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Veteranos enfrentam 'ferida moral' aps guerras no Iraque e AfeganistoJULIE WATSONDA ASSOCIATED PRESSEM SAN DIEGO, ESTADOS UNIDOS

"Foi um dia como outro qualquer em Mossul", comeou a contar o soldado, com a voz trmula.O sargento Marshall Powers respirou fundo. Ele no conseguia olhar para os outros trs soldados presentes sesso de terapia em grupo.Poucas vezes antes ele tinha falado de seu segredo a histria da garotinha que foi parar em seu hospital durante a guerra no Iraque, quando ele foi enfermeiro do Exrcito. Ela tinha uma ferida grave no peito, e seus olhos castanhos lhe suplicavam por ajuda. Sempre que ele pensava nela, desde aquele dia, a frase "eu matei a menina" ecoava em sua cabea.Powell manteve os olhos fixos nas pginas que tinha escrito.Ele recordou o caos aps uma exploso de bomba naquele dia de agosto de 2007, os veculos chegando em alta velocidade com civis iraquianos ensanguentados. Por volta da meia-noite, Powell assumiu a direo da rea onde estavam os feridos com poucas chances de sobrevivncia. Foi ali que ele viu a menina, em meio a muitos corpos mutilados.Ela era muito pequena; devia ter seis anos de idade e estava deitada no cho. Seu rosto angelical o lembrou de sua sobrinha no Oklahoma, onde ele vivia.Na sala da terapia em grupo, os olhos de Powell comearam a se encher de lgrimas quando recordou a menina. "No podia deix-la ficar deitada ali, sofrendo."Um mdico encheu uma seringa de analgsicos. Powell injetou doses seguidas no soro da garotinha."Ela sorriu para mim", contou aos outros presentes, "e eu sorri de volta. Ento ela respirou pela ltima vez".Sargento enfrenta leso moral aps guerra no Iraque1de7Brennan Linsley/Associated PressAnteriorPrxima AnteriorPrximaCONSCINCIA TORTURADAAntes da guerra, Powell era algum que se concentrava em Deus, na f e em salvar vidas, no em fazer alguma coisa que pudesse pr fim a uma existncia. Quando a garotinha morreu, ele perdeu seu senso de objetivo na vida. Ento se viu em uma sala impessoal numa base naval em San Diego, tentando desesperadamente salvar sua prpria existncia, que parecia estar desabando.Naquele dia, estava cercado por outros veteranos de guerra que tinham sofrido como ele prprio sofreu: um sargento do Exrcito que entrou em choque e ficou imvel, sem conseguir ajudar um companheiro cujas pernas foram decepadas numa exploso no Afeganisto. Um fuzileiro naval cujo companheiro mais jovem levou um tiro fatal depois de o fuzileiro t-lo convencido a trocar de posto no Iraque. Um homem da Marinha que se enfureceu e espancou um cidado iraquiano.Como Powell, eles passaram anos remoendo aes que torturaram sua conscincia. "Almas angustiadas" como alguns especialistas descrevem essa leso psicolgica deixada pela guerra, algo que hoje identificado como "ferida moral".Diferentemente do transtorno do estresse ps-traumtico (TEPT), que baseado no medo e na sensao de que sua vida est ameaada, a ferida moral gera sentimentos de culpa e vergonha devido a algo que foi feito ou testemunhado e que contradiz os valores da pessoa.A ideia de que militares possam sentir remorso pelos horrores cometidos em campos de batalha no nova, mas a ferida moral vem ganhando repercusso aps as guerras no Iraque e no Afeganisto. Os profissionais de sade mental a apontam como uma das razes pelas quais alguns veteranos de guerra no melhoram com o tratamento do TEPT.TRATAMENTOAtualmente, a Marinha americana promove um dos primeiros programas de tratamento voltado a esse problema o programa que Powell encontrou.No entanto, ainda se discute se a ferida moral faz parte do TEPT ou se uma condio distinta. No h diagnstico mdico formal de ferida moral.Psiquiatras que tratam de pacientes com ferida moral acreditam que essa condio contribua para o alto ndice de suicdio entre veteranos de guerra, que correspondem a um em cada cinco suicdios nos Estados Unidos. Segundo os mdicos, perigoso ignorar o problema, j que seu tratamento distinto do tratamento do TEPT.As pessoas que sofrem de TEPT podem ser ajudadas com tratamento medicamentoso e ajuda psicolgica que as incentivem a reviver o incidente que desencadeou o estresse, para que consigam trabalhar o medo. Mas, para uma pessoa que considera que o que aconteceu foi moralmente errado, reviver o que aconteceu pode apenas reafirmar essa crena.Psiclogos esto constatando que os veteranos de guerra que so seus pacientes param de se punir quando percebem que o ato cometido no os define como pessoas. Para os especialistas, os veteranos se consolam ao conversar com outros veteranos, porque apenas quem viveu uma guerra na carne pode realmente entender a complexidade moral que enfrentada no campo de batalha."A dor aproxima as pessoas e cria um vnculo inquebrvel", disse Elvin Carey, de Murrieta, Califrnia, cujo colega fuzileiro naval morreu depois de ter trocado de posto com Carey.RECUPERAOO sargento Powell um homem amigvel que se sente em paz trabalhando na fazenda de sua famlia em Crescent, Oklahoma. Ele quis compartilhar sua histria para incentivar outras pessoas a tambm buscar ajuda.Embora ele sempre tenha se culpado pela morte da garotinha, trs especialistas em toxicologia entrevistados pela Associated Press disseram que provvel que ela tenha morrido dos ferimentos que sofreu, no dos medicamentos recebidos.Quando chegou a San