendo interessado de forma diferenciada os grupos. 64 A endogamia das castas é observada nas aldeias de todas as etnias e representa uma regra seguida pela maioria
das pessoas nas regiões rurais. É diferente nos grandes centros urbanos, onde, atualmente, está sendo abandonada
pela geração mais jovem, principalmente entre os que têm maior nível de instrução. A endogamia é uma forma
de organização social tradicional que se contrapõe à perspectiva islâmica, segundo a qual, o que deve ser seguido
para efetivar um bom casamento deve ser “o coração”. Esse é o argumento ao qual, geralmente, os jovens
apelam para convencer os pais quando querem se casar com pessoas de outras castas. A lógica dessas diferenças,
de qualquer forma, permeia o sistema de relações e pode ser ativada, como veremos há frente, em situações
específicas.
65
família em Mbake para onde voltava mensalmente, e abriu uma loja de relógios na feira
Sandaga65. Foi com o pai, na loja deste último, que Lamine Bâ se iniciou na atividade
comercial, a qual desenvolve até hoje. Esse relato evidencia também a importância do papel
feminino, nesse caso, o da mãe em relação ao destino profissional do filho. Se ocorrem
mudanças radicais de profissão, por outro lado, existem também casos em que habilidades
adquiridas em atividades tradicionais podem ser realocadas, como no caso de Cheikh Fall, que
pertence à casta tegg. Ele trabalhou como joalheiro com o irmão mais velho em Dakar, com o
qual aprendeu a profissão, e, durante uma fase de permanência no Brasil, atualizou e
resignificou os saberes tradicionais atuando como soldador em uma empresa metalomecânica
no Rio Grande do Sul.
Segundo Pape Kâ, “no Senegal, se aprendem várias profissões, se estuda e trabalha ao
mesmo tempo”. Quanto às atividades desenvolvidas no exterior, Amadou Thiam66 afirma: “fiz
de tudo, tentei todos os caminhos”. Maguette Niang67 qualifica em termos de “criatividade”
essa versatilidade profissional: “os senegaleses têm um ponto forte porque são criativos, são
pessoas que criam, por exemplo, os que vendem carros, hoje, antes vendiam máscaras,
tambores e objetos de arte”. A capacidade de se reinventar, de se adaptar a novas realidades,
de aplicar conhecimentos adquiridos alhures em novos contextos são características explícitas
na trajetória de François Sané68, que, formado em matemática e física, atuou como professor
de segundo grau em Casamance e depois se tornou técnico de iluminação em Turim
trabalhando para uma companhia de circo. Ele explica assim o começo de sua atividade:
Com o que sabia de física me apresentei em uma casa sonora e fiz carreira,
passei a me ocupar de iluminação: fazia montagens elétricas com cálculos
específicos. Com essa companhia australiana de circo acrobático, rodei
quase a Europa inteira por dois anos.
François Sané abandonou essa carreira, que o obrigava a frequentes viagens ao
exterior, quando decidiu ter filhos. Casado com uma mulher italiana, optou para estar próximo
da esposa e acompanhar mais de perto o crescimento dos pequenos. Ele, agora, atua em várias
65 Este mercado, hoje um dos mais importantes em Dakar, foi criado pelos murid que migraram nesta época
(RICCIO, 2007) das regiões rurais citadas. 66 Tem 35 anos, é de etnia pel, chegou na Itália em 96. É originário da região de Touba, onde era alfaiate assim
como seus familiares. Na Itália, trabalhou como operário e comerciante, atualmente é comerciante. É casado em
Touba e tem quatro filhos. Entrevista, 20 de janeiro de 2014. 67 Tem 24 anos, chegou na Itália em 2006. De etnia wolof, é um guéweul, e é músico e dançarino. Casado com
uma mulher italiana, tem com ela um filho. Trabalha como músico e professor, desenvolve atividades com a
associação cultural e filantrópica Tamara, que fundou em 2008. Entrevista, 26 de janeiro de 2014. 68 Dados sociológicos na nota 48.
66
áreas: dá aulas particulares69, é mediador cultural70, “procacciatore d´affari”, literalmente
quem procura e encontra negócios, para uma empresa italiana que compra e vende material
médico usado no exterior e, como veremos, comerciante. Fora esse caso singular, tanto pela
quantidade de atividades empreendidas ao mesmo tempo quanto pela carreira acadêmica
desenvolvida (foi o único caso que encontrei com formação universitária), todos os meus
interlocutores mostraram, de forma diferenciada, a mesma versatilidade, que também pode ser
considerada como uma forma de “esperteza”, valor central no universo moral senegalês.
Riccio (2007) aponta que esse é atribuído aos migrantes pelos próprios conterrâneos: quem
migrou é quem sabe “se virar”, pessoa astuta e capaz. A mousse, esperteza em wolof, é uma
qualidade usada como autorrepresentação nacional e remete à literatura oral tradicional,
especialmente às histórias ligadas a leck (lebre) e buky (hiena), nas quais a característica
principal dos personagens é justamente a astúcia, que norteia o enfrentamento de todas as
situações problemáticas (RICCIO, 2007: 63).
Se, por um lado, no campo profissional, existe versatilidade e esperteza (mousse), por
outro, segundo El Hadji Alioune N´Diaye (2000), o que se aprende na “educação tradicional
senegalesa” gravita na esfera semântica por meio de três verbos: jàpp, isto é, segurar; fonk, ter
consideração, begg, querer bem, e também três substantivos: liggéey, trabalho; ngor,
honestidade; diina, religião. Ou seja:
Em wolof se diz:
- liggèey dañuy koy jàpp: literalmente “o trabalho precisa ser segurado nas
mãos”, isto é, o trabalho deve ser respeitado;
- ngor dañuy koy fonk: a honestidade precisa ser estimada;
- diina dañuy koy begg: a religião deve ser amada.
Estas são as frases de referências que determinam a atitude dos meus
conterrâneos com relação ao trabalho, em qualquer lugar, também na Itália
(2000: 72).
É importante pontuar alguns elementos relativos à tradução dessas expressões. Os
termos “dañuy koy”, associados, respectivamente, ao grupo de verbos e substantivos que El
Hadji cita, indicam a natureza prescritiva da ação sugerida, incluindo, como sujeito, a
primeira pessoa plural (“nós devemos”). Deve-se ressaltar que o termo jàpp está vinculado ao
plano físico: o trabalho deve ser pego e segurado, isto é, conservado, e, então, amparado,
cuidado, em primeira instância, materialmente. Esse verbo situa, assim, o trabalho na esfera
69 Foi meu professor de wolof e francês. 70 Cargo instituído pela prefeitura de Turim e promovido no contexto das políticas para a migração, ao qual se
tem acesso realizando um curso específico.
67
da corporeidade, central na perspectiva murid. Por outro lado, fonk remete a algo em relação
ao qual se tem apreço, grande consideração: essa é a atitude que se deve ter em relação a
ngor. Esse substantivo pode ser traduzido pelo termo honradez, que remete a uma esfera
semântica ampla, incluindo todos os valores morais considerados positivos pelos senegaleses:
dignidade, retidão, honestidade e discrição, principalmente71 . Poderíamos, então, traduzir da
seguinte forma a expressão acima: literalmente, temos que considerar a honradez, ser
virtuoso, como de central importância. Por fim, a religião remete a uma postura afetiva. Begg,
“querer bem”, de fato é uma ação associada ao sentimento, vinculada à dimensão do
“coração” e do “amor”, noções centrais na religião islâmica. Nas prescrições que norteiam a
educação senegalesa, temos, então, três elementos essenciais: trabalho, religião e virtude
relacionados, respectivamente, à esfera material, afetiva e à dimensão moral, qualificada
como primária. Essas obrigações são reconhecidas como fundamentais pelos meus
interlocutores: ao longo da etnografia, observaremos como os valores acima citados (vontade
de melhorar, esperteza, obrigação de ajuda, prestígio, dignidade) e outros que apresentarei se
entrelaçam com esses lemas. Da mesma forma, serão discutidas algumas das modalidades de
desdobramento de tais prescrições no plano das práticas, principalmente atreladas ao
comércio.
As atividades profissionais dos homens senegaleses em Turim são divididas,
principalmente, entre o trabalho na fábrica como mão de obra não especializada e o comércio.
No entanto, eles podem atuar, também, como técnicos e artesãos, ou, ainda, sazonalmente,
trabalham na colheita de frutas ou verduras nas regiões rurais próximas da cidade. Todas as
pessoas que entrevistei (com exceção de uma) exerceram e/ou atualmente praticam o
comércio, eventualmente acompanhado por outras atividades.
É importante destacar que, para os senegaleses, a noção de trabalho não se identifica,
necessariamente, como atividade remunerada. Pode-se trabalhar sem receber, como nas
daaras rurais ou, ainda, produzir renda sem estar trabalhando. O comércio faz parte dessa
última categoria. A contraposição entre comércio e trabalho é evidenciada na língua wolof,
que utiliza dois termos diferentes para defini-los, respectivamente, jaai (vender) e ligéey
(trabalhar). O comércio é, portanto, percebido como um “não trabalho”. Segundo Castagnone
et all. (2005), essa atividade remete a “um jeito de ser”. A este último são atribuídos valores
como autonomia e liberdade, que caracterizam as atividades independentes, mas também a
71 Anteriormente traduzimos também o termo jom como “honradez”, mas, nesse caso, o significado corresponde
a uma esfera semântica mais restrita e especifica, de fato, a honradez relativa a jom se refere a uma dimensão
épica associada à coragem, proeza, sendo ligada a uma disposição do sujeito em vencer os obstáculos com
dignidade, postura que suscita admiração.
68
incerteza, ou seja, pode ser representado, como veremos adiante, de forma ambivalente. De
fato, o comércio envolve um ethos complexo, com diversos desdobramentos, dependendo de
variáveis como gênero, idade, tipologia de mercadorias comercializadas etc. Não sendo,
portanto, considerada uma profissão, essa atividade perpassa o sistema de castas, podendo ser
praticada por qualquer um. Por outro lado, entende-se por trabalho o conjunto de atividades
produtivas manuais realizadas de forma subordinada.
Considerando as formas de produzir renda apresentadas acima, identifiquei três
modalidades de atuação por parte dos meus interlocutores: 1) há aqueles que se definem como
comerciantes, atuando também como operários para complementar sua renda; 2) há quem, ao
contrário, se define como operário, trabalhando ocasionalmente como comerciante; 3) E, por
fim, há quem exerça outras atividades e, ao mesmo tempo, pratica o comércio. Vou ilustrar
essas modalidades com casos específicos, expondo o extrato de três entrevistas realizadas:
1) Ibrahima Diajne:
- I. D. Quando eu tinha doze anos viajei com o meu pai pelo Senegal, íamos
a Casamance e a outros lugares para vender cavalos. Meu pai era
comerciante de cavalos. (…) Fui para Espanha onde fui vender (…). Depois
vim para Itália em ´88, ´89 (…) fui à França, onde fiquei até o verão e depois
voltei para Itália, para Rimini. Vendi no verão e no inverno fui para o
Senegal. Não posso contar tudo, são muitas coisas! (risos).
- V.D/(Vanessa Durando). Então você, durante o verão, sempre trabalhou na
praia?
- I. D. Sim, vou também para Limone, na montanha, sempre vou lá
- V.D. Você roda a Itália inteira...
- I. D. A Itália toda, muito, cada vez vou a um lugar novo.
- V.D. Mas, então, assim que você chegou na Itália começou de súbito a
viajar?
- I. D. Sim, quando cheguei, fui para Nápoles e encontrei uns senegaleses,
com eles fui para Nuoro, depois fui com um senegalês para Sinigalia e
depois vim para Turim.
-V.D. Você tem trabalhado em fábrica?
- I. D. Sim, por dois anos e também trabalhei com colheitas, mas no verão
sempre atuei como comerciante.
- V.D. O que você vendia na época?
- I. D. Tapetes, bijuteria, comprava as coisas em Nápoles.
- V.D. Mas eram coisas italianas?
- I. D. Sim.
-V.D. Trazia também coisas da África?
- I. D. Sim, a partir de ´99, tive a licença, assim comprava na França,
Espanha, Marrocos e vinha para a Itália para vender (…).
- V.D. Você compra coisas aqui e as revende no Senegal?
- I. D. Sim (…) e quando vou lá, daí compro mercadorias para revender aqui,
compro no Mali, Burquina Faso, máscaras, tambores, em Burquina se
encontram coisas antigas, (…) se quiser comprar balafon, kora, batique vai
para o Mali, para dun dun no Senegal, jambe em Burquina (…).
- V.D. Os mercantes de cavalos andam muito?
69
- I. D. Andam muito, mas eu acostumei com o meu pai a viajar muito, meu
avô paterno fazia o mesmo trabalho. Assim, agora eu rodo muito. Desde
junho até novembro, vou para Sinigalia, depois fico rodando fazendo feiras.
Fico em Turim de novembro a maio. Mas mudo sempre de lugar. Ao Senegal
vou no mínimo una vez por ano, às vezes mais, mas vou quando me bate na
telha, também se for verão aqui, fico lá um tempo e quando cansei de estar lá
viajo de volta.
2) Pape Kâ:
- P. K. (...) no Senegal, era fotógrafo (…). Aqui, trabalhei na fábrica Iveco,
fazia montagem de motores, trabalhei 8 meses na Iveco. Precisei esperar um
ano antes de começar a trabalhar porque precisavam verificar os documentos
(…). Depois fiquei desempregado e fui viajar para o Senegal. Quando voltei
em março, me chamaram para trabalhar com lataria, mas eu não tinha carro
para ir até Chivasso. Em agosto, fiz um curso de formação e me disseram
que serviria para encontrar trabalho, mas até agora nada.
- V.D. E como foi que você começou a vender?
- P. K. Comecei a ser comerciante aqui quando cheguei, não podia esperar
um ano até que me chamassem para trabalhar. Mas eu conheço bem o
comércio, na África já fiz isso, minha mãe é uma grande comerciante, mas
eu sou operário metal mecânico, toda a minha capacidade está ali. Se não
tem trabalho, me torno comerciante (…). Se tem trabalho, eu não faço isso
porque é uma merda. Vender na rua é uma merda porque ninguém te
respeita, se as pessoas te veem vender algo sempre te falam alguma coisa, te
xingam (…) faço isso só para viver, mas não gosto. Minha profissão é metal
mecânico, gosto de trabalhar, depois de oito horas vou descansar e não quero
que ninguém me incomode. Eu sou uma pessoa que se me incomodar algo,
você vê isso na hora, eu não gosto de incomodar os outros e não gosto que
alguém me xingue.
3) Babacar Diop:
Com dezenove anos, peguei diploma como técnico profissional em
manutenção de geladeiras, daí comecei a trabalhar em todos os lugares (…).
No Senegal, abri uma pequena loja na casa do meu pai, depois tive um
contrato como consertador de geladeiras por quatro anos (…). Viajei com a
minha experiência de técnico e fiquei dois anos na Costa do Marfim, depois
me mudei para Nigéria (onde vivi) por quatro anos e depois em Gana, aí vi
que o trabalho não andava tão bem, voltei para o Senegal e pedi o visto para
vir para França. Já tinha rodado todo o Oeste-África, daí quis vir para França
para ver (…). Fui para França e trabalhei lá (…) vim para Turim (…).
Andava nas ruas para ver onde tivessem lojas de reparação de
eletrodomésticos, daí encontrei um lugar, a dona da loja me fez fazer um
teste, e me disse `incrível você como trabalha! Mas onde você aprendeu?
(...)´, `na África´, disse, `você não vai mais sair daqui!´, respondeu ela (…).
Trabalhei lá por um ano e depois pensei: `porque não posso fazer a mesma
coisa sozinho?´ (…). Em ´98, aluguei uma loja em San Salvario onde fazia
reparos em geladeiras e também ia arrumá-las na casa das pessoas que me
ligavam por telefone. Aprendi também a arrumar as caldeiras para aumentar
a experiência, sou bom também com as caldeiras, é uma profissão a mais,
70
agora trabalho mais com as caldeiras que com as geladeiras porque aqui faz
frio (…).
Agora vou deixar a loja porque pagar tudo... é caro demais, não aguento
mais as despesas, me custa doze mil euros por ano. Agora prefiro trabalhar
sem lugar fixo, já tenho minha clientela, eles me chamam e eu vou na casa
deles. Me liberto de tudo, rescindi o contrato de aluguel da loja, assim fico
livre: não pago mais o aluguel e os impostos. Assim, quando me preparo
para fazer o contêiner, porque eu faço também este trabalho, para preparar os
materiais a serem levados na África... fico livre, sem empenhos (…) envio
para a África geladeiras e suas peças, porque sendo técnico sei como
escolher, mas também (envio) outras coisas (…).
Em todos os três casos, podemos perceber continuidades entre as atividades anteriores
desenvolvidas no Senegal e as sucessivas no exterior. O comércio, para Ibrahima Diajne e
Pape Kâ, foi uma profissão aprendida no contexto familiar, respectivamente com o pai e com
a mãe. Na primeira narrativa, há uma identificação com a profissão, enquanto na segunda é
assumida forçosamente, por representar a única alternativa possível para obter uma renda. Na
trajetória de Ibrahima, as viagens para o exterior podem ser pensadas como uma extensão das
práticas iniciadas na terra de origem. Também nesse caso a versatilidade marca sua trajetória,
se explicitando tanto na configuração do roteiro de lugares onde se estabeleceu e atuou como
vendedor quanto na variedade de mercadorias com as quais veio a lidar. Todos os
comerciantes com os quais conversei explicitaram essa mesma qualidade, isto é, a
versatilidade como habilidade para vender “de tudo”, que poderia ser parafraseada com o
fragmento de um diálogo que mantive com um jovem vendedor: à minha pergunta “o que
você vende?”, ele me respondeu: “o que você quer?”.
Adaptar-se à venda de bens diversos, no sentido de saber atender às demandas
diversificadas dos clientes, não implica que tal qualidade sempre se verifique, de fato, como
veremos no capítulo 03, muitos se especializam no comércio de determinados itens. Essa
escolha, no entanto, parece ser condicionada, como percebi em outros casos, à formalização
da atividade. O trabalhador ambulante, quando atua informalmente, geralmente se dedica à
venda de peças pequenas, que podem ser retiradas rapidamente (ou as apresenta sobre tapetes
que podem ser levados no ombro), enquanto ter uma licença “regular” permite a exposição de
mercadorias maiores (estátuas, máscaras, tambores, por exemplo). Também há implicações
relacionadas a seus valores: uma vez que a atuação “informal” pode ser punida com o
confisco dos bens, quando os ambulantes trabalham nessas condições, geralmente compram e
vendem mercadorias relativamente baratas. A versatilidade manifesta por Ibrahima não é
aleatória: se, por um lado, ele mantém sua atividade em lugares fixos (Sinigalia, Limone,
Turim), por outro, busca novos horizontes comerciais, incluindo “sempre” lugares onde
71
nunca trabalhou. Essa estratégia lhe permite conservar a clientela, assegurar-se de uma
inserção em espaços conhecidos e, ao mesmo tempo, ampliar os seus negócios. O trabalho na
fábrica, nesse caso, assim como a atividade de colheita, somente foi citado em resposta à
minha pergunta, tendo, para ele, menor relevância. A liberdade e a autonomia, enquanto
valores atribuídos à atividade comercial, se tornam evidentes mediante a imprevisibilidade
das viagens para o Senegal, que, como descreve, são feitas quando lhe “bate na telha”. O
poder de escolha, o exercício da vontade pessoal e o domínio sobre os territórios ganham
força quando Ibrahima Diajne diz que suas viagens para o Senegal podem acontecer também
no verão, época considerada mais propícia para as vendas na Itália. Implicitamente, então, ele
está afirmando que o desejo da volta, em algumas ocasiões, pode ser mais forte que a
preocupação com ganhos financeiros imediatos. Ele também atua na feira Balôn, onde o
conheci, vende bijuterias, incensos, bolsas e outros artigos oriundos da África, da China e da
Índia.
O relato de Pape Kâ, por sua vez, ilustra a centralidade da atividade exercida na
fábrica. Esse caso reflete as atuais dificuldades e problemáticas de inserção no mercado de
trabalho italiano, características que não se verificavam nas décadas de ´80 e ´90 do século
passado. Nesse período, como já assinalado, a maioria dos migrantes senegaleses
encontravam trabalho como operários não especializados nas fábricas de Turim e província
(CASTAGNONE at all., 2005). A crise econômica, que se estende até o momento atual nesse
segmento, levou não somente a uma restrição e intermitência da demanda de emprego nas
fábricas, como também à demissão de muitos que atuavam como operários há anos. Como
consequência, verificou-se o retorno de muitos desses migrantes ao trabalho “informal” como
vendedores ambulantes: se essa atividade assegurou, para muitos deles, uma renda na fase de
inserção na Itália, atualmente voltou a ter centralidade, desempenhando a mesma função.
“Voltar para a rua”, como alguns informantes citaram, pode ser considerado um retrocesso e
frequentemente desencadeia narrativas centradas em críticas à política migratória italiana, à
qual se atribui falta de responsabilidade social, diferentemente de outros países europeus,
como a França, por exemplo, que garante o seguro desemprego por um tempo, ainda que
reduzido. A falta de apoio por parte do Estado italiano é considerada como negação de
direitos: acredita-se que as contribuições fiscais que os migrantes realizaram durante o
emprego formal deveria retornar-lhes como benefícios num momento como esse. Na
ausência de apoio do Estado, a “volta” à prática do comércio “informal” se apresenta como
alternativa ao desemprego, estratégia que ficou explícita durante meu trabalho de campo na
72
feira Balôn, onde, como tratarei no capítulo 03, o número de vendedores aumentou
consideravelmente nos últimos anos.
Para entender melhor a situação de Pape, é preciso acrescentar que, atualmente, ele
vende bolsas falsificadas de produção chinesa (Prada, Chanel etc.), o que, como veremos
melhor, implica em um ganho financeiro superior, mas também em maiores riscos de
apreensão das mercadorias, além de ficar sujeito a sanções72.A narrativa de Pape e suas
vivências como vendedor de produtos contrafeitos ilustram algumas características
importantes da atividade comercial por ele praticada, que serão retomadas adiante: a
instabilidade e intermitência do trabalho, a condição de humilhação que este pode causar e as
consequências das sanções que impactam as modalidades de permanência desses ambulantes
na Itália. O comércio representa, para ele, uma prática de continuidade com a trajetória
profissional familiar, aprendida com a mãe. No entanto, é visto como uma atividade
esporádica praticada “para viver”, isto é, para garantir renda em fase de desemprego. Vender,
então, representa uma forma de “se dar um jeito”, uma alternativa escolhida por não se ter
outra opção, como foi explicitado por outros vendedores. Mediante a instabilidade do
trabalho na fábrica, o comércio se apresenta como prática suplementar para composição da
renda. Mamadou Fall73 declara a esse respeito:
Às vezes, te chamam e te fazem trabalhar, às vezes não... às vezes sim e às
vezes não, depois não te chamam mais. Então, você procura continuar com o
comércio... não é fácil, mas não tem escolha. Se não te chamam, você não
pode ficar ali e esperar, vai vender porque você não sabe quando vão te
chamar.
Essa “alternativa forçada” pode não ser bem-vista. Na opinião de Pape, “vender na rua
é uma merda”, porque expõe os indivíduos a situações humilhantes, como ser “xingado” pelos
passantes ou, ainda, ser “caçado” pelos órgãos de segurança pública. Ele justifica, também,
seu desgosto pela atividade por sua própria inaptidão à profissão, alegando, de forma
implícita, qualidades que o comerciante deveria ter. Sua autodefinição como pessoa
“transparente” (“sou uma pessoa que, se me incomodar algo, você vê isso na hora”) é
72 Um dia, Pape me mostrou duas multas que lhe foram aplicadas por ocasião da apreensão de mercadorias. Cada
uma o condenava ao pagamento de 12.920,20 Euros. Nesta ocasião, me contou ter sido agredido por um dos
fiscais que o empurrou e lhe deu um golpe no rosto, sem que ele o tivesse agredido. As penalizações podem
implicar na suspensão do visto de permanência, o que leva muitos dos vendedores a se tornarem irregulares,
impossibilitando a fluxo circular entre espaços que todos os migrantes almejam. A atuação informal dos
comerciantes e suas implicações vão ser tratadas de forma mais aprofundada no capítulo 03. 73 De etnia wolof, tem 35 anos, nasceu na região rural de Louga, mora na Itália desde 1998. É casado no Senegal
e lá tem três filhos. No Senegal, era criador e comerciante de animais; na Itália, se tornou operário e
comerciante; atualmente, é comerciante.
73
entendida como inadequada ao trabalho de vendedor, visto que este deve ter a capacidade de
fingir, de blefar para convencer os clientes, como me foi explicado em outras ocasiões. Pape
prefere “trabalhar” tendo horários fixos para a atividade e o descanso.
Nos contextos de crise econômica, além de registrar-se um refluxo ocupacional no
comércio informal, a formação profissional dentro ou fora das fábricas é uma estratégia
adotada por vários migrantes, prática que o Estado está estimulando com políticas específicas
como cursos de formação gratuitos. Alguns de meus interlocutores, de fato, retomaram os
estudos, com a perspectiva de se qualificar para encontrar trabalho na Itália, no exterior ou até
mesmo no próprio Senegal.
Do ponto de vista da formação, a trajetória de Babacar Diop pode ser considerada
oposta à anterior. Babacar se formou no Senegal e chegou na Itália com uma experiência
profissional consolidada. A continuidade do percurso, tanto profissional quanto migratório, é
explicitada por ele quando declara que a partir da formação “começou a trabalhar em todos os
lugares”, “viajei com a minha experiência de técnico”, tanto assim que, na descrição de suas
viagens, considera a ida para a França como uma extensão dos itinerários percorridos na
África. A capacitação técnica como consertador de geladeiras, segundo ele, lhe permitiu uma
inserção “em qualquer” contexto. O que marca sua narrativa é também a operosidade, que se
revela como forte disposição em exercer seu trabalho. Em Turim, ele complementa sua
formação aprendendo a arrumar caldeiras, prática que podemos novamente considerar como
uma forma de versatilidade e capacidade de adaptação. A sua atividade teve boa aceitação no
contexto de chegada. O caminho que Babacar trilhou aponta como meta a emancipação: do
exercício profissional como empregado, passa à condição de autônomo, primeiro abrindo sua
própria loja e, posteriormente, as dificuldades encontradas são revertidas ao se desfazer do
espaço comercial que o onera e continuando a atender seus clientes à domicílio. Novas
possibilidades são, então, experimentadas no sentido de uma flexibilização das atividades e
busca de liberdade, inclusive de movimento. O comércio de geladeiras e peças surge como
uma oportunidade sustentada pela capacidade e experiência técnica adquirida. Segundo seu
relato, ele começou a se dedicar à atividade comercial de importação-exportação um ano antes
de abrir sua própria loja, tendo continuado a exercê-la de forma quase contínua até 2010.
Depois desse ano, interrompeu-a para retomá-la em 2016.
Como podemos perceber nos extratos das entrevistas que apresentei, o comércio é uma
prática central entre os migrantes senegaleses, podendo ser escolhido como profissão em
primeira mão ou representar um trabalho alternativo ou, ainda, complementar outra atividade.
Durante a pesquisa de campo, numa única ocasião conversei com uma pessoa que relatou
74
nunca ter praticado a compra e venda de mercadorias. Além disso, temos casos nos quais os
migrantes, apesar de não praticarem o comércio pessoalmente, compram mercadorias por
ocasião de suas viagens para o Senegal e as entregam para os parentes venderem, tendo,
então, um envolvimento indireto com esse universo.
As trajetórias profissionais que tratamos até agora se referem ao universo masculino.
As mulheres, como citei no primeiro item, trabalham principalmente no campo das atividades
domésticas, como cuidadoras de idosos e no comércio em modalidades específicas. Por vezes,
elas assumem o papel de provedoras da família não por serem impelidas a exercer essa
função, que é tida como masculina, mas por ajudá-la, imperativo não menos importante ao
qual se deve responder. Ambos, então, homens e mulheres, enviam parte da renda obtida no
estrangeiro para o Senegal.
Para gerar esse “excedente”, a estratégia adotada pelos senegaleses no exterior é o que
Mboup (2000) definiu como “otimização da renda”, prática que consiste na tentativa de
poupar dinheiro ganho o máximo possível. Essa modalidade, adotada na Itália, pode se
reverter em uma postura oposta em pátria. Nesse sentido, existe uma ambivalência na maneira
de tratar os recursos financeiros por parte dos migrantes74: na Itália o dinheiro tende a ser
poupado, enquanto no Senegal pode ser gasto de forma ostentada (RICCIO, 2007: 74).
Presentes para amigos e parentes (dinheiro, roupas “made in Italy” etc.), construção de
moradias nos moldes arquitetônicos ocidentais, aquisição de carros importados etc. são
algumas das práticas que remetem ao prestígio social. Essas atitudes desencadeiam uma dupla
reação do entorno social dos migrantes no Senegal: por um lado, molda, como já vimos, o
modelo de sucesso ao qual muitos aspiram retroalimentando, inclusive, a imagem da
migração como percurso privilegiado e, pelo outro, podem gerar críticas, principalmente por
serem comportamentos que se contrapõem à humildade, discrição e moderação, prescrições
religiosas que deveriam ser observadas. Ostentação de riqueza e beleza, porém, são atitudes
comuns, não somente em alguns dos contextos nos quais se encontram os migrantes que
retornam, mas também em outras situações, por exemplo entre as mulheres em ocasiões das
festas75 .
74 Não queremos, aqui, generalizar e nem criar modelos rígidos, estamos apontando padrões e tendências que
compõem as logicas e práticas dos migrantes senegaleses observados. 75 As mulheres usam dois ou três vestidos diferentes ao dia por ocasião das festas. Independentemente da classe
social, em contextos urbanos, elas se preparam com antecedência, desenvolvendo alguns cuidados especiais em
vista desses eventos: tatuagens de hena, principalmente as mais idosas; perucas; maquiagens vistosas; roupas
cintilantes e muitos ornamentos dourados. Poderíamos dizer que todas as mulheres, nessas ocasiões, “brilham
como rainhas”. Lembro, nesse sentido, a descrição de uma amiga italiana recém voltada de Touba, que me disse:
“nos sótãos empoeirados das lojas, nas casas em construção, nas ruas entre pneus abandonados e lixos jogados,
75
O envio de parte dos ganhos auferidos no exterior para as respectivas famílias no
Senegal é realizado por remessas que tanto podem ser consideras cumprimento de um dever,
como também reembolso da dívida contraída com a família no momento da partida. Mandar
dinheiro para os parentes é, então, uma prática associada à noção de jom (como vimos
anteriormente, coragem, valentia, honradez, dignidade), valores reiterados em termos
autorrepresentativos pelos meus interlocutores masculinos. Essas qualidades são relacionadas
a uma perspectiva épica da experiência migratória: quem viaja para conhecer, melhorar-se,
buscar novos e mais abundantes recursos, passa também por provações a serem vencidas.
Esses desafios dos quais se falou no final do item anterior têm uma dupla natureza: nascem,
de um lado, do confronto com os impasses e dificuldades que surgem na sociedade de
chegada e, de outro, da necessidade de satisfazer as expectativas dos familiares, que redobram
a partir do momento que o parente se torna migrante em terras europeias. Ao olhar de quem
permanece, de fato, aquele que viaja muda de status, torna-se um benfeitor, alguém a quem se
pode apelar diante de qualquer dificuldade. Ao assumir esse papel, os migrantes devem se
manter à altura das próprias responsabilidades, não podendo desapontar tais expectativas sob
o risco de perder o novo lugar assumido no contexto de origem (CASTAGNONE ET ALL,
2005: 155).
As solicitações a que os migrantes devem atender correspondem às despesas dos
familiares, que incluem múltiplas necessidades: alimentação, pagamento de contas e
manutenção da casa, exames e tratamentos médicos, aquisição de roupas e material escolar
para as crianças e objetos específicos como celulares, por exemplo. Também amigos,
conhecidos e, especialmente, vizinhos, fazem pedidos. Particular destaque tem o momento das
festas religiosas no Senegal, quando as demandas se multiplicam para viabilizar a compra dos
animais a serem sacrificados, bem como a aquisição de roupas para esses eventos.
O dever de ajudar financeiramente os parentes é assim descrito por Cheikh Lô:
No Senegal, temos esta situação, você deve sustentar... isto é, você sente a
responsabilidade de enviar o dinheiro. É assim, nós crescemos desse jeito,
este é o valor que conhecemos, vivemos graças a isso, é? Incomoda de uma
certa forma, mas crescemos assim. Você vê uma casa com trinta pessoas,
somente dois, um trabalha, o que você faz? Você tem a possibilidade de
enviar cinquenta euro no final do mês, o que você faz... lhe dá uma mão,
também se um pouco enche o saco, mas você tem que fazer isso porque se
não... isto é, se não... você deve sustentá-los de alguma forma, este é o
há sempre mulheres que brilham”. Nesses contextos percebe-se também uma forte influência da estética
ocidental: entre as mulheres mais jovens, se usa branquear a pele com cremes clareadores, pintar os olhos com
sobras coloridas, utilizar tecidos não tradicionais e pequenas bolsas de origem chinesa.
76
problema, você não pode negligenciar, para nós é assim, e graças a Deus que
tem esta possibilidade, se não.....
Cheikh não termina a frase em relação a possibilidade de descumprimento da
obrigação, como se isso fosse inconcebível. O “problema”, o que “incomoda”, não parece ser
somente a obrigação, como também o fato das demandas familiares se tornarem constantes.
Negar ajuda é inconcebível na medida em que, do ponto de vista moral, afeta a reputação do
migrante, que pode ser considerado avarento, mas, principalmente, sem ngor, isto é, estaria
agindo de forma não virtuosa, imoral. Do ponto de vista da própria autoimagem, não acatar
uma demanda pode significar uma certa fraqueza, uma falta de jom. Para que o
descumprimento de obrigações dessa natureza não resulte em sanções morais, é necessário,
então, que seja bem justificado e não pareça má vontade.
Arcar com as demandas acima citadas, conseguir comprar uma casa e investir em
atividades em que os familiares possam se empregar e obter renda representam tanto uma
meta para ser cumprida como também uma condição para a volta ao país de origem. Nesse
sentido, alguns de meus interlocutores afirmam que, por mais que queiram retornar, não
podem realizar tal desejo. “Ainda não posso voltar”, disseram-me algumas pessoas que
consideram insuficiente o respaldo oferecido até o momento para a família.
Apesar das tarefas a serem cumpridas serem consideradas árduas, o conjunto desses
deveres inclui um elemento de contrapeso que define o migrante como sujeito de poder. O que
é preciso destacar, então, é que na trajetória dos migrantes “aqui e lá” existe uma continuidade
que produz resultados ambivalentes: a experiência do expatrio produz o duplo papel de
“sacrificado”, enquanto sujeito ás obrigações familiares enquanto trabalhador/provedor –
aspecto geralmente reforçado como elemento de autorrepresentação nas narrativas dos
migrantes senegaleses também em outros contextos etnográficos (CARTER 1991;
CASTAGNONE ET ALL., 2005; RICCIO 2007), e de “poderoso”, por um lado pela
ampliação do conhecimento e o aspecto épico que a experiência migratória proporciona, como
se disse, e, pelo outro, por estar usufruindo, supostamente, de um status “privilegiado”
enquanto morador do “eldorado” europeu. Esse último aspecto pode ser encenado e não está
vinculado necessariamente ao cumprimento efetivo dos deveres e/ou a situações realmente
vividas no exterior. Como veremos sucessivamente, blefar e/ou ostentar condições
consideradas favoráveis no próprio meio social pode representar uma prática central para
77
sustentar esse jogo de autorrepresentação76. Esses dois papeis do migrante
“sacrificado”/“poderoso” são considerados ambivalentes pois o primeiro corresponde as
prescrições morais religiosas enquanto que o segundo as contradiz. Apesar desse último
aspecto se distanciar da matriz espiritual compartilhada entre meus interlocutores, alinha-se
com valores centrais do universo moral dos meus interlocutores quais o prestígio e a
dimensão épica, como já relatado. Segundo essa lógica, em wolof, existe um ditado que diz:
ku tuki di badolo, bo ngibe don bur, “quem durante o expatrio se comporta com operosidade
voltará a viver como rei na sua casa”. Dessa perspectiva, a trajetória migratória pode ser
considerada como um percurso de empoderamento, por meio do qual o migrante não somente
aspira e eventualmente concretiza uma melhoria econômica, mas passa a ocupar um papel
privilegiado no próprio meio social.
2.4 “Viemos pegar o que é nosso”: migração e relações coloniais
Os ataques terroristas do Estado Islâmico na Europa, que se intensificaram a partir de
2015, se tornaram, como comentado no primeiro capítulo, argumento central para o
enrijecimento das políticas migratórias, tanto na União Europeia quanto nos Estados que a
compõe. Essa atitude, marcada pela tendência ao fechamento de fronteiras, passou a se
caracterizar como resposta a demandas crescentes por “segurança”. Nesse contexto, como
sugerido por Allasino, Bobbio e Neri (2000), o “estrangeiro” se torna bode expiatório em
cima do qual convergem descontentamentos e preocupações da opinião pública. Violência
contra as mulheres, crise econômica, terrorismo, pequena criminalidade, são problemáticas
que tendem a recair sobre os migrantes, adquirindo, frequentemente, conotações raciais77.
76 Com essa expressão, nos remetemos à noção de “papel” sugerida por Erving Goffman (1956) no contexto das
interações sociais. Segundo o autor: “A ‘performance’ may be defined as all the activity of a given participant on
a given occasion which serves to influence in any way any of the other participants. Taking a particular
participant and his performance as a basic point of reference, we may refer ro those who contribute the other
performances as the audience, observers, or co-participants. The pre-established pattern of action which is
unfolded during a performance and which may be presented or played through on other occasions may be called
a 'p a rt’ or ‘routine’”. 77 Um exemplo recente, extremo e emblemático foi o manifesto que, no dia 2 de setembro de 2017, o partido
político Forza Nuova, de extrema direita, fundando em 1997, publicou em concomitância com notícias de
estupros veiculados pela mídia. O partido reeditou um manifesto fascista realizado por Gino Boccasile em 1944
e publicado, na época, em oposição à guerra de “liberação”, que viu as Forças Aliadas e os grupos de partigiani
libertarem a Itália da ocupação nazifascista.
78
O fato das ações terroristas terem sido realizadas em território europeu também pelos
chamados “lobos solitários”, quase sempre migrantes de segunda geração e cidadãos
nacionalizados, teve desdobramentos na interação cotidiana de muitos migrantes,
principalmente muçulmanos, com a população dos países de chegada. Esse clima de tensão,
percebido cotidianamente por muitos de meus interlocutores, foi-me revelado por meio da
narrativa de episódios norteados por um aumento da xenofobia, não somente étnico-racial,
mas também religiosa. Segundo a avaliação de alguns canais midiáticos, na Itália, como em
outros países da União Europeia, de fato, as instituições religiosas islâmicas não teriam
tomado suficiente distância dos ataques terroristas e essa postura foi interpretada como uma
forma de conivência, legitimando a adoção de uma atitude de desconfiança por parte da
opinião pública frente a tais instituições e seus seguidores.
Esse cenário se tornou um dispositivo para explicitar, pelo menos parcialmente,
lógicas e dinâmicas geralmente silenciadas no dia a dia das relações dos migrantes com a
população local, que interessam, a partir da perspectiva de meus interlocutores, duas frentes
em contraste: por um lado, o “ocidente” como conjunto de forças neocoloniais e, pelo outro,
os países africanos enquanto lugares opressos. Sobre os eventos ligados ao terrorismo,
observei uma dupla postura entre meus parceiros de pesquisa: uma pública, acionada frente
aos italianos, de condenação desses atos, principalmente pela forma violenta como foram
executados, alegando, por contra, a prescrição pacifista do muridismo, e uma atitude privada,
reduzida aos círculos estreitos de conhecidos, nos quais predomina uma posição de parcial
aceitação, que definiria como fatalista. Nessas situações, os ataques são considerados, como
um interlocutor afirmou, consequências da “prepotência” que, “desde sempre”, caracteriza a
79
política dos países ocidentais. Segundo essa perspectiva, que reverbera uma visão pan-
africanista e me foi apresentada em diversas circunstâncias durante a pesquisa de campo, a
opressão dos países ocidentais não terminou com o processo de descolonização e as
proclamações de independência das nações africanas, mas se estende até hoje, fomentada por
políticas econômicas restritivas e predatórias. A postura de predação, que o ocidente sustenta,
gera, então, uma dívida não saldada e que continua sendo alimentada, o que promove um
sentimento de rancor e atitude de revanche. Frente a esse paradigma de submissão, segundo a
lógica de causa/efeito, os ataques terroristas se tornam, para meus interlocutores, uma reação
fatal, inevitável, de matriz política: inaceitáveis do ponto de vista moral e religioso enquanto
atos violentos que contrariam o modelo de resistência pacífica adotado por Cheikh Amadou
Bamba, mas legítimos na ótica das relações de poder que, há séculos, interessam as duas
frentes em jogo78.
Dessa relação considerada injusta e opressora, o fato histórico que me foi citado como
emblemático foi o massacre de Thiaroye. Uma significativa e explícita narrativa sobre isso
surgiu numa ensolarada manhã na feira Balôn, a partir de uma fala sobre os ataques do Estado
Islâmico em Paris, que tinham acontecido há algumas semanas. Boubacar Ninag79,
comerciante de peças artesanais e antigas oriundas da África Ocidental, que há anos atua
informalmente no mercado, discursava para mim e um compatriota recém-chegado da França
sobre os ataques na sala de espetáculo Bataclan. “A França se meteu onde não devia”,
comenta Boubacar se referindo às intervenções aéreas francesas na Síria iniciadas em outubro
de 2015. “Sempre perseguiu uma política internacional violenta. Nós não esquecemos o que
(eles) fizeram em Thiaroye”.
Segundo fontes históricas, a chacina de Tharoye aconteceu em dezembro de 1944
quando um grupo de atiradores senegaleses, que tinha sido chamado a combater no exército
francês durante a Segunda Guerra Mundial e repatriados após a escolha de branqueamento das
forças armadas, em protesto dentro do campo de Thiaroye, na periferia de Dakar, foram
mortos pelo próprio exército francês por reclamar a indenização que lhes era devida. Segundo
Boubacar, os soldados senegaleses, que eram colocados na linha de frente “a combater uma
guerra que não era deles”, foram os responsáveis pela vitória contra a Alemanha. Essa vitória
é por ele associada à bravura destemida dos atiradores africanos engajados no exército
78 A dinâmica de radicalização religiosa, que, segundo a mídia, esteve à frente dos ataques dos “lobos solitários”
em terreno ocidental, não me pareceu envolver, na fase de pesquisa, nenhum dos meus informantes. Numa
ocasião, soube por um deles do “afastamento de um amigo argelino”, que, segundo quanto me foi comentado,
estava assumindo “atitudes radicais”. 79 De etnia wolof, tem 59 anos, nascido em Louga, casado no Senegal e na Itália tem 7 filhos, 4 no Senegal e três
na Itália. É comerciante e antiquário.
80
francês, por sua vez ligada ao fenótipo da cor da pele: ‘“pretos como carvões, fortes como
leões”, diz-se, que era um ditado do próprio Hitler, comenta Boubacar, que prossegue
qualificando a chacina como um ato “covarde” e os franceses como “maldosos” e “traidores”.
Mural comemorativo do massacre em Dakar.
(https://fr.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Thiaroye#/media/File:Thiaroye_Mural_DSCN1029.jg)
“Nós fomos muito explorados. Os migrantes vêm aqui pegar o que lhes foi tirado”,
comenta o amigo de Boubacar. Quando, em resposta, eu concordei com seus pontos de vista
Boubacar me interrompeu: “ssssh!”, disse aproximando o dedo indicador ao nariz, “você
concorda porque viajou, saiu, mas a maioria das pessoas são muito ignorantes, não enxergam,
parecem não saber. Você viajou, se percebe logo a diferença entre quem viajou e quem nunca
saiu”. “C´est dur”, conclui o amigo.
No diálogo acima, o atual intervencionismo francês na Síria evoca a memória de um
acontecimento passado e funciona como gatilho para explicitar a relação de dominação entre
França e Senegal de forma paradigmática. Fatos atuais e passados são extrapolados de sua
dimensão diacrônica e apresentados como consequências da postura política francesa, que,
segundo meus interlocutores, o tempo não modificou. A narrativa é construída com um
compasso épico, articulado por antinomias em três planos: os atiradores senegaleses foram
obrigados a se colocar na linha de frente do ataque, apesar da guerra não ser de seu interesse;
embora combatessem em nome do interesse de outros, o fizeram com braveza e ganharam a
batalha beneficiando os franceses; ainda assim, esses últimos, no momento em que deveriam
ter reconhecido e retribuído a atuação valente dos soldados por meio do pagamento de
indenização, os exterminaram. O massacre, apresentado como clímax da narrativa, aparece,
então, como desfecho oposto ao esperado: a subversão das expectativas gera ressentimento
em relação ao que é considerado uma injustiça. A concatenação narrativa de antinomias, de
81
fato, gera uma ampliação da dívida que poderia ter sido parcialmente quitada no final, mas o
que “a França” fez foi desobrigar-se por meio da eliminação dos credores. As duas frentes que
participaram dos acontecimentos são conotadas, do ponto de vista moral, sob planos
divergentes: por um lado, os franceses, que praticaram um ato “covarde”, são considerados
“maldosos” e “traidores” - isto é, segundo a lógica de ngor (honradez) e jom (coragem), que
são as atitudes moralmente esperadas, agiram de forma oposta - ; pelo outro lado, os
senegaleses não somente atenderam tais valores, mas se consideram duplamente heroicos por
terem ganho a guerra de seus próprios opressores e morrer por ela.
A memória do massacre de Tharoye, alimentada pelo tardio reconhecimento formal de
responsabilidade da França80, acentua a postura de recriminação por parte de meus
interlocutores, cuja percepção do paradigma desigual de poder deixa em aberto a expectativa
de uma histórica reparação, até hoje não concretizada. É no contexto dessa perspectiva que,
no final de nossa conversa, a questão da compensação é associada à prática migratória como
revanche. A expressão “viemos pegar o que é nosso”, então, revela outro aspecto da lógica
subjacente às migrações para Europa: o deslocamento para os países neocoloniais como forma
de reparação. Ainda que exista uma dívida histórica com a França, a cobrança se estende para
todo o ocidente. Migrar, nesse sentido, é também uma missão política, repleta de empecilhos
e, por isso, “dura”.
Segundo um dos meus interlocutores, Cheikh Lô, com o atual quadro politico -
guinada para extrema direita nas últimas eleições italianas, postura restritiva em relação a
imigração na França81 e vitória do filo francês Macky Sall nas eleições presidenciais de 2019
no Senegal82- a perspectiva de revanche e de luta aos direitos políticos e civis está se
fortalecendo entre os migrantes africanos na Itália, os quais estão assumindo um discurso pan-
africanista mais explícito. Nesse sentido, em 2018, nasceu o Movimento Pan-Africanista na
80 O massacre foi pela primeira vez reconhecido oficialmente pelo presidente Hollande em 2014, que visitou o
cemitério de Thiaroye, homenageando as vítimas. 81 Que se explicita, por exemplo, nas práticas recorrentes de violação dos direitos dos migrantes que tentam
ingressar na França pela fronteira ítalo-francesa no Piemonte, como: “expulsão de migrantes e de menores;
controles discriminatórios; perseguições pelas montanhas; conversas ameaçadoras e ofensivas; obstáculos para a
realização de pedidos de asilo; falta de tradutores”, como denunciado por associações locais
https://www.amnesty.it/francia-violazioni-confine/. 82 O presidente ganhou com a exclusão dos dois maiores candidatos da oposição Khalifa Sall e Karim Wade (o
primeiro preso por corrupção e outro exiliado). Ousmane Sonko, o candidato mais jovem, se destacou na
campanha eleitoral com um discurso marcadamente anticolonial que, entre outras propostas, reivindicava o fim
do franco CFA - moeda utilizada por 14 países africanos, cunhada e emitida na França com a clausula, entre
outras, de entregar 50% dos recursos monetários nacionais ao Banco Central francês - e a criação de uma moeda
local. A luta pan-africana no Senegal está sendo conduzida, atualmente, pela FRAPP (Front pour une Révolution
Anti-impérialiste Populaire et Panafricaine) que tem como lema “France dégage”. A proposta desse movimento
é apresentada na entrevista de Guy Marius Sagna no site https://www.nettali.com/2019/03/19/france-degage-
auchan-ape-les-verites-de-guy-marius-sagna/.
82
Itália, que em março de 2019 organizou uma manifestação em Roma “contra o imperialismo
ocidental, o neocolonialismo francês e o uso do franco CFA”, como declarou o presidente do
movimento Mohamed Konarè, originário da Costa do Marfim83.
Aos sentidos das viagens (ser livre, conhecer, melhorar, trabalhar), como meus
interlocutores apontam, deve então ser considerado esse outro aspecto que inscreve o fluxo
migratório Senegal-Itália, e vice-versa, entre territórios que compartilham uma longa história
política e entretém relações de poder assimétricas, as quais suscitam demandas por justiça.
83 A essa manifestação participaram também senegaleses, como relata também o artigo
https://www.ilfattoquotidiano.it/2019/03/03/franco-cfa-a-roma-sfilano-gli-africani-basta-imperialismo-nel-
continente-nero/5011028/. No nosso contexto de pesquisa se observou, por exemplo, que alguns migrantes
promovem entre si a circulação de vídeos realizados por ativistas africanos que atuam nas metropolitanas em
Paris. Estes gravam discursos feitos para os passageiros criticando a postura da França em relação a imigração e
as relações econômicas de dominação com os países africanos, assim como a condescendência governativa de
alguns desses últimos em relação a perpetuação da política francesa de exploração de recursos na África. Em um
vídeo que me foi enviado por Cheikh Lô pelo WhatsApp no dia 9 de julho de 2019, dois homens, um congolês e
outro senegalês, discursam por nove minutos. Em um trecho os homens dizem aos passageiros: “Olhem..., antes
de nos repatriarem nos devolvam o que levaram das nossas terras, porque a França sem o uranio do Níger não
pode fazer nada... esse metro funciona graças ao uranio do Níger..., devolvam o petróleo do Congo e do Gabão,
que também beneficia a França. Tudo isso tornou esses países muito pobres, também graças à conivência de
políticos-fantoches africanos”.
83
Capítulo 3 – Vucumprá, comerciantes e business men: fazer negócios em Turim
3.1 Andanças
Tratarei, em seguida, das práticas comerciais praticadas pelos senegaleses em Turim.
O mapeamento de tais atividades é articulado etnograficamente a partir da perspectiva
classificatória de meus interlocutores sobre as diversas formas de se fazer negócios. Pelo que
pude observar, de fato, as modalidades de trabalho de compra-venda - escolha dos produtos,
maneiras de serem vendidos e conjunto de valores associados – são consideradas por eles de
forma distinta. Nesse sentido, parafraseando Castagnone et. all (2005), a diversos comércios
correspondem diferentes “jeitos de ser” (e vice-versa). No contexto das práticas observadas
temos, portanto, comércios e ethos diferenciados.
Sentada na Praça Castelo, no centro histórico da cidade de Turim, em um dia de sol, eu
observava os vucumprá. Esse termo é um neologismo, criado originariamente na região de
Nápoles como distorção da expressão “vuoi comprare?” (quer comprar?), para definir os
vendedores ambulantes senegaleses que, na década de 80 do século passado, começavam a
praticar o comércio nas praias dos litorais italianos. Atualmente, tal palavra é utilizada pelos
italianos de forma depreciativa para indicar os migrantes oriundos de regiões africanas e,
também, pelos próprios senegaleses para designar, de forma geral, o comércio ambulante,
mas, em alguns casos, para indicar uma maneira específica de venda. Segundo essa última
acepção, fazer o vucumprá significa vender produtos apresentados em suportes levados nas
mãos, andando pelas ruas. Esses ambulantes percorrem as estradas da cidade e oferecem suas
mercadorias para os caminhantes: isqueiros, pulseiras e outros pequenos objetos,
frequentemente de fabricação chinesa e, em outra modalidade, produtos artesanais africanos
ou itens contrafeitos (roupas, sapatos e bolsas principalmente) comercializados em locais
públicos (como bares, por exemplo).
Sabendo que em Turim a maioria desses vendedores escolhe o centro histórico da
cidade para praticar o comércio, especialmente as ruas fechadas ao trânsito, posicionei-me na
praça citada acima. Um deles se aproximou de mim e pegou um bastão selfie, “Compre!”,
disse-me. “Não! Não gosto de fazer selfie! Mas precisaria de um isqueiro...”, respondi eu.
“Escolhe...”, me fala o ambulante mostrando uma caixa com cinco opções de cor. Após eu
escolher um desses ele me cobra um euro, pago e coloco o isqueiro na bolsa. O vendedor se
senta ao meu lado: “descanso um pouco...”, comenta.
84
O senhor Demba tinha, então, 57 anos e migrou para Itália em 1992. Antes do
expatrio, ele e sua família deixaram as campanhas próximas de Louga para Dakar, onde
atualmente vivem suas mulheres e filhos. Em Turim, foi operário e, quando foi demitido da
empresa onde atuava, passou a vender mercadorias contrafeitas (roupas, óculos, bolsas
principalmente): estendia um pano no chão, “como muitos irmãos fazem”, comenta, e oferecia
assim suas peças. Agora parou de praticar esse tipo de comércio, porque alega: “tenho
problema em um joelho e não posso mais correr. Vender andando é mais tranquilo, os guardas
não te perseguem, só não pode parar. Daqui a pouco levanto, pois se passa um deles...”84.
Fazer o vucumprá, do ponto de vista histórico, foi a primeira ocupação dos
senegaleses que vinham para a Europa. Primeiro nas regiões litorâneas da França e,
sucessivamente, da Itália, como já se comentou, os migrantes da região rural de Louga se
deslocavam na época de verão, trabalhavam como ambulantes andando nas praias, onde
comercializavam peças artesanais africanas, e, no começo do outono, retornavam ao Senegal.
Ao longo do tempo, na medida em que o fluxo migratório se intensificou e as estadias no
exterior se tornaram mais longas, essa maneira de fazer comércio se estendeu para as áreas
continentais, tornando-se uma prática comum nas cidades. Nesse novo contexto, alguns
ambulantes deixaram de comercializar objetos artesanais de origem africana e passaram a
vender itens adquiridos in loco. De pequeno porte para poder serem levadas e apresentadas
enquanto se caminha, essas mercadorias são de baixo custo e de uso comum para uma venda
rápida e em quantidade, podendo incluir objetos específicos de moda.
Essa tipologia de comércio é considerada pela maioria dos meus interlocutores uma
prática provisória, no sentido que pode representar uma fonte de ganho na fase de chegada do
migrante, uma atividade financeira tampão em fase de desemprego ou, ainda, uma forma de
complementação da renda. O manejo dessa prática comercial paralelamente a outras
atividades econômicas remete, por um lado, à capacidade de criar oportunidades de renda de
forma versátil, aspecto que remete novamente à esfera do mousse (esperteza) e, por outro, aos
limites dentro dos quais essas possibilidades podem ser aplicadas. De fato, fazer o vucumpra
pode ser considerada uma ocupação residual. No caso de Demba, por exemplo, essa é
apresentada como última opção, pois ele esgotou outras alternativas: é idoso demais para ser
novamente contratado por alguma fábrica e também já não tem condições de realizar a venda
de mercadorias contrafeitas sem ser prejudicado pela vigilância policial.
84 Diário de campo, 23 de novembro de 2013.
85
Segundo Cheikh Lô, que relata ter começado suas práticas comerciais na Itália com
esse tipo de venda, a origem dessa forma de ocupação laboral remonta aos deslocamentos
sazonais dos agricultores senegaleses do campo para Dakar, na estação da seca, quando,
impedidos de cultivar e produzir renda, iam para a capital praticar “pequenos comércios”.
Alguns deles conseguiam poupar dinheiro obtido nessa atividade e estender suas viagens para
a Europa. Esses, como se relatou anteriormente, eram chamados de modou-modou, termo
ainda hoje utilizado para definir os migrantes que viajam para o exterior.
Segundo a lógica classificatória de meus interlocutores, entre práticas comerciais
consideradas mais ou menos sofisticadas, a atividade do vucumprá ocupa o último lugar,
representando a maneira mais simples e humilde de se fazer comércio. Essa forma de atuar
implica em um tipo de aproximação com o potencial cliente que nem todos os comerciantes se
dispõem a realizar. De fato, andar e vender as mercadorias nas mãos se diferencia da
comercialização nas bancas porque as peças não são oferecidas a um público genérico, mas a
pessoas específicas, que, então, são abordadas diretamente. Além disso, no caso da venda de
produtos sobre bancas, quando o comerciante propagandeia suas mercadorias apelando a um
indivíduo, a relação com este permanece de caráter público, enquanto no caso da venda a
braço, a relação com o potencial cliente se torna intersubjetiva e, então, privada. Essa situação
relacional individualizada, na dimensão das práticas do comércio ambulante, implica, segundo
alguns informantes, em uma transição semântica da noção de oferecer as mercadorias para o
pedir que sejam adquiridas. “Vender pedindo”, segundo alguns interlocutores, fere o princípio
da discrição (soutore) e, para os mais orgulhosos, compromete a dignidade (jom).
Pedir e a sua modalidade oposta, oferecer ou dar, para além do âmbito estritamente
comercial, marcam duas formas de ser distintas para os senegaleses, que, como veremos a
frente, posicionam o sujeito em lugares específicos dentro do universo moral e podem remeter
a aspectos identitários das duas castas principais que constituem a sociedade senegalesa,
respectivamente, a nenho e a geer. Se essas duas modalidades - pedir e oferecer - representam
referências antitéticas na esfera moral, não devem, porém, serem consideradas como fixas,
pois, como aprofundaremos sucessivamente, existe um manejo e uma ressignificação
situacional de tais posições.
A vergonha, o receio de abalar a própria dignidade e, por outro lado, o jom (orgulho) e
yokuté (vontade de melhorar) enquanto valores associados às práticas comerciais, são
elementos que também Riccio (2007) destaca quando, escrevendo sobre o comércio como
“signo de identificação”, transcreve algumas falas de seus interlocutores. Referindo-se à
prática comercial descrita acima, esse autor destaca algumas frases por ele ouvidas: “vi
86
pessoas quase pedirem esmola para conseguir um pouco de dinheiro, eu não posso fazer isso”;
e ainda: “(tem comerciantes) que querem mais, e sobretudo querem vender produtos dos quais
possam se orgulhar, para não serem confundidos com mendigos” (2007: 79; 80). A
combinação entre essa forma de venda, que, segundo a perspectiva mencionada, associa o
ambulante a um pedinte e a tipologia de mercadorias oferecidas (de baixo valor econômico e
de uso comum), resulta, então, na avaliação de uma atividade que poderia ferir a dignidade do
ambulante. Modalidade de venda e tipologias de itens comercializados, então, não somente
determinam a lógica classificatória com as quais são ordenadas as diversas práticas
comerciais, mas também são elementos que marcam o “jeito de ser” do próprio comerciante.
