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REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 134-151, março/maio 1999 134 ANA LUIZA MARTINS VICENTE DE CARVALHO: POETA DO MAR E CIDADÃO DA REPÚBLICA H á poetas que são lembrados pela temática da obra, com suas biografias circunscritas a ela. Castro Alves, o poeta dos escravos, seria um exemplo. Outros, não obstante vasta e diversificada coletânea de versos, são reve- renciados apenas por um poema e através dele entronizados e perpetuados. É o que ocorre com Raimundo Correa, autor de “As Pombas”, rasgo poético que se agregou à sua produ- ção, aprisionando-o àqueles versos no imaginário popular. Em Vicente de Carvalho, poeta santista, ambas as associações – da temática e do poema – vincaram sua biografia, tornaram-se indeléveis. A simples menção de seu nome evoca, de pronto, o Poeta do Mar, epíteto cu- nhado por Euclydes da Cunha ao prefaciar-lhe a obra Poemas e Canções, em 1908. Para muitos, contudo, a referência mais forte é aquela do autor de um só poema, “O Pequenino Morto”, reiteradamente declamado ao seu tempo, figurando indefectível nas antologias poéticas de nosso cancioneiro literário. Para outros, aficionados, Vicente de Carvalho ainda é o Poeta do Amor e, por vezes, Este texto foi possível pela consulta às obras das bibliotecas de Guita e José Mindlin; Antonio Arnoni Pra- do; Heloisa Barbuy. Consigno aqui meus agradecimentos pela extre- ma gentileza.

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REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 134-151, março/maio 1999134

ANA

LUIZ

A M

ARTI

NS

VICENTE DE

CARVALHO: POETA

DO MAR E CIDADÃO

DA REPÚBLICA

Há poetas que são lembrados pela temática da obra,

com suas biografias circunscritas a ela. Castro Alves,

o poeta dos escravos, seria um exemplo. Outros, não

obstante vasta e diversificada coletânea de versos, são reve-

renciados apenas por um poema e através dele entronizados

e perpetuados. É o que ocorre com Raimundo Correa, autor

de “As Pombas”, rasgo poético que se agregou à sua produ-

ção, aprisionando-o àqueles versos no imaginário popular.

Em Vicente de Carvalho, poeta santista, ambas as

associações – da temática e do poema – vincaram sua

biografia, tornaram-se indeléveis. A simples menção de

seu nome evoca, de pronto, o Poeta do Mar, epíteto cu-

nhado por Euclydes da Cunha ao prefaciar-lhe a obra

Poemas e Canções, em 1908. Para muitos, contudo, a

referência mais forte é aquela do autor de um só poema,

“O Pequenino Morto”, reiteradamente declamado ao seu

tempo, figurando indefectível nas antologias poéticas de

nosso cancioneiro literário. Para outros, aficionados,

Vicente de Carvalho ainda é o Poeta do Amor e, por vezes,

Este texto foi possível pela consultaàs obras das bibliotecas de Guitae José Mindlin; Antonio Arnoni Pra-do; Heloisa Barbuy. Consigno aquimeus agradecimentos pela extre-ma gentileza.

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E sdoEngenhorasmos

inspirado autor de Fugindo ao Cativeiro, o consagrado

poema épico abolicionista.

Esta fulgurante aura lírica que o envolve e a persistente

associação e confinamento de seu nome a uma só temática

ou a um só poema acabaram por subtrair para as gerações

posteriores as tantas dimensões de sua atuação múltipla,

encobrindo o acadêmico militante, o jornalista, o político, o

advogado, o fazendeiro, o empresário, o chefe de família com

numerosa prole, enfim o personagem que foi poeta mas,

sobretudo, amou e atuou fecundamente na vida.

Sua filha, a historiadora Maria Conceição de Carva-

lho, guardou do pai a imagem do magistrado e o apresentou

nesta ordem: “Cultivou as leis e foi poeta” (1). Roquete

Pinto, sensível à militância de sua geração, o viu como

“[…] grande cidadão […] sempre interessado nas questões

difíceis da república, juiz de peregrinas virtudes, exemplar

representante dos melhores aspectos da sociedade que se

formou” (2). Brasílio Machado, conterrâneo santista, pre-

sidente da Academia Paulista de Letras, valeu-se da ima-

ANA LUIZA MARTINSé historiadora doCONDEPHAAT, co-autorade Arcadas. História daFaculdade de Direito doLargo de São Francisco(Alternativa) e autora deImpério do Café. A GrandeLavoura do Brasil (Atual).

1 Maria da Conceição Carvalho;Alfredo Vicente de Carvalho,Bio-Bibliografia de Vicente deCarvalho, Rio de Janeiro, Im-prensa Nacional, AcademiaBrasileira de Letras, 1943.

2 E. Roquete Pinto, “Prefácio”, inMaria da Conceição Carvalho;Alfredo Vicente de Carvalho,op. cit., p. 6.

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gem de seu cotidiano para a saudação deingresso: “Não fosseis vós um impenitentepescador de… peixes, de quando em vez, esempre um pescador de pérolas” (3). O en-genheiro Euclydes da Cunha o tinha no maisalto conceito, afirmando no prefácio de Po-emas e Canções: “[…] nobilita o nosso tem-po e a nossa terra” (4).

A despeito destes registros e do empe-nho das biografias em elencar suas tantasatividades profissionais, a consagração doPoeta do Mar veio em detrimento do agen-te social polivalente, o cidadão republica-no de seu tempo, o exemplar de homempúblico (5).

Certo que não se costumava ver poetascomo homens de negócios, traço corrente-mente eliminado de suas biografias; eramfestejados pela poesia e só existiam emfunção dela. Todavia, o bacharel Vicentede Carvalho inaugurou nova conduta dohomem de letras, prefigurando posturaincomum de literato em seu tempo,balizando a profissionalização da geraçãoparnasiana. Eram jornalistas que não se li-mitavam tão só ao cultivo das musas, páli-dos poetas de rotos andrajos. Ganhavamcom a pena e colocavam-se com ela a ser-viço do mercado. Foi assim com OlavoBilac, Bastos Tigre, Vicente de Carvalho etantos, que atuaram na grande imprensa,não obstante este último prescindir delacomo fonte de renda, dada a diversificaçãode seus negócios. E aí estaria um traço pe-culiar, só explicável, em parte, no poeta quecresceu junto ao mar, mas, sobretudo, nacidade em que o capital comercial e o mun-do dos negócios definiram seu destino.

Oportuno, pois, neste espaço, desven-dar um pouco mais de sua trajetória, comoresultado de espaço e momento históricoespecíficos, isto é, a cidade de Santos emvésperas de se transformar no maior portode café do mundo. Ali, a força do mercadoe a dinâmica da economia pulsaram maisforte, interferindo na formação e no cotidi-ano de sua população. O Poeta do Mar foitambém o cidadão do espaço urbano que seconstruía como cenário moderno da Pri-meira República, aberto ao Progresso quesua posterior filiação positivista confirmou,

mas regido pela Tradição, para a qual suasorigens atavicamente o conduziam. Homemde ação que só poderia existir fruto de umcontexto como aquele, engendrado pelacidade portuária de Santos.

Vivendo os dilemas de seu tempo e desua geração de transição, foi personagemde tempos definidos e de lutas precisas:quando estudante, a campanha abolicio-nista; recém-formado, a propaganda repu-blicana e a construção da República; naidade madura, o empenho sanitarista, a lutanacionalista, a defesa do café das perversasinjunções do mercado, a extemporânea eentão moderna defesa de nosso patrimônionatural. Acima de tudo, Vicente de Carva-lho, cidadão, converte-se em ícone da cida-de natal, a Santos que cresceu e se fez juntocom o poeta, quase como num jogo de es-pelhos, em que um reflete e explica o outro,completando-se.

SANTOS: UM ENSAIO DA

MODERNIDADE

Inicialmente, uma estatística, documen-to estranho para falar de poetas… Mas, elepróprio, até que gostava delas, conformedemonstrou em seu alentado estudo sobreo café, tendo criado, em 1892, uma Repar-tição de Estatística do Estado. Aqui, ela serefere à população de Santos, em dilatadaamostragem de seu crescimento, ilustrativada transformação vivenciada pelas balizasde seu nascimento e morte, 1866 e 1924,respectivamente.

Ano População

Fonte: IBGE

1872 9. 151

1885 15. 605

1900 50. 389

1913 88. 967

1935 142. 059

3 Vicente de Carvalho; BrasílioMachado,Uma Recepção Aca-dêmica: Discursos de Vicentede Carvalho e Brasílio Macha-do, São Paulo, Escolas Profissio-nais Salesianas, 1912, p. 72.

4 Euclydes da Cunha, “Prefácio”,in Vicente Augusto de Carva-lho, Poemas e Canções, SãoPaulo, Cardozo, 1908.

5 A biografia mais divulgada éde autoria de seus filhos: Ma-ria da Conceição Carvalho;Alfredo Vicente de Carvalho,op. cit. Ver ainda: Vicente deCarvalho, “Autobiografia”, inRevista da Academia Brasileirade Letras, São Paulo, v. XVI,ano XV, no 35, nov. 1924;Hernâni Donato,Vicente deCarvalho, São Paulo, Melhora-mentos, 1955; Hermes Vieira,Vicente de Carvalho. O Sabiáda Ilha do Sol, 1943.

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O salto brutal de crescimento da popu-lação, entre 1885 e 1913, transcorreu entreos 19 e 34 anos de idade do poeta, quando,em meio às sucessivas demolições e recons-truções do cenário urbano, o mar se cons-tituiu no refúgio inalterado, na paisagemirretocável que o confortava e alargava seushorizontes até o infinito. A recuperação dedois instantâneos de imagens da cidade,delimitadores de sua trajetória, melhor ilus-tra a grande mudança ambiental que seoperou ao seu redor: na infância, a cidadecolonial, o porto de trapiches; na mocidadee idade adulta, a cidade republicana, omoderno cais. Quanto à atmosfera dos pri-meiros anos, será mais seguro dar a palavraao poeta, que a rememorou em versos dealegria:

“Quando eu nasci, raiavaO claro mês das garças forasteiras:Abril, sorrindo em flores pelos outeiros,Nadando em luz na oscilação das ondas,Desenrolava a primavera de ouro; […]” (6).

Era 5 de abril de 1866. Vicente Augustode Carvalho nascia de tradicional famíliasantista, onde o capital social dava o tom.Pelo lado paterno predominava a linhagemmilitar, com avô capitão de milícias e paimajor – Higino José Botelho de Carvalho,dono de modesta loja de ferragens. Pelamãe, d. Augusta Carolina Bueno de Carva-lho, consta nas genealogias que descendiaem linha reta de Amador Bueno, com bisa-vô materno capitão-mor. Troncos remanes-centes da colônia, afeitos ao cotidiano doImpério e despreparados para o ingressoabrupto nas lides mercantis que a cidadedemandou. Daí sua exclusão econômica,tanto dos quadros dos barões do café comoda subseqüente burguesia cafeeira.

Mais do que recuperar a infância eco-nomicamente difícil, que obrigou a famíliaa deixar o aprazível bairro dos “QuatroCantos” (exatamente no local onde hoje estáa Bolsa do Café) para fixar-se na zona deno-minada “Quartéis” (hoje Rua Xavier daSilveira), alternando meios para o sustento,importa sublinhar o espaço geográfico e otempo histórico peculiares que presidiram

seu nascimento, infância e adolescência,conjuntura decisiva para sua formação.

A começar pelo seu nascimento emSantos, cidade de cotidiano singular noquadro da província. Fundada em 1545 porBrás Cubas, guