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83 83 83 83 83 VESTÍGIOS DE CONTESTAÇÃO EM IMAGENS GRÁFICAS DOS ANOS SETENTA ROSANE KAMINSKI Professora - Desenho Industrial - Centro Universitário Positivo / UNICENP Professora - Faculdade de Artes do Paraná / FAP [email protected]

VESTÍGIOS DE CONTESTAÇÃO EM IMAGENS GRÁFICAS DOS … · em vigor. O pedinte cego pode ser interpretado como representativo de uma parcela da população que “prefere não ver,

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PATRÍCIA HOMMERDING PEDROZO, JORGE LUIZ DA SILVEIRA FILHO E CAMILA MARSZALECK

da Vinci , Curitiba, v. 1 , n. 1, p. 43-60, 2004

EDSON PEDRO FERLIN

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VESTÍGIOS DE CONTESTAÇÃO EM IMAGENSGRÁFICAS DOS ANOS SETENTA

ROSANE KAMINSKIProfessora - Desenho Industrial - Centro Universitário Positivo / UNICENP

Professora - Faculdade de Artes do Paraná / [email protected]

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VESTÍGIOS DE CONTESTAÇÃO EM IMAGENS GRÁFICAS DOS ANOS SETENTA

RESUMO

No contexto brasileiro da década de 1970, com as medidas econômicas e políticastomadas pelo governo militar, ocorreu uma reorganização e um fortalecimento da indústriacultural nacional, gerando novas possibilidades profissionais neste setor. Desta forma, diver-sos artistas que criavam imagens para reprodução em série encontraram meios técnicos eeconômicos cada vez mais favoráveis à ampliação de suas atividades, participando ativamen-te do progresso técnico-econômico nacional e da expansão dos mercados de bens simbóli-cos e materiais. Entretanto, tais profissionais encontraram também limites à sua atuação,especialmente a censura política imposta aos meios de comunicação de massa pelo governomilitar e a ideologia do consumo, com a qual nem sempre concordavam. O presente estudoquestiona se seria possível detectar nas próprias imagens impressas durante aquele períodocontraditório alguns vestígios do dilaceramento experimentado pelos artistas gráficos queatuaram simultaneamente nos espaços ofertados pela crescente indústria cultural nacional eem outros espaços de produção de bens simbólicos de teor marginal e/ou contestatório.Para tal exercício, foram selecionados para análise alguns cartuns publicados em revistascuritibanas dos anos setenta, buscando neles elementos que possam ser consideradoscontestatórios em relação à conjuntura histórica na qual os seus autores estavam inseridosquando da produção destas imagens.

Palavras-chave: imagem gráfica; cartum; contestação; regime militar.

ABSTRACT

In the seventies, the brazilian cultural industry is reorganized and strengthened becausesome economical and politics devices of military government. That section favors the openingof new professional possibilities for the graphic artists. Like this, the artists participate activelyof the national technician-economical progress and of the symbolic and material goodsmarket’s expansion. However, the graphic artists found two limits to your performance.First, the political censorship imposed by the military government to mass media; and, second,the consumption ideology. We know that, on that moment, the graphic artists lived acontradictory professional condition, because they acted simultaneously in the spaces ofnational cultural industry and in the marginal spaces of cultural production. Presenting aselection of images which were vehicled in periodicals, from Curitiba, of the seventies, thisarticle proposes to notice in the graphic images some visual vestiges of that contradictorycondition, with prominence to the critical elements.

Key works: graphic image; cartoon; graphic art; military government.

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ROSANE KAMINSKI

Desde que os meios técnicos de reprodução em série vieram se sofisticando –sobretudo no século XX –, os espaços profissionais reservados aos produtores de imagensforam progressivamente se expandindo. Novas profissões, como a do publicitário e a dodesigner gráfico, surgiram para atender às crescentes necessidades comunicacionais implicadasna expansão do sistema capitalista. No contexto brasileiro da década de 1970, com as medi-das econômicas e políticas tomadas pelo governo militar, ocorre uma reorganização e umfortalecimento da indústria cultural nacional, sendo que novas possibilidades profissionaispassaram a existir neste setor. Desta forma, a atividade de produzir imagens encontroumeios técnicos e econômicos cada vez mais favoráveis à sua ampliação, participando ativamentedo progresso técnico-econômico nacional e da expansão dos mercados de bens simbólicos emateriais. Entretanto, tal atividade encontrou também limites à sua atuação, especialmente acensura política imposta aos meios de comunicação de massa pelo governo militar e a ideo-logia do consumo.

Os profissionais recrutados a trabalhar nos novos espaços da indústria cultural,entretanto, nem sempre concordavam com as imposições do governo que fomentava a in-dústria gráfica e publicitária, nem com a expansão desenfreada da ideologia do consumo,vivendo uma situação de dilaceramento: por um lado, cresciam os meios técnicos ao seualcance, por outro lado, estreitavam-se as possibilidades de expressão da opinião publica. Aquestão que moveu o presente estudo formulou-se em torno da curiosidade em saber seseria possível perceber nas próprias imagens impressas durante aquele período contraditórioalgumas características que permitem visualizar vestígios deste dilaceramento. Vários dosprofissionais que atuavam dentro dos espaços oferecidos pela indústria cultural obtiveramsucesso simultâneo dentro destes meios tutelados pelo governo militar e dentro de outrosespaços de produção de bens simbólicos de teor marginal e/ou contestatório, como porexemplo as produções do tipo underground e os veículos de difusão da charge política1 .

