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Rompendo o século: uma aventura entre vanguardas literárias no Brasil, México, Portugal e Espanha Resumo: Este texto analisa comparativamente poemas brasileiros, mexicanos, portugueses e espanhóis da transição do século XIX para o XX, buscando compreender continuidades e rupturas, e reavaliar conceitos clássicos no estudo das vanguardas ibero-americanas, tais como o de “modernismo”. Resumé: Ce document analyse comparativement plusieurs poèmes de Brésil, Mexique, Portugal et Espagne de la transition du XIXe au XXe, cherchant à comprendre les continuités et les ruptures, et réévaluer des concepts classiques de l'étude des avant-gardes d'Amérique- ibérique; par exemple, “modernisme”. Palavras-chave: modernismo; vanguarda; Ibero-América, produção poética, estudos comparados. Mots-clés: modernisme, avant-gard, Amérique-ibérique, production poétique, études comparatives. 201 0 Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira – [email protected] Historiadora – Doutoranda pelo PROLAM/USP 2010

Vanguardas literárias

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Texto NÃO PUBLICADO sobre vanguardas literárias brasileira, mexicana, portuguesa e espanhola, numa perspectiva comparada.

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Page 1: Vanguardas literárias

Rompendo o século:

uma aventura entre vanguardas literárias

no Brasil, México, Portugal e Espanha

Resumo: Este texto analisa comparativamente poemas brasileiros, mexicanos, portugueses e espanhóis da transição do século XIX para o XX, buscando compreender continuidades e rupturas, e reavaliar conceitos clássicos no estudo das vanguardas ibero-americanas, tais como o de “modernismo”.Resumé: Ce document analyse comparativement plusieurs poèmes de Brésil, Mexique, Portugal et Espagne de la transition du XIXe au XXe, cherchant à comprendre les continuités et les ruptures, et réévaluer des concepts classiques de l'étude des avant-gardes d'Amérique-ibérique; par exemple, “modernisme”.Palavras-chave: modernismo; vanguarda; Ibero-América, produção poética, estudos comparados.Mots-clés: modernisme, avant-gard, Amérique-ibérique, production poétique, études comparatives.

2010

Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira – [email protected]

Historiadora – Doutoranda pelo PROLAM/USP

2010

Page 2: Vanguardas literárias

Introdução

O presente texto corresponde a um esforço comparativo inicial entre

produções poéticas brasileiras, portuguesas, mexicanas e espanholas (1) no

final do século XIX, e (2) no início do século XX. Tem-se estes momentos,

respectivamente, como (1) antecedente direto, e (2) desabrochar das ditas

“vanguardas”, nos mais diversos países do mundo. A intenção aqui é perceber

através da análise de poemas, em que medida os “novos poetas” rompem com

os “velhos”, na Ibero-América (especialmente no Brasil e no México) e na

Península Ibérica.

Em minha dissertação de Mestrado abordei tal objeto tangencialmente,

porque buscava compreender o universo intelectual em que se haviam formado

dois dos mais importantes ensaístas ibero-americanos – Sérgio Buarque de

Holanda, autor de Raízes do Brasil (1936); e Samuel Ramos, autor de El perfil

del hombre y la cultura en México (1934). Naquele momento pude identificar

que ambos viveram a gestação e os primeiros passos dos ditos “movimentos

vanguardistas” em seus países. Esbocei, pois, um panorama das versões

apresentadas pelos mais diversos historiadores acerca das maneiras como se

relacionaram (intelectual e socialmente) artistas, pensadores e pesquisadores

brasileiros e mexicanos que, nas décadas de 1920-1930, compartilharam ideais

e posturas de vanguarda.i

Era meu propósito perceber que tipo de visão nossos literatos e

ensaístas ligados às vanguardas apresentavam acerca da herança legada

pelos colonizadores ibéricos (portugueses, no caso do Brasil; e espanhóis, no

caso do México) para a constituição de modos de vida outros (americanos).

Assim, analisei manifestos de Oswald de Andrade e Manuel Maples Arce;

poemas de Manuel Bandeira e Xavier Villaurrutia; Raízes... e El perfil.., porque

pretendia perceber ali construções e juízos que seus autores estariam

conferindo ao papel de lusos e hispânicos nas experiências históricas

vivenciadas/ pensadas por brasileiros e mexicanos.

No texto que ora apresento, a proposta é dar início a uma abordagem

um tanto distinta: agora pretendo perceber possíveis relações entre a poesia de

vanguarda brasileira e a poesia de vanguarda de Portugal... assim como entre

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a poesia de vanguarda mexicana e a poesia de vanguarda da Espanha

(sempre comparativamente). Parto do princípio de que tais relações podem não

ter ocorrido às claras; então aponto semelhanças e diferenças na forma de

abordar e em temas abordados em poesias do Brasil e do México, de Portugal

e Espanha.

Mais uma diferença deve ser notada entre o presente texto e as

reflexões que apresentei em minha dissertação: aqui me debruço sobre um

conjunto de poemas consideravelmente maior.

Ao longo deste texto o leitor pode atentar para o fato de que seria de

grande interesse desdobrar minha abordagem e investigar, por exemplo, em

hoje relativamente acessíveis epistolários dos ícones da vanguarda em nosso

continente e no além-mar, as redes e contatos estabelecidas “efetivamente”

entre eles. Outras fontes possíveis seriam: diários, exemplares de revistas e

jornais publicados na época, registros cartoriais (como matrículas em cursos,

documentos de extradição, da experiência de um ou outro como diplomata).

Essa é justamente uma de minhas intenções; isto é, as reflexões que

apresento aqui hão de servir de base para novas apreciações e novos artigos.

Que fique bem claro, portanto: considero que minhas proposições

esboçadas no presente artigo são proposições ainda “iniciais”, e por isso

mesmo pouco pretensiosas. Porém, creio que, aos olhos de todo e qualquer

brasileiro interessado na literatura, na história e nos modos de viver e sentir

ibero-americanos, este trabalho será tomado como relevante. O inventário de

“grupos”, de “grandes nomes”, e de “grandes obras” que aqui proponho

construir, sobretudo as extensões para as literaturas do México e da Espanha,

tende a ser pouco explorado e conhecido no Brasil.

Inspira-me, aqui, o clássico trabalho de Antonio Candido – Formação da

literatura brasileira: momentos decisivos. É claro que meu objeto é distinto

daqueles tomados pelo crítico paulista (como é sabido, os dois volumes do

referido livro dedicam-se ao Arcadismo e ao Romantismo brasileiros).

Evidentemente meu instrumental teórico é também menos articulado, e minhas

reflexões menos ambiciosas. Porém, a paixão que nos move é a mesma – num

dos famosos prefácios a Formação..., Candido escreve: “o presente livro é

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sobretudo um estudo de obras; a sua validade deve ser encarada em função

do que traz ou deixa de trazer a este respeito” (p. 15); noutro, declara: “este

livro (...), embora fiel ao espírito crítico, é cheio de carinho e apreço [por nossas

letras], procurando despertar o desejo de penetrar nas obras como em algo

vivo, indispensável para formar nossa sensibilidade e visão de mundo”

(CANDIDO: p. 10).

Neste diapasão, devo dizer que é por perceber o comparativismo como

um método que nos viabiliza uma maior criticidade e complexidade

interpretativa que dele me sirvo. Tomo então como referência o célebre artigo

de Richard Morse, Quatro poetas americanos: uma cama-de-gatos, no qual são

contrapostos Mário de Andrade e T. S. Eliot, Oswald de Andrade e Willian

Carlos Willians; e no qual o autor propõe que a poesia de vanguarda foi e é

“referência básica para a tomada de consciência latino-americana em nosso

século” (MORSE: 34).

E o fato é que o inventário que aqui apresento nos permite repensar

significados e valores atribuídos de maneira mecânica a noções acadêmicas

tão correntemente usadas, tais como “parnasianismo”, “simbolismo”,

“vanguarda”, e sobretudo “modernismo”. Trabalhando inúmeros poemas,

escritos por autores de nacionalidades distintas, poderemos perceber tais

conceitos de maneira mais complexa e menos esquemática.

Por fim, parafraseando o filósofo Roberto Machado diria que: em nossas

universidades, “defende-se o rigor, mas ousa-se pouco. O que mais se precisa

na [academia] brasileira é de coragem. Esse [artigo] é [em contraposição] mais

temático do que monográfico. (...) Não é um [artigo] de especialista. (...)

Certamente [é] incômodo saber que [falo] sobre [poetas] que um colega meu

estuda há 40 anos. Mas foi uma opção que fiz. Minha ambição intelectual [por

ora] é ser mais extensa do que profunda. Porque senão você aprofunda muito

um detalhe e perde a dimensão geral, tornando-se incapaz de fazer inter-

relações conceituais”.ii

1. Revisando as produções parnasiana e simbolista na língua

portuguesa

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Ao se estudar as vanguardas é preciso, antes de mais, delimitar o que

se compreende por tal termo. Uma maneira comum de defini-las é por sua

radicalidade; então, para se compreender os movimentos literários

vanguardistas, de certa maneira faz-se mister conhecer as concepções

poéticas contra as quais estariam lutando.

Sabe-se que no Brasil da segunda década do século XX o grupo de

escritores que se dedicou a apresentar novas concepções para a Literatura

autodenominou-se “modernista”. É comum se dizer que muitos desses

intelectuais haviam sido, em determinado momento de sua formação,

seguidores dos princípios “simbolistas”, e que, nutrindo uma perspectiva mais e

mais radical (em termos de escrita, e de visão crítica sobre a sociedade

brasileira), teriam vindo a irromper-se contra os “parnasianos”.

Talvez por isso – ainda que, como veremos, em muitos pontos as

poesias escritas por um e outro grupo coincidam – os movimentos literários

“simbolismo” e “parnasianismo” sejam correntemente vistos, por nós

brasileiros, como antitéticos. De um lado estariam os responsáveis por uma

produção sensível, crítica, boêmia e, em alguns casos, debochada (portanto,

mais autêntica, mais “abrasileirada”); de outro, o mau-gosto, a alienação, o

elitismo característico dos expoentes da Academia Brasileira de Letras.

Pode-se dizer que nos poemas de Olavo Bilac (1865-1918)iii, expoente

máximo do parnasianismo brasileiro, há lugares-comuns que se repetem de

maneira exaustiva: os movimentos das folhas das árvores ou das asas dos

pássaros; o desabrochar das flores; a noite, o luar, o cosmo, a trilha seguida

pelos astros; a aurora e o crepúsculo; as estações do ano – tudo isso

interferindo num sutil fluxo natural da vida. As paisagens bilacianas sempre são

apresentadas com ênfase em aspectos exóticos, mas pouco “brasileiros”;

tampouco Bilac aborda as cidades, no Brasil daquele período em franco

crescimento.

O passado é referência de felicidade, de bem estar, de um tempo em

que o eu movia-se por sentimentos profundos e delicados. Esta atmosfera

idílica é descrita muitas vezes por meio de contrastes, por oposições: diz-se

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que ali, naqueles instantes, não estariam presentes a tristeza, a angústia, o

ódio, o fel, o mal, o pecado.