O valor de jom enquanto orgulho, é, também nesse contexto, central entre os senegaleses, já
que orienta a escolha das práticas econômicas empreendidas e a forma como estas são
realizadas85.
Embora fazer o vucumprá ocupe essa posição no leque classificatório de meus
interlocutores, existem casos de comerciantes que, com o ganho resultante dessa atividade,
conseguiram adquirir a própria casa e abrir uma atividade no Senegal, alvos econômicos
primários do projeto migratório. Esses resultados viabilizaram seus retornos ao país de origem
como “reis”86: nesses casos, então, o desfecho da trajetória profissional no exterior,
caracterizada por uma prática considerada humilde ou, por alguns, humilhante, os recoloca, ao
final do processo, no papel oposto.
Uma outra forma de comércio praticada pelos senegaleses é a venda itinerante de itens
não expostos publicamente. Nesse caso, o comerciante leva as mercadorias em bolsas,
sacolas, mochilas e as vende em contexto específicos (em bares à noite, eventos, festas,
festivais etc.). Essa prática, que corresponde ao critério de souture (discrição), é amplamente
utilizada e inclui, principalmente, a compra-venda de peças de artesanato africanas (estátuas,
principalmente) e mercadorias proibidas pela lei, como itens falsificados e droga. O fato de
que as trocas aconteçam de forma privada e que as mercadorias sejam apresentadas somente
depois de conversas prévias, uma vez que se tenha a garantia de uma certa cumplicidade e
interesse por parte do potencial cliente, não é devido unicamente à prudência por estar
tratando, em alguns casos, de coisas ilícitas. Essa modalidade de venda, de fato, pode ser
escolhida por ser mais reservada e por não ferir o jom: no caso da primeira fala dos
85 Apesar do agravamento da crise econômica em 2015 e 2016, por exemplo, enquanto aumentavam, nas ruas de
Turim, pedintes de diversas nacionalidades (italianos principalmente, mas também nigerianos, romenos etc.)
nunca encontrei um mendigo senegalês pedir esmola. 86 Como segundo o ditado referido no capítulo 2 (ku tuki di badolo, bo ngibe don bur/“quem durante o expatrio
se comporta com operosidade voltará a viver como rei na sua casa”).
87
interlocutores de Riccio, que transcrevi acima, por exemplo, o narrador tinha trabalhado por
um tempo como vucumprá sem sucesso, pois, além de não conhecer bem a língua italiana,
ficava envergonhado não conseguindo viabilizar as transações. Decidiu, então, abandonar essa
atividade, passando a comprar roupas contrafeitas em Nápoles e Turim para vende-las a
conterrâneos conhecidos. Comercializar itens que não são abertamente apresentados ao
público para conterrâneos é uma estratégia utilizada também pelas mulheres senegalesas que
vendem comidas, sobre as quais escrevi acima.
Em relação à venda de droga por parte dos senegaleses, tem-se pouca bibliografia.
Pelo que observei em campo, a prática pode ser escondida aos próprios concidadãos ou ser
divulgada só para alguns conhecidos. As narrativas que apreendi são, geralmente, rumores e
fofocas sobre supostas transações e possíveis sujeitos. Em algumas ocasiões, essas atividades
me foram reveladas como ocasiões de ganho imediato, que consistiam principalmente em
mediações entre potenciais compradores e fornecedores conhecidos para a venda ao atacado
ou ao varejo de maconha e cocaína. Observei situações de venda direta ou mediações
definidas como esporádicas pelos meus informantes e ouvi falar de senegaleses que fazem
isso de forma sistemática, como atacadistas e varejistas.
Essa dimensão das práticas comerciais senegalesas foi pouco explorada na minha
pesquisa e, pela escassez dos dados coletados, é difícil de interpretar analiticamente. Nesse
contexto restrito de informações, pude perceber que a venda de droga é representada de forma
polivalente e, em alguns casos, aparentemente ambígua pelos senegaleses. Existe, de fato,
uma fala de condenação da perspectiva religiosa, visto que se acredita que o consumo da
maconha, da cocaína ou de qualquer tipo de substância entorpecente pode interferir na
construção do vínculo entre Deus e o praticante, o qual precisa estar puro, lúcido e limpo.
Segundo esse prisma, lidar com essas substâncias através da venda não é indicado por se estar
criando, indiretamente, situações espiritualmente inadequadas. Por outro lado, ouvi relatos
sobre marabutos que beneficiam, por meio de rituais e preces, traficantes senegaleses para que
não sejam presos e possam continuar em segurança suas atividades, resultando em
atendimentos tão eficazes que atrairiam também traficantes de outras etnias, principalmente
marroquinos.
Esses dados são interessantes na medida em que sugerem que, no processo migratório,
alguns sujeitos, nesse caso, os traficantes de droga, optam para alcançar os objetivos
econômicos almejados utilizando meios que não são consensualmente assumidos como
moralmente apropriados. O caráter livre e aventureiro da experiência migratória representa,
certamente, um elemento que contribui na flexibilização das prescrições. Essas circunstâncias
88
sugerem que a dimensão moral é passível de mudanças e de ressignificações. Face aos
conterrâneos, tais inflexões podem ser omitidas ou camufladas, como ocorre em relação à
rede de convívio social dos traficantes no Senegal. É o caso de um de meus interlocutores, por
exemplo, cuja atividade de compra-venda de cocaína no atacado não é explicitada entre os
parentes que vivem em Dakar, nem entre a maioria de seus conterrâneos em Turim, os quais
poderiam informar a família no Senegal. O ganho obtido com a venda de droga se insere,
assim, como integrante do empreendimento do comércio transnacional de mercadorias
adquiridas na Itália e revendidas no Senegal. Nesse caso, como em outros, os senegaleses
utilizam atividades econômicas de fachada, consideradas legítimas, para encobrir outras tidas
como ilegais e/ou imorais. Esse tipo de encenação tem como alvo esconder práticas que
seriam moralmente reprovadas entre conterrâneos de modo a, por um lado, adquirir os meios
para garantir a ajuda esperada e pedida pelos parentes e, pelo outro, sustentar a construção de
uma autoimagem de empoderamento, decorrente do ganho econômico obtido.
3.2 Venda em bancas
Andando da praça Castelo para a Rua Garibaldi, uma rua comercial fechada ao trânsito
que começa na praça, e prosseguindo em frente, é possível encontrar um importante espaço
comercial dos senegaleses em Turim, por eles denominado Sandaga. Esse é o nome de um
mercado tradicional no centro de Dakar, no Senegal, composto por lojas e bancas de
vendedores ambulantes que foi criado, como citado acima, pelos murid que migraram das
regiões rurais para a cidade (1970). A Sandaga torinese, por sua vez, abriga vendedores
ambulantes senegaleses que, sobre panos colocados no chão, oferecem mercadorias de
produção chinesa e artigos contrafeitos como roupas, bolsas, sapatos, óculos, bonés.
Ocupando parte das calçadas ao lado das lojas, alguns se posicionam em grupos, com grandes
bancas coletivas, e outros individualmente, se estendendo ao longo de boa parte da rua. A
adaptação do termo senegalês à área comercial em Turim remete a alguns elementos do
mercado originário: composto por lojas e bancas, está localizado no centro da cidade e reúne
um número consistente de vendedores ambulantes, muitos dos quais, também ali, na condição
de migrantes.
Sandaga pode ser considerada uma pequena feira informal de mercadorias
falsificadas, seja pelo número de vendedores que reúne, todos senegaleses, seja pela
homogeneidade dos produtos oferecidos. Esse local, em Turim, existe desde a década de 90 e
89
sua escolha territorial por parte dos ambulantes se justifica pela presença de lojas que
oferecem mercadorias parecidas, o que aumenta a possibilidade de encontrar clientes
interessados. Além disso, a rua é fechada ao trânsito, portanto tem um fluxo intenso de
pedestres e é um lugar estratégico porque, situado no centro histórico da cidade, é atravessado
por diversas ruelas que facilitam a fuga em caso de tentativas de apreensão das mercadorias
por parte dos guardas municipais. Optar por essa região como lugar privilegiado para venda
de itens ilícitos, e em concorrência com os que são formalmente comercializados pelas lojas
ali sediadas, pode ser considerada uma postura corajosa dos senegaleses primeiro porque
expõe eles próprios e suas mercadorias em uma área considera pelos torinenses da “Torino
bene”87 e segundo porque desafia comercialmente as lojas circundantes.
A venda de itens contrafeitos, como veremos, também é realizada na feira Balôn por
grupos de ambulantes, muitos dos quais são os mesmos que atuam em Via Garibaldi e
diversos outros lugares no centro da cidade de forma individual. Em sua maioria, são homens
jovens que podem ser recém-chegados à Itália ou já estabelecidos. Diferentemente da atuação
dos vucumprá, que comercializam pequenos objetos de forma temporária, esse comércio pode
ser praticado por períodos extensos, como no caso de Mamadou, que encontrei no mercado de
Sandaga em Dakar. Ele me contou ter vivido por quinze anos na Itália praticando essa
atividade, o que lhe permitiu garantir remessas regulares à família no local de origem. Porém,
pelo fato de ter sido multado e preso pelos guardas municipais, sucessivamente lhe foi negada
a possibilidade de renovação do visto, situação que o tornou irregular e impossibilitou a
realização de viagens periódicas ao Senegal. Segundo o que ele relatou, a prolongada falta de
contato com a família de origem e o estresse gerado pela condição de migrante irregular o
levou a decidir voltar para Dakar, onde se casou e reativou a loja paterna em Sandaga, na
qual, atualmente, vende roupas para criança.
Se o ganho pode ser significativo, o risco é considerado o aspecto mais problemático
desse tipo de comércio, que, como veremos também no item sucessivo, é associado às
apreensões das mercadorias por parte dos guardas e à penalização relativa à renovação do
visto de permanência no país. Para não correr tais riscos, como comentado por Demba no
diálogo que transcrevi no começo desse item, uma das habilidades necessárias é estar
disposto, e poder, correr. Agilidade, atenção, esperteza (mousse), que implicam, por exemplo,
na elaboração de estratégias para não ser preso e multado pelos guardas, são qualidades que
nem todos os migrantes são dispostos ou podem exercitar.
87 O aspecto considerado tradicional, rico e refinado da cidade e de seus habitantes.
90
Pensando em termos de discrição (souture), a comercialização de itens falsificados
representa a prática oposta àquela descrita anteriormente. Oferecer, nas ruas, esse tipo de
mercadorias, de fato, expõe o vendedor a possíveis críticas de clientes, como citou Pape Kâ
no capítulo anterior - que integra esse grupo de ambulantes em Sandaga e no Balôn - na
forma de ataques de comerciantes fixos e guardas municipais. O risco ligado a essa atividade,
então, não é unicamente de natureza formal e financeira (sanções e perda de mercadorias),
mas também de ordem moral pelas situações de humilhação às quais os comerciantes são
submetidos publicamente. Fugas mirabolantes, embates violentos, estratégias elaboradas
coletivamente para se proteger dos controles caracterizam parte dessa atividade. Sobre
dinâmicas, trajetórias e múltiplas representações dessa ocupação por parte dos migrantes
senegaleses comentarei nos itens subsequentes.
Outro desdobramento da prática comercial senegalesa em Turim inclui os ambulantes
que atuam com licença comercial e os comerciantes que possuem lojas. Os primeiros
trabalham em feiras (principalmente de bairro, mas também em eventos, festivais etc.) e
optam pela venda de artigos como roupas, calçados, bolsas, bijuterias, semijoias, artesanato
africano. Exercer o comércio dessa forma comporta ter um capital de giro maior que nos
casos descritos acima: os comerciantes devem ter adquirido a licença, possuir uma van para o
deslocamento da banca e das mercadorias, também precisam pagar pelo direito ao local de
venda, além de precisarem ter suficientes itens para preencher as bancas, que nas feiras e
eventos costumam ser de tamanho padrão. Nesse caso, essa atividade representa uma
ocupação de caráter estável, que os comerciantes exercitam depois de ter trabalhando por um
tempo como vucumpra, ambulantes informais ou em outras áreas.
A opção pela formalização da atividade não representa uma regra, pois há diversos
ambulantes que preferem permanecer na esfera informal. Segundo esses últimos, se, por um
lado, a atividade comporta riscos, por outro, confere mais liberdade e autonomia e, às vezes,
uma possibilidade de ganho maior. Os comerciantes formais, de fato, têm a obrigação de
comparecer às feiras, eventos, festivais em datas determinadas e cumprir horários fixos, caso
contrário perdem o direito ao lugar. Em algumas situações, há também um vínculo com a
venda de um tipo de mercadoria que não pode ser alterado. Se a maioria dos que trabalham
com licença foram anteriormente vendedores informais, o contrário não é necessariamente
verdadeiro.
Sobre os que exercem suas atividades na área do comércio fixo em lojas, tenho poucos
dados, pois a pesquisa foi direcionada para a prática ambulante na feira Balôn e de compra-
venda transnacional. Pude perceber que o número dos estabelecimentos comerciais
91
senegaleses em Turim não é muito significativo em comparação ao de outras etnias
estabelecidas na cidade, principalmente marroquinos e chineses. Os empreendimentos fixos se
alinham com os setores que Castagnone identificou em 2006: alfaiataria, gastronomia e
telecomunicações88 e os que frequentei representam um importante espaço de sociabilidade
para os senegaleses.
Uma importante referência desse setor para a comunidade que pesquisei é uma
lavanderia, a única de propriedade senegalesa em Turim, do senhor Diop. Ela está situada no
começo de Corso Giulio Cesare, entre os bairros populares Barriera di Milano e Porta
Palazzo. Ali, na entrada da loja, todos os dias, a partir das 13/14h, duas vendedoras, Fatou e
Amy, oferecem aos seus conterrâneos benhé e outras comidas senegalesas. Como veremos no
item subsequente, elas também trabalham na feira Balôn e em outros mercados nos fins de
semana. Na lavanderia, encontram-se pendurados cartazes que noticiam festas religiosas ou
eventos importantes para a comunidade, anúncios das pessoas que enviam periodicamente
contêineres para Dakar e também dos GP89.
O senhor Diop não pratica o comercio em Turim, mas se define um comerciante. Ele
relata ter trabalhado nessa área no Senegal, onde, antes de vir na Itália na metade da década de
80, vendia arroz, amendoins e outros alimentos nas regiões rurais próximas de Touba. Quando
o entrevistei, possuía três lojas, respectivamente em Dakar, Touba e Diourbel, administradas
por parentes, mas monitoradas por ele já que, como afirma, “quase sempre está lá”. Quando
ele está no Senegal, parentes ou amigos tomam conta da lavanderia em Turim. O senhor Diop,
que fala muito bem o italiano, durante a nossa primeira conversa, utilizou diversas vezes o
verbo “estar” no tempo presente para descrever suas atividades no Senegal. O movimento e a
circulação, que caracterizam as práticas migratórias senegalesas, adquirem, aqui, a dimensão
da ubiquidade que, em sua narrativa, revela-se gramaticalmente, como se não existisse
descontinuidade espacial entre “aqui” e “lá”. A trajetória dele nos mostra que possuir um
comércio fixo não implica, necessariamente, em uma vida sedentária; de fato, tendo as
condições econômicas para financiar as próprias viagens e pessoas de confiança que se
comprometam em cuidar dos seus negócios, cá e lá, é possível se movimentar. Esse é o
modelo de circularidade ao qual a maioria dos migrantes senegaleses aspiram, mas a sua
viabilidade não é de simples alcance não somente por razões financeiras e relativas aos vistos
de permanência, mas também pela instabilidade dos laços de confiança na dinâmica das
88 “Migranti per il co-sviluppo tra Italia e Senegal. Il caso dei senegalesi a Torino e província.”, Cespi, 2006.
http://www.cespi.it/sites/default/files/documenti/2-castagnone.pdf 89 Como já mencionado, senegaleses que viajam sistematicamente entre Turim e Dakar trabalhando como
correios informais.
92
relações sociais, que, como tratarei com mais detalhes a frente, precisam, em muitos casos, de
constantes reajustes.
Segundo a perspectiva de meus interlocutores, na classificação relativa às diversas
formas de comércio que podem ser empreendidas durante o processo migratório, atuar como o
senhor Diop, que se desloca entre Itália e Senegal para acompanhar respectivamente seus
negócios aqui e lá, representa não somente a prática mais almejada, mas também a mais
sofisticada e desafiadora. Articular a compra-venda de coisas entre lugares não contíguos, e
preferivelmente distantes, contribui para fazer de uma pessoa um “grande comerciante”. Essa
definição, de fato, não se restringe unicamente a quem tem muitos clientes ou um ganho
financeiro significativo. Ela se refere também a homens ou mulheres que promovem
transações econômicas translocais com sucesso. O domínio de espaços próximos e distantes e
a capacidade de tecer redes de relações adequadas em lugares diferenciados, promovendo
assim a circulação de coisas e obtendo renda são elementos centrais que se associam ao
sistema de valores que descrevemos acima: jom (coragem, orgulho), yokuté (vontade de
melhorar), mousse (esperteza), n´gor (honradez). Esses são atributos enredados a essas
práticas, que aprofundaremos no quinto capítulo.
A expressão fazer business, usada frequentemente pelos meus interlocutores,
compreende todas as atividades anteriormente descritas e também troca de bens, realização de
mediações e consultorias em contextos específicos na Itália e no Senegal, resumindo bem a
versatilidade das práticas econômicas às quais se dedicam os senegaleses. “Fazer business”
significa, então, “fazer negócios”, prática que abarca múltiplas esferas das transações
econômicas. No cotidiano de meus parceiros de pesquisa, buscar por diversos tipos de
business e realizá-los é comum e pode ser conduzido paralelamente a outras atividades
profissionais. Essa versatilidade dos senegaleses se expressa no manejo dessas diversas
práticas, as quais não são apenas consideradas como oportunidades para a composição da
própria renda, mas, como se disse, também ocasiões para poder melhorar (yokuté), ampliar a
própria esfera de conhecimento, aumentar a experiência profissional, além de serem também
apreciadas porque promovem o movimento translocal associado à multiplicação das relações
sociais nos diversos contextos, dinâmicas que ampliam suas redes e consolidam o saber
circular.
93
3.3 Atividade comercial e universo feminino: da venda nas feiras em Turim ao
“business” em Dubai
3.3.1 Desdobrando-se: prover aqui e cuidar lá. O caso de Khady Camara
As práticas comerciais das migrantes senegalesas em Turim, menos pesquisadas fora
do Senegal em relação aquelas masculinas, ainda que difíceis de serem aprendidas no espaço
público, são extensas e articuladas. As mulheres, como se disse, têm formas próprias de
realizar tais atividades, que incidem na tipologia de produtos comercializados e na forma de
circularem no espaço. Tratarei da trajetória de vida e profissional de duas interlocutoras que
ocupam o que considero dois pontos de referência extremos, em muitos aspectos opostos.
Ambas flexibilizam e complexificam o modelo prescritivo que prevê o homem como
provedor e a mulher como cuidadora do espaço familiar e doméstico, mas a primeira
trajetória produz consenso no meio social masculino no qual a informante transita; a outra, ao
contrário, o contradiz. Ambos os casos sugerem que as mulheres também ocupam um
lugar importante enquanto provedoras, contribuindo na produção de parte da renda
familiar. A partir da análise desses dois casos procuro traçar um quadro geral sobre como as
migrantes realizam o comércio em Turim, que, certamente, não esgota tais modalidades,
as quais, inclusive, como se verá adiante, se encontram em fase de mudança.
No contexto do comércio ambulante e das feiras de mercadorias usadas nos bairros
de Porta Palazzo e Balôn, onde se concentrou minha pesquisa, uma das interlocutoras,
cuja trajetória pode ser considerada significativa, é a de Khady. Considerada por muitos de
meus informantes a melhor cozinheira senegalesa em Turim, como já mencionei
anteriormente, ela exerce a função de provedora em relação a seu núcleo familiar.
Khady tem sessenta e um anos e mora na Itália há vinte. Quando seu marido perdeu
o emprego no banco onde atuava em Dakar, o irmão dela, que já vivia na Itália trabalhando
como comerciante, a convidou para vir à casa dele em Turim e financiou-lhe a viagem.
Frente à situação de desemprego do marido, o expatrio se apresentou como uma
oportunidade para ampliar os recursos financeiros necessários para manter a família. Dentre
as migrantes senegalesas que conheci, Khady é a única que tem marido no Senegal, pois,
como já mencionei, a maioria das mulheres senegalesas que vivem em Turim são solteiras,
divorciadas, viúvas ou, mais raramente, casadas na Itália. Essa situação incomum de
Khady é enfatizada por ela quando, em mais de uma ocasião ao longo de nossas
conversas, se definiu como “chef de famille”. Na primeira ocasião na qual usou esse termo, o
94
explicou como segue: “eu sustento a minha família e mando dinheiro para meu marido”. De
fato, segundo o que ela relata, o esposo é atualmente aposentado, mas a renda mais consistente
é produzida por ela. Se, segundo as prescrições tradicionais, o papel de provedor caberia
preferencialmente ao indivíduo do sexo masculino, na prática o que ocorre é que a função
provedora é exercida frequentemente também por mulheres. Essa apropriação feminina da
função tida como preferencialmente masculina é explicitada por Khady com certo orgulho e
encontra eco em outros casos de remessas financeiras que, por vezes, homens senegaleses em
Turim recebem das mulheres no Senegal. Essa situação de dependência financeira é
geralmente silenciada pelos migrantes masculinos, embora não seja tão incomum,
especialmente nas fases de desemprego ou de dificuldades financeiras atravessadas pelos
primeiros no exterior. Essas remessas de dinheiro para a Itália são mínimas em comparação aos
envios realizados da Itália para o Senegal, mas o registro é importante, na medida em que traz
à tona a discussão sobre como os papéis “tradicionais” de gênero são flexionados no contexto
migratório.
As narrativas de Khady sobre sua experiência migratória ilustram, principalmente, as
formas como se produz renda na Itália e as maneiras como é utilizada e investida em Dakar.
Como em outros exemplos citados anteriormente, o que marca a trajetória profissional de
Khady é a versatilidade, a capacidade de aplicar habilidades adquiridas no Senegal em
contextos diversos, em especial na Itália. Devendo satisfazer o papel de mãe e esposa, as
viagens dela para Dakar são frequentes e mais prolongadas do que aquelas que,
habitualmente, realizam os homens. Ela costuma permanecer em Dakar de quatro a sete meses
por ano, entre novembro e maio90, o que a induziu a nunca procurar um emprego fixo em
Turim. Ter aprendido a ser uma boa cozinheira lhe permitiu ser empregada temporariamente
em restaurantes senegaleses na Itália e vender comida tradicional senegalesa na feira Balôn.
Contrariamente às outras duas vendedoras que mencionei anteriormente, Khady cozinha e
oferece seus pratos para os conterrâneos de forma ocasional: enquanto as outras duas
interlocutoras têm essa como atividade econômica principal e vendem seus alimentos nas
feiras todos os fins de semana, Khady realiza essa tarefa de vez em quando, o que não impede
sua presença constante nesses dois mercados. De fato, quando não perambula pelas bancas
com seu carrinho de mão cheio de comidas a serem vendidas, o mesmo a acompanha vazio,
preste a ser preenchido de mercadorias que ela adquire e guarda para serem enviadas no
Senegal.
90 Esse período do ano, como sugerido pelos meus interlocutores, é escolhido principalmente para “fugir” do
inverno europeu.
95
O comércio praticado por ela se divide em duas modalidades: a aquisição de itens no
contexto dessas duas feiras e sua respectiva venda realizada por parentes em Dakar, e, no
verão europeu, “fare la bancarella”, como ela relata, que consiste em montar uma pequena
banca de peças artesanais africanas nas praias dos litorais italianos, junto com o irmão. Esse
último é o mesmo que viabilizou sua vinda à Itália e que lhe fornece parte da mercadoria
africana (outra parte, principalmente as bijuterias, é adquirida por ela em ocasião de suas
viagens anuais para Dakar). Já o irmão de Khady atua nas feiras de bairro, em Turim, com
peças importadas do Senegal, principalmente roupas, tecidos, instrumentos musicais,
pequenas esculturas. Paralelamente a essas práticas, Khady oferece seus serviços a
conhecidos como babá e cuidadora de idosos. Além disso, mediante aviso prévio, ela recebe,
em sua casa, conterrâneos que pagam dez euros para almoçar ou jantar91.
Por meio desse conjunto de práticas econômicas, que se alternam e diferenciam
dependendo da época do ano e de oportunidades contingentes, Khady conseguiu não somente
garantir a sobrevivência da família, mas também investiu na abertura de uma loja em Dakar
voltada à venda e concerto de telefones celulares, negócio que seu filho administra.
Embora tenha conseguido concretizar parte das aspirações financeiras que os
migrantes senegaleses compartilham no exterior (adquirir casa própria e viabilizar atividades
econômicas no Senegal para os familiares), Khady deseja retornar para a cidade natal, mas
afirma que “a volta ainda não está pronta”. Ela explica, a seguir, o impasse: “não posso ficar
lá sem fazer nada” e conta do projeto de uma alfaiataria em andamento. Ela já tem máquinas
de costuras, que ganhou de um conhecido, italiano, frequentador da feira Balôn, as quais
foram enviadas via container para Dakar, mas ainda faltam recursos para alugar o local onde
montar a loja e pagar um costureiro que realize o serviço92.
A postura de Khady em relação a um possível retorno ao Senegal é próxima a de
outros interlocutores. Quando de volta ao Senegal, o migrante, que durante a experiência
migratória auxiliou financeiramente a família de origem - tendo criado empreendimentos para
eles, por exemplo, como no caso de Khady -, está pouco disposto a ser ajudado ou mantido
pelos parentes a quem beneficiou. Se, para um olhar de fora, desfrutar da contraprestação
apareceria como desfecho lógico do circuito da dádiva, tal situação não corresponde às
aspirações dos migrantes, os quais, uma vez retornados, preferem preservar a própria
91 A prática de construção de restaurantes informais temporários por parte das mulheres senegalês voltados para
o atendimento dos próprios conterrâneos, chamados de tangana, é comum também em outros contextos, como
Riccio observou na cidade de Rimini, onde as mulheres costumam realizar esse trabalho durante o verão
(137:2007). 92 Entrevista, 13 de setembro de 2014.
96
autonomia financeira. De fato, como Cora Leonie Mezger Kveder (2012) escreve em sua tese
de doutorado sobre a migração dos senegaleses na Europa: “return migrants were found to be
more prone to self-employment than individuals without international migration experience”
(2012: 220). A dinâmica de empoderamento que o processo migratório pode proporcionar,
quando bem-sucedido do ponto de vista econômico, produz um status no Senegal que o
migrante procura preservar. Se por um lado, retornando em pátria, ele se torna um “rei”, esse
papel é assumido unicamente em relação ao prestígio, mas não é endossada uma de suas
funções peculiares: a de se fazer servir. O migrante que reingressou, conforme os valores
ligados ao jom (orgulho, dignidade) e souture (discrição), prefere continuar a cumprir a
função de provedor (para si e para os outros) e opta, então, por não ser beneficiado
economicamente por terceiros. Retomando a lógica do “oferecer”/“pedir” ou “dar”/“receber”
como formas opostas de ser para os senegaleses, sobre a qual se comentou acima, o migrante
é quem dá, quem beneficia, quem promove a dádiva e se colocar na posição oposta, segundo
essa perspectiva, isto é desfrutar da contraprestação financeira que lhe seria devida, o
desqualificaria do prestígio e poder adquirido e o colocaria em uma posição subalterna aos
que inicialmente beneficiou. Sobre o engessamento do migrante ao papel do provedor
falaremos também sucessivamente, adiantamos ainda que esse processo se explica também,
reciprocamente, pela pouca disposição dos parentes a proporcionar apoio financeiro para os
familiares que expatriaram obtendo sucesso económico efetivo ou aparente (lembrando que
tal sucesso pode ser blefado).
Em relação às práticas comerciais empreendidas por Khady, ela me contou, durante
um de nossos encontros, que tinha recém acabado de fazer um bom negócio na feira Balôn.
Às vezes, você compra coisas novas, às vezes usadas, depende do que se
consegue encontrar. Outro dia, eu comprei muitos sutiãs e calcinhas, paguei
quase nada, e vou enviá-los para eles (familiares), para vende-los; comprei-
os na feira Balôn. São todas peças novas... de vez em quando tem lojas que
fecham e se desfazem das mercadorias, fazem estoques e oferecem na feira.
Comprei mais de cem peças, vou conseguir vender tudo.... Agora estou à
procura do homem que faz o container e as envio para lá.
Em relação aos preços pagos, previsões de venda e como esta será efetuada em Dakar,
acrescenta:
Comprei essas mercadorias por trinta euro, é pouco..., mas tenho também
que pagar o container para enviá-las! Lá, quem vai revender não será minha
irmã, mas minha sobrinha..., ela trabalha bem para mim: ela não torra meu
dinheiro! (ri e bate as mãos uma na outra). Meus filhos torram meu
97
dinheiro, briguei com eles e os coloquei de lado. Trabalho só mais com a
minha sobrinha que guarda meu dinheiro... ela é ma secrétaire! (e solta uma
gargalhada). Vamos revender barato, quero ganhar dois euros por cada par,
sutiã e calcinha, porque tem somente de duas cores, laranja e verde. Minha
sobrinha vai vender cada par a três ou quatro euros e eu fico com dois
(euros). Ela guarda meu dinheiro e eu o pego quando volto para lá, porque se
ela o enviar aqui... eu vou torrá-lo!
Khady adquire mercadorias para serem revendidas exclusivamente nas feiras de
usados da cidade porque essas representam lugares onde se tem a oportunidade de encontrar
peças usadas ou novas por um preço menor do que em outros espaços comerciais. Nesse caso,
ela achou e adquiriu um estoque de sutiã e calcinhas, em outras ocasiões comprou sapatos,
bolsas, brinquedos. A escolha das mercadorias se dá dentro do conjunto de itens que as
mulheres e crianças utilizam em Dakar. Tal tipologia de escolha sugere a existência de uma
compartimentação de gênero nas redes que sustentam o fluxo comercial dos objetos entre
Turim e Dakar.
Os circuitos comerciais transnacionais são constituídos por diversos sujeitos, os quais
se ocupam, como veremos melhor em seguida, em desenvolver diferentes tipos de transações
econômicas e financeiras, bem como práticas de deslocamento. A pessoa que, na Itália,
adquire as peças a serem exportadas no Senegal, que chamaremos de emissor, pode ou não
realizar a venda das mesmas no seu país de origem. Isto é, ele opta: pode acompanhar os
objetos enviados via container, deslocando-se ele próprio também para o Senegal, onde
gerenciará a comercialização dos mesmos, ou designar uma pessoa no Senegal para realizar a
venda dos itens importados da Europa. No caso de Khady, assim como veremos em outras
situações, a rede comercial se articula com a participação de uma vendedora em Dakar, à qual
as coisas são enviadas e que, então, participa do circuito devendo respeitar acordos
preestabelecidos93.
Como se comentou no capítulo anterior, a sociedade senegalesa identifica o espaço
feminino com a dimensão doméstica e privada. A partir dessa perspectiva, roupas intimas,
acessórios, tecidos, alimentos, bijuterias, perfumes, maquiagem, brinquedos, produtos de
limpeza, são considerados itens do universo feminino os quais podem ser adquiridos por
homens, geralmente sob encomenda de mulheres, mas serão vendidos exclusivamente por
essas últimas. O fato de que a maioria dos migrantes em Turim seja composta por homens,
então, não impacta na circulação de mercadorias de domínio feminino em Dakar; de fato, a
lógica de compartimentação de gênero na composição das redes comerciais é flexionada para
93 Sobre o aspecto financeiro na dinâmica desses papeis se tratará no capítulo 6.
98
possibilitar esse fluxo. Existe, por exemplo, uma significativa rede de compra-venda de bolsas
falsificadas - de origem chinesa às quais são aplicadas marcas renomadas (Prada, Chanel etc.)
-, em geral produzidas na cidade de Nápoles – cujos emissores são indivíduos do sexo
masculino. Estes são instruídos por mulheres em Dakar sobre os modelos a serem adquiridos.
Em geral, essas comerciantes são suas irmãs, esposas e/ou filhas: a partir de suas indicações,
eles efetuam as compras na Itália e, sucessivamente, fazem o envio da mercadoria, via
container, para elas comercializá-la no Senegal.
Para que a circulação das mercadorias aconteça com sucesso, é preciso que as peças
circulem do emissor até o cliente satisfazendo acordos preestabelecidos de ordem financeira e
moral, que devem beneficiar todos os componentes da rede. Tais acordos, como veremos
melhor a seguir, são múltiplos e, mesmo que determinados de forma prévia, devem ser
tutelados e frequentemente rediscutidos a cada transação: a confiança, nesse sentido,
representa o valor central para que o fluxo das mercadorias se realize. Um exemplo de
descumprimento dessas determinações é explicitado na narrativa de Khady, na qual
percebemos duas dinâmicas interconexas que se verificam frequentemente no contexto das
relações que compõem os circuitos comerciais observados: de um lado, registra-se situações
de embate entre migrantes-emissores e familiares-vendedores, pelo fato de esses últimos
gastarem indevidamente o ganho das vendas, reduzindo, dessa forma, a parcela que caberia
aos parceiros na Itália; de outro lado, a busca de estratégias por parte desses últimos para se
tutelarem frente a eventuais artimanhas.
No caso de Khady, como em muitos outros que observei, existe uma modalidade
específica de se apossar do dinheiro alheio e gastá-lo, que encontra eco no termo que a minha
interlocutora utiliza em sua fala. Escutei a mesma expressão inúmeras vezes em outras
narrativas: “mangiare i soldi”, que traduzi como “torrar o dinheiro”, literalmente significa
“comer o dinheiro”, indicando uma maneira peculiar de lidar com ele. Esse termo, em
italiano, é empregado pelos senegaleses porque, na língua wolof, se utiliza uma expressão
equivalente: “lek sama ckalis”, onde “lek” significa comer “sama”, o meu, e “ckalis”,
dinheiro. Segundo tal locução, o dinheiro não é dispendido no sentido de “empregado”,
“investido” em alguma coisa como contrapartida da troca, mas é “comido” no sentido que
“desaparece”, é “queimado”, literalmente é “gasto”: nada sobra como resultado do uso para o
qual foi utilizado. Essa percepção do “gasto” como “desaparecimento”, imagem corrente na
fala dos migrantes, decorre do desvio de parcela (ou da totalidade) do lucro do comerciante,
realizado por parentes para atender as despesas diárias (pagamento de contas, aquisição de
alimentos, roupas, medicamentos etc.). A expressão “comer o dinheiro” remete também à
99
ideia da apropriação e integração desse item com a finalidade de “nutrir-se”. De fato, ao olhar
dos migrantes, o dinheiro adquire também essa função já que, como vimos, os parentes
relatam empregá-lo para a sustentação da família. Nesses casos, o ganho perdido pelos
migrantes se torna uma dádiva involuntária aos parentes. Administrar o dinheiro é uma tarefa
desafiadora que se articula entre duas práticas opostas, as quais aparecem como elementos
complementares nas narrativas de Khady: a pecúnia pode ser “torrada”, “comida”, “gasta”
sem deixar rastros ou ser “guardada”. Tais dinâmicas são interconexas na medida em que
“guardar” dinheiro significa poupá-lo momentaneamente para ser sucessivamente “gasto” ou
“torrado”. Guardar o dinheiro para não “torrá-lo” e/ou “torrar” o dinheiro guardado envolve
geralmente um outro sujeito que, como vimos, pode ou não corresponder aos acordos
pactuados.
Brigas devidas a trapaças por dinheiro são comuns e nem sempre se resolvem, como
ocorreu no caso de Khady, por meio da substituição da parceria comercial por outro parente.
Tais ocorrências, que desencadeiam, como veremos, conflitos familiares sempre negociados e
negociáveis, podem levar também a fracassos financeiros. Artimanhas, mentiras, encenações e
estratégias para se apossar do dinheiro dos parentes que atuam na Itália, variantes do mousse
(esperteza) sobre a qual falamos acima, representam situações recorrentes compondo o que
chamaria da “arte della fregatura”, “arte da trapaça”94. Essas dinâmicas de tensão, anunciadas
aqui por Khady, serão tratadas de maneira mais aprofundada adiante. Ilustraremos
etnograficamente outras situações de astucia e burlas ao longo do texto e os
contextualizaremos dentro da dimensão da “esperteza” (mousse) enquanto valor considerado
como característica identitária nacional. Por enquanto apontamos que a mousse, junto a jom e
a noção de ajuda/solidariedade, representa uma faceta do ethos da comunidade pesquisada.
A trajetória de Khady pode ser considerada versátil pela quantidade e diversificação de
práticas econômicas realizadas, mas também pela capacidade de assumir dois papeis
simultaneamente: o de “provedor” e de “cuidadora”, considerados, respectivamente,
masculino e feminino. Embora, retomando as palavras de Coumba Mbaye, “uma mulher não
deveria migrar”, o expatrio de Khady é legitimado pelos homens que pertencem ao seu meio
social, por isso nunca escutei críticas, reprovações, fofocas negativas a respeito da sua pessoa
ou sua atividade. Essa tolerância aponta, nesse contexto, para uma flexibilização das normas
morais, ainda mais se considerarmos que ela se apropria do papel masculino utilizando
94 Com o termo “arte”, me refiro, aqui, à raiz etimológica da palavra, que do latim ars, artis tem uma acepção
pratica e significa “habilidade”. A “arte da trapaça” corresponde então a um conjunto de competências adquiridas
e acionadas situacionalmente com finalidades concretas e especificas.
100
práticas professionais próprias da “condição feminina” e é sustentada pelo fato que Khady
continua exercendo o papel estabelecido para as mulheres, de fato, utiliza parte da renda
obtida no país de chegada para realizar viagens frequentes à Dakar, que não somente renovam
o vínculo familiar, mas também reafirmam seu papel de mãe e esposa.
3.3.2 Quebrando padrões: desafios e aventuras. O caso de Coumba Mbaye
Versatilidade profissional, práticas comerciais locais e transnacionais, “vai e vem”
entre Turim e Dakar caracterizam também as narrativas de Coumba Mbaye, cuja trajetória
também não se manteve dentro dos padrões morais e de gênero estabelecidos.
Coumba, sobre a qual já falamos no capítulo anterior, deixou Dakar em 1998 junto
com seu filho de cinco meses, logo depois da separação com o marido. Mesmo que, em
Dakar, estivesse trabalhando como enfermeira e sua família tivesse boas condições
financeiras, decidiu sair do país e alcançar a irmã que vivia na Normandia (França). Ali, ficou
alguns meses, depois dos quais optou por se deslocar para a Itália. A sua intenção era ir a
Milão, onde vivia um primo. Os motivos que a levaram para o expatrio não são expostos de
forma espontânea e, após eu tê-los solicitados, Coumba alude ao ganho restrito como
enfermeira em Dakar (cerca de 100 euros por mês) e à vontade de encontrar “uma situação
melhor”95. A escolha por ir para à casa do primo em Milão é associada a convite e às
“promessas” feitas por ele, que, no final, foram desfeitas. Ela descreve assim sua chegada na
Itália:
Muitas promessas, todas mentirosas, isso acontece muito. ‘Tenho uma casa
grande, tem muito trabalho aqui, venha!’, me dizia... muitas mentiras.... É
comum isso acontecer. Quando cheguei em Milão, o telefone dele estava
desligado. Liga, liga e nada. Na verdade, ele tinha um só lugar para dormir e
vivia junto com outros conterrâneos, assim como acontece com muitos
senegaleses. Você entende que se trata de mentiras somente quando chega no
lugar. Depois de um tempo esperando na estação ferroviária, meu primo
mandou um amigo ao meu encontro, que me comprou uma passagem para
Genova. Fui para a casa de um conhecido dele. Em uma quitinete,
dormíamos quatro adultos e meu filho em uma cama de casal, num bairro
pobre, onde se vendia droga. Pedi ajuda à minha mãe em Dakar, expliquei a
situação e, sabe, quando você migra, te passam muitos números de telefone,
de pessoas que moram fora. Eu tinha um `tio´ que morava em Turim, nunca
tinha visto ele antes, devo ser honesta, ele era amigo de meus tios. Quando
95Entrevista, 7 de novembro de 2014.
101
liguei, ele me falou: ‘Ouvi dizer que você estava aqui. Pode vir na minha
casa’. Mas eu não confiava. Minha mãe estava falando com muitas pessoas
conhecidas para me ajudar. Um dia, esse ‘tio’ me fez chamar por um amigo
dele que morava também em Genova: estava em casa e esse moço me
contatou e me pediu para que eu lhe ligasse. Assim retornei a ligação,
conversamos e comprei uma passagem de trem de ida e volta para Turim.
Parti desiludida. Agora com esse `tio´ não falamos mais, mas me ajudou
muito. Me deixou o quarto dele, levava todos os dias meu filho no parque.
Eu não queria sair de casa, estava muito desiludida. Depois de três dias, ele
me chamou e me perguntou o que queria fazer. Me falou toda a verdade
sobre o que podia e não podia fazer ali. ‘Se quiser trabalhar, tem trabalho, se
quiser ir para o mal caminho, pode ir para o mal caminho: você pode
trabalhar como operária, mas quem faz isso são quase todos homens. Você é
uma mulher, então pode também “fare la strada” (literalmente “fazer a
estrada”, se prostituir), ou tem meninos que vendem droga....’ Ser operária
não dava com a criança pequena, me prostituir e vender droga não queria de
jeito nenhum. ‘Quer voltar?’, me perguntou ele. ‘Absolutamente não’,
respondi. O dia depois, quando ele voltou para casa - meu ‘tio’ trabalhava
como operário - me perguntou se sabia trançar os cabelos, eu respondi que
sim. Ele, então, me passou o contato de alguns colegas de trabalho
interessados e comecei a fazer isso e, com o boca-a-boca, trabalhei muito.
De 1998 até 2002, ganhei muito, muito, mas muito dinheiro fazendo tranças.
Mentir para parentes e amigos no Senegal sobre as reais condições de vida que se tem
na Itália é, não somente segundo Coumba, mas também para outros interlocutores, uma
prática comum. Se, por um lado, pode haver ostentação dos bens adquiridos, como Riccio
(2007) sugere, por outro, é possível que alguns migrantes simulem ter alcançado
determinados objetivos para despreocupar os familiares, para escamotear o insucesso ou a
demora em conquistar o status esperado ou ainda para ativar o jogo de autorrepresentação em
quanto sujeitos que ocupam uma posição de prestígio frente aos conterrâneos no Senegal.
A dinâmica de empoderamento associada à trajetória migratória se articula, no
Senegal, tanto em uma perspectiva individual quanto coletiva. Mostrar ao outro os “signos”
do próprio sucesso (principalmente de ordem econômica) no caso de alguns migrantes, se
traduz na produção de marcas estéticas relacionadas ao luxo e à riqueza. Tais marcas podem
ser carregadas individualmente - por exemplo, apresentando-se com roupas e enfeites “de
marca”, utilizando tecidos caros para confecção de roupas tradicionais, etc. - ou transferidas
para bens materiais de ostentação, como a posse de automóvel ou a casa comprada ou
construída para a família. Sinatti (2009) mostra, em seu artigo “Home is where the heart
abides. Migration, return and housing in Dakar, Senegal”, que a casa - que lembramos ser o
primeiro alvo econômico do projeto migratório - costuma ser construída pelos migrantes em
moldes ocidentais (edifícios de mais andares com materiais importados) e se torna um
102
símbolo de status96. Importante é aqui salientar que a prática de ostentação da riqueza, que é
também uma forma de produzir prestígio, é exercida por muitos (também não migrantes), pelo
menos em cidades como Dakar e Touba.
No caso do primo de Coumba, esse marcador de status, que ele ainda não conseguiu
produzir no Senegal, é transferido para Itália. A encenação relativa a ter conseguido alcançar
um padrão socioeconômico no exterior, considerado prestigioso, é uma estratégia de
empoderamento que compõe a “arte da trapaça” acionada pelo mousse (esperteza), mas
fracassa no momento em que chega um parente e desvela a farsa. Coumba ficou então
duplamente desiludida: por descobrir a falsidade das condições de vida relatadas por seu
primo, que a desamparou descumprindo a promessa de acolhimento que lhe tinha feito, e
também por encontrar uma realidade muito diferente do que tinha sido lhe contado. É
importante salientar que o primo está impelido a montar a farsa também porque, do ponto de
vista das prescrições, principalmente enquanto parente, ele deve amparar e acolher Coumba
no exterior. Nesse sentido, a obrigação de ajuda, em quanto valor central que sustenta práticas
e logicas dos senegaleses, desempenha um papel fundamental na inserção dela na Itália:
apesar de Coumba e seu pequeno filho terem se deparado com muitos desafios, nunca
estiveram abandonados, pois, ao pedido de ajuda feito para a mãe, uma rede composta por
conterrâneos conhecidos e desconhecidos foi ativada produzindo solidariedade. Na sua
narrativa, podemos perceber como a rede social na qual ela está inserida é ampla e permite
que diversas pessoas em diferentes localidades passem a se articular para ampará-la,
contribuindo a direcionar sua permanência no país. Essa rede é compacta não somente porque
existe conexão entre pessoas presentes em diversos lugares (Milano, Genova, Dakar, Turim),
mas também pela intensidade e amplitude por meio da qual as informações circulam entre os
sujeitos que a compõem97. O “tio” de Coumba, que ela não conhecia pessoalmente, já sabia da
sua chegada à Itália antes dela procurá-lo e quando ela, desconfiada, recusou o convite, o
“tio” conseguiu reforçá-lo através de um amigo em Genova. A coesão das redes, que, nesse
caso, opera para produzir solidariedade, é uma característica da sociabilidade senegalesa e,
como veremos, também exerce outros papeis: rumores e notícias, que foram articulados para
96 “As a result of substantial investment in multi-storey homes, the height of buildings has become associated, in
popular understanding, with wealth and economic success. Multi-storey houses have become socially desirable
and an icon of status” (2009: 54). 97 Diferentemente da esperteza e “arte da trapaça”, a solidariedade representa um valor amplamente etnografado
e analisado pela literatura socioantropológica (CASTAGNONE ET ALL., 2005; RICCIO, 2007 etc.) na qual foi
considerado o marco central, e único, do universo moral senegalês.
103
ajudar Coumba, podem se tornar fofocas e críticas que operam exercendo controle de cunho
moral sobre o sujeito ao qual são direcionadas e sobre a comunidade como um todo.
O leque de possibilidades que o “tio” apresenta para Coumba espelha, de seu ponto de
vista, as dificuldades de inserção que uma mulher migrante tem no mercado de trabalho em
Turim. Ele expõe as atividades viáveis especificando, do ponto de vista moral, as práticas
tidas como legítimas (“trabalho”) e ilegítimas (“ir para o mal caminho”) e suas respectivas
correspondências de gênero. A partir da perspectiva dele, o que resta a Coumba é: escolher um
trabalho considerado “masculino (“ser operária”), optar por uma atividade feminina
considerada imoral (prostituir-se), ou, enfim, fazer algo considerado também inapropriado,
isto é, vender droga, prática que contrariaria, como vimos, prescrições legais e morais, além
de ser uma atividade exercida geralmente por homens. As opções disponíveis no mercado de
trabalho se apresentam ao “tio” como reduzidas pela tentativa, nesse novo contexto, de
manter-se em acordo com as regras senegalesas de divisão de trabalho segundo o gênero. É
evidente como a pressão é exercida para que a ordem moral seja preservada também no
exterior, especialmente pelos conterrâneos do sexo masculino. É somente em um segundo
momento que surge uma alternativa tida em consonância com as regras morais senegalesas:
“trançar cabelos”. Tal atividade pode ser considerada como (re)criação de uma prática
tradicional com a finalidade de garantir as condições de inserção no mercado de trabalho
buscando manter-se em acordo com a moralidade islâmica. “Fazer tranças”, de fato, é tido
como trabalho honesto, digno, que corresponde à noção de ngor (honradez) e, ao mesmo
tempo, se circunscreve no campo das habilidades atribuídas ao universo feminino.
Dentre as possibilidades econômicas apresentadas pelo “tio” de Coumba, o comércio
não fora contemplado, mas de 2000 até 2011, esse se tornou sua atividade financeira mais
significativa. Ela conta que, um dia, passeando pela feira Balôn, encontrou uma conterrânea
que vendia CDs pirateados, se interessou por essa atividade e lhe pediu orientações sobre
como empreender esse tipo de comércio. Segundo seu relato, essa vendedora era, na época, a
única mulher senegalesa que trabalhava como ambulante em Turim e, ainda que em um
primeiro momento tenha se mostrado desconfiada, “foi gentil”98, lhe indicou onde e como
poderia comercializar tais itens, iniciando-a na atividade que lhe proporcionaria o maior
ganho financeiro dentre todas aquelas que já tinha realizado, além de garantir-lhe uma rotina
relativamente autônoma e livre. Coumba começou a adquirir CD´s, que na época eram
pirateados em Nápoles, e passou a vendê-los aos sábados na feira Balôn. Logo passou a
98Entrevista, 7 de novembro de 2014.
104
comercializar também DVDs e “aqueles outros filmes” (pornográficos), diz ela, que separava
em uma bolsa, sem expô-los ao público, e vendia para clientes fixos. A atividade ambulante de
venda dos produtos acima mencionados, porém, provocou tensões e conflitos com
conterrâneos homens, principalmente comerciantes.
Coumba descreve assim essa experiência:
Assim ganhei muito dinheiro, mas muito mesmo, tanto que não sabia de
onde vinha. De um dia para o outro, levantava a quantia para pagar o
aluguel. Ganhava, na época das liras, 1.300.000.... 1.800.00099 a cada
sábado. Aí parei de fazer as tranças... não me convinha mais, era muito
trabalho para pouco dinheiro. Com a venda dos CDs e DVDs era diferente:
dormia de manhã...., fazia as minhas coisas... aí às 16hs da tarde ia para via
Garibaldi vender e às 19hs já tinha um monte de grana no bolso. Depois
comecei também a vender bolsas e óculos, porque eram as coisas que saiam
mais.
Quando perguntei para Coumba como investiu o dinheiro que ganhou, ela contou tê-lo
“desperdiçado”: a família em Dakar não precisava de ajuda financeira, assim gastou muito
com o filho, que, segundo ela, era “extraordinariamente mimado”, e enviava remessas a todas
as pessoas no Senegal que lhe pedissem ajuda. Quem passou a economizar foi sua mãe, que,
tendo percebido a atitude da filha, começou a lhe pedir dinheiro alegando necessidades
próprias e passou a poupá-lo por ela. “Não fosse por ela, não teria me sobrado nada. Mas me
diverti muito”100, conclui Coumba.
Ela comercializava suas peças tanto expondo-as na rua, assim como vendendo-as para
clientes fixos, entre os quais duas lojas de marca do centro da cidade, às quais fornecia, sob
encomenda, bolsas falsificadas. Coumba constrói a narrativa comparando aquela época com o
momento atual. A comercialização de mercadorias falsificadas já era considerada ilegal, mas,
não havendo muitos ambulantes que a praticavam, os controles eram brandos. Na medida em
que o número dos comerciantes aumentava, porém, as sanções foram se tornando mais rígidas
e ela passou a ter problemas para renovar o visto de permanência. Por causa disso, em 2003,
ela decidiu interromper essa atividade comercial. Ela associa tal escolha também ao desgaste
que o trabalho lhe causava pelo risco que comportava - nesse sentido, ela conta que precisava
se resguardar e falar para poucas pessoas onde morava por medo que a polícia pudesse se
apresentar na casa dela - e também pelas tensões que sua atividade gerava entre seus
conterrâneos. Sobre essa última questão, ela afirma ter sido “criticada” e ter passado por
99 Até 2002, a moeda em uso na Itália era a lira. Um euro corresponde a 1936,27 liras, portanto Coumba ganhava
entre 670 e 930 euros a cada sábado. Em 2000 o salário médio mensal na Itália era de 1.400.000 liras. 100Entrevista, 7 de novembro de 2014.
105
situações de embates com comerciantes homens, os quais “não aceitavam” que ela
desenvolvesse esse tipo de trabalho. Com o termo “críticas”, Coumba alude ao conjunto de
rumores e fofocas de cunho negativo que circulavam entre migrantes senegaleses de seu meio
social, por meio dos quais eram reprovadas suas condutas, produzindo coerção. Sobre as
formas como se dão essas dinâmicas trataremos a frente.
A atividade comercial empreendida por Coumba, por um lado, contradiz alguns dos
padrões morais e religiosos que descrevemos acima (ela realizava um tipo de comércio que
não está vinculado ao universo tipicamente feminino e/ou familiar, além de ter praticado a
venda de itens “proibidos” segundo a perspectiva islâmica), mas, por outro, reafirma valores
como “liberdade” e “aventura”, aspectos constitutivos da experiência migratória senegalesa
que, assim como mousse (esperteza), jom (coragem) e solidariedade, compõem o ethos da
comunidade pesquisada.
Apesar da trajetória de Coumba representar um caso relativamente singular no
contexto dos percursos femininos observados durante a pesquisa, ela se mantém inscrita no
quadro das lógicas que estamos descrevendo. Com o objetivo não apenas de produzir uma boa
renda, mas também garantir tempo livre e qualidade de vida para ela e seu filho, Coumba opta
por abandonar sua ocupação tradicional e, revertendo as regras das obrigações de gênero,
passa a exercer uma atividade comercial que, além de ser considerada masculina, concorre
com as dos conterrâneos. Na tentativa de coibir a competição, criaram-se situações de tensão,
servindo como argumento a infração das prescrições religiosas e de gênero compartilhadas101.
101Para fornecer um elemento etnográfico que ajude a entender o grau de coerção que os homens exercem sobre
as mulheres, resumirei aqui uma situação que vivi pessoalmente, enquanto esposa de um conterrâneo conhecido
por um informante. A feira Balôn, sobre a qual escreverei no item sucessivo, foi um lugar central para o
desenvolvimento da minha pesquisa de campo. Quando estive em Turim, todos os sábados, passava o dia inteiro
no mercado fazendo pesquisa. Em uma dessa ocasiões, de manhã, encontrei Amadou Thiam, vendedor
ambulante, que atua informalmente nessa feira, em Sandaga (o espaço comercial na Rua Garibaldi que citei
acima) e em outros locais no centro da cidade. Nos cumprimentamos de pressa, eu andando em uma direção e ele
em outra. Logo depois do almoço, nos cruzamos novamente: “ainda está aqui?”, me pergunta, sorrindo. “Sim!”,
lhe respondo, “que corajosa!”, rebate ele. Naquele momento, interpreto esse termo como uma qualificação
positiva: Amadou me conhece como esposa de um seu conterrâneo, sabe que sou antropóloga e conhece o meu
trabalho de pesquisa, sobre o qual conversei com ele em ocasião da entrevista que ele me concedeu. “Ele pensa
que sou valente, tenaz porque trabalho sem desistir”, penso eu. No final da tarde, nos deparamos novamente:
“Ainda aqui?”, lhe sorrio, “vai para casa!”, me diz. Paro, “Amadou! Você me diz o que tenho que fazer?”, “Sim”,
responde ele, e se afasta. Amadou, mesmo que saiba que estou na feira fazendo a pesquisa “para terminar a
universidade”, como costumavam dizer meus interlocutores – papel que, inclusive, eu fazia questão de
performatizar me deslocando sempre pelo mercado com caderno e caneta -, considera oportuno me lembrar qual
é o espaço que devo ocupar e, fazendo isso, expressar indiretamente que perambular pela feira sozinha por um
dia inteiro não é adequado. Depois dessa colocação, passei a reinterpretar a qualificação que tinha me atribuído
anteriormente: quando nos cruzamos a segunda vez, o termo “corajosa”, que ele utilizou, não correspondia a
“tenaz” por eu ser muito dedicada ao trabalho, mas, talvez, “audaz”, ou diria quase “intrépida”, por estar
desafiando a regra segundo a qual uma mulher não deve ocupar o espaço público sem estar exercendo uma
prática de interesse privado, e, especificamente, familiar. Quando, indignada, explicito o papel coercitivo que ele
106
Embora ela diga que, na época, “se divertia” e deixava para seus conterrâneos o papel
moralizador, hoje, ao relembrar, sente nostalgia – conta os episódios sorrindo e os recorda
interpelando o filho, presente durante a entrevista –, mas também assume um olhar prescritivo
sobre si mesma: “agora que envelheci, entendi que não era bom o que fazia: ganhar dinheiro
fácil, não está certo”102, comenta. Ainda que atualmente ela faça uma releitura crítica dessa
fase da vida, assumindo a perspectiva islâmica - segundo a qual a produção de renda deve
resultar de uma atividade empreendida com esforço e dedicação e, além disso, dever ser
“correta” (halal em árabe), isto é, não prejudicial a terceiros –, o que me parece importante
ressaltar é a menção ao fato que no período descrito importava-lhe “divertir-se”. Esse último
representa um valor não religioso sustentado, nesse caso, por alguém que não tinha
compromisso enquanto mulher casada.
Com relação ao dinheiro ganho, podemos perceber que, no caso de Coumba, se
verifica a situação oposta daquela vivida por Khady: se essa última queria que seu dinheiro
fosse guardado e sua irmã, ao contrário, o “torrava”, Coumba “torra” seu próprio dinheiro e a
mãe economiza por ela. Observamos ainda que se por um lado não temos informações sobre
como a pecúnia era “torrada” por ela (só sabemos que era gasta para o filho e enviada em
forma de remessas para quem necessitasse no Senegal), o gasto, posteriormente considerado
como excessivo, remete a ideia de desfrutar da riqueza adquirida. Segundo as lógicas de meus
interlocutores, as consequências da “má produção de renda” podem também recair
negativamente sobre os familiares e filhos. Nesse sentido, no caso de Coumba, que depois de
ter casado com um homem italiano teve com ele um filho com deficiências, escutei
comentários de seus conterrâneos que atribuem a “desgraça” da condição do filho ao desvio
de conduta da mãe. É evidente, então, como o manejo das crenças pode vir a ser utilizado para
coibir atitudes consideradas moralmente reprováveis, argumento que serve, dentre outros,
como bloqueio à concorrência comercial. O fato de que as consequências de práticas
moralmente reprováveis aconteçam muitos anos depois dos “desvios” praticados - pois recolhi
narrativas a esse respeito em 2014, mais de dez anos após ela ter encerrado a atividade
comercial - coloca em evidência que as dinâmicas que compõem os processos morais se dão
também de maneira diacrônica. Mesmo que parte das migrantes encontre formas novas de
atuar, mais ou menos legitimadas pelos próprios conterrâneos, é preciso considerar que a
pressão exercida sobre elas por esses últimos é significativa. Essa coerção está vinculada à
está exercendo, esperando que recue para sair da posição de sujeição na qual me colocou, ele, simplesmente, o
reafirma. 102Entrevista, 7 de novembro de 2014.
