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1 O carisma da unidade e a questão social na América Latina e Caribe Vera Araújo Ser o “continente azul” no mapa carismático da espiritualidade da unidade de Chiara significa, para os discípulos deste carisma, assumir um compromisso decisivo. Compromisso decisivo que se reveste de uma especificidade totalmente nossa, que se torna um desafio do qual não podemos fugir porque representa a nossa específica contribuição para a realização do mundo unido, através do ágape e da fraternidade. Creio que o nosso modo de “olhar” para as nossas sociedades deve se “colorir” com algumas indicações precisas que têm as suas origens no carisma, na percepção da sua plenitude e universalidade. Indicações precisas que são verdadeiros “instrumentos” teóricos e práticos para captar os desafios do nosso continente. Isso requer uma elaboração que nos convida a um trabalho constante, aprofundado, nunca concluído mas sempre aberto às novas dimensões do próprio carisma e às novidades da história. Neste momento me limito a dar poucos exemplos, considerando as obras sociais, que são obviamente uma parte, embora de grande valor, deste cenário. 1ª palavra O ágape: é o nosso horizonte e o nosso ambiente comum, permeia o nosso intelecto, o nosso

Vera araujo

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O  carisma  da  unidade  e  a  questão  social  na  América  Latina  e  Caribe  

Vera  Araújo Ser o “continente azul” no mapa carismático da espiritualidade da unidade de Chiara

significa, para os discípulos deste carisma, assumir um compromisso decisivo.

Compromisso decisivo que se reveste de uma especificidade totalmente nossa, que se torna

um desafio do qual não podemos fugir porque representa a nossa específica contribuição para

a realização do mundo unido, através do ágape e da fraternidade.

Creio que o nosso modo de “olhar” para as nossas sociedades deve se “colorir” com algumas

indicações precisas que têm as suas origens no carisma, na percepção da sua plenitude e

universalidade.

Indicações precisas que são verdadeiros “instrumentos” teóricos e práticos para captar os

desafios do nosso continente.

Isso requer uma elaboração que nos convida a um trabalho constante, aprofundado, nunca

concluído mas sempre aberto às novas dimensões do próprio carisma e às novidades da

história.

Neste momento me limito a dar poucos exemplos, considerando as obras sociais, que são

obviamente uma parte, embora de grande valor, deste cenário.

1ª palavra

O ágape: é o nosso horizonte e o nosso ambiente comum, permeia o nosso intelecto, o nosso

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coração e todas as nossas energias.

O ágape é sempre a maior novidade de todos os tempos. É a chave de retorno, o caminho, a

etapa das nossas atividades e obras sociais. É a essência do profissionalismo e da criatividade.

É tudo.

Nunca deve ser “encerrado”, “fechado”, “manipulado”. Vem de Deus, do Espírito Santo,

portanto, é sempre “criativo”, “imprevisível” como o Espírito que não se sabe de onde vem

nem para onde vai (Jo 3,8).

Isso não significa que não se possa ou não se deva organizar e também regularizar, mas

significa que o ágape torna livres, e a liberdade é o maior dom de Deus à humanidade.

Liberdade que nos torna capazes daquela reciprocidade do dom de nós mesmos para construir

a unidade. Se não existir o ágape não somos nós mesmos.

2ª palavra

Fazer-se um: é um método. É o modo e a maneira de amar nas atividades, nos

relacionamentos sociais, políticos, institucionais, nas obras. Não é apenas um método

instrumental e também comportamental. É muito mais. É um componente antropológico que

nos permite construir qualquer relacionamento visto como “transmigração” no outro, em

quem é distinto, diferente de mim.

O “fazer-se um” é decisivo nas atividades sociais porque engloba todas as “técnicas” que o

bom profissionalismo exige: espaço profundo de escuta, paciência, cancelamento de todo tipo

de julgamento, etc, que permite a possibilidade concreta de uma avaliação correta, eficaz e

respeitosa das situações. Chiara une atitude e ação na arte de amar: “…ir ao encontro do

irmão, de suas carências, assumir as necessidades e as dores dele. Então, dar de comer, de

beber, oferecer um conselho, uma ajuda, adquirem sentido”1.

3ª palavra

Fraternidade: palavra difícil, delicada, que ao longo da história e nos mais variados

contextos sociais se presta a múltiplas interpretações e conteúdos. Um texto de Chiara

esclarece a qual fraternidade nos referimos e elimina qualquer margem de equívocos:

“Ele (Jesus) revelando que Deus é Pai, e que por isso todos os homens são irmãos, introduz a

ideia da humanidade como família, a ideia da “família humana”, na qual é possível atuar a

fraternidade universal. E com isso abate os muros que separam os “iguais” dos “diferentes”,

1 C. Lubich, A arte de amar, Cidade Nova, São Paulo, 2006, p.84

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os amigos dos inimigos. E desvincula os homens de todo tipo de relacionamento injusto,

realizando assim uma autêntica revolução existencial, cultural, política”2.

Na base da questão social do nosso continente, está a desigualdade, que se manifesta nas

várias dimensões da vida: econômica, política, institucional. Todas as ações, atividades e

obras sociais não podem deixar de ter como objetivo o caminho em direção a uma maior

igualdade.

A fraternidade, de modo especial para nós da América Latina, deve ter este horizonte.

Paulo VI, em um discurso histórico proferido à ONU, em 1965, dizia aos representantes dos

povos que a igualdade se constrói e que para fazer isso é necessário a humildade. A

humildade nos ajuda a sermos irmãos.

Este me parece um desafio que a fraternidade consegue enfrentar com boas possibilidades de

êxito. A fraternidade de Jesus, vivida por Chiara, libera conteúdos de grande importância e

dinamismo, coloca em ação muitas energias adormecidas, impulsiona em direção a metas

concretas de crescimento para:

a) exigência de reciprocidade e interação

b) exigência de capacidade de dom de si e de doação concreta

c) exigência de justiça, como fundamento da participação

d) exigência de comunhão.

4ª palavra

Sofrimento e conflitos: Quem deseja enfrentar a questão social depara-se quotidianamente

com o sofrimento e os conflitos que, presentes em todas as vicissitudes humanas, estão em

vigor de modo especial no mundo dos fracos e dos oprimidos.

Também para esta particular dimensão com que se depara o operador social, o carisma da

unidade não oferece uma solução fácil ou um instrumento, mas um sentido, um significado,

uma Pessoa: Cristo abandonado na cruz. Ele nos revela plenamente o amor de Deus pela

humanidade e a chave de compreensão da falta de unidade, do conflito, do mal, do sofrimento

entre os indivíduos e na sociedade.

Chiara nos ensinou – também com a sua vida – a levar até as últimas consequências a

“leitura”, a “interpretação” e a “resolução” de todos os males do mundo, à luz do abandono de

Jesus.

2 C. Lubich, L’Europa unita per un mondo unito, in “Nuova Umanità”, XXV (2003/2) 146, p. 140.

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“Para amar bem, não se deve ver nas dificuldades e injustiças do mundo apenas males sociais

a serem remediados, mas descobrir nelas o semblante de Cristo, que não se desdenha rebaixar

perante a miséria humana”3.

O abandonado se identifica com todos os crucificados da terra. Ele pode ser reconhecido e

encontrado em todas as situações de sofrimento e de falta de sentido4.

Jesus crucificado e abandonado nos espera nos lugares onde o sofrimento das pessoas se

manifesta. Espera ser reconhecido, abraçado, amado, assumido. Neste abraço se abre um novo

espaço e todas as feridas e divisões podem ser sanadas.

Quem o ama deste modo está cultural e espiritualmente preparado para procurar e encontrar

saídas e caminhos de partilha, junto às muitas situações de desequilíbrio social.

5ª palavra

Dignidade e cidadania: No atual cenário mundial, a valorização da dignidade de cada

pessoa, grupo ou comunidade, passa necessariamente pelo estatuto da cidadania.

Cada atividade ou obra social deve mirar a edificação de cidadãos capazes de participação e,

conseguentemente, capazes de reinvindicar os próprios direitos e deveres.

O carisma da unidade indica o surgimento de uma cidadania local (nacional) e global

(universal).

Chiara nos ensina e encoraja a nos tornarmos homens-mundo, isto é, pessoas capazes de

avaliar, de sentir e trabalhar, acolhendo quem lhes passa ao lado, os desconhecidos, mas que

não são anônimos.

Por isso, cidadãos da minha cidade e da minha nação, cidadãos latino americanos, cidadãos

do mundo:

“Amar a pátria alheia como a própria” é profecia aplicada e concreta, é compreender e viver o

ágape de onde iniciamos, como amor social, categoria política capaz de transformar as

situações difíceis.

3 C. Lubich, Para uma civilização da unidade, Discurso proferido no Congresso “Uma cultura de paz para a unidade dos povos”, Castelgandolfo, (Roma) 11-12 de junho de 1988. 4 “…todo sofrimento físico, moral ou espiritual são apenas uma sombra do seu infinito sofrimento”, C.Lubich, A unidade e Jesus crucificado e abandonado, fundamento para uma espiritualdiade de comunhão, Discurso proferido ao Conselho Ecumênico de Igrejas, Genebra 28.10.2002