A religião é outro recanto de paz e conforto ao qual recorre o poeta:

preces, arcanjos povoam muitos dos versos de Bilac.

Quer dizer: a insatisfação parnasiana/brasileira em geral não insufla

ânimos; desanima e gera fuga. Serão os simbolistas que, queixosos, se

sentirão motivados a questionar e problematizar seus sentimentos mais

profundos. O poema Incontentado, de título ambíguo, e o poema Noite de

inverno expressam bem claramente um certo conformismo bilaciano: um sofrer

sem jamais buscar suprir o desejo contrariado. Deve ser em parte por isso que

no Brasil em geral interpretamos o parnasianismo como um movimento

alienado, desinteressado, a-crítico. Interessante notar que a postura de Bilacao

escrever poemas contrasta com sua postura enquanto cidadão brasileiro. É

sabido que participou ativamente da Academia Brasileira de Letras, contestou

fervorosamente as críticas a esta instituição, e esteve em contato com

pensadores que primavam por uma visão crítica da sociedade brasileira tal

como Manoel Bomfim (1868-1932), com o qual escreveu um livro para crianças

e jovens de nosso país, sobre a história nacional – Através do Brasil (1910).

A análise de poemas portugueses de fins do século XIX nos faz

perceber, todavia, que qualquer bem-delimitado estereótipo do que viria a ser

“autor parnasiano” é necessariamente reducionista.

Os principais expoentes do parnasianismo português são João Penha

(1838- 1919) e António Feijó (1859-1917). Em Nova musa o primeiro deles

afirma ter abandonado a maneira com que antes compunha seus versos,

sensual e alegremente. Agora, tal como um santo, dedicar-se-ia a uma poesia

“grave”, comportada, pura, “celeste” – quer dizer: parnasiana, intangível, atenta

à forma e a questões abstratas. No poema Bucólica, apresenta a descrição de

um passado rural; constrói uma paisagem, em que figuram um casal de

namorados, um jumento, grilos, cabras e nada mais. Quer dizer: Penha teria

abdicado de ser livre criativamente ao comprar o pacote “parnasiano”; de ser

emocional para ser descritivo.

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No que diz respeito às aflições da paixão, tal como Bilac, Penha fala

sobre o impossível; em Consolação, pontua: “O varão forte vence a dor, não

chora;/ Volta ao violão jucundo, às tuas rimas.” Contudo, seus versos são

consideravelmente mais sensuais e então tal poeta se revela bem mais

incomodado, insatisfeito. São bons exemplos os poemas Lamúria (no qual diz:

“E assim tão bela... durmo só! Que pena!”) e Eterno feminino (no qual diz:

“ninguém vive sem amor”).

É também dito “parnasiano”, em Portugal, o escritor Cesário Verde. De

fato, nele repete-se a rigidez da forma, versos bem medidos e, variavelmente, a

estrutura dos sonetos. Mas, no que diz respeito ao conteúdo, me parece um

tanto mais solto, criativo.

Em Sentimento dum ocidental, descreve a cidade de Lisboa moderna,

com suas ruas escuras, neblina, maresia, edifícios altos, hotéis, tascas e cafés,

brasseries e padarias, tendas e lojas, tecidos estrangeiros e plantas

ornamentais, igrejas, arsenais, oficinas, chaminés, carros, vias-férreas, o cais,

gatos, peixes podres na peixaria, cães que se parecem com lobos, e diversas

categorias de trabalhadores como carpinteiros, dentistas, lojistas, costureiras,

floristas, ourives, prostitutas, guardas, além de criminosos e um mendigo, que

ele reconhece como seu velho professor de Latim. Tudo isso é descrito de

maneira relativamente objetiva, mas desperta nele o “desejo de sofrer” e o

poeta não o reprime. “Tudo cansa!”

Em dois momentos, porém, nesta mesma composição ele rompe com o

“real”. Primeiramente, falando de um passado medieval, no qual figura uma

região lisboeta que ainda não havia sido destruída pelo terremoto de 1755, com

bancos de namoro vazios, doentes de cólera e um palácio em chamas. Note-se

que ele não escapa para um universo sereno e feliz – o onírico de Bilac, ou a

fazenda de Penha, tipicamente parnasianos –, e sim para um tempo de miséria

e dor profundas, que lhe arrancam a frase: “Triste cidade! Eu temo que me

avives/ Uma paixão defunta!” Esse expressar anseios obscuros, pode-se dizer,

já é mais característico das poesias simbolistas.

Mais adiante, no mesmo poema, Cesário Verde projeta para o futuro um

desejo de ser “eterno”, universal (“explorar todos os continentes”) e “perfeito”.

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Interessante destacar que em muitas das poesias de Cesário Verde é

trabalhado o elemento “livro” (a Bíblia ou não) associado à emoção (da

coragem, do amor). Em Sentimento dum ocidental, diz: “e eu medito um livro

que exacerbe”. No poema Manias! aborda a paixão de um rapaz por uma moça

pedante; ela o trata com desdém, e ele, submisso, sente-se comovido por

simplesmente carregar “o livro com que a amante ia ouvir a missa!.”

Em Eu e ela, o amor novamente aparece como tema, e novamente aqui

(atende-se, diferentemente de Penha) não se fala de desejo carnal. Ainda que

o casal descrito, namorando num jardim, se abrace e se goste, permanecem ali

unidos “Sem gozos sensuais, sem más idéias”. A comunhão entre eles, mais

íntima, é o ato da leitura (livros sobre “mistérios que estão para além das

lousas”; “romances galhofeiros”; a antologia moral de título Flos-Sanctorum,

escrita no século XIV pelo espanhol Alonso de Villegas; e Cavalheiro de

Faublas, livro escrito no século XVIII pelo francês Louvet de Couvray, sobre o

legendário italiano Giacomo Casanova).

No Brasil, o simbolista Cruz e Souza (1861-1898)iv, tal como os

parnasianos Bilac e Penha, apresentava descrições nas quais não se definia

precisamente tempo e espaço. Além disso, retomava lugares-comuns como a

lua e o sol, a neve, os lírios e as rosas, o ouro, os astros; a pureza, a brancura

e o frescor. Mas no caso específico de seus versos, tudo quanto é descrito

contrasta com quimeras, anseios, estremecimentos do poeta. Além disso, há

pairando no ar o mistério do mundo. Antífona ilustra bem essa idéia: ali o

referido autor pede aos “espíritos dispersos” da natureza que “fecundem” a sua

poesia, ali o poeta afirma que o verso não tem apenas forma, mas “alma”; e

deseja uma rima não apenas “clara”, mas “ardente”.

Em seus poemas o simbolista português Camilo Pessanha (1867-1926)v

também fala de pássaros, de flores murchando; das alterações do céu, do dia;

do inverno, a estação que antecede o brotar das madressilvas; aborda temas

místicos e religiosos. Contudo, a referência a tais elementos da natureza e a

tais clichês literários não visa a construção de um universo irreal,

transcendente; corresponde à tentativa de construir simbologias, por meio das

quais o autor manifesta os sentimentos que lhe inundam a alma. Destarte, nos

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versos de Pessanha o crepúsculo anuncia o desenrolar da dor; a neve cai

sobre o casal cuja paixão esfria, esmorece.

Leitor de Cruz e Souza, Augusto dos Anjos (1884-1914) veio acrescentar

novos elementos ao simbolismo brasileiro. Tal como Verde em Portugal,

ampliou o cardápio temático ao falar da doença, dos vícios, da morte, da

criminalidade – temas um tanto menos abstratos do que aqueles que

costumavam ser abordados tanto por parnasianos como por simbolistas.

Interessante notar que em inúmeros poemas simbolistas repetem-se

reflexões sobre o significado do termo “amor”, o que revela, neles, uma visão

nova acerca da linguagem como construção. Por isso pode-se dizer que, se o

parnasianismo se preocupara com a beleza da linguagem, com a forma dos

poemas, com a perfeição dos versos, o simbolismo tratou de explorar os usos e

significados das palavras. Em Versos de amor, Augusto dos Anjos fala de

diversos tipos de sentimento amoroso, e pontua que cada ser tem sua própria

visão do que vem a ser o amor-ideal (nas palavras do poeta, “substância

fluida”). Angustiado, afirma pois que desejaria inventar, por si mesmo, um

conceito de amor que comovesse a todos, e que pudesse ser por todos

compreendido. O português Camilo Pessanha, no poema Interrogação, diz:

“não sei se isso é amor”, e declara, em seguida, não sentir incontrolável desejo

sexual, não sentir a angústia da dúvida, nem ansiar por um futuro, juntos; o que

nutre pela namorada, conta ele, é um sentimento terno, sereno. Essa ternura

preocupa os simbolistas, porque aproxima-se da apatia, sintoma claro de crise

dos tempos modernos.

A dissimulação dos sentimentos (natural ou programada), característica

da modernidade, era imensamente temida pelos autores cujas obras se pode

considerar características do simbolismo. Este desconforto frente à placidez,

aos temperamentos fleumáticos (nosso, ou daquelas pessoas com as quais

convivemos) aparece no poema Acrobata da dor, de Cruz e Souza, sobre a

figura do palhaço que é o próprio poeta, e que é o próprio leitor, quando se

identifica. Para Pessanha, em Floriram por engano as rosas bravas, a mulher

amada há tempos se dizia insatisfeita; porém, o que agora atormenta o coração

do poeta é o fato de que ela se cala, impassível.

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2. Outra versão (misturada) acerca do parnasianismo e do

simbolismo: a produção em língua espanhola

A perspectiva segundo a qual simbolismo e parnasianismo seriam

modos de produção literária por princípio contrários e contrastantes cai por

terra quando se mergulha nas poesias de língua espanhola produzidas na

virada dos oitocentos para os novecentos. Ainda que fosse nicaragüense – e

não espanhol ou mexicano – preciso abordar a obra de Ruben Darío. Darío

(1867-1916) bebeu tanto da obra do expoente máximo do simbolismo, Charles

Baudelaire (1821-1867), quanto da de outros nomes que publicaram em Le

Parnaise Contemporain, tal como Théophile Gautier (1811-1872), criador da

expressão “arte pela arte” e principal nome do parnasianismo francês.

Conforme Susana Zanetti, Ruben Darío inaugurou uma nova concepção

de intelectualidade. Autor não apenas de poemas e contos, mas de inflamados

artigos jornalísticos, Darío fazia uso da palavra como arma política, crítica e

livre, tanto das sociedades ibero-americanas das últimas décadas do século

XIX quanto da maneira como os escritores locais vinham expressando seus

pontos de vista; quer dizer, como eles vinham usando a língua espanhola. Em

jornais e revistas, seus textos destacavam-se, segundo a autora, por contestar

o modo de vida estadunidense, que já naquele período passava a ser tomado

como referência de modernidade; mas Darío também escreveu um ou outro

poema sobre a difícil vida em centros do Velho Mundo, como Paris (ZANETTI:

passim).

No que diz respeito à forma de seus versos, não se pode dizer que

foram bruscas as alterações que Darío promoveu. Porém, ainda de acordo com

a análise de Zanetti, neste quesito específico intentou ser imensamente criativo

em suas historietas e crônicas publicadas em periódicos: lançava mão de

“coloquialismos, (...) simbologias clássicas e modernas, (...) citações em língua

estrangeira” (ZANETTI: p. 28).