107
esfera do gênero, mas também, de forma mais geral, à condição do migrante senegalês em
terra estrangeira. A experiência migratória feminina é considerada, por parte dos homens
senegaleses que participaram da pesquisa, um elemento que, por si só, pode modificar a
relação e condições de viabilização das prescrições morais e religiosas do país de origem.
Essa dinâmica ficou explícita, por exemplo, na fala de alguns interlocutores a respeito da
postura das mulheres senegalesas em Turim. Segundo esses informantes, essas últimas,
quando chegam à Itália, “mudam”, se tornariam libertinas, transformação que, segundo suas
perspectivas, não se explica unicamente pelo fato de se ter migrado, ter abandonado a terra de
origem se afastando da família, mas é resultado da inserção na sociedade italiana, que, por
não ser islâmica, não impõe a manutenção de valores morais tradicionais. A forma de viver e
pensar dos italianos, como já mencionei, é por alguns aspectos criticada: sob a perspectiva
moral, como também Riccio (2007) e Castagnone (2007) apontam, o italiano é considerado
“individualista”, “egoísta” porque pouco solidário e, do ponto de vista religioso, muitas de
suas práticas cotidianas são consideradas inadequadas porque contrariam prescrições
fundamentais do Islã. A migração representa, portanto, um perigo, pois pode levar o migrante
a compartilhar outras lógicas e práticas. “Mudar”, no sentido de passar a assumir atitudes
exógenas e, mais precisamente, as condutas negativas atribuídas aos toubab, representa um
risco para todos os migrantes, também para os homens. Como exemplo, cito a frase de uma
mãe antes da partida de seu filho. Segundo descrição de meu interlocutor, ela, inicialmente,
era contrária ao seu expatrio, mas, não tendo conseguido dissuadi-lo, fez-lhe três
recomendações antes de viajar: “não beba, não coma carne de porco e não case com uma
mulher branca”103. Essa advertência assinala, de um lado, a preocupação com a preservação
das regras endogâmicas104 de parentesco e, de outro, que a aproximação com o mundo não
islâmico exerce risco de “contaminação”, devido às possibilidades de contato com o impuro
(Douglas, 1976)105. Essas prescrições alimentam a pressão coercitiva produzida por rumores e
fofocas entre os conterrâneos colocando em evidência a discussão sobre supostos “desvios”
103Diário de campo, 20 de dezembro de 2012. 104 Em relação a como se exerce a tutela das regras endogâmicas, a desaprovação do casamento misto acontece
principalmente nos casos de matrimônio entre migrantes senegalesas e homens de outras nacionalidades. No
caso de Coumba, por exemplo, que casou com um homem italiano, houve reprovação por parte dos conterrâneos,
que, como ela relatou, não a cumprimentam quando acompanhada pelo atual marido. 105 Sobre a representação dos italianos como impuros, alegamos que entre os senegaleses se costuma dizer, por
exemplo, que os toubab, às vezes, têm um cheiro singular, um tipo de fedor, que é reconduzido ao fato de
consumir carne de porco. Outra situação objetiva que produz incômodo no cotidiano de muitos senegaleses na
Itália é o fato que os italianos costumam ter cachorros como animais de estimação. Esse animal é considerado
impuro pelos muçulmanos e, sendo que o fenômeno de criação de cães é muito difuso nas cidades, é comum,
dependendo dos bairros, encontrar seus excrementos ou urinas nas calçadas. Esses aspectos, pouco verbalizados
aos próprios italianos por uma questão de cordialidade, podem representar impasses na cotidianidade de meus
interlocutores.
108
de conduta das mulheres, o que faz com que muitas migrantes se mantenham à margem da
sociedade de chegada. A modalidade de circulação individual é, então, determinada também
por esses fatores: a rede social que se articula para realizar ajuda ou coerção, como vimos,
contribui para delinear caminhos e escolhas.
Sucessivamente às experiências comerciais relatadas, Coumba trabalhará como
empregada em uma fábrica e retomará os estudos como auxiliar de enfermagem, profissão
que atualmente exerce. Mesmo que tenha passado a trabalhar em um emprego fixo, de 2005
até 2011, ela manteve a prática comercial transnacional (Itália/Senegal/Itália) junto com a
profissão de GP. Sobre essa experiência profissional de Coumba, trataremos no quinto
capítulo, mas evidenciamos aqui que práticas transnacionais de comércio, como vimos no
caso de Khady, são exercidas também por outras interlocutoras, as quais circulam tanto por
países limítrofes à Itália (por exemplo, na Áustria onde uma interlocutora realizava a compra
de tecidos para confecção de vestidos senegaleses que revendia na Itália), quanto por países
transcontinentais (por exemplo, nos Emirados Árabes, especificamente em Dubai para
importação e venda na Itália de bijuteria, cremes clareadores e sapatos). Sobre esses dois tipos
de comercialização transnacional, tenho dados insuficientes para elaborar uma análise
exaustiva porque tive poucos contatos com as comerciantes que os realizavam106, mas
devemos considerá-los como peças que compõem o “território circulatório” (TARRIUS,
1993) delineado pelos comerciantes senegaleses no exterior. Nesse sentido, ainda que as
transações de compra-venda se articulem sobre outras rotas, diversas daquelas que eu
observei, não devem ser consideradas isoladamente porque as mercadorias que ali circulam
podem, da Itália, ser enviadas para o Senegal e o dinheiro ganho com as transações sobre um
percurso pode vir a ser reinvestido em outro.
O que pudemos observar ao longo desse item sobre mulheres e comércio é que essa
prática pode representar uma atividade central para a composição de renda das migrantes
senegalesas e de suas famílias no país de origem e se constrói obedecendo só parcialmente às
prescrições de gênero morais e religiosas compartilhadas. Vimos, com o caso de Coumba,
que esses parâmetros podem ser flexionados: escolhi trazer o exemplo dela porque sua
trajetória comercial trilha um caminho bastante singular na fase inicial, mas se tornou, nos
últimos quatro anos, mais comum entre migrantes em Turim. Atualmente, de fato, se tem um
106 A primeira a conheci nas últimas semanas de pesquisa de campo e a segunda nunca se disponibilizou a ser
entrevistada. O que pude observar é que também esses casos de práticas comerciais se articulam segundo os
modelos descritos anteriormente: ou as atividades são desenvolvidas por mulheres que não tem vínculos de
conjugalidade ou por migrantes que os mantém e, então, satisfazem as prescrições associadas à presença e
cuidado para com os familiares organizando as viagens para o exterior e os retornos na esfera doméstica de
forma a não comprometer essas obrigações.
109
número maior de mulheres senegalesas que atuam na venda de itens falsificados, junto com os
homens107. Essa flexão das normas, que se traduz na viabilização de práticas não
convencionais no Senegal, se dá, tendencialmente, a partir de alguns critérios que
caracterizam as mulheres migrantes: sua origem, idade e a formação escolar. Temos
observado que mulheres mais jovens, oriundas da capital e com um nível escolar superior,
como Coumba, são as que mais frequentemente optam para empreender atividades
consideradas não tradicionais. Por outro lado, práticas e lógicas que correspondem às
prescrições morais e religiosas, associadas a um estilo de vida “mais tradicional”, tendem a
serem mantidas por mulheres originárias de outras regiões do Senegal, donde “ser de Dakar”
ou “do interior” também é um diacrítico que os migrantes senegaleses utilizam atribuindo,
respectivamente, as noções de “abertura” e “fechamento da mentalidade”108 a uns e aos
outros. Essas representações tendem a se polarizar nas versões “imoral/atrevido” e
“conservador/retrogrado” e são acionadas em contextos específicos.
O elemento que flexiona as lógicas e práticas comerciais consideradas tradicionais no
contexto de chegada é a “versatilidade” enquanto versão do mousse (esperteza) que, como
vimos, norteia também parte das atividades femininas que criam oportunidades não usuais.
Adaptar-se ao que requer o mercado para tirar o maior proveito financeiro possível faz com
que haja um distanciamento de práticas tidas como tradicionais. A “versatilidade” se expressa
ainda na esfera das atividades não comerciais: a criação de um restaurante na própria casa por
parte de Khady e trançar os cabelos por parte de Coumba, por exemplo, evidenciam que não
se trata de fazer necessariamente o que o mercado local oferece, mas de buscar, ou melhor,
criar novas oportunidade de inserção econômica no novo contexto social. Essas duas práticas
são inovadoras, pois, de tarefas costumeiras do âmbito doméstico no Senegal, se tornam
habilidades que viabilizam renda no país de chegada: atividades “novas” que obedecem a
parâmetros morais tradicionais. No caso da ocupação sucessiva de Coumba (venda de DVDs
pirateados e itens falsificados) ela flexiona ainda a “versatilidade” para além do que seria
aceitável tanto no contexto da legislação italiana quanto no universo moral de seus
conterrâneos e passa a se engajar em uma pratica comercial, “proibida”, que compõe a que
chamamos de “arte da trapaça”.
As mulheres, pelo fato de sofrerem maior coerção moral do que os homens, não
somente mostra ter jom (coragem), mas também se tornam mais criativas do que os migrantes
107Como alguns interlocutores narraram, a venda de mercadorias falsificadas è praticada há anos por mulheres
senegalesas na França. 108 Diário de campo, 9 de janeiro de 2014.
110
do sexo masculino. É o que sugerem os dois casos acima relatados: Khady assume o desafio
de manter o papel feminino tradicional no interior de seu grupo de parentesco, porém
assumindo também um papel masculino, o do provedor. Ela se mantém casada – condição
importante do ponto de vista moral –, porém não depende financeiramente do marido. Cria,
então, um arranjo sui generis que, ainda que transgrida, por um lado, as concepções
tradicionais das funções de gênero, por outro, garante a sobrevivência do grupo, sendo,
portanto, tolerado. No caso de Coumba, ao contrário, o rompimento do casamento abre à
mulher, assim como aos homens solteiros, a oportunidade de buscar novas alternativas de
sustento (e eventualmente também de casamento) no novo meio social.
111
Capítulo 4 – A feira Balôn (1): atuar no “centro” do mercado
4.1 Preâmbulo
Na cidade de Turim, a concentração dos estrangeiros residentes ocorreu
principalmente em alguns bairros, entre os quais Porta Palazzo, situado ao lado do centro
histórico, tradicionalmente considerado como “região popular” (mapa 1). Essa área urbana,
onde o mercado Balôn se insere, representa um lugar privilegiado para se apreender parte das
dinâmicas transnacionais que envolvem, em especial, a convivência de italianos provenientes
de diferentes regiões da Itália com migrantes de primeira geração, em sua maioria
marroquinos, senegaleses, chineses, romenos, albaneses e nigerianos109.
109 De acordo com dados censitários, em 2006, Porta Palazzo hospedava 13,5% da população da cidade, sendo
essa parcela caracterizada, em sua maioria, por núcleos mono-familiares, pela média etária mais jovem de Torino
e por uma percentagem de desocupados superior à dos outros bairros. Os “estrangeiros”, nesse ano, eram 4.115,
representando o 27,3% da população do bairro e subiram, em 2008, para 30,3% (Ufficio di Statistica del Comune
di Torino, 2008). Quanto à sua origem, os marroquinos foram predominantes até 2005. A partir de 2006, a
comunidade romena, que já estava aumentando visivelmente nos anos anteriores, se tornou a mais numerosa.
Apesar da quantidade de africanos ter diminuído em comparação a de oriundos do oeste europeu, a presença dos
primeiros é, nesse contexto, mais visível e arraigada. Instalados na cidade há mais tempo, os marroquinos
marcam de forma mais incidente a vida do bairro e seu espaço urbano. A maioria desses residentes é constituída
por homens solteiros com idade variável entre 20 e 39 anos (SEMI, 2005, p. 64). Porta Palazzo compõe, do
ponto de vista territorial, um terço do bairro Aurora que, em 2017, abrigava 41 mil residentes, dos quais 16 mil
de origem estrangeira.
112
Mapa 1 - Porta Palazzo
Porta Palazzo, que abrigou o primeiro proletariado urbano de Turim, é conhecida por
hospedar dois mercados: uma ampla feira de mercadorias novas, conhecida como “mercado
de Porta Palazzo”, que há dois séculos funciona diariamente (exceto aos domingos) na
extensa Piazza della Repubblica, e o mercado Balôn, que, aos sábados, se estende pelas ruelas
que vão da praça em direção ao rio Dora. Essa última é a feira da cidade na qual, desde a
metade do século XIX, comercializam-se ‘tradicionalmente’ objetos usados110.
110 Essa feira, lugar central de observação para o desenvolvimento deste trabalho, foi objeto de pesquisa
etnográfica para a dissertação de mestrado, que realizei no curso de Antropologia Social da Universidade Federal
do Paraná sob a orientação da prof. Sandra Jaqueline Stoll, em 2010. O trabalho tem como foco a organização
social do mercado (“Balôn: um mercado popular”, Vanessa Durando, UFPR, Curitiba, 2010).
113
A partir do mapeamento da região realizado pelo sociólogo italiano Giovanni Semi
(2005), podemos identificar Porta Palazzo como um espaço compósito e heterogêneo. Esse se
constitui, em princípio, por três áreas: Borgo Dora, que compreende toda a região acima de
Piazza della Repubblica (delimitada por Corso Regina Margherita, Via Cigna, Corso XI
Febbraio e o rio Dora), Piazza della Repubblica e o Quadrilatero Romano, que inclui Piazza
Emanuele Filiberto e a área que dali se estende até o centro histórico. Essa última região,
considerada hoje o lugar ‘da moda’ da cidade, sofreu um processo de gentrification ocorrido a
partir de 1991, que viabilizou a produção de um novo espaço comercial, constituído
principalmente por bares e restaurantes.
Por causa da elitização que esse processo comportou, o Quadrilatero Romano, que até
então fazia parte de Porta Palazzo, abrigando em suas casas populares muitos dos feirantes do
mercado da grande praça central, é considerado hoje como uma região socioeconômica
deslocada desse contexto. A avenida Corso Regina constitui uma fronteira física entre esses
dois espaços: seus poucos metros de largura equivalem à distância que separa ‘dois
mundos’111. Para além dessa fronteira, a ampla praça octogonal de Piazza della Repubblica
(51.300 m²), o “coração” do bairro, é a “moldura” que hospeda uma grande feira diária, a
maior de Torino. Essa oferece alimentos, roupas, artigos domésticos e flores, disponibilizando
artigos que em nenhum outro lugar da cidade são ofertados como, por exemplo, a hortelã
fresca importada diretamente do Marrocos e outras especiarias. O ethos ‘popular’ do mercado
de Porta Palazzo deriva do tipo de bens ofertados e da competitividade dos preços, que atraem
principalmente clientes de menor poder aquisitivo. Ao seu redor, há diversas pequenas áreas
onde é praticada a venda abusiva de mercadorias, objetos roubados e drogas. A importância
comercial de Porta Palazzo, porém, não está vinculada somente a esse mercado e à feira do
usado Balôn. De fato, em Borgo Dora desenvolveu-se uma ethnic enclave economy com a
consolidação do comércio marroquino112 (SEMI, 2005: 126) e, mais recentemente, chinês.
O que articula as três áreas que compõem o bairro de Porta Palazzo é, segundo Semi, o
“multiculturalismo quotidiano” que produz específicas “formas de relações sociais e tecidos
multiculturais” (SEMI, 2005: 11). As interações entre pessoas de diferentes proveniências que
aqui se encontram nem sempre são pacíficas, apresentando-se, em muitas ocasiões, através de
conflitos. Nos discursos dos comerciantes e residentes italianos, a presença “estrangeira” é
frequentemente associada à violência e à ilegalidade, gerando narrativas clichês de cunho
111 Para se ter uma ideia da diferença entre essas duas regiões, basta mencionar que na Piazza della Repubblica
um apartamento, em 2005, custava de 850 até 1100 euros o m2, enquanto, na Piazza Emanuele Filiberto, seu
custo variava entre os 2.000 e 4.000 euros (CICSENE, 2005: 29). 112 Instalada entre Corso Giulio Cesare, Corso XI Febbraio e o rio Dora.
114
reivindicatório. Essas posições se manifestam em episódios que encenam os conflitos, como,
por exemplo, na reunião de cidadãos italianos em comitês que visam à representação de seus
interesses, assim como a ritualização em cortejos e manifestações públicas contra a imigração,
que se torna o ‘bode expiatório’ de algumas problemáticas locais. Os discursos correntes são
geralmente vinculados ao tema da “segurança”, apelando-se para intervenção direta das
instituições. Tais conflitos desencadearam um processo de realocamento populacional
significativo: muitos italianos (moradores e comerciantes) migraram para outros bairros de
Torino e o efeito desse deslocamento, que é também uma das causas e consequências da
etnicização comercial magrebina e chinesa da região, resultou numa exacerbação da
intolerância interétnica por parte dos italianos que permaneceram na localidade. Diante dos
protestos ocorridos – que integram a chamada “crise urbana” (ALLASINO; BOBBIO; NERI,
2000: 73) –, a prefeitura investiu em duas ações principais: intervenções voltadas à
requalificação do território e, de 1996 até 2012, investimento num “projeto integrado”, que
consistiu na criação de uma agência de “mediação de conflitos”, de natureza mista, público-
privada, chamada “The Gate. Living not leaving”.
Hospedar pessoas vindas ‘de fora’ não é, porém, novidade em Porta Palazzo. O “ventre de
Torino” - como definiu essa região da cidade o escritor Edmundo De Amicis -, desde o final
de 1800, abrigou ‘diversos’ migrantes. De fato, nas primeiras décadas de 1900, ali se
instalaram os camponeses que deixavam as regiões rurais próximas. Mais tarde, nas décadas
de 50 e 60 do século passado, nesse mesmo lugar se estabeleceram migrantes vindos do sul da
Itália. Atraídos por aluguéis baratos, ofertados em edifícios em sua maioria arruinados, e por
um comércio ‘popular’ caracterizado por preços abaixo da média, esses migrantes
consolidaram a história de Porta Palazzo como espaço privilegiado dos ‘recém-chegados’. As
duas feiras cumpriram um papel fundamental nesse processo. Com efeito, a comercialização
informal e ilegal de alguns tipos de produtos e o recrutamento, por parte de vendedores que
atuam formalmente, de mão-de-obra para montar e desmontar as bancas foram, e ainda são, as
atividades improvisadas que viabilizam a sustentação de parte dessas pessoas no período
inicial de permanência na nova cidade e/ou em fases de desemprego. Porta Palazzo
representou e representa, portanto, um ‘porto de mare’, um cais, e também um ‘lugar-
laboratório’ onde se experimentam novas políticas e se produzem novas formas de
sociabilidade em um cruzamento de diversidades, muitas vezes, impactante. Ao mesmo
tempo, esse bairro compõe um núcleo no qual se sobrepõem e se entrelaçam redes extensas
(translocais e transnacionais), que sustentam fluxos de bens lícitos e ilícitos e a produção de
serviços variados, dentro das quais os trabalhadores se movem por “mobilidades laterais”
115
(Ruggiero e South, 1997, citado por Telles, 2009). Essas dinâmicas, que, segundo a
perspectiva de Ruggiero e South, constituem “o bazar metropolitano” (Telles, 2009),
caracterizam historicamente essa área urbana e tem uma ascendência anterior à fase
econômica pós-fordista. De fato, os antigos moradores de Porta Palazzo têm memória, por
exemplo, de práticas, como a compra-venda de cigarros contrabandeados, que os migrantes
“pugliesi” realizavam já em 1960.
A sucessão dos diversos fluxos migratórios ao longo do tempo proporcionou o
estabelecimento de sujeitos etnicamente heterogêneos, de forma que ali se tem hoje uma
população ‘em camadas’ que compreende “torinesi”, piemonteses de segunda e terceira
geração originários das regiões rurais, assim como “meridionais”113 de segunda geração, além
de migrantes vindos de países extra-europeus (da África, especialmente) e, mais
recentemente, da Europa oriental. Essa heterogeneidade étnica, as tensões entre sujeitos que
se consideram “estabelecidos” (ELIAS, 1965: 12) e os ‘recém-chegados’, a dimensão formal,
informal e ilegal das práticas comerciais, bem como a implementação de políticas públicas
específicas representam parte fundamental da estrutura e das dinâmicas sociais que também
caracterizam a feira Balôn, espaço em que esta etnografia se insere.
Porta Palazzo, que representa tradicionalmente “o lugar do mercado” em Turim, foi
fonte de inspiração de obras literárias e teatrais, canções e poesias relativas a Torino
“popular”. Edmundo De Amicis, no final de 1800, oferece um retrato da feira de Piazza della
Repubblica em um dia de inverno. O autor a descreve assim:
Um Zola torinense poderia colocar aí a cena de um romance intitulado: o
ventre de Turim.
Embaixo dos amplos telheiros, entre as longas fileiras de bancas dos
mercadores de tecidos, no meio dos botequins de quinquilharias e louças de
barro expostas ao ar livre, com montões de frutas espalhados ao lado,
legumes, aves, entre pilhas de cestas e sacos e o vai e vem das carretas que
levam embora a neve, no meio da fumaça das castanhas assadas e das peras
cozidas, gira e se agita confusamente uma multidão cerrada de lavradores, de
servidores, de criados, de domésticas embuçadas nas mantas, de moças com
seus cestos, de carregadores encurvados, de mulheres do povo e de moleques
frientos, que fazem negra a praça. Ao redor das inumeráveis bancas é uma
alternância tumultuada e contínua de ofertas e de recusas, discussões, frases
bruscas e truncadas, de vozes maravilhadas e desdenhadas, de apóstrofes e
de blasfêmias, que se juntam e se confundem em um murmúrio surdo e
difuso como de uma multidão descontente. Lá se tem que ir para ver as
famosas vendedoras de ervas, robustas e formidáveis pelo pulso e pela
língua, e para estudar a potência insolente do dialeto, a ferocidade impiedosa
113 Migrantes provenientes dos territórios meridionais da Itália.
116
da injúria plebeia, a chalaça que chicoteia, o sarcasmo que tira a pele, corrói
a carne e estremece os ossos. (Bianchi, 1991: 251, tradução minha).
A imagem de um lugar de intensa sociabilidade, de troca, descrita nas barganhas e nas
relações entre as pessoas “do povo” tem caráter impactante para o autor, que pertence a outra
classe social e percebe os sujeitos que compõem esse cenário com fascínio e estranhamento. A
“ferocidade” das injúrias, a “chalaça que chicoteia” e o sarcasmo, além de serem qualidades
vistas como “plebeias”, são dinâmicas próprias da venda no mercado e da sua mise-en-scène.
Vivenciado por De Amicis como um espaço de alteridade, pelas práticas inusitadas e pela
diferente ascendência socioeconômica dos sujeitos que o compõe, a sua natureza sensorial
remete a uma dimensão visceral, tornando-se, assim, o “ventre” da cidade. Essa definição se
aproxima à representação de Guido Gozzano, que, mais tarde, denominará Porta Palazzo
como “a grã-cozinheira de Turim”. Essas representações se referem à ideia de um lugar
gerador, “baixo” e fértil, o humus popular que mistura diversidades, coisas, animais e pessoas
e os transforma. Além de criar “por dentro”, proporciona para quem vem “de fora” uma
experiência desestruturante e renovadora que “estremece os ossos”.
A feira Balôn, que os migrantes senegaleses ocupam como vendedores e frequentam
como clientes e passeantes junto com pessoas de outras origens étnicas, compõe o espaço
acima descrito. O mesmo autor citado anteriormente, Edmundo De Amicis, descreve-a, em
1911, como segue:
(...) uma exposição grandiosa e compassiva de misérias, impossível de se
imaginar a não ser supondo que um inteiro bairro de Turim, tomado por um
furor de destruição, tenha lançado pelas janelas todos os trastes, dos sótãos
aos porões, até a última bugiganga do último armário.... É uma confusão de
coisas e sobras de enlouquecer o coitado que as devesse inventariar.
(Speranze e glorie. Le tre capitali, E. de Amicis, Milano, Fratelli Treves,
1911. Tradução minha).
Se essa feira, em primeira impressão, parece ser um único lugar, observando mais
profundamente se revela um espaço comercial múltiplo, que abriga vários mercados (mapa 2).
117
Mapa 2 – Feira Balôn
Do ponto de vista institucional, o comércio que se estende entre Via Cottolengo,
Piazza Lanino, Via Lanino, Via Mameli, Canale Carpanini e Via Borgo Dora é normatizado
pela Prefeitura e administrado pela Associazione Commercianti Balôn, enquanto que a região
da feira instalada no Canale Molassi e Piazza San Pietro in Vincoli114 é organizada e
monitorada pela Associazione Vivi Balôn115, que a regulamenta segundo seu próprio
estatuto116. Se formalmente o mercado inicia respectivamente às 8:00h, em Borgo Dora, e às
6:30h, no Molassi, na madrugada da sexta-feira os primeiros vendedores se instalam em
114 Chamarei respectivamente a primeira área da feira de Borgo Dora e a segunda de Canale Molassi e/ou
Molassi, segundo a terminologia dos próprios vendedores. 115 A primeira associação é constituída por comerciantes que atuam com licença comercial, enquanto a segunda,
como veremos por “operadores não profissionais”. 116 Essa divisão decorre do processo de formalização que, na década de 90, a prefeitura, por meio da agência The
Gate, empreendeu em relação a um grupo de ambulantes irregulares que trabalhavam no final da rua Via Borgo
Dora perto do rio, etnografada em “Balôn: um mercado popular”, Vanessa Durando, UFPR, Curitiba, 2010.
118
Piazza San Pietro in Vincoli e no começo do Canale Molassi. As mercadorias são ofertadas
principalmente sobre panos estendidos no chão, assim como em espaços improvisados como
porta-malas de carros. Informalmente, portanto, o Balôn inicia aqui. A maioria das peças
expostas são usadas, de ampla variedade, dentre as quais é possível encontrar coisas “de
ocasião”. Os clientes da noite, em sua maioria homens, italianos e estrangeiros, compram no
varejo e no atacado. Entre eles há também colecionadores e comerciantes que trabalham do
outro lado do mercado.
Às 7:00 horas da manhã, horário em que começa a fiscalização, a maioria dos
ambulantes do Canale Molassi já estão a postos, e entre esse horário e às 8:00 horas, também
na região de Via Borgo Dora, muitas bancas já estão montadas. Os participantes da feira, tanto
em uma região quanto em outra do mercado, são aqueles que têm “posto fixo”. Os vendedores
improvisados do Canale Molassi agora já “fecharam seus porta-malas” e/ou retiraram seus
panos e mercadorias. As vagas vazias, que sobram, são designadas para ocupação tanto pelos
fiscais da associação como pelos guardas municipais. Esse processo é chamado de “spunta”.
O mercado do Canale Molassi tem cerca de 300 lugares, dos quais a maioria “fixos” e
uma menor parte “rotativos”. Aqui, cada lugar mede 2 metros por 2, pelo qual se paga 7,00
(sete) euros. Nessa área do mercado, os postos “rotativos”, designados por ordem de
inscrição, são fortemente disputados, uma vez que são poucos em relação ao número de
interessados. Os ocupantes, em sua maioria, são migrantes estrangeiros, marroquinos
especialmente, predominantemente homens, com idade entre 25 e 45 anos (mas aí trabalham
também ciganos e romenos). No mercado Molassi, diferentemente do que ocorre em Borgo
Dora, nenhum ambulante exerce a atividade com licença comercial. De fato, conforme o
estatuto da associação que o administra, é outorgado para “operadores não profissionais”117, o
que possibilita, em princípio, o exercício dessa atividade por qualquer um que queira vender.
Do outro lado da feira, em Borgo Dora, os postos de venda são em número de 200
(duzentos). Desse total, 110 são fixos e os 44 restantes são designados aos “rotativos”. Quem
tem posto fixo o adquiriu, ao passo que os “rotativos” têm seu lugar determinado segundo
uma lista ordenada por números de presença na praça. Quem “faz mais mercados” terá mais
“pontos”, ficando, portanto, no topo da lista. Esses pagam um bilhete de 15 euros para a
ocupação do solo público, enquanto os demais pagam através de boletos mensais ou anuais.
Uma questão fundamental na administração de um mercado é não deixar “buracos”,
como são definidos os postos vazios que criam descontinuidade no espaço, e o processo de
117“Regolamento per la gestione dell´attivitá di vendita e scambio non professionale di cose usate nell´ area del
Canale Molassi”, Cittá di Torino, 2006.
119
“spunta” serve, também, para evitar essa possibilidade. O manejo dos pontos de venda traça
configurações próprias, que se traduzem em áreas etnicamente demarcadas. Enquanto os
vendedores italianos, em Borgo Dora, escolhem a região central do mercado, próximo das
lojas de móveis e antiquários e os marroquinos preferem posicionar-se em Via Cottolengo,
Piazza Lanino e no “largo” da Via Borgo Dora, os vendedores provenientes do Oeste da
África, em sua maioria senegaleses, se alocam no cruzamento entre Via Mameli e Via Borgo
Dora, no começo de Canale Carpanini, em Via Mameli e, em menor número, no “largo” di
Via Borgo Dora. Como veremos, a disposição dos comerciantes senegaleses nessas áreas do
Balôn corresponde a diversos fatores, entre os quais, a modalidade formal ou informal de
venda associada à dinâmica de policiamento dos guardas municipais no espaço, a tipologia de
mercadorias oferecidas e as relações de solidariedade e/ou parceria com outros comerciantes.
A existência de áreas etnicamente demarcadas na feira se verifica também na região
Molassi, onde o final do Canale perto da Piazza San Pietro in Vincoli está quase
exclusivamente ocupado por vendedores marroquinos e, em menor número, romenos e
albaneses, enquanto os italianos concentram-se do lado oposto. Importante, aqui, é adiantar
que os comerciantes senegaleses não costumam atuar nessa parte da feira, concentrando-se
unicamente na região do mercado Borgo Dora, por razões que trataremos a seguir.
Estou aqui apontando tendências que se explicitam na organização social do espaço,
mas isso não se traduz em segmentações rígidas. Como observa Paul Stoller (2002) em
relação ao mercado informal do Harlem, a possibilidade de escolha dos lugares de venda por
parte dos ambulantes pode contribuir para a etnicização do espaço (STOLLER, 2002: 94). A
produção de “espaços étnicos” na feira Balôn interessa principalmente à esfera dos
vendedores e não inclui a dos clientes, com exceção da região da Via Cottolengo, definida
pelos italianos de “mercado árabe” pela concentração de ambulantes e fregueses magrebinos.
A fiscalização, conduzida principalmente por seguranças na área administrada pela
Associazione Vivi Balôn e por guardas municipais naquela gerida pela Associazione
Commercianti Balôn, prevê normativamente o monitoramento e a disposição dos feirantes,
mas determina somente uma parte da constituição e do funcionamento da feira. De fato, o
mercado Balôn se constrói e se molda também pela atuação de um grande número de
ambulantes que trabalham informalmente, os quais se instalam utilizando modalidades
específicas. Por quanto os postos sejam designados para um só comerciante, por exemplo, em
muitos casos, atrás das bancas atuam mais vendedores. Essa modalidade informal de
repartição do ponto de venda se dá por meio de três tipos de práticas que costumam ser
120
definidas em italiano com os termos “allargarsi”, “stringersi”, “appoggiarsi”118. Quando a
vaga ao lado de algum vendedor fica desocupada, se houver suficiente mercadoria para cobrir
o espaço, o ambulante vizinho se “allarga” e, assim como esse pode “espalhar-se”, pode
também “stringersi” para dar lugar a outro. A prática de utilizar parte da banca de alguém para
trabalhar ou permitir que outro comercialize suas mercadorias ao lado é definida como
“appoggiarsi” e pode ser pactuada de diversas formas. Há situações em que o vendedor paga
uma parte do bilhete adquirido pelo ambulante regular para a ocupação do espaço público, em
outros casos pode-se contribuir com o transporte das mercadorias ou ainda com a
compra/venda/troca de parte delas. Essa maneira de produzir o ponto de venda é comum no
Balôn e representa a forma privilegiada de inserção da maioria dos vendedores que iniciam
suas atividades na feira. Ao longo da pesquisa, percebi que o compartilhamento de uma
mesma banca se dá, geralmente, entre pessoas da mesma nacionalidade. Isso aponta para uma
etnicização das relações sociais, o que reforça a demarcação étnica do espaço já moldada pelo
processo da “spunta”.
Essas formas “alternativas” de construção do espaço de venda são conhecidas pelos
fiscais, que nem sempre as sancionam, mas assumem frequentemente uma atitude
“tolerante”119, assim como ocorre em relação à outra prática informal/ilegal na feira: o
“abusivismo”120. Os “abusivi” não são aqueles que trabalham com poucos objetos oferecidos
sobre suportes fáceis de serem retirados (malas, mochilas etc.), preenchendo furtivamente os
recortes de rua entre uma banca e outra, mas atuam de forma mais estruturada. Dentre eles, a
presença senegalesa representa a mais significativa. Como veremos, os comerciantes
senegaleses de mercadorias contrafeitas atuam de maneira coletiva, instalando-se em grupo.
Suas presenças são, por um lado, intermitentes - porque ritmadas pelo “tira e põe” das
mercadorias no chão dependendo da postura mais ou menos “tolerante” dos guardas - e, por
outro, contínuas pois, assim como na área comercial de Via Garibaldi chamada Sandaga,
também o Balôn é, desde a década de ´90, referência para a venda desse tipo de mercadoria.
Dentre todos os mercados de rua em Torino, as práticas comerciais informais e ilegais
se verificam de maneira estruturada e contínua somente no Balôn e na feira de Porta Palazzo.
Os guardas, de fato, diferentemente de outras feiras da cidade, agem de maneira
discricionária. Quando me refiro à não aplicação das regras normativas, não quero apontar
118 Respectivamente: “espalhar-se”, “encolher-se”, “apoiar-se”. 119 Esse é o termo que os próprios guardas utilizam para definir a forma discricionária com a qual atuam nessa
área urbana em relação às práticas comerciais que consideram informais e/ou ilegais. 120 Esse termo, em italiano, indica a ausência de pagamento, inclusive por terceiros, pelo lugar que se ocupa. Os
sujeitos que adotam essa prática de ocupação na feira são chamados de “abusivi”.
121
para uma falta. Consideramos, aqui, tais modalidades na mesma perspectiva foucaultiana que
Feranando Rabossi (2004) utiliza para pensar as práticas ilegais no mercado em Ciudad del
Este (Paraguai):
Reconhecer este caráter político da constituição dos mercados, não como
realidades auto-reguláveis produtos de leis naturais, mas como resultado de
arranjos institucionais através de lei sancionadas e aplicadas (ou burladas),
não nos deve levar a assumir uma definição exclusivamente normativa
derivada do funcionamento ou do questionamento das regras. O ilegal, longe
de ser o resultado do funcionamento anormal ou amoral da sociedade, faz
parte das possibilidades abertas em um mundo definido pela lei. Isto é, legal
/ ilegal não é uma clivagem que permita diferenciar a priori setores do
funcionamento do social ou universos preexistentes, mas sim que constitui o
operador através do qual se produzem distinções, se reproduzem
desigualdades e se aproveitam oportunidades. (RABOSSI 2004: 32)
“Formalidade”/ “informalidade”/ “ilegalidade”, então, não são aqui concebidas como
noções absolutas, mas como formas de realizar as transações econômicas a partir do ponto de
vista do Estado. Nesse sentido, não as substancializamos aplicando-as aos sujeitos que
praticam o comércio: não existem “vendedores formais ou informais”, mas ambulantes que
operam situacionalmente, utilizando essas modalidades normativamente construídas. No
nosso contexto etnográfico, a definição dessas categorias é ainda mais complexa porque a
constituição do Balôn, ou pelo menos de parte dele, longe de se definir unicamente por
dinâmicas normativas, se constrói por arranjos entre a esfera institucional e extra-
institucional, implodindo, assim, a dicotomia que prevê dinâmicas dentro e/ou fora da lei e
contribuindo, então, para a construção de um certo ‘tipo’ de mercado. Como pude verificar
etnograficamente em ocasião da pesquisa realizada na feira entre 2008 e 2010, as práticas
comerciais dos que são normativamente definidos como “abusivi”, em alguns casos, são
formalizadas pela prefeitura e, em outros, continuam sendo realizadas de maneira
informal/ilegal e, eventualmente, toleradas pelos Órgãos de Segurança Pública. Ambas as
situações se realizam a partir de negociações compartilhadas entre os ambulantes e as
instituições locais. No primeiro caso, a formalização de vendedores que comercializam
informalmente coisas usadas se deu por meio de sua habilitação jurídica como “operadores
não profissionais”, os quais passaram a compor novos mercados geridos por associações121.
121 O surgimento periódico de mercados informais, caracterizados pelos conflitos entre vendedores “abusivi”,
guardas e comerciantes/moradores locais organizados em associações e as divulgações alarmistas (e
frequentemente xenófobas) da mídia local padronizam as dinâmicas sociais de Porta Palazzo. A partir da criação
do mercado Molassi em 2002, que atualmente compõe o Balôn, o bairro “gesta” ciclicamente novas feiras de
mercadorias usadas que passam, depois, a serem institucionalizadas e transferidas para outros bairros. O ciclo de
criação de novos mercados é mais intenso nas fases de crise econômica. Durante o trabalho de campo, em 2017,
por exemplo, acompanhando meus colaboradores de pesquisa, observei o processo de formalização de um novo
122
Esses mercados, definidos, do ponto de vista normativo, como “áreas de troca livre”, não
preveem a comercialização dos itens oferecidos e, mesmo que a prática de compra/venda se
verifique efetivamente, sendo essa a finalidade dos vendedores ambulantes que ali operam, a
prefeitura ignora tal dinâmica, que não é sancionada. Essa postura se explica pelo fato que a
própria prefeitura tem interesse em que essa prática econômica aconteça e encontrou uma
artimanha jurídica para que os vendedores possam exercer a comercialização de coisas usadas
sem fomentar as queixas dos moradores e comerciantes locais. Segundo a perspectiva
institucional, de fato, essa prática comercial, em Porta Palazzo, tem a função de “amortecedor
social”122 e formalizá-la, então, permite evitar uma sobrecarga ao setor da assistência social.
Por outro lado, é preciso considerar que essa estratégia política serve também para mediar
conflitos, correspondendo parcialmente às demandas dos moradores e comerciantes locais, os
quais hostilizam essas práticas e os próprios vendedores (pela maioria estrangeiros), e também
tem a finalidade de “vigiar” (FOUCAULT, 1999) esses grupos de ambulantes que passam a
ser confinados, do ponto de vista urbano, em áreas à margem. Cientes do fato que a noção
centro/periferia é fluida e situacional, porque construída a partir de lógicas específicas e
contextuais, apresentamos aqui a perspectiva da prefeitura. Nesse sentido, por exemplo, o
mercado Molassi, que compõe o Balôn, ocupa um lugar marginal da feira, no sentido que é
deslocado da região de Borgo Dora, arquitetonicamente mais elaborada e recentemente
reestruturada, que aloca as lojas dos antiquários e os bares à moda da região, abrigando
tendencialmente clientes de classe média.
Em todas as ocasiões nas quais um grupo articulado de “abusivi” que comercializava
peças de segunda mão se impôs sobre o território de Porta Palazzo de forma sistemática,
ocupando-o para realizar o comércio de seus itens, com ou sem reivindicações de natureza
política, a prefeitura utilizou o processo de formalização acima citado. No entanto, nas
situações em que a intervenção sobre o espaço é menos invasiva, com a atuação de
ambulantes individuais ou de grupos restritos e não estruturados, a viabilização dessa prática
se dá pela atuação discricional dos guardas. Com o termo “discricional”, aponto para uma
modalidade diferenciada de fiscalização que prevê maneiras não utilizadas em outras áreas
grupo de vendedores, que começaram a trabalhar informalmente aos domingos no Balôn e em Piazza della
Repubblica e depois foram deslocados pela prefeitura para outra área urbana, onde passaram a integrar uma feira
formal chamada “Il Barattolo”, que tinha se constituído através do mesmo processo. Em 2009, de fato, esse
mercado tinha surgido informalmente em Piazza della Repubblica, foi institucionalizado e sucessivamente
transferido. Uma etnografia dessa feira, quando sediada em Porta Palazzo, foi realizada por Francesca Carbone e
resultou na dissertação de mestrado “Le “marché de dimanche” à Porta Palazzo: um espace d´émersion des
exclus du Marché” (2013). 122 Entrevista realizada à Ilda Curti presidente de The Gate em 3 de outubro de 2008.
123
urbanas, tais como: “fechar um olho”, isto é, ver mas não sancionar as práticas consideradas
irregulares, ou ainda pedir para os vendedores se deslocarem (às vezes aconselhando outras
regiões próximas). Conforme observado em 2008, essa atitude de “tolerância” é atribuída,
pelos mesmos guardas, à história do bairro, à sua identidade e se torna também uma maneira
de simplificar o próprio trabalho123. Tal postura pode chegar a ser mais propositiva, como
quando os guardas sugerem aos vendedores que atuam informalmente de se instalar em
determinados espaços da feira, onde estariam mais seguros por não serem fiscalizados e não
incomodarem os comerciantes das lojas.
Essas posturas mais permissivas são intercaladas com blitz policiais que, ciclicamente,
são conduzidas pelos Órgãos de Segurança Pública de maneira performática. A performance
das blitze em Porta Palazzo se dá em termos da quantidade de viaturas e homens empenhados
nas operações, desproporcional em relação à tipologia de ocorrências, e, também, pelo caráter
militar de algumas ações, subitamente veiculadas pela mídia local de forma alarmista. Esses
episódios, que seguem um roteiro fixo, se dão geralmente como consequência de demandas de
segurança e policiamento solicitadas pelas associações de moradores ou de comerciantes da
região ou por ocasião da visita de algum político. Essas operações têm como finalidade
principal mostrar, publicamente, que nessa região o Estado está presente e que os moradores e
comerciantes que se sentem “invadidos” pelos ambulantes que atuam transgredindo a lei, ou
mesmo em conformidade com ela, são tutelados. Definir como espetacularização a atuação da
Segurança Pública em Porta Palazzo não implica dizer que as blitze não sejam percebidas
como invasivas e violentas por alguns sujeitos que ali circulam. Como veremos, também a
maneira “tolerante” dos seguranças atuarem pode, por vezes, criar constrangimentos e
situações de desconforto aos vendedores. De fato, a discricionariedade da fiscalização abre
espaço para dinâmicas extra-institucionais que podem envolver, por exemplo, diacríticos
raciais ou étnicos.
O que precisa ser levado em conta ao etnografar as práticas comerciais nesse espaço
urbano é que o ethos informal que caracteriza parte das dinâmicas sociais nessa região tem
ingerência no plano institucional: em algumas ocasiões, as políticas públicas operam no
sentido de formalizar certas práticas comerciais que até então não eram normativamente
123 Um dos guardas que atua na região, em relação às fiscalizações dos “abusivi” em uma ocasião, me contou: “o
pior é quando você vê de longe um ambulante irregular e percebe que ele não vai fugir. Isso acontece muito com
os migrantes recém-chegados, que ainda não sabem como funciona aqui, eu ando devagar, olho para ele, espero
que fuja... mas se estou com um colega de fora, que nunca trabalhou aqui, é mais difícil, aí precisamos fazer a
apreensão das mercadorias”.
124
aceitas; em outras, a atuação das próprias instituições (Guarda Municipal) extrapola a
dimensão formal alinhando suas práticas ao contexto informal no qual atua.
No Balôn, diz-se, encontra-se “de tudo”. Um guarda municipal que trabalha na feira há
anos contou-me que, certa vez, enquanto fiscalizava, encontrou sobre uma banca uma caveira.
O trabalho de apreensão da peça, alega, foi muito burocrático porque desencadeou um
processo de “exumação de cadáver”. Objetos velhos e antigos (desde objetos comuns, como
copos de vidro a molduras barrocas), móveis, roupas usadas, pedaços de objetos para reparos
(como fios elétricos, pregos), e, ainda, objetos das mais diferentes procedências (webcams
produzidas na China, conchas, borboletas, livros...) podem ser ali adquiridos. Ainda que se
comercialize quase que exclusivamente mercadoria usada, pode-se encontrar, em menor
quantidade, peças de artesanato (máscaras em madeira do Senegal e Mali, relógios feitos com
discos de vinil, cachimbos para fumar maconha etc.).
A feira tem feições heterogêneas e múltiplas não somente pela variedade de
mercadorias que expõe, mas também pela forma como estas são apresentadas. As bancas não
correspondem a uma forma e tipologia padronizadas: podem ser simples panos no chão e/ou
mesas onde os objetos são dispostos em diversos níveis, criando uma paisagem compósita,
constituída por um sobe e desce de planos de apoio.
Os ambulantes arrecadam suas mercadorias de várias formas: fazendo as mudanças124,
comprando ou ganhando de pessoas particulares, catando nos lixos e nos refugos da cidade. A
primeira dessas atividades requer uma maior estrutura: o vendedor, de fato, deve possuir pelo
menos um veículo para transporte e um depósito onde guardar os objetos. Os feirantes
italianos que trabalham no Balôn se classificam em três categorias: “raccoglitori”, “rigattieri”
e “antiquários”. A lógica dessa classificação possibilita entender um dos critérios centrais que
caracterizam as atividades na feira. Com o primeiro termo, “raccoglitore”, se denomina o
vendedor que “na praça” oferece uma grande variedade de objetos, não previamente
selecionados. O “rigattiere” é o que comercializa peças “velhas” escolhidas segundo
parâmetros que se referem ao próprio mercado da “rigatteria”, como, por exemplo, os gostos
e preferências dos colecionadores. Por fim, o “antiquário” é o vendedor que lida
124 Os vendedores dizem “sgombero” e “svuotare le cantine”, respectivamente “mudança” e “desocupação dos
porões”, termos que indicam a mesma prática e são usados indiferentemente. Quando um vendedor é chamado
por um privado que necessita fazer uma mudança ou se propõe para ele (no caso que o conheça ou que lhe seja
apresentado por alguém), o privado oferece a mercadoria da qual quer se desfazer em troca do trabalho da
mudança feito pelo vendedor. Se, para este, o valor da mercadoria compensa seu trabalho, aceita, se não é
negociada uma soma em dinheiro. Pode também acontecer que o privado queira vender alguma peça que,
eventualmente, pode ser comprada pelo vendedor.
125
principalmente com objetos “antigos”, com datação desde o começo da segunda metade do
XIX século para frente. Essa última categoria é a mais recente da feira; surgiu na metade dos
anos 80 e representa uma minoria. Os “antiquários”, que são em número de cinco, trabalham
em lojas alocadas nas Via Bordo Dora e Via Lanino e, no dia da feira, expõem suas
mercadorias na calçada. Mesmo que sua presença não seja numericamente significativa, esse
grupo ganhou legitimidade fundando uma associação, Associazione Commercianti Balôn, da
qual participam lojistas e ambulantes que trabalham na feira e na região. Se, em princípio,
qualquer um desses vendedores pode também ser “coletor”, o que os diferencia, além do
poder aquisitivo, é a capacidade de selecionar os objetos, qualidade que se adquire tendo
informação e experiência. Esses são os critérios centrais que definem não somente o tipo de
mercadoria que se adquire e se oferece, mas também a possibilidade de estabelecer preços
adequados e conseguir, assim, fazer “bons negócios”.
O Balôn é um mercado que abriga ambulantes que praticam a venda como profissão
principal, sendo essa sua fonte de renda, assim como ocorre com os vendedores improvisados
que se engajam nessa atividade temporariamente para “levantar um dinheiro”. Desse último
grupo, fazem parte alguns dos comerciantes que trabalham informalmente no Canale Molassi,
que são principalmente aposentados, trabalhadores em feiras coletivas, operários,
desempregados. Quem faz do trabalho na feira sua atividade primária apresenta uma trajetória
profissional ‘instável’: em geral, não escolheram essa atividade no início de suas carreiras,
tendo exercido outras profissões que “não deram certo”. Apesar disso, muitos dos ambulantes
italianos definem seu atual trabalho como “uma paixão”125. A entrada nesse universo
comercial, que ocorreu quase sempre informalmente, aconteceu por meio da mobilização de
rede de relações prévias.
No Balôn, atuam, portanto, diversos vendedores: “rigattieri”, “velhos” e “novos” da
praça, “abusivi”, “estrangeiros”, “comerciantes” são alguns dos termos acionados pelos atores
para identificar continuidades e diferenças, estabelecendo entre eles, através dessa
classificação, grupos e hierarquias. A categoria analítica definida como “fronteira”, que Barth
formula para estudar questões ligadas à etnicidade, foi utilizada como referencial teórico
através do qual analisei, na pesquisa de 2008/2010, alguns traços da organização social desse
espaço a partir, principalmente, da perspectiva dos vendedores italianos. A noção de alteridade
formulada por estes atores é o critério ‘interno’ de distinção que interessou nesse contexto.
125 Escutei repetidas vezes essa frase: “o Balôn é uma doença”, sobretudo dos ambulantes italianos que atuam há
mais tempo na feira. “Paixão” e “doença” se referem à experiência de buscar, encontrar, selecionar e saber
valorar as mercadorias, práticas que desafiam e seduzem os vendedores e que, segundo suas narrativas, na
medida em que são praticadas, acabam “cativando-os”.
126
Nesse sentido, se, a um olhar ‘de fora’, o Balôn é visto como um mercado único e
homogêneo, observando ‘de dentro’ é possível perceber que se constitui por diferentes
mercados, os quais podem se apresentar como mais ou menos territorializados126. Identifiquei,
então, alguns “diacríticos”, como Barth (1969: 67) os denomina, que me parecem representar
alguns dos eixos através dos quais a feira se organiza socialmente. Esses são produzidos por
contrastes através da oposição “nos/eles” e criam, assim, fronteiras de caráter relacional. Para
que um conjunto de indivíduos se reconheça como grupo deve, porém, se identificar em torno
de algo em comum: “critérios de pertencimento” são usados, no discurso, para se autodefinir
e, reflexivamente, definir o outro, tornando-se recursos simbólicos que marcam as oposições
‘nos/eles’. ‘Profissionalização’, ‘proveniência’ e ‘ancianidade’ representam, nesse contexto, as
principais categorias de discurso acionadas para definir afinidades e diferenças entre os
sujeitos. Atuar formalmente ou informalmente, se instalar em uma região da feira ou em outra,
fazer da venda na praça o trabalho principal, ser originário de um lugar ou de outro, e o tempo
de atuação na feira, do qual decorre experiência, são algumas das discriminantes acionadas.
Estas adquirem valores distintos dependendo dos diversos agentes sociais que as utilizam e
das situações nas quais são mobilizadas. Essa reversibilidade é particularmente evidente na
dimensão das relações interétnicas.
No Balôn, assim como em Porta Palazzo, onde, nas últimas décadas, houve uma
significativa afluência de migrantes estrangeiros, as relações entre estes e os italianos são hoje
caracterizadas por tensões. A temática da “crise urbana” (ALLASINO; BOBBIO; NERI,
2000: 73) permeia também a feira, sendo acionada pelos italianos que, por meio de narrativas
e atos discricionários baseados na ideia de uma suposta ‘autoctonia’, procuram garantir-se um
estatuto exclusivo de legitimidade. Falar de ‘autoctonia’ nessa região da cidade é, porém,
problemático. Essa noção pressupõe uma certa estabilidade na relação com o território,
baseada numa suposta precedência temporal, quando, na realidade, o que ocorre, em função
da periódica incorporação de sujeitos que chegam de outros lugares, é uma redefinição das
categorias e das relações entre elas. Da luta pela legitimidade com base nesse critério,
participam, de fato, tanto eles (comerciantes e residentes do bairro) quanto os vendedores
recém-chegados, integrantes mais ‘novos’ desse universo. A fala de Karim127, comerciante
marroquino, é, nesse sentido, significativa. Na primeira fase de pesquisa no Balôn, em 2008,
126Se, como Barth aponta, a definição de um grupo social não decorre da ligação com o território que esse ocupa,
no caso do mercado, o espaço urbano com suas características comerciais, habitacionais, urbanísticas representa
uma moldura que, de alguma forma, ordena-o e, ao mesmo tempo, um lugar que se modifica contextualmente
pela sua existência. “As situações que se dão na moldura arquitetônica” do mercado “não coincidem
necessariamente com ela, mas se dão através dela” (SEMI, 2005: 20). 127 Karim mora na Itália desde 1999 e, na época da pesquisa (2008), trabalhava no Balôn há dois anos.
127
encontrei-o em sua banca, na esquina com a Via Lanino, e, ao falar a respeito da sua condição
de abusivo, disse: “em 73, aqui (Via Cottolengo) estavam os meridionali128, a gente entrou no
lugar deles! (Ri)”. Karim refere-se ao trabalho informal que os migrantes do sul da Itália
empreenderam nesse local nos primeiros anos de sua chegada. A dinâmica migratória, então,
vista pelo prisma diacrónico, resultou numa diversificação interna das categorias
“estabelecidos” e “outsiders” de tal forma que a primeira abriga hoje não apenas diversas
identidades nacionais e étnicas, como diferentes formas de inserção
(formais/informais/ilegais) no mercado em questão. Uma ‘sobreposição’ de “estabelecidos”
(ELIAS, 1965: 12) caracteriza, portanto, esse território (tanto o bairro quanto o mercado), de
forma que, nesse contexto de “fluxo” (HANNERZ, 1998: 85), essa condição assume conteúdo
variável. Em Porta Palazzo, de fato, todos se consideram “estabelecidos” e é a partir da auto-
atribuição desse estatuto que as crises e os conflitos se manifestam. Tais tensões, e as
negociações decorrentes, tornam a organização social da feira um modelo dinâmico em
transformação.
4.2 Perambulando: as “paisagens” da feira
“Aqui estamos em casa”, declarou um vendedor abusivo senegalês para mim no
desfecho de uma fala sobre a atuação da segurança pública no mercado. Como outros sujeitos,
também os senegaleses se consideram “estabelecidos” (BARTH, 1969) na região de Porta
Palazzo e sua inserção nesse espaço se dá, como veremos, de múltiplas formas.
Observaremos, neste capítulo, a construção, as lógicas e as dinâmicas dessa inserção, assim
como a maneira com a qual os senegaleses se relacionam nesse contexto, mantendo como
foco principal a prática do comércio ambulante in loco, a sua modalidade transnacional e os
aspectos morais envolvidos, objetivos dessa pesquisa.
Compartilhando a perspectiva metodológica de Riccio (2007) em relação à atuação
dos senegaleses no espaço, a feira Balôn representa “um sítio de reterritorialização” (2007:
136), isto é, um lugar onde esses se ancoram, recriando as próprias práticas e lógicas. O
vínculo dos migrantes, inclusive senegaleses, com o território tem sido negligenciado por
parte da literatura socioantropológica sobre os fluxos transnacionais129, como se a mobilidade
128 Os migrantes do sul da Itália. 129 Appadurai (2004); Hannerz (1998).
128
(o “vai e vem” que caracteriza suas dinâmicas migratórias) fosse desvinculada dos locais que
os sujeitos atravessam e que contribuem para construir. A partir desse olhar, neste trabalho,
não analisamos o mercado como consequência de fatos sociais, mas como expressão
territorializada desses últimos (Simmel, 1908). Nesse sentido, o Balôn se torna um lugar
estratégico para apreender: as formas de comércio que citei no item anterior - todas presentes
na feira com exceção da prática dos ambulantes que vendem caminhando (vucumprá) -; a
maneira como se relacionam os comerciantes senegaleses que operam nessas diversas
modalidades; parte da construção das redes para a viabilização do comércio transnacional, que
implica também na busca de estratégias individuais e, do ponto de vista extra-econômico, as
dinâmicas de sociabilidade dos meus interlocutores, que envolvem a produção e circulação de
palavras e de representações relativas à diversidade étnica, de gênero, de castas, dentre outros.
Em todas as ocasiões que ia para a feira Balôn para fazer pesquisa de campo, aos
sabados de manhã, decidia entrar no mercado a partir de um lugar diferente. Acessava-o uma
vez pela Via Cottolengo, na semana sucessiva por Via Mameli, depois por Piazza San Pietro
in Vincoli, e assim por diante. Diversificar os lugares de acesso me permitiu perceber como
suas características (origem dos vendedores, tipologia de mercadorias oferecidas, formas de
vender, tipologia de clientes e de espaços urbanas) se apresentam no/pelo território. Partir de
um lugar ou de outro para fazer meu percurso na feira estabelecia também a rotina diária da
pesquisa, determinando parcialmente a ordem e os tipos de encontro com meus colaboradores
de pesquisa, os quais, como veremos, se estabelecem nesse espaço segundo padrões e lógicas
específicas. Utilizar diferentes acessos descortinava as diversas “paisagens” que constituem o
mercado. Com o termo “paisagem”, segundo a perspectiva de Zukin (2000), evidencia-se, no
contexto das cidades modernas que sofreram processos de requalificação, o aspecto visual de
uma área urbana enquanto conjunto de traços concretos, socialmente construidos no espaço,
que espelham as relações assimétricas de poder, econômico e cultural, dos sujeitos que ali
ocupam.
A partir de Piazza San Pietro in Vincoli, o “fundo” do mercado, como alguns
vendedores italianos definem a região, nos deparamos com a primeira parte da área Molassi.
Essa área urbana não é composta por residencias, mas por velhas fabricas (os antigos moinhos
da cidade) sucessivamente reestruturadas, hoje sede de parte do Sermig, uma instituição
filantrópica. Essa área do mercado é chamada, pelos italianos, de “mercado dos trapos”. Essa
definição remete às funções tradicionais do bairro onde a feira está instalada desde 1856. O
bairro, antigamente, era chamado de “Strass borg”, isto é, em dialeto piemontês, “bairro dos
129
trapos”130, por abrigar a feira Balôn, onde se encontravam, como hoje, mercadorias usadas,
tidas por muitos fregueses e comerciantes como “simples” e “humildes”. A atual retomada
dessa conotação se dá pelo fato de que essa área abriga, como no passado, vendedores que
oferecem itens de uso comum, cotidiano e de baixo valor econômico, como roupas, panelas,
sapatos, louças de maior ou menor qualidade ao preço médio de um até cinco euros à peça,
apresentados, às vezes, em cima de bancas e, mais frequentemente, amontoados sobre tecidos
no chão.
130 A feira de usado Balôn oferecia tecidos, roupas usadas, ferragens e muitos outros tipos de objetos. As
narrativas sobre a história do mercado “convergem para a definição de uma figura central, tomada como
“originária” do Balôn: o ferramiu. Essa palavra, em dialeto piemontês, indica uma profissão específica,
que, segundo os relatos, começou a ser exercida na segunda metade do século XX. Os ferramiu vinham
do Vale do Pó, situado entre as montanhas dos Alpes, próximo da fronteira com a França. Eles se
deslocavam dessa região para a cidade no outono e no inverno e, nas cidadezinhas de onde provinham,
Oncino, Ostana e Crissolo, durante a primavera e o verão, praticavam a atividade agrícola. Quando
“desciam” em Turim, “faziam” os ferramiu: trabalho que consistia em comprar todo tipo de objetos usados.