O objetivo deste texto é observar até que ponto existem vestígios desta posturacontestatória nas próprias imagens gráficas que foram veiculadas em meios de circulaçãoimpressos naquele momento histórico. Mais especificamente, em algumas imagens gráficasselecionadas de revistas curitibanas. Os autores das imagens selecionadas (Solda, Miran,Rettamozo e Padrella) apresentam uma trajetória profissional marcada por uma espécie dehibridismo, atuando entre a publicidade, a direção de arte, as artes plásticas e a ilustração,como veremos a seguir.

Naqueles primeiros anos da década de 1970, por detrás da cortina estampada domilagre econômico e das promessas de vantagens que esta trazia, existia o autoritarismo violentodo governo militar: sua face sombria, raramente comentada pelos meios de comunicação

1Segundo Fonseca, a charge é um tipo de cartum, no qual se satiriza um acontecimento, uma idéia, ou mesmo uma pessoa.Geralmente possui caráter político. FONSECA, Joaquim. Caricatura: imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios,1999, p.26.

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Figura 1. “Salão de Humor”.Curitiba Informações, ago/1972, capa.

vigiados pela censura. Em 1974, no mesmo ano em que iniciava o perío-do de distensão – para o qual o recém-assumido presidente Ernesto Geiselpropunha uma “abertura lenta, gradual e segura” à linha-dura que vinhacaracterizando o governo dos últimos cinco anos2 – na cidade paulista dePiracicaba, ocorreria o Primeiro Salão de Humor em nível nacional, do qualparticipariam alguns artistas gráficos paranaenses – entre os quais Solda –, ao lado de nomes conhecidos nacionalmente, como Ziraldo, Henfil,Millôr Fernandes, Jaguar e outros. Um grupo de jornalistas daquela cida-de havia resolvido criar o evento, acreditando no cartum como veículopoderoso de comunicação, tanto por suas características gráficas comopela sua carga sócio-política3. A charge política, que desde o tempo doImpério se difundia principalmente através da imprensa nanica4 , ganhavaagora corpo institucional.

No Salão de Humor, a linguagem do desenho assumia função deferramenta de contestação contra a violência política e as injustiças soci-ais. Além disso, esta mostra era também importante para divulgar os tra-balhos dos cartunistas, que não tinham muitas chances na grande impren-sa devido aos cuidados que os donos destes órgãos tomavam em relação

à censura, conforme depoimento, na época, do cartunista e publicitário paranaense LuísAntônio Solda, participante assíduo dos Salões de Piracicaba, e premiado em várias ediçõesdo evento5 . Solda, inclusive, já havia participado do Salão de Humor do Teatro Paiol, realizadoem Curitiba dois anos antes da primeira edição do Salão em Piracicaba, mas que não tevecontinuidade6 . O evento havia sido inclusive motivo de capa da revista Curitiba Informações,em 1972, capa esta contendo um cartum de Solda (Figura 1).

O humor lúgubre da cena – construído sobre a idéia de que o pedinte cego nãopercebe o perigo da bomba próxima a ele – pode ser associado à situação mais ampla dosbrasileiros que preferiam aceitar a imagem de paternalismo atribuída ao governo da épocapelos meios de comunicação oficiais, do que perceber o “perigo”, vivenciado tanto poraqueles que ameaçassem contradizer a ordem do sistema mantido pelos governantes, quanto

2FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2001, p.489. Segundo Diniz: “o período do ‘milagre econômico’ caracteri-zou-se por acentuado grau de repressão e intolerância políticas. A censura, a falta de liberdade, a coerção sobre as organizaçõessindicais e políticas alcançariam seus mais altos níveis. Mas a pujança econômica mascarava os rigores do autoritarismo. Os indíciosdo êxito da fórmula ordem-crescimento pareciam suficientemente fortes para afastar resistências e isolar os núcleos de desconten-tamento”. DINIZ, Eli. Empresariado, regime autoritário e modernização capitalista: 1964-85. In: D’ARAÚJO, Maria Celina e SO-ARES, Gláucio (orgs). 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 1994, p.206.3Sobre o Salão de Piracicaba, ver: HUMOR BRASILEIRO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23.08.1976; Diário do Paraná, Curitiba,25.08.1976; Jornal do Salão de Humor de Piracicaba, 1979; RETTAMOZO, Luiz Carlos. Pira, pira, Piracicaba. Correio de Notícias,23.08.1979. Ver também: RIANI, Camilo. Linguagem & cartum... tá rindo do quê? Um mergulho nos salões de humor de Piracicaba.Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2002; e FONSECA, Joaquim. Caricatura: a linguagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios,1999, p.280.4As manifestações impressas consideradas como pertencentes à imprensa nanica não existiram apenas durante a ditadura militar pós-golpe de 1964. Segundo Caparelli, a imprensa nanica ou alternativa (como este autor prefere) é um fenômeno histórico que “vive ousobrevive nos regimes fechados em que o poder estabelece um controle cerrado do sistema de comunicação. Quando se fala emcontrole da mensagem, entende-se também ação de monopólios da indústria cultural”. Esta categoria “funciona como um fogo-fátuo a iluminar zonas obscuras do autoritarismo”. Caparelli aponta o jornal gaúcho A Manhã, de 1926, como um dos mais antigosperiódicos brasileiros desta categoria. CAPARELLI, Sérgio. Imprensa alternativa. In: Comunicação de massa sem massa. São Paulo:Cortez, 1980, p.41-53.5SOLDA. Diário do Paraná. Curitiba: 25.08.1976. Luis Antonio Solda foi premiado nos Salões de Piracicaba em 1975, 1976 e 1977.Informações contidas na pasta do artista, no acervo do Museu de Arte Contemporânea de Curitiba – MAC.6IMAGUIRE JÚNIOR, Key. Cronologia preliminar da arte gráfica no Paraná. Nicolau, ano I, nº8. Curitiba, fev/1988, p.22-23.