Diego, em fevereiro de 2014, Powell, ento com 56 anos, j estava com o quinto terapeuta e pensava em cometer suicdio. Ele nunca tinha ouvido falar em ferida moral sabia apenas que as crenas que tinham dado forma sua vida tinham sido destrudas.Powell foi criado acreditando que Deus tem uma razo para fazer tudo. Essa foi a ideia fundamental da qual sua famlia tirava fora para enfrentar a pobreza e o racismo na zona rural de Crescent.Ele aprendeu a se reerguer, mesmo depois de grandes tombos. Quando seu irmo mais velho, Bob, morreu em acidente de carro, Powell, que estava na Fora Area na poca, comeou a usar drogas, abandonou a vida militar e acabou dormindo nas ruas de Dayton, Ohio.Ele retornou a Crescent e s missas de domingo, pedindo desculpas ao pastor por s ter centavos para contribuir para a cestinha. O reverendo lhe devolveu seus centavos e mais US$ 43 recebidos em doaes, pedindo que ele conservasse sua f. "Deus est ouvindo voc", disse o pastor.No dia seguinte, Powell entrou para o Exrcito.SONHOSApesar de j ter enfrentado essas dificuldades no passado, Powell no conseguia se recuperar da morte da garotinha. Meses aps o incidente, ele foi enviado de volta aos EUA, ao Hava. Ento a menina comeou a aparecer em seus sonhos.A morte dela o levou a questionar Deus e, sobretudo, a si mesmo. Powell comeou a beber muito e procurou ajuda para se recuperar do TEPT. Os mdicos lhe receitaram comprimidos para insnia, depresso e ansiedade. Porm, ele no conseguia vencer o problema.Depois de seis anos, um terapeuta recomendou o programa no Centro Mdico Naval de San Diego.Intitulado Osis (as iniciais em ingls de Apoio para Superar a Adversidade e a Leso de Estresse), o programa surgiu em 2010 para ajudar membros das Foras Armadas que no tinham sido ajudados pelos tratamentos do TEPT. Trs anos mais tarde, foram includas terapias para tratar da ferida moral.SESSES DE TERAPIASete outros militares faziam parte das sesses de terapia de Powell, realizadas ao longo de dez semanas. Depois da segunda semana, os veteranos de guerra tiveram de anotar por escrito os fatos que tinham provocado a ferida moral. Depois de um ms, foram divididos em dois grupos para compartilhar suas histrias.Quando Powell concluiu seu relato, os homens presentes fizeram silncio. Um deles era Carey, que, ao ouvir Powell, sentiu uma ligao com algum, pela primeira vez em anos. Tambm estava presente Steve Velez, que se lembrou de sua poca como sargento do Exrcito no Afeganisto, quando ficou traumatizado demais para ajudar seu colega. Ele se levantou e apertou a mo de Powell."Voc fez o melhor que pde", disse a Powell. "Voc no fez nada de errado."Nas semanas finais do programa, Powell e os outros homens foram orientados a escrever uma carta de pedido de desculpas ou reconciliao, como maneira de finalmente se perdoarem. Powell dirigiu sua carta aos pais da garotinha. Ele nunca conheceu os pais nem soube se haviam sobrevivido ao bombardeio, de modo que a carta no foi a lugar algum. Mas o fato de ele ter posto as palavras no papel e as lido em voz alta aos outros veteranos o ajudou.Powell escreveu: "Quero que vocs saibam que sua filha esteve no meu corao diariamente desde aquela noite".NOVA VIDAEm abril de 2014 Powell deixou o Osis munido de novas ferramentas, esperanas e amigos com os quais poderia contar.Ele foi dispensado do Exrcito com honras em agosto passado e encontrou trabalho como enfermeiro num lar de idosos em Crescent, mas percebeu que no conseguia mais fazer o trabalho que antes lhe dava prazer. Desistiu de ser enfermeiro e agora est estudando engenharia industrial.Ele passa muito tempo nas terras agrcolas que pertencem sua famlia desde que sua trisav chegou ao Oklahoma para comear uma vida nova, depois de ser libertada da escravido. s vezes ele conversa com Deus enquanto derruba o mato."Sinto paz e redeno quando converso com Deus l fora", diz Powell. "Sei que ele me perdoou."Tambm Powell finalmente se perdoou, mas sabe que ainda no est totalmente curado.Ele ainda toma remdios para ansiedade, depresso e insnia. Mais que qualquer outra coisa, porm, ele se apoia nos sete veteranos de guerra. Os telefones celulares dele viraram seu apoio constante. Ele recebe mensagens de texto dirias.Com frequncia ele, o membro mais velho do grupo, quem distribui conselhos aos outros. Ajudar aos outros o ajuda, porque o faz ver que ele ainda capaz de curar outras pessoas.A Associated Press transmitiu a Powell a opinio de especialistas mdicos de que foram provavelmente os ferimentos que provocaram a morte da garotinha. De acordo com um dos especialistas, Bruce Goldberger, professor de toxicologia na Faculdade de Medicina da Universidade da Flrida, "o que ele fez provavelmente foi aliviar a dor, como o que feito em centros de tratamento paliativo".Ouvir isso deu alvio a Powell. "Carrego esse sentimento de culpa nas costas h tantos anos", comentou.A menina ainda lhe aparece em seus sonhos. No faz muito tempo ele a viu em um sonho correndo em um pasto e gritou com ela para no sair do lugar.Mas ele consegue colocar uma distncia entre a pessoa que hoje e o que aconteceu na guerra. E, quando seu corao dispara e a ansiedade retorna, ele faz uma pausa para se lembrar que no uma m pessoa. Foi apenas aquela situao que foi m."Ela nunca vai desaparecer", comentou. "Mas hoje eu j sei lidar com ela."Traduo deCLARA ALLAIN