Com um carrinho de mão, atravessavam a cidade, bairro por bairro, esvaziando os porões das casas onde
estavam guardados esses artigos, que podiam provir de antigas mudanças e eram acumulados por ter perdido a
própria utilidade. De fato, como muitos comentam, “naquele tempo não se jogava nada fora”; as coisas eram
conservadas porque podiam vir a ser úteis em outra ocasião, servindo, por exemplo, aos filhos ou, em último
caso, para serem vendidas. Além desses objetos, eles compravam metais, papéis e trapos, como roupa velha, a
peso. Daí o termo ferramiu, quem trabalha com o ferro, material mais valioso dentre os demais. Esses materiais
eram comprados e depois vendidos para pessoas que tinham depósitos, as quais os revendiam para empresas de
reciclagem, como fundições, fábricas de papel e de fiação; os outros objetos eram oferecidos no mercado.
Sobre panos colocados no chão, os ferramiu vendiam peças velhas e, entre esses objetos, que incluíam desde
móveis, jogos de louças, ferramentas etc. e pedaços de objetos usados para consertos, podiam aparecer artigos
“de valor”, como antiguidades. Por não saberem reconhecer essas peças, vendiam-nas por preços baixos. Foi a
partir dessa situação que o Balôn começou a ser identificado como lugar “dell‟affare”, isto é, “do bom
negócio”. Começando pelo descaso das pessoas que cediam as antiguidades para os ferramiu sem diferenciar os
preços, os artigos acabavam sendo repassados para clientes da feira por valores muito baixos. Daí a motivação
destes últimos em buscar, entre as centenas de objetos, a “occasione”, o achado, que, em alguns casos, podia
“valer uma fortuna”” (Durando, 2010: 123-124).
130
Foto 1 - Vendedores e mercadorias no Canale Molassi.
Parte desses itens são objetos em desuso, ganhos ou comprados em lotes pelos
vendedores ou ainda pegos em lixos e refugos da cidade. Quando ficam encalhados, no final
da feira, são frequentemente abandonados. Esta situação viabiliza a ‘catação’ dessas
sobras por italianos, estrangeiros, jovens, velhos, homens, mulheres e crianças, que,
terminado o mercado, antes que passe o caminhão de lixo para limpar a região, procuram,
atentos, observam, escolhem, levam, descartam (Foto 1). É também nessa situação que
alguns migrantes, principalmente nigerianos, se abastecem de mercadorias a serem
sucessivamente enviadas via container para seus países de origem. Atualmente, essa área da
feira é também chamada de ‘Suq’ ou ‘Medina’ pela midia local, qualificação depreciativa que
remete à origem magrebina da maioria dos vendedores que ali atuam.
131
Foto 2 - Catação em Piazza San Pietro in Vincoli ao término da feira.
De Piazza San Pietro in Vincoli até o começo do Canale Molassi, a ‘paisagem’ do
mercado muda: a presença dos vendedores italianos gradativamente aumenta, mudam os tipos
de mercadorias e as formas de apresenta-las. Peças usadas mais selecionadas, de velhos vinis
para colecionadores, a livros, roupas vintage e outras utilidades, são oferecidas sobre bancas e
dispostas por tipologia (foto 2). A área acima descrita corresponde, então, ao mercado
Molassi, que compõe o Balôn e é gerido pela Associazione Vivi Balôn.
Foto 3 - Banca no começo do Canale Molassi.
132
Nas ruas Via Borgo Dora e Largo Borgo Dora, temos o que é considerado pelos
italianos o « centro » do mercado: uma área urbana de recente requalificação, onde estão
instalados edifícios residenciais, lojas de antiquarios e bares à moda de propriedade pela
maiora italiana. Aqui, as bancas, quase todas de vendedores italianos, mas também de
comerciantes maroquinos e senegaleses, são dispostas sobre bancas mais estruturadas das que
vimos na área Molassi, articuladas em planos diversificados.
Foto 4 - Banca em Via Borgo Dora.
Foto 5 - “Largo” de Via Borgo Dora.
133
Foto 6 - “Largo Borgo Dora”
O Balôn configura-se, portanto, por uma região central reestruturada, especialmente
Via Borgo Dora, que representa o centro histórico dessa parte do bairro e, ao redor, uma área
em diversos graus desqualificada. Entre essas duas áreas da feira, Molassi e Borgo Dora, tidas
respectivamente como periferica e central, se enredam outros espaços que compõem o
mercado, mais heterogêneos em termos de composição étnica dos vendedores que os ocupam
e tipologias de espaços urbanos. Canale Carpanini representa urbanisticamente a continuação
do Canale Molassi, é parcialmente requalificada131 e hospeda, em sua maioria, artesãos,
enquanto que Via Lanino, Via Cottolengo e Via Mameli são constituídos por edifícios
residenciais e algumas lojas, não ocupam uma área requalificada e se compõem por predios
mais ou menos degradados.
131Só foi reestruturado um lado da rua, o que abriga as lojas de antiquariado que tem ingresso pela Via Borgo
Dora, enquanto que o outro lado, composto por residências, é fatiscente.
134
Foto 7 - Banca em Canale Carpanini. Artesã brasileira com vendedor italiano.
A feira abriga diversos tipos de mercadorias apresentadas de várias formas: pode incluir
bancas de mercadorias novas em Via Mameli, peças velhas ou antigas e, por fim, produtos
definidos “étnicos” pelos italianos.
Foto 8 - Banca de blusas football (2008) de vendedores italiano.
135
Foto 9 - Piazza Lanino.
Foto 10 - Piazza Lanino.
136
Foto 11 - Via Lanino, cestas senegalesas.
As repesentações relativas ao « centro » e « periferia » do mercado por parte dos
italianos não estão vinculadas unicamente à lógica da distribuição das bancas no espaço
(segundo a qual haveria uma região central e uma periferica ao redor) e à direção do fluxo dos
clientes (que, em sua maiora, o acessam pela Piazza della Repubblica), mas também a três
variáveis: a requalificação do espaço urbano com presença de lojas ou bares à moda; o valor
econômico dos produtos e como são apresentados; e a origem étnica dos vendedores. Não
aprofundaremos aqui as implicações dessas variáveis, mas destacamos que, a partir dessa
lógica, se delinea a distinção entre paisagens nas quais a assimetria das relaçãoes de poder
entre grupos de comerciantes que as ocupam se expressa de forma dicotômica, assim como
Sharon Zukin (2000) sugere, definindo, por um lado, o que ela chama de “paisagem dos
poderosos” e, pelo outro, “paisagem vernacular ou dos sem poder”, onde a noção de poder é
associada à classe socioeconômica e ao poder aquisitivo (2000: 83). As disputas por parte dos
comerciantes italianos que ocupam a área central da feira (ambulantes e fixos, os quais
compõem ou são representados pela Associazioni Commercianti Balôn que administra a
região) para alinha-la a noções de « limpeza », « ordem » e « legalidade » são acirradas, se
opondo a todas as práticas que podem ameaça-las. Por outro lado, o movimento dos
137
vendedores e da Associazione Vivi Balon do área Molassi, que revendicam a legitimidade de
sua atuação no mercado em termos de tradição, pois, segundo o que alegam, o Balôn é
considerado historicamente « o mercado dos pobre»132, também pressionam para « preservar »
o mercado nos moldes de valores ligados à « simplicidade », « liberdade » e «ethos popular ».
A tensão entre essas duas frentes opostas é constitutiva da feira Balôn e pode ser apreendida
em termos de ‘paisagens’ antitéticas, as quais moldam o espaço urbano sem, porém, gerar
uma cartografia rígida, de fato, como veremos sucessivamente, a atuação de vendedores
« abusivi » na feira, muitos dos quais de origem senegalesa, se dá principalmente no centro do
Balôn, onde muitos outros vendedores que trabalham informalmente e ilegalmente são
presenças intermitentes, mas constantes.
A primeira vez que fui para o mercado, no início da pesquisa de campo, optei por
atravessa-lo a partir do « fundo », de Piazza San Pietro in Vincoli, e me surpreendi com a
quantidade de vendedores posicionados ao seu redor. Beirando o “mercado dos trapos”, mais
de 50 pessoas, todos homens, pela maioria oeste africanos (oriundos do Burkina Faso, Mali e
da Costa do Marfim133), expunham suas mercadorias sobre panos no chão. Esses vendedores
atuavam informalmente na parte externa da praça e ofereciam principalmente sapatos e roupas
por cerca de 1 euro à peça. Um dos vendedores vinha do Burkina Faso e tinha chegado na
Itália há 1 ano. Junto com um conterrâneo, vendia sapatos: “os sapatos não vendem muito
aqui, mas na África convém”, relata o primeiro, alegando que no país dele “as coisas usadas
que vem daqui são muito procuradas”. Os ambulantes comentaram que estavam esperando a
regularização de seus documentos para começar a “comprar aqui e vender lá” e que
conheciam muitas pessoas que fazem esse trabalho. Quando comentei que na feira tem
também senegaleses que atuam como comerciantes, os dois vendedores se olharam e sorriram
de forma irônica, depois me responderam: “eles vendem coisas mais caras...”. Se, com essa
afirmação, e a gestualidade que a antecedeu, os dois ambulantes traçaram uma fronteira entre
eles e o grupo de comerciantes senegaleses, utilizando como diacrítico o valor econômico das
mercadorias, a diferença entre a prática comercial desses últimos e de outros vendedores da
África Ocidental se delineia também territorialmente e em termos de tipologia de produto
tratados. Os vendedores senegaleses, de fato, no Balôn, se instalam unicamente na região
“central” da feira, ocupando, então, parte de Via Mameli, Via Lanino, Canale Carpanini e
Largo Borgo Dora (mapa 3).
132 Para aprofundamentos sobre essas dinâmicas, ver “Balôn, um mercado popular”, Vanessa Durando 2010. 133 Muitos desses últimos eram refugiados políticos recém-chegados na Itália.
138
Mapa 3 - Em azul, os locais onde se estabelecem os ambulantes senegaleses na feira Balôn.
Desde quando comecei a pesquisa na feira Balôn em ocasião do mestrado, em 2007,
até o fim do trabalho de pesquisa para a realização desta tese, nunca encontrei senegaleses
atuando como vendedores na região Molassi134 .
A disposição mantida por meus interlocutores nessa região da feira pode, então, ser
considerada como um padrão e se deve a múltiplos fatores que aprofundaremos em seguida.
Por enquanto, consideramos que, por um lado, esses vendedores comercializam
principalmente artigos novos e artesanais, tendo um nicho de potenciais clientes que circulam
nessa região. Esse ordenamento corresponde também à disposição preestabelecida pela
associação que gerencia essa parte do mercado, que prevê a correspondência entre tipologia
de produtos a serem oferecidos e área urbana equivalente. De fato, apesar do Balôn ter como
característica principal o escoamento de mercadorias usadas, a partir de planejamentos feitos
pela prefeitura, Via Borgo Dora, Largo Borgo Dora, Via Lanino, Canale Carpanini e Via
Mameli podem abrigar um número menor de bancas que disponibilizem peças novas e
artesanato. Outra razão, não explicitada pelos meus interlocutores, mas que pode ser
considerada central para entender o padrão de ocupação do espaço dos senegaleses na feira
Balôn é o fato que se posicionar no ‘centro’ do mercado, ao invés de no “fundo” dele, permite
preservar valores como a ‘dignidade’ e ‘honorabilidade’ que contribuem a construir um status
134 A única exceção, como sinalizarei adiante, foram duas circunstâncias nas quais dois ambulantes que
comercializam peças usadas se instalaram lá.
139
de “prestígio”. Essa posição se constrói de forma relacional, sendo reconhecida também por
outros migrantes africanos, como vimos no caso dos dois ambulantes de Burkina Faso que
vendem sapatos na Piazza San Pietro in Vincoli135.
Nessa mesma região, como já se comentou, se estabelecem também vendedores
senegaleses que tratam informalmente produtos de origem chinesa e ilegalmente itens
falsificados. Esses optam por se instalar nessa área, especificamente em Via Mameli/Via
Lanino/Canale Carpanini, porque o fluxo de potenciais clientes transita ali e por ter uma rede
de comerciantes conterrâneos de apoio (envolvendo a possibilidade de garantir-se um lugar de
venda –‘apoiando-se’ a um vendedor conhecido que atua formalmente – e de trabalhar em um
espaço parcialmente “etnicizado” (STOLLER, 2002) que viabiliza situações de sociabilidade
entre conterrâneos, sendo essa uma função central do “participar da feira”, além da
estritamente econômica). O processo de etnicização do espaço deve ser reconhecido como um
traço que caracteriza o mercado, mas precisa ser observado atentamente e aprofundado para
não se tornar um elemento homogeneizante. De fato, como Leyla Sall (2010), sociólogo
senegalês, aponta em seu trabalho etnográfico sobre comerciantes senegaleses em Paris, a
perspectiva étnica, se não problematizada, pode ocultar as dinâmicas de diferenciação que
operam dentro do grupo, como a concorrência, a luta para a ocupação do espaço e as
estratégias comerciais individuais (2010: 65). Como já discutido anteriormente, também no
nosso caso, tensões, conflitos e elementos que atuam em um sentido hierarquizante
caracterizam as relações entre comerciantes, sendo, então, aspectos etnográficos relevantes a
serem analisados. Para dar conta dessa dimensão em seu contexto de pesquisa, Sall utiliza a
noção de “campo comercial”136, transpondo o conceito de “campo social” de Bourdieu para a
135 A tendência dos comerciantes senegaleses ocuparem áreas urbanas privilegiadas para a venda e o bom
desempenho que esses tem em relação aos vendedores de outras nacionalidades africanas são elementos
evidenciados também em outros contextos de pesquisa. Em Nova Yorque, por exemplo, segundo Paul Stoller:
“By 1990, the Senegalese had a lock on informal vending space in most of Manhattan. Backed by the
considerable financial power of the Mourids, a Muslim Sufi brotherhood in Senegal to which many of the
vendors belonged, the Senegalese soon became the aristocracy of West African merchants in New York City.20
When merchants from Mali and Niger immigrated to New York City in 1989 and 1990, the Senegalese had
already saturated the lucrative Midtown markets, compelling the latecomers to set up their tables along 125th
Street, the major commercial thoroughfare in Harlem.” (2002: 19). Segundo Eduardo Rovisco (2017), em 2015,
em Boa Vista, na Ilha de Cabo Verde, os comerciantes senegaleses arrendavam a maioria das lojas de artesanato
do Mercado Municipal e Mercado dos Feirantes. O domínio desse campo comercial por parte dos senegaleses
levou a intensos conflitos com os comerciantes cabo-verdianos e originou uma verdadeira perseguição dos
primeiros de matriz xenófoba. 136 “L’observation du mode de fonctionnement des espaces commerciaux investis par les commerçants et
vendeurs sénégalais fait ressortir toutes les règles de fonctionnement communes aux champs sociaux telles que
définies par Bourdieu (1984). Parmi ces règles de fonctionnement, la première est l’existence d’une lutte entre
les occupants pour l’appropriation des capitaux pertinents leur permettant d’occuper une position privilégiée
dans le champ où ils se situent. Pour ceux qui ne s’y trouvent pas encore, l’objectif de la lutte est d’y entrer par
140
dimensão das relações comerciais que se explicitam no espaço de venda. A apropriação dessa
noção e seus desdobramentos lhe permite, então, mapear aspectos relativos à organização
social dos comerciantes com um cunho político. Essa postura frente ao campo é
compartilhada neste texto não somente porque os dados coletados se aproximam aos do autor
citado, já que as interações entre os atores são fortemente pautadas por relações de poder, mas
também para contribuir com a literatura até agora produzida. Os trabalhos
socioantropológicos sobre comércio senegalês em contexto migratório, de fato, como veremos
melhor em seguida, continuam norteados pela noção de “solidariedade” enquanto princípio
moral central do mouridismo, perspectiva que tende a ofuscar os processos de ordem política,
estruturais não somente na construção das relações entre os atores, mas também na produção
identitária deles como comerciantes.
4.3 Práticas comerciais senegalesas em Largo Borgo Dora: atuar no “centro” do
mercado
Durante a pesquisa de campo que realizei entre 2012 e 2016 nessa região do Balôn,
estiveram alocados, em média, de quatro a cinco vendedores com suas respectivas bancas.
Dois, às vezes três comerciantes regulares e um ou dois ambulantes que trabalhavam
informalmente ‘apoiando-se’ aos primeiros. Analisaremos a atuação desses vendedores
focando nos valores morais e práticas comerciais que promovem, considerando o lugar que
ocupam na feira Balôn enquanto espaço através do qual circulam mercadorias, pessoas,
valores e palavras.
O primeiro comerciante do qual trataremos é Cheikh Lô, sobre o qual já escrevemos
anteriormente. Ele, que pertence ao primeiro fluxo migratório para Itália (chegou na França e
se deslocou para Genova em 1984), é, junto com Issa Niang e Ibrahima Djane, o comerciante
mais velho da feira tanto em relação à idade quanto ao tempo de permanência em Turim.
Como vimos no capítulo dois, “ele se considera italiano pela metade”, aspecto que o
diferencia da maioria de seus conterrâneos no Balôn, os quais não se consideram igualmente
próximos à sociedade de chegada. Tendo começado sua trajetória profissional como
vucumprá, Cheikh é atualmente um dos comerciantes ambulantes africanos mais procurado
pelos colecionadores italianos de peças antiquárias africanas em Turim.
l’usage de stratégies subversives visant à s’y faire connaître et reconnaître comme membres légitimes et à y
acquérir un droit d’entrée.” (2010: 65).
141
Com sua grande banca, composta cuidadosamente por diversos planos de apoio para
acomodar todos os produtos, forrada com tecidos de cores que destacam as mercadorias
expostas, Cheikh comercializa principalmente peças de origem africana, que importa e recebe
via container de Dakar: esculturas velhas e antigas adquiridas na capital senegalesa, no bairro
Medina, em uma loja de comerciantes congoleses; djambé fabricados por artesãos laube137 e
bijuteria (principalmente de prata e pedras duras) oriunda do Senegal138 e, em menor
quantidade, da Índia adquirida na Itália139. Cheikh faz viagens anuais, uma ou duas vezes ao
ano, com o intuito de reabastecer seu banco de mercadorias e visitar sua família em Dakar.
Foto 12 - Banca de Cheikh Lô em Largo Borgo Dora 1.
137Artesãos que trabalham a madeira de casta neeno. 138 Onde compra peças já prontas, como as que são fabricadas pelos Tuareg e outras por um joalheiro (tegg) em
Dakar. 139 Acompanhei parte das atividades comerciais de Cheikh Lô em Dakar. Sobre o aspecto transnacional dessas
práticas, ver o próximo capítulo.
142
Foto 13 - Banca de Cheikh Lô em Largo Borgo Dora 2.
Alocada sempre no mesmo canto do Largo Borgo Dora, entre ambulantes italianos que
vendem coisas velhas e a presença intermitente de ambulantes que comercializam
informalmente, muitos dos quais magrebinos, que oferecem vestidos usados sobre tecidos no
chão, a banca de Cheikh é montada e desmontada por ele mesmo junto ao seu irmão mais
novo, Ismail, que também mora em Turim. A colaboração desse último não se limita a essa
função; de fato, ele também auxilia a controlar que a mercadoria não seja furtada, situação
que ocorre frequentemente no Balôn. A presença de Ismail atrás da banca de Cheikh é
descontinua, cadenciada por longos passeios pela feira e regiões próximas, para conversar
com conterrâneos conhecidos e fazer compras, assim como muitos outros senegaleses nesse
contexto, no mercado de Porta Palazzo e nas lojas das redondezas140.
Os clientes de Cheikh são, na maioria, italianos, os preços das mercadorias variam
entre dez euros, das bijuterias mais baratas, até algumas centenas de euro, das peças artesanais
antigas. Seu local de venda na feira, além de espaço comercial, representa um lugar de
encontro entre amigos e conhecidos senegaleses. Sentados na pequena escada que Cheikh usa
para arrumar as peças na van ou de pé apoiados ao poste que fica ao lado da mesa, tomando
café touba preparado e vendido pelas duas vendedoras senegalesas sobre as quais se
140 O trabalho de Ismail não é remunerado, sendo por ele considerado uma contraprestação prestada ao irmão
Cheikh pelo fato de estar morando no seu apartamento sem pagar despesas.
143
comentou ou um café expresso adquirido no bar próximo, os senegaleses que ali se encontram
são quase sempre homens, com exceção de Khady que, todos os sábados, aparece, conversa
um pouco com seus conterrâneos e logo se vai pelo mercado com seu carrinho de mão.
Se essa banca, assim como outros locais de venda da feira, representa um espaço de
convívio e sociabilidade por parte de meus interlocutores, sua função comercial se mantém
unicamente vinculada a Cheikh Lô. De fato, as transações são realizadas unicamente por ele,
contrariamente à situação de outros comerciantes senegaleses, como veremos sucessivamente.
Com uma postura reservada, Cheikh aguarda os clientes, os quais, dependendo da peça,
solicitam informações (origem, material e, no caso dos itens antigos, história e funções). O
conhecimento, necessário para realizar o comércio de peças antigas, foi adquirido por Cheikh
ao longo dos anos, de forma intelectual (estudo de livros e catálogos) e empírica (até alguns
anos atrás, ele buscava as suas peças viajando pela África Ocidental, adquirindo-as em
pequenas feiras locais por outros comerciantes ou por pessoas particulares). Esse
“conhecimento”, que Geertz (1979) considera critério necessário para viabilizar o comércio
no mercado, representa, então, um elemento indispensável para viabilizar a venda
especializada desses produtos de forma apropriada, no sentido de oferecer informações
corretas sobre a peça e estabelecer o valor correspondente. A discriminante do conhecimento
e, por outro lado, o fato que as qualidades de um item não sejam auto-evidentes, criam a
margem para que a transação possa ser acompanhada por trapaças. Nesse sentido, o
comerciante pode se apresentar como especialista sem ter o conhecimento apropriado ou tê-lo
mas aplicá-lo para dar golpes (vendendo, por exemplo, peças novas por antigas). Certa vez,
Cheikh me contou que um dos antiquários de máscaras africanas mais renomado da cidade,
um senhor italiano que lhe foi apresentado por uma amiga torinense, lhe comentou que
“nunca mais faria negócios com senegaleses”, já que anos atrás tinha sido gravemente
fraudado por um deles. O antiquário, segundo Cheikh, não quis entrar em detalhes, e barrou,
assim, qualquer tipo de parceria comercial com ele. Para explicar a razão do acontecido a
mim, e para amenizar a frustração de ter perdido um bom negócio por causa de terceiros,
Cheikh explica o fato associando o acontecimento a uma afirmação que ouvi, nos mesmos
moldes, de outros informantes: “nós, senegaleses, somos os napolitanos da África Ocidental”.
Com essa afirmação, Cheikh e seus conterrâneos assumem sobre si próprios o aspecto
estereotipado da identidade napolitana compartilhado na Itália, segundo o qual, como os
mesmos napolitanos dizem em dialeto, “cca nisciun è fess!” (“aqui ninguém é bobo!”).
Segundo essa perspectiva, ainda é dito que “il napoletano non lo freghi e mentre pensi di
fregarlo ha già fregato te!”, isto é, “não se engana o napolitano e, enquanto você acha que o
144
está enganando, ele já te enganou!”. “Ser napolitano”, então, tanto pelos italianos quanto
pelos senegaleses que compartilham essa representação, está associado ao uso de artimanhas e
astúcias para driblar situações adversas e, eventualmente, beneficiar a si próprios,
prejudicando terceiros. Representação próxima a do “malandro” no Brasil, “ser napolitano” é
sinônimo de esperteza e trapaça, elementos que, na narrativa de Cheikh, são assumidos como
características identitárias senegalesas, explicando, nesse caso, o golpe aplicado ao antiquário
torinense.
Se, por um lado, as peças de antiquário requerem estudo e conhecimento para serem
comercializadas de forma apropriada, pode também haver casos em que a falta de
conhecimento por parte do comerciante leve a perdas na tratativa com os clientes. Nesse
sentido, Cheikh me contou que, certa vez, em Dakar, adquiriu com seus fornecedores uma
peça achando que tinha uma certa datação e proveniência, e a revendeu a um colecionador
italiano, seu cliente fixo, no Balôn. Depois de um tempo, esse cliente retornou para a sua
banca e lhe disse que, após alguns estudos, tinha verificado que aquela escultura tinha outra
datação e proveniência, tendo, então, um valor econômico maior. Por essa razão, entregou-lhe
a quantia paga: “foi honesto”, comenta Cheikh, “ele aprendeu comigo ... é um médico,
começou a colecionar comprando as minhas peças e lhe ensinei muitas coisas. Agora ele sabe
mais do que eu!”
A variável do conhecimento associada à honestidade é central nesse tipo de comércio e
explica o motivo pelo qual Cheikh não permite que terceiros efetuem transações comerciais
no seu lugar. Essa também é a razão pela qual a sua atividade ambulante em Turim fique
temporariamente suspensa quando ele viaja para o Senegal. Cheikh, então, não viabiliza
práticas econômicas ubíquas, como no caso do senhor Diop, dono da lavandaria sobre o qual
se comentou, por não ter nenhuma parceria em Turim e ninguém de confiança (e com
conhecimento apropriado) para substitui-lo. Apesar de conviver com o irmão na Itália, que o
assessora na preparação da banca, Cheikh opta por não envolve-lo, reforçando, então, o fato
que a confiança não é um elemento dado nas relações familiares, mas, como já vimos nas
narrativas de Khady , deve ser construído e, como se disse, sempre negociado. Por outro lado,
como pode ser apreendido em outros casos, quanto mais a mercadoria é especializada e de
alto valor econômico, menos se tem atuação comercial compartilhada, situação que se dá de
forma diametralmente oposta, como veremos, no comércio de peças chinesas ou falsificadas.
A partir da perspectiva dos ambulantes oriundos de Burkina Faso que vendiam sapatos
usados em Piazza San Pietro in Vincoli, os quais traçaram uma fronteira com os senegaleses,
classificando-os como comerciantes de mercadorias “mais caras” e considerando a fala de
145
outros ambulantes senegaleses os quais, como vimos nos itens anteriores, associam a tipologia
de produtos e a forma de vende-los ao jom (dignidade) enquanto elemento que compõe o
ethos da prática comercial, a atuação de Cheikh Lô aparece como modelo de referência.
Cheikh, de fato, constrói transnacionalmente a sua prática econômica viabilizando o “vai e
vem” desejado pela maioria dos migrantes e, dentro do leque de tipologia de itens a serem
vendidos, o comércio de antiquário africano torna o comerciante porta-voz da sua “cultura
tradicional”, noção ao qual os senegaleses se referem para indicar o conjunto de práticas e
lógicas de matriz pré-islâmica, e da qual se orgulham. Esse status, que podemos atribuir a
Cheikh, é também reconhecido pela Associazione Commercianti Balôn que administra essa
região da feira, assim como o Gran Balôn, mercado de antiquário que acontece no primeiro
domingo do mês na mesma área urbana. Na ocasião dessa feira, que abriga unicamente
vendedores selecionados que comercializam peças velhas ou antigas consideradas de
qualidade, Cheikh participa como único comerciante senegalês141. Além desses critérios, outra
variável que torna Cheikh Lô um comerciante estabelecido e legitimado frente aos seus
conterrâneos é a “ancianidade” ligada à sua idade (é um dos comerciantes senegaleses mais
velhos da feira) e ao tempo de presença “na praça”.
Pouco distante dele, no centro da praça, encontramos a banca de Maisa Sylla142, que
ocupa formalmente outro espaço de venda no Largo Borgo Dora. A centralidade da posição
que Cheikh Lô e Maisa Sylla ocupam no Balôn, segundo o que me foi relatado por eles, se
deve à confluência de diversos fatores: a tipologia de clientes que circulam nessa área é
consona às suas mercadorias. A região seria o “coração” do mercado e, então, o lugar mais
significativo da feira - definição que remete à dimensão simbólica de “prestígio” que os
vendedores querem ocupar - e, enfim, compõe o percurso traçado pelos fluxos de fregueses
que acessam a feira a partir de Piazza della Repubblica.
Maisa vende artigos similares aos de Cheikh Lô, mas novos e de valor econômico
mais baixo: peças artesanais africanas e bijuteria. Essa última é oriunda da Turquia, Índia e
China (de latão, ferro, plástico, cerâmicas) e é adquirida na Itália; as peças africanas
(esculturas em madeira e instrumentos musicais) são importadas de Dakar e produzidas no
Senegal, algumas criadas especialmente para turistas, como a escultura de mãe e filho em
141 Segundo Leyla Sall (2010), a comercialização de peças artesanais africanas por parte dos comerciantes
senegaleses começou na década de 60 na França, quando surgiu o interesse pela arte africana. 142 Nascido em 1974, de etnia wolof originaria de Louga, onde atualmente é estabelecida, deixou o Senegal em
1993 para ir à Itália, onde permaneceu, seguindo a dinâmica de ida e volta para o Senegal, até hoje. Na Itália,
atuou em diversas áreas, entre as quais em restaurantes (foi chef de cozinha). Atualmente casado no Senegal,
esteve anteriormente casado com uma mulher italiana com a qual teve um filho. Hoje, trabalha unicamente como
comerciante.
146
madeira que aparece na foto abaixo; outras realizadas em estilo antigo, como as máscaras ao
lado direito da imagem.
Foto 14 - Detalhe da banca de Maisa Sylla.
O valor de suas mercadorias varia de cinco euros para um item de bijuteria até cento,
cento e cinquenta euros para um djembe. A banca de Maisa, como a de Cheikh Lô, é grande e
estruturada, composta por diversos planos, mas disposta diferentemente, em forma de “U”, de
maneira que o vendedor fica posicionado centralmente, tendo, então, por trás e ao seu redor as
mercadorias que oferece. Essa disposição do espaço de venda, onde o comerciante aparece ao
público por inteiro no centro de sua banca, é estrategicamente utilizada para Gore, que tem
uma atitude performática com seus clientes, em sua maioria italianos.
Se a discrição “souture” caracteriza a forma de Cheikh se autorrepresentar, a atitude de
Maisa pode ser considerada oposta. Extrovertido quando algum potencial cliente se aproxima,
Maisa se desloca de um ponto para o outro de sua banca, apresentando suas mercadorias e
estabelecendo um diálogo com seus interlocutores a partir da espetacularização dos
estereótipos étnicos produzidos pelos italianos sobre os senegaleses. Essa estratégia
comunicativa, observada e analisada por Enrico Sarnelli (2003) no mercado de Antignano em
Nápoles, pode ser considerada como ethnic humour por colocar em cena “as dinâmicas do
humour que se ativam na interação quotidiana entre membros de grupos étnicos diversos, sob
forma de relação direta face to face” (2003: 27, tradução minha). Nesse contexto, como
Sarnelli sugere, “canibal, selvagem, hiperdotado, ladrão, mentiroso, vagabundo, amigo,
147
inimigo, são todas figuras imaginárias através das quais a alteridade é representada em termos
familiares e codificada como um jogo que pode também constituir a base de estratégias
simbólicas mais duráveis” (ibid: 51).
Conforme a essas dinâmicas, Maisa performatiza principalmente estereótipos relativos
à esfera sexual, que envolvem as noções de raça, gênero e religião: com os clientes
masculinos, utiliza o papel do “polígamo poderoso” e, com as mulheres, o do “sedutor
hiperdotado”. Essas situações, geralmente, se resolvem com os clientes masculinos em risos,
brincadeiras e deboches norteados pelo suposto “privilégio” de Maisa poder, legitimamente,
se relacionar com mais mulheres ao mesmo tempo e, com as clientes femininas, em reações
de complacência ou desdém como respostas às suas atitudes galanteadoras e caricaturalmente
sedutoras. Essas estratégias comunicativas são utilizadas em primeira instância para chamar a
atenção dos clientes, para ele se auto-afirmar, contextualmente, no meio social dentro do qual
está inserido e/ou para resolver eventuais impasses durante as barganhas. As brincadeiras, de
fato, se tornam meios para construir uma identidade “na praça” moldada no status de prestígio
e para ritualizar possíveis conflitos: apossar-se dos estereótipos criados pelo outro e dobra-los
em próprio favor na interação com ele representa, então, uma dinâmica para estabelecer
hierarquias e escamotear possíveis embates. Essa estratégia comunicativa costuma ser
utilizada de forma mais ou menos explicita também por outros ambulantes, envolvendo outras
dimensões estereotipadas (“primitivismo”, “bruxaria”/“vodu” etc..), representando, assim,
uma das formas de inserção na feira Balôn e, mais geralmente, no contexto da venda
ambulante.
Maisa viaja para o Senegal duas ou três vezes por ano. Lá se reabastece de
mercadorias a serem revendidas na Itália e empreende outros negócios (consultorias para
conhecidos italianos que querem realizar investimentos econômicos no Senegal, realização de
empreendimentos familiares, como a criação de galinhas para abate etc.). Quando viaja para o
Senegal, seu irmão mais novo, que mora com ele em Turim, o substitui praticando a venda
das mercadorias nas feiras onde Maisa costuma trabalhar. No caso dele, então, diferentemente
do que vimos para Ceikh Lô, não somente existe uma relação de confiança com o irmão, que
viabiliza a ubiquidade das atividades econômicas aqui e lá, mas essa relação se inscreve em
uma rede de parentesco mais ampla, composta por familiares instalados em Turim, que atuam
de diversas formas no próprio mercado Balôn e com os quais Maisa estabelece diversas
relações de parceria comercial.
Um deles, sobre o qual trataremos subsequentemente, é Alassane Sylla, primo de
Maisa, um dos comerciantes senegaleses que se ocupa do envio de contêineres de Turim para
148
Dakar. É por meio dele, por exemplo, que Maisa importa suas mercadorias do Senegal.
Quando Alassane está na Itália, a cada três meses, mais ou menos, aos sábados visita a feira
Balôn e é fácil encontrá-lo na banca de Maisa, conversando ou descansando.
Dentre os familiares de Gora, tem outros dois vendedores senegaleses, também primos dele,
que atuam no Largo Borgo Dora de maneira informal, “apoiando-se” à banca dele, sobre os
quais se comentou no começo desse item e no capítulo anterior: Boubacar Niang, do qual são
as narrativas sobre o massacre de Thiaroye relatadas anteriormente, e Issa Niang. O primeiro,
como se disse, vende batik e algumas peças de antiquário que compra em Dakar e sua
presença na feira é intermitente, enquanto o segundo comercializa eletroeletrônicos usados e
peças para reparos e sua atuação no mercado foi contínua durante o período da pesquisa. A
relação de Maisa com seu irmão e primos, pelo que consegui observar143, se pauta nas
obrigações de ajuda entre classes de idade, segundo as quais, tradicionalmente, o familiar
mais novo serve e auxilia o mais velho. A realização dessa obrigação se verifica não só nos
contextos familiares, sendo uma prática observada por todos, tanto no Senegal quanto na
Itália, mas também entre sujeitos que não são parentes, sendo parceiros profissionais e/ou
amigos.
Sem risco de ter relações de concorrência comercial, devido ao fato de estar
disponibilizando mercadorias de tipologias distintas, Maisa reserva um espaço da sua banca,
de cinco metros, para eles comercializarem seus produtos. Apesar de Maisa, Issa Niang
compartilharem a mesma banca, raramente trabalham juntos. A intermitente presença dos
primeiros dois, devida às frequentes viagens para o Senegal do primeiro e às prolongadas
estadias do segundo, fazia com que, durante a pesquisa, permanecesse sempre presente e
observável unicamente a banca de Maisa, tocada por ele ou pelo irmão, e a mesa cheia de
eletroeletrônicos de Issa. A compartimentação das práticas econômicas entre familiares, com o
conhecimento para realizá-las, ou entre outras pessoas de confiança, viabiliza ainda uma vez a
mobilidade do comerciante e, então, a sustentabilidade das redes transnacionais de comércio,
sobre as quais nos ocuparemos especificamente no capítulo sucessivo.
Se os comerciantes anteriores vendem coisas novas ou antigas, Issa Niang144 é um dos
pouco senegaleses que comercializa itens usados na feira. Dispostos sobre uma mesa dobrável
143 Maisa foi bastante esquivo em relação ao trabalho de pesquisa, em Dakar escapou, literalmente, da minha
observação, me prometendo encontros, repetidas vezes, que não se realizaram. 144 De etnia wolof, tem 63 anos, nascido em Louga é comerciante. A presença quase que contínua dele na feira
Balôn se deve ao fato que durante parte da pesquisa de campo não tinha visto regular de permanência na Itália, e
essa situação, assim como para muitos outros migrantes senegaleses, lhe impossibilitou as viagens de volta.
Logo que regularizou seu documento, Issa fez uma viagem de três meses para Louga, que não visitava há cinco
anos.
149
de cerca de um metro e meio por um metro, baterias e carregadores de celulares, extensões,
tablete, telecomandos, placas de computador são amontoados por tipologia.
Foto 15 - Banca de Issa Niang.
A origem dos produtos eletroeletrônicos que oferece é múltipla: tem peças que provém
de outro lado do mercado, a área Molassi, que por vezes Issa frequenta para adquirir itens a
serem revendidos, e mercadorias que lhe são fornecidas por um parente que mora próximo da
cidade de Novara145. Esse último compra mercadorias a serem revendidas no Senegal, entre as
quais eletroeletrônicos usados e novos146 enviados para lá inteiros ou desmontados, e
sucessivamente revendidos por peças e/ou remontados 147. A disposição irregular dos itens
sobre a banca, que às vezes ficam encobertos uns pelos outros, obriga o cliente a se aproximar
para identificá-los e experimentar seu funcionamento. A questão central, de fato, entorno à
145 Cidade da região Piemonte, próxima de Turim. 146 Segundo o que me foi relatado por um informante, alguns desses últimos são itens descartados pelas
empresas, por terem defeitos de fabricação, e que por isso passam a ser escoados. Como veremos no capítulo
sucessivo, a prática de se liberar ilegalmente de objetos considerados inutilizáveis desviando o percurso legal
que prevê a eliminação regular de lixo é utilizada por diversas empresas em Turim. 147Graças ao trabalho de hábeis técnicos que, no Senegal, assim como em muitos outros países da África, são
capazes não somente de consertar objetos, mas de transformá-los e reinventá-los, o mercado das peças usadas é
flórido e muito praticado por vendedores no Senegal.
150
qual se articulam as conversas de Issa e seus clientes, na maioria homens de diversas
nacionalidades (italianos, romenos, marroquinos etc), é a integridade dos produtos.
“Funciona?” é a pergunta mais comum feita por eles, aos quais Issa responde sempre
de maneira afirmativa. A incerteza relativa à qualidade das peças e o fato de que algumas
sejam consideradas anacrônicas/obsoletas por parte de seus clientes (o primeiro aparelho
telefônico Nokia, ou um velho telecomando de TV, etc) produzem interações irônicas e
brincadeiras com as quais Issa lida de maneira aparentemente distante. Chamado por parte de
seus clientes de “Iphone 6”148, Issa comercializa peças ao preço de dois/três euros (um
telecomando) até, mais ou menos, trinta euro (um tablete). A sua interação com os fregueses é
voltada, principalmente, a garantir a funcionalidade de suas mercadorias, que, como costuma
dizer, “são novas”149. O cuidado para não ser fraudado, que frequentemente faz com que os
clientes exijam experimentar os objetos antes de adquiri-los, é recíproco, já que, como Issa me
contou, ao longo desses anos lidou com muitos casos de roubo e de trapaças por clientes que
fizeram crédito e sucessivamente não pagaram.
As transações e barganhas entre ele e seus clientes são pautadas na inversão semântica
dos elementos em jogo que, a partir das oposições “novo”/“velho”, “inovador”/“obsoleto”,
como vimos acima, se estendem para outros campos de significação. Certa vez, por exemplo,
Issa estava oferecendo a bateria de um celular para um cliente pelo valor de cinco euros. O
freguês, um senhor romeno de meia idade, observa a peça: “se quiser experimentá-la, fique à
vontade. Se não funcionar, o problema está no seu aparelho...”, comenta Issa. Assim, o cliente
tira seu telefone do bolso, o apaga e troca a bateria. Issa percebe que é um celular de produção
recente: “olha, que lindo aparelho que você tem! Olha o meu...”, e mostra para ele um celular
antigo com o display quebrado, “...queria comprar um novo, mas...” e levanta os ombros,
desconsolado. Issa articula a sua estratégia de venda da seguinte forma: por um lado, garante
o funcionamento de sua peça jogando o possível defeito no aparelho do outro, tutelando assim
a boa qualidade dos produtos que oferece invertendo, a priori, a causa de um possível mau
funcionamento. Por outro lado, quando vê que o aparelho do cliente é de boa qualidade, não
podendo, então, ser a causa da eventual falha da bateria, desloca o foco da conversa sobre as
qualidades opostas de seus respectivos telefones (novo/velho) e, reflexivamente, sobre suas
condições, também antitéticas, enquanto sujeitos, cliente “rico”/“à moda” versus comerciante
148 Esses dados são do dia 25 de janeiro de 2014, quando a Apple comercializava o telefone Iphone 5. Os
clientes, então, costumavam lhe designar o apelido do modelo que ainda não tinha sido lançado pela empresa, a
indicar, ironicamente, a qualidade inovadora das peças por ele comercializadas. 149 Não são todos os itens comercializados que são testados previamente por Issa. Pode, então, acontecer que ele
venda uma peça que não funcione.
151
“pobre”/”ultrapassado”. A vitimização ironizada, que Issa performatiza, por não ter um celular
tão “bonito” (e atual) quanto o do cliente, e nem poder adquiri-lo, serve estrategicamente para
justificar o anacronismo e a possível não funcionalidade da peça que está vendendo. Se
autorrepresentar como démodé e com poucas condições econômicas impele o cliente a
justificar a possível disfunção do produto que está disponibilizando.
Mesmo que, no Balôn, Issa promova o comércio de mercadorias adquiridas em loco
(Molassi e/ou por meio de seu parente de Novara), ele também está envolvido em “business”
transnacionais. De fato, parte dos itens que comercializa na feira, assim como outros tipos de
mercadorias, são ocasionalmente enviados para Dakar via contêiner com a finalidade de
serem revendidos no Senegal. A sua banca é também frequentada habitualmente pelos seus
irmãos, com os quais mora150, e, principalmente, por Fallou Niang, seu primo, que, como
veremos, vai à feira para encontrar amigos e parentes, mas também para “fazer business”
como comerciante, promovendo compra-venda de itens da Itália para o Senegal151.
A partir dos casos observados, podemos perceber como a inserção no mercado e o
manejo do espaço de venda é viabilizado por dinâmicas individuais e coletivas: tanto o caso
de Cheikh Lô quanto o de Maisa Sylla e seus familiares revelam que fazer comércio na feira
implica na construção e manutenção de laços com amigos e/ou parentes norteados por lógicas
específicas que gravitam entorno das obrigações familiares, no caso dos parentes, e da
construção da confiança como elemento central para a viabilização de parcerias. Essas
dinâmicas, que podem envolver impasses e tensões, contribuem para a etnicização dos
espaços de venda (Stoller, 2002) que se apresentam como pontos de aglutinação das presenças
senegalesas no Balôn152.
150 Em um apartamento alocado no mesmo bairro de Porta Palazzo. “A casa dos Niang”, como é chamada por
alguns amigos e conterrâneos do Issa, é lugar de encontro e convívio de muitos dos meus interlocutores, os
quais, por exemplo, costumam se reunir para assistir jogos de futebol e/ou encontros de luta tradicional, “laamb”
em wolof, o esporte competitivo mais seguido pelos senegaleses. 151 Essa prática comercial, de forma mais ou menos estruturada, compõe o trabalho de quase todos os
senegaleses que acompanhei em Turim. Esses comerciantes, portanto, integram as redes transnacionais por meio
das quais produtos usados e novos são escoados para o Senegal, atuando, então, como “formigas da
mundialização” (Tarrius, 2002). Segundo Tarrius, como veremos no capítulo sucessivo, esses atores participam
da “economia subterrânea” (2002) que articula, comercialmente, produtores do Norte e consumidores do Sul.
Essas questões são tratadas por Tarrius no livro “La Mondialisation par le bas. Les nouveaux nômades de
l´économie souterraine”, Paris: Balland, 2002, e em diversos artigos, entre os quais: “Mobilités, identités,
territoires...”, Saint-Denise: Profession Banlieu, 2002 n.5; “La remontée des Suds: afghans et marocains en
Europe Méridionale. Paris: L’Aube, 2007. 152 Observei alguns casos de compartimentação do mesmo espaço de venda entre vendedores senegaleses e não
senegaleses em poucas ocasiões e quando isso se verifica a divisão da banca se dá, geralmente, com
comerciantes de religião islâmica. Essa dinâmica confirma a tendência dos comerciantes senegaleses de buscar
parcerias econômicas com sujeitos da mesma religião, como Stoller (2002) aponta também no contexto
novaiorquino.
152
O processo de etnicização não se dá somente na dimensão das parcerias comerciais,
que são realizadas, como vimos, unicamente entre senegaleses, mas também em relação à
sociabilidade153. Na praça, de fato, é raro observar interações entre senegaleses e sujeitos de
outras nacionalidades (também quando os primeiros estão casados, na Itália, com mulheres
não senegalesas), a não serem clientes. Essas dinâmicas são explícitas no caso de Issa Niang,
que, segundo a lógica da correspondência entre tipologia de produtos e áreas comerciais,
deveria atuar na região Molassi, mas que prefere permanecer próximo de familiares e amigos.
Essa escolha se deve ao fato de que “apoiar-se” a um parente permite economizar a quantia de
dinheiro que seria gasta para o espaço de venda em outra região da feira, garante uma certa
liberdade, já que o ambulante pode se afastar da banca e ter alguém de confiança que controla
suas mercadorias e, enfim, viabiliza momentos de sociabilidade com as pessoas de seu meio
social.
A disponibilidade em fazer “apoiar” algum parceiro na própria banca não se limita às
relações de parentesco. De fato, em algumas ocasiões, também Cheick Lô permitiu para um
amigo senegalês, que faz croché, posicionar uma pequena banca ao lado da sua para vender
tocas artesanais. É preciso ressaltar que a modalidade de “apoio” utilizada nos casos
ilustrados acima nunca se dá na cessão ou no compartilhamento da banca do comerciante que
trabalha formalmente. Esse, de fato, mantém o próprio espaço comercial intacto e permite ao
ambulante que atua informalmente encostar uma mesa ao lado caso não comercialize
mercadoria contrafeita ou da mesma tipologia vendida por ele154. Os comerciantes que se
apoiam costumam ocupar um espaço pequeno e se posicionar após a fiscalização dos guardas
municipais, que acontece de manhã cedo, e a sua presença tende a não ser questionada durante
os controles sucessivos. Como veremos em seguida, o gênero de mercadoria vendida por eles
não fere os princípios discricionários dos guardas, que tendem a sancionar unicamente os
produtos novos de produção chinesa e, principalmente, os contrafeitos.
153 Essa dinâmica de etnicização, como será etnografado sucessivamente, extrapola a territorialidade da feira para
se desdobrar na construção das redes de comércio transnacional. 154 Os ambulantes que trabalham informalmente ocupam o espaço público e não parte da banca dos comerciantes
com licença, os quais os fazem encostar. A função desses últimos no processo de “apoio” é legitimar a atuação de
seus colegas enquanto sujeitos que ocupam uma extensão da própria banca. Caso os guardas municipais
questionem as suas presenças, os ambulantes que atuam formalmente apelam à relação de “parceria” com o outro
vendedor: “deixe ele ficar, está comigo” pode ser dito aos fiscais, apelo que é geralmente atendido. Esse caso de
construção do espaço de venda pode ser considerado um exemplo explicito de ingerência entre dinâmicas
formais e informais de construção do mercado.
153
Capítulo 5 – A feira Balôn (2): o “tira e põe” dos produtos contrafeitos
5.1 Práticas comerciais senegalesas em Via Mameli, Via Lanino, Canale
Carpanini
A partir de Largo Borgo Dora, indo em direção à Piazza della Repubblica, a feira se
desdobra em Via Borgo Dora e em Via Mameli de forma marcadamente etnicizada. Enquanto
na primeira rua estão instalados unicamente vendedores italianos, na segunda, principalmente
entre a esquina de via Andreis até o cruzamento com Via Borgo Dora, temos somente
ambulantes de origem estrangeira, principalmente marroquina e senegalesa.
Mapa 4 - Em verde, vendedores italianos e estrangeiros. Em azul, os vendedores italianos. Em amarelo,
vendedores de origem estrangeira.
Essa distribuição corresponde a uma das estratégias políticas da Associazione
Commercianti Balôn que gere essa área da feira, pautada em reservar aos comerciantes
italianos que vendem mercadorias usadas (velhas e antigas) a área “enobrecida” (Zukin, 1991)
do mercado. O “centro” do “centro”, como esse recorte de Via Borgo Dora entre Via Mameli
e o cruzamento com Via Andreis poderia ser definida, é a região do Balôn que sofreu um
processo de “gentrification” nos moldes etnografados por Giovanni Semi (2005) no
154
Quadrilatero Romano, área urbana próxima155. A criação de um novo espaço comercial
segundo os parâmetros da “paisagem dos poderosos” (ZUKIN, 2000), com bares à moda,
pequenos restaurantes e lojas de antiquário, promoveu um processo de elitização da clientela
que a associação tem interesse em sustentar e que tem ingerências de cunho étnico no manejo
da distribuição de vendedores por eles gerido. A escolha dos comerciantes senegaleses de se
instalarem no Largo Borgo Dora, que é o prolongamento dessa área “gentrificada”, lhes
permite aproveitar do fluxo desses clientes, que se deslocam no eixo central da feira156 (mapa
5).
Mapa 5 - Modalidade de fluxo dos passeantes na área central da feira, os quais, a partir de Piazza della
Repubblica, se concentram principalmente na primeira parte de Via Mameli e seguem sucessivamente por Via e
Largo Borgo Dora.
Beneficiar essa rua tornou mais evidente a disparidade com outras regiões, como Via
Cottolengo, Via Mameli, Via Andreis, onde permanecem situações críticas de degradação
habitacional. Em uma dessas áreas, encontramos a maioria dos vendedores senegaleses que
155 Entre 1997 e 2003, de fato, a Prefeitura investiu, em toda a área de Porta Palazzo, 6 milhões de euros, obtidos
através de concursos da União Europeia. A rua Borgo Dora concentrou parte dos investimentos com a finalidade
de “revitalizar” o comércio da região, como declarado pela Prefeitura. 156 Já que o outro eixo é percorrido pelo fluxo que se desloca em direção/ou a partir da área Molassi, sendo
composto por outra tipologia de clientes, como vimos, atraídos pelas mercadorias comercializadas nessa outra
região.
155
atuam na feira, que tem uma concentração maior, respectivamente, ao longo da Via Mameli,
especialmente a partir da metade em direção ao Largo Borgo Dora e, em número menor, ao
longo de Via Lanino e Canale Carpanini. Dentro dessa área, a região que tem uma maior
densidade de ambulantes senegaleses é a quadra de via Mameli na esquina com Largo Borgo
Dora. A paisagem desse território pode ser considerada “vernacular” (ZUKIN, 2000) em
comparação à Via Borgo Dora, pois é composta por edifícios velhos, arruinados, e o espaço é
deslocado em relação ao maior fluxo de passeantes que entram na feira pela Piazza della
Repubblica, os quais tendem a se deslocar pela área “enobrecida” (ZUKIN, 2000) de Via
Borgo Dora.
Esse espaço é o que abrigou, durante a pesquisa, ambulantes senegaleses cujas práticas
comerciais são realizadas de maneira formal, mediamente em número de três, e entre cinco e
quinze ambulantes que comercializam informalmente e ilegalmente mercadorias chinesas e
falsificadas. Um dos aspectos mais evidentes em relação às diferenças de atuação dos
senegaleses nas duas áreas do mercado (respectivamente, Largo Borgo Dora e Via
Mameli/Via Lanino/Canale Carpanini) é que a presença dos que trabalham nessa última é
mais intermitente e instável dos que atuam na primeira. Tal mobilidade se caracteriza pela
rotatividade das presenças, não afetando a qualidade etnicizada da região, que permanece
prevalentemente senegalesa e, em menor quantidade, magrebina. De fato, ingressar nesse
recorte de mercado leva o passeante a um espaço que parece estar deslocado do contexto
nacional ao qual pertence. Sem marcas urbanas que remetam à realidade italiana local - todos
os estabelecimentos comerciais estão desativados, com exceção de uma alfaiataria magrebina,
e não há portões de ingresso para os prédios residenciais -, o lugar é atravessado por pessoas
unicamente durante a feira, quando é ocupado por mercadorias, dispostas sobre bancas e no
chão, vendedores e clientes.
156
Foto 16 - Via Mameli esquina com Largo Borgo Dora. Ambulantes com minha filha Gaia.
Sentados nas grades que cercam a rua ou atrás das bancas, os vendedores senegaleses
aguardam seus clientes, se juntam entre eles para conversar, comer e, assim como em Largo
Borgo Dora, recebem visitas de amigos que podem permanecer ali por horas. A intensa
sociabilidade dos ambulantes - de matriz etnicizada e quase unicamente masculina -, as falas
em wolof ou em árabe, a presença de mercadorias de múltiplas origens, os perfumes de
incensos queimados pelos vendedores que os comercializam fazem desse um espaço da
alteridade, como muitos outros na região de Porta Palazzo.
A mobilidade dos ambulantes e de suas bancas - a instabilidade das presenças no
espaço, sobre a qual se acenou - representa o elemento mais evidente de um modus operandi
flexível e versátil que caracteriza estruturalmente as práticas comerciais, principalmente
informais e ilegais, dos senegaleses nessa área do Balôn. De fato, os elementos constitutivos
da atividade ambulante na feira - disposição no espaço, construção das bancas, estratégias de
venda e tipologia de mercadorias – são (re)criados contextualmente e de forma situacional por
meio do manejo de modalidades socioeconômicas diversas. Tal flexibilidade é, como
veremos, padronizada e produz variações que obedecem a lógicas moduladas, dentre outros
critérios, pelos valores morais dos quais temos tratado anteriormente. Percebendo que a
análise de como é construída essa mobilidade descortinaria elementos centrais para apreender
parte das lógicas usadas pelos comerciantes senegaleses no mercado, se optou, durante a
157
pesquisa, de observá-la de forma privilegiada. A atividade ambulante informal e ilegal, de
fato, mais do que a que é conduzida formalmente, é realizada em condições caracterizadas por
um maior número de variáveis: as liberdades e os limites que enredam essas práticas,
sustentadas pelo movimento e a recriação de modalidades comerciais ad hoc nas mudanças de
contextos, criam um panorama no qual a dimensão interacional se desdobra e a diversificação
das estratégias comerciais se multiplica. Esperteza (mousse) e versatilidade, então, se
concretizam aqui enquanto valores centrais.
Antes de etnografar a atuação flexível dos vendedores que trabalham de maneira
informal e ilegal, falarei brevemente dos que atuam, nessa área, formalmente. Percorrendo
Largo Borgo Dora em direção à Via Mameli, no recorte “vernacular” do qual falamos,
posicionavam-se entre 1 e 3 ambulantes regulares: Ablou Diallo157, comerciante bay fall com
mercadorias produzidas exclusivamente no Senegal; Ibrahima Djane , sobre o qual tratamos
no capítulo anterior, com a sua grande banca composta por peças variadas de baixo valor
econômico; e, esporadicamente, Masamba Niang, com itens artesanais, principalmente
tailandeses e africanos. Se, no Largo Borgo Dora, a presença dos ambulantes senegaleses
regulares é contínua - com exceção do mês de agosto, que corresponde às férias de verão, e
aos meses entre janeiro e março, durante os quais os ambulantes voltam para o Senegal - e
essa estabilidade se dá principalmente por eles ocuparem lugares “fixos” que, segundo o
regulamento, para serem mantidos requerem uma continuidade de presenças, na região
“vernacular” (ZUKIN, 2000), que é caracterizada por lugares “rotativos”, os comerciantes que
trabalham formalmente estão “na praça” de maneira menos contínua. A intermitência de suas
presenças se deve ao frequente deslocamento desses vendedores que podem estar atuando em
outras cidades, como no caso de Ibrahima Djane, por exemplo, que, segundo seus relatos,
viaja frequentemente para participar de feiras e acompanha o fluxo dos turistas em cidades
como Sinigalia, ou ainda pelo fato que podem optar por expor as próprias mercadorias em
outras áreas urbanas, como no caso de Masamba Niang, que, nos períodos próximos do Natal,
costuma montar sua banca em Via Po, rua comercial no centro de Turim.
A prática comercial desses vendedores se configura por um padrão próximo ao
adotado por Cheikh Lô e Maisa Sylla, com algumas variações, tanto em relação à tipologia de
produtos vendidos e formas de comercializá-los quanto em relação à compartimentação do
espaço com os ambulantes que atuam informalmente. Ablou Diallo representa a presença mais
157 De etnia pel, é originário de uma área rural próxima de Dakar. Na Itália desde 2004, é casado com uma
mulher italiana, não tem filhos e atuou por alguns anos como operário. Desde quando foi despedido, se dedica ao
comércio ambulante, que começou no Balôn depois de uma viagem para o Senegal. Nessa ocasião, adquiriu
peças artesanais senegalesas, principalmente colares, pulseiras e pequenas esculturas em madeira.
158
contínua e oferece unicamente mercadoria senegalesa artesanal, em especial roupas fabricadas
em Dakar, pequenas esculturas, colares e pulseiras no estilo bay fall. Esse último, próximo da
estética hippie (roupas largas, estampas patchwork, bijuteria vistosa em madeira ou couro
etc.), corresponde à demanda de um nicho de consumidores cada vez mais numerosos em
Turim, o da “moda étnica”, que orienta a escolha e comercialização de tipologias de produtos
considerados “exóticos” pelos italianos, também em lojas da região de Porta Palazzo (SEMI,
2005). Na banca dele, pode-se encontrar produtos de preços variáveis entre 5 e 30 euros. Se
Ablou opta pela venda exclusiva de produtos artesanais senegaleses, Ibrahima e Masamba,
que também comercializam peças vinda do Senegal, disponibilizam itens mais diversificados.
O primeiro, que, entre todos, vende peças de menor preço e da maior variedade, tem na banca
uma significativa quantidade de produtos de origem chinesa adquiridos na Itália, enquanto o
segundo, assim como Maisa, compra e revende itens produzidos no Oriente, especialmente na
Tailândia.
Foto 17 - Banca de Ibrahima Diajne em Via Mameli, quase esquina com Largo Borgo Dora.
Esses comerciantes, diferentemente dos que trabalham em Largo Borgo Dora, atuam
sem parceria e realizam sozinhos tanto a montagem das bancas quanto a venda das
mercadorias. Essa situação não significa, como no caso de Cheikh Lô, que eles tenham
exclusividade nas práticas de venda. Assim, pode acontecer que outro ambulante ou amigo
159
assuma o papel de vendedor para viabilizar as transações. O fato de que os itens
disponibilizados não requeiram um conhecimento específico, além de seus preços, e não
correspondam a um valor econômico alto, viabiliza um certo desapego por parte dos
comerciantes, os quais podem deixar, ou mesmo pedir a terceiros, de assumir seus lugares.
Esse contexto pode se verificar não somente quando o ambulante deve se ausentar,
precisando, então, de alguém que o substitua, mas também quando ele está presente. Nesses
casos, os donos das bancas podem estar realizando alguma outra atividade (como almoçar ou
conversar com alguém) ou estarem desocupados e pedir, de forma mais ou mesmo explícita,
para que o outro efetue a transação. Essa situação, enquanto modalidade de interação
específica, é viabilizada para estreitar e consolidar relações de afeto e confiança, e pode
resultar em transações performáticas por parte de quem assumiu o lugar de vendedor, como
forma de contraprestação à postura de cordialidade dos proprietários legítimos das bancas158.
Como veremos em seguida, essa abertura em permitir, ou mesmo esperar, que o outro ocupe
esse lugar caracteriza parte das modalidades de venda dos senegaleses no Balôn.
Analisaremos no item sucessivo a atuação dos vendedores que atuam informalmente e
ilegalmente, os quais compartilham esse espaço. Esses não correspondem somente aos que
praticam sistematicamente o comércio dos produtos chineses, falsificados ou não, que
representam maioria, mas também, em menor quantidade, aos ambulantes que iniciam suas
atividades comerciais e se formalizam sucessivamente, ou ainda os que, esporadicamente, as
realizam para integrar suas rendas com peças artesanais ou usadas.
5.2 Aqui e lá: espaço e tempos de atuação
Entre as 10 horas da manhã e meio dia, numerosos ambulantes chegam na feira com
grandes bolsas carregadas nas costas e permanecem por um tempo conversando entre eles ou
com vendedores já instalados, para depois estender tecidos no chão e dispor suas mercadorias.
Posicionados no recorte “vernacular” (ZUKIN, 2000) de Via Mameli, na esquina dessa última
com Via Lanino159, ou na quadra inicial que faz esquina com Piazza della Repubblica, os
158 Essa situação de cordialidade aconteceu também comigo em diversas ocasiões durante a pesquisa, com os
colaboradores com os quais mais trabalhei. 159 Área privilegiada por recolher o tríplice fluxo de passeantes que circulam por Canale Carpanini, Via Mameli
e Via Lanino.
160
vendedores que atuam informalmente e ilegalmente expõem suas mercadorias chinesas e
contrafeitas de maneira ordenada. A disposição dos ambulantes é variável nesses espaços:
depende da disponibilidade dos lugares, que podem ser ocupados por outros vendedores; das
modalidades de fiscalização dos guardas e também da posição do sol. A alocação dos
comerciantes “abusivi”, nesse sentido, pode mudar não somente de um sábado para o outro,
mas também durante o mesmo dia: em relação à trajetória solar, por exemplo, no inverno os
deslocamentos acompanham os lugares ensolarados de um lado para outro de Via Mameli, e,
no verão, acontece o contrário, já que são preferidas as áreas de sombra. Em relação à
fiscalização, quando, por exemplo, está sendo realizada em uma área, os ambulantes se
movem para outra, podendo, inclusive, ser solicitados pelos mesmos guardas a se reinstalarem
em outros pontos da feira. Sobre as modalidades de atuação discricionárias dos Órgãos de
Segurança Pública e as dinâmicas de interação com os ambulantes “abusivi”, aprofundaremos
em seguida. Por enquanto, sinalizamos como a escolha dos lugares de atuação por parte dos
vendedores é o resultado de dinâmicas conjuntas entre “abusivi” e guardas, que constroem,
juntos, parte da “fisionomia” do mercado. Essa construção conjunta é típica do Balôn e não se
verifica em nenhuma outra feira da cidade160.
A intermitência da presença dos ambulantes se percebe não somente no espaço, mas
também no tempo. Em uma perspectiva temporal mais extensa, anualmente, se percebe que
aqui, como em Largo Borgo Dora, os meses de agosto, janeiro, fevereiro e março registram o
menor número de presenças, enquanto, diariamente, existem horários específicos de atuação.
Como se disse acima, esses vendedores começam a trabalhar mais tarde do que os ambulantes
que atuam formalmente (após às 10h) para driblar a fiscalização matinal, que representa uma
atividade rotineira da Vigilância Pública. Começar a vender nesse horário pode também
representar uma escolha para aqueles vendedores que comercializam seus produtos na sexta-
feira à noite no centro da cidade, próximo de cinemas, bares e restaurantes do centro, os quais
optam por descansar na primeira parte da manhã. Uma vez instalados, os vendedores
costumam trabalhar até o começo da tarde e, entre às 14 e 15h, recolhem as suas mercadorias
e, em sua maioria, se deslocam até Sandaga, para aproveitar o fluxo de pessoas que circulam
pelo centro, quando, sendo que as lojas estão abertas, há um grande número de passeantes
160 A situação de tolerância ao “abusivismo” que se verifica em Porta Palazzo é oposta àquela relatada, por
exemplo, por Riccio (2007) em Rimini, cidade litorânea e turística do centro da Itália, onde é perseguido por
meio de campanhas de informação ao turista. Aqui, esse último é convidado a não realizar compras com
ambulantes que trabalham informalmente por meio de placas expostas em bares e restaurantes, que ilustram uma
mão que segura um isqueiro do qual sai uma chama em forma de diabo com a escrita “atenção” em quatro
idiomas: “Não compre com venditori abusivi: você faria um péssimo negócio” (2007: 123).
161
pelas ruas161. O fim de semana, de fato, especialmente o sábado, é o dia que viabiliza o maior
ganho para os ambulantes. Dividir as presenças entre a feira Balôn e o centro da cidade pode
também acontecer em outros horários dependendo da fiscalização: há caso em que se inverte a
ordem de presenças ou pode haver mais deslocamentos e reposicionamentos entre as duas
áreas no mesmo dia.
No panorama desse fluxo de presenças intermitentes, o elemento que é mais relevante
para a configuração dos ambulantes na feira é a ação dos guardas municipais. Se esses últimos
conhecem lugares, modalidades e tempos de atuação dos vendedores “abusivi”, o contrário
também é verdadeiro, já que os ambulantes senegaleses não somente sabem os horários de
fiscalização e os percursos que costumam trilhar os fiscais, mas também as áreas urbanas de
competência de cada um deles162 e seus horários de pausa. Esses conhecimentos,
determinantes para viabilizar as vendas sem serem prejudicados, são observados nas
interações cotidianas com os Órgãos de Segurança, mas são também adquiridos e
compartilhados entre os próprios ambulantes. A modalidade coletiva de construção e
preservação desses saberes se reflete também nas práticas utilizadas para se esquivar dos
policiamentos. De fato, quando se verificam as fiscalizações, ou há possibilidade de isso
acontecer, os “abusivi” operam em grupo.
Certa vez, estava junto com Pape Kâ e outros vendedores no trecho “vernacular”
(ZUKIN, 2000) de Via Mameli. Ele estava oferecendo uma dezena de bolsas contrafeitas,
dispostas sobre um tecido no chão. Durante uma conversa, me virei em direção a um
senegalês, dando-lhe as costas, para responder a uma pergunta e, logo que voltei para a
posição inicial, a banca dele tinha desaparecido, assim como as dos ambulantes senegaleses
próximos. Pape estava terminando de fechar a sua grande bolsa que continha suas
mercadorias: “o que acontece?”, perguntei, “estão vindo os guardas”, disse ele; “onde? Não
estou vendo”, respondi, “me ligaram os vendedores que estão no começo da rua”. Pape e os
outros ambulantes permaneceram um tempo parados conversando, depois tocou o telefone e a
mesma pessoa que o tinha advertido antes lhe disse que os guardas tinham voltado atrás e ido
em direção à praça. Pape e os outros, então, voltaram a dispor seus telões no chão e suas
peças, da mesma forma como estavam colocadas anteriormente.
A solidariedade nesses contextos, prescrição moral primária pelos senegaleses,
funciona como um dispositivo de defesa que o grupo aciona com a finalidade de proteger os
161 Na Itália, as lojas estão abertas aos sábados, o dia inteiro, e fecham na segunda-feira. 162 Pois a cada grupo de vigilantes é designada uma região específica.
162
sujeitos que o compõem163. Pertencer à rede que constitui o grupo é, então, uma prerrogativa
fundamental para minimizar os riscos dessa prática comercial, que pode prejudicar os
senegaleses recém-chegados, os quais não somente precisam se engajar nessas redes, processo
que demora tempo, mas também adquirir habilidades específicas. Velocidade, atenção,
agilidade - qualidades que Layle Sall também individua nos ambulantes senegaleses que
atuam informalmente em Paris e as define como “capital físico” (2010: 72) - são prerrogativas
indispensáveis que nem todos os vendedores têm ou são dispostos a adquirir, e contribuem
também a determinar a faixa etária desses comerciantes, quase todos jovens (entre os 20 e os
35 anos)164.
O “tira e põe” das mercadorias nos dias mais “difíceis”, como costumam dizer os
vendedores, pode se verificar 5, 6, 7 vezes ao longo da estadia na feira, que dura, em média,
de 4 a 5 horas. Serem caçados e buscar estratégias para vender sem ter as próprias
mercadorias apreendidas representa parte fundamental do trabalho desses vendedores. Mas se
as fiscalizações são mais rigorosas em outras áreas da cidade, no Balôn são mais flexíveis ou,
como se disse, discricionárias.
Na feira, além das fiscalizações matinais, que são rotineiras em qualquer mercado da
cidade, os Órgãos de Segurança Pública atuam pontualmente quando há algum evento
político, como manifestações, que requerem um maior patrulhamento da região165, a partir das
denúncias de outros comerciantes ou residentes, que podem eventualmente chamar os guardas
municipais para pedir a “remoção” de alguns vendedores; e, ainda, em situações de
patrulhamento periódicas, durante as quais, como se comentou anteriormente, a atuação da
Segurança Pública é realizada de forma performática (com a presença ingente da Policia
Civil, noticiada pela mídia local) para responder publicamente ao pedido de “segurança”
avançado pelas associações de comerciantes e de moradores, os quais pressionam
constantemente as instituições para que sejam tutelados da “criminalidade” que caracterizaria
o bairro166. Como dissemos acima, porém, a fiscalização corriqueira no mercado é realizada
de forma discricionária, pela concepção que a prefeitura tem do bairro como “amortecedor
163 Essa modalidade caracteriza a prática de venda informal e ilegal dos senegaleses e padroniza a relação desses
com as fiscalizações conduzidas pelo Órgãos de Segurança, assim como mostram etnografias realizadas em
outros contextos (STOLLER, 2002; SALL, 2010; BAVA, 2002; TEDESCO e KLEIDERMACHER, 2017). 164 Nesse sentido, lembramos a narrativa do senhor Demba que, não tendo mais condições de exercer essas
qualidades, pela idade mais avançada, escolheu modificar a sua prática de venda. 165 É preciso destacar que Porta Palazzo, sendo percebido pela opinião pública como espaço popular e
multiétnico no qual o controle do Estado seria mais frouxo, é lugar de atuação privilegiado dos grupos
anárquicos torinenses e, por isso, área de intensas e frequentes mobilizações políticas por parte dos grupos de
extrema esquerda da cidade. 166 Sobre esses eventos performatizados da vigilância no Balôn, ver Durando (2010).
163
social”, que viabiliza uma postura institucional excepcional, com a implantação de políticas
públicas específicas, como a criação de mercados had hoc, antes institucionalizados na área
de Porta Palazzo e, sucessivamente, transferidos para outras áreas urbanas da cidade167.
Considerando esse contexto, então, as atuações performáticas dos Órgãos de Segurança
Pública funcionam, aos olhos da opinião pública, como medidas compensadoras da postura
“tolerante” e concessiva normalmente adotada168.
A “tolerância” dos guardas, na dimensão cotidiana do trabalho na feira, varia
dependendo das situações: tende a diminuir nos contextos de atuação pontual acima citados e
a aumentar nas situações de patrulhamento corriqueiro. Outras variáveis que regulam a
discricionariedade são: por um lado, a tipologia de produtos comercializados - sendo que há
uma maior tolerância em relação aos produtos usados e artesanais, e uma restrição em relação
aos objetos novos, principalmente contrafeitos -, por outro lado, a modalidade de interação
individual também incide na prática discricionária, sendo que alguns guardas atuam de forma
mais rigorosa e outros menos. Essa variável define também as relações que se estabelecem
entre guardas e vendedores, as quais podem resultar em arranjos extraformais como, por
exemplo, quando os fiscais sugerem aos ambulantes de mudar o lugar de venda ou não atuar
em determinados horários e circunstâncias169. Nesse sentido, por exemplo, em uma ocasião,
de manhã, no Balôn, a Segurança Pública estava se dispondo no espaço para fazer o
167 O surgimento periódico de mercados informais, os conflitos entre vendedores “abusivi”, guardas e
comerciantes/moradores locais organizados em associações junto às divulgações alarmistas (e frequentemente
xenófobas) da mídia local padronizam as dinâmicas sociais de Porta Palazzo. Esse bairro, nesse sentido, “gesta”
ciclicamente novas feiras de mercadorias usadas que passam, depois, a serem institucionalizadas e transferidas
para outros bairros. O ciclo de criação de novos mercados é mais intenso nas fases de crise econômica. Durante o
trabalho de campo, por exemplo, acompanhando meus colaboradores de pesquisa, observei o processo de
formalização de um novo grupo de vendedores, que começaram a trabalhar informalmente aos domingos no
Balôn e em Piazza della Repubblica e depois foram deslocados pela prefeitura para outra área urbana, onde
passaram a integrar uma feira formal chamada “Bazar Project”, que tinha se constituído através do mesmo
processo. Em 2009, de fato, esse mercado tinha surgido informalmente em Piazza della Repubblica, foi
institucionalizado e sucessivamente transferido. Uma etnografia da feira “Bazar Project”, quando sediada em
Porta Palazzo, foi realizada por Francesca Carbone e resultou na dissertação de mestrado “Le “marché de
dimanche” à Porta Palazzo: um espace d´émersion des exclus du Marché” (2013). 168 Como Vera Telles (2009) afirma a partir das próprias observações e de outros autores (Ruggiero e South,
1997; Peraldi, 2007; Tarrius, 2002), a cidade contemporânea é lugar de “transitividade” entre o legal, ilegal e o
formal e informal (2009: 153) e, nesse sentido, o bairro de Porta Palazzo representa um lugar privilegiado para
observar essas dinâmicas. 169 Uma situação parecida foi observada por Sall (2010) em Paris, especificamente no contexto da venda
ambulante na região do Palácio de Versailles, onde o comércio senegalês se articula de maneira informal por
meio do que ele define como uma “ordem social negociada” entre guardas e segurança pública. Com essa noção,
o autor entende: “une série d’accords tacites ou explicites entre différentes catégories d’acteurs pour gérer au
mieux, selon leurs intérêts réciproques, l’occupation d’un espace qui acquiert souvent le statut de territoire,
puisqu’il est réordonné, requalifié et même redéfini, ne serait-ce qu’au niveau symbolique, par ceux qui se
l’approprient et l’occupe”(2010:68). No caso etnografado por Sall, o acordo consiste no fato de que os
comerciantes senegaleses não devem ultrapassar a porta de entrada ao castelo e devem agir expulsando
comerciantes de outras nacionalidades, prática que reforça o processo de etnicização desse espaço.
164
patrulhamento durante uma manifestação. Assim, telefonei a Pape para alertá-lo e ele me
respondeu que já sabia da situação, porque tinha sido informado por um guarda na semana
anterior. A construção desse tipo de relação com os guardas municipais representa um aspecto
facilitador do trabalho comercial que não são todos os vendedores que conseguem viabilizar:
falar fluentemente a língua italiana, acumular presenças na rua que proporcionem um contato
sistemático com os vigilantes, adquirir um certo savoir-fair na comunicação com eles são
aspectos imprescindíveis, que se constroem com a experiência e com o tempo de trabalho.
Consequentemente, também nesse contexto, a “ancianidade” na praça dos comerciantes se
torna um elemento que atua em termos hierarquizantes. A importância desse diacrítico nas
dinâmicas de ocupação do espaço e na organização social dos vendedores é apontada também
por Sall (2010) no contexto parisiense.
Se a relação com os Órgãos de Segurança Pública é pautada por uma postura
discricionária desses últimos, não significa que não seja percebida, pelos vendedores, como
invasiva e, eventualmente, violenta e ofensiva. Certa vez, no Balôn, Pape estava com sua
mercadoria recolhida na sua grande bolsa e, sentado ao lado de um outro senegalês atrás de
sua banca, estava ajeitando-a para conseguir fechar o zíper. Uma dupla de vigilantes estava
passando, parou na frente dele e um disse: “mas vai embora! Te falamos isso cinco vezes hoje,
e ainda você está aqui?”. A afirmação criou uma situação de constrangimento coletivo, já que
foi feita em voz alta, e todas as pessoas em volta silenciaram. Pape respondeu que estava
somente arrumando as suas coisas e os vigilantes rebateram: “já fomos bonzinhos porque não
te confiscamos as mercadorias, e você continua aqui?”. Pape se encolheu, visivelmente
nervoso. Um vendedor senegalês lhe disse, em wolof, para se acalmar e deixar pra lá. Após
isso, os guardas se afastaram e Pape foi embora. Acompanhei-o até a praça próxima e ele,
enfurecido, me disse: “São uns filhos da puta, não estava fazendo nada, só estava ali
sentado!”.
Se a “tolerância” dos vigilantes e os arranjos extraformais podem, em algumas
circunstâncias, facilitar o trabalho de venda, abrem espaço para uma qualificação de ordem
pessoal para com o outro. Nessa dimensão, a assimetria da relação de poder institucional é
deslocada para outro campo de significação que pode resultar em práticas de humilhação e
ataque pessoal, como no caso acima citado, onde os guardas intimam Pape a abandonar o
espaço público se autodefinindo como “bonzinhos” em oposição a ele, tido como “caradura”.
Considerando que o orgulho (jom) e a discrição (souture) são valores centrais para os
senegaleses, um episódio como esse, corriqueiro na dinâmica das interações cotidianas com a
Segurança Pública, marca significativamente a autoestima dos vendedores. Nesse sentido, a
165
venda “abusiva”, principalmente de produtos contrafeitos, além de ser considerada por eles
uma prática comercial perigosa, pois, quando sancionada, pode prejudicar a renovação do
visto de permanência, é tida, por muitos, como “dura” e “humilhante”. A “dureza” desse
trabalho é reforçada pela experiência de apreensão das mercadorias e por todo o contexto que
define a atividade de fiscalização. De fato, quando essa é realizada, não implica somente no
confisco dos produtos, mas pode comportar perseguição e, eventualmente, ameaças e agressão
física dos vendedores, com a possibilidade, a segunda de suas reações, de desembocar em
denúncias e processos por “resistência a público oficial”. Esses contextos se verificam com
frequência e a perda sistemática das mercadorias representa um fator central na construção
dessa prática comercial: os ambulantes, de fato, como veremos, precisam ciclicamente
reorganizar o próprio trabalho, com consequências na tipologia de produtos tratados e na
maneira de expô-los.
O comércio informal e ilegal de mercadorias, nas narrativas dos que a praticam, é
tendencialmente apresentado como uma prática econômica “residual”, única opção de renda
moralmente aceitável em situações de desemprego. O aspecto residual desse trabalho é
acionado por meio de uma expressão padrão em relação às práticas coercitivas dos guardas:
“eles (os Órgãos de Segurança Pública) querem que a gente roube ou venda droga”,
costumam comentar os ambulantes quando sofrem ou presenciam uma fiscalização. Essa
afirmação é mobilizada para legitimar um trabalho considerado informal e/ou ilícito pela
legislação italiana, usando, como termo de comparação, práticas tidas como mais graves e
reprováveis tanto do ponto de vista legislativo quanto pela perspectiva moral que eles
compartilham. Dessa forma, a narrativa promove um deslocamento da noção de
“informal”/“ilícito” associada à venda “abusiva” para a dimensão residual de atividades que,
segundo os meus interlocutores, corresponderiam ao “mal menor”. Ao mesmo tempo, a
afirmação inverte o sentido da coerção articulando uma ameaça indireta, porque formulada na
terceira pessoa (“eles querem”), pautada pela ideia segundo a qual coibir a atividade
informal/ilegal de venda por parte dos guardas os impele a atuar “roubando” ou “vendendo
droga”. Se, do ponto de vista moral, para os senegaleses, essas duas últimas práticas são
incorretas, a venda “abusiva” não fere as prescrições. O que pode ser alegado,
ocasionalmente, é que desrespeitar a ordem jurídica não representa uma atitude correta, pois
pode ofender as prescrições do outro170. Por outro lado, porém, o consumo de tais produtos
170 Onde o “outro” tem um sentido individual e não institucional: esse tipo de transgressão à lei pode ser
considerado negativamente por ferir as regras às quais algumas pessoas se identificam (passeantes, donos de
lojas, comerciantes que trabalham formalmente), mais do que o Estado. Essa razão e a sua consequência prática,
166
pelos clientes funciona como elemento legitimador que balanceia a ideia de estar cometendo
uma infração. Apesar dos impasses que o trabalho comporta, a venda ambulante informal e
ilegal, como se comentou anteriormente, pode ser exercida como atividade econômica
privilegiada por tempos determinados ou ao longo da inteira estadia do migrante na Itália171.
5.3 Juntos ou separados? Partilhas e modalidades de venda
Se temos mobilidade de atuação no espaço e intermitência das presenças no tempo,
como vimos acima, a atuação flexível dos vendedores informais se explicita também no modo
de construção das bancas e nas formas de venda. Utilizar estratégias coletivas, como operar
em grupo para evitar as fiscalizações, representa uma modalidade que pode também ser
acionada pelos ambulantes para a apresentação dos produtos e a realização das vendas.
Durante a pesquisa, uma das formas que utilizei para compensar a colaboração dos
meus colaboradores era adquirir a mercadoria deles. Pape Kâ foi um dos meus informantes
privilegiados e a minha preocupação era comprar as suas peças para que eu pudesse contribuir
na composição da sua renda. Um dia, como em muitas outras situações, ele estava junto com
outros vendedores atrás de uma grande banca, composta por diversos panos, encostados aos
outros, sobre os quais estavam dispostas mercadorias do mesmo tipo: bolsas e jaquetas. Me
interessei por uma bolsa que estava na frente dele: “Acho que compraria essa, mas... é sua?”,
lhe perguntei, “é a mesma coisa”, respondeu, sorrindo. Não esperava essa resposta, fiquei
desnorteada e, ainda que, frente à essa afirmação, tenha me sentido quase mesquinha na
minha intenção de querer beneficiá-lo individualmente, prossegui: “mas... eu gostaria de
comprar com você... se não for sua, essa peça, você vai receber igualmente?”. “Essa peça não
é minha, eu a vendo pra você, se ele (o proprietário da peça) quiser me dar alguma coisa, tudo
bem”, concluiu.
isto é, a perseguição legal e a condenação por parte da opinião pública, representaram o motivo central pelo qual
o marabuto, que deu respaldo aos primeiros migrantes em Turim, vetou essa prática. 171 Como já relatado anteriormente, os ambulantes senegaleses que trabalham de maneira informal ou ilegal no
Balôn, assim como também alguns vendedores que conduzem formalmente as suas transações “na praça”, têm
uma trajetória profissional heterogênea. “Fazer business” para garantir uma renda, como eles afirmam - o que
envolve se engajar em diversos tipos de transações nas dimensões licitas e ilícitas do mercado (desde mediações
para compra-venda de produtos variados até a exportação de mercadorias para o Senegal) – comporta, como
Telles afirma, transitar “nas fronteiras borradas entre o informal e o ilegal ao longo de percursos descontínuos
entre o trabalho incerto e os expedientes de sobrevivência mobilizados conforme o momento e as circunstâncias”
(2009: 156).
167
Essa situação ilustra uma dinâmica central das relações socioeconômicas entre
senegaleses nesse contexto de venda e precisa ser acompanhada por outros elementos
etnográficos para ser analisada corretamente. Adiantamos que a fala de Pape, segundo o qual
comprar uma mercadoria dele ou de outra pessoa seria “a mesma coisa”, não sinaliza que os
vendedores tenham uma concepção coletiva de propriedade dos produtos, mas, como
veremos, indica que, no momento da transação, quem realiza essa última e o dono da peça
podem assumir o mesmo papel. Ilustrarei as lógicas dessa dinâmica sucessivamente. Por
enquanto, enfatizamos que existem situações nas quais os vendedores juntam as próprias
mercadorias em uma única banca e podem exercer a venda das próprias peças assim como a
de outros ambulantes presentes ou não “na praça”.
A escolha de comercializar as próprias peças na modalidade coletiva está ligada,
principalmente, às apreensões. De fato, quando um vendedor perde os seus produtos, de
maneira geral, não tem um capital de giro suficiente para repor o mesmo número de itens
confiscados, devendo, então, recomeçar a atividade com uma aquisição gradativa. Expor
poucas peças dificulta a venda, já que o cliente tem uma possibilidade de escolha restrita, por
isso a opção de se juntar a outros vendedores com o mesmo tipo de mercadoria. Essa situação,
além de se verificar como consequência das apreensões, pode acontecer quando o ambulante
está com pouco capital para ser investido ou, ainda, quando está começando a prática
comercial e deve, então, aprender seu funcionamento. Quando os ambulantes não possuem
muito capital a ser investido, outra opção é adquirir as mercadorias com outro vendedor e
comercializá-las em conjunto, sendo que os dois parceiros podem estar presentes
contemporaneamente ou não no momento da venda. Essas duas situações - o
compartilhamento do espaço com outros vendedores, comercializando a própria mercadoria
e/ou a mercadoria de outros, e, por outro lado, o compartilhamento da mesma banca e a venda
das peças adquiridas em parceria com um colega - caracterizam duas tipologias de transações
entre os ambulantes envolvidos que chamarei, respectivamente, de “troca comercial não
regulada” e “troca comercial regulada”, em que, por regulação, entendo a existência ou não de
acordos financeiros preestabelecidos. Em relação a esse último caso, o pactuado consiste no
investimento em conjunto para aquisição das mercadorias, situação que é regulada pelo
acordo financeiro de repartir o ganho após a venda. Em uma ocasião, por exemplo, estava
junto com Pape atrás de sua banca. Chegaram dois senegaleses e começaram a conversar com
ele. Enquanto isso, um cliente se interessou por uma peça e a barganha foi conduzida por um
dos senegaleses recém-chegados. Ao concluir a venda da peça, o senegalês que fez a
transação recebeu o dinheiro, o deu para Pape e foi embora. Surpresa pelo fato de que a
168
tratativa tinha sido realizada por um terceiro, Pape me explicou que era seu parceiro de
trabalho e que, sucessivamente, teriam dividido o ganho da venda.
Esse tipo de transação representa o único caso no qual, em relação à venda, há um
acordo financeiro para a repartição dos ganhos. De fato, em todas as outras situações, podem
existir prescrições ligadas à forma de conduzir as transações, mas não determinações de
ordem financeira preestabelecidas relativas à divisão da renda obtida. Falarei brevemente de
duas prescrições compartilhadas pelos vendedores e acionadas no contexto da
comercialização coletiva: na situação em que o cliente se interessa por uma mercadoria e não
interpela nenhum vendedor, quem começa e termina a venda é o dono do produto, sendo que,
então, a transação se constrói a partir do critério de propriedade da mercadoria. Quando, em
segunda hipótese, um cliente se refere a um dos vendedores para a aquisição de um item, a
transação é conduzida exclusivamente por ele, também se o cliente está interessado em uma
peça que não é de sua propriedade, mas de outro vendedor presente ou ausente. A partir dessa
situação, ninguém interfere na transação, a não ser para reforçar os argumentos apresentados
pelo vendedor que a está conduzindo – no caso acima citado, por exemplo, apesar da
propriedade das peças ser conjunta, Pape ficou observando o seu colega tratar e, em nenhum
momento, se intrometeu na barganha. Essa postura pode ser reconduzida a vários aspectos:
por um lado, a interferência de outros ambulantes no processo de venda poderia deixar o
cliente desconfortável por se sentir pressionado, o que seria improdutivo para o bom desfecho
da barganha; por outro lado, há um sentimento de respeito em relação ao comerciante que está
tratando, o qual não deve ser deslegitimado em público, situação que poderia ferir sua
dignidade (jom). Observamos também que as transações podem ser utilizadas pelos
ambulantes como forma de se auto-afirmar, realizando verdadeiras performances para
produzir prestígio (mana) frente aos outros vendedores do grupo.
Na situação que citamos acima, relativa à venda viabilizada pelo parceiro de Pape, mas
também em outros contextos observados, a transação na frente de outros vendedores se torna
uma ocasião para se mostrar, corroborada por risos e cumprimentos após a efetivação da
venda. Nesses casos, de vendas histriônicas, o prestígio (mana) do comerciante é ainda mais
fortalecido quando ele vende a mercadoria de outro vendedor, pois a transação feita para o
outro está ligada a um elemento central da dimensão moral dos senegaleses: a obrigação de
ajuda ou nimbale, em wolof (solidariedade). Esse representa, segundo os meus interlocutores,
o pressuposto central para a viabilização da prática de comercialização coletiva e, mais
especificamente, o critério a partir do qual é realizada a venda de mercadorias por terceiros.
“Nos ajudamos uns aos outros”, me relatou Pape para ilustrar essas dinâmicas. A noção de
169
“ajuda”, como comentado no capítulo anterior, é central nas lógicas e práticas senegalesas
também em outros contextos, enredando as relações sociais com parentes, amigos e
conhecidos. A “ajuda”, segundo meus interlocutores, representa uma “obrigação” quando a
pessoa explicita uma necessidade, mas também quando não o faz. Tal obrigação me foi
descrita assim:
Para qualquer pessoa que peça, mesmo que não seja um parente, tem que
dar; também se não pedir, mas você sabe que precisa. Ajuda é ajuda, porque
eu te ajudo em nome de Deus, não para ter um retorno, porque se você faz
isso para receber de volta, então não é ajuda. Mesmo se não te conheço,
tenho que te ajudar, porque se você é rico hoje e fica de mãos fechadas
amanhã, você vai para o inferno, aqui você tem que fazer estas coisas, que
Ele depois te paga172.
Segundo meu interlocutor, o ato de dar envolve quem oferece, quem recebe e Deus.
Se, em um primeiro momento, ele descaracteriza a “ajuda” como forma de troca, pois,
segundo a perspectiva sufi, esse ato deve ser desinteressado, sucessivamente a define em
termos de “dádiva” (MAUSS, 1974). Essa tem, como forma de retribuição garantida, a baraka
enviada por Deus. A disposição a “dar”, aqui explicitada em termos materiais, pode ser
definida como assistência, incluindo a disponibilização de bens imateriais, e deve ser exercida
também com desconhecidos, sendo, então, uma prescrição aplicável a todos173. Oferecer
“ajuda” remete, segundo alguns interlocutores, ao que eles definem como “cultura
tradicional”, isto é, ao conjunto de lógicas e práticas sociais que caracterizam a fase anterior
ao processo de islamização e de colonização e também à relação entre castas174. Enfatizada
por todos meus interlocutores, extrapolando diferenças de castas, étnicas e religiosas, a
disposição à “ajuda” é considerada a “atitude correta” a se tomar com o outro. Essa
disposição, definida também como “solidariedade”, caracteriza parte do discurso de
autorrepresentação dos senegaleses e é considerada como valor nacional. Sendo uma
172 Diário de campo, 23 novembro 2014. Essa narrativa é construída contrapondo valores positivos que, segundo
meu interlocutor, caracterizam o universo moral senegalês e valores negativos que qualificam a sociedade
ocidental. Ao valor da solidariedade, por exemplo, ele contrapõe o egoísmo dos toubab: “nós não fazemos como vocês que veem um mendigo na rua e viram o rosto do outro lado”, remetendo, assim, a uma postura negligente
e de descuidado com o outro como inaceitável. 173 Envolvendo também os toubab e pessoas de outras nacionalidades. A colaboração ao meu trabalho de
pesquisa, por exemplo, foi frequentemente definida nesses termos. Nas situações em que um informante me
apresentava a um colega ou amigo, seguia a solicitação de “me ajudar” respondendo às minhas perguntas e se
dispondo ao diálogo. 174 Segundo Piga, a obrigação de “ajuda” encontra ecos na lógica wolof de relação entre castas, onde os geer, que
pertencem ao grupo de pessoas originariamente nobres e livres, têm obrigação de agir com generosidade,
coragem e prodigalidade em relação aos neeno, grupo inferior, que presta serviços ao primeiro (2000: 34). Após
a islamização, porém, essa noção, que era associada ao ethos geer em relação aos neeno, se tornou uma
prescrição compartilhada por todos.
170
prescrição de caráter moral, perpassa diversas dimensões da vida dos migrantes. A
“solidariedade” entre senegaleses, no contexto de chegada, se expressa na esfera profissional,
mas também em relação à busca de moradia, à obtenção de visto de permanência, dentre
outros175. Essa mesma atitude fundamenta as relações com parentes, vizinhos, amigos e
conhecidos no Senegal. Como descrito anteriormente, de fato, o migrante, se considera e é
considerado como o provedor, tendo o dever de “sustentar os parentes”176.
No contexto das trocas comerciais que estamos analisando, o imperativo associado ao
dever ajudar é tão forte que pode prescindir de situações nas quais os sujeitos em jogo
estejam em conflito. Certa vez, por exemplo, Pape tinha se afastado de sua banca e, próximo
dele, estava instalado Amadou Thiam, outro vendedor com o qual ele tinha tido uma
desavença (os dois não se cumprimentavam). Quando se aproximou um cliente na banca de
Pape, Amadou se afastou de sua banca e foi conduzir a transação para ele.
Surge, então, essa questão: se a substituição do proprietário da mercadoria por outro
vendedor representa um dever de ordem moral, essa obrigação impacta a dimensão econômica
da troca? Isto é, quando um vendedor viabiliza uma venda para outro, é financeiramente
recompensado? Retomamos, assim, o primeiro caso citado nesse item: quando eu queria
adquirir uma peça que não era de propriedade de Pape e estava preocupada com o resultado
do benefício financeiro da compra, ele declarou que comprar um produto dele ou de outro
teria sido “a mesma coisa” e concluiu que, em relação ao ganho, talvez o proprietário lhe
“daria” algo. Em outra ocasião, Pape me explicou que, nesses casos, os proprietários das
mercadorias vendidas podem “dar de presente” para o ambulante que realizou a venda, “1 ou
2 euros”. O fato de que Pape caracterize a recompensa financeira com o termo “presente”
ressalta que não concebe essa transação como uma contraprestação de ordem econômica: a
que chamamos de “troca comercial não regulada” corresponde, então, para os senegaleses, a
um circuito de “dádiva” (MAUSS, 1974). A recompensa esperada, de fato, não é de ordem
financeira, mas moral: se espera que o beneficiário da venda, em uma outra ocasião, ajude da
mesma forma o parceiro que realizou a transação. A contraprestação, geralmente, é
caracterizada pela reiteração da “ajuda” recebida em forma de disponibilidade a tratar a
175 Em relação às práticas de solidariedade realizadas pelos comerciantes, por exemplo, Sall (2010: 71)
individuou que os vendedores que trabalham informalmente na área do Palácio de Versailles aplicam multas para
os comerciantes de outras nacionalidades que ocupam o mesmo lugar de venda e esse dinheiro é depositado em
um fundo comum compartilhado pelo grupo, a ser usado em caso de dificuldades materiais ou psicológicas de
seus membros (doença, hospitalização, morte de parentes no Senegal, etc.). 176 O termo “parentes” não inclui somente os consanguíneos, mas também os vizinhos e a rede de pessoas a estes
conexa. Essa noção é usada de forma “segmentar” (EVANS-PRITCHARD, 1940), pois, frente aos toubab, todos
os senegaleses e até outras pessoas oriundas da África se tornam “irmãos”.
171
mercadoria do outro. Não pagar a comissão da mercadoria vendida para o parceiro é, assim,
uma maneira de manter ativo o circuito da “dádiva” e não o transformar em troca,
sustentando, então, os vínculos de assistência recíproca. Tal dinâmica tem desdobramentos
estratégicos em termos comerciais. De fato, permite satisfazer os clientes garantindo uma
possível fidelidade e preservar uma certa liberdade de circulação dos vendedores, os quais,
por exemplo, podem se ausentar para se alimentar ou para controlar as áreas circunstantes. A
rede de vendedores, então, que pode ocupar vastas áreas, uma vez que os ambulantes se
dividem em grupos, se caracteriza por uma eficaz forma de proteção e comunicação, pois
alguns circulam enquanto os outros cuidam de suas mercadorias, podendo-se visitar uns aos
outros ou ainda se comunicar pelo telefone celular. É através desse tipo de comunicação e de
mobilidade no espaço que as informações surgem e circulam caso se verifique fiscalização
pelos Órgãos de Segurança Pública. De fato, o primeiro ambulante que percebe a presença
dos guardas municipais ou da polícia comunica aos demais, resultando no rápido
desaparecimento das bancas, que são “levantadas”, como dizem177. A “ajuda” entre
comerciantes se expressa também no caso dos recém-chegados, aos quais é ensinado o
trabalho (as regras vigentes no comércio de rua, quais mercadorias “funcionam”, onde se
abastecer, os riscos e as consequências da atividade em relação à fiscalização etc.). A
“solidariedade” tem, então, a função de respaldo, tanto em relação a elementos externos ao
grupo, como a atuação dos Órgãos de Segurança Pública, quanto internamente, manifestando-
se como forma de assistência recíproca, além de promover uma dinâmica nas relações de
reciprocidade que sustentam uma construção positiva de “pessoa”. Esse modelo é o mesmo
que estrutura a função e prática do “provedor”, compartilhada por todos os senegaleses
migrantes em relação às suas famílias de origem.
Na literatura socioantropológica, a dimensão da solidariedade associada ao
mouridismo é tida como traço principal da sociabilidade senegalesa e orienta grande parte das
etnografias realizadas em âmbito comercial178. O que temos percebido, porém, é que tal
177 A prática de venda coletiva é considerada, por vendedores que não atuam nesse contexto comercial, como
uma estratégia de atuação “pouco eficaz”. Em algumas ocasiões, ouvi dizer que além dos comerciantes se
fazerem concorrência reciprocamente, as apreensões, ao invés de colocar em risco uma pessoa, passariam a
penalizar o grupo todo. Essa postura, por parte de quem não compartilha esse tipo de trabalho, aponta que essa
prática de venda possui dinâmicas de funcionamento próprias e saberes específicos. 178 Essa perspectiva perpassa as produções relativas ao contexto europeu como as de Riccio (2001; 2007) e Bava
(2000; 2002; 2003; 2005), aquelas realizadas nas Américas, como a de Babou (2002), nos Estados Unidos, até as
mais recentes, no Brasil e Argentina. Nesse último contexto, no livro “A Imigração senegalesa no Brasil e na
Argentina: múltiplos olhares” (2017), organizado por João Carlos Tedesco e Gisele Kleidermacher, a noção de
“solidariedade”, associada à lógica murid, continua sendo apresentada como modalidade única de sociabilidade
entre migrantes. Há relatos em que esse modelo aparece tensionado (como no caso mencionado por Tilmann
Heil, no Rio de Janeiro), mas essas dinâmicas não são exploradas. Não queremos, aqui, negar a importância
172
dinâmica não garante necessariamente a “harmonia” (TEDESCO, KLEIDERMACHER,
2017: 15) das relações sociais entre os sujeitos que compõem o grupo, pois tem, como
veremos em seguida, uma recaída na dimensão política das interações. Primeiramente, o que é
preciso observar, e que se alinha com o imperativo moral da “ajuda” no sentido de
dar/oferecer algo para o outro, é que, no discurso dos meus interlocutores, a ênfase é dada no
dar e não no receber. De fato, nunca ouvi senegaleses fazerem reivindicações em termos de
recebimento, mas suas falas se constroem sempre deslocando o princípio de reciprocidade a
partir da dádiva realizada por si próprios e renovada ou não pelo outro: ninguém diz “eu
recebi ou não recebi”, mas “eu dei para ele” e “ele deu ou não deu para mim”. Assim, na
dimensão do discurso, para os senegaleses, a contraprestação corresponde à reiteração do ato
de dar por parte de quem recebeu, em que teremos, só como consequência não explicitada, o
retorno da ação para si (receber). Nesse contexto, segundo a lógica de meus interlocutores, os
valores de “dignidade”/“honradez” (ngor) e “prestígio” (mana), centrais da dimensão moral,
são conferidos a quem dá, a quem beneficia o outro, mais do que a quem recebe. Também
nesse contexto, então, existe uma flexão das práticas e das lógicas que converge na construção
e manutenção desses valores. Segundo essa perspectiva, o modelo apresentado acima se
constrói para preservar o valor da “ajuda” e para reiterá-lo segundo a lógica da solidariedade,
mas opera também legitimando a pessoa que “dá” dentro do grupo, a qual ganha um papel de
destaque. Nesse sentido, o ato de “dar” adquire uma função hierarquizante, se tornando um
dispositivo para a construção de sujeitos que, ao se beneficiarem mutuamente, se qualificam
como moralmente adequados, ganham “prestígio” e reforçam, assim, a própria posição dentro
do grupo. A dinâmica da solidariedade produz, paradoxalmente, uma ordem desigual dos
sujeitos que com essa operam, o que Marcos Lanna define como “reciprocidade hierárquica”
(LANNA, 1996)179.
Por outro lado, se a noção de solidariedade é de primária importância para entender as
dinâmicas sociais entre comerciantes e entre esses últimos e seus conterrâneos, a partir da
observação das práticas comerciais em campo, podemos afirmar que a tipologia de dádiva e
dessa perspectiva, mas pensamos que, após vinte anos de estudos sobre os processos migratórios senegalesas, as
análises deveriam superar esse paradigma no sentido de complexificá-lo. A necessidade de uma mudança
teórico-metodológica não surge a partir de questões teóricas, mas observando o campo. De fato, como ressaltado
também por outros pesquisadores - Leyla Sall, dentre todos -, as relações entre senegaleses se constroem também
em um sentido político. Considerando esse contexto, o trabalho que apresentamos tenta redirecionar o olhar
sobre essa temática, problematizando-a. 179 No artigo “Reciprocidade e hierarquia” (1996), Lanna demonstra a possibilidade teórica de sintetizar a lógica
da “reciprocidade”, assim como foi definida por Lévi-Strauss, com a de “hierarquia” definida por Dumont. A
partir da análise de dados etnográficos apresentados por Sahlins em “Stone age economics” (1972), o autor
mostra como esses dois aspectos, que a princípio podem ser considerados antitéticos, possam coexistir de forma
complementar.
173
estratégia de venda acima descritas, por exemplo, não pressupõem e nem garantem que as
relações de reciprocidade se realizem sempre de forma positiva. Essas, ao contrário, são
frequentemente interrompidas por dinâmicas nas quais um dos sujeitos viola as prescrições
com ações voltadas ao benefício individual180 utilizando escamotagens, como enganações e
trapaças, as quais, como já vimos nos casos citados por Khady Camara e Coumba Mbaye, são
corriqueiros na vida dos comerciantes. A “esperteza” (mousse) e a “arte da trapaça”, enquanto
elementos que compõem o ethos senegalês, são aspectos que tensionam esse modelo. Nesse
sentido, em Via Mameli, podem ocorrer confrontes entre comerciantes tanto na ocupação do
espaço quanto no processo de venda. Em relação à primeira questão, por exemplo, presenciei
algumas situações nas quais os meus colaboradores de pesquisa chegaram mais tarde do que o
de costume ao Balôn e não conseguiram se instalar pela presença massiva de outros
vendedores senegaleses. Nesses casos, os meus interlocutores associavam a impossibilidade
de inserção no espaço ao fato de que os comerciantes sediados eram recém-chegados, ou mais
novos “na praça” do que eles, sendo que, por um lado, os desrespeitavam enquanto sujeitos
estabelecidos há mais tempo, e, pelo outro, mostravam pouca solidariedade e agiam de forma
egoísta. Esses contextos apontam para o fato de que existem disputas entre vendedores
articuladas em termos “geracionais”: a legitimidade de atuação na feira é associada ao tempo
de vivência migratória no território, lógica que determina a existência de um grupo de
“estabelecidos” versus “outsiders” (ELIAS, 2000). Essas dinâmicas podem ser verbalizadas
em narrativas, que frequentemente escutei, segundo as quais os recém-chegados “estragariam
o mercado”. Essa fala é acionada tanto por vendedores “abusivi” em situações específicas,
como a descrita acima, quanto por aqueles que comercializam formalmente mercadorias
similares.
Em relação a episódios de conflitos entre comerciantes, o que desarranja as relações de
reciprocidade é, principalmente, o desrespeito das normas que regulam a concorrência. De
fato, como comentado acima, existem acordos tácitos entre os vendedores, os quais garantem
uma ordem e uma distribuição équa dos recursos. Uma das prescrições que consegui
individuar, relatada acima, determina que, quando o cliente pede uma mercadoria para um
comerciante, a transação deve ser conduzida por ele até o fim, sem interferências de outros
vendedores. A transgressão dessa regra é a que gera mais tensões entre comerciantes que
compartilham o mesmo espaço e pode ser realizada de várias maneiras. Certa vez, por
180 Por “benefício individual” não queremos asserir que os proveitos eventualmente obtidos não sejam repartidos
(fato que quase sempre ocorre entre familiares e amigos), mas apontamos para práticas autocentradas que
escapam às prescrições que deveriam ser observadas no momento das transações.
174
exemplo, Pape Kâ estava à procura de uma jaqueta por um cliente: esse último estava
interessado em uma peça por ele exposta, mas a queria de outra cor. Pape, então, lhe garantiu
que teria trazido a jaqueta que ele queria em uma hora e se ausentou para adquiri-la nas lojas
chinesas próximas. Enquanto isso, outro comerciante lhe vendeu a peça. Quando Pape
retornou, ficou indignado: o comerciante que efetuou a transação se justificou dizendo que
não tinha entendido que ele teria se afastado para comprar a mercadoria e que o cliente não o
informou. A malícia, a manipulação das informações, o uso da esperteza para camuflar a
trapaça podem, como no caso citado, amenizar o embate entre comerciantes. Frente à
justificativa e à impossibilidade de contestar a palavra dada pelo parceiro, nessa ocasião, Pape
se calou, mas quando o golpe é dado explicitamente, a situação pode mudar. Presenciei um
outro caso em que um ambulante se intrometeu na barganha do colega para vender a sua
própria mercadoria e, logo depois que o cliente se afastou, essa postura gerou uma briga que
envolveu o grupo todo. Esse tipo de situação não é comum - foi a única vez que assisti a um
embate direto entre vendedores, com acusações que chegaram ao limite da agressão física -,
primeiro porque o desrespeito explícito das regras expõe o infrator para uma sanção coletiva
imediata e segundo pelo fato de que a verbalização dos conflitos “na praça” representa uma
exposição pública negativa que lhes é prejudicial.
Percebemos, então, que o padrão solidário é complexificado e tensionado por
elementos que hierarquizam as relações. Essas passam a se redefinir situacionalmente por
meio de negociações pautadas por práticas de reparação da “confiança” e da “honorabilidade”
que se dão no tempo, como veremos no item subsequente. Por outro lado, a solidariedade ou
obrigação de ajuda produz hierarquias pautadas na noção de “prestígio”, a partir da qual quem
“dá” passa a ocupar uma posição privilegiada, tanto do ponto de vista moral quanto político,
dentre os sujeitos em jogo.
5.4 “O que você vende?”/” “O que você quer?”: mercadorias diversas para
contextos múltiplos
Como pudemos observar nos itens anteriores, a maioria dos ambulantes que trabalham
formalmente comercializam, além de bijuteria, artesanato senegalês que pode ser
175
acompanhado por peças oriundas de outros países, como a Tailândia, por exemplo181. Esses
itens produzidos no Senegal - que incluem principalmente tambores jambé, cestaria, máscaras
e estatuetas de madeira zoomórficas (girafas, leões, elefantes etc..) e antropomórficas
(mulheres com cargas na cabeça e turbantes, representações da maternidade com mulheres
segurando crianças etc...) - são escolhidos junto a outras mercadorias em madeira
confeccionadas principalmente em oriente para corresponder à demanda da “moda étnica”.
Esse nicho de mercado é amplo na região de Porta Palazzo e na feira Balôn pelas
características sócio-históricas do bairro, mas a escolha desse gênero de mercadorias por parte
dos comerciantes senegaleses se verifica também em outros contextos, como em Nova
Yorque, onde esses itens são chamados de “wood” (STOLLER, 2002), em Paris (SALL, 2010)
ou ainda na Ilha de Cabo Verde (ROVISCO, 2017). Segundo Rovisco (2017), que se refere à
comercialização desses produtos nas lojas de Boa Vista:
Na sua maioria, estes objetos constituem ficções visuais (Steiner 1994:35)
produzidas no estilo que Ladd definiu, servindo-se de um texto de Wole
Soyinka, como “neo-tarzanismo”: “na oversimplified, fictionalised meta-
narrative of Africa which must include leopardo skins, zebra stripes, dark
wood and tal thin womwn” (Ladd, 2012: 202).
Tal como foi assinalado por Freire-Medeiros e Castro a propósito das lojas
de souvenires do Rio de Janeiro, também estas lojas tendem a eliminar
distâncias geográficas e cronológicas, lembrando os wonder cabinets, pelo
seu caráter heterotópico assente na construção de um “lugar-outro” exótico
(Freire-Medeiros e Castro, 2007; ver também Venkatesan 2009).
(ROVISCO, 2017: 17).
O fato de que muitos clientes desconheçam a real proveniência dos artefatos é usado
em benefício próprio pelos comerciantes que trabalham no Balôn, os quais misturam peças
senegalesas com itens de outras proveniências e tendem a apresentá-los utilizando o discurso,
e a estética, pan-afracanista. Essa estratégia de manipulação, que ainda uma vez se articula a
partir da noção de “esperteza”, é acionada de forma parecida também pelos vendedores
senegaleses em Boa Vista (ROVISCO, 2017: 21)182.
Se esse gênero de mercadorias disponibilizado pelos comerciantes acima citados não
muda ao longo do ano, as tipologias de produtos comercializados pelos ambulantes que atuam
181 Não nos referimos aqui à atuação de Cheikh Lô, que, como já comentado, não comercializa artesanato, mas
antiquário africano. 182 Sobre a comercialização e circulação de objetos de arte africanos a partir da Costa do Marfim, ver a
etnografia “African art in transit”, de Christopher Steiner (1993), um dos trabalhos mais importantes no contexto
dos estudos africanos segundo Paul Stoller (1994) e, do mesmo autor com Lucien Taylor e Ilisa Barbash, o
documentário “.In and Out of Africa”(1992), sobre o mesmo tema.
176
informalmente podem variar e o padrão de flexibilidade que determina as mudanças de artigos
obedece, como veremos em seguida, a lógicas e contextos específicos.
O grupo de comerciantes “abusivi” opta pela venda de mercadorias de produção
chinesa privilegiando, como se disse, bolsas, jaquetas, bonés, tocas, luvas, blusas, óculos de
sol e capas de celular. A escolha desses itens é compartilhada, também, por muitos dos
ambulantes que trabalham formalmente. De fato, como se comentou anteriormente, em feiras
de bairro é comum encontrar essas peças comercializadas por senegaleses. No contexto do
mercado Balôn, tais produtos são escolhidos dependendo da estação: no inverno, são
disponibilizadas jaquetas, tocas e luvas e, no verão, óculos de sol; enquanto bolas, bonés e
capas de celulares são comercializados em qualquer momento do ano. Na transição da estação
fria para quente, e vice-versa, os vendedores costumam expor mercadorias para ambas as
situações (ver foto abaixo) e, na medida em que a meia-estação passa e as temperaturas ficam
mais estáveis, há uma adequação definitiva dos produtos correspondentes.
Foto 18 - Banca na transição da estação de inverno para primavera.
Além das mudanças climáticas, outra variável que determina a escolha dos produtos é,
como se comentou, a realização das apreensões por parte dos Guardas Municipais. Certa vez,
por exemplo, um ambulante estava comercializando capas de celular, que foram confiscadas
durante uma fiscalização. Após isso, ele não disponibilizava de verba suficiente para repor a
177
mercadoria com o mesmo número de peças e, sendo que para vender esse artigo é preciso ter
uma grande variedade de modelos e cores, ele optou por mudar o gênero dos itens e comprou
óculos de sol, bolsas masculinas e bonés (ver fotos abaixo).
Foto 19 - Banca antes da apreensão.
Foto 20 - Banca depois da apreensão.
178
Essas peças são adquiridas em lojas de propriedade chinesa instaladas, em grande
número, no bairro de Porta Palazzo, as quais atendem clientes que compram ao varejo e ao
atacado. Esses últimos, para obter preços como atacadistas, não precisam apresentar
documentos específicos. O perímetro urbano que cerca Piazza della Repubblica em direção ao
rio Dora abriga muitas lojas desse tipo e pode ser considerada a área comercial mais
abastecida da cidade para a venda desses produtos - incluindo bolsas, jaquetas e blusas que
imitam modelos de marcas renomadas.
Se a escolha das mercadorias acima citadas é motivada por baixo custo e pelo fato de
serem objetos de consumo difundidos, por outro lado, a opção pelos itens contrafeitos se dá
por serem muito procurados e por proporcionar um ganho mais elevado. A possibilidade de
obter uma boa renda tratando peças contrafeitas era maior vinte anos atrás, como vimos no
caso de Coumba Mbaye, quando ainda não era uma prática comercial tão difundida.
Atualmente, como Coumba relatou junto a outros ambulantes, não é mais tão rentável pela
concorrência, cada vez mais acirrada, dos próprios conterrâneos. A comercialização desse
gênero de artigos, de fato, é etnicizada e representa um nicho do mercado exclusivamente
senegalês, assim como acontece com outros produtos vendidos por vendedores que atuam
informalmente, como, por exemplo, as rosas pelos indianos, os souvenires pelos migrantes do
Bangladesh etc... Essa tipologia de comércio183 é promovida por um tipo de consumo baseado
no fetiche pelas marcas e modas de grife, que contribui para uma construção, burlada, de
status social associada ao prestígio individual. É interessante apontar, nesse contexto, que os
senegaleses são também consumidores desses produtos, especialmente os jovens originários
de Dakar, e os adquirem e utilizam tanto no exterior, quando migrantes, quanto no próprio
Senegal.
A venda desses artigos exige que o vendedor, além de corajoso (jom), esperto e ágil,
conheça, por um lado, os modelos produzidos por cada marca, se atualizando periodicamente
sobre os novos lançamentos, e, pelo outro, se engaje nas redes de comerciantes que vendem
etiquetas e sinetes para realizar a contrafação. Consideramos como exemplo as bolsas, que são
os produtos mais comercializados. Os ambulantes as adquirem nas lojas acima citadas em um
formato “liso”, como é definida a peça sem sinete, pagando cerca de 10 euros cada uma.
Sucessivamente, entram em contato com os vendedores que comercializam etiquetas e sinetes
de várias marcas de grife (Chanel, Prada, Valentino etc.). Para cada marca, são fabricados os
183 A tendência ligada à comercialização de itens parecidos foi observada também por Paul Stoller no contexto
da venda em Harlem (2002) e no Brasil (Tedesco, Kleidermacher, 2017).
179
itens para serem aplicados aos produtos e torná-los iguais aos originais (sinetes a serem
colados em cima das bolsas ou encaixados no zíper, etiquetas a serem costuradas internamente
etc). Tais itens podem ser de diversos materiais, correspondem a vários preços e são
produzidos em Nápoles, onde são adquiridos e sucessivamente revendidos por esses
vendedores especializados em todo o território nacional. Nunca entrei em contato com
nenhum deles, pois os meus colaboradores de pesquisa sempre se mostraram bastante
reservados em relação ao trabalho desses sujeitos, que podem ser de nacionalidade italiana ou
senegalesa, segundo me foi referido. Dependendo do produto que deve passar pelo processo
de falsificação, como no caso das jaquetas, a aplicação das etiquetas e sinetes deve ser
realizada por costureiros que possuam máquinas com programas específicos, os quais
contribuem na confecção das peças. O custo dessas peças pode variar de dois a três euros e o
serviço de aplicação para uma jaqueta, por exemplo, de cinco a sete euros.184
Foto 21 - Bolsa contrafeita da marca Chanel.
Essa tipologia de mercadoria não é comercializada unicamente no contexto do
comércio ambulante, mas também por lojas de grife da cidade. De fato, como Coumba Mbaye
declarou junto a outros vendedores que atuam nessa área, algumas lojas podem adquirir peças
diretamente com os ambulantes ou, ainda, engajá-los como mediadores para se abastecer
desses produtos. No contexto da pesquisa, nunca presenciei esse tipo de transação, que é
realizada de forma muito discreta, e tive acesso unicamente a narrativas. Esse dado, porém, é
184 O preço de venda ao público das bolsas contrafeitas é de trinta a cinquenta euros. O objetivo dos ambulantes
é ganhar entre duas até três vezes a quantia gasta pela aquisição e confecção das peças. Difícil é estabelecer uma
média dos ganhos, que eles não me revelaram: Pape, por exemplo, se considerava satisfeito se, no final do dia,
tivesse realizado vendas equivalentes a 200 euros, mas essa quantia não é alcançada com frequência.
180
significativo na medida em que as lojas de grife podem, eventualmente, compor o portfólio de
clientes desses vendedores e, então, participar das dinâmicas de escoamento das mercadorias
em uma dimensão privada. O trabalho de venda tête-a-tête, nesse sentido, é muito praticado
porque permite driblar parcialmente as fiscalizações185, podendo ser viabilizado por duas
categorias de vendedores: os próprios ambulantes, os quais, a partir da venda nas bancas,
adquirem clientes fixos que passam a atender em contextos não públicos, e por comerciantes
que nunca atuam expondo na rua e o utilizam como única estratégia de venda. A discrição
(souture) caracteriza esse tipo de comércio que, como tratamos no capítulo anterior, pode ser
escolhido como prática econômica exclusiva. O companheiro de quarto de um dos meus
colaboradores de pesquisa, por exemplo, comprava os produtos em Nápoles, onde são mais
baratos, realizava o processo de contrafação em Turim e os revendia nessa cidade e em Dakar.
Nesse último caso, porém, as peças eram enviadas “lisas” junto com as etiquetas/sinetes e o
processo de contrafação era realizado no Senegal186.
A atuação “na praça” dos ambulantes que vendem, na modalidade individual ou
coletiva, os artigos que mencionamos representa o maior número de comerciantes no contexto
do trabalho informal dos senegaleses no Balôn. Junto com eles, porém, podem trabalhar
esporadicamente vendedores que optam por comercializar outros tipos de produtos para
complementar suas rendas. Esse é o caso, por exemplo, de um casal (ele, senegalês, e ela,
queniana), que, logo depois de uma viagem ao Senegal, retornou em Turim e instalou uma
pequena banca no recorte “vernacular” (ZUKIN, 2000) de Via Mameli para vender peças de
artesanato (chaveiros de miçangas) adquiridos em Dakar. O aparecimento esporádico de
senegaleses que vendem objetos, não tendo o comércio como principal ocupação, como no
caso do casal citado187, compõe a paisagem flexível da feira. Na fotografia abaixo, por
exemplo, podemos perceber, ao lado da banca de Pape, uma mini banca, feita com uma caixa
de papelão, sobre a qual é exposto um par de sapatos usados. Esse item estava sendo
comercializado por um amigo de Pape que, em ocasião de uma visita no Balôn, decidiu tentar
vende-lo. Outros artigos podem, ocasionalmente, integrar a banca dos vendedores, como
185 Escrevi “parcialmente” porque é comum que os Órgão de Segurança Pública fiscalizem os senegaleses
também quando não estão atuando como vendedores na rua. Andar pelas estradas da cidade com um bolsão nas
costas (geralmente é utilizado um tipo de bolsão especifico, que chamam de “napolitano”, também utilizado para
o deslocamento de peças exportadas via contêiner, como veremos no capítulo a seguir) pode despertar a atenção
dos guardas, que viabilizam o controle e, eventualmente, a apreensão dos itens transportados. 186 Esse comerciante vende cada bolsa por 45 euros na Itália e 15.000 CFA no Senegal (valor que corresponde a
cerca de 106 reais). 187 Ele atua como segurança em lojas de Turim com contratos temporários terceirizados por empresas de
recursos humanos.
181
quando, sobre outra banca, foi oferecido um pacote de fraldas para adultos ou, ainda, uma
máquina de escrever antiga.
Foto 22 - Banca de Pape Kâ e, ao lado, mini banca de um amigo.
A venda de mercadorias usadas, além de acontecer em casos esporádicos como o
citado acima, é realizada, aqui, de forma sistemática por um único vendedor senegalês: Mussa
Kassé188. Ele, durante os dias de semana, trabalha como “vucumprá”, aos sábados atua no
Balôn e, como veremos no capítulo sucessivo, esporadicamente compõe a equipe dos
carregadores contratados pelos senegaleses que enviam os containers para Dakar. Mussa
comercializa peças usadas de diversos tipos. Diferentemente de Issa Niang que, como vimos
no item anterior, vende produtos eletrônicos de segunda mão, ele não seleciona as
mercadorias e oferece, assim, uma ampla tipologia de objetos (foto abaixo). Os produtos que
ele expõe equivalem aos que são disponibilizados na área Molassi, e são obtidos nos refugos
da cidade e como doações por parte de conhecidos.
188 De etnia wolof, tem 46 anos, nasceu na região de Louga. Não é casado, trabalha como vendedor ambulante,
carregador de container e com colheita de fruta e verdura.
182
Foto 23 - Banca de Mussa Kassé.
A mercadoria usada tem um nome específico, em senegalês é chamada de feug diaye,
que literalmente significa bater as roupas para tirar a poeira (feug) e vende-las (diaye). Esse
termo, segundo o que me foi relatado, foi criado na década de ´70 do século passado, quando
os trabalhadores rurais da região de Louga se deslocavam para França, em ocasião do verão
europeu, para vender artesanato africano no litoral e, sucessivamente, retornavam ao Senegal
carregando, em suas malas, roupas usadas de produção europeia, adquiridas na França, a
serem revendidas no Senegal. Falaremos no último capítulo sobre a representação desses
artigos por parte dos senegaleses; por enquanto, ressaltamos que, se a venda realizada na Itália
é tida como pouco prestigiosa, quando viabilizada no Senegal, pode ser ressignificada. O
Balôn, de fato, representa um dos lugares onde os senegaleses se abastecem de feug diaye
para serem enviados e comercializados em Senegal.
No recorte “vernacular” (ZUKIN, 2000) de Via Mameli, como vimos, a prática
flexível dos ambulantes é modulada por diversas formas de fazer comércio e pode também ser
acompanhada por outros tipos de business: mediações para compra-venda de itens, propostas
de negócios, projetos de investimentos a serem realizados no Senegal enredam as estratégias
socioeconômicas dos senegaleses viabilizadas aqui, mais que em outros lugares da cidade,
pelo fato de que, como analisaremos no item sucessivo, o Balôn representa também um
espaço de intensa sociabilidade.
183
5.5 O Balôn como espaço de sociabilidade: casos de honorabilidade e esperteza
A feira Balôn representa um espaço de sociabilidade entre senegaleses não somente
por ser um lugar compartilhado pelos vendedores, mas pelas relações que se tecem entre
amigos e conhecidos, os quais a frequentam para adquirir mercadorias e/ou a atravessam com
outros destinos, aproveitando os encontros com os conterrâneos para, como se diz, “colocar o
papo em dia”. Fazer compras no mercado de Porta Palazzo e/ou no Etnic Market instalado na
esquina de Via Mameli com Piazza della Repubblica189; levar roupas para lavar na lavandaria
do senhor Diop, localizada em uma rua próxima ao mercado, ir para o Phone Center de Via
Andreis a enviar remessas pela Wester Union são algumas das atividades que os senegaleses,
muitos dos quais habitué do Balôn, costumam realizar aos sábados antes ou depois das
estadias na feira, onde permanecem falando em grupo atrás das bancas de seus conterrâneos
ou próximos delas. Bate-papo sobre a família, o trabalho, os negócios, as dificuldades vividas
no dia-dia compõem as falas de meus interlocutores.
Frente a esses eventos de sociabilidade, o que me surpreendeu no começo da pesquisa,
e somente o tempo em campo me permitiu desvendar, era uma frase que escutava
frequentemente pelos migrantes mais velhos, isto é, os que estão na Itália há mais tempo. “Eu
ando sozinho”, me diziam em tom confidencial quando falávamos de seus cotidianos, e
seguiam explicando ter escolhido assumir uma postura de discrição (souture) em relação aos
próprios conterrâneos. Essas falas relativas eram construídas com o mesmo padrão narrativo:
segundo os meus interlocutores, fofocas feitas por amigos ou conhecidos sobre a própria
pessoa, por um lado, e experiências de trapaças sofridas, pelo outro, representam as causas de
uma postura de resguardo que deve ser assumida como medida necessária à auto-preservação.
O discurso que “os senegaleses sempre falam uns dos outros” representa uma narrativa
endógena a partir da qual é utilizada a “discrição” como estratégia para esconder atividades
realizadas ou desejadas e a magia. A importância dessa última se expressa na visão mágico-
189Onde os meus interlocutores gostam de ir pelo fato que a dona do mercado, chinesa, aprendeu a língua wolof
com seus clientes, e a utiliza cotidianamente. Essa capacidade, e disposição, lhe fez ganhar o apelido de Mame
Diarra (nome feminino comum no Senegal), que é compartilhado pelos senegaleses que frequentam a sua loja.
Esse espaço comercial, como veremos no capítulo sucessivo, representa um dos lugares onde os comerciantes
que enviam os contêineres para Dakar e os GP realizam a divulgação de seu trabalho.
184
religiosa dos migrantes, explicitada, por exemplo, pelo uso de amuletos. Gri-gris190, anéis-
amuletos, lambunhul191 são frequentemente utilizados pelos meus interlocutores, tendo a
função de proteger o portador de influências negativas produzidas pelo pensamento, pelo
olhar, mas, principalmente, pelas palavras que os outros podem proferir. Palavras que louvam
escondendo inveja e “mal olhado”, que julgam comportamentos inadequados ou
reapresentam, de forma distorcida, descrições de fatos escutados por terceiros afetam,
acredita-se, o sujeito ao qual se referem. O próprio ato de proferir palavras possui uma força
intrínseca que tem seu antídoto na fabricação dos amuletos. Estes são preparados pelos
marabutos, os quais “falam coisas sobre os objetos”, que recebem, assim, a função de
proteção. Pode-se afirmar que, quanto mais amuletos a pessoa veste, tanto mais se sente
ameaçada192. A circulação desses itens, rigorosamente produzidos no Senegal, e que podem
ser encomendados lá e enviados para Itália por parentes e amigos, representam marcadores
importantes a serem observados, que sugerem construções de fronteiras simbólicas.
Para ilustrar como o olhar do outro (quando conterrâneo) pode ser considerado
ameaçador, considere, por exemplo, que ninguém costuma comunicar o planejamento de uma
viagem ao Senegal para as pessoas do próprio convívio, por medo que a inveja possa
atrapalhar a sua viabilização. Os deslocamentos dos meus interlocutores, então, parecem
repentinos, como comentei no segundo capítulo, pelo fato de que são noticiados logo antes
das partidas.
Dentre todas as formas de acionar as palavras, a maneira que é considerada mais
perigosa é a fofoca. O poder que essa tem enquanto dispositivo de construção da “pessoa” e o
papel de coerção que pode exercer está bem representado no exemplo a seguir. Certa vez,
estava andando em uma rua do centro da cidade com um jovem vendedor ambulante que
atuava como vucumprá, conversávamos, de repente deixou de me olhar e, visivelmente tenso,
me disse: “não converse comigo agora! Espera!”. Depois disso, deu alguns passos à frente
para se afastar de mim. Em poucos segundos, voltou a me acompanhar: “desculpe, está vendo
aquele moço senegalês no fundo da praça?”, afirmou, se justificando. “Sim”, respondi,
190Sacolinhas de couro, de metal ou de tecido que podem conter preces, ervas, raízes. São amarradas na cintura,
assim como no braço abaixo dos ombros ou ainda penduradas como colares ao pescoço. Este tipo de amuleto
deve permanecer escondido debaixo das roupas. Também o ferro pode ter essa função, como pude perceber em
uma ocasião, quando um vendedor, se agachando, mostrou ter acima do cóccix um grande pedaço de ferro
triangular amarrado com fita durex. 191 Pulseiras em ferro produzidas na Casamance. 192 Outro elemento, que se refere a essa dimensão, frequentemente usado é o churai, incenso preparado pelas
mulheres, feito com resinas, raízes, ervas e perfumes. Existem diversos tipos destes incensos com funções
diferentes, desde o uso pragmático de queimá-los para neutralizar o cheiro das comidas dentro de casa até a de
“segurar os maridos para fazer com que não procurem outras mulheres”. Existe uma difidência difusa em relação
ao uso destes incensos, que, em situações de tensões, podem ser interpretados como “trabalhos de magia”.
185
observando um vendedor que desaparecia atrás da esquina. “Ele conhece meu pai. E se me vê
com você vai ser um problema”. “Como assim?”, perguntei. “Porque ele vai dizer que me viu
com uma mulher, e a minha família vai pensar que não estou fazendo meu dever, que é o de
trabalhar para ajudá-los”.
Esse episódio, assim como outros que observei, mostra que, por um lado, a circulação
das palavras entre os sujeitos que compõem as redes é intensa também em contextos de
desterritorialização, assim como vimos na narrativa de Coumba Mbaye; por outro lado, que as
falas para terceiros sobre amigos e conhecidos estão frequentemente flexionadas para a
preservação das prescrições morais. A desconfiança e o temor em relação à fala do outro,
então, não estão ligados somente ao seu poder mágico, como quando a palavra é movida pela
inveja, mas também ao papel de julgamento em relação à conduta de quem é observado. A
fofoca, então, tem aqui e em outros contextos uma função coercitiva exercida para resguardar
os valores morais compartilhados pelo grupo, sendo que, em casos de conflitos, pode ser
utilizada, ao mesmo tempo, em um sentido individual e político para a deslegitimação do
outro.
Para analisar o funcionamento e os efeitos da fofoca na dinâmica das relações sociais
dos senegaleses, precisamos observá-la como um dispositivo que compõe uma modalidade
comunicativa mais ampla. Nesse contexto, ela está diretamente atrelada a um outro elemento
narrativo que atravessou o meu trabalho de campo como uma constante: as que chamarei de
“queixas de recriminação”. Essas narrativas enredam relatos sobre tensões e conflitos com
amigos, familiares ou parceiros de trabalho e são diretamente relacionadas a dois tipos de
situações: quando há descumprimento da retribuição esperada pelo narrador - no sentido de
uma contraprestação negativa que contraria as expectativas de quem “dá” (Mauss, 1974), no
contexto das relações de solidariedade/obrigação de ajuda - e em casos de trapaças - quando a
pessoa que narra se sentiu lesada por seu parceiro. Tratarei, em seguida, duas situações
(Goffman, 1964)193 que ilustram tais queixas e retratam circuitos de “dádivas”
193 Goffman define uma “situação social” “as an environment of mutual monitoring possibilities, anywhere
within which an individual will find himself accessible to the naked senses of all others who are "present," and
similarly find them accessible to him. According to this definition, a social situation arises whenever two or
more in- dividuals find themselves in one another's immediate presence, and it lasts until the next-to-last person
leaves. Those in a given situation may be referred to ag- gregatively as a gathering, however divided, or mute
and distant, or only mo- mentarily present, the participants in the gathering appear to be. Cultural rules establish
how individuals are to conduct themselves by virtue of being in a gathering, and these rules for commingling,
when adhered to, socially organize the behavior of those in the situation”. Em “The neglected situation”,
American Anthropologist,1964.
https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1525/aa.1964.66.suppl_3.02a00090.
186
respectivamente com retribuição negativa agravada por uma suposta trapaça e com
contraprestação realizada ao longo do tempo. Analisaremos essas situações com o intuito de
mostrar como esses elementos narrativos contribuem na construção de uma modalidade
comunicativa dentro da qual a fofoca está inserida e que caracteriza, estruturalmente, parte da
sociabilidade senegalesa.
Situação 1
Pape Kâ, por vezes, trabalhava acompanhado pelo amigo Ismael Bâ. Um dia, na feira
Balôn, Pape estava atrás de sua banca, conversávamos, quando, do outro lado da praça, vejo
Ismail caminhando no meio dos vendedores. “Olha quem está aí! Ismail”, digo para Pape.
“Uuuuu! É um bastardo”, responde. “Como assim? Não é amigo seu?”, pergunto, perplexa.
“Ele é um filho da puta, não atende meus telefonemas (…). Não atende e não me retorna. Eu
já fiz muitas coisas para ele: emprestei dinheiro...; tempo atrás, quando precisou, dei umas
mercadorias para ele vender. Ele foi trabalhar em uma feira em Asti e, quando voltou, disse
que as tinham roubado... depois de um tempo, ele montou sua banca e eu vi aquelas mesmas
peças, mas não falei nada; briguei por causa dele... sempre ficava na minha casa e os que
moravam comigo não gostavam que ele fizesse visitas, eu o defendi”.
Essa situação apresenta uma dinâmica que observei de forma continuada durante a
pesquisa: a pessoa se queixa, de maneira recriminatória e indireta (pois relata isso para
terceiros), por não estar recebendo o tratamento esperado de um conhecido ao qual relata ter
oferecido algum tipo de benefício. No caso específico, citado acima, o que desencadeia o
conflito é a falta de interesse que o amigo parece demonstrar em relação àquele que o
“ajudou”, não atendendo e não retornando os telefonemas. Pape esperava reciprocidade e
explica seu ressentimento enumerando o que ele “deu” ao amigo (“ajuda” em forma de
dinheiro, de mercadorias e de amparo moral) e o que “recebeu” em troca: mentira,
desonestidade e desconsideração. É importante destacar que o caso do roubo por ele
mencionado foi, em um primeiro momento, tolerado, não tendo provocado, a princípio,
contrariedade. Essa atitude, inicialmente tolerante de Pape, com o passar do tempo se
transforma, manifestando-se, na ocasião relatada, em explosão de ira.
O episódio do suposto roubo das mercadorias é significativo no sentido que representa
um exemplo de trapaça por parte de Ismael. Essa, como observei em outros casos, é realizada
com artimanhas (a encenação de ter sofrido um furto) e remete, ainda uma vez, à esperteza
(mousse). O golpe em si, porém, é considerado por Pape menos grave do que a atitude de
187
desconsideração do amigo. Perceber a trapaça e, inicialmente, não explicitá-la revela
tolerância por parte de quem a sofreu, atitude que visa à preservação do vínculo social.
Diferentemente, a desconsideração, sendo percebida como falta de reconhecimento, não
apenas do que foi oferecido, mas principalmente, da “obrigação” criada em relação à pessoa
que ofereceu “ajuda”, é tida como falta grave. Tal comportamento afeta a dignidade (jom)
desta última, e a própria relação entre os sujeitos, sendo, então, interpretado como mais grave
do que mera trapaça.
Em outros casos que observei, porém, as trapaças sofridas representam a motivação
central que desencadeia os conflitos, como em ocasião do embate entre os comerciantes
Masamba Niang e Lamine Bâ causado pelo mesmo tipo de suposta fraude. O primeiro, que,
como mencionado anteriormente, atua ocasionalmente no Balôn, realizou uma parceria com o
segundo, um ambulante que trabalhava informalmente na feira. Esse último passou a gerir as
mercadorias e banca de Masamba enquanto ele viajou para o Senegal e, durante essa estadia,
Lamine sofreu o roubo de grande parte dos produtos de dentro da van onde estavam
guardados. Essa situação foi interpretada, por Masamba, como um golpe e, após
enfrentamentos dos dois, que não presenciei, Lamine optou para se mudar para Espanha. É
importante perceber que, também nessa situação, ainda que o pressuposto relacional não tenha
sido pautado pela solidariedade/dádiva, mas por uma “troca comercial regulada”, as
reivindicações que moveram os conflitos estiveram atreladas mais a questões morais do que
econômicas. O que está em jogo na relação dos ambulantes citados, então, são principalmente
os valores de honradez (ngor) e respeito (jom) enquanto pressupostos a serem respeitados na
dinâmica das interações, assim como observei em outras circunstâncias de tensão devidas a
trapaças entre parceiros de negócios.
Situação 2
Aliou Sy194 faz tocas de tricô que vende no Balôn e as expõe sobre uma pequena banca
ao lado daquela de Cheikh Lô. Ablou Diallo, o comerciante que trabalha em Via Mameli, um
dia, antes de montar sua banca, vê o trabalho de Aliou e o elogia. Esse último lhe promete um
chapéu de presente e diz entregar quando este ficar pronto. Dez dias depois, Aliou liga para
Diallo, que atende o telefonema, mas não pode conversar e responde que retornará a ligação.
194 Tem 50 anos, nascido em Dakar, de etnia pel, vive há 30 anos na Europa e há 23 na Itália, é artista e artesão,
frequentador habitual do Balôn, é amigo de alguns vendedores que se instalam em Largo Borgo Dora.
188
Sucessivamente, porém, Diallo não o procura e não aparece na feira195. Depois de cerca de
duas semanas, Aliou se queixa e me diz: “Diallo não me ligou. Também o nosso amigo
Cheikh (referindo-se a um amigo comum) disse que isto não se faz. Não imaginava que fosse
assim”. Depois de dois meses, Aliou parou de expor suas mercadorias na feira, mas a
frequenta como habituè. Encontro-o na banca de Cheikh Lô e ele retoma o assunto relativo a
Diallo: “Encontrei Diallo, que está com a sua banca em Via Mameli, e lhe entreguei o chapéu.
Ele amou”. “Que bom, e porque ele não te ligou?”, pergunto. “Porque disse que não podia me
pagar. Me ofereceu um dinheiro, mas não aceitei”, ele responde. “Você tinha ficado chateado
com ele porque não te retornou a ligação como tinha prometido. Como é que resolveu
oferecer de novo o presente?”, lhe domando. “Porque depois disto, a minha mulher me contou
que veio aqui no Balôn e ele deu uma pulseira para a minha filha. Isto mexeu comigo. Por isto
o perdoei e levei o chapéu para ele”. Dois meses depois, durante uma conversa com Aliou em
outro lugar da cidade, ele conta que comprou uma calça para vestir em ocasião de uma festa:
“Fui ao Balôn, procurava uma calça para comprar... gostei de uma que Diallo vendia e ele me
deu de presente”. “Que gentil!”, rebato. “Sim, nós somos assim…, damos muito um para o
outro”, conclui Aliou.
Essa “situação” mostra como determinados conflitos se resolvem pelo
restabelecimento do circuito da “dádiva”. O fato de Diallo não ter retornado à ligação de
Aliou provoca nesse último um duplo ressentimento: pela desconsideração relativa a não
retornar a ligação e pelo fato que isso poderia implicar na não aceitação do presente. No
entanto, essas duas atitudes são socialmente vetadas (“isto não se faz”), como sanciona
Cheikh, amigo dos dois, porque, por um lado, deve-se respeitar o prometido (retornar à
ligação) e, pelo outro, a obrigação de dar equivale àquela de receber. Tal postura, nesse caso,
representa uma contraprestação negativa, posteriormente corrigida por Diallo, que,
presenteando a filha de Aliou, reestabelece sua posição correta no circuito da “dádiva”. Ele
retribui um parente, o que equivale a presentear o doador inicial, e isso move Aliou a entregar
o seu dom. A gravidade do evento é, portanto, caracterizada pelo descumprimento da
promessa de retornar à ligação e a consequente não aceitação do chapéu, conflito que se
resolve quando Diallo justifica sua atitude explicando que não tinha a possibilidade de pagar o
amigo. Em relação a isso, é importante destacar que
195 Esse período corresponde com a fase de inserção no mercado Balôn de Ablou Diallo, durante a qual atuava
informalmente e a sua presença era intermitente.
189
o “pagamento” ao qual Diallo se refere não equivale a uma retribuição pelo trabalho feito,
mas representa uma maneira de recompensar o dom com dinheiro. A não aceitação do
dinheiro por parte de Aliou leva a uma desaceleração do ritmo dar/receber/retribuir, que se
estende no tempo. A dinâmica da “dádiva”, incorporando-se a situações de conflito, se
restabelece com a doação seguinte. O sistema é caracterizado por Aliou como generosidade
recíproca, na qual a qualificação do ato de “dar” ganha destaque (“nos damos muito um ao
outro”). Esse circuito produz honra (ngor) e prestígio (mana), sendo, então, pautado por uma
relação de “reciprocidade hierarquizante” (Lanna, 1997).
Observando as situações acima citadas, qual a função das queixas de recriminação? E
quais os desdobramentos que essas implicam nos processos de interação entre sujeitos? A
queixa atua como dispositivo para deslegitimar o outro e legitimar o narrador com base nas
prescrições morais, tendo, então, uma função política. Como indica de maneira explícita a
situação relativa a Aliou e Diallo, a queixa, quando acionada entre conterrâneos, produz
coerção por parte de terceiros, tendo papel ativo na preservação das prescrições morais. Essa
função sancionadora adquire uma dimensão coletiva na medida em que a queixa, atuando
como disparador, pode se desdobrar em fofocas e rumores. Esse processo comunicativo -
queixa de recriminação/fofoca/rumor que envolve, respectivamente, o narrador que recrimina,
seu interlocutor e outros sujeitos -, então, desloca o evento narrado da dimensão privada
àquela pública. Nesse processo, o interlocutor do narrador (a pessoa que escuta a queixa)
assume um papel central: a sua participação não se restringe ao papel de ouvinte. Como
observado em outros contextos, o interlocutor não somente pode sancionar o evento que lhe é
narrado (como no caso de Cheikh em relação à queixa de Aliou), mas assume, geralmente,
outras duas funções: se torna mediador do conflito narrado e reprodutor comunicativo do
acontecido. O interlocutor ao qual é verbalizada a recriminação, segundo a prescrição de
solidariedade/ajuda, é impelido a se engajar no embate, intermediando entre os atores
envolvidos para obter conciliação. Por outro lado, ele pode replicar a sua versão do evento
gerando fofocas e contribuindo para deslocar o acontecimento da esfera privada àquela
pública. Quando isso se verifica, a narrativa não tem mais vínculo com os atores envolvidos
no evento e passa a ser compartilhada coletivamente, tornando-se passível de múltiplas
versões e julgamentos196. Aborrecimentos expressos em forma de recriminações para terceiros
196 Do ponto de vista metodológico, observar o processo comunicativo que envolve a produção de queixas de
recriminação/fofocas/rumores não somente permite apreender dinâmicas de ordem política e moral, mas também
elementos que contribuem na organização social do grupo. De fato, essas narrativas estão frequentemente
190
recebem, então, impulso pela dinâmica da fofoca, se tornando “rumores”197 (TRAJANO,
1989).
Mas qual o desfecho em termos relacionais entre os sujeitos que participam dos
conflitos acima citados? Se tem observado, como aponta a primeira situação que descrevi,
uma certa tolerância às trapaças, principalmente nos contextos familiares, nos quais essas
dinâmicas são frequentes. Artimanhas, golpes, mentiras e encenações são situações que
podem levar os atores a negociações, afastamentos temporários e reconciliações a partir das
quais as interações e as funções dos sujeitos são ressignificadas, mas raramente ao
rompimento da relação. Para entender a origem, as modalidades com as quais atua a
tolerância e a forma com a qual as trapaças e seus resultados tensionam o modelo de
solidariedade/obrigação de ajuda, podemos nos remeter à literatura oral subsaariana, e,
especialmente, às narrativas que tem como heroínas principais a hiena (buky) e lebre (lek), as
quais, como se disse, são norteadas pela “esperteza” (mousse) enquanto valor central. A partir
de uma coleta de estórias que realizei em Dakar198, pude perceber como os enredos das
fábulas são construídos: episódios de trapaças realizados com artimanhas são aplicados
sistematicamente por parte das duas heroínas contra um ou mais sujeitos que pertencem ao
grupo, os quais ficam prejudicados. Esses últimos, ou ainda terceiros a eles aliados, utilizam,
como resposta aos golpes recebidos, as mesmas práticas (astúcia, subterfúgios, truques) para
reestabelecer o equilíbrio inicial. Percebe-se que, de forma geral, a esperteza e seus
desdobramentos são utilizados para gerar benefícios específicos, principalmente associados ao
ganho de alimento, e que, após os embates entre os oponentes - durante os quais os
trapaceiros sofrem punições sucumbindo a golpes ardilosos -, esses não morrem e nem são
caçados, mas reintegrados ao grupo. Também em outras estórias da literatura oral tradicional
que não tem esses personagens como atores principais – como “Kiriku e a feiticeira” (1998),
por exemplo, desenho animado de produção franco-belga com enredo mais complexo, que
envolve também magia, coragem e prestígio –, os personagens que causam descompassos não
são expulsos, mas reassimilados ao grupo. A restauração do equilíbrio, e sucessiva
assimilação do golpista, nunca se dá pela dinâmica perdão/arrependimento, mas, como se
disse, por meio de conflitos épicos por meio dos quais são reaplicados ao trapaceiro seus
enredadas por diacríticos associados ao pertencimento étnico, à origem rural/urbana, às relações de castas e de
gênero que são acionados para produzir fronteiras. 197 Segundo Trajano, “os rumores têm uma estrutura de transmissão aberta, dramática e dialógica. Eles são
transmitidos por meio de interações face-a-face, (…). O rumor ganha energia através de uma série de diálogos
nos quais os atores sociais criam e recriam o sentido das mensagens que veiculam” (2000: 8). 198 Recolhi sete estórias sobre a hiena e a lebre que me foram narradas pela avó da Gaia. Ela as apreendeu com a
sua tia materna, maliana, de etnia soninké.
191
truques às avessas. Temos, então, narrativas nas quais os desdobramentos da esperteza
(mousse) desarranjam e restauram as relações entre sujeitos que integram o grupo, tendo
como objetivo final a preservação de sua integridade.
Segundo essa perspectiva, portanto, a enganação é tendencialmente tolerada por estar
enredada à dinâmica social enquanto “situação” (1966), no sentido gofmaninano, isto é, como
modalidade de interação transitória. Isso não significa que o trapaceiro não carregue,
individualmente, as marcas resultantes de seus atos e que isso não tenha uma repercussão na
modalidade de construção das relações em seu meio social. De fato, considerando que, por um
lado, do ponto de vista da moralidade islâmica, o descumprimento do valor da honestidade é
tido como reprovável, e, pelo outro, essas situações, tornando-se públicas mediante fofocas e
rumores, são sujeitas à coerção coletiva, a prática da trapaça abala a reputação do sujeito no
contexto social que ocupa. A quebra da confiança e da honorabilidade em situações de
desrespeito às prescrições morais, então, redefine a posição dos sujeitos no arranjo das
relações, as quais passam a ser flexionadas por dinâmicas de negociação que se articulam ao
longo do tempo, visando a restaurar os valores prescritos, como vimos acontecer entre Aliou e
Diallo. Essas negociações podem também mudar a função do sujeito dentro do grupo - como
no caso dos parentes de Khady , os quais não exercem mais parcerias comerciais com ela - e,
em outros casos, quando a restauração resulta inviável, podem resultar no afastamento do
suposto infrator, gerando uma suspensão temporária das relações entre os envolvidos, como se
deu com Lamine Bâ e Masamba Niang.
As situações que retratei acima explicitam, a meu ver, dinâmicas sociais estruturais
que regulam as relações dos sujeitos pesquisados, marcadas por modalidades de interação
respectivamente pautadas no ato de dar enquanto forma de solidariedade que produz
reciprocidade e prestígio e na “arte da trapaça” movida pela esperteza como estratégia de tirar
vantagem individual. Esses dois aspectos não são antitéticos, mas entrelaçados,
interdependentes e produzem um modelo relacional coercivo, baseado na queixa de
recriminação como dispositivo central. Nesse contexto, podemos, então, entender a expressão
“eu ando sozinho”, que muitas vezes escutei por parte de meus colaboradores, como uma
postura de resguardo a ser adquirida frente ao outro, que qualifica de maneira marcante esse
universo para preservar o sujeito de possíveis golpes e eventuais fofocas/rumores junto às
suas implicações religiosas, políticas e morais.
192
Capítulo 6 - Coisas que rodam
6.1 Balôn como lugar de fluxo: coisas que chegam/coisas que vão
Um dia, na feira Balôn, estava junto com Ablou Diallo atrás de sua banca.
Um Marabout vestido com roupas tradicionais, amigo de outro comerciante
senegalês, estava sentado ao nosso lado. Chegou uma mulher senegalesa
com a qual conversaram um pouco e, após alguns minutos, aproximou-se
outra mulher, mais nova, extraiu um pacote de uma sacola e o entregou para
ele. O Marabout agradeceu e as duas mulheres foram embora. Ele abriu o
pacote e retirou um lindo anango199 branco, refinado e bem acabado.
Perguntei se era dele: “Sim, uma GP acabou de entregá-lo para mim. Foi
feito no Senegal. É um presente da minha mulher que mora em Bergamo. Eu
estou sempre indo para cá e para lá”200.
O mercado Balôn é um lugar no qual os cruzamentos de circuitos translocais
sobrepostos se territorializam: aqui, então, podemos apreender os fluxos das “coisas”
(APPADURAI, 1986) que circulam por meio das redes. A feira, portanto, ancora
momentaneamente práticas que se tecem nos “territórios circulatórios” (TARRIUS, 1993),
tornando-se um espaço privilegiado para a observação dessas dinâmicas. Consideramos os
fluxos que perpassam a feira como compostos por pessoas, palavras, dinheiro e coisas e
individuamos dois tipos de modalidades de circulação opostas que as caracterizam:
respectivamente, um movimento centrípeto, por meio do qual, a partir de vários lugares, as
coisas convergem no mercado, e um movimento centrífugo, que, tendo como ponto de partida
esse último, proporciona o deslocamento das coisas para outros espaços. Se essa pulsação,
marcada pelo compasso “vai-vem”, tece circuitos que conectam múltiplos lugares, dentro e
fora da Itália, nos interessa aqui observar um trecho especifico desse percurso: o que liga as
cidades de Turim e Dakar e, especificamente, o sentido que corresponde ao movimento das
coisas da cidade italiana à capital senegalesa.
Em relação ao fluxo entre esses dois lugares, no capítulo anterior, individuamos
alguns dos atores que promovem o movimento das coisas de maneira centrípeta. Cheikh Lô,
Maisa Sylla, Ablou Diallo, Ibrhaima Diajne e outros comerciantes que atuam de maneira
ocasional e informal operam fazendo convergir na feira coisas produzidas na África
Ocidental. Mas temos também uma circulação centrífuga dos itens aos quais os senegaleses
participam, que se articula pela aquisição de peças na feira Balôn, e em outros espaços, os
quais são sucessivamente enviados para Dakar. Khady e Fallou Niang - primo de Issa -, como
199 Veste tradicional masculina, composta por túnica e calça. 200 Diário de campo, 11 de outubro de 2014.
193
vimos, são alguns dos sujeitos que participam do mercado como clientes e operam nesse
sentido: eles frequentam a feira, compram coisas e as enviam ao Senegal para serem
revendidas. Observamos que também os ambulantes senegaleses que ali atuam como
ambulantes “formais” não se eximem dessa atividade. Cheikh Lô, por exemplo, me contou
que não costuma fazer esse tipo de “businnes” - pois, por quanto esteja interessado nessa
modalidade de comércio, ainda não priorizou a sua viabilização -, mas que uma vez achou
uma “ocasião” na banca de um ambulante marroquino: encontrou um velho scooter por 30
euros, o adquiriu, o enviou para Dakar via contêiner e o revendeu a um vizinho pelo triplo do
preço que tinha gasto pela aquisição. A participação dos comerciantes senegaleses no Balôn
se dá, portanto, viabilizando o fluxo das coisas nas duas direções, centrípeta e centrífuga, com
um volume de mercadorias diferenciado. Em relação ao sentido centrífugo, o Balôn é
considerado, por quase todos os meus interlocutores, um lugar onde podem se encontrar
coisas “interessantes” a serem revendidas no mercado senegalês. Motores de elevadores,
produtos utilizados na construção civil, roupas, eletroeletrônicos podem ser comercializados
com facilidade em Dakar ou enviados e guardados para serem vendidos em momentos de
necessidade. A circulação de coisas a partir do Balôn, como veremos, compõe parte de um
circuito mais amplo, que inclui também itens usados adquiridos em outros lugares da cidade
(lojas, outras feiras, vendedores particulares etc.), produtos novos e peças não destinadas à
venda.
Como pudemos observar nas narrativas apresentadas nos capítulos anteriores, a
aquisição de mercadorias em Turim e relativa venda no Senegal representa uma atividade
considerada interessante e rentável para muitos dos meus interlocutores: é associada à
possibilidade de ganhar dinheiro em fase de dificuldades econômicas (desemprego, feiras
coletivas), é tida como uma maneira de integrar a própria renda mas, principalmente, é
considerada uma oportunidade que possibilita vivenciar a circularidade entre territórios
(Itália-Senegal e vice-versa, mas também outros lugares), viabilizando aquele “vai” e “vem”
(CASTAGNONE et all, 2005) que caracteriza a migração senegalesa. Essa prática
econômica, de fato, permite aos comerciantes ter “liberdade” e “autonomia” que, como
vimos, são valores centrais associados à experiência migratória, além de se tornar, na maioria
dos casos, uma ocasião para realizar uma importante tarefa: “ajudar” parentes e conhecidos,
envolvendo-os nas atividades comerciais e, dessa forma, criando renda.
Comprar coisas na Itália e revendê-las no Senegal, como se disse, é uma prática
iniciada já nas primeiras fases do processo migratório senegalês. Segundo o que me foi
relatado, o consumo de itens de origem europeia no Senegal remonta à venda de roupas
194
usadas (feug diaye201 ) por parte das missionárias católicas ocidentais, que, segundo um dos
meus interlocutores, “deviam ser distribuídas, mas que eram cobradas”202. Sucessivamente,
foram os primeiros migrantes que se deslocavam sazonalmente para a França a realizar esse
tipo de comércio: compravam e levavam ou enviavam, por meio de navios, indumentos e
outros objetos de segunda mão, que eram sucessivamente revendidos em feiras locais no
Senegal.
A prática comercial que etnografamos é caracterizada pelo fluxo de coisas, dinheiro,
pessoas e palavras que articulam circuitos translocais complexos. Com o termo “circuito”,
refiro-me à noção formulada por Vivana Zelizer (2002):
I call these circuits of commerce in an old sense of the word, where
commerce meant conversation, interchange, intercourse, and mutual shaping.
(…) By definition, every circuit involves a network, a bounded set of
relations among social sites. “Circuit”, however, is neither simply a fancy
new name for “network” nor a sanitized version of “community”. Two
features distinguish circuits from networks as usually conceived. First, they
consist of dynamic, meaningful, incessantly negotiated interactions among
the sites – be those sites individual, households, organizations, or other
social entities. Second, in addition to dynamic relations, they include
distinctive media (for example, legal tender or localized tokens) and an array
of organized, differentiated transfers (for example, gifts or compensation)
between sites (ZELIZER, 2002: 5).
Se, segundo essa definição, os circuitos comerciais se caracterizam pela dinamicidade
das negociações, pela inclusão de tipologias distintas de trocas e de meios de retribuição
financeira, consideramos, aqui, as mercadorias como entidades sociais que participam dessas
interações. Nesse sentido, vamos etnografar os circuitos incluindo a agência das coisas, pois
são também essas últimas que, a partir da demanda no Senegal, traçam materialmente as rotas
e tecem as redes que as compõem. Essa centralidade, além de caracterizar o nosso campo de
observação, é também o resultado de uma opção epistemológica, que compartilha o retorno ao
interesse pela cultura material da antropologia nas últimas três décadas. Antropólogos como
Latour (1984), Appadurai (1986), Gell (1998), Strathern (2017), Ingold (2007), dentre outros,
têm resgatado e redefinido a importância dos objetos-coisas-artefatos como entidades que,
junto às humanas, operam no campo sociocultural. Se os autores que citei propõem teorias
diferentes, tratamos aqui, em primeira instância, de coisas que assumem o status de
mercadorias e vice-versa (Kopitoff, 1986) e optamos, então, para uma leitura mais
201 Como citado no capítulo anterior, é o termo, em wolof, usado para definir as roupas usadas. Literalmente
significa “sacudir e vender” e se refere à comercialização de vestimentas e peças de segunda mão. 202 Diário de campo, 23 de junho de 2012.
195
socioeconômica do que filosófica, aproximando-nos das teorias formuladas por Appadurai
(1986) em detrimento da perspectiva ontológica que caracteriza a elaboração teórica de outros
autores203. Consideramos as coisas-mercadorias como entidades sociais significativas que
possuem uma agência, operando também na dimensão simbólica por eles ocupada. Elas são,
contextualmente, o que lhes é atribuído pelos atores humanos, mas não por isso devem ser
consideradas entidades passivas, pois são capazes de reter e jogar esse significado contextual
no próprio meio, participando, assim, das interações sociais e da construção de valores e
práticas adotadas pelas pessoas. Nesse sentido, optamos, segundo a perspectiva de Appadurai
(1986), por substituir o termo “objeto”, que remete a uma condição de suposta subordinação e
passividade dos itens em relação aos atores humanos, pela noção de “coisa”. Com o intuito de
incluir no circuito que vamos observar as coisas como agentes, seguiremos, então,
descrevendo a história de uma coisa típica que compõe o conjunto de mercadorias circulantes
entre Turim e Dakar em forma de “biografia” (APPARUDAI, 1986: 91). Utilizamos esse
termo para enfatizar a qualidade dinâmica que marca a vida das mercadorias pois, como se
disse, a trajetória das coisas não se traça unicamente na esfera material, mas envolve também
o significado que lhes é atribuído e a agência que produzem no meio social que atravessam204.
203 Os limites das perspectivas ontológicas em relação ao nosso campo de pesquisa se dão principalmente pelo
fato de que tais discussões: tendem a excluir as coisas-mercadorias de forma apriorística, como se o fato dessas
circularem enquanto bens as “deontologizassem”; estão restritas a uma visão sincrônica das dinâmicas sociais, de
ascendência estruturalista, dificultando então a análise em termos de ressignificação diacrônica das coisas, que,
no meu caso, é constitutiva do circuito comercial e se dá no tempo. 204 Nessa perspectiva, Kopitoff (1986: 90) propõe a implosão da dicotomia “pessoas individualizadas” e “coisas
mercantilizadas”, pois pessoas e coisas são sujeitas a processos de transformação de seus status, que é, então,
relativizado de forma situacional. Esse processo de transformação pode ser abordado de forma biográfica: as
perguntas às quais se tem que responder para realizar uma biografia das coisas, segundo o autor, são parecidas às
que se fariam para as pessoas. De onde vem a coisa e quem a fabricou? Quais são os papeis que desempenha em
relação às entidades com as quais interage? Quais suas fases de vida? E como muda seu status ao longo de seu
envelhecimento? O que lhe acontece quando sua vida chega ao fim? (KOPITOFF, 1986: 92). Em seguida,
observando os circuitos junto ao fluxo centrífugo das mercadorias, procuraremos responder a essas perguntas
considerando que, como o autor destaca, é importante evidenciar “as possibilidades biográficas inerentes ao
status das coisas e como se dá a concretização dessas possibilidades” (ibid.), isto é, do ponto de vista
sociológico, a mudança de status ao longo de seus percursos de vida.
196
6.2 Biografia de uma geladeira
Móveis usados (ou “seminovos”, como alguns
comerciantes costumam chamá-los), eletrodomésticos e
eletroeletrônicos, carros, motos, bicicletas, pratos, copos, roupas,
brinquedos, material de construção e peças de diversas origens
são algumas das coisas que transitam de Turim para Dakar.
Dentre essas, escolho a que me parece a mais significativa: a
geladeira. Essa mercadoria pode ser considerada emblemática,
pois existe uma ampla demanda desse bem; é comercializada
como item usado e novo; pode ser manipulada por técnicos, isto
é, modificada ou recriada no contexto de chegada; representa um
investimento, já que pode se tornar um meio para gerar renda.
Passarei, então, a descrever a história de vida de uma geladeira
usada considerada como mercadoria típica no fluxo de coisas
que os senegaleses em Turim, assim como em outras regiões da
Itália, exportam e comercializam no Senegal. Seguiremos sua
trajetória excluindo a fase da produção e a primeira etapa da
comercialização, focando-nos nas trajetórias sucessivas, pois são
estas que conseguimos observar. Antes de começar a biografia,
vou escrever brevemente sobre o que é uma geladeira do ponto
de vista técnico.
Nota Técnica
Geladeira ou refrigerador em
português do Brasil, refigerator
em inglês, frigorífico em
português de Portugal, frigorifero
ou, sua abreviação, frigo in
italiano e réfrigérateur ou
frigidaire em francês, é um
eletrodoméstico que tem a função
de conservar os alimentos por
meio de um espaço termicamente
isolado do externo, onde é criada
uma condição de baixa
temperatura. Esta condição
retarda a cinética das moléculas e,
então, o crescimento de bactérias
e a decomposição da comida.
Alguns modelos de geladeiras
incluem também o freezer no
mesmo corpo do dispositivo. Esse
é um aparelho relativamente
novo na cozinha, que substitui
outros tipos de conservação,
como a desidratação e a
salmoura.1 Inventada no século
XIX, a geladeira é atualmente
considerada, pela maioria das
pessoas no ocidente, um
eletrodoméstico imprescindível
para a conservação e preparação
das comidas. O aspecto que a
distingue das técnicas tradicionais
de conservação e o fato de
manter quase inalteradas as
propriedades orgânicas dos
alimentos. O frigo ou frigidaire,
como é chamada a geladeira pelos
senegaleses como os quais
trabalhei1, funciona com um
sistema a compressão baseado no princípio dos gases perfeitos (ou
gás ideal) e na Lei de Boyle-
Mariotte, os quais determinam
que se um gás for comprimido
(aumentando sua pressão) o
mesmo irá aquecer e que a
pressão absoluta e o volume de
uma certa quantidade de gás
confinado são inversamente
proporcionais se a temperatura
permanece constante em um
sistema fechado.
Segundo essas
lógicas, o fluido
refrigerante (freon,
amoníaco ou
197
Foto 24 - Componentes de uma geladeira.205
Foto 25 - Esquema básico de um sistema de refrigeração.206
205http://dicasesquemas.blogspot.it/2013/04/como-funciona-um-sistema-basico-de.html. 206 https://pt.wikipedia.org/wiki/Refrigera%C3%A7%C3%A3o.
198
6.2.1 Origem, primeiros desempenhos e possível fim
A geladeira sobre a qual contarei foi produzida pela Candy em 2006. Adquirida em
uma loja por um casal de italianos, os senhores Rossi, em Turim, estes a instalaram na
cozinha de seu apartamento, onde, junto com a pia, os móveis e os utensílios, teve uma função
primária na gestão alimentar da família. Por dez anos, sem nunca falhar, refrigerou, também
nos verões mais quentes, queijos, verduras, vinhos, conservou comidas prontas, patês, tortas,
manteve em forma congelada sorvetes e peixes oriundos de mares distantes. Com o
nascimento dos filhos do casal, também passou a conservar leite, sucos e a congelar papinhas.
A geladeira não somente conservava, mas também produzia um elemento central: o gelo. Essa
função era muito apreciada durante os dias quentes, quando do freezer eram extraídos cubos
dessa substância para refrescar as bebidas, mas também em situações graves e urgentes, como
quando alguém levava uma batida ou estava com febre alta. Os senhores Rossi consideravam
a geladeira indispensável e se davam conta da sua importância quando, periodicamente, a
desativavam para limpa-la e descongelar o excesso de gelo acumulado no freezer. Para
realizar esse trabalho, era preciso se planejar: considerar que, durante o tempo empregado
para isso (geralmente cerca de doze horas, que correspondiam a uma noite e parte da manhã
seguinte), não poderiam manter frescos os alimentos e, então, consumir antes os mais
perecíveis.
Um dia, o casal decidiu substituir os móveis da cozinha, que tinham comprado quando
se mudaram para o apartamento, e, agora, consideravam velhos e obsoletos. De fórmica,
riscados, seriam trocados por um conjunto de peças novas, disponíveis a um preço vantajoso
em uma loja da cidade. Mesmo que a geladeira conseguisse ainda realizar suas funções,
escolheram substitui-la por uma nova, pois a cozinha que teriam adquirido tinha o
eletrodoméstico incorporado. Além disso, em dez anos, a tecnologia tinha avançado e a nova
geladeira possuía funções vantajosas: frost free, classe energética A+, display interativo e um
design moderno. A velha geladeira não tinha mais utilidade e logo que a nova cozinha tivesse
chegado, ela teria sido descartada, podendo ser levada para um “ecocentro”, como é chamado
o centro de coleta de despejos do AMIAT (Azienda Multiservizi Igiene Ambientale Torino)207
ou ser doada para alguém que a reutilizasse. Mas como se libertar dos móveis e do
eletrodoméstico, todas peças volumosas e pesadas? Levá-las para um “ecocentro” teria sido
dispendioso, pois o proprietário deve arcar com o custo do transporte; por outro lado, essas
207 “É uma sociedade que, há mais de quarenta anos, coordena os serviços de higiene do território, recolhimento
e reciclagem do lixo na cidade de Turim”, http://www.amiat.it/cms/azienda.
199
peças poderiam ser reutilizadas. O casal não conhecia ninguém aos quais pudessem interessar,
assim pediram sugestões para um amigo que, no ano anterior, antes de fazer a sua mudança,
tinha contratado um professional para a retirada, da garagem, de coisas inutilizadas que
estavam guardadas há tempo. O nome desse professional era Chicco Varetti, um
“rigattiere”208 que realiza “sgomberi”209 e, sucessivamente, comercializa em feiras o que acha
apto para venda. A conveniência de contratar esse tipo de serviço consiste no fato de que, se o
professional considera comercializáveis as coisas dos quais os proprietários querem se
desfazer, não cobra sua retirada.
Seguindo essa sugestão, os senhores Rossi contataram Chicco Varetti que quis avaliar
o estado das peças para decidir se cobraria ou não o serviço de desocupação. Depois de ter
marcado o encontro, os donos da geladeira decidiram aproveitar a vinda do “rigattiere” para
liberar parcialmente o porão, repleto de coisas guardadas há anos. Uma coleção de cartões
postais, talheres, um aparelho de jantar de porcelana da década de 50, copos de cristal,
conjunto de toalhas e lençóis de linho, luminárias: itens de procedência familiar, inutilizados
pelo casal que os guardou como lembranças dos parentes falecidos e, agora, queria liberar o
espaço ocupado para colocar três bicicletas recém adquiridas. No dia marcado, Chicco chegou
com um colaborador e, depois de ter avaliado as peças, decidiu não cobrar o serviço. Retirou,
então, os móveis, a geladeira e as coisas guardadas no porão e os carregou em uma van.
No depósito onde estoca as mercadorias, Chicco avaliou as coisas, descartou algumas
peças que foram colocadas no lixo e guardou as outras. A geladeira foi testada e, sendo
funcionante, foi separada para revendê-la na feira onde Chicco trabalhava aos sábados. Nesse
dia, então, às cinco da manhã, a geladeira foi novamente carregada na van, e uma hora depois
se encontrava exposta numa ruela do mercado.
6.2.2 Feira e múltiplos destinos
A feira onde Chicco trabalha é chamada Balôn. Alocada no coração histórico da
cidade, foi instituída no século XIX e é considerada a feira tradicional do usado. Como se
costuma dizer em Turim, “no Balôn se encontra de tudo”: roupas, móveis, quinquilharias,
luminárias, bicicletas, livros, selos e as coisas mais inesperadas. A variedade de mercadorias
208 Quem comercializa coisas usadas. 209 Atividade que consiste em retirar em domicílios itens dos quais os proprietários querem se desfazer.
200
oferecidas tem diversas procedências: dos porões, garagens, sótãos e gavetas esquecidas de
moradias, aos lixos e refugos ilegais da cidade.
Considerado lugar do “achado” por colecionadores, antiquários e compradores em
busca de ocasiões, espaço do “bom negócio” pelos parcimoniosos e “amortecedor social” pela
prefeitura da cidade, se distribui entre estradas, ruelas, pracinhas e, historicamente, hospeda
imigrantes recém-chegados, que encontram na venda improvisada, e na compra cautelosa, a
sustentação para os primeiros tempos de permanência. Entre as bancas, circulam pessoas que
falam árabe e wolof, dialeto piemontês e romeno, italiano e chinês, em um amplo leque de
diversidades linguísticas que a marca como uma das feiras mais multiétnica da cidade.
consumidores
Naquele sábado, Chicco monta a sua banca como sempre: estaciona na pracinha sua
van amarela, descarrega as peças, as dispõe no chão, em caixas e sobre mesas ou móveis à
venda, que utiliza como apoios improvisados. A banca é, então, acessível por todos os lados e
os clientes, autonomamente, buscam entre as mercadorias, pegam as coisas, as observam, de
pé ou agachados. Chicco rodeia a banca à espera. Sorri, ironiza, brinca, trata.
A Candy repousa em um canto, ao lado de uma outra geladeira mais velha, da década
de 70, vermelha, arredondada, uma peça vintage, como dizem, muito mais valiosa do que ela.
Semiaberta, a gaveta das verduras apoiada ao lado, guarda a coleção de postais dos velhos
donos. Um casal pára ao seu lado, as olham, escancaram as duas portas e perguntam se
funciona.
- “Sim”, responde Chicco.
- “Quanto?”
- “50 euros.”
O casal se olha e troca umas frases em língua romena. A mulher se agacha e afasta da
gaveta, reposta no chão, parte dos cartões postais. Passa o dedo sobre uma trinca no plástico.
- “A gaveta está quebrada”, fala o homem, “me faz 40...”
- “Não! 50 é o mínimo, né?”, rebate Chicco, sorrindo.
O casal se afasta.
Ao longo do dia, Chicco vende bem: a mesa em cristal, o jogo de panelas de cobre, a
coleção de desenhos em quadrinhos de Luciano Bottaro, o porta-retrato liberty já se foram, até
o presépio em plástico que, em um instante de dúvida, na fase de seleção das mercadorias, o
livrou de tornar-se lixo. Mas a Candy ainda está ali, agora de portas fechadas. Se alguém
interessado aparecer, Chicco vai baixar o preço, deseja se liberar dela pois é uma mercadoria
pesada, volumosa e barata, não convém carregá-la, guardá-la e descarregá-la novamente.
201
Às 16 horas, a feira está terminando. Chicco chama um conhecido, sentado num café
ao lado, para que cuide da sua banca, e vai buscar a van. De volta, começa a recolher as peças.
Chega um homem e aponta para a Candy:
- Amigo, quanto tá?
- 50 euros.
- Escute, tenho só 30 aqui. Vou levá-la para África...
- Não, 30 não, 40.
O homem se cala e olha o resto da banca. Chicco retoma a arrumação das mercadorias.
- Com 30 a levo... a levo pra lá, vou tentar, nem sei se funciona.
Chicco não responde e continua seu trabalho. Depois aceita:
- Tá bom.
O cliente lhe entrega o dinheiro.
- Onde você a leva?
- Para o Senegal; a busco daqui a pouco.
E se afasta.
6.2.3 Perspectivas de uma nova vida
Cheikh Diop é o nome do cliente que comprou a geladeira. É senegalês e, desde
quando chegou na Itália, em 1987, compra mercadorias e as revende em Dakar de forma mais
ou menos regular. A geladeira vai ser enviada via contêiner junto com outras coisas, que ele
guarda em um porão. Enviará, como faz há anos, com Ousmane Mbacké, que organiza e envia
contêiner de quarenta pés quinzenalmente de Turim para Dakar. A feira Balôn é um dos
lugares onde se abastece. “Se com 30 euros consegui comprar um frigo que funciona fiz um
bom negócio” pensa.
Cheikh tem um conhecido marroquino que, aos sábados, trabalha na feira como
transportador, estaciona sua van numa grande praça ao lado do mercado, à espera de clientes.
Para o deslocamento das mercadorias pesadas, sempre o chama. Enquanto se afasta da banca
de Chicco, lhe telefona e marca um encontro na esquina da praça. Juntos, vão até a banca de
Chicco, carregam a geladeira sobre a van e se dirigem para o pequeno porão, próximo do
mercado, que Cheikh aluga e usa como depósito. Descarregam e ele repõe dentro da gaveta da
verdura uma sacola com 20 metros de cabo elétrico, que também adquiriu na feira, e que tinha
carregado na mão até então.
202
O dia do carregamento do contêiner está próximo. As coisas precisam alcançar o
depósito de Ousmane e a transferência será realizada pela equipe que trabalha para ele. No
depósito, Cheikh e seu amigo Birane preparam as peças para a viagem: algumas - dois móveis
desmontados e um colchão - são embrulhadas em papel filme, outras - roupas e sapatos - são
colocadas em grandes bolsas - chamadas “borsoni napoletani”-, outras ainda em caixas de
papelão. A geladeira, dentro da qual, na fase de estágio no porão, tinham sido guardadas
sacolas de roupas, é esvaziada. Cheikh seleciona agora peças frágeis: copos, pratos, três
celulares, um cortador de barba elétrico, um drone de controle remoto são amarrados com
durex e postos nos compartimentos. A ajuda recebida por Birane na arrumação das coisas é
imprescindível para respeitar os tempos de entrega para Ousmane e não se sobrecarregar de
trabalho. Será recompensada com a integração, entre as coisas enviadas, de um presente que
Birane recebeu e quer mandar para um irmão em Dakar. Trata-se de um compressor doado
por amigos dos pais da mulher dele, italiana.
As coisas são retiradas com uma van e levadas para o depósito de Ousmane por ele e
seus colaboradores no dia antes do carregamento do contêiner, como combinado. Ousmane
abre as bolsas e as caixas, confere o conteúdo. Cheikh denota as peças mais escondidas
enquanto ele as descobre com a mão, “uma boneca... essas são caixas de macarrão...
fraudas...”, no final lhe entrega uma lista. O preço do envio até Dakar é estabelecido nesse
momento: “três borsoni napoletani, cinco caixas, dois móveis, um colchão, uma geladeira,
um compressor... 500 euros”, sugere Ousmane, pagos em duas vezes a partir da semana que
vem.
A geladeira e as outras coisas chegam pouco tempo depois no grande depósito que
Ousmane aluga junto com outros três conterrâneos. As peças, de diversos clientes e também
dele próprio, estão espalhadas e podem ser misturadas, deslocadas, reposicionadas
dependendo da necessidade, pois a cada uma foi colocado um papel com nome, número de
telefone do recebedor e lugar de destino. Louga, Touba e Dakar, principalmente essa última, é
a meta da viagem prestes a ser feita pelas coisas. A geladeira vai ser recebida em Dakar por
Abdoulat Diop, irmão do Cheikh, assim como todas as outras coisas que ele está enviando,
com exceção do compressor. A geladeira está próxima de outros frigo, alguns novos,
televisores e peças de carro, e lhe é passada uma fita adesiva em três pontos para que não
abram suas portas.
Na manhã do carregamento, Cheikh quer presenciar a montagem do contêiner, pelo
menos em parte, para conferir o embarque de suas peças já que, dois meses antes, Ousmane
tinha se comprometido em fazer um envio e não cumpriu o que disse, atrasando a chegada de
203
suas coisas em 20 dias. Ousmane vetou a presença dos clientes no depósito nesse dia, mas
devido à desavença o recebe sem comentários. Cheikh leva um rolo de papel filme e embala a
geladeira: não quer que risque, espera vendê-la logo na chegada em Dakar. “O contêiner tá
aqui, tem que estacionar”, anuncia um mecânico senegalês, contratado por Ousmane, ocupado
a desmontar um carro. As portas do contêiner são escancaradas, seus 64 metros cúbicos de
vácuo precisam ser preenchidos de forma sistemática e cuidadosa: o desafio é fazer caber o
máximo de coisas possíveis sem que se danifiquem. Seis pessoas fazem a carga com e sem
luvas, usam pequenos carregadores, se esticam, se aproximam e distanciam um do outro no
esforço de puxar, erguer, encaixar as peças sob as orientações de Omar, responsável pelo
carregamento. Cheikh fuma e conversa, olha a geladeira ser levada e desaparecer, assim como
as outras peças. As vozes sobrepostas silenciam por um momento quando Fatou, que
Ousmane sempre contrata no dia do carregamento, serve café touba e benhe. Então todo
mundo se recolhe, come, bebe e conversa, algumas pessoas fazem as abluções e rezam em um
canto, enquanto Ousmane continua para cá e para lá, e Cheikh se despede.
A equipe trabalha duramente ainda por cinco horas, conseguindo ocupar o espaço por
completo e encaminhando para a viagem quase todas as peças que estavam no depósito. O
contêiner é fechado e Omar entrega recibos e lista do conteúdo ao motorista da companhia de
navegação paga para o serviço de expedição. No mesmo dia, ele conduz as coisas, que
percorrem o caminho para Genova, e chegam no cais. Aqui o motorista entrega os
documentos para um guarda da alfândega: quando o contêiner é carregado no navio lhe é
devolvido o bill of lading, documento que precisa sucessivamente ser enviado ao transiteur
no Senegal para que a carga seja liberada no porto de Dakar.
6.2.4 Rumo ao Senegal: outras pessoas, outros valores
A duração da viagem pelo mar depende do clima: de dez a vinte dias, tempo suficiente
para que a notícia da chegada do contêiner circule amplamente no bairro que o receberá, e
fora dele. Durante essa fase de espera, a comunicação e troca de informações translocais são
intensas. Cheikh se comunica via Viber com o irmão Abdou, ao qual é repassada a lista das
peças que deve retirar e a data aproximada da chegada. Ousmane, que recebeu o bill of lading
do transportador, o envia para seu mediatuer no Senegal, via sedex. Ele é a pessoa
responsável pelas fases de liberação do contêiner no porto de Dakar, que será realizada
204
através do pagamento de 4000 euros para um agente da alfândega, preço que inclui a garantia
do conteúdo não ser controlado.
O contêiner chega no cais e o mediateur segue todas as etapas de rotina, trabalha com
Ousmane há anos e nunca deixou encalhar um contêiner dele na alfândega, sabe com quem e
como negociar. O transportador que aguarda o contêiner do lado de fora do porto faz parte da
equipe de Ousmane e de seu sócio em Dakar, quando é liberado o leva para o bairro de
Parcelle, onde têm um depósito. Aqui é esvaziado e as coisas são agrupadas por destinatário,
o sócio tem o elenco das coisas, nome e telefone dos recebedores e começam a ligar para que
as pessoas indicadas as retirem. Abdou aguarda o telefonema, amigos e colaboradores estão
de sobreaviso, quando é contatado, o grupo se encontra e se dirigem para o depósito. Abdou
assina um papel no qual o nome de cada coisa recebida é riscado, as carregam na van e se
dirigem para Pikine, na casa de família, onde um grande quarto no andar de baixo é usado
para guardar e comercializar as mercadorias.
A chegada da van é esperada por uma dezena de pessoas, que se agrupam na frente da
casa: familiares do Cheikh e Abdou, amigos, vizinhos e desconhecidos; os olhares colados às
coisas que saem de dentro da van. A geladeira é apoiada no chão empoeirado, um senhor se
aproxima:
- “Vendem isso?”
- “Sim”, responde Abdou.
- “Tira o papel, por favor?”
Abdou a descarta, corta as três fitas e rapidamente a esvazia, entregando as peças nas
mãos de alguns sobrinhos que, rodeando entre si, prontamente, procuram onde apoiá-las. São
guardadas em cima de um móvel, tem vento, a areia pode penetrar nas frestas dos aparelhos
eletrônicos.
O senhor abre e fecha o comparto do freezer: “Quanto?”, pergunta.
Abdou sabe quanto foi paga e que, para ter um ganho adequado, o preço gasto pela
aquisição deve ser triplicado:
- “100.000 cfa”.
Outras pessoas se interessam pelas coisas, as barganhas múltiplas são conduzidas por
Abdou com a ajuda do irmão mais novo, que está descarregando as mercadorias.
- “75.000?”, rebate o aspirante freguês.
- “Não! É boa, grande. Olhe, é nova!”
- “Me faz 100.000 em duas vezes...”
205
- “Não, somente à vista”, interrompe Abdou, que conduz a barganha sem dar margens.
Sabe que se perder o cliente vai ter outro: a demanda de geladeiras é alta nesse período do
ano, pois o dia do Tabaski está próximo e há necessidade de guardar a carne dos carneiros
sacrificados para a festa. O senhor lhe entrega logo 50.000 cfa para assegurar a peça, pois
outra senhora está interessada.
- “A levo e vou testá-la, se funcionar pago o resto”, propõe o senhor.
- “A geladeira funciona. Onde você mora?”, rebate Abdou.
- “Aqui perto”.
- “Quando terminamos de descarregar e guardar as coisas a entregamos para você, a
testa e paga o resto, inshalla!”, e coloca no bolso o dinheiro.
O senhor aceita e aguarda. Algumas peças são guardadas e outras, as vendidas,
carregadas novamente na van para serem entregues na casa dos clientes.
O senhor sai à pé e chega na frente da sua casa. Está esperando a van. Lá, o irmão
mais novo do Abdou e um amigo levam a geladeira para um quarto. Algumas mulheres se
recolhem ao seu redor, é testada, parece funcionar. O senhor paga os 50.000 cfa restantes para
Abdou, que se despede e vai embora. Esse dinheiro, assim como o das outras mercadorias que
chegaram, será dividido em três partes: uma para ele que vendeu, outra a enviará para Cheikh
em Turim e a última a guardará em casa para que lhe seja entregue em ocasião de sua volta.
De retorno para casa, Abdou lhe envia uma mensagem gravada pelo Viber, satisfeito com o
primeiro dia de vendas.
6.2.5 Desempenhos na casa de Mame Diarra
A dona da geladeira Candy é Mame Diarra Bâ, de 81 anos, primeira esposa do
falecido Noumou Bâ. Ela mora em uma grande casa, de dois andares, na qual cada quarto é
ocupado por filhos, esposas e netos da família. Ela, quase diariamente, faz pequeno comércio
na frente de casa: vende amendoim, salada, às vezes salgadinhos, dispostos em grandes cestas.
Com o dinheiro ganho, contribui para o sustento de alguns dos filhos e netos. Ter uma
geladeira era um desejo que tinha há tempo. Um de seus filhos, o mais velho que mora na
França, enviou 200 euros pela Wester Union para que ela pudesse adquiri-la. Assim, pediu
para o filho da sua voudiou, segunda esposa do marido, de procurar um bom frigo para ela.
Tinha que ser ele a escolhê-lo e comprá-lo, porque entende de geladeiras já que, por um
tempo, trabalhou como ajudante de um reparador. Pab, esse seu nome, soube por um amigo da
206
chegada de um contêiner e foi dar uma olhada. Foi um achado encontrar um bom frigo nessa
ocasião: evitou ter que procurar em lojas, onde as mercadorias são mais caras. Logo,
atendendo aos anseios de Mame Diarra, mandou seu filho comprar o gás e ele mesmo o repôs,
podendo assim colocá-la em função. Mame Diarra tinha pedido de posicioná-la no quarto da
filha Sokhna, em um canto. Pediu para limpá-la, dentro e fora com eau de javel, como é
chamada ali a água sanitária, e, logo depois de seca, começou a receber sacolas transparentes
de água à ser congelada. Vender gelo era só uma das atividades planejadas por Mame Diarra,
pois, se aproximando o Tabaski, poderia alugar porções dos compartimentos para guardar
carne. No bairro, tinham outras mulheres oferecendo esse serviço, mas ela também poderia ter
alguns clientes.
Produzir gelo, conservar carnes e peixes, guardar água fresca e salada, que não
precisava mais comprar diariamente na feira, eram as funções principais que a Candy
desempenhava agora. A notícia da nova atividade de Mame Diarra circulou rapidamente entre
as vizinhas e o ganho em ocasião da festa foi bom, convencendo-a a continuar seu negócio. 50
CFA era o preço pago para comprar uma sacola de gelo, 200 para conservar peixe ou carne
diariamente, 6000 para conservá-las mensalmente. O manejo dos alimentos, do gelo e do
dinheiro, é realizado por Mame Diarra e por Sokhna, principalmente por essa última, que
repassa à mãe as rendas obtidas.
É assim que a atividade do frigo se torna um meio central para complementar a renda
de Mame Diarra e o foi por alguns meses, durante os quais trabalhou de forma impecável,
congelando perfeitamente e em um tempo relativamente breve, refrescando e conservando
carnes, bebidas e verduras. O que atrapalhou seu desempenho foi um black-out, um dia, que o
fez parar de funcionar. Já tinha passado incólume por alguns outros apagões, que acontecem
com frequência principalmente na estação das chuvas, mas dessa vez a queda de energia tinha
sido fatal. Peixes devolvidos às pressas para os donos pelos seus netos, gelo descongelando e
as saladas de volta nos baldes de água na sobra. Pab teve que intervir para avaliar o que tinha
acontecido: “o motor queimou, compramos outro e o arrumo”. O problema, para Mame
Diarra, foi só o custo, 15.000 CFA, que conseguiu juntar alguns meses depois. Enquanto isso,
a geladeira funcionou como móvel de prateleiras e passou a guardar baldes, panelas e
especiarias.
207
6.2.6 Alquimias e renascimentos: no Senegal não se morre (ou quase)
A vez que queimou o motor, Pab a reativou e sugeriu de conectá-la a um aparelho
estabilizador para protegê-la das quedas de energia. Continuou suas funções no quarto de
Soknha ainda por dois anos, mas quando a linha de descarga furou, Mame Diarra decidiu
vendê-la: Pab não tinha os instrumentos para fazer a reparação, deveria ter sido entregue para
um técnico e o custo para arrumá-la teria sido caro demais. Sob pedido dela, Pab a vende por
15.000 CFA para o reparador pelo qual tinha trabalhado, que a ajusta e a revende na sua
pequena loja em Pikine para um vizinho, por 60.000 cfa. Essa será a fase de vida talvez mais
prestigiosa da geladeira, que se torna peça central da Mai bu jek, vorugal, o dote pedido pelas
irmãs de uma esposa para a família de seu futuro marido. Investida dessa importância, na
nova casa, a geladeira contribui para que a recém chegada Awa seja considerada
“trabalhadora” pela família do marido. De fato, todos os fins de tarde, ela prepara sucos e
picolés de bissap e bui, que guarda respectivamente no comparto do frigo e do freezer, e os
revende, na manhã seguinte, na feira de Tharoei.
A trajetória de vida do frigo Candy, a partir desse momento, prossegue de forma
cíclica para um tempo indefinido, durante o qual sofre periodicamente desavenças técnicas e,
pontualmente reparado, volta para suas funções primordiais: esfriar e congelar. Passa por
diversos donos, e ainda está circulando por aí. Em Dakar, contam que quase nunca uma
geladeira se torna lixo, “aqui nada se joga fora, tudo se arruma”. Dizem que, raramente, isso
acontece quando para de funcionar, está muito - mas muito - enferrujada e estragada por
dentro. Então é recolhida por catadores que a desmembram em partes: plástico, alumínio,
ferro são revendidos por peso. Esse último é adquirido principalmente por comerciantes
indianos e chineses que, instalados em Dakar, os recolhem em grandes galpões perto de
Chess, o fundem em barras e o enviam para seus países de origem, onde é tratado e,
sucessivamente, exportado. Talvez, um dia, vai ser esse o epílogo da história de vida da nossa
geladeira.
6.3 O circuito comercial: entidades, meios e dinâmicas relacionais
A história típica da compra-venda de uma geladeira que apresentei acima, mesmo
simplificada, mostra a complexidade do circuito socioeconômico, objeto desta pesquisa, e
deve ser lida prestando atenção mais às conexões entre elementos que a constituem do que aos
208
próprios fatos, que, ainda que tenham fundamentos reais (são extraídos dos dados de campo
recolhidos), são situacionais e variáveis.
Procederei, sucessivamente, etnografando os atores humanos e não humanos, ou
“entidades” (ZELIZER, 2002), que constituem os circuitos, com atenção especial à
ressignificação ou mudança de status (KOPITOFF, 1986) das coisas-mercadorias, assim
como os “meios” (ZELIZER, 2002) que os caracterizam, isto é, as dinâmicas por meio das
quais as conexões entre entidades se estabelecem210. Nesse sentido, mostrarei que as coisas,
circulando, ativam lógicas segundo as quais é determinada a sua valoração contextual
(econômica e simbólica) e contribuem na construção das redes por meio das quais se
deslocam. Essas últimas são moralmente regradas por um ethos caracterizado pelos valores
que já vimos atuar em outras “situações” (GOFFMAN, 1964) nos capítulos anteriores: ajuda
(nimbale), dignidade (jom), prestígio (mana) e esperteza (mousse). Esses valores engendram
dinâmicas relacionais entre senegaleses marcadas respectivamente por três modalidades:
alianças, quando se tem cumprimento das prescrições morais, conflitos gerados por práticas
que as burlam e, sucessivamente, negociações que visam ao ajuste dos conflitos. Veremos
que, também nesse contexto, tais valores operam na hierarquização das posições ocupadas
pelos sujeitos que participam dos circuitos.
Consideramos ainda, assim como discutido em relação à perspectiva utilizada para
pensar a atuação dos ambulantes na feira Balôn, que, se, por um lado, os circuitos se tecem
transnacionalmente e operam em “territórios circulatórios” (TARRIUS, 1993), o efeito das
interações (alianças, conflitos, negociações) e as práticas socioeconômicas são sempre
territorializadas: cada etapa do circuito, então, está vinculada ao espaço físico211.
210 Opto por utilizar a perspectiva de Viviana A. Zelizer (2002) porque a autora faz uma abordagem
socioeconômica do tema, mas também a noção de “rede” que Bruno Latour formula na etnografia “Pasteur:
guerre et paix des microbes” (1984) ajudaria a pensar os dados coletados. Para o autor, segundo uma perspectiva
política, as redes são compostas por “agentes” de diversas naturezas, humana e não-humana, tais como: pessoas,
coisas, documentos, mas também por elementos que compõem os espaços físicos, nos quais, e por meio dos
quais, esses últimos circulam. Tais agentes, segundo Latour, são movidos por “forças” que contribuem para
direcioná-los, como as moralidades, mas também o sistema de regras formais. 211 A relação entre o circuito comercial e os espaços nos quais, e pelos quais, o primeiro se articula é inseparável.
Segundo Simmel: “sempre percebemos o espaço que um grupo social preenche em algum sentido, como uma
unidade que tanto quanto exprime e sustenta a unidade desse grupo e é por ela sustentado” (2013:79). A
interdependência entre espaços e a definição dos agentes sociais, por outro lado, se dá também em relação as
entidades não humanas, de fato, veremos, por exemplo, que a localização das coisas, em termos de lugar de
proveniência, contribui para sua valoração econômica e simbólica. A demanda das mercadorias, em alguns casos,
obedece a um sistema de classificação, que é construído segundo o critério de proveniência. A noção de
“translocalidade” (Greiner 2009), mais do que a de “transnacionalismo”, consegue dar conta dessa relação
recíproca entre espaço e circuito: sobre essa discussão, realizada pelos geógrafos Clemens Greiner e Patrcik
Sakdapolrak, veja-se o artigo “Translocality: Concepts, Applications and Emerging” (2013).
209
6.3.1 A constituição das redes: composição e características
Enviar coisas de Turim para o Senegal, tendo como destino cidades como Dakar,
Touba, Louga e seus arredores, é corriqueiro entre os senegaleses: todos os meus
interlocutores já participaram desse circuito de forma mais ou menos estruturada. Como foi
anunciado precedentemente, nos ocuparemos aqui unicamente de uma rota, a que liga Turim a
Dakar, sendo, então, preciso levar em conta que tal recorte representa um fragmento do
percurso circulatório de coisas, pessoas, palavras e dinheiro que se desdobra de forma muito
mais complexa.
As redes que sustentam os circuitos observados podem se tecer de formas distintas e
serem mais ou menos articuladas. Considerando as variações que observamos em termos de
quantidade e tipologia de atores que as compõem e a forma de conexão que se estabelece
entre eles, podemos identificar três modelos. O primeiro pode ser considerado de estrutura
mais simples no sentido que envolve um só sujeito humano que adquire e transporta coisas
viajando de avião para o Senegal. Esse corresponde a dois casos: o de quem se desloca
periodicamente de Turim para Dakar, levando, nas próprias bagagens, objetos pessoais ou de
terceiros, e o dos correios informais GP. Sendo que, como se disse, a mobilidade dos
senegaleses entre Itália e Senegal é intensa, as viagens periódicas são utilizadas também para
transportar itens nas bagagens. Essa possibilidade é explorada ao máximo pelos meus
interlocutores, os quais, além de encher as próprias malas até o limite do peso consentido
pelas companhias aéreas – devendo, então, utilizar balanças para checar a carga -, optam,
geralmente, por comprar passagens que facilitem o trânsito de bagagens extras. O mercado
das companhias áreas, de fato, oferece promoções de voos que viabilizam a movimentação de
cargas maiores pelos passageiros. “Pasta” (macarrão), remédios, aparelhos eletrônicos,
roupas, sapatos e outras coisas são espremidas nas malas, tendo diversos destinos: tornam-se
presentes para parentes e amigos, sendo a dádiva, como veremos sucessivamente, uma prática
central no processo de reinserção temporária do migrante no contexto de origem; mercadorias
a serem revendidas pelo próprio migrante ou por seus conterrâneos - nesse sentido, podem
também ter sido encomendadas por terceiros -, objetos de uso pessoal, como as roupas do
próprio migrante que serão utilizadas para vestir na fase de estadia e, enfim, podem ainda ser
levadas coisas que serão guardadas. Estas são, geralmente, consideradas pelo viajante como
investimentos: a suspenção de seus status no momento em que são guardadas as torna
210
multissignificativas, já que irão adquirir diversos sentidos e funções quando “tiradas das
gavetas”.
Funções e significados dessas coisas serão, então, ativados de forma diferenciada
contextualmente: as coisas poderão ser vendidas em momento de necessidade, doadas ou
usadas pelo próprio migrante ou por terceiros. Em todos os casos, como iremos descrever
sucessivamente, ainda que os itens adquiram a feição inicial que vimos acima (presentes,
mercadorias, coisas de uso pessoal ou para serem guardadas), poderão ser sujeitos a ulteriores
redefinições de status, que moldarão, então, direções e modalidades de circulação.
Se o caso das viagens pessoais acima citado implica em atividades comerciais de
forma não prioritária, a prática dos GP sustenta a matriz comercial dos circuitos de maneira
mais central e estruturada. Essa profissão é desenvolvida pelos senegaleses há décadas em
diversos contextos de chegada212. Divulgada em anúncios impressos sobre folhas A4 expostas
em lojas frequentadas por senegaleses, como o Etnicmarket da comerciante chinesa “Mame
Diarra” e a lavanderia do senhor Diop, essa atividade consiste em levar bagagens ou objetos
específicos de terceiros, os quais, geralmente, necessitam que os itens cheguem aos
destinatários com solicitude e implica, paralelamente, no transporte, por parte do próprio GP,
de produtos que serão por ele comercializados.
Coumba Mbaye, como relatamos no capítulo três, se dedicou a esse trabalho de 2005 a
2011, ao mesmo tempo que exercia a função de enfermeira contratada part-time por um
hospital de Turim. Na época, segundo o seu relato, era empenhada mensalmente por 15 dias
no hospital e, no tempo restante, atuava como GP entre Itália e Senegal. Quando ela começou
a profissão, ainda não tinha ninguém na cidade de Turim que oferecia esse serviço, por isso
encontrou inicialmente desconfiança por parte dos clientes. A ideia desse empreendimento
surgiu como sugestão da sua irmã, que trabalha em uma agência de viagem em Dakar.
Coumba conta que seus clientes em Turim lhe pagavam o preço do peso das bagagens
212 Em 14 de janeiro de 2020, no jornal Estadão, foi publicada uma matéria sobre esse trabalho intitulada: “Com
base na confiança, correio informal leva mercadorias dos EUA para o Senegal”
(https://internacional.estadao.com.br/noticias/nytiw,correio-informal-mercadorias-eua-). O artigo trata
exclusivamente da atividade de correio informal desenvolvida pelos GPs e não aborda a aspecto comercial
atrelado a essa prática. No texto é descrita a origem do nome dessa prática profissional, GP, informação que não
tinha conseguido recolher entre os meus colaboradores de pesquisa, pois ninguém das pessoas sabia qual fosse o
significado dessa expressão. Segundo o artigo: “O termo se origina de uma política da Air France que oferecia
aos familiares da companhia uma passagem reduzida chamada gratuité partielle, ou parcialmente grátis. Os GPs
muitas vezes traziam para os amigos produtos difíceis de encontrar”. O trabalho de GP, na Itália, é também
praticado por pessoas de outras nacionalidades, como nigerianos e ganenses.
211
enviadas, correspondente ao cobrado pelas companhias aéreas, para serem entregues aos
destinatários no Senegal213, e complementa assim a descrição do trabalho:
(...) mas enquanto viajo para lá para levar isso (os itens transportados como
correio), levo também as minhas coisas: bolsas, relógios, sapatos masculinos,
tecidos e cabelos... levo essas coisas para vende-las. Com o que levo lá pago a
minha passagem e ganho dinheiro. Entrego as coisas que os clientes me deram
e depois vendo tranquilamente as minhas. Porque ali basta que sejam coisas
italianas e você vende tudo. Depois, por meio da minha irmã que trabalha na
agência de viagem, e tem muitos conhecidos, lá tenho clientes italianos. Para
eles levo encomendas como queijo, parmesão e pecorino. Ganho um monte
de grana com isso e, já que estou lá, compro o nosso peixe, óleo de palma e
outras coisas que servem aos meus conterrâneos aqui, as trago para Itália e
quando volto as revendo. Assim ganho sobre os dois lados fazendo só isso214.
Coumba, inicialmente, viajava 4 vezes ao mês para o Senegal (a viagem de avião de
Turim para Dakar demora 5 horas), mas sucessivamente precisou diminuir a frequência das
idas porque, sendo que se deslocava sempre pelo aeroporto de Turim, a Polícia Aeroportuária
começou a reconhece-la, questiona-la e, depois, a fiscalizar suas bagagens. A dimensão extra
formal dessa atividade - diferentemente de outras práticas consideradas ilegais pelo Estado
italiano, como o tráfico de droga - não é associada a valores negativos por parte de Coumba.
A interrupção dessa prática é por ela relacionada ao fato que seus clientes, com o tempo,
passaram a exercer o mesmo trabalho: “em muitas pessoas, a coisa não funciona mais, então
deixei (essa ocupação) e busquei outras soluções. É assim, sempre precisa mudar”, conclui.
Como veremos, no contexto dos circuitos comerciais, a concorrência entre
conterrâneos representa uma das razões pelas quais os sujeitos optam por interromper uma
atividade específica e mudar para outra, sendo essa um dos elementos centrais que impulsiona
a mobilidade de função profissional ou a mudança de produtos comercializados por parte dos
comerciantes. A concorrência entre conterrâneos e os seus efeitos se enredam, ainda uma vez,
com valores como “esperteza” e “aventura”. Nesse último sentido, Coumba, mais de uma vez
durante a nossa conversa, descreve essa atividade como “divertida”, associando essa
qualidade não somente à mobilidade espacial, mas também às múltiplas situações e
experiências que proporciona, dentre as quais os contratempos nos aeroportos e as
213 Se considere que a atividade de correio, aqui descrita pela Coumba em sentido centrífugo em relação a cidade
de partida (Turim), pode também ser desenvolvida de forma centrípeta, do Senegal para Turim, como indica o
caso do marabuto descrito no começo desse capítulo. 214 Entrevista, 17 de novembro de 2014.
212
dificuldades encontradas durante os trânsitos. Essa dimensão lhe permite representar o
trabalho, que a um olhar de fora aparece como desafiador e complexo, como simples e leve.
De fato, como lemos no trecho conclusivo acima, Coumba afirma que, usando a estratégia
comercial circular de comprar e vender aqui e lá, ela lucra nos dois contextos “fazendo só
isso”. Essa última expressão está associada não somente ao prazer que lhe proporciona o
próprio exercício da prática, mas também a uma qualidade específica, o “saber circular”,
sobre a qual já comentamos.
É preciso, nesse sentido, remarcar que, ainda que apresentada como fluida e simples,
essa atividade, para ser bem-sucedida, precisa, por um lado, de múltiplos conhecimentos, em
parte retroalimentados pelo próprio circular, como saberes comerciais (quais produtos
funcionam contextualmente e quais seus valores, dentre outros) e inserção em redes sociais
eficazes, e, por outro, de habilidades diversificadas (inspirar confiança para que os clientes
entreguem seus pertences, situação diretamente conexa ao fato de ter uma boa reputação; ter
esperteza, discernimento, disposição, coragem...). Essas qualidades, obviamente, não são
atribuíveis a todos os senegaleses, mas são adquiridas por alguns. O que pudemos observar é
que, no contexto dessa pesquisa, os GPs que conheci ou sobre os quais indiretamente soube
eram prevalentemente mulheres jovens215. Esse dado é significativo na medida em que
reafirma a flexão da prescrição segundo a qual a mulher deveria circular em contexto
doméstico.
O segundo modelo de rede se aproxima ao primeiro em termos de configuração, pois
também é composto por um único ator humano que transporta coisas, mas nesse caso o
deslocamento é realizado via terra e a prática é principalmente voltada ao comércio. Nesse
modelo, os sujeitos humanos são geralmente comerciantes masculinos que adquirem um
veículo a ser revendido no Senegal - carro ou van – e o carregam de mercadorias, as quais são
vendidas ao longo do caminho. Mesmo tendo definido que a prática dos que operam nesse
contexto seja principalmente comercial, não se exclui que estes não assumam também a
função de correios de maneira contextual, pois, certamente, devem, em algumas situações,
satisfazer esse tipo de demanda. O trajeto percorrido envolve quatro países entre Itália e
Senegal: França, Espanha, Marrocos e Mauritânia. Não consegui recolher muitos dados sobre
essa prática porque observei indiretamente só um caso, mas, pelas narrativas dos meus
colaboradores, esse circuito comercial é consolidado, pois é praticado há décadas por
migrantes de diversa nacionalidade. Sendo que algumas áreas da região desértica,
215 Segundo a interpretação de alguns colaboradores, a prevalência feminina é devida ao fato de que elas seriam
menos sujeitas à fiscalização.
213
principalmente o Sahel ocidental, são consideradas perigosas pelos assaltos e pela presença de
grupos armados de fundamentalistas islâmicos, a travessia dessa área pode ser realizada em
grupo, junto a comerciantes africanos também oriundos de outros países europeus.
O terceiro e último modelo sustenta o circuito comercial caracterizado pela circulação
das coisas via containers. Essa última tipologia de redes é a mais articulada porque é
suportada por uma multiplicidade heterogênea de pessoas, com diversas mansões, e de coisas.
Seguimos, então, etnografando a composição, as funções dos atores humanos que compõem
esses tipos de redes e as características das relações que compartilham, lembrando que sobre
coisas e dinheiro trataremos nos itens subsequentes.
As redes que articulam a circulação das coisas via mar são compostas por pessoas com
funções diversificadas e específicas216. Temos, geralmente, múltiplos fornecedores que são os
sujeitos que vendem ou doam as coisas; os emissores que, como já mencionado, são os que
enviam os itens para o Senegal e podem organizar e enviar um container para a exportação
das próprias peças (os chamaremos de organizadores/responsáveis) ou, ainda, optar por
prestar o serviço de correio e integrar a própria carga com itens de outros emissores. Temos
também o conjunto de profissionais que compõem a equipe dos organizadores do container,
isto é os motoristas e carregadores que se ocupam do deslocamento dos itens em Turim e em
Dakar, o responsável pela montagem do container e seus auxiliares, os colaboradores em
Dakar, dentre outros; os transitaires (despachantes), como definidos pelos meus
colaboradores, isto é, os sujeitos que se ocupam de realizar o encaminhamento dos
documentos e a liberação do container nas respectivas alfandegas (os processos de
import/export). Desses últimos, o primeiro, que opera para realizar a saída do container da
Itália, é um despachante que atua como pessoa jurídica (sendo, portanto, uma empresa),
enquanto o segundo, em Dakar, atua como pessoa física fazendo parte do grupo de
colaboradores do organizador/responsável. Temos ainda a empresa de navegação e seus
funcionários; os oficiais das respectivas alfândegas; e, enfim, os receptores que, como já
citado, são as pessoas para as quais as coisas são direcionadas e que, então, as recebem em
Dakar, podendo adquirir as funções de destinatários finais ou de colaboradores, no caso em
que as coisas, enquanto mercadorias, sejam injetadas no circuito comercial de venda in loco.
O processo de aquisição das coisas é complexo e diversificado e será tratado
sucessivamente; por enquanto, adiantamos que as peças são obtidas, principalmente, de
216 A definição das funções que apresento e as respectivas lógicas organizativas são formuladas a partir de uma
perspectiva endógena. Por outro lado, os termos que uso para identificá-las são criados por mim; onde não
observei, utilizo de vocábulos específicos por parte dos colaboradores de pesquisa.
214
fornecedores alocados em Turim e região metropolitana, mas também de cidades adjacentes e,
esporadicamente, em regiões da França e da Suíça próximas das fronteiras. Os fornecedores
podem ser de diversas nacionalidades e pessoas particulares que se desfazem de objetos
(como no caso da história da geladeira), comerciantes e pessoas jurídicas (como lojas ou
hipermercados). O processo de compra pode eventualmente envolver motoristas e
carregadores contratados por quem adquire as peças, isto é, pelo organizador/responsável e/ou
pelos emissores. Esses últimos, como veremos, não são necessariamente comerciantes, já que
podem estar enviando coisas para serem doadas ou sob encomenda sem finalidade de lucro. A
organização e o envio do container, ao contrário, são realizados exclusivamente por
comerciantes, que chamei de organizadores/responsáveis, os quais são emissores de coisas
próprias e, frequentemente, mas não em todos os casos, integram o conteúdo do container
com peças de outros emissores, desempenhando, então, o papel de correios informais.
Assumir essa outra função tem como finalidade integrar as despesas de envio do container
com o pagamento de outros emissores para o serviço de entrega no Senegal217, os quais
passam a se tornar seus clientes. Todos os emissores, por sua vez, atuam em parceria com
colaboradores e/ou receptores no Senegal, isto é, parceiros de negócios e/ou sujeitos aos quais
as coisas são destinadas.
Para a montagem do container, ainda, trabalha uma equipe composta por um
responsável, que tem a função de direcionar e organizar o carregamento das peças, junto com
seus auxiliares, os quais realizam o próprio carregamento do container. A travessia desse
último pelas respectivas alfândegas, italiana e senegalesa, é conduzida, como se disse, por
uma empresa italiana de transporte, especializada em exportação, que envolve a atuação,
dentre outros, de um motorista - que transporta o container da cidade de Turim para o porto de
Genova- , e de um despachante. Esse último é chamado pelos senegaleses de transitaire, em
francês, e se ocupa da tramitação dos documentos na alfândega. Sendo que os organizadores
têm que garantir tanto a saída das coisas da Itália quanto a sua entrada e saída do porto de
Dakar, eles precisam de um transitair trabalhando nas duas fronteiras. A função desse último
é fundamental para que as mercadorias não fiquem encalhadas na alfândega senegalesa,
situação que representa a circunstância mais temida pelos organizadores dos containers. Uma
vez que as coisas saíram do cais em Dakar, elas são vendidas in loco ou são entregues para os 217 Nesses casos, a tipologia de circuito gerada pode ser considerada a complexificação da modalidade exercida
pelos GPs, no sentido que o sujeito que organiza e promove o envio dos itens atua tanto como correio informal
quanto como comerciante. Como veremos, optar por desenvolver esse serviço para os próprios conterrâneos
representa uma escolha que muda estruturalmente o trabalho do responsável pelo container, acarretando um
conjunto de responsabilidades que nem todos estão dispostos a sustentar.
215
colaboradores do organizador do container em Dakar, os quais as consignarão sucessivamente
para os respectivos receptores, ou, ainda, poderão ser transportadas para outras cidades do
Senegal e passar pelo mesmo processo. A destinação das coisas a partir de Turim, quando o
organizador oferta o serviço de correio, inclui também as cidades de Louga e Touba, como
podemos ver na foto abaixo.
Foto 26 - Anúncio de saída do container na lavanderia do senhor Diop (foram cancelados nomes e
números de telefones para preservar a privacidade dos que atuam nesse circuito).
A propaganda aqui apresentada, que estava exposta na lavanderia do senhor Diop,
divulga o serviço de correio oferecido por Macky Tall218, comerciante senegalês, que “fa
container”, como dizem em italiano os meus colaboradores. O cartaz especifica: o lugar de
saída do container, o nome e contato telefônico do organizador/responsável, a data de saída e
as três cidades de destino, das quais para a primeira (Dakar) se indica o bairro onde as coisas
serão disponibilizadas (nesse caso, Parcelles Assenies, onde Macky tem um depósito). Junto
aos lugares de destino alcançados pelo serviço, são fornecidos os nomes e números de
218De etnia wolof, tem 57 anos. Originário da região de Louga atua há 13 anos como organizador de container e
correio.
216
telefone dos colaboradores do organizador/responsável que trabalham in loco. Os emissores
que optam por enviar coisas com Macky podem, assim, planejar o tempo de entrega das
coisas e informar os respectivos receptores sobre quem contatar para retirá-las e,
aproximadamente, quando. No caso específico desse cartaz, podemos ainda perceber que,
para a cidade de Touba, a pessoa responsável para a entrega dos itens é o mesmo organizador
do container. Esse dado indica, provavelmente, que Macky seguirá os itens enviados de Turim
para esse destino e, ali, desempenhará também a função de entrega. A falta de informação
relativa à tipologia de serviço realizado (operar como correio) está associada, por um lado, ao
fato de que a prática de entrega de itens via container no Senegal é conhecida pelos
senegaleses em Turim, os quais já sabem quem realiza esse trabalho e, por outro, representa
uma maneira de tutelar-se, pois se trata de uma atividade informal que poderia ser sujeita a
sanções.
Temos observado que a estrutura que compõe as redes é hierárquica: o
organizador/responsável, seja quando atua como comerciante enviando unicamente as suas
mercadorias seja quando oferece o serviço de correio, ocupa um lugar central e de maior
responsabilidade em relação aos demais sujeitos que participam do circuito. Auxiliado ou não
por um colaborador e/ou um consulente, como veremos, ele define amplamente tempos e
modalidades do trabalho. Outras figuras centrais do ponto de vista político são o responsável
pelo carregamento do container e os transitaires.
Mas como se constroem os laços entre os sujeitos que compõem as redes? Como se
estabelecem os vínculos, como são negociados, como são rompidos? Sobre dinâmicas de
interação, modalidades de circulação das coisas e práticas comerciais, aprofundaremos a
seguir. Por enquanto, adiantamos que três valores centrais pautam os arranjos relacionais: por
um lado, ngor (honradez no sentido de retidão, honestidade) e conhecimento - que produzem
“confiança”, identificada também em outros contextos como requisito para estabelecer as
alianças – e, por outro, mousse (esperteza), que pode produzir conflitos e negociações
dinamizando as relações ou, ainda, determinar a suspensão das mesmas.
6.3.2 Aquisição das coisas
Trataremos em seguida sobre a aquisição das coisas, entendendo com o termo
“aquisição” as diversas modalidades de obtenção dos itens por parte dos organizadores de
containers e emissores. Considere, também, que nos itens subsequentes focaremos
217
principalmente sobre o modelo de circuito comercial baseado no envio de containers, pois,
sendo mais articulado e abrangente, foi objeto de maior atenção durante a pesquisa.
No capítulo 2, tratamos da trajetória migratória e profissional, dentre outros, de
Babacar Diop, técnico/reparador de geladeiras e caldeiras. Vimos que, além de atuar nessa
área, ele também trabalhou como comerciante comprando e enviando geladeiras e outros itens
de Turim para Dakar. Para pensar a circulação das coisas e as dinâmicas relacionais que esse
movimento implica no contexto dos circuitos comerciais aqui tratados, retomamos o caso dele
por ser um dos mais extensos do ponto de vista diacrônico - Babacar, de fato, atuou por quase
vinte anos realizando compra/envio/venda de mercadorias entre Turim e Dakar – e também
por ter sido um dos comerciantes que participaram mais ativamente da pesquisa.
Babacar realizou seu primeiro container em 1997. A ideia de comprar em Turim e
revender em Dakar surgiu inspirando-se no trabalho dos primeiros migrantes que foram para
Europa. Começou sua atividade investindo em alguns aspectos de sua trajetória profissional
de forma específica e planejada: ele optou por aproveitar do conhecimento técnico que tem
sobre geladeiras e da sua inserção estável em Turim para comprar itens aqui e comercializá-
los lá. Segundo Babacar, no final da década de 90, esse tipo de negócio era conveniente, pois
a demanda em Dakar era ampla, enquanto a oferta era bastante restrita.
Naquela época, era um bom negócio: você revendia uma geladeira por 350
euros, agora o preço caiu pela metade. Eu pegava frigo e motores de
geladeiras estragados, era conveniente assim, porque com 4/5 euros você
pagava a reparação lá. Encontrava aqui um frigo por 20 euros que não
funcionava ou por 30 funcionante... o comprava em ferros velhos ou feiras
como o Balôn. Em Dakar, logo que abria o container, vendia tudo porque
éramos poucos a fazer esse trabalho... umas 10 pessoas que moravam na
França, Holanda, Itália... a gente se conhecia, trocávamos clientes, mas
quando a oferta aumentou muito, o mercado desregulou.
O primeiro container, de 40 pés, segundo Babacar, foi um “fracasso”, como acontece
com a maioria dos comerciantes com os quais conversei. Ele carregou, junto com um amigo,
geladeiras e 800 motores de frigo, mas, quando chegou em Dakar, “metade disso foi comido
pela família”. A modalidade segundo a qual a família “comeu” a sua renda se deu pelo fato de
que a maioria dos parentes compravam os itens dando uma entrada e, mesmo que tivessem se
comprometido a pagar o restante da soma sucessivamente, nunca quitaram as dívidas. As
barganhas eram feitas acionando como intermediária a avó que, para cada parente, exortava
Babacar a confiar neles e ser benevolente. Pelas perdas financeiras sofridas, ele demorou dois
anos a retomar a atividade. Realizou o container sucessivo em 1999: esse foi de 20 pés,
218
carregado com os mesmos materiais, mas “sem repetir os erros cometidos anteriormente,
como, por exemplo, adquirir geladeiras no frost ou motores que não eram compatíveis no
Senegal”. “Foi tudo planejado e feito devagar”. Demorou seis meses para juntar as
mercadorias e, quando foi para Dakar, colocou “limites aos parentes”. “Disse para minha vó...
Você quer que lhes ajude? Então tem que me deixar trabalhar”. Para os parentes que
reivindicavam o fato de que a vez anterior ele tinha vendido a mercadoria parcelada, ele
mostrava a sua caderneta: “olha ele...”, indicando nomes e valores, “nunca me pagou, fiquei
no prejuízo”. As novas regras estabelecidas consistiam em pagar à vista ou em duas vezes
entregando a peça após ter pagado a última parcela. Os parentes “ficaram bravos”, mas dessa
vez ele fez bons negócios e vendeu toda a mercadoria em dois meses e meio. Babacar
trabalhou dessa forma também nos anos seguintes, até 2006, quando, segundo seu relato,
interrompeu a atividade pois
muitos começaram a fazer o mesmo trabalho. As pessoas no Senegal viam
que estava ganhando bem, chamavam os parentes na Europa e diziam de
fazer o mesmo. Assim muitos conhecidos começaram a fazer container e
começaram os problemas. Onde costumava comprar frigo subiram os preços,
o mercado estragou e em 2006 parei. Também tinha dificuldade para vender
em Dakar porque muitos da Europa retornavam para vender isso.
Tendo percebido a conveniência desse tipo de negócio, Babacar não se rendeu à
concorrência e decidiu ir a Dakar para verificar quais outros itens poderia passar a
comercializar para continuar a atividade. “No Senegal, tem muita demanda de coisas que na
Europa são vendidas a preços convenientes e são de boa qualidade, mas precisa descobrir o
que. O mercado muda. Por isso, fui lá só para isso e passeava pela cidade observando...”.
Durante essa supervisão, ele percebeu que havia demanda de bainhas para telhado, de
qualidade, pois no Senegal eram vendidas peças importadas da Costa do Marfim, frágeis e
caras. Assim, ligou para o irmão na Itália, pediu para se informar sobre os preços desses itens
ao atacado e descobriu que o valor pedido lá era três vezes menor do que em Dakar. De volta
para Turim, Babacar achou um fornecedor que vendia bainhas a um preço conveniente: esse
último as adquiria de uma construtora civil que, superfaturando o trabalho, estocava o
material de construção inutilizado e o revendia a um preço abaixo do mercado. Começou a
comprar as bainhas ao preço de 140.000 liras (72 euros) por tonelada com garantia de 20
anos, tendo a certeza de fazer um bom negócio. De fato, esses itens não tinham concorrentes
no mercado de Dakar. Como o material era muito pesado, não podia preencher o container
219
unicamente com essas mercadorias e começou a enviar também outras coisas, de tipologia
diferente. Babacar trabalhou assim por dois anos:
ganhei muito dinheiro e todo mundo estava de olho. Os atacadistas em Dakar
me perguntavam onde me fornecia e eu... mentia, respondia que adquiria as
coisas na Holanda. Mas, você sabe, os senegaleses são muito espertos e
fofoqueiros... descobriram que eu morava aqui e entraram em contato com
amigos e parentes em Turim - sabe que toda a família em Dakar tem
conhecidos e parentes que vivem fora –, pediam para descobrir onde me
fornecia. Foi assim que, sem querer, uma pessoa que trabalhava comigo
passou a informação. Eu tinha um acordo de prioridade com o meu
fornecedor: quando ele me ligou dizendo que meus conterrâneos tinham ido
lá querendo comprar toda a mercadoria que ele tinha na loja ao dobro do
preço que a vendia para mim, eu lhe lembrei do nosso combinado e propus
de cobrir esses custos, ele aceitou, mas quando fui lá ele não tinha mais
nada, já tinha vendido tudo, e perdi o negócio.
Após essa situação, Babacar parou a atividade por um tempo e a retomou
esporadicamente enviando peças por meio de containers organizados por terceiros até 2017.
Nos últimos dois anos, ele voltou a morar em Dakar. Enquanto um dos seus filhos ainda
reside em Turim - onde cursou uma escola técnica e de vez em quando envia coisas que lhe
são encomendadas no Senegal -, Babacar atualmente ganha a própria renda alugando quartos
para turistas, que edificou no andar superior de sua casa no bairro de Almadies, e mobiliou
com peças compradas em Turim e enviadas para Dakar ao longo dos anos. Ele ainda treina
um clube de football em Dakar, tendo, assim, realizado um sonho da infância (ele foi jogador,
carreira que abandonou para prosseguir os estudos), e planeja voltar para Itália para tentar
fechar algum contrato com treinadores italianos, já que, como ele disse, “no meu clube tem
meninos muito bons de bola”.
Retomaremos, em seguida, trechos e modalidades do percurso de Babacar relativos à
aquisição das mercadorias, enquanto, sucessivamente, iremos aprofundar outras questões
centrais que caracterizam o circuito comercial (como as estratégias de venda, concorrência
etc.).
O motivo central que impulsiona esse tipo de comércio, como Babacar verbaliza no
caso específico das geladeiras, é o mesmo que ouvi em outras ocasiões: na Itália se podem
adquirir itens que são requeridos no Senegal e estes tem uma qualidade e um preço mais
convenientes dos produtos que são oferecidos no Senegal ou nos países próximos. O princípio
que sustenta a aquisição e deslocamento das coisas se baseia sobre a disparidade de
oferta/demanda/consumo entre os dois países: na Itália, a importância da demanda e consumo
permite, por um lado, a contenção dos preços e, por outro, cria uma excedência, como vimos
220
no caso da história típica da geladeira e na experiência de Babacar, que abre espaço para o
florescimento do mercado do usado. Em relação a essa situação, muitas vezes, ouvi dizer:
“aqui sobram coisas que lá precisam”. Essa lógica compensatória é a que rege parte do
circuito e se aplica a diversas tipologias de coisas que transitam daqui para lá.
Como em outros relatos em que pude verificar, a primeira experiência de exportação
de um container, assim como as fases iniciais relativas ao envio de mercadorias por parte dos
emissores, dificilmente tem bom êxito. Apesar do comerciante ter recolhido informações e
saber, no plano teórico, como atuar, a experiência prática sempre reserva surpresas e situações
desafiadoras. O “fracasso” descrito por Babacar - reconduzido a trapaças dos parentes,
dinâmica que, como já exposto, é corriqueira no contexto familiar – nem sempre é corrigido e
recuperado pelo comerciante, mas pode afetá-lo de forma estrutural, impedindo a retomada da
atividade econômica. O “savoir circulaire” à qual Tarrius se refere como pressuposto para o
funcionamento dos circuitos comerciais transterritoriais, nesse caso, assume a feição de uma
capacidade específica: saber, e estar disposto, a flexionar tanto estratégias comerciais
preestabelecidas quanto prescrições morais adaptando-as à situação contingente.
No caso de Babacar, por exemplo, adotar a postura de solidariedade com os familiares
sugerida pela avó, estrategicamente acionada pelos parentes como mediadora, é, do ponto de
vista moral, a postura correta a ser seguida, mas levará ao fracasso financeiro do comerciante.
Como em outras situações, de fato, os parentes agem com esperteza: inicialmente, utilizam a
pessoa mais influente da família para interceder (segundo a lógica das classes de idade, ela é
hierarquicamente superior) e sucessivamente não honram a promessa feita (a de quitar a
dívida). Frente a essa situação, que o prejudica economicamente, Babacar deve mudar de
postura. Na ocasião sucessiva, quando se aciona a mesma dinâmica relacional, aos pedidos da
avó, ele retruca estrategicamente usando a própria lógica da “ajuda” como argumento que irá
justificar a sua mudança de atitude com os parentes. Babacar passa a assumir uma postura
intransigente, não cede aos pedidos e impõe a sua regra: pagamento à vista ou parcelamento
em duas vezes com entrega da mercadoria ao segundo pagamento. Essa nova atitude é
apresentada à avó como contra-esperteza, por assim dizer: Babacar a apresenta como
condição necessária para poder exercer o papel de provedor que lhe é conferido. Dessa forma,
ele se esquiva do pior “rumor” que poderia surgir após ter adquirido esse novo
comportamento, isto é, que ele não favoreceria os familiares para preservar o seu benefício
financeiro e, então, estaria agindo egoisticamente. Saber dizer “não”, estabelecer regras para
que os parentes não “comam” o dinheiro ganho pelos emissores e não estraguem seus
negócios sem afetar a própria reputação de provedores e pessoas com n´gor (honradez)
221
representa o desafio dos comerciantes. Essa capacidade, sobre a qual trataremos mais
extensamente no último item, é imprescindível tanto para o bom êxito do business
empreendido quanto para a manutenção de uma imagem positiva.
Em relação às mercadorias, tem-se observado que os senegaleses optam por adquirir
principalmente itens funcionais de uso cotidiano. Há comerciantes que escolhem
comercializar uma tipologia específica de artigo. A especialização na venda de um certo
produto, como vimos no caso de Babacar, tende a ser temporária, pois está sujeita à mudança
de demanda: entre os meus interlocutores, somente um declarou tratar unicamente um tipo de
item de forma contínua. Outros organizadores/responsáveis de container e emissores optam
por adquirir e enviar peças diversificadas. Como descrito precedentemente, existe uma
compartimentação de gênero relativa à circulação dos produtos: os artigos de uso
exclusivamente feminino e para crianças são adquiridos por mulheres ou encomendado por
elas. Sutiã, calcinhas, bolsas, cabelos para confeccionar perucas, tecidos, brinquedos,
bijuterias são, como vimos anteriormente, algumas das coisas compradas e enviadas por
mulheres ou encomendadas por elas do Senegal a emissores masculinos. Por outro lado, as
coisas comercializadas pelos homens são: mobílias, maquinários de diversos tipos
(impressoras, compressores de ar, peças de automóveis, eletroeletrônicos, etc.), peças de
carro, materiais utilizados na construção civil (bainhas, como vimos, azulejos, telhas...), mas
também roupas e produtos alimentares.
As coisas que circulam não podem ser classificadas de forma rígida, pois, como disse
Babacar, mudam dependendo da demanda e do tipo de oferta contingente. Em relação às
geladeiras, por exemplo, enquanto Babacar considerou conveniente realizar o negócio até
quando a oferta no Senegal foi restrita, outros comerciantes reputam vantajosa a venda desse
artigo até o momento presente. O que nesse caso influi sobre a escolha é o padrão de ganho
esperado em relação à venda do produto: sendo que Babacar empreendeu esse business
quando tinha pouca concorrência, com a qual aliás estabelecia uma relação de parceria,
conseguia obter um lucro satisfatório. No momento em que outros conterrâneos começaram a
realizar a mesma atividade e o ganho diminuiu, passou a considerá-la uma prática não
vantajosa. Diversamente, outros comerciantes que se inseriram posteriormente no mercado,
quando estava “desregulado”, segundo a perspectiva de Babacar, se satisfazem com o lucro
obtido atualmente e continuam realizando o negócio. Como veremos em seguida, também
Babacar não descartou completamente esse artigo, mas optou por não o comercializar de
forma exclusiva.
222
Para etnografar os circuitos, interessa observar também quais são os itens que são
excluídos ou vetados e o porquê. Observou-se, por exemplo, que os alimentos que contém
carne de porco e as bebidas alcoólicas tendem a não circularem, de fato, os
organizadores/responsáveis, que são quase todos de religião muçulmana, não somente não os
comercializam, mas podem também se negarem a transportá-los e entregá-los. François Sané,
por exemplo, sobre o qual tratamos no capítulo 2, além das atividades já descritas (professor,
mediador cultural, “procacciatore d´affari”), é também comerciante e “faz container”. Além
de comprar, enviar e revender pneus, o artigo que comercializava no período da pesquisa,
também exporta vinho. Essa exceção se explica pela sua orientação religiosa: François foi o
único interlocutor de tradição cristã, a religião de sua família, e que se autodefine, atualmente,
como “animista”219. Interessado na exportação do vinho, François consegui viabilizar a
circulação dessa bebida somente quando começou a organizar e enviar container
pessoalmente, pois, enquanto emissor, nenhum conterrâneo disponibilizou o próprio serviço
de correio para exportar tal artigo. Esse caso indica que a composição das pessoas nas redes
também pode mudar dependendo da tipologia de itens que irão transitar.
Mas como se define o que deve ser adquirido? Como observamos na narrativa de
Babacar, o conhecimento, que implica em saberes múltiplos relativos aos dois territórios (qual
demanda pode ser satisfeita no Senegal, onde adquirir os produtos na Itália, como e com quais
valores), pode tanto surgir da prática circulatória do próprio comerciante – quando ele “vai e
vem” entre Itália e Senegal - ou por meio da rede na qual está inserido (como quando Babacar
verifica o preço das bainhas na Itália enquanto está no Senegal, informação que lhe permite
confirmar que se trata de um bom negócio e colocá-lo em prática). Estar inserido em uma rede
adequada é, portanto, pressuposto fundamental, assim como ser esperto (mousse) e versátil.
Essas qualidades (conhecimento e esperteza) se aplicam não somente para definir e obter
coisas que, como tais, serão revendidas com sucesso no mercado senegalês (como os pneus e
os vinhos de François ou as calcinhas e sutiãs de Khady), mas também para saber identificar
itens que possam mudar de status e, então, tornar-se um bom negócio no Senegal. O caso dos
“frigo e motores de geladeiras estragados” citado por Babacar é, nesse sentido, emblemático.
Nesse contexto específico, a escolha não se dá somente entre itens funcionantes, mas também
entre os que estão danificados. Dentre essa categoria, ele sabe quais podem ser reparados,
identificação possível pelos conhecimentos técnicos que ele possui enquanto reparador. A
219 O nome François lhe foi dado pelo culto a São Francisco de Assis por parte dos pais. Ele se referiu ao termo
“animismo” com a seguinte expressão: “a religião tradicional, a nossa religião, a que a gente tinha antes da
invasão islâmica e da colonização europeia”. Se considera praticante e é seguido, no Senegal, por um guia
espiritual.
223
possibilidade desse tipo de negócio, que se baseia na transformação de uma peça que seria
descartada em uma nova mercadoria, é possível graças a uma categoria profissional da qual
Babacar faz parte e sobre a qual trataremos no último item: os técnicos/reparadores, que, com
suas habilidades, no Senegal, não somente concertam, mas recriam as coisas. Nesse contexto,
temos, portanto, um processo de ressignificação que flexiona a noção de “conversation”
citada pela Zelizer (2002) como característica dos circuitos comerciais, da dimensão
estritamente econômico-financeira para aquela funcional e simbólica das mercadorias.
Organizadores de container e emissores se abastecem em diversos lugares como feiras
e lojas, mas podem também utilizar outros espaços como, por exemplo, anúncios online
promovidos por sites específicos. Esse último meio não é utilizado por todos os comerciantes
pois requer o uso da internet e de um e-mail pessoal, conhecimento que nem todos possuem.
Se, em relação à compra de mercadorias novas, que representa a quantidade maior de coisas
que circulam, a compra de estoques é priorizada pela conveniência dos preços, em relação aos
itens de segunda mão e, em especifico, aos eletrodomésticos se tem observado que, além das
feiras, dos ferros velhos e das pessoas particulares que vendem ou doam suas peças via
anúncios on-line, outra fonte de aquisição são os hipermercados. Esses últimos costumam
fazer promoções oferecendo produtos novos a um preço menor, entregando as peças que irão
ser substituídas. Alguns desses comércios, então, ao invés de encaminhar os eletrodomésticos
devolvidos pelos clientes para o AMIAT (Azienda Multiservizi Igiene Ambientale Torino),
processo que tem custo, no final do dia, ou de noite, colocam as peças na rua, geralmente nas
áreas anteriores à loja, e estas passam a ser retiradas pelos comerciantes. De forma similar,
também peças com defeitos de fábrica podem ser descartadas e seguir esse percurso. O acordo
entre os comerciantes que irão retirá-las e os hipermercados pode ser direto ou tácito e se, por
um lado, contribui para viabilizar a circulação das coisas nos circuitos comerciais que
observamos, por outro, compõe, como veremos, uma dinâmica à qual a alfândega italiana
também participa: o escoamento dos resíduos.
Ao longo da pesquisa, etnografei o processo de aquisição das coisas com diversos
interlocutores. Pude presenciar processos de escolha e contratações com os fornecedores em
vários contextos, principalmente em feiras do usado (o Balôn e outro mercado que acontece
aos domingos) e no hábito dos anúncios online realizados por pessoas particulares. É
importante ressaltar que, em relação aos itens usados, a obtenção das peças não se dá
unicamente pela troca comercial, mas também por doação. Essa situação pode se verificar de
diversas maneiras: os emissores podem receber coisas doadas por amigos, principalmente
italianos, e/ou podem procurá-las mediante anúncios online ou em instituições beneficentes.
224
Nesses casos e em situações comerciais de barganha, se tem percebido que os emissores,
também quando se trata de comerciantes experientes, tendem a assumir o papel do
“ingênuo”/“humilde” frente aos fornecedores. Certa vez, por exemplo, na feira Balôn,
Babacar, após ter descartado a compra de um motor de geladeira não funcionante por não
conseguir ver, sem desmontá-lo, qual era o defeito, passou a contratar o preço de um motor
compressor com um comerciante albanês, que lhe cobrava 60 euros. A barganha se deu da
seguinte forma:
- B220.: “... preciso levá-lo para África, pode cobrar menos? Poderia me fazer (o preço
de) 40, 30 euros..., você consegue? Assim o compro e o levo lá e se funciona tudo bem....
sabe, não é o meu trabalho, eu compro somente assim...”
- C.: “Meu amigo, 30? Não menos de 50... é novo, funciona, vale 300 euros novo.”
- B.: “Para falar a verdade, só tenho 40 euros...”
- C.: “45...., peça 5 euros para a sua amiga (se referindo a mim).”
Babacar enfia a mão no bolso e junta as moedas.
- B.: “olha aqui, é verdade, tenho somente ... 42 euros. Tem umas moedas, por favor?”,
pergunta-me, e lhe dou um euro. “Pronto!” e lhe entrega o dinheiro. “Volto a buscá-lo
depois!”.
O vendedor solta uma gargalhada e diz:
- C.: “Mas ele tem braços curtos, eih?”
Todo mundo ri.
Logo depois que se afastou da banca, Babacar me diz: “acabei de fazer um bom
negócio. Esse motor vou revendê-lo por 400 euros no Senegal. Eu conheço muito bem esse
motor, é o meu trabalho, pode também ser usado para (acionar) os elevadores. Eu compro as
coisas que conheço, sei que essa peça não fica encalhada lá (em Dakar). Compro somente o
que tem venda garantida”.
Especificar a destinação da mercadoria no processo da barganha representa uma
estratégia comunicativa usada frequentemente pelos meus interlocutores com fornecedores
não africanos, e se baseia na imagem da “África enquanto país carente”. Acionando o
pressuposto segundo o qual “lá precisaria” da coisa sobre a qual se contrata, se explicita que
no Senegal não somente há demanda, mas também há necessidade. O paradigma da assimetria
socioeconômica entre os países (Itália/Senegal) joga, então, um papel importante e tem como
objetivo colocar o fornecedor na condição de ser mais indulgente na definição do preço de
220 Indico “B.” por Babacar e “C.” por comerciante, o vendedor da peça.
225
venda. É preciso destacar que essa lógica, quando utilizada na contratação, sempre fica
implícita, nunca é verbalizada. O jogo permanece velado, situação que preserva o comerciante
senegalês e lhe permite se manter em uma dimensão de jom (dignidade). Por outro lado,
Babacar aciona a “ingenuidade”, papel que assume nesse contexto por desconhecer o
vendedor albanês. Essa atitude pode mudar e se transmutar em uma postura oposta, esperta e
cuidadosa, quando o comerciante tem uma relação continuativa com o fornecedor, como no
caso de Babacar com o vendedor de bainhas, com o qual utilizava o acordo de prioridade para
retalhar a concorrência.
Ser estrangeiro, especificamente não europeu, e fazer negócio entre si representa uma
variável importante na determinação dos preços. Existe um sentimento de solidariedade entre
quem não pertence ao “eldorado” europeu, que é frequentemente performatizado nas
barganhas com uso de expressões específicas: “somos irmãos!”, ouvi dizer em diversas
ocasiões na feira Balôn entre vendedores e clientes estrangeiros para ressaltar essa
cumplicidade e convertê-la em benefício financeiro. A partir da verbalização dessa condição
compartilhada, podem ser expostos vários outros argumentos. No mesmo caso descrito acima,
por exemplo, segundo Babacar, a minha presença durante a barganha afetou o resultado da
contratação: “com você, me cobram mais caro. Aquele motor, se você não tivesse estado
comigo, teria me custado 30 euros.... Quando eles veem uma italiana, cobram mais caro...
quando somos só entre nós falamos: “não tem mais trabalho....”, “...agora está difícil...””, me
disse ele logo depois da compra. Para não perder a oportunidade de acompanhar os meus
colaboradores nessa fase do circuito comercial e não os prejudicar, propus, então, colocar um
véu na cabeça e me disfarçar de muçulmana, aproveitando da minha feição médio-oriental.
Combinamos com os meus informantes que seria apresentada como esposa, iraniana, já que
não falo a língua árabe e muitos fornecedores são marroquinos. Desde então, esta estratégia
funcionou: os meus colaboradores se sentiram mais tranquilos e nenhum outro fornecedor me
envolveu nas contratações, como tinha acontecido na situação exposta acima.
Os preços que os comerciantes senegaleses estão dispostos a pagar pelas mercadorias
equivalem no máximo a um terço do valor que irão cobrar pela venda221. Essa proporção,
compartilhada por quase todos os meus interlocutores, é explicada pelo fato que, além da
221 Na maioria das situações em que observei, os comerciantes têm uma margem de ganho muito maior. Em
ocasião daquela compra, por exemplo, Babacar adquiriu, na feira Balôn, quatro ventiladores de teto por 20 euros
e declarou poder revendê-los a 60 euros cada um. Esse negócio, segundo ele, teria sido vaiável pelo fato de que,
dois anos antes, ele tinha adquirido um estoque de ventiladores parecidos, pagos 5 euros cada um, que revendeu
em Dakar pelo valor de 55/70 euros cada.
226
quantia de dinheiro paga ao fornecedor pela aquisição da peça, é preciso calcular o custo de
seu deslocamento. Sobre essa dinâmica, trataremos no item a seguir.
Foto 27 - Motor de geladeira descartado por Babacar.
6.3.3 Armazenamentos em Turim e envio para Dakar
Em Turim, tanto os emissores que entregam as coisas aos correios (via mar ou na
modalidade GP), quanto os organizadores/responsáveis dos contêineres não atuam sozinhos.
A atividade de compra e exportação para o Senegal, ainda que possa ser conduzida por quem
adquire, nunca é realizada individualmente, mas precisa, como vimos anteriormente, ser
viabilizada por um conjunto de sujeitos em parceria. O próprio processo de aquisição, por
exemplo, pode ser realizado com o respaldo de um consultor. Como nem sempre o comprador
tem conhecimento suficiente da mercadoria que quer adquirir - pressuposto fundamental para
concretizar um bom negócio –, ele pode procurar o serviço de um especialista que lhe ofereça
as informações necessárias para acertar a compra. Omar Lô, por exemplo, que antes do
expatrio trabalhava como mecânico em Dakar, fornece consultorias em Turim para quem
adquire e exporta pneus usados para África Ocidental. Além de realizar seu próprio business -
227
há anos compra esses itens e os envia com um organizador de container senegalês -, oferece
um serviço de consultoria não somente para seus conterrâneos, mas também para
comerciantes ganeses, nigerianos e da Costa do Marfim que trabalham na região de Piemonte
e Lombardia. Eu o conheci enquanto trabalhava para François que, naquela ocasião, estava
realizando a exportação do primeiro container de pneus para Dakar. A parceria do emissor
com o consultor dificilmente é fixa, pois o objetivo do primeiro, geralmente, é de se tornar
autônomo. O consultor, então, além de disponibilizar pareceres especializados, se torna um
expert com o qual aprender.
Complementar ou aperfeiçoar o conhecimento sobre determinadas mercadorias, mas
também sobre dinâmicas de venda no Senegal, é um processo que, além de ser suportado pela
atuação profissional dos consultores, pode ser realizado de maneira informal. Entre os meus
colaboradores de pesquisa, de fato, existe uma circulação contínua de informações - em forma
de dicas e conselhos – que são trocadas e podem ser definidas, pelos meus colaboradores, em
termos de “ajuda”. Se no caso dos consultores o compenso oferecido pelas informações é
regulado pela quantia paga pelo serviço, no caso das dicas e conselhos informais são
acionadas contraprestações diversas, as quais, como tratado no capítulo anterior, quando não
satisfeitas adequadamente, podem transformar o vínculo de parceria em relação conflituosa. O
campo relativo à circulação das informações entorno da atividade dos emissores, de fato, pode
se tornar ainda mais tenso pela forte sociabilidade que caracteriza os laços relacionais entre
senegaleses. Podemos ter uma noção do efeito dessa dinâmica na dimensão comercial
lembrando o caso citado por Babacar sobre a sua experiencia de venda das bainhas. A
concorrência, nessa situação, se articula por meio de rumores, do fortalecimento dos laços de
parceria (entre sujeitos que estão em Dakar e parentes ou conhecidos em Turim) e da
esperteza. A mescla desses elementos finalizados à identificação do fornecedor de Babacar em
Turim detona seu negócio. É importante ressaltar que o uso da esperteza e os benefícios
obtidos por meio dessa tendem a não ser desfrutados individualmente pelo/s trapaceiro/s, mas
são, porque devem ser, compartilhados com os sujeitos do próprio entorno social.
A rede de colaboração entre emissores e outros atores é também ativada na fase
sucessiva à compra. As coisas, de fato, uma vez adquiridas, devem ser transportadas e
armazenadas. Dispor de um carro ou de uma van, dependendo do tamanho e quantidade de
peças adquiridas, representa uma prerrogativa para os emissores, assim como ter parceria com
alguém para o carregamento e descarregamento das coisas. Nessas situações, entram em jogo
pessoas que podem ter um vínculo informal com os comerciantes, ser amigos, por exemplo,
e/ou profissionais contratados, como transportadores e carregadores. Em relação à
228
composição étnica das redes, percebe-se que esses cargos podem ser ocupados por sujeitos de
outras nacionalidades, principalmente marroquinos222. Com os primeiros, que frequentemente
trabalham em parceria com os segundos, os emissores podem ter uma relação continuativa.
Nesse caso, os transportadores podem assumir uma função que extrapola a atividade pela qual
são contratados.
Certa vez, por exemplo, Alassane Sylla foi contatado pelo transportador com o qual
costuma trabalhar para lhe comunicar que uma grande máquina de corte para papel tinha sido
depositada na rua. O dono da serigrafia onde estava alocada quis se desfazer dela e, para
driblar a rota do despacho formal, que tem custo, a expôs na rua esperando que alguém tivesse
interesse e a retirasse. Como no caso dos hipermercados, sobre o qual se argumentou
anteriormente, a prática comercial de exportação de coisas usadas de Turim para países extra-
europeus por parte de comerciantes oriundos dessas regiões, é conhecida pelos proprietários
das lojas e passa a representar não somente uma alternativa financeiramente conveniente para
“se desfazer dos lixos”, mas uma possibilidade de lucrar com eles. Na situação citada acima,
por exemplo, para retirar a máquina, Alassane pagou 200 euros à um carregador que ele
contratou para levantar a peça com uma grua e 200 euros para o transportador que a lhe tinha
sinalizado. Exportada no container que ele mesmo organiza, Alassane a revendeu em Touba
por 1000 euros. Ele conta que aquela vez conseguiu levar embora a peça sem precisar pagar,
mas o desfecho dessa situação não acontece sempre dessa forma. Apesar dos proprietários
considerarem essas coisas como lixos, sabendo que há interesse comercial por parte de
comerciantes extra-europeus, quando esses se apresentam para retirá-las, são cobrados. No
momento da interação, de fato, os donos assumem a perspectiva de seus interlocutores,
projetam nas coisas o valor que essas irão adquirir onde há demanda, e as tornam, então,
mercadorias. “Para retirar gratuitamente essas peças, precisa blefar”, explica Alassane, “fingir
que se tem pouco interesse e que a coisa pode também ser deixada ali”. “Se todo mundo busca
aquela mesma coisa, porém, fica difícil... se ninguém a procura, ou não a viu, é mais fácil
tratar”, conclui. No momento em que a coisa é exposta na rua, a ambiguidade de seu duplo
status (lixo/mercadoria) que se produz pelo cruzamento do olhar de sujeitos que trilham
percursos socioeconômicos distintos desencadeia uma dupla dinâmica: por um lado, a
coisa/mercadoria passa a circular dentro do circuito comercial que estamos observando, por
outro, a coisa/lixo é despachada e é injetada em um circuito de escoamento/reciclo.
222 Temos percebido, assim como observado por Paul Stoller (2002), que os comerciantes senegaleses, todos
muçulmanos, com exceção de François, no contexto do circuito tratado, tendem a escolher colaboradores da
mesma orientação religiosa.
229
Estar atento ao que é depositado na beira das estradas é uma postura compartilhada
pelos comerciantes e seus colaboradores, os quais sabem que estar no local certo no momento
certo pode viabilizar um business. Isso impacta também os sentidos da circulação desses
sujeitos no espaço urbano, de fato, quem busca esse tipo de negócio pode optar por realizar
determinados percursos na cidade em detrimento de outros para verificar a presença de
“coisas interessantes” depositadas fora das lojas.
O maquinário para cortar papel, os ventiladores, o compressor de ar, os pneus, assim
como as outras coisas adquiridas pelos emissores precisam ser armazenadas até o momento do
envio. Ter espaço para guardá-las é uma questão central que os meus colaboradores enfrentam
de maneiras distintas. Há quem aluga depósitos em galpões, quem utiliza o próprio porão ou
loca um desses espaços (no bairro de Porta Palazzo, há muita oferta nesse sentido) ou, ainda,
quem guarda os itens na própria casa. Nesse último caso, principalmente nos dias antes da
saída do container, os quartos nos apartamentos dos emissores ficam repletos de uma
multiplicidade inimaginável de coisas, espalhadas por diversas superfícies. As mercadorias se
misturam com as peças que serão enviadas aos familiares como presentes ou para serem
guardadas.
Mas como os emissores escolhem os correios aos quais entregar esses pertences?
Mesmo que o preço cobrado represente uma variável, o elemento que parece mais
significativo é a confiança. O respeito dos prazos de entrega e a integridade das coisas
enviadas são aspectos fundamentais para quem escolhe esse serviço. A confiança está
associada principalmente à experiência e, então, ao tempo de atuação: a pessoa que “faz
container” há mais tempo, de fato, não somente “sabe como a coisa funciona”, como me foi
relatado, mas também “conhece pessoas nas alfândegas aqui e lá”, condição que permite que
o container não fique encalhado. “Ter certeza de que as coisas chegarão” é a garantia que
viabiliza a escolha de um correio ao invés de outro e é pautada também no histórico de
fracassos e golpes sofridos pelos clientes/emissores com correios inexperientes ou trapaceiros.
Em relação a esses últimos, por exemplo, entre os meus colaboradores da pesquisa circula a
história de um organizador que recebeu o pagamento de seus clientes/emissores, contou ter
enviado um container que nunca chegou e, depois disso, fugiu para França.
Do lugar de armazenamento, as coisas ou são levadas para o depósito do
organizador/responsável do container pelos próprios emissores ou são retiradas por
transportadores e carregadores que colaboram com o organizador. Esse último requer que os
próprios clientes as embrulhem: quando chegarem em seu depósito devem estar prontas para
serem embarcadas. Empacotar as coisas tem a finalidade de protegê-las, mas também de
230
agrupá-las para que ocupem o menor espaço possível dentro do container. As peças avulsas de
pequeno ou médio tamanho são geralmente inseridas em bolsas pretas, chamadas pelos meus
interlocutores de “borsoni napoletani” (ver foto abaixo). Essas sacas muito resistentes são de
produção chinesa e são chamadas assim porque originariamente eram vendidas na cidade de
Nápoles. Aqui eram adquiridas pelos vendedores ambulantes senegaleses que trabalhavam na
praia (“vucumprá”) que as utilizavam para colocar as mercadorias. Atualmente são adquiridas
na região de Porta Palazzo em lojas chinesas que vendem ao atacado e cobram o mesmo preço
de venda ao varejo. De dois tamanhos diversos, “i borsoni napoletani” são cobrados
respectivamente 6 e 7 euros.
Foto 28 - “Borsone napoletano”.
Como tratado acima, as coisas devem ser empacotadas junto com um bilhete que
indique o nome, o número de telefone do receptor no Senegal e cidade de destino, para que os
colaboradores dos organizadores/responsáveis do container possam entrar em contato para a
retirada.
231
Foto 29 - Bilhete aplicado em embalagem (foi cancelado o número de telefone do receptor para
preservar a sua privacidade).
Bagagens, caixas, bolsas, mochilas e todos os tipos de mercadorias sobre as quais
tratamos anteriormente ocupam o depósito dos organizadores/correios alguns dias antes da
chegada do container para o carregamento. Essa tipologia de envio, que inclui a diversificação
dos tipos de produtos enviados, é chamada pelos comerciantes de “groupage”. Os valores
cobrados e pagos para o envio variam segundo alguns critérios. Para além do tamanho, o que
conta é a tipologia de peças associada à finalidade pela qual é enviada. Uma bolsa napolitana
que contém presentes para os parentes, como itens de uso cotidiano (roupas, alimentos etc.),
por exemplo, será cobrada menos do que outra que contém mercadorias. Se a mercadoria é
nova, seu transporte corresponderá a um valor maior do que o envio de itens usados. O
organizador/correio, portanto, aumenta o preço considerando como referência o suposto
ganho do emissor e/ou de seus colaboradores com a comercialização, no Senegal, do item em
questão223. Ainda uma vez, então, o status da coisa (dom ou mercadoria) é determinante na
configuração do circuito, pois regula o custo de seu próprio deslocamento.
A definição desse status se constrói, como no caso da interação entre donos das peças
depositadas nas ruas e comerciantes senegaleses, de forma relacional. Em ocasião da
contratação entre organizador e emissor, para definir preços e tempo de entrega, os dois
sujeitos em questão discutem “a natureza” das coisas enviadas. Como os clientes conhecem o
critério de cobrança utilizado pelos organizadores, quando apresentam a lista dos itens a
223 Segundo essa lógica, o envio de um “borsone napoletano” é cobrado, por exemplo, entre 50 e 100 euros.
232
serem enviados juntamente com as coisas, caso tratem de “mercadorias importantes”,
procurarão apresentá-las minimizando seu valor e funções. As barganhas por parte dos
emissores, portanto, tendem a ser norteadas por uma certa desvalorização das coisas. Essa
postura, porém, é contrabalanceada pelos conhecimentos do organizador, tanto relativos às
coisas em si, quanto aos próprios clientes. Os rumores que circulam nas redes, de fato, são
eficazes meios de informação que se intensificam em casos específicos, como quando alguém
está realizando um “bom business” (como vimos no caso de Babacar), ajudando, assim, o
organizador a definir o valor da cobrança. Por outro lado, a modalidade com a qual essa
última é realizada muda dependendo do organizador/correio e do tipo de relação que esse tem
com seu cliente. Também aqui, como em outras situações observadas, há uma tendência, por
parte de alguns emissores, a usar da esperteza para se beneficiar, chegando a criar prejuízo aos
organizadores224. Por isso, Alassane Sylla, por exemplo, cobra o preço da entrega à vista ou
em mais vezes, mas a dívida deve ser quitada para que as peças sejam enviadas. As coisas de
quem não cumpre o acordo permanecem em seu depósito. Ele as guarda por um tempo e,
sucessivamente, passa a considerá-las de sua propriedade.
O momento da contratação entre organizadores e emissores, que viabiliza a entrega e o
pagamento das coisas aos primeiros, se baseia sobre acordos pautados por garantias de ambas
as partes: por um lado, a necessidade dos organizadores de que as coisas tenham um status
lícito, por outro, o compromisso requerido pelos emissores de que os tempos de entrega sejam
respeitados. A origem lícita, dependendo da tipologia de produto, deve ser comprovada pela
nota fiscal da compra. Além disso, os itens devem ser listados por número e tipologia. A
preocupação de que, entre as coisas enviadas, estejam artigos ilegais, os quais, uma vez
descobertos, prejudicariam a carga toda e o próprio organizador, representa uma das maiores
preocupações por parte desses últimos, que, então, costumam, sistematicamente, controlá-
las225. Essa preocupação, que me foi explicitada por todos os organizadores, não exclui que
esse tipo de dinâmica possa se verificar. A receptação, por exemplo, é uma prática certamente
presente nesses circuitos e pode ser realizada de maneira consciente ou não intencional. Esse
último caso se pode verificar quando os itens usados são adquiridos nas feiras, situação na
qual se desconhece a sua procedência. Nesse sentido, como Babacar me disse em certa
ocasião, “o Balôn salva tudo”: essa afirmação, compartilhada por outros colaboradores, indica
224 O senhor Diop, por exemplo, que há mais de 10 anos organiza container e trabalha como correio, se queixava
da “desonestidade” de alguns clientes que não efetuavam os pagamentos combinados pelas entregas. Ele
costumava procurá-los pelo telefone e eles, sistematicamente, não o atendiam. 225 Transportar coisas de terceiros representa um risco que pode se tornar o motivo principal pelo qual alguns
comerciantes optam por não realizar o serviço de correio.
233
que Babacar, assim como outros comerciantes, compactuam situacionalmente com a prática
citada. Essa postura flexibiliza a prescrição, também religiosa, segundo a qual não se deve
comercializar ou fazer circular, também como presentes, coisas roubadas. O status ilegal
dessas, de fato, como no caso das drogas, não é definido somente pelo Estado, mas também
pelos próprios atores que as identificam, segundo a perspectiva islâmica, como impuras.
Apesar disso, contextualmente, se “fecha um olho”, focando-se mais sobre o destino das
peças que sobre sua origem. Para além da receptação, outras dinâmicas, consideradas nesse
caso ilegais unicamente pelas instituições, podem envolver o transporte de produtos
circunstancialmente proibidos por um ou ambos os países, como alguns tipos de pneus,
geladeiras não funcionantes ou, ainda, baterias de automóveis, vetadas por conter líquidos
inflamáveis, que meus colaboradores retiram antes do embarque no container. Essas coisas
podem ser eventualmente transportadas, mas não declaradas nas check list que integram os
documentos. 226
Outra garantia que regula o fluxo dos itens, como se disse acima, é o prazo de entrega
previsto que corresponde, geralmente, a um mês. Como esse tempo está sujeito a variáveis
(entrada e saída nas duas alfândegas; condições do mar e, caso a entrega seja feita em Louga
ou Touba, deve-se incluir o tempo para desmontar o container e transportar os itens), pode
haver mudança nos prazos. Quando isso se verifica, o organizador é cobrado pelos emissores
e deve justificar adequadamente o atraso, caso não queira perder o próprio cliente. Como a
demanda pelo envio de coisas é muito grande em Turim, mesmo que a frequência de remessas
seja intensa (Macky, por exemplo, realiza expedições quinzenalmente ou a cada três
semanas), os organizadores devem, frequentemente, priorizar as entregas e, então, realizam
negociações com os emissores. Observou-se que os critérios utilizados para dar prioridade a
uma ou outra expedição são de caráter financeiro - terá a precedência o emissor que oferece
mais dinheiro ou que tem um fluxo mais intenso de envio -, mas também interessa o tipo de
relação que organizador e emissor compartilham - se esse último é parente ou amigo, por
exemplo, ou uma pessoa originária da mesma região no Senegal, poderá ser priorizado. As
entregas que ficam pendentes são adiadas para as expedições sucessivas. Essas variáveis
226 Essa prática não é realizada por todos os meus interlocutores. Não queremos aqui afirmar que a receptação ou
o transporte de coisas tidas como ilegais seja sistematizado, mas se observa que essas dinâmicas enredam
contextualmente o circuito. A mudança das leis relativas ao que é vetado importar no Senegal, assim como em
outros países da África Ocidental, como a Nigéria, por exemplo, são atualizadas periodicamente e tem a
finalidade, dentre outras, de preservar o meio ambiente e a saúde pública, barrando o fluxo de itens que, uma vez
importados no país, não teriam uso seguro e prolongado, podendo se tornar resíduos e produtos nocivos à
população. Os pneus usados, por exemplo, devem ser acompanhados de documentos emitidos por técnicos
italianos, que atestem a possibilidade de reutilizo. A partir disso, uma vez importados, são recapados por técnicos
no Senegal.
234
(mudanças de prazo/priorização das entregas) e a forma com as quais são negociadas podem
tensionar as relações. Junto com os envios, existem expectativas e anseios por parte dos
emissores e dos receptores no Senegal e as variáveis supracitadas frequentemente geram
recriminações e rumores. Essas situações podem gerar uma certa mobilidade dos
clientes/emissores com relação ao organizador do container, no sentido que os primeiros
podem optar de enviar seus pertences com outros correios227.
Ocupamo-nos, aqui, dos circuitos que envolvem o serviço de correio, mas é preciso
lembrar que essa prática representa uma opção por parte dos organizadores. Não são todos
que assumem essa função porque, como um ex-comerciante me relatou, o trabalho que
envolve pode ser considerado desgastante por parte de quem o coordena. “É muito estresse, as
pessoas que mandam as coisas te pressionam, você deve dar um prazo para a entrega e os
tempos não dependem de você. É tudo muito trabalhoso, não vale a pena”, comentou Dione
Bara, que realizou esse trabalho por alguns anos e, depois, o abandonou.
A pressão citada por Dione Bara é acrescentada, respectivamente, pelo trabalho que
envolve a montagem/envio do container e pelo valor financeiro necessário para a exportação.
O preço pago pela exportação de um container de 40 pés corresponde a 3000 euros para a
companhia de transporte italiana e 4500/5000 euros para a alfândega senegalesa228. Essa
quantia não inclui os custos relativos à remuneração da mão de obra para a montagem e
também os que são pagos para o transiteur que trabalha no porto de Dakar. Em relação à
tensão que caracteriza essa atividade, o momento de maior pressão para o organizador
corresponde ao dia da montagem e envio do container e terá como contraparte o dia da
chegada em Dakar. O dia do envio, que às vezes é ocultado aos emissores para evitar
demandas de última hora e para poder sucessivamente flexibilizar o tempo relativo aos prazos
de entrega, circula como rumor entre meus colaboradores. “Dizem que é hoje que sai o
container” é a frase que se escuta, acompanhada por anseios e expectativas. Gri-gris
amarrados nos braços ou na cintura de quem participa do carregamento anunciam que o
desafio extrapola a tarefa árdua do trabalho profissional e cede o passo ao possível confronto
com energias contrastantes, que não só poderiam ser originadas pelo “destino”, mas também
pelas próprias pessoas (concorrentes, inimigos, amigos invejosos próximos ou distantes) com
suas palavras e pensamentos.
227 Como trataremos sucessivamente, durante a pesquisa, segundo as informações que coletei na rede de
colaboradores com os quais trabalhei, atuavam quatro organizadores/correios em Turim. 228 O custo pago pela exportação de um container de 20 pés é próximo, por isso, não é considerado conveniente.
235
A tensão compartilhada por meus colaboradores no momento da montagem do
container fazia com que eu silenciasse quase completamente nessas ocasiões e só observasse
ao redor, retirando-me antecipadamente quando me encontrava no espaço que alguém devia
cruzar. Movimentos múltiplos, concentração, execução rápida das tarefas são exercidas para
satisfazer o tempo de execução - obrigatoriamente de três horas, tempo disponibilizado pela
companhia de transporte para o carregamento e que passa a ser cobrado caso se extrapole o
prazo - e para realizar o serviço com qualidade. Montar um container, de fato, requer
conhecimento e experiência, por isso, para essa tarefa, é contratado um profissional: otimizar
o espaço, arrumar as coisas salvaguardando a sua integridade, distribuir o peso
adequadamente são conhecimentos e habilidades específicas que também, quando adquiridas,
podem não serem exercidas adequadamente. Em uma ocasião, por exemplo, tinha assistido o
carregamento organizado pelo senhor Seck e o dia seguinte ele me contou que o container não
tinha sido enviado, mas precisou ser desmontado e remontado porque tinha sido carregado um
peso excessivo na parte da frente. Esses acontecimentos, além de prejuízo financeiro,
produzem rumores que não favorecem a atividade do organizador/correio, pois afetam a sua
capacidade profissional.
No processo de montagem do container, a hierarquização das funções dos
trabalhadores se torna evidente. As disposições para a execução das atividades são dadas a
partir do organizador, que pode se autodefinir contextualmente como “chefe”, e pelo sujeito
que é responsável pela montagem, passando, então, para os carregadores que executam
materialmente o carregamento. Essa atividade é muito pesada para eles, que trabalham
incansavelmente solevando pesos manualmente por horas. Machucar-se nesses contextos é
comum: o corpo é usado com um certo descuido para satisfazer as tarefas pedidas, as quais
podem comprometer a saúde desses trabalhadores por dias ou, também, causar lesões
articulares permanentes. A atividade de carregamento pode também exigir o trabalho de
especialistas, como “i doppiatori”, os quais inserem os pneus um dentro do outro (“i fagotti”)
para ganhar espaço. Os “doppiatori” que conheci atuam unicamente nessa área: são
contratados por diversos organizadores que trabalham com esse tipo de mercadorias, mas sua
atividade pode ser atrasada ou temporariamente suspensa pelos danos físicos sofridos229.
A centralidade das figuras do organizador e do responsável pelo carregamento,
portanto, não deve ser considerada como absoluta, pois é sempre negociada e condicionada
por diversos fatores, como, por exemplo, a necessidade do auxílio de especialistas e
229A repetição do movimento de uma das pernas, de fato, usada sistematicamente para ajustar os pneus um
dentro do outro (“fare i fagotti”), causa-lhes graves lesões articulares.
236
consultores. Por outro lado, se tem observado que a relação entre sujeitos e funções que
compõem as redes se mantém estável no processo de envio de um container. Se a
versatilidade, como vimos, é um valor central para os senegaleses, concretizando-se na
diversificação das atividades profissionais, percebe-se que no contexto tratado essa dinâmica
não se verifica no plano sincrônico, mas diacronicamente. De fato, é unicamente o tempo e a
experiência que viabilizam a mobilidade dos sujeitos em relação às mansões exercidas dentro
do circuito.
Foto 30 - Carregamento de um container.
6.3.4 Passagem pelas alfândegas
A tensão que caracteriza o dia da montagem é devida também à aproximação de um
momento temido pelos organizadores do container: a passagem da carga pelas alfândegas. O
envio de Turim é selado pela “chiusura del container” (fechamento do container) que se
concretiza pela lacração das portas e pela entrega dos documentos relativos ao seu conteúdo
237
para motorista da empresa despachante, o qual os encaminhará, junto com a carga, aos
funcionários da alfândega italiana.
Alguns dos organizadores que colaboraram com a pesquisa trabalhavam com o
mesmo despachante: Alassane, Macky e o senhor Seck compartilhavam o mesmo depósito,
instalado em um conjunto de galpões nos quais era sediado também o escritório da empresa
despachante, conduzida por Luigi Sasso. Esse último me descreveu de forma detalhada seu
trabalho e a relação que tem com seus clientes senegaleses230. Luigi atua há 45 anos nesse
campo e, na época da entrevista, colaborava há 6 com emissores senegaleses, utilizando quase
sempre o serviço da MSC (Mediterranean Shipping Company) como empresa de navegação.
A opinião que Luigi tem deles é próxima daquela de muitos italianos: a experiencia como
migrantes - os mais velhos do fluxo que começou na década de 80 – e, então, a suposta
“integração” no contexto de chegada, junto ao fato de “serem trabalhadores”, os torna os
clientes africanos com os quais colabora com mais frequência. Se, segundo ele, “o senegalês
nasce para ser comerciante” e, então, “tem o comércio no sangue”, por outro lado, “quando
acorda de manhã a primeira coisa que pensa é....a quem vamos dar um golpe hoje? À minha
irmã? Ou ao vizinho?”, relata, sorrindo. Esse último ponto de vista surgiu, segundo ele, por
experiência própria, já que, ao longo dos anos sofreu diversas trapaças pelos seus clientes.
Essa é a razão pela qual, com Luigi, não há barganha e nem contratação possível para pagar
os 3000 euros que ele cobra para desempenhar o seu trabalho. É somente após o pagamento
completo dessa quantia, de fato, que ele libera o “bill of lading”231 para o organizador,
documento necessário ao transiteur senegalês para o desembarco do container no cais de
Dakar.
Segundo Luigi, no contexto dos transportes marítimos internacionais, o circuito objeto
dessa pesquisa é definido como “traffico etnico”232 e segue as normativas relativas à
exportação de container da tipologia “groupage” e “simples” 233. Ambos os casos devem ser
acompanhados por uma documentação que certifique a proveniência das peças e por uma lista
que as identifique junto com a estimação do valor econômico correspondente. Sendo assim, a
passagem pelas alfândegas do primeiro tipo de container, que, como vimos, é muito utilizado
pelos senegaleses, será o mais complexo do ponto de vista burocrático, requerendo, portanto,
230 Entrevista, 24 de janeiro de 2014. 231 O documento emitido pela agência de navegação que comprova o recebimento da carga e a obrigação de
entregá-la no porto de destino. Contendo o nome do organizador do container, representa também a prova de
posse e propriedade da mercadoria transportada. 232 Esse termo não representa uma definição formal, mas uma expressão utilizada por esses atores. 233 Respectivamente, no primeiro caso, quando a carga é composta por coisas mistas, como se disse
anteriormente, e no segundo quando se transporta um único tipo de artigo.
238
uma atuação mais cuidadosa por parte do despachante. Enquanto os organizadores adquirem
as coisas e as guardam nos depósitos, devem lhe fornecer recibos e outras certificações
necessárias para o embarco. A negociação entre eles e Luigi, assim como os ajustes que esse
último requer, são constantes nessa fase do circuito. Tal processo irá se encerrar no dia do
carregamento, quando os organizadores deverão lhe fornecer a lista e o valor das peças
exportadas, concluindo, então, o recolhimento da documentação necessária.
O despachante conduz de forma atenta essa parte burocrática para que o trânsito da
carga pela alfândega italiana aconteça sem inconvenientes. Ainda que, segundo os meus
colaboradores, a passagem por essa fronteira seja “mais tranquila” - porque menos sujeita a
controles em comparação ao trânsito pela alfândega senegalesa -, os funcionários aduaneiros
podem, ocasionalmente, fiscalizar a documentação ou a carga. Em ambos os casos, o
responsável que deverá lidar com esse processo será o despachante, o qual, no porto de
Genova, deverá também arcar com as despesas cobradas pela alfândega caso o container
permaneça estacionado aguardando os tramites da inspeção. O despachante, portanto, durante
a fase do carregamento do container, monitora que o conteúdo exportado seja adequado, isto
é, que corresponda às normativas previstas, situação que, se não respeitada, poderia
comprometê-lo. Apesar das restrições que a regulamentação prescreve, relativa à exportação
de materiais considerados perigosos (como os inflamáveis e materiais elétricos) e de segunda
mão (como maquinários não funcionantes e outras peças234), vimos que alguns desses itens
podem compor as cargas enviadas. Observa-se que a exportação dessas coisas acontece como
resultado de um conjunto de fatores: por um lado, pode haver a omissão dessas peças nas
listas apresentadas ao despachante pelos meus interlocutores235, por outro, temos uma postura
de confiança e de uma certa tolerância por parte de Luigi, que contribui para flexionar as
prescrições formais. Em relação a esse último aspecto, Luigi declara: “Não posso pedir recibo
para tudo pois muitos deles (meus clientes senegaleses) se abastecem em feiras do usado ou
recebem as coisas de presente”. A aquisição nas feiras de usados e a dinâmica do recebimento
das coisas por meio da dádiva funcionam, então, como elementos que flexibilizam as regras.
A afirmação de Babacar, segundo a qual “o Balôn salva tudo”, portanto, assume, aqui, uma
dimensão mais completa: comprar itens nesses mercados, ou simular de ter se abastecido lá,
234 Estes, de fato, poderiam ser barrados na fronteira por serem considerados despejos, que são exportados
seguindo outra modalidade. Os pneus usados, por exemplo, precisam ser acompanhados de uma certificação
emitida por empresas especializadas no recondicionamento. Esses documentos declaram a possibilidade de
reutilizo dos mesmos. 235 Em relação aos itens de pequeno ou médio porte, por exemplo, esses podem ser inseridos em caixas ou bolsas
que, nas listas, são indicadas sem especificar o conteúdo. O elenco a ser apresentado, de fato, enumera as coisas
por unidade: 3 geladeiras, 2 colchões, 5 bolsas, 6 caixas etc..
239
permite aos comerciantes driblar a emissão de documentos e, então, se eximir dessa
obrigação.
Frente a essas situações, a exigência burocrática de Luigi se atenua: ele não somente
aceita de enviar algumas peças sem documentação pelo fato dessa última não poder ser
produzida mas também por outra razão, que ele esclarece da seguinte forma: “Eles mandam
muitas dessas coisas para as famílias, assim como faziam os nossos migrantes meridionais na
década de 60”, afirma Luigi, que imanta a sua narrativa por um tom quase benevolente e
nostálgico.
A perspectiva de Luigi lança um olhar transversal sobre as experiências migratórias
que se verificaram na Itália nos últimos setenta anos e cria uma identificação de caráter
emocional-afetivo entre “os nossos migrantes” (italianos do sul) e os “estrangeiros”. Essa
dinâmica abre um espaço no qual Luigi projeta não somente compreensão e respeito, mas
também apreciação para uma prática que os italianos deixaram de exercer: a reciclagem.
Segundo o despachante, de fato, “antigamente as coisas se reutilizavam, se arrumavam, não se
jogavam fora com tanta frequência como agora. Os senegaleses fazem isso, por necessidade.
Mas essa coisa (reciclar) está voltando também aqui na Europa. Li, outro dia, que a
Caterpillar começou a fazer isso”. O processo descrito, que definiria como uma forma de
empatia, é devido, certamente, à idade do Luigi, homem de quase 70 anos que experienciou os
processos socioeconômicos italianos descritos no primeiro capítulo (pós-guerra, afluxo em
Turim dos migrantes do sul, os dois “boom econômicos” da década de 60 e 80), por meio dos
quais a sociedade italiana se alinhou ao capitalismo ocidental e aos modelos globais de
consumo. O aspecto geracional viabiliza, portanto, uma identificação positiva com uma
dimensão sociocultural considerada perdida no contexto italiano e reencontrada na realidade
vivida pelos senegaleses migrantes que é pautada, segundo a perspectiva de Luigi, por valores
como a solidariedade e o cuidado com a família, assim como pela valorização das coisas, as
quais, ao invés de serem usadas e descartadas, são arrumadas e reutilizadas236. O fator
geracional, sugerido como elemento que embasa o ponto de vista do despachante, é
confirmado pelo fato de que, quando os clientes senegaleses são atendidos pelo filho dele, seu
parceiro de trabalho, os laços se constroem de forma mais impessoal e as obrigações formais
solicitadas são mais rigorosas, situação que leva os meus colaboradores a definir o filho de
Luigi como “rígido e exigente”.
236 Esse olhar romântico, explicitado na narrativa de Luigi, se articula também pela perspectiva evolucionista
próxima à ideia rousseauniana do "bom selvagem”.
240
Outro aspecto que contribui para a flexibilização das normas é a relação de
“confiança” entre o despachante e seus clientes, noção que, ainda uma vez, representa o elo
que estreita as parcerias. Na narrativa de Luigi, percebemos que esse valor coexiste com a
noção de esperteza atribuída a eles. Se, por um lado, Luigi os define como “trapaceiros”, essa
qualidade é associada a questões estritamente financeiras (como falta de pagamento de
dívidas) e não afeta outro elemento que fundamenta a construção da aliança, isto é, o acordo
de não enviar itens irregulares. Segundo Luigi, os senegaleses - à diferença dos nigerianos,
por exemplo, que “fazem as coisas como lhes bate na telha” - “escutam” e “respeitam” as
restrições que lhes são dadas. Percebemos, então, que os meus colaboradores conseguem
renovar a aliança com Luigi equilibrando uma postura que, por um lado, respeita as
prescrições, mas também camufla violações contextuais a essas últimas de uma maneira que
não é percebida pelo Luigi ou dentro de um limite aceito por ele. Por outro lado, eles utilizam
estrategicamente a autorrepresentação de “trabalhadores-provedores” frente a Luigi, noção
apreciada pelo despachante, para suavizar seu rigor burocrático. O manejo flexível dos
parâmetros acima descritos, os ajustes situacionais, o jogo de esperteza realizado dentro de
margens estabelecidas relacionalmente permite, então, não somente a manutenção dos laços
de parceria comercial, enredados pelo respeito mútuo, mas também a viabilização contextual
de práticas ao limite da formalidade, que passam a ser aceitas pelo despachante.
Desses laços que compõem o circuito, aos quais eu também estava enredada, a uma
certa altura da pesquisa, fui brutalmente exclusa. Um ano depois da entrevista realizada com
Luigi, voltei a procurá-lo para aprofundar algumas questões, mas fui expulsa de seu escritório.
O despachante não especificou a razão, só me perguntou “com qual coragem” estava
reaparecendo para conversar com ele. Quando perguntei de que se tratava, ele respondeu que
eu conhecia bem o motivo da sua atitude e pediu para me retirar. Esse fato representa um
exemplo de como um sujeito pode ser expulso da rede. Fofocas e rumores por parte de meus
colaboradores tinham sido movidos contra mim para me afastar da observação de suas
práticas comerciais. Duas hipóteses podem ser formuladas como causas do meu afastamento:
eu tinha contato com diversos comerciantes, também concorrentes entre si, fato que podia ser
considerado incômodo por alguns; a natureza extra formal de algumas práticas que
caracterizam o circuito, como vimos acima, fazia com que a minha presença como toubab,
desconhecida por muitos, não fosse bem vista, podendo ser associada de forma direta ou
indireta à fiscalização dos órgãos de segurança pública.
241
6.3.5 Armazenamento e redistribuição em Dakar
Se a etapa que corresponde ao carregamento do container a ao trânsito na alfândega
italiana não foi de fácil observação, a fase que corresponde à passagem na fronteira em Dakar
foi de ainda mais difícil acesso. A restrição do tempo de pesquisa no Senegal também
contribuiu para tornar esse momento o mais obscuro da pesquisa. Recolhi apenas narrativas e
presenciei rumores relativos à “fatídica” passagem da carga pela fronteira senegalesa. Utilizo
essa expressão pois a entrada em porto é, certamente, o evento mais preocupante para os
organizadores e comerciantes, mas também o mais significativo, assim como a sucessiva
abertura do container, que pode se verificar no mesmo cais. A partir da entrada em porto e do
descarregamento do navio, de fato, o container passa a ser de responsabilidade do proprietário
da carga, que deverá responder por ela. A figura de um transiteur senegalês capaz e bem
relacionado é indispensável para evitar fiscalizações, que se podem traduzir no bloqueio
temporário da carga à qual corresponde pagamento diário de 60000 CFA. Essas
eventualidades preocupam os organizadores, e a capacidade que eles têm de se sair bem
dessas situações representa, como escrito precedentemente, um critério para que sejam
escolhidos como correios pelos próprios clientes.
Depois de cerca de 20 dias da saída de Turim, dependendo das condições do mar -
pelo qual transita mediamente por 10 dias -, o container atravessa a fronteira senegalesa e é
descarregado no cais. A chegada é esperada pelos colaboradores do organizador e por
comerciantes, os quais, no momento da abertura, se apresentam para fazer negócios. Nessa
fase, os colaboradores do organizador, ou o próprio organizador do container - caso tenha
acompanhado o deslocamento -, privilegiam a venda ao atacado. O comércio atacadista é
acionado estrategicamente também para se livrar de parte da carga que deverá ser
transportada, sucessivamente, para os depósitos em Dakar ou em outras cidades senegalesas.
Esteja o organizador do container presente ou não, a rede de colaboradores desempenha, nessa
etapa, um papel central na estruturação do circuito. Transportadores e trabalhadores que
efetuam o descarregamento e a sistematização das peças nos depósitos atuam, agora, para
injetar as coisas no novo espaço: os receptores aos quais as coisas eram destinadas,
informados pelos emissores em Turim - que até o momento da entrada em porto se
mantiveram em contato com o organizador -, costumam ligar para os colaboradores
responsáveis pela entrega e ir buscá-las. As mercadorias animam novos negócios
242
atravessando depósitos, lojas, casas, feiras; os itens não funcionantes passam, agora, pelas
mãos de reparadores; os presentes são entregues aos seus donos.
No caso de Babacar, por exemplo, as coisas adquiridas no Balôn e em outras feiras
foram enviadas para um de seus filhos em Dakar, que comercializou uma parte das peças
enquanto outras foram guardadas no depósito da casa de família no bairro Les Almadies.
Babacar planejava transformar parte de sua residência em quartos para locação, por isso
comprou os ventiladores de parede que descrevemos, pediu para o filho estocá-los e,
atualmente, estão instalados nas câmaras que ele loca. Em relação aos itens vendidos pelo
filho, o ganho adquirido foi dividido em três quantias: o 10% correspondeu à soma que ele
embolsou pelo trabalho desenvolvido, o 20% foi guardado por ele em casa para ser
sucessivamente entregue ao pai em ocasião de sua volta, o 70% lhe foi retribuído em Turim.
Desconsiderando as percentagens relatadas nesse caso, que podem variar, essa modalidade
tripartida de gestão dos ganhos é comum entre os meus colaboradores. Essas têm três
finalidades de caráter econômico/financeiro: remunerar o colaborador que atua no Senegal;
poupar parte da renda para ser reinvestida in loco; reinvestir o lucro na Itália em novas
aquisições e envios, retroalimentando, assim, de forma direta, o circuito comercial.
Como os comerciantes desempenham o papel de provedores, no começo da atividade,
procuram estreitar parceria com os parentes para que o lucro obtido possa ser mantido em
família. Essa estratégia endógena, como se relatou, nem sempre tem sucesso pelas artimanhas
e trapaças que podem ser praticadas pelos familiares, situação que, muitas vezes, obriga os
comerciantes a trocar de colaboradores. Nesses casos, porém, os lucros obtidos por esses
últimos (organizadores e/ou emissores) são sempre repartidos com a família de origem.
Poupar parte do dinheiro ganho e deixá-lo nas mãos de um parente de confiança representa
uma dinâmica frequente que tem como objetivo investir essa quantia em atividades
econômicas que os parentes possam desenvolver in loco. Durante a pesquisa, por exemplo,
uma forma de investimento comum entre os meus informantes masculinos era a construção de
galinheiros nos domicílios para a venda de frango.
O terceiro aspecto que caracteriza a modalidade de gestão financeira acima descrita se
baseia na transferência de parte do ganho obtido de Dakar para Turim. Essa prática, assim
como a de poupança, tende a ser desenvolvida fora dos circuitos financeiros institucionais
(bancos, empresas para a transferência de dinheiro), articulando-se entre amigos e conhecidos
“daqui para lá” por meio de relações de solidariedade e confiança. Como me foi relatado por
um dos meus colaboradores, um método utilizado para transferência do dinheiro é realizado
envolvendo, no mínimo, quatro pessoas - duas sediadas na Itália (que chamaremos A e B) e
243
duas no Senegal (C e D). Quando há necessidade de uma transferência de C para A, ao invés
de realizar o envio do dinheiro de um país para outro, A recebe a quantia de B e C reembolsa
a soma correspondente para D. A transferência entre D e B pode acontecer pessoalmente em
ocasião das viagens periódicas de volta por parte desse último237.
Com seu filho, Babacar não teve desacordos e conseguiu manter a colaboração
comercial sem conflitos, mas, como vimos anteriormente, o estabelecimento e,
principalmente, a manutenção no tempo das alianças é sujeita a múltiplas negociações. Além
das noções de confiança e ngor, se observa que outra variável importante para firmar as
parcerias comerciais é a continuidade do negócio empreendido. A constância do fluxo de
coisas adquiridas e revendidas pelos parceiros no Senegal contribui para que a relação de
colaboração se mantenha estável. Frequentemente, porém, como descrito precedentemente,
essa continuidade é interrompida por golpes e enganações (“a arte da trapaça”) que, na
maioria das vezes, suspendem e/ou redefinem as relações. Observou-se, como descrito no
capítulo cinco, que esses conflitos afetam de forma irreversível a parceria comercial entre os
sujeitos, mas dificilmente provocam a interrupção definitiva dos vínculos. Vimos que, nesses
casos, a interação entre os colaboradores, após passar pela dinâmica de embate que envolve o
processo de queixas de recriminação/fofoca/rumores e a coerção do entorno social, tende a se
reestabelecer com parâmetros diversos238.
As coisas, além de serem adquiridas com o intuito de comercializá-las criando uma
renda repartida com os parentes ou serem estocadas com a finalidade de comercializá-las
quando houver necessidade (representando, então, uma forma de investimento), podem ainda
ser doadas. A doação das coisas adquiridas pode ter uma função estratégica para os
senegaleses que migraram: presentear amigos e parentes, de fato, permite cumprir o papel de
respaldo esperado pelos receptores no Senegal, exonerando quem doa da obrigação de
presentear com dinheiro. Essa prática pode ser utilizada de forma circunstancial, quando, por
exemplo, em ocasião dos retornos periódicos, os migrantes doam coisas aos conhecidos para
poupar dinheiro. Essa dinâmica, porém, não garante que os receptores se sintam
recompensados, ou ajudados, de forma adequada. Segundo a lógica da “reciprocidade
237 Esse método funciona também no sentido contrário, isto é, da Itália para o Senegal. Sobre os sistemas
informais de transferência de dinheiro (IMTS, Informal Money Trasnfer System) realizados na Itália em contexto
migratório, ver: “Il mercado delle rimesse e la microfinanza. Analisi dela realtá italiana”, Aa. Vv., Milano:
Giuffrè,2007. 238 Tenho dado ênfase aos golpes aplicados pelos colaboradores no Senegal aos organizadores e emissores que
trabalham na Itália, mas esse dado deve ser considerado parcial, já que esses últimos foram os meus informantes
privilegiados e, devido ao prazo restrito de pesquisa de campo no Senegal, não pude apreender o ponto de vista
dos parceiros que trabalham em pátria.
244
hierárquica” (LANNA,1996), quem doa passará a ocupar um determinado lugar no seu
entorno social que irá corresponder também ao valor econômico e simbólico projetado sobre a
coisa doada. Esse valor nunca é construído unicamente pelo receptor, mas pelo conjunto de
perspectivas em interação dos sujeitos que compõem seu entorno social, acionadas pelas
fofocas e rumores. Dessa forma, o doador poderá adquirir prestígio e ganhar gratidão ou ser
tachado de avarento. A dádiva, também quando praticada como forma de solidariedade
despretensiosa, tem sempre implicações políticas. Ablou Diallo, por exemplo, que é originário
de uma área próxima de Dakar, cada vez que volta para a sua aldeia presenteia com sapatos e
roupas as crianças locais, por isso é chamado de “homem das crianças”, expressão que o
qualifica pelo reconhecimento e respeito. Considere-se também que adquirir e enviar coisas
de presente por parte dos emissores que permanecem em Turim é, por um lado, uma forma de
se fazer presente onde não se está em corpo e, por outro, uma maneira de encarnar, no próprio
dom, a presença da pessoa pelo qual é dirigido. O presente, então, pode ser pensado como um
dispositivo que viabiliza a ubiquidade do migrante e, mais em geral, uma forma de implodir
as distâncias e concretizar o encontro com o outro.
As coisas que vem da Europa, tanto as que são doadas quanto as que são
comercializadas, são consideradas pelos senegaleses de formas distintas. Em relação aos itens
novos, principalmente os que são, ou que simulam ser, de marcas da moda (roupas,
acessórios, sapatos, eletroeletrônicos principalmente), é associado um valor simbólico de
prestígio. O alinhamento do mercado de Dakar aos padrões globalizados de consumo é
considerado, por Babacar Diop, uma tendência recente. Em uma ocasião, ele afirmou: “a
demanda mudou no Senegal, as pessoas querem coisas bonitas, se tornaram materialistas,
querem tvs plasma, geladeiras bonitas, como aqui na Itália”. Babacar se refere
especificamente ao mercado de Dakar onde, também no contexto do comércio de vestidos
usados, estão atualmente roupas de marca. Ainda que Babacar reconduza essa postura a uma
dimensão materialista que os senegaleses teriam adquirido sob a influência do mercado
global, a noção de ostentação da riqueza, que compõe o universo dos meus colaboradores,
atua como elemento propulsor. A busca da autoafirmação prestigiosa é explícita nas ruas de
Dakar, onde os que tem poder aquisitivo se deslocam com grandes camionetes, vestindo
roupas refinadíssimas e joias. Segundo Cheikh Lô, a “elite de Dakar”, que “gosta de ter
empregados” como tatá (domésticas) e motoristas, costuma, em diversas situações, ostentar a
contratação desses serviços. Também pessoas com baixo poder aquisitivo podem simular
riqueza. Essas, segundo Cheikh, “vestem o ouro, se o têm, e depois, de repente, não têm nada
no bolso”. A tendência a ostentar poder e riqueza ou simulá-las, já descrita por Riccio (2007),
245
pode também ser percebida nas montagens fotográficas que, com frequência, estão expostas
nos quartos das casas dos meus colaboradores, tanto na Itália quanto no Senegal. Nessas
imagens, os sujeitos representados são inseridos sobre fundos postiços que retratam piscinas,
salas com sofás em pele, escritórios com computadores.
Mas se a estética do prestígio e do poder é tão significativa em Dakar, qual é o lugar e
a função das coisas usadas que, em grandes quantidades, são enviadas pelos emissores de
Turim? Podemos ter uma noção do volume desse comércio observando algumas feiras em
Dakar: o mercado de Colobane e o de Thiaroye, por exemplo, podem ser considerados
centrais pelo escoamento desse tipo de mercadoria239. Essas feiras, assim como o Balôn,
territorializam de forma centrípeta os fluxos de coisas vindas de diversos lugares. Tipologias
variadas de itens usados e as bancas/boutique dos técnicos/reparadores se espalham por áreas.
Diversamente da região Molassi, no Balôn, nesses mercados, principalmente em Colobane, as
coisas são apresentadas quase sempre em bancas, divididas por tipos. O movimento
centrífugo, que compõe a pulsação intercalada “vai e vem” dos itens pelos circuitos
transnacionais, também caracteriza esses mercados: a feira de Thiaroye, por exemplo, oferece
produtos como café touba, manteiga de karité, karkade, churai e outros itens que meus
colaboradores, frequentemente, compram em ocasião das viagens de volta e levam em suas
malas para Turim, onde são consumidos por eles mesmos ou comercializados.
As coisas oriundas de Turim, vendidas estocadas ou doadas, podem mudar de status a
partir do olhar dos sujeitos com as quais interagem em Dakar. A geladeira usada, que, ainda
que funcionante, era considerada um resíduo na Itália, passa a ser vista, agora, não somente
como eletrodoméstico que pode desempenhar as suas funções, mas como um meio para
produzir renda; o motor compressor comprado por Babacar e revendido pelo filho é utilizado
para acionar um elevador em um prédio de escritórios; o vestido usado adquirido por Khady
e doado para uma das netas é colocado para ir à escola. Muitas das coisas enviadas passam a
ser reutilizadas e ressignificadas contextualmente, sendo, então, consideradas úteis e
vantajosas por muitos, mas o olhar dos senegaleses em relação aos itens de segunda mão não
é sempre tão benevolente e profícuo. Para alguns dos meus interlocutores em Turim e para
muitos moradores de Dakar, os emissores desses produtos “transportam lixo”, situação que
preocupa pelo volume de coisas deslocadas. Essa perspectiva é sustentada pela noção de jom,
239 Colobane é uma feira tradicional de mercadorias usadas próxima do cais onde começou a venda de feug
diaye, enquanto o mercado de Tharoey é alocado na periferia da cidade, após o bairro de Pickine, que se abre
para a área rural próxima.
246
a partir da qual não é considerado digno comercializar o que foi utilizado e descartado por
terceiros. A lógica compensatória que move quem viabiliza esse tipo de negócio, segundo a
qual “na Europa sobram coisas que no Senegal são necessárias”, cede, portanto, a uma
perspectiva restritiva e crítica. Nesses casos, o status de “lixo” é geralmente atribuído aos
itens de baixa durabilidade e aos que têm pouca demanda em Dakar. Muitos emissores, de
fato, principalmente os que não têm experiência comercial, recolhem e enviam produtos para
“tentar a venda” no Senegal, utilizando critérios seletivos inadequados para a sucessiva
comercialização. Adotando, portanto, uma postura diametralmente oposta àquela utilizada por
Babacar - que compra e envia somente o que sabe que será vendido e como -, numerosos
emissores que começam a prática comercial e muitos dos que aspiram fazer pequenos
comércios sem ter experiência prévia acabam produzindo acúmulos de coisas que
permanecerão inutilizadas no Senegal e que, por isso, passarão a adquirir o status de
despejos/resíduos. A experiência e a profissionalização do comerciante é, então, determinante
para que o status de mercadorias, na passagem de um país para outro, permaneça como tal e o
circuito comercial não seja interrompido240. Outro elemento que favorece o consumo desses
produtos é a escassez de oferta local considerada “de qualidade”. De fato, segundo os clientes
senegaleses com os quais conversei, a alternativa, a paridade de custo, é disponibilizada
unicamente pelo mercado chinês, que oferece produtos de baixo padrão.
Mas o que acontece com as peças estragadas ou que ficam encalhadas?
Os moradores de Dakar, diversamente dos torinenses, não desistem facilmente das
coisas, e, frente a essas situações, apelam a sujeitos capazes de lhes prolongar ou ressignificar
a vida. Reparadores e técnicos são a categoria profissional que oferece esse serviço:
arrumando e recriando os produtos, garantem-lhes continuidade de circulação nas redes. Além
de hábeis técnicos de eletrodomésticos e eletroeletrônicos - que costumam encomendar as
peças necessárias para os reparos a conhecidos na Europa -, há também reparadores (ou
alquimistas/bricoleur) que desenvolvem trabalhos mais simples do ponto de vista técnico,
mas, não por isso, menos significativos. A atuação desses profissionais contribui para
sustentar o circuito comercial, mas o custo pelas habilidades desenvolvidas pode ser cobrado
240 Observou-se também que pode haver uma representação negativa de itens usados que entram em contato com
o corpo, como roupas ou acessórios como barbeadores, por exemplo. Em relação às roupas, segundo o que me
foi dito por um comerciante de feug diaye em Colobane e por outros informantes, as pessoas sentem vergonha de
comprar esses artigos e, geralmente, o fazem escondido. O que entra em jogo nesses contextos, além da noção de
jom, é o receio de “contaminação” e o contato com o impuro (DOUGLAS, 1976). Esse aspecto, porém, não
parece afetar o consumo dessa mercadoria, que é intenso no Senegal (principalmente por parte das crianças) – a
feira de Colobane é prova disso, cercada por dezenas de depósitos onde se vendem roupas ao atacado contidas
em grandes sacos divididos por tipo de peças.
247
na pele. Certa vez, passeando pela feira de Thiaroye, em uma das áreas destinadas aos
reparadores, me chamou atenção um enorme amontoado de para-choques. Ao lado, em cima
de um banquinho, estava sentado um senhor que se debruçava sobre um fogaréu: segurava nas
mãos dois pedaços de plástico. Sentados em um banco de madeira, estavam três ou quatro
clientes esperando. Aproximei-me e pude observar que o reparador estava fundindo duas
metades de para-choques para moto. Com duas chaves de fenda e as mãos, ele ajustava, em
cima das chamas, as bordas das peças para juntá-las, trabalho que finalizava apertando-as com
os dedos. Quando percebeu o meu interesse pelo seu ofício, me olhou e estendeu a mão
esquerda pedindo para tatear a ponta do seu dedo indicador, que usava para forjar as peças:
calejado pela repetição do trabalho, tinha a textura do plástico que modelava. “É duro”, disse-
me em wolof.
248
Reflexões finais
Gostaria de apontar, aqui, algumas questões que, a partir desta pesquisa, poderiam ser
sucessivamente desenvolvidas tanto em um sentido etnográfico quanto teórico. Mesmo que os
desdobramentos possam ser múltiplos, opto por me referir a dois argumentos que considero
centrais: a dupla natureza do circuito comercial analisado, que se articula entre a circulação de
coisas/mercadorias e coisas/lixos; e o sistema de valores morais que opera no contexto
observado, a sua ascendência e modalidade política.
A primeira questão que poderia ser explorada é relativa à circulação das coisas da
Itália (e outros países ocidentais) para o Senegal (e outros países africanos), associada aos
status que essas adquirem contextualmente e aos sujeitos humanos envolvidos. Analisei o
circuito sob a perspectiva dos comerciantes senegaleses que movimentam mercadorias e dons,
mas o mesmo poderia ser observado como rede que sustenta o escoamento de despejos.
Considerando o impacto humano e ambiental que os circuitos comerciais de itens usados entre
Europa e África podem causar241, seria indispensável, de fato, por um lado, etnografar como
esses se desdobram nas suas fases finais (o que acontece quando a coisa se torna lixo? Quais
sujeitos e territórios estão enredados nessa etapa e como?) e, por outro, realizar uma reflexão
mais ampla. Do ponto de vista sociológico, como essas práticas se integram e impactam à
“economia subterrânea” que, segundo Tarrius (2007), opera como “mundialização selvagem”
a partir dos grandes atores econômicos ocidentais242? Quais políticas poderiam ser adotadas
para tutelar os espaços envolvidos nesses processos?
Em relação ao segundo aspecto, isto é, ao conjunto de valores que atuam como
variáveis na dimensão relacional dos meus interlocutores, espera-se que os dados aqui
apresentados contribuam para superar o olhar que caracteriza muitos dos estudos
socioantropológicos sobre práticas comerciais senegalesas, os quais, como já dito, consideram
o valor da “solidariedade” como regulador unívoco das relações entre sujeitos. Tal postura,
como Sall (2010) sugere, achata e simplifica as dinâmicas relacionais, além de obscurecer a
dimensão política que as enreda. Essa última, de fato, além de caracterizar intrinsecamente o
241 Se pense, por exemplo, que, em Thiaroye, a demanda por chumbo por parte de pequenas empresas pesqueiras
da região levou os ferreiros que ali atuam a reciclar essa substância extraindo-a das baterias de carro despejadas.
Essa prática de reciclagem, em 2008, causou doenças na população local levando à morte 18 crianças. A
reciclagem do chumbo das baterias de carro usadas se verifica em outras cidades da África e é objeto de
fiscalização e políticas de prevenção em diversos contextos. 242 Alain TARRIUS, La remontée des Sud. Afghans et Marocains en Europe méridionale », Revue européenne
des migrations internationales, vol. 23 - n°3 | 2007, 206-208.
249
processo da dádiva (LANNA, 1996), é potencializada pela mobilização de outros dois valores
igualmente significativos no universo moral senegalês: a esperteza e o prestígio. Tais
elementos, como descrito, operam de forma conjunta à noção de “ajuda”, representando
aspectos coexistentes. Nesse contexto, com papel hierarquizante, atua também a dinâmica das
“queixas de recriminação”, rumores, fofocas e relativa coerção do entorno social que
contribuem para definir, de forma circunstancial, o lugar e a função dos sujeitos em interação.
Além de sugerir a adoção de uma perspectiva que inclua a noção de poder como chave
analítica para apreender as interações sociais, avançamos, aqui, outra hipótese, que
gostaríamos de aprofundar em outras circunstâncias. Acreditamos que o “prestígio”, a auto-
afirmação e a busca de sucesso não representam, como alguns pesquisadores afirmam,
elementos exógenos resultados de uma “perda de tradição”, mas se construam a partir de uma
ressignificação da mesma. Assim como a noção de “solidariedade”, que, segundo Piga (2000),
é oriunda do sistema de castas e, sob o domínio islâmico, se tornou um valor compartilhado
por todos, o “prestígio”, ethos originariamente associado a uma casta específica (geer),
mediante o processo migratório, passa a ser um valor assumido coletivamente. Observamos,
portanto, que solidariedade (nimbale) e esperteza (mousse), prestígio (mana) e humildade,
discrição (souture), vontade de melhorar (yokuté), dignidade (jom) e honradez (ngor) são
aspectos da moralidade senegalesa dinamizados situacionalmente a partir de uma tensão
estrutural entre lógicas pré-islâmicas (como o sistema de castas), dimensão moral islâmica,
experiências migratórias e as suas ressonâncias.
250
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