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pelos que preferiam manter os olhos fechados à política excludente e impiedosa do regimeem vigor. O pedinte cego pode ser interpretado como representativo de uma parcela dapopulação que “prefere não ver, para não se incomodar”.

Nos Salões de Humor de Piracicaba, Solda participou compersonagens caricatos que remetem através da sátira às circunstân-cias de dilaceramento, como é o caso do carrasco (Figura 2), suge-rindo a situação dos que assumem um papel dentro das engrena-gens de um sistema do qual dependem mas com o qual nem sem-pre concordam ou nem sequer compreendem. A imagem estereo-tipada de um carrasco que esconde o rosto atrás de um capuz podeter se originado do imaginário medieval, ou das situações deinquisição, em que determinados agentes sociais eram autorizadosa exercer atos violentos (torturas e execuções) como forma de cas-tigo aos que se opunham às leis e dogmas em vigor. Nos carrascosdos cartuns de Solda criados durante os anos setenta, esta associa-ção cria, ao mesmo tempo, um afastamento histórico (são persona-gens de um passado brutal) e uma aproxima-ção com as violênciasadotadas e consentidas pelas autoridades durante o regime militar,no interior do qual existiam até mesmo órgãos especificamentecriados para manter a ordem, como os DOI-CODI7 .

O caso de Solda pode ser citado como exemplo do trânsito ambíguo que caracteri-zou a atuação de diversos profissionais que, naquele contexto contraditório trabalhavamnos espaços sustentados pela lógica mercantil da indústria cultural e, ao mesmo tempo,nos espaços reservados à contestação através da arte do desenho de humor. Atuava comoilustrador no meio publicitário curitibano dos anos setenta, na mesma época em que pu-blicava tais imagens com humor social e político em periódicos de caráter mais irreverente.Aliás, o uso do cartum nestes dois âmbitos – o da publicidade e o da expressão de opiniõespolíticas – não é novidade histórica, nem mesmo em Curitiba. De acordo com Key Imaguire,o primeiro cartum publicado em Curitiba compunha um anúncio de jornal, ainda em1886. As charges políticas mais antigas do Paraná, por sua vez, são as do primeiro períodochargista de Paranaguá, nos idos de 18698 .

Figura 2 “Carrascos”. Kamikaze do espanto.Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001.

7No Brasil dos militares funcionaram 224 locais de tortura. Especialmente após o AI-5, a fase de interrogatório equivalia muitasvezes a um seqüestro. ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares; e WEISS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposiçãode classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidadecontemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.390. Sobre os DOI-CODI, explica Fausto: “Até 1969, o Centro deInformações da Marinha (Cenimar) foi o órgão mais em evidência como responsável pela utilização da tortura. a partir daqueleano, surgiu em São Paulo a Operação Bandeirantes (Oban), vinculada ao II Exército, cujo raio de ação se concentrou no eixo SãoPaulo-Rio. A OBAN deu lugar aos DOI-CODI, siglas do Destacamento de Operações e Informações e do Centro de Operaçõesde Defesa Interna. Os DOI-CODI se estenderam a vários Estados e foram os principais centros de tortura do regime militar”.FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2001, p.481.8Em Curitiba, “a primeira ocorrência nas imediações do cartum [...] é um anúncio, com letras art decó, no jornal 19 de Dezembro,que no ano de 1886 se faz de um espetáculo do mágico Moya. Dois anos depois, já temos uma publicação de bom padrão gráfico,a Galeria Illustrada, onde na seção ‘Gaveta do Diabo’ Narciso Figueras publica histórias em quadrinhos de página inteira”.IMAGUIRE JÚNIOR, Key.Op.cit. p.22-23. Em Paranaguá, o único número da publicação O Barbeiro marcaria a primeira fasechargista, em 1869. A charge política em Curitiba teria um dos seus pontos altos com as revistas satíricas Olho da Rua e A Carga,impressas nesta cidade nos primeiros anos do século XX graças à sua “adiantada estrutura técnico-industrial” na área gráfica,segundo: CARNEIRO, Newton. As artes gráficas em Curitiba.Curitiba: Edições Paiol, 1975, p.24. Deste autor, ver também: O Paranáe a caricatura. Coleção memória cultural do Paraná, vol.1. Curitiba: MAC, 1975.