Em sua poesia, transparece o incômodo frente à sociedade

contemporânea, burguesa, técnica, científica, positivista; e um desejo de

escapar, por meio do sonho, ou por meio da valorização de um passado idílico

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(daí a forte presença de uma natureza exótica, e de referências a um mundo

clássico – cisnes, rosas, etc – e um mundo militar-aristocrático-católico-

medieval).

A primeira parte de seu livro mais famoso, Azul, é composta pelo poema

El año lírico, dividido em quatro partes: Primaveral, Estival, Autumnal e

Invernal. Em cada uma delas podemos perceber uma certa regularidade na

métrica dos versos, e uma lógica própria para a composição (tamanho e rimas)

das estrofes.

No que diz respeito à primeira e à terceira partes do poema, não se pode

dizer que Darío esteja escrevendo sobre a primavera e outono de sua terra

natal, a Nicarágua, ou de qualquer dos outros países onde viveu. Compõe,

tanto em uma como na outra, a descrição de um universo onírico, identificável

por homens e mulheres cultos de todo o mundo; em determinado momento de

Primaveral, pontua: “de la lira universal/ el ave pulsa uma cuerda.”.

Em Primaveral, convida a Amada a, junto a ele, entrar num universo de

sabores, cores, perfumes, músicas e sensações (fala de mel, flores, bosque,

pássaros, abelhas, libélulas, ervas aromáticas, árvores enormes, folhas verdes,

vento, luz, as mãos sedosas da namorada, os lábios úmidos dela, suas

canções de poeta). Há também referência a temas “clássicos”, como rouxinóis,

rosas, pérolas, ouro, ninfas, musas e deuses helenos, cálices de vinho com

adornos gregos.

Na terceira parte do poema, Auntumnal, apresenta um cenário pálido,

tranqüilo, suspirante. Fala, ali, de uma luz dourada, delicadas rosas, uma suave

harpa tocando ao longe, e de uma fada amiga, a quem ele pede que o leve ao

reino da mais pura e vívida inspiração poética; ela, então, o apresenta primeiro

i Tais reflexões foram parcialmente publicadas. Cf. FERREIRA, Ana L.O.D. Diálogo, crítica e diversidade nas vanguardas literárias mexicanas e brasileiras. In: Revista Intellèctus. Ano 06. Vol I – 2007. http://www.intellectus.uerj.br/Textos/Ano6n1/Texto%20de%20Ana%20Luiza.pdfii Em entrevista a Rafael Cariello, publicada na Folha de São Paulo, em 14 de novembro de 2006, sobre seu livro O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Jorge Zahar Editor), e sobre o trabalho do filósofo brasileiro, hoje.iii Outros clássicos-parnasianos brasileiros são: Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho.iv Outros clássicos-simbolistas brasileiros são: Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimarães e Olegário Mariano.v Outros poetas portugueses inspirados pelo simbolismo são: Eugênio de Castro e Antonio Nobre.

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uma noite estrelada, depois a aurora, flores, e, por fim, o vento (repleto de

rumores, ecos de gargalhadas e de músicas); a fada lhe pergunta se deseja

conhecer mais prazeres, e o poeta permanece atônito, encantado, com os

olhos perdidos no “azul”.

A segunda e a quinta partes do poema são um tanto distintas, e

trabalham a temática das estações mais à maneira simbolista. Mantêm um

certo padrão formal, e muitas figuras e lugares-comuns da poesia ocidental

então difundidos, mas apresentam um conteúdo novo, criativo, e abordagem

surpreendente.

Em Estival, Darío aborda o aspecto físico e o comportamento de um

casal de tigres de bengala: sua força, sua agilidade, sua ferocidade e sua

paixão selvagem, sob “el sol, inmensa llama”. Para descrever os dois animais,

estabelece algumas interessantes associações, como quando, por exemplo,

denomina a fera-fêmea “reina que exige vassallaje”, ou a fera-macho “don Juan

felino”; quando fala da importância da morada do tigre – “la caverna” – como

elemento constituinte de sua identidade, de sua figura, de seu significado,

apresenta os siguintes pares de relação como equivalentes: “caimán” e

“tranquilas aguas”, “elefante” e “estepa”, “víbora” e “juncos”, “ave dulce” e

“árbol”.

Importante destacar: sobre o verão, Darío opta por abordar ícones de

uma das localidades do planeta mais quentes: “la selva africana”; porém, ao

final introduz um terceiro personagem, “el príncipe de Gales”, e mais uma vez

embaralha qualquer possibilidade de definição geográfica precisa. O nobre

caçador irá atirar e tirar a vida da fêmea, fazendo fugir o macho, que,

atordoado, longe, sonha um sonho interessantíssimo, de vingança: “que

enterraba las garras y los dientes/ en vientres sonrosados/ y pechos de mujer;

y que engullía/ por postres delicados/ de comidas y cenas,/ - como tigre goloso

entre golosos -/ unas cuantas docenas/ de niños tiernos, rubios y sabrosos”.

Na última parte do poema, Invernal, Darío apresenta um quadro mais

contemporâneo, fala de seu estado de espírito na estação mais fria do ano, e

no ambiente que ele provavelmente considerava o mais frio, a cidade moderna.

Ainda assim, cita vento, brisas glaciais, chuva, neve, ombros e gargantas

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cobertos, fogareiros e chaminés acesos, tremores, e também carros,

vendedores que oferecem, nas ruas, aos berros, suas mercadorias; e não nos

permite saber ao certo de que cidade está falando.

Uma nova concepção de “sonho” se projeta, em seguida: não mais Darío

recorre à construção de paisagens paradisíacas, ou ao inconsciente, mais à

elaboração de um ideal de mulher. O poeta desenha o perfil físico, psicológico,

comportamental, da mulher cujos beijos aplacariam o frio desta noite de

inverno.

Salvador Rueda, um dos grandes representantes espanhóis da poesia

de fins dos oitocentos e inícios dos novescentosvi, inspirado em postulados

parnasianos teria proposto a estética do “colorismo”. Há, em meio a sua

trajetória poética, versos sobre a brancura e perfeição dos cisnes (El cisne), o

canto da cigarra (La cigarra) e sobre o corpo feminino ideal, formoso e

generoso (Discurso de Afrodita).

Mais tarde, vivendo na América e dialogando com os autores locais,

imprimiu a seus poemas um tom caracteristicamente simbolista. No poema

Coplas (em português, “quadras” – nele estão contidos 50 agrupamentos de

quatro versos), tece uma série de associações entre fenômenos da natureza e

relações amorosas. Por exemplo: a amendoeira que se fortalece quando

podada, tal como a paixão que arde quando há dor. As folhas das árvores

cairiam todas, como se chorassem, por ocasião da morte de sua namorada;

mas, se ela saudável cruza o campo, as ramagens balançam ao vento, como

se, alegres, batessem palmas. Lembrando o conhecido poema do simbolista

brasileiro Alphonsus de Guimaraens, Ismália, em Coplas Rueda fala sobre o

reflexo da lua na lagoa, e afirma que se sua amada é a lua, ele é o cisne que

flutua sobre a imagem dela refletida.

3. O parnasianismo e o simbolismo no México

No México, inauguraram uma literatura semelhante (dialogando

parnasianismo e simbolismo) os poetas Manuel Gutiérrez Najera (1859-1895),

Salvador Díaz Mirón (1853-1928) e Manuel Puga y Acal (1860-1930).

vi Outros poetas espanhóis deste período são: Alvarez de Cienfuegos Cobos, Ramón de Valle-Inclén, Francisco Villaespera, Manuel Machado, Eduardo Manquina, Emilio Carnère.

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Creio que a poesia de Najera sofreu grande influência do parnasianismo;

seus versos têm a métrica perfeita, suas rimas são ricas, o vocabulário é

erudito, e eles são quase sempre sobretudo descritivos. No poema De blanco

Najera lista lírios, círios, flores de laranjeira, acácias, açucenas, neblina, névoa,

neve, pombos, ovelhas, cisnes, plumas, espumas, catedrais e altares góticos

de mármore, as velas dos oratórios, hóstias, as velas latinas de uma

embarcação, pentes árabes de marfim, a asa dos anjos, o manto que envolve a

criança quando nasce e que cobre o rosto da mulher amada no dia do

casamento, o rosto de sua namorada.

Entretanto, Najera quase sempre é puro sentimento, que explode em

exclamações e em metáforas belíssimas). Em Madre naturaleza, fala do desejo

de retornar a um universo bucólico, onde residem o ar puro, as planícies

verdes, a “virtud”; afastado da “ansia inmensa que [al poeta le] consume”.

Trata-se de uma natureza “atemporal”, sem história e imperecível, e por isso

acolhedora. Mas neste lugar encantado não existiria apenas gozo e alegria. Na

realidade, é também onde o poeta crê poder chorar com sinceridade, ter fé,

esquecendo, assim, “el tedio [!] abrumador de las ciudades”, que faria com que

os homens se tornassem apáticos, impassíveis. Tal caracterísitca da poesia de

Najera, como vimos em análise da literatura em português das últimas décadas

dos oitocentos, é típica da vertente simbolista.

Seu poema Ondas muertas aborda nascentes de água, cachoeiras,

riachos caudalosos, mares. As costas litorâneas são pintadas com tintas de

sonho: há flores, ninfas, terra fértil, e o barulho agradável das marolas. Lindas

imagens pipocam aqui e acolá: compara fontes de água a uma “traviesa” “niña

que en régio palacio/ sus collares de perlas desgrana”, e fala dos rios como “un

espejo movile de plata,/ [que] va copiando los astros del cielo/ o los pálidos

tintes del alba”.

Porém, nas últimas estrofes toma como tema as águas submersas, que

habitam regiões que nem a luz nem qualquer tipo de vida alcançam. Estas

águas, diz o poeta, não soluçam de tristeza nem cantam em razão de qualquer

felicidade. São como sua alma, que habita o mais fundo de si, desconhecida e

intocada.

14

Page 15: Vanguardas literárias

Deste poema, deve-se destacar ainda a maneira alternativa com que

seus versos rimam.

Díaz Mirón, em Pinceladas, apresenta uma bela paisagem, por sobre a

qual sua alma (“el ala parnáside”) anseia alçar vôo: três casebres, rosas,

vegetação abundante, um poço, montes, um vulcão, neve, nuvens, o mar, a lua

e o brilho do planeta Vênus. Há uma atmosfera mística, religiosa, bem ao gosto

parnasiano.

Já em A una araucária, tal poeta mexicano descreve a enorme árvore

típica das regiões frias (sua alta ponta, suas folhagens, o melro que vem nela

pousar). Contudo, diferentemente do poema anterior, neste Mirón intercala as

referências à planta com considerações sobre seu estado de espírito: trata-se

de um homem orgulhoso, rancoroso, mas firme. Passa um vento forte,

carregando folhas em direção às nuvens do céu, enquanto ele sente a dor da

ofensa sofrida, a dor que ele, forte, não permite que ninguém perceba. Quando

a chuva cai, sobre a copa da árvore, o poeta deseja que seja uma mensagem

de Deus.

Num segundo momento, já na virada do século XIX ao XX, destacam-se

no México, em uma linhagem poética semelhante à de Najera e Mirón, os

nomes de Enrique González Martínez (1871-1952), Amado Nervo (1870-1919),

Ramón López Velarde (1888-1925), e José Juan Tablada (1871-1945).vii

Entretanto, nota-se nestes autores uma série de inovações importantes, tanto

na forma como nos temas e no tom.

González Martínez é autor de um dos poemas mais analisados da

História da Literatura no México: Tuércele el cuello al cisne. Para nós

brasileiros, a despeito de se apresentar em forma de soneto e em métrica

perfeita, pela crítica à geração de poetas mexicanos mais claramente

inspirados pelo parnasianismo lembra-nos Os sapos, de Manuel Bandeira

(1886-1968).

Importante destacar que, no caso deste poema mexicano, a escolha do

símbolo não é aleatória: a beleza, a perfeição, a brancura, a graciosidade, a

vii Outros importantes literatos mexicanos do período são: Manuel José Othón, Francisco González Martínez, Maria Enriqueta Camarillo de Pereya, Rafael López, Alfredo R. Placencia, Efrén Rebolledo, e Porfírio Barba Jacob.

15

Page 16: Vanguardas literárias

pureza de tais aves era sempre reverenciada em poemas classificados

“parnasianos”. Mas vale pontuar que o poeta aqui também destaca

características subjetivas dos cisnes: são impassíveis, “no sienten el alma de

las cosas ni la voz del paisaje”. Então a coruja é exaltada como novo símbolo

poético: ela não é bela, vive na escuridão das florestas, na noite, mas está

sempre buscando mistérios a desvendar ao seu derredor. Quer dizer: pode-se

argumentar que nesse segundo momento, no México, vai-se abrindo mais

claramente caminho para a gestação de alguns elementos que, poucos anos

mais tarde, serão bastante característicos da vanguarda literária.

Nervo, de sua parte, apresentava rimas que seguiam uma estrutura

muito pessoal, e versos exortatórios, envolventes, carregados de sentimento

(tal como o farão, mais tarde, expoentes das vanguardas literárias). No poema

Oremus, lamenta que as novas gerações sejam tão apáticas; e declara sua

admiração e ao mesmo tempo preocupação com a gente que enfrenta com

firmeza as dificuldades da vida (a multidão de camponeses submetida a

arbitrários poderes, o remador que investe contra a força do mar). Lamenta a

geração de “neuróticos”/“nostálgicos de sombra” que contestam a existência de

Deus; e declara sua admiração e ao mesmo tempo preocupação com os

sábios, artistas, miseráveis e enfermos, que suportam, esperançosos e com

fervor, cada qual o seu destino.

A la católica Majestad de Paul Verlaine (que Nervo dedica a Ruben

Darío), tal como Oremos, tem uma estrutura que remete a preces, rezas,

orações; seu último verso termina com a expressão “Así sea.”. Aqui Nervo fala

sobre a importância do referido simbolista francês para sua poesia. Começa

por descrever-lhe fisicamente: o rosto envelhecido e sorumbático; o ar distante,

nobre, altivo. Em seguida, evocando-o como “pai”, como guia (“tu que hallaste

por fin el sendero”), fala da inspiração que tem-lhe sido na busca por uma

poesia elevada, pura, radiosa (que dissesse respeito à “alma”) e ainda sábia,

humana (que dissesse respeito à “carne”).

Velarde também inovou consideravelmente. O poema Las desterradas,

por exemplo, é composto ora por quadras, ora por tercetos, ora por estrofes de

dois, cinco, sete, seis, oito versos.

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Page 17: Vanguardas literárias

Há também um quê de “desordem” na maneira como Velarde se

expressa. Fala de Rut e Rebeca, duas camponesas que partiram para viver e

trabalhar em uma grande cidade (onde há “caducas avenidas”), depois de

terem passado por diversas regiões mexicanas historicamente célebres.

Velarde cita a capital de Michoacan (Morelia, à Oeste do território mexicano), a

capital do estado de México (Toluca, no coração do país), o estado de Durango

(ao Norte) e de San Luis (pouco mais ao Sul); como se pode perceber, não

traça uma rota muito precisa, ordenada... a lista de locais pelos quais teriam

passado Rut e Rebeca não compõe uma seqüência muito lógica.

Estrofes mais adiante, propõe imagens belas, bastante ousadas, através

da associação de elementos aparentemente desconexos. Filhas de grandes

proprietários rurais, Rut e Rebeca hão de ter abandonado a terra natal por

ocasião da Revolução Mexicana. Transitariam entre o velho e o novo sem

apresentar uma postura muito clara, de reação ou tampouco de adequação.

Usariam roupas antiquadas e brincos enormes, dormiriam em hospedagens

miseráveis e trabalhariam vendendo frutas e flores em uma tenda improvisada.

O tumulto da vida urbana, da miséria e as manifestações populares descritos

nos versos acima referidos, ainda que às desterradas lhes tenha transformado

a vida, não lhes causa sobressaltos. A vida segue.

As estrofes finais são menos herméticas: o poeta expressa a

identificação com Rut e Rebeca; por essas duas mulheres, que foram expulsas

de seus lares, de suas vidas, o poeta nutre sentimentos fraternais, solidários,

“hospitalarios”. Eis uma outra visão da “mulher”: bastante distinta daquela que

Bilac desejava mas que mantinha sensualmente inalcançável, para que

servisse de alimento para sua poesia; e também diferente daquela típica da

obra dos simbolistas brasileiros e dos primeiros simbolistas mexicanos.

No poema La niña del retrato Velarde também aborda o elemento

feminino não em face de um apelo sexual ou por desejo de culto respeitoso de

sua figura. Velarde aqui, como em Las desterradas, contempla e divaga.

Observa o rosto da menina que reza em uma fotografia antiga; nota sua

expressão, suas sobrancelhas, seus olhos, sua testa, sua boca; fala de suas

17

Page 18: Vanguardas literárias

mãos, dos ombros, do cotovelo. Não a descreve: como ele mesmo pontua no

poema, a “lê”, quer dizer, busca “interpretá-la”.

4. O modernismo hispano-americano e o modernismo brasileiro

Neste momento é preciso estar-se atento. Essa literatura – inspirada no

parnasianismo e depois mais claramente no simbolismo – de Ruben Darío e de

tantos outros poetas hispano-americanos e, posteriormente, espanhóis, foi

denominada “modernista”. Corresponde, então, a uma produção

consideravelmente distinta daquela realizada pelo modernismo brasileiro – que

equivale a um movimento de vanguarda no Brasil.

Por ora, dedico-me a perceber de que maneira poemas tidos como

caracteristicamente vanguardistas, no Brasil, se diferenciam ou se aproximam

do “modernismo” hisplanohablante há pouco analisado.

Oficialmente, diz-se que a crítica vanguardista iniciou suas

manifestações no Brasil com a Semana da Arte Moderna, no ano de 1922.viii

Este evento caracterizou-se pela postura de radical condenação aos padrões

literários vigentes em nosso país. É deste período o já citado “poema-piada” Os

sapos, de Manuel Bandeira.

Costuma-se dizer que Bandeira foi leitor assíduo de Baudelaire, mas a

principal influência em Os sapos talvez tenha vindo de outro simbolista francês

– Tristan Corbière (1845-1872), autor do poema El crapaud. El crapaud fala do

luar, do sombrio, de tons prateados e esverdeados na noite, dos barulhos da

noite sufocados e repetitivos, da umidade, da pedra fria onde um casal

descobre um animal que desperta pavor, medo: o sapo. Este animal, que antes

insistia em cantar, agora, diante dos dois presentes, se esconde. Ele é o

próprio poeta: “Ce crapaud-lá c’est moi”, diz um último verso da composição,

separado do restante por uma linha pontilhada. Diz-se que Corbière era

horrendo e vestia-se de maneira esdrúxula, e sentia-se, como revela aqui,

como um “rossignol de la boue” (“rouxinol do lodo”), um “poète tondu, sans aile”

viii Dentre os literatos presentes na Semana, estavam: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Sérgio Milliet, Plínio Salgado, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira, Renato de Almeida, Ribeiro Couto e Guilherme de Almeida.

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Page 19: Vanguardas literárias

(“poeta tosquiado, sem asa”). São versos bem tipicamente simbolistas:

obscuros, emocionais.

Assim, pode-se propor que, a despeito deles terem possivelmente

inspirado Bandeira na composição de Os sapos, o brasileiro acabou por

construir uma alegoria bem mais complexa. Dirige-se à geração de

parnasianos designando-os “sapo-boi”, “sapo-tanoeiro”, e “sapos-pipas”. Eles

todos, atentos ao ritmo, à métrica, às rimas ricas, a um vocabulário erudito,

acabariam por apresentar uma literatura “aguada”, patética; além disso (através

dos versos “–Sei! –Não sabe! –Sabe!”) Bandeira expressa sua indignação com

o poder que os representantes do parnasianismo no Brasil, integrantes da ABL,

tinham de determinar o que seria correto ou incorreto para a poesia nacional.

Atento a este cenário, o “sapo-cururu” (o próprio eu lírico), tal como a coruja de

González, esconde-se na escuridão, triste, solitário e desconfiado.

Os poemas publicados neste momento, no Brasil, pelos expoentes da

vanguarda, também trouxeram como tema as cidades, os conflitos sociais, a

modernidade. É em homenagem à cidade de São Paulo que Mário de Andrade

publica, em 1922, o livro Paulicéia desvairada.

Mas tal grupo, dantes aparentemente coeso, com o passar dos anos foi

revelando conflitos de idéias e ações – Mário de Andrade (1893-1945) e

Oswald de Andrade (1890-1954) romperam com Graça Aranha (1868-1931);

depois, Mario e Oswald romperam entre si; Oswald lançou dois manifestos

literários com concepções um tanto diversas (Pau-brasil, em 1924, e

Antropófago, em 1928); os integralistas Plínio Salgado (1895- 1975), Menotti

del Picchia (1892- 1988) e Cassiano Ricardo (1895 – 1974) fundaram o grupo

Anta/Verde-amarelo.

Todos esses grupos entregavam-se à abordagem e problematização de

uma Literatura brasileira, em “língua brasileira”, sobre a história e a gente

brasileira. Questão conflituosa, em relação a qual muitos ousaram se

posicionar de maneira pouco flexível, e que por isso fez romper antigos

vínculos de amizade.

Mas havia também aqueles que decidiram não privilegiar a questão da

“brasilidade”. São exemplo disso artigos e poesias publicadas nas revistas

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Page 20: Vanguardas literárias

Estética (1924) e Festa (1927)ix, para as quais contribuíram os poetas cariocas

Ronald de Carvalho (1893 -1935) e Cecília Meireles (1901-1964), o paulista

Ribeiro Couto (1898-1934), o pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968), os

mineiros Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Murilo Mendes (1901-

1975). Esses escritores entendiam que podiam sim falar do nacional (não

estavam mais presos ao estigma do europeísmo), mas que, como cidadãos do

mundo, tinham o direito de falar de qualquer coisa: do passado e do presente,

de nós e dos outros, ou de um eu profundo.

Tomemos a obra de Murilo Mendes como representativa. Murilo se

interessou pelos mais variados temas, e nos oferta livros tais como História do

Brasil, de 1932, no qual brincava com acontecimentos marcantes de nossa

realidade nacional, desde a descoberta até os dias de então: aborda a

Inconfidência Mineira, Canudos, a Revolução de 1930, e hábitos que se

mantém ao longo dos tempos, como a bur(r)ocacria contra-producente

característica de nossos governos, desde a colonização até os dias de hoje

(“Um presidente resolve/ Construir uma boa escola/ Numa vila bem distante./

Mais ninguém vai nessa escola:/ Não tem estrada para lá./ Depois ele

resolveu/Construir uma estrada boa/ Numa outra vila do Estado./ Ninguém se

muda para lá/ Porque lá não tem escola”). Em versos cômicos e ricos em

intertextualidade, fazia lembrar os poemas-piadas que nos primeiros tempos

modernistas, no Brasil, haviam causado tanta polêmica. Um bom exemplo é o

poema Homo brasiliensis.

Porém, pode-se dizer que sua obra é bastante representativa do dito

segundo momento do modernismo brasileiro, no qual a contestação pura e

simples da literatura tradicional foi substituída por um desejo de criar o novo.

Esta idéia aparece em Nortuno resumido, de seu primeiro livro publicado,

Poemas (1930). Ali Murilo parece incomodado com o fato de que os

vanguardistas acabavam por incorrer no mesmo equívoco que condenavam

nas gerações anteriores: o estabelecimento de quais seriam os melhores

modos de se trabalhar a Literatura. Destarte, escreve que “A lua e os

manifestos de arte moderna/ brigam no poema em branco.” E que “pensar no

ix Os fundadores destas duas revistas foram, respectivamente: Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais; e Andrade Muricy e Tasso da Silveira.

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Page 21: Vanguardas literárias

cubismo”, assim como “andar de automóvel” corresponderiam a empecilhos ao

“namorar”, ao amor, à beleza, à poesia. O eu lírico deseja, assim, ser livre para

construir, fazer, sonhar o que tiver vontade.

Em 1935 publicou Tempo e eternidade, em que explorava um tema que

lhe foi bastante caro – a fé católica. Em alguns poemas, abordava os

misteriosos desígnios divinos, e o desejo de, através da poesia, alcançá-los.

Em outros, ansiava que sua Poesia, tal como a fé, fosse elemento integrador,

num “mundo mutilado”. E falava do mundo em que vivia, o mundo “concreto”:

capitalista, tecnológico e socialmente fragmentado. Em Salmos, por exemplo,

enumera benesses criadas por Deus, tais como o sol, as estrelas, os frutos do

campo, as flores, o mar e os animais e plantas marinhos... e inclui na lista

cinemas, locomotivas e submarinos. Nos versos de Meu novo olhar, percorre

sentimentos caracteristicamente modernos: o pessimismo, a angústia frente à

fugacidade das coisas, a dissimulação das pessoas, as superficialidades, os

conflitos sociais.

E creio que é de sua obra Poemas, de 1930, uma de suas composições

mais expressivas: Mapa. Murilo define sua personalidade poética como

multifacetada, fluida, dinâmica, angustiada, porém ardente e contagiante – bem

ao modo de tantos outros poetas vanguardistas. Diz: “estou no ar,/ (...) no

pensamento dos homens que movem o mundo,/ nem triste nem alegre, chama

com dois olhos andando/ sempre em transformação.”

Aborda sua infância e convenções (seu próprio corpo, o medo, a religião,

a formação familiar e escolar) que “limitavam” seu desejo de expressão e

desde então iam definindo seu caráter e seu inconformismo. Quando se torna

homem maduro, têm de aprender a lidar com situações ambíguas, o riso que

se confunde com o choro, o gostar e não-gostar do Outro, o bem e o mal.

Também julga importante falar de sua família fincada em origens rurais; assim

como de um passado que antecede a ele próprio, de uma ancestralidade

espanhola que talvez explique esse impulso (quixotesco) de lutar contra o

“irreal”, contra um inimigo impalpável.

É indispensável refletir, aqui, sobre uma questão que remete à análise

de poemas parnasianos e simbolistas, acima desenvolvida por mim. Como

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Page 22: Vanguardas literárias

disse anteriormente, sob o rótulo do parnasianismo e do simbolismo muitos

autores, ainda que dedicando-se à mera descrição de paisagens, optaram por

não delinear espaço e tempo – eles quase sempre falavam de um

idílico/abstrato/indeterminável. No poema O filho do século Murilo lamenta o

fato de que “tempo e espaço firmes” o haviam “abandonado” – o passeio de

bicicleta, as conversas no portão, as tardes preguiçosas ou mesmo o “puro

amor”. Enfim, uma vida mais “real” teria perdido a vez para o urgente debater

das questões sociais (a fome, a miséria) ou teria sido silenciada pela

irracionalidade da guerra. Como se pode notar, a ausência de referências mais

precisas acerca do espaço e do tempo, conforme o entendimento deste último

autor, não se daria em face de um escape ou de uma alegoria – tal como um

parnasiano-típico, tal como um simbolista típico. Se daria em face da maneira

como o vanguardista percebe a “realidade” e a recria, poeticamente.

Em Mapa a perda das referências espaço-temporais, tão característica

da atualidade, reaparece. O eu declara ao final que está escrevendo de seu

quarto, na praia de Botafogo, tal como também o faz Drummond no poema A

bruxa. Mas a despeito desta informação precisa, o poeta está confuso. A

facilidade com que temos acesso a informações sobre países de qualquer um

dos cantos do planeta (“me desespero porque não posso estar presente a

todos os atos da vida”), os contatos que ocorrem de maneira cada vez mais

corriqueira e veloz, e com uma intensidade, uma profundidade cada vez menor

(“o mundo vai mudar de cara”), tudo isso faz com que o autor declare: “Viva eu,

que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente”. A própria

maneira com que constrói os versos deste poema nos ajuda a penetrar seus

sentimentos, sua sensação de viver o indefinido; dados supostamente

incongruentes aparecem lado a lado, separados por uma enxurrada de

vírgulas.

Assim, o poeta deseja não um mundo mais “verdadeiro”, e sim um

mundo mais “delicado”. Não confia em nenhuma técnica e não se inscreve em

qualquer linha teórica, detesta os homens práticos, porque sabe da

impossibilidade de se formular respostas únicas, planos perfeitos, para

remediar os males da sociedade contemporânea. Na contra-mão, ama os

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Page 23: Vanguardas literárias

desesperados, os insatisfeitos, os amantes, os suicidas, os derrotados, os

transfigurados, os criminosos.

Faz-se mister atentar para o fato de que uma visão trágica do mundo,

uma abordagem angustiada de questões tais como justiça social, fraternidade e

realização pessoal, um interesse pelo “real” que se confronta e se mistura com

o “sonho”, aparece também em poemas de Carvalho, Meireles, Couto,

Bandeira e Drummond.

É momento de perceber se também aparece na poesia de vanguarda de

Portugal.

5. Modernismo português, em Portugal

É comum se dizer que o vanguardismo “português” (digo, nascido em

Portugal) surgiu com o lançamento da revista Orpheu, em 1915, por Mario de

Sá-Carneiro (1890-1916). O desenvolvimento inicial das propostas estéticas

apresentadas pelos poetas associados a esta revista,x classificados então

como orphistas, foi marcado por críticas severas e debates acirrados, mas

terminou por logo abrandar-se, após o suicídio do referido fundador e

responsável pelos custos da dita publicação, que foi, então, encerrada.

Mesmo tento sido breve, contudo, é de fundamental importância

destacar o esforço de atualização da literatura portuguesa impingido pelos

autores ligados a Orpheu. Vivendo em um Portugal caracterizado por

constantes reviravoltas políticas desde 1910 (ano de proclamação da

república), problemas econômicos e desenvolvimento científico e tecnológico

precários, tais expoentes da intelectualidade lusa pontuavam a importância de

se relembrar que os portugueses são também europeus, e que por isso não se

deveriam negar a um diálogo maduro com as propostas de “rompimento”

estético-literário apresentadas, então, nas mais diversas nações da Europa

(BARRETO: p. 58, 61, 62).

Daí se poder observar em território luso uma realidade de certa forma

semelhante à brasileira, de então: críticos em relação a uma burguesia

reacionária e conformista com força aparentemente inquebrantável em

x Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoaes, António Ferro, Arnaldo Pereira, Joshua Benoliel, Stuart Carvalhaes, Almada Megreiros.

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Page 24: Vanguardas literárias

Portugal, estes pensadores e escritores de vanguarda foram subestimados por

alguns dos nomes de maior expressão no universo intelectual português do

período, tal como Julio Dantas, cuja apreciação acerca da importância do

primeiro número de Orpheu apresento a seguir:

Alguns rapazes, com muita mocidade e muito bom humor, publicaram, há dias, uma revista literária em Lisboa. Essa revista tinha apenas de notável a extravagância e a incoerência de algumas, senão de todas as suas composições. Como a recebeu a imprensa diária? Com o silêncio que merecia? (...) Não. A imprensa recebeu essa revista com artigos de duas colunas – na página primeira. (...) [Sendo assim] é justo confessar que os loucos não são precisamente os poetas, mais ou menos extravagantes, que querem ser lidos e comprados; quem não tem juízo é quem os lê, quem os discute e quem os compra (Apud. BARRETO, 60).

Em Manifesto Anti-Dantas, lançado em 1917, o poeta Almada Negreiros

(1893-1970) criticou tais apreciações, defendo a necessidade de uma ruptura

brusca com o passado da literatura portuguesa, da qual Julio Dantas foi figura

emblemática. Pode-se dizer, assim, com base no trabalho do brasileiro

Eduardo José Paz Ferreira Barreto e na leitura do referido manifesto, que os

argumentos de Negreiros correspondiam à inovadora defesa orphista de um

“ódio transformador” (BARRETO: P. 68). Senão, vejamos:

Uma geração, que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indígnos e de cegos! É uma resma de charlatões e de vendidos, e só pode partir abaixo de zero! (...)Morra o Dantas, morra! Pim!Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco!O Dantas é um cigano!O Dantas é meio cigano!O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!(...)O Dantas é o escárnio da consciência!Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa! O Dantas é a meta da decadência mental!E ainda há quem lhe estenda a mão!E quem lhe lave a roupa!E quem tenha dó do Dantas!(...)Morra o Dantas! Morra! Pim!

Após o encerramento da divulgação de Orpheu, algumas novas revistas

foram criadas com o objetivo de incorporar este primeiro projeto vanguardista

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Page 25: Vanguardas literárias

português, e estampar textos de autores interessados na renovação dos

paradigmas estético-literários em Portugal; são exemplos: Centauro (1916),

Exílio (1916), Ícaro (1917) e Portugal Futurista (1917). Contudo, ainda que

tenham revelado nomes hoje tidos como importantes para a Literatura lusitana,

tais como Aquilino Ribeiro (1885-1963) e Florbela Espanca (1894-1930), estas

publicações não alcançaram uma significativa projeção, nem nacional e muito

menos internacional.

A vanguarda literária de Portugal intentará ainda compor um grupo de

relevo com o lançamento de Presença (1927). Mas um movimento mais

ordenado, com propósitos mais bem definidos, apenas apareceu na década de

1940, sob a liderança de Alexandre O’Neil (1924-1986) e inspiração surrealista.

Note-se: 25 anos depois do lançamento do manifesto de André Breton, 1896-

1966, na França; e quase 15 anos após o lançamento do Manifesto Pau-Brasil.

Pode-se dizer, portanto, que, da vanguarda portuguesa, a obra poética

mais característica não é a de um grupo, mas a de uma “personalidade”:

Fernando Pessoa (1888-1935). Pessoa iniciou sua carreira publicando versos e

artigos de Crítica Artística e Literária em Águia, uma revista ligada a setores

portugueses tradicionais, e atenta a uma percepção do nacionalismo voltada à

valorização do passado, dos grandes feitos lusitanos do século XVI. Entretanto,

com o passar dos anos o autor renovou seu estilo, desenvolveu outras facetas

estéticas, e passou a integrar o corpo de colaboradores das mais diversas

revistas com propostas diversas. Como é sabido, assinava com diversos

heterônimos, dentre os quais se destacam Ricardo Reis, Alberto Caeiro e

Álvaro de Campos.

Associados na imprensa de então a biografias, descrições físicas e

personalidades específicas, cada um desses nomes correspondia a um corpo

de publicações bastante particular: o primeiro era monarquista e trabalhava

com referências à Literatura clássica greco-romana, o segundo exaltava a

natureza e as formas simples de viver, e o terceiro refletia sobre a modernidade

e foi classificado “futurista”. O que nos leva a pensar que, ainda que poemas de

alguns de seus ditos “heterônimos” não apresentem forma e conteúdos típicos

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Page 26: Vanguardas literárias

da vanguarda, o ser plural, confuso, irônico e multi-facetado de Pessoa é

expressão clara do vanguardismo do século XX.

Interessante atentar para o fato de que, no ano de lançamento da revista

Orpheu, Pessoa fez chegar a público a notícia de que Ricardo Reis, desiludido

com a política em Portugal, migrou para o Brasil, desaparecendo da cena

literária portuguesa; Alberto Caeiro teria falecido; de seus três mais

significativos heterônimos, logo, restou atuante apenas Álvaro de Campos, o

poeta futurista, autor de versos mais identificáveis às proposições de

vanguarda difundidas internacionalmente, como revela o seguinte trecho de

sua sempre-referida Ode triumphal, em que percebemos a temática das

técnicas, do novo, dos sons incômodos e ao mesmo tempo inebriantes e tão

característicos da vida moderna: “Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!/

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!/ E fúria fora e dentro de mim,/

Por todos os meus nervos dissecados fora,/ Por todas as papilas fora de tudo

com que eu sinto!/ Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,/ De vos

ouvir demasiadamente de perto,/ E arde-me a cabeça de vos querer cantar

com um excesso/ De expressão de todas as minhas sensações,/ Com um

excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!”

Porém, é importante ter-se em mente que o futurismo de Campos não é

esquemático como muitas vezes se supõe. Em um de seus primeiros poemas,

dedicado a Sá-Carneiro, Opiário – lembrando a opção muriliana por definir o

local em que estaria locado ao escrever o poema –, compõe como se estivesse

dentro de um navio, como se já houvesse passado por diversos lugares do

mundo, tal como Escócia e Irlanda, China, Índia, e percorresse agora o Canal

de Suez, em direção à sua terra natal.

A viagem de navio é um símbolo, é uma metáfora da vida. Na

modernidade, tem-se contato com todo tipo de gente, mas tudo é fugaz e

superficial. Daí afirmar que “embora a gente se divirta às vezes”, “a vida a

bordo é uma coisa triste”... ou que “Enjoa-me o Oriente. É uma esteira/ Que a

gente enrola e deixa de ser bela.”

Fala de si, de sua origem portuguesa, mas logo em seguida arremata

que seu modo de “ver” e os objetos que possui (monóculo, casaca) fazem de si

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Page 27: Vanguardas literárias

um “tipo universal”. Por isso declara: “Não tenho personalidade alguma”, e,

logo em seguida: “Hoje, afinal, não sou senão, aqui,/ Num navio qualquer um

passageiro”, “a minha Pátria é onde não estou.”

Tais questões tocam a todo e qualquer sensível homem contemporâneo,

desde o simbolismo; homem eternamente insatisfeito. Ali, Campos confessa

estar doente da alma, estar viciado na dor. A referência ao tema da

enfermidade, ao uso de morfina, ópio e álcool expressa a sua relação com a

vida: monótona e desconfortável. “Sou um convalescente do momento”, “Meu

coração é uma avozinha que anda/ Pedindo esmolas às portas da Alegria”, diz.

Campos, assim, segue cambaleante; não tem firmeza nos passos, porque está

doente e porque pisa o chão instável da embarcação, mas também porque não

tem firmeza nas idéias, nos sentimentos.

Numa fase seguinte, esse “horror à vida” é substituído por um desejo

intenso de sentir, pensar, intervir; porém, o poeta encara o fato de que ele

próprio é o seu maior obstáculo, é aquilo que em sua vida mais empecilhos cria

à alegria de “realizar”.

Campos não é como Penha, que falara de uma natureza bucólica. Não é

como Pessanha, que construíra mundos-alegóricos pra falar de emoções. Em

Tabacaria, tal como Cesário Verde, observa a cidade em que vive; contudo, a

imagem que desenha não transparece sensações, mas desencadeia uma série

de questionamentos (lembrando Velarde). É como se exacerbasse o interesse

de um Augusto dos Anjos pelo mistério, e olhasse pela janela do quarto a rua,

com a profunda impressão de que não a pode compreender. As coisas, as

pedras do calçamento, os passeios, as carruagens, os carros, os cães, a loja

de tabaco do outro lado, o mundo todo, para Campos, é indecifrável. Assim

como as pessoas (“gente” ou “entes vestidos que se cruzam”), e ele próprio,

daí dizer que “não sou nada/ nunca serei nada/ não posso ser nada.” Por isso

tudo o deixa perplexo, admirado; “tudo isso me pesa como uma condenação ao

degredo”; “e tudo isto é estrangeiro”.

Mais um ponto importante: existe em Tabacaria não apenas uma

reflexão acerca da maneira como construímos nossas idéias de mundo ou de

nós, mas também especificamente acerca da criação poética. O poeta sabe

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Page 28: Vanguardas literárias

que a Literatura é perecível (“depois de certa altura morrerá a rua onde esteve

a tabuleta [da tabacaria],/ e a língua em que foram escritos os versos.”) e

confessa que é de um mundo bem prosaico que brotam suas densas

proposições “metafísicas” (“Mas um homem entrou na Tabacaria (pra comprar

tabaco?)/ E a realidade plausível cai de repente em cima de mim./ Semiergo-

me enérgico, convencido, humano,/ E vou tencionar escrever estes versos em

que digo o contrário.”)

Outro aspecto interessante da poesia de Álvaro de Campos é a

presença da mulher. Em muitos de seus poemas uma figura feminina aparece,

e então o autor repensa a si, seus próprios interesses, suas críticas, suas

indefinições. No caso de Tabacaria, fala da jovem comendo chocolates, quer

dizer, simplesmente agindo, vivendo, enquanto ele racionaliza, interpreta,

classifica e se perde (“mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha

de estanho,/ deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida”). Mais adiante,

uma “deusa grega”, uma “deusa romana”, uma “princesa de trovadores”, uma

“marquesa do século dezoito”, uma “cocote” são conclamadas a inspirar-lhe

vigor. Na última estrofe deste poema, enfim, ele declama: “Se eu casasse com

a filha da minha lavadeira/ Talvez fosse feliz.”

6. Vanguardas na Espanha e relações com a Hispano-América

Na Espanha diz-se que os modernistas/parnasianos/simbolistas foram

sucedidos pela “generación del 1898”, pela “generación del 1914” e pela

“generación del 1927” (GULLÓN: passim).

O trabalho da boêmia e autodidata generación del 1898 esteve atento às

questões sociais, que trabalhou a linguagem campesina e das ruas das

cidades, dos homens e mulheres comuns. Radicais, rebeldes e esquerdistas,

críticos às correntes positivistas, seus expoentes repensaram a questão do “ser

de España”, valorizando uma supostamente espanhola moral cristã, sensível,

sonhadora, transformadora, solidária. Seus principais nomes são: os dos

ensaístas Ángel Ganivet García (1865-1898), Miguel de Unamuno y Jugo

(1864-1936), Ramiro de Maeztu y Whitney, (1875- 1936), e José Augusto

Trinidad Martínez Ruiz, o “Azorín” (1873-1967); e os dos poetas Enrique de

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Page 29: Vanguardas literárias

Mesa Rosales (1878-1929), Ramón María del Valle-Inclán (1866-1936), e

Antonio Machado (1875-1939).

Já a geração seguinte, denominada também novecentismo, preocupou-

se com o fato de que a Espanha vinha há séculos perdendo seu expressivo

papel de metrópole cultural; desejou, então, que seu país voltasse a ser sentido

como “europeu”, moderno e próspero filosoficamente, literariamente,

artisticamente. Foi, destarte, intelectualista, erudita e cosmopolita. Dela fizeram

parte os ilustres ensaístas José Ortega y Gasset (1883-1955) e Eugenio d’Ors

(1881-1954). No que diz respeito à criação poética, tal como os parnasianos,

valorizaram a forma; e, tal como simbolistas menos “sentimentais”, fizeram uso

de simbologias, metáforas, jogos de palavras. Seus poetas mais citados

comumente são: Ramón Gómez de la Serna (1888-1963), Rafael Cansinos-

Asséns (1882-1964), Juan Ramón Jiménez (1881-1958), Josep Carner (1884-

1970).

Não é comum classificar Gómez de la Serna como poeta vanguardista.

Porém, é possível argumentar que já apresentava uma poética bastante mais

“solta” que a dos modernistas hispanohablantes, tal como Salvador Rueda, já

aqui por mim analisado. Gómez de la Serna foi o criador das “greguerias”, que

ele dizia corresponderem a um novo gênero literário, e que definia como uma

mistura entre “humorismo” e “metáfora”. São, a bem da verdade, pequenas

sentenças cômicas – jogos de palavras, associação de imagens, e/ou

estruturação irreverentemente lógica de idéias – bem ao modo dos poemas-

piadas de nossos modernistas/vanguardistas brasileiros. Tomam como tema

não apenas a língua (escrita e falada) – o que é bastante típico da vanguarda,

auto-crítica por excelência –, mas elementos da natureza e as cidades, os

conflitos sociais e afetivos. Creio ser de grande valor citar alguns belos

exemplos:

Escribir con lápiz es marcar sólo la sombra de las palabras. Ballena se escribe con elle por los dos surtidores líquidos que lanza a lo alto por la nariz. Lo peor al incendiarse el teatro es que se queme el cartelito de Salida. La media luna mete la noche entre paréntesis. El arcoiris es la cinta que se pone la naturaleza después de haberse lavado la cabeza.Al mar le gusta la impunidad y por eso borra toda huella en la playa.

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Page 30: Vanguardas literárias

El viento es torpe: el viento no sabe cerrar una puerta.¿Qué está haciendo en realidad la luna? La luna está tomando el sol.En la noche de los vagones solitarios vamos con dos mujeres: la nuestra y la que se refleja en el cristal.Entre los carriles de la vía del tren crecen las flores suicidas. Tenía orejas ideales para sostener el lápiz, y por eso hubo que dedicarle al comercio. Tenía tan mala memoria que se olvidó que tenía mala memoria y comenzó a recordarlo todo.

Bom lembrar que há também greguerias que compõem quadros

absolutamente inesperados: “El poeta miraba tanto al cielo que le salió una

nube en un ojo.” e “El polvo está lleno de viejos y olvidados estornudos.” Neste

sentido, se relembrarmos a crítica de González Martínez aos lugares comuns

do modernismo/parnasianismo mexicano, no poema Tuércele el cuello al cisne,

vale a pena também transcrever uma gregueria na qual figuram as tais aves:

“De la nieve caída en los lagos nacen los cisnes.” Aqui o poeta não cria um

universo idílico, não manifesta sensações através de um símbolo; ele

simplesmente dá asas à sua imaginação, e exterioriza um universo que se cria

em sua mente, em seu coração.

Já Rafael Cansinos-Asséns, apesar de ser um dos mais comemorados

escritores espanhóis de princípios do século XX, não apresenta uma vasta obra

poética. Quer dizer: mesmo tendo sido o autor do primeiro manifesto de

vanguarda literária espanhol, o Manifiesto Ultraísta (1919)xi, não é reconhecido

por ter apresentado, em seguida, ousados (na métrica, na temática, na

composição) poemas, e sim por ser autor de um romance sobre as relações

profissionais e afetivas dos integrantes do referido movimento vanguardista –

El movimiento V.P., de 1921.

O principal poeta do ultraísmo é, na verdade, Guillermo de Torre (1882-

1914).xii Seus versos brancos não seguem qualquer padrão métrico e as

estrofes não obedecem a qualquer tipo de modelo tradicional. No mais, seus

poemas em geral são construções de imagens bastante curiosas, improváveis

mesmo. Por exemplo: em Naturaleza extática – bem distinto da referida

segunda parte do poema El año lírico, de Darío – podemos contemplar a

xi Assinado por: Guillermo de Torre, Xavier Bóveda, César A. Comet, Fernando Iglesias, Pedro Iglesias Caballero, Pedro Garfias, J. Rivas Panedas y J. de Aroca.xii Como ensaísta e acadêmico (De Torre foi professor de Literatura na Universidad de Buenos Aires), destacam-se seus estudos comparados.

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Page 31: Vanguardas literárias

associação, por Torre, de diversas imagens, aleatoriamente, ilogicamente: “Un

segmento de luna/ sobre la bandeja/ El corazón de la granada/ es un abanico

del iris/ La guitarra la pipa el periódico/ disecados como loros/ Palpando entre

el mosaico/ el vidrio canta sus reflejos/ A través de la ventana bastidor

del sol/ el viento afina sus cordajes/ Desconsolada una guitarra/ con las

clavijas sueltas/ enmaraña su testa.”

Já em Pararrayos temos uma descrição um tanto mais convencional, de

uma noite de chuva. Ali Torre compara os relâmpagos intercalados a cada um

dos olhos de Argos, gigante da mitologia grega que possuía cem olhos, e que,

enquanto dormia, podia fechar alguns e manter outros abertos, atentos,

vigiando. Os trovões, nos versos de De Torre, são tiros de pistolas

automáticas. À luz sucede a sombra; ao silêncio, estrondos. O tempo passa,

veloz, sem que se possa perceber ao certo que horas são, até que, como trens

desgovernados, as horas se descarrilam: o poeta está parado, estático, na

contemplação de um momento trivial e encantador. Há, nos versos finais, a

construção de mais uma imagem “teogônica”: a tempestade seria como a ira de

Deus (“pirotécnico celeste”) contra os homens.

Em outra composição, Autorretrato, De Torre intercala a associação de

imagens inusitadas e o descritivo com a exploração do modo de ver e pensar

do artista de vanguarda. Apresenta ícones da cidade contemporânea, como

trens, arranha-céus, jornais, e os utiliza não para falar da cidade propriamente,

mas, de uma maneira muito peculiar, para descrever a si mesmo. Ali, seus

cabelos são como velozes trens em movimento, e seu rosto, de tão altivo,

parece se erguer à altura dos prédios mais altos da cidade; um biombo próximo

à sacada, parte de sua vida cotidiana, lembra um jornal aberto, “gigante”. Ele

utiliza, para falar de si, ainda, uma série de conceitos e lugares-comuns da

pintura cubista, nascida na Espanha e explorada por expoentes tanto de

centros culturais europeus, como a França, como da Hispano-América. Ele se

questiona “como” é (“¿Pero como soy yo?”) e apresenta possíveis respostas a

serem dadas por pintores cubistas como o francês Robert Delaunay, o

espanhol Vázquez Díaz, o uruguaio Rafael Barradas e, por fim, Norah Borges.

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Page 32: Vanguardas literárias

Norah Borges foi sua esposa – irmã de Jorge Luís Borges (1899-1986) – e,

segundo De Torre, o descreveria como “un paisaje de feria urbana”.

Neste mesmo poema fala ainda de aspectos subjetivos de sua

identidade: “Del barroquismo a lo jovial/ Un síncope de esdrujulos/ acelebra mi

vida mental”. Em outras palavras, o poeta se considera um misto de

sentimentos sombrios e de entusiasmos, o que é bastante característico das

vanguardas de todo mundo – críticas mas ativas.

Outros dois importantes expoentes do ultraísmo são o espanhol Gerardo

Diego (1896-1987), e o já citado (e sempre celebrado) Borges, poeta argentino.

Faz-se mister lembrar, aqui, que o movimento de vanguarda que mais

teria influenciado o ultraísmo não foi, como se pode imaginar, o cubismo (já

que este teve grande expressão entre as artes plásticas, na Espanha); nem o

futurismo ou o dadaísmo, tão aclamados internacionalmente. O movimento de

vanguarda que mais teria influenciado o ultraísmo foi concebido em língua

espanhola, mas não na Europa e denominava-se creacionismo. Foi inaugurado

em uma conferência no Ateneo de Buenos Aires, pelo poeta chileno Vicente

Huidobro (1893-1947), no ano de 1916. Como veremos através da leitura de

alguns de seus poemas mais expressivos, Huidobro (diferentemente dos

modernistas hispanohablantes) não foge do mundo ao redor em direção a um

passado glorioso (bem ao gosto parnasiano), nem tampouco à noite, ao sonho

(bem ao gosto do simbolista González Martínez). Simplesmente não crê que

este mundo lhe baste, e deseja inventar, com os elementos que se lhe

oferecem, um mundo inexistente. Não constrói simbologias: apresenta novos

elementos. Realiza, assim, uma fusão entre as “palavras” e as coisas

(matérias, idéias, sentimentos). Faz associações fortuitas que comumente os

pesquisadores têm denominado “humor branco”.

Em Primavera, por exemplo, – lembrando muitos dos poemas de De

Torre, a quem Huidobro certamente influenciou, e de maneira bastante distinta

do Primaveral de Darío – não apresenta sequer um dos elementos mais típicos

desta estação do ano, como o sol, as flores, a brisa quente. Trata de abordar

situações e/ou relações surpreendentes. Tomemos a título de exemplo três

imagens compostas ali por Huidobro, numa seqüência: primeiramente, refere-

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Page 33: Vanguardas literárias

se a um pássaro que antes cantava como um coágulo de sangue, mas que

agora cochila; depois, refere-se a um violinista morto “esta mañana”; por fim,

identifica os elementos violino e janela, e trata de abordar o canto produzido

por ele/ela. Apresenta, assim, um quadro bastante surpreendente, visual, de

uma maneira tal, que emociona quem lê.

Em Puerto trabalha com uma série de elementos típicos deste que é um

dos locais-ícones da modernidade: fala em velas, mastro, instrumentos de

pesca, naves, piloto, o ancorar, o naufragar, o flutuar. Mas aqui tampouco

apresenta uma descrição convencional. Falando do porto, o poeta aborda, em

última instância, mas especialmente, o aleatório, o desconhecido, o incerto; há

“el azar de los dados”, “una selva”, “un escojo”. Uma outra figura presente em

Puerto é recorrente em muitos outros poemas escritos por Huidobro, e, da

maneira como aparece, aqui, serve para reiterar este meu argumento: as

estrelas. Diferentemente do que pudemos observar nas composições

parnasianas, nesta composição específica do dito autor chileno surgem como

mais um elemento da pintura escrita por Huidobro, e não sob um viés místico,

de anunciação ou guia – elas que no céu brilham, mas já não estão lá.

No que diz respeito à concepção de “temporalidade” implícita nos

poemas de Huidobro: o poema se desenha dentro de uma moldura de tempo,

que fixa o momento; mas ele permanece latente, prismal, e multifacetado. Esse

momento, em geral, é um ponto determinado no movimento da vida, do mundo,

do universo, os quais no desenho do poeta têm um funcionamento mecânico,

ainda que não cumpram estágios lineares de desenvolvimento. Focando no

poema, portanto, vemos um instante dinâmico; ampliando o olhar, entendemos

que, para o poeta, tudo se move confusamente, e tudo está pronto para

recomeçar.

Na composição Arte poética, todas estas questões aparecem mais

evidentes. Ali Huidobro conclama outros escritores a darem vida às palavras,

através da criação de jogos associativos sem regras pré-estabelecidas. Ali ele

deixa bem claro que sua preocupação não é falar das “coisas em si” (Elas

existem? Vivem?), mas dar vida às palavras. Ele deseja é elaborar “figuras”

que causem impressões na mente do leitor, justamente pelo fato de a mente do

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Page 34: Vanguardas literárias

leitor nunca as ter concebido. Note: “Que el verso sea como una llave/ Que

abra mil puertas./ Una hoja cae; algo pasa volando;/ Cuando miren los ojos

creado sea,/ Y el alma del oyente quede temblando./ Inventa mundo nuevo y

cuida tu palabra;/ El adjetivo, cuando no da vida, mata./ Estamos en el ciclo de

los nervios./ El músculo cuelga,/ Como recuerdo, en los museos;/ Mas no por

eso tenemos menos fuerza:/ El vigor verdadero/ Reside en la cabeza./ Por qué

cantáis la rosa, ¡oh Poetas!/ Hacedla florecer en el poema;/ Sólo para nosotros/

Viven todas las cosas bajo el Sol./ El poeta es un pequeño Dios.”

No que tange aos aspectos formais, Huidobro também não parece se

importar com qualquer tipo de convenção. Além de não compor versos ou

estrofes com medidas precisas, as rimas por vezes não chegam a ocorrer, e

por vezes ocorrem no meio dos versos. Pode-se dizer, em alguns casos, que o

autor parece menos preocupado com os padrões de escritura do que com o

ritmo dos poemas e do que com as imagens que eles compõem.

Entretanto, como é sabido, isso não deve ser entendido como mero

descaso, e sim como experimentação. Huidobro é por muitos considerado um

dos criadores do cubismo literário, que ganharia força e expressão nos

trabalhos de Guillaume Apollinaire (1880-1918). Em seus poemas, o chileno já

explorava medidas distintas de parágrafos, espaços entre estrofes, espaços em

branco entre determinadas palavras, frases inteiras em maiúsculas, colunas,

enfim, os aspectos gráficos. O francês, de sua parte, é o dito criador dos

“caligrames”.

No que diz respeito à geração de intelectuais espanhóis de 1927,

também chamada “generación de la dictadura”, “generación de la Revista de

Occidente” e “nietos de 1898”, sabe-se que renovaram seus versos através de

um diálogo mais claro e plural com as propostas vanguardistas. Foram, então,

mais criativos e inventivos os poemas de: Frederico García Lorca (1898-1936)

e Luis Cernuda (1902-1963).xiii

Lorca foi poeta magistral, criativo. Tomou a seu dispor, ao longo da vida,

diversos tipos de construções poéticas: romances, noturnos, gazeis (poesias

xiii Além de: Pedro Salinas, Jorge Guillén, Vicente Aleixandre, Damaso Alonso, Rafael Alberti, Emilio Prados, Manuel Altolaguirr, Fernando Villalón, Rafael Laffón, Juan Larrea, José Maria Hinojosa, Juan Domenchina, Antonio Oliver, Miguel Valdivieso, José Bergamín

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Page 35: Vanguardas literárias

árabes, em tom sensual-amoroso), canções, cantos e suítes (poesias curtas,

interligadas e interligáveis). Sua obra é marcada, inicialmente, por referências à

sua terra natal, a província de Granada; neste momento, descreve paisagens e

historietas populares e religiosas, nas quais figuram cavalos, vacas, touros,

prados, rosas, a lua, e, variavelmente, a coragem, a violência física, os

sentimentos humanos mais violentos. Numa segunda fase, após viver alguns

anos na capital espanhola e viajar à América (conheceu os Estados Unidos e

Cuba), passou a apresentar uma poesia ainda mais intensa, reflexiva, confusa,

atordoada, e a explorar o elemento “cidade”.

Tomemos para análise mais aprofundada o poema Ciudad sin sueño.

Aqui, Lorca usa também elementos díspares associados, como quando diz que

“Hay un muerto en el cementerio más lejano/ que se queja tres años/ porque

tiene un paisaje seco en la rodilla.”; ou quando diz que “caballos vivirán en las

tabernas/ y las hormigas furiosas/ atacarán los cielos amarillos que se refugian

en los ojos de las vacas”. Aqui, entretanto, diferentemente dos poemas de De

Torre e Huidobro, Lorca parece ter a intenção de falar do sonho, sono, os dois

significados da palavra espanhola “sueño”. O eu lírico parece insone, confuso,

(“No duerme nadie por el cielo.”, “No duerme nadie por el mundo.”), e em sua

mente, em sua escrita, surgem, saltam imagens desconexas. Sua percepção

de um dado “real” é também ilógica, é contraditória: em determinado momento,

pontua que os homens que não sonham serão punidos (“Vendrán las iguanas

vivas a morder a los hombres que no sueñan”); em outro, pontua que serão

punidos aqueles que dormem (“Pero si alguien cierra los ojos,/ ¡azotadlo, hijos

míos, azotadlo!”).

A temática da noite é bastante cara a Lorca e está presente em

inúmeros outros poemas compostos por ele, como, por exemplo, Noturno del

hueco. Aqui repete-se uma quase impossibilidade de falar do lógico, do

plausível. O poeta recorre, pois, a figuras confusas e inesperadas para falar do

vazio da existência humana, de sua vida vazia, do amor que torna a vida mais

leve e mais bonita (“Basta tocar el pulso de nuestro amor presente/para que

broten flores sobre los otros niños”), mas que também é vazio, porque a amada

vive uma vida vazia, e ela mesma é vazia, o mundo “real”, a natureza são

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Page 36: Vanguardas literárias

vazios (“las formas concretas”), porque não têm propriamente um sentido, um

significado.

No entanto, neste poema declara que sua vida lhe parece estar

“definitivamente anclada”. Em Ciudad sin sueño, uma dita “realidade” lateja,

como brutal, não esquece, não perdoa; para encará-la, é preciso estar

desperto: “No es sueño la vida. ¡Alerta! ¡Alerta! ¡Alerta!”

Em Luna y panorama de los insetos Lorca aborda a contraditória relação

entre o que vem a ser “irreal” e o que vem a ser “real”. Primeiramente, toma a

noção de “forma”, e propõe que determinadas coisas assumiriam sentidos e

significados distintos, dependendo da conjuntura: “Mi corazón tendría la forma

de un zapato/ si cada aldea tuviera una sirena”; “Si el aire sopla blandamente/

mi corazón tiene la forma de una niña./ Si el aire se niega a salir de los

cañaverales/ mi corazón tiene la forma de una milenaria boñiga de toro.”

Conclui, destarte, que “Son mentira las formas.”

O que, então, de fato “existe”? A resposta é sempre uma rua de mão

dupla, e Lorca vai e volta. Assim, para ele, a lua é e não é real. Seria então real

talvez a função biológica da respiração... Mas para ele “Son mentira los aires.”

E os insetos? Ora, os insetos são como o amor, que não pode ser visto (“no es

un caballo ni una quemadura”), mas que de fato se sente.

7. Vanguardas poéticas no México

No México, uma ruptura mais brusca com os preceitos literários

arraigados deu-se com o estridentismo de Manuel Maples Arce (1898-1980).

Mas pode-se dizer que seus manifestos têm um tom um tanto diverso do de

seus poemas. Nos primeiros apresentava, exultante, altruísta, uma estrutura

fragmentária, dinâmica, confusa, repleta de referências a autores e temas

nacionais mexicanos e estrangeiros. Preocupava-se com o nacional, com a

crítica irônica de determinadas tradições (como o culto aos chefes) e com a

valorização de determinados temas (a revolução, a culinária, as vestimentas

típicas).

No que diz respeito à sua obra poética, faz lembrar as rimas

despreocupadas de Velarde; e a introspecção paralisada, próxima à do autor

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Page 37: Vanguardas literárias

de Las desterradas; e numa estrutura bem pouco articulada, quase ao modo de

De Torre, Huidobro e Lorca.

Um bom exemplo é o livro Andamios interiores: poemas radiográficos,

de 1922. Conforme se pode notar pela leitura de Prisma, o poema mais

famosos da referida obra, Maples-poeta faz uso de construções fragmentárias,

imagens dinâmicas, simultâneas, confusas, e toca a temática da cidade

modernizada para falar do homem, suas percepções e seus papeis naquele

novo mundo. Aborda o sentimento de solidão e abandono característicos da

sociedade capitalista individualista. O universo parece ser, para ele, a forma

dolorida como o sujeito percebe as novidades à sua volta: “Yo departi sus

manos/ pero em aquella hora/ gris de las estaciones,/ sus palabras mojadas me

echaron al cuelo/ y una locomotora/ sedienta de quilômetros la arrancó de mis

brazos.”

Outros poetas que se uniram ao estridentismo de Arce são: Angel Salas,

Germán Cueto, Fermín Revueltas, Leopoldo Méndez, Ramón Alva de la Canal,

Silvestre Revueltas.

Paralelamente ao estridentismo, dois grupos de “novos” poetas

começaram a definir-se no México. De um lado, estavam aqueles responsáveis

pela publicação da revista estudantil El Heraldo Ilustrado y Policromias, críticos

tanto dos estridentistas quanto dos poetas mexicanos mais “clássicos” e

consagrados – trata-se de: José Gorostiza (1901-1973), Salvador Novo (1904-

1974) e Xavier Villarrutia (1903-1950). De outro lado, estavam aqueles ligados

à Revista Nueva e ao ilustre poeta González Martínez; um grupo por tantos

denominado “o novo Ateneo” (em referência ao célebre Ateneo de la Juventud)

– trata-se de Carlos Pellicer (1899-1977) e Jaime Torre Bodet (1902-1974),

Enrique Gonzalez Rojo (1899-1939; filho de González Martínez). Com a partida

deste último para o Chile, puderam os dois núcleos associarem-se em torno da

revista Contemporáneos, sob a aprovação e acompanhados pelo já

consolidado ensaísta e poeta Alfonso Reyes (1889-1959). Diferentemente dos

seguidores de Maples Arce, estes poetas cuidaram de travar discussões

morais e eram profundos conhecedores das vanguardas européias.

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Page 38: Vanguardas literárias

Segundo Guillermo Scheridan, este não foi o caso específico de

Villarrutia. Em 1923 este que é por muitos considerado o mais expressivo dos

literatos mexicanos abandonou o curso de Direito sob influência de Reyes,

visando dedicar-se inteiramente à produção literária. Viveu, daí em diante, de

suas publicações, assim como de bolsas de estudo e incentivos

governamentais (mexicanos ou estrangeiros) (SCHERIDAN: passim).

Em Nocturnos, o livro mais famosos de Villarrutia, publicado em 1933, o

eu-lírico sente-se livre para abordar temas não necessariamente característicos

de sua terra natal. Não explora temáticas tais como a vegetação, o solo, o

clima mexicanos; mas a neve e à cidade de Los Angeles. Não há a

preocupação em contextualizar rigidamente o local geográfico a partir do qual

as reflexões poéticas são tecidas.

Influenciado por versos de Velarde (como vimos, ícone da segunda

geração modernista/parnasiana/simbolista mexicana), Villarrutia apresenta-nos

poemas marcados por uma atmosfera introspectiva, que tocam ao homem

universal. Fala-nos de fé, do sagrado, da noite, mas em seus versos não

aborda “fugas”; aborda os universos possíveis e incompreensíveis do sonho e

da morte – daí seus freqüentes noturnos, que têm muito pouco de sombrios;

são devaneios conceituais intrigantes e pouco claros (nos dois sentidos

correntes desta palavra).

Interessa-se pela noção de “fronteiras”, e as dissolve: o eu e o outro, a

vida e a morte, o sonho e a realidade aparecem confusos, misturados. É a

linguagem quem, muitas vezes arbitrariamente, determina que isto é isto e

aquilo é aquilo. A arte, na poesia, tudo aparece entrameado, complexificado,

interessante, vivo. Para ele, em Nocturno eterno, vida, grito, boca, solidão, céu

e fumaça “nada son sino sombras de palabras/ que nos salen al paso de La

noche.”

Villarrutia lembra, assim, a sensibilidade confusa e incomodada de

Murilo Mendes, Álvaro de Campos e Garcia Lorca. E com eles compartilha a

função do poeta de não mais construir versos perfeitos (Conforme qual

medida?), ou símbolos intrigantes (De acordo com que parâmetro?); mas de

construir percepções de real, explorando a linguagem e os símbolos.

38

Page 39: Vanguardas literárias

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