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VESTÍGIOS DE CONTESTAÇÃO EM IMAGENS GRÁFICAS DOS ANOS SETENTA

Nem sempre o cartum possui a força de crítica social atribuída à charge. Osdesenhos de humor podem apresentar temas banais, divertindo o observador pelo sim-ples fato de materializar metáforas verbais, ou de criar aberrações através de combina-ções visuais esdrúxulas, só possíveis num mundo de fantasias. Joaquim Fonseca diz quea atividade caricatural está ligada aos processos e técnicas que permitem a reproduçãoem série, sendo sua história imbricada ao desenvolvimento da própria arte da impressão.Desde as técnicas de gravura artesanal, até os meios de comunicação mais característi-cos de nossos dias, o humor tem sido um dos temas de maior atração, fascínio e popu-laridade. E “a propaganda utiliza a linguagem do humor como uma de suas fórmulasmais efetivas de motivação e persuasão”9. Por outro lado, muitas vezes o meio de expressãoé humorístico, mas o tema não é. Nos anos densos do regime militar, o cartunista seservia do riso para “mostrar uma situação que é muito séria”, conforme opinava Solda.Quem não entendesse, poderia pensar que se tratavam apenas de simples piadas. Aescolha deste meio de expressão, contudo, independente das variações temáticas eleitaspor um mesmo artista, pode também ser indicativa de certas inquietações do contextoque acabam por transparecer em seus trabalhos.

A posição imprecisa de muitos profissionais do desenho no contexto dosanos setenta, de estar inserido mas não estar completamente ajustado ao modelo polí-tico-econômico, é observável também em outros profissionais bastante evidentes nacultura publicitária dos anos setenta, e que igualmente deixaram marcas de uma“marginalidade aceitável” nas suas produções gráficas do tipo cartum, algumas delaspublicitárias, outras mais underground. De acordo com Canclini, as caricaturas, por sisó, já seriam um gênero cultural híbrido, uma vez que trazem algumas característicasdo artesanal (como o desenho à mão) e do marginal para dentro da produção industri-al e da circulação em massa10. Seus produtores, então, certamente possuem tambémalgo deste hibridismo, desta capacidade de atuar dentro do grande circuito massivo,mas de não se permitir abandonar os espaços paralelos, ribeirinhos, semi-ocultos,fervilhantes, da cultura urbana.

Além do caso de Solda, outro publicitário e artista gráfico curitibano extrema-mente conceituado em âmbito nacional e que também publicava trabalhos em órgãos decomunicação de teor mais marginal durante os anos setenta, é Miran11.

Oswaldo Miranda trabalhou como ilustrador em agências publicitárias e tam-bém como diretor de arte, sendo responsável por alguns dos anúncios mais destacadosno contexto curitibano (foi responsável pela criação de imagens e cartazes utilizados emcampanhas institucionais, como por exemplo a da Souza Cruz, realizada pela Associa-dos Propaganda em 1973. Em 1975, é citado na Gazeta do Povo como publicitário, e“considerado um dos melhores layout-men do Paraná”), mas os cartuns que produziupara O Espalhafato, por exemplo, mostram uma outra face do mesmo profissional.

O Espalhafato era uma espécie de suplemento da Revista Panorama, que apare-ceu em apenas duas edições: dezembro de 1974 e janeiro de 1975, justamente no perío-

9FONSECA, Joaquim.Op.cit., p.23 e 34.10CANCLINI, Néstor-Garcia. Culturas híbridas, poderes oblíquos. In: Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.São Paulo: Edusp, 2000, p.336.11Miran publicou cartuns em O Pasquim, Ovelha Negra, Folhetim, Raposa, entre outros periódicos. FONSECA, Joaquim. Op.cit., p.265.

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do em que o seu editor - o artista e publicitário Luiz Carlos Rettamozo12 - era Supervisorde Arte da revista em que este suplemento foi inserido. O Espalhafato era apresentado porRettamozo como “uma edição dedicada aos cartuns, grafites, papéis riscados, bilhetes emgarrafa, panfletos andergraunde, rabiscos nas paredes, vontades, notas de armazém comrecados de amor, pele de cego, chuva, ao cheiro mais forte deste país e do mundo. Só parase ter o gosto de uma comunicação maior”13. Era a “cultura marginal” conquistando umespaço significativo no sistema de produções culturais da cidade, já que a revista Panora-ma, onde foi veiculado, já possuía uma tradição de mais de vinte anos na cidade14. OEspalhafato, apesar de circular como encarte de uma revista comercial, não parecia estarvoltado à comunicação massiva e sua lógica mercantil, mas se referia a um universo mar-ginal e fervilhante da comunicação urbana, cuja existência era geralmente omitida dascomunicações e instituições oficiais. Provavelmente devido à posição de seu editor dentroda estrutura hierárquica do próprio campo publicitário que vinha se formando na cidadepor aquele tempo, bem como de grande parte dos seus colaboradores (Miran, Solda,Leminski, Gorda, Rogério dias, Padrella, eram agentes envolvidos e de certa maneiratimbrados na esfera cultural curitibana15), esta publicação marginal encontrou um espaçotemporário dentro de um órgão de comunicação já consagrado entre a elite curitibana.

A página inicial do O Espalhafato possui um aspecto artesanal, com textos escritosà mão, ilustrações a traço, e uma diagramação que o assemelha à tradição dos pasquins(pelo aspecto do cabeçalho, das letras, da manchete). Mesclando o literário, o político, oescandaloso, a descompostura, a linha dos pasquins na imprensa brasileira fala a linguagemdo dia, se faz assunto, liga-se no que é “novo” ao mesmo tempo em que carrega o gostodo popular. É o descontraído que se impõe, segundo Ricardo Ramos, principalmentecomo linguagem, com os imprevistos de sintaxe e com o alargamento do círculo de umvocabulário mais informal16 .

Na Curitiba dos anos setenta, O Espalhafato aparece como uma das publicaçõesmais ousadas, tanto no aspecto quanto nos conteúdos veiculados, entretanto, teve vidacurta. Na Panorama, saiu em apenas duas edições. O cartum que aparece estampado no seusegundo número (“Espalhafato” – Figura 3) é de Miran. Composto por linhas finas e sua-vemente angulosas, pode ser pensado como sendo um barbante fino tricotado de maneira

12RETTAMOZO, Luiz Carlos: Pintor, desenhista, gravador, cineasta, publicitário e diretor de arte. Nascido no Rio Grande doSul, por volta de 1970, tendo em torno de vinte anos de idade, chega a Curitiba para conquistar um lugar de destaque nas artesplásticas, na arte underground e no circuito publicitário da capital paranaense. ARAÚJO, Adalice. A arte-jogo de Rettamozo.Gazeta do Povo. Curitiba, 24.5.92.13Texto presente na primeira página de O ESPALHAFATO nº2. Suplemento da revista Panorama, jan/1975.14Esta revista circulava no Paraná desde junho de 1951, com tiragem inicial de 1.000 exemplares. Foi fundada em Londrina, peloprofessor Adolfo Soethe. Em 1954, a revista foi adquirida pela Impressora Paranaense e passou a ser editada em Curitiba, crescendovertiginosamente, e entrando na fase de circulação nacional. Ver: Direta Pesquisa: a propaganda no Paraná. Curitiba: Digital,ago/1974.15Miran conquistou mais de oitenta prêmios internacionais em ilustração e arte editorial. No Brasil, foram mais de trezentosprêmios. Solda conquistou diversas premiações no Salão de Humor de Piracicaba, e participou também de outros eventos artísticos.Em 1972, Solda e Rettamozo trabalharam junto com Leminski na LEMA Publicidade. Rettamozo, além das premiações com peçase cartazes publicitários (por exemplo, na Campanha da Fraternidade da CNBB Vamos Repartir o Pão, em 1974), foi premiado nosSalões Paranaenses de artes plásticas em 1975, 76 e 78, e participou da XIV Bienal Internacional de São Paulo, em 1977. Gorda(Nélida Kurtz), Padrella, e Rogério Dias também participaram de Salões Paranaenses, cada um com ao menos uma premiação.Informações retiradas dos arquivos de pesquisa do MAC e do livro: JUSTINO, Maria José. 50 anos do Salão Paranaense de Belas Artes.Curitiba: FUNPAR, 1995.16 RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação. In: Anuário Brasileiro de Propaganda. São Paulo, 1970-71, p.14. Ramos considera quea história dos pasquins brasileiros começou com A Aurora Fluminenese, de 1827, o Farol Paulistano, de 1828 e a Abelha Pernambucana, de1829. “Jornais de briga, como os nomes indicam”.

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irregular pela própria velhinha ali representada, tamanha é a harmonia entre forma e con-teúdo. A alternância entre regiões vazadas (onde as hachuras parecem costuras) e regiõesmais densas, preenchidas de negro, faz com que a quantidade de linhas não resulte cansati-va ao olhar. A insistência no uso dos ângulos, por sua vez, insinua algo de descompostura, deindisciplina, e o conjunto todo desperta uma sensação de “quebradiço”.

Ao mesmo tempo em que ossignificantes plásticos estão assim resol-vidos, a situação sugerida pelo gato quesubstitui um dos pés da cadeira deixaexplícita toda a sua vicissitude, toda afragilidade do equilíbrio existente nocontexto, pois a estabilidade do ser hu-mano depende, na ilustração, da boavontade de um animal irracional eindisciplinado. E a velha não parecenem um pouco preocupada com isso,talvez por manter uma “cumplicidade”com o animal. Tanto o gato quanto avelha parecem se “esfarelar” nos múlti-plos pontos que deixam seus contornosindecisos, o que também dá a aparên-cia de instabilidade à cena (como tam-bém, por este tempo, vinha à tona a ins-tabilidade do modelo econômico defen-dido pelo governo militar).

O tom de intimidade da cenaparece convidar o leitor a “bater umlero”, jogar conversa fora na companhiada velha pífia e marota. Afina com apretensão contida no título do periódi-co, o “espalhar fatos”, quem sabe atéos proibidos oficialmente – pois apesarda proposição de abertura do governoGeisel, a censura à imprensa permane-ceria firme ainda até o final da déca-da17. A frase contida logo abaixo do tí-tulo da publicação: só não se revoltou con-

tra o regime porque precisava emagrecer; metaforicamente apresenta o teor de contestação pre-tendido.

Outro cartum produzido por Miram para O Espalhafato é o da imagem “ratos” (Fi-gura 4). O personagem ali presente está vestido como alguém instituído de poder, e senta-senuma cadeira que lembra um trono. Suas botas e os detalhes na manga do casaco dão-lhe umar militar. Este sujeito, porém, parece não ter compostura, e tem como companheiros um

Figura 3 “Espalhafato”. O Espalhafato nº2. suplemento da revista Panorama, jan/1975.

17Ver: MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira: 1968-1978. São Paulo: Global, 1980.

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bando de ratos “escrotos” e uma canecade algo que parece cerveja. Os grafismosobtidos através da concentração de pon-tos irregulares (como aqueles que fazi-am a velha e o gato parecerem seesfarelar) são abundantes nos ratos e emalgumas outras regiões da ilustração,como fossem sujeira, germes, podridõesque se alastram. A expressão fisionômicados ratos é carregada de malícia sem es-crúpulos (características de humanidadevil representadas nos animais18), e suapresença insistente na cena, suas poses,revelam que estes bichos do lixo e dosesgotos sentem-se à vontade na compa-nhia do personagem humano, e que es-tão à espreita para tirar vantagem detudo o que puderem, pois não são nadaconfiáveis. Pode-se resumir a sensação produzida pela cena em duas palavras quase gême-as na grafia: poder, podre.

A presença de tais imagens num encarte de uma revista do porte da Panorama éindicativa da ambigüidade tanto dos espaços dos veículos comunicacionais, quanto dos agentesque são responsáveis pelas imagens e pela publicidade ali presentes. Participar do progresso eestimular o funcionamento do sistema de necessidades móveis da sociedade de consumo,não significa estar cooptado por esta visão, sendo possível, isto sim, atuar simultaneamenteem direções diversas. Os produtores de imagens, devido aos efeitos de persuasão e/ou derepugnância que estes signos exercem sobre o temperamento humano, estão munidos de“armas” capazes de favorecer ou combater determinadas visões de mundo, e os usos quefazem deste seu arsenal estão imbricados na trama extremamente movediça de poderes,hierarquias, oportunidades, que caracteriza, em âmbito mais imediato, o campo onde osdesenhistas atuam profissionalmente, mas ao mesmo tempo, em âmbito mais amplo, as rela-ções de poder entre os diversos campos sociais19 . Aos criadores de imagens existia a possibi-lidade de, algumas vezes através do cartum, mostrar certas visões dos fatos que invertiam as

4. Figura “ratos”. Miran. Cartum de O Espalhafato nº1, dez/1974.

18Um dos artifícios mais comuns do cartunista é a recorrência aos animais, desde a época de Esopo e de La Fontaine. “Para ocartunista, esses significados entendidos universalmente se fundem facilmente com outra esfera do saber convencional sobre osanimais, as feras heráldicas derivadas dos brasões de armas e dos emblemas nacionais”. Há uma combinação de metáfora econvenção. GOMBRICH, Ernst H. O arsenal do cartunista. In: Meditações sobre um cavalinho de pau. São Paulo: Edusp, 1999, p.136.19Os campos, no sentido bourdieusiano, engendram internamente seus significados e hierarquias, suas regras de consagração eexclusão, conforme suas instituições, produções, e comportamentos dos agentes, os quais possuem relativa liberdade de expres-são. Estes espaços funcionam como campos de força, onde ocorrem relações e intercâmbios constantes, de desigualdades (hádominantes e dominados), com esforços para transformar ou conservar sua estrutura. Os campos relacionam-se entre si e tam-bém com as instâncias econômica e política em diversos graus, conforme o contexto histórico. Cada campo constitui, assim, ummicrocosmo que tem leis próprias e que é definido por sua posição no mundo global e pelas atrações e repulsões que sofre porparte dos outros microcosmosVer, por exemplo, os seguintes textos: BOURDIEU, Pierre. A estrutura invisível e seus efeitos. In:Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p.55-97; Algumas propriedades do campo jornalístico. Idem, ibidem,p.104-117; O mercado de bens simbólicos. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.99-178; Campodo poder, campo intelectual e habitus de classe. Idem, ibidem, p.183-202; Algumas propriedades dos campos. In: Questões desociologia. Marco Zero, 1983; O campo intelectual: um mundo à parte. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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perspectivas oficiais. Como disse Canclini, “o humorista é o profissional da ressemantização”,é um especialista em “deslizamentos de sentidos”20, porque constrói seu humor sobredeslocamentos, o que lhe dá condições de alterar ou ampliar significados aparentementeestabelecidos.

Alguns personagens criados por estes artistas, pela sua repetição nas publicaçõeslocais, conseguem fixar-se no imaginário dos leitores como se possuíssem personalidade,

rotina cotidiana, angústias comuns. É ocaso do “Bocamaldita” (Figura 5), sujeitocriado por Rettamozo, que faz referên-cias simultâneas à vida doméstica dohomem curitibano (Boca Maldita é oapelido de um dos pontos mais conhe-cidos do centro da cidade), e aos pro-blemas enfrentados pelos brasileiros emgeral.

O texto que acompanha aimagem indica o grau de importância queos personagens (representativos das ca-madas médias curitibana e brasileira)conferem à programação televisiva quan-do, num contexto de crise econômicaonde se tomam medidas preventivas e

paliativas (racionamentos), a abundância das tele-novelas é “colocada em risco”, e isso preocupa ocasal Bocamaldita. A boca e os ouvidos sempretapados por rolhas, mostram o personagem fecha-do à comunicação e à interação pública. Ele temafinidade com um outro sujeito, criado por Solda,visível na imagem “Bocafechada” (Figura 6). Suaboca é uma fechadura, os ouvidos e a cabeça es-tão prensados, os olhos sem vivacidade: seus sen-tidos estão todos embotados, congestionados.

Também pertence ao suplemento OEspalhafato nº1 o cartum “Padrella” (Figura 7), cri-ado por Nelson Padrella21. Nesta figura, observa-sea imagem caricata de dois personagens enquadra-dos em primeiro plano, que parecem poucocooptados pela racionalidade capitalista (como dá a

entender sua postura e displicência com a apresentação pessoal). Homens de meia idade, semcamisa, gordos, sem uma aparência muito higiênica, os pêlos desgrenhados do corpo à mostra,

20CANCLINI, Néstor-Garcia. Culturas híbridas, poderes oblíquos. Op.cit., p.345.21Nascido no Rio de Janeiro, Nelson Padrella é auto-didata, bastante presente no cenário artístico paranaense dos anos setenta,atuava simultaneamente como jornalista, artista plástico e artista gráfico, além de escrever contos e roteiros de filmes. Em 1974,representou o Paraná na Bienal de Artes Plásticas de São Paulo, e em 1977 foi premiado no Salão Paranaense em Curitiba.(Informações na Pasta do Artista, arquivo do Museu de Arte Contemporânea, Curitiba).

Figura 5 “Bocamaldita”. Rettamozo. Fique doente, não ficção. Edições Diário do Paraná

Figura 6 “Bocafechada”. Solda. O Espalhafato nº2, jan/1975.

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sugerindo que sejam pessoas comuns, do povo. A tatuagem no braço de um deles faz pensarque seja um marinheiro. Estão com ares preocupados, questionando a falta de liberdade.Padrella não faz uso de palavras diretas, mas de insinuações, através dos signos visuais everbais que sugerem as constatações acima. O abrir as asas sobre nós, entendido num con-texto amplo da memória de brasilidade, é referên-cia direta à busca da liberdade, compondo inclusi-ve a letra do Hino da República Brasileira22.

Um ano depois da publicação destecartum de Padrella, o jornal alternativo Ex-16 ex-poria em sua primeira página este mesmo bradopela liberdade (Figura 8), quando da morte do jor-nalista Vladimir Herzog que trabalhava para a TVCultura de São Paulo: apresentando-se para depornum sábado, em 25 de outubro de 1975, Herzogfora torturado e morto no DOI-CODI daquelacidade. A morte deste jornalista desempenhou umpapel importante nos rumos da vida política bra-sileira. Uma semana depois do acontecido, a reali-zação de um ato ecumênico na Catedral da Sé, emSão Paulo, viria a ser o primeiro ato público deprotesto desde a instituição do AI-5, em dezem-bro de 1968.

No cartum de Padrella, artista contestador e crítico ao siste-ma, o traço duro e a quase ausência de hachuras e gradações tonais(apenas uma tênue gradação é sugerida pelo contraste entre traços gros-sos e finos) fornecem à imagem um aspecto áspero, pouco delicado.As estilizações grosseiras das bocas, narizes, orelhas, a omissão dospescoços, produzem personagens grotescos, nada sedutores. Não háidealização, há escrachamento. A deformação é utilizada para melhorfustigar, para expor publicamente o vulgar, o mundano, geralmentedeixado de lado pela publicidade oficial.

Ainda que diferente da crítica explícita expressa na chargepolítica e nas imagens gráficas publicadas em periódicos alternativos,como o Espalhafato, aquela possibilidade, típica do cartum, de mostraroutros significados às práticas corriqueiras, de inverter as perspectivasoficialmente “verdadeiras”, é visível também em alguns cartuns cria-dos para anúncios. Como na peça criada por Rettamozo para a EditoraDigital (Figura 9), ainda que o teor subversivo esteja apenas subentendido e não perverta oobjetivo central da peça, que é a publicidade da empresa23. O desenho posicionado ao centroda página mostra um personagem num suposto ambiente de trabalho, insinuado através dos

Figura 7 “Padrella”. Nelson Padrella. Desenho de humor. O Espalhafato nº1,dez/1974.

22O Hino da República, composto por Leopoldo Miguez, tem como estrofe os versos de Medeiros e Albuquerque: Liberdade!Liberdade! Abre as asas sobre nós! Das lutas na tempestade, dá que ouçamos tua voz.23Este anúncio está assinado pela agência Lema Publicidade, onde Rettamozo trabalho de 1972 a 1974. Um comentário sobreesta imagem já foi publicado pela autora em: KAMINSKI, Rosane. Entre o salão, a indústria cultural e uma estética underground.Anais do II Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba: ArtEMBAP, 2004.

Figura 8 “Ex-16”. 16/11/1975

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signos que compõe a imagem – a mesa, a caneta tinteiro, a atividade de escrever. Sua cabeça,porém, aparece deslocada da posição habitual que se espera de um trabalhador: ao invés deestar com a atenção concentrada na atividade que ele desenvolve automaticamente, volta-sea um periódico que está situado abaixo da mesa. Tal periódico trata-se do house-organ deuma empresa imaginária que representa, por extensão, qualquer uma. Este impresso teriasupostamente sido produzido pela Editora Digital. Entretanto, além do caráter informativoe publicitário deste anúncio, pode-se vislumbrar no cartum de Rettamozo uma crítica doartista ao sistema sócio-econômico em que ele mesmo estava inserido.

As características expressivas que distinguem os cartuns de Rettamozo podem serobservadas tanto no conjunto do hachurado composto de múltiplas pequenas linhas quantonas deformações propositais das figuras (ver também o cartum “Bocamaldita” da figura 4),que lhe conferem um ar de inquietação.

Há um certo parentesco entre o trabalho de Rettamozo e os cartuns de Solda e osde Miran, mas mesmo assim é possível identificar a fatura de cada um, através das minúciasnas hachuras e de pequenos detalhes recorrentes a cada artista nas estilizações realizadaspara expressar fisionomias e partes do corpo humano. Por exemplo, as pálpebras dos olhos,

o nariz, o alongamento ou encurtamento das mãos, etc. Neste cartum de Rettamozo, observa-se um exa-

gero na desproporção entre as mãos – cujos dedos são extre-mamente longos e curiosamente possuem as pontas mais gros-sas do que as juntas – e a cabeça. Esta desproporção podeser associada à condição do personagem que mais executatarefas do que pensa. Tal desenho carrega uma crítica justa-mente na maneira irônica como ele ilustra um suposto traba-lhador de escritório no Brasil dos anos setenta. Este traba-lhador corresponderia a um tecnocrata (posição sugerida pelamesa e pelos objetos estritamente funcionais organizadossobre sua superfície), de quem geralmente se esperariam qua-lidades tais como seriedade e eficiência. Isto se torna maissignificativo se interpretado à luz do contexto histórico bra-sileiro.

Naqueles primeiros anos da década de setenta, asidéias de planejamento e reformas administrativas eram pre-dominantes na política brasileira, quando da ascensão de umgrupo de tecnoburocratas ao poder governamental. Naquelaocasião, os governos estaduais só recebiam verbas federais

se estivessem inseridos num programa de ação vinculado aos programas nacionais, e o go-verno paranaense, bem como a prefeitura de Curitiba, estiveram bastante afinados com asproposições do governo federal, tendo recebido grandes incentivos financeiros para as re-formas urbanas e para a implantação da Cidade Industrial de Curitiba24. Partindo destasinformações, a observação destas características num cartum de anúncio publicado em Curitibajustamente em 1974 torna-se ainda mais expressivas. Nesta imagem, como se pode observar,

Figura 9 “Digital”. Curitiba: Revista Direta, ago/1974, p.80.

24IPARDES – Fundação Édison Vieira. O Paraná reinventado: política e governo. Curitiba: 1989. Golbery; Roberto Campos; Simonsen;e Delfim Neto compunham o grupo de tecnoburocratas que participava do governo federal durante os anos do milagre econômico(ver p.73). Sobre os governos paranaenses afinados com as idéias de planejamento e reforma, ver p.74-76.

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as características relacionadas à tecnocracia não foram elogiadas ou tratadas com seriedade,mas de certa forma combatidas através da ironia que representa a indisciplina do persona-gem em relação ao papel que dele se esperava.

A indisciplina também aparece sutilmente no desrespeito à perspectiva: enquanto aslinhas laterais inclinadas da mesa geram uma certa ilusão de profundidade, os ângulos retosda folha de papel em que o sujeito escreve desmentem esta profundidade, planificam aindamais a superfície da página. Já a cabeça do personagem sob a mesa, a expressão facial debo-chada e desligada, os cabelos desgrenhados – associados à depressão ou ao desbunde –, nãocondizem com a parte superior da imagem, ou seja, com os objetos organizados e as mãosque escrevem em linhas uniformes. Esta discrepância entre as duas partes do mesmo perso-nagem – a cabeça que supostamente “pensa” e as mãos que “fazem” – denuncia uma espé-cie de farsa social, referindo-se a atitudes disciplinadas às quais as pessoas deveriam sesubmeter quando em ambientes públicos e profissionais, preservando a aparência de ordem,e inibindo o seu caráter heterogêneo e instável, bem como a exposição pública de suasangústias e desejos. Pode-se dizer, então, que a imagem que ilustra este anúncio aponta parao desvio constante da atenção em relação a certos eixos disciplinares imposto pelo sistemasocial, já que ao invés de se concentrar no trabalho que “enobrece”, o personagem se ocultapara desfrutar de pequenos prazeres. Isto poderia ocorrer, naquele contexto em que a ima-gem foi produzida, até mesmo como forma individual de contestação, se levarmos em contaa teoria de Luciano Martinsacerca da recusa em encarar o elemento político que teria sidocaracterística de uma parcela da população jovem do Brasil dos anos setenta25.

O conjunto das imagens de Solda, de Miran, Rettamozo e Padrella aqui apresenta-das e analisadas, exemplifica como se pode realizar o exercício de buscar vestígios das carac-terísticas do contexto histórico de produção das imagens difundidas pelos meios de comuni-cação. Seja através dos recursos do cartum, seja através de outras evidências sígnicas, asimagens analisadas ou comentadas no decorrer deste texto permitiram vislumbrar algumasfacetas das contradições sócio-culturais do contexto dos anos setenta, desde alguns traçosgerais que caracterizaram uma parcela da população da época, até signos associados à vio-lência da repressão política e à censura aos órgãos de comunicação.

Conclui-se, com isso, que um olhar contextualizado sobre uma imagem gráfica –seja publicitária, seja um cartum humorístico ou uma charge política – permite entrever emsuas características temáticas e formais alguns elementos que dizem respeito à conjunturahistórica na qual o artista está inserido quando da produção destas imagens. No caso daspeças selecionadas para este estudo, elas dizem respeito inclusive à própria situação dedilaceramento vivenciada pelos artistas (seus autores) que transitavam pelos espaços profis-sionais abertos pela expansão da indústria cultural nacional, mas que, ao mesmo tempo,pretendiam expressar sua opinião crítica em relação ao próprio sistema que alimentava edependia da expansão desta indústria. Uma certa postura contestatória a tal sistema é que sebuscou averiguar nas características das imagens analisadas.

25Segundo Luciano Martins, o período entre 1969 e 1974 seria o momento em que viceja uma “cultura da depressão”, marcada porum clima de conformismo e passividade, aliada ao “culto modernoso do non-sense”, que pode ser entendido como uma recusa emse encarar o elemento político. MARTINS, Luciano, citado por ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira eindústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.156-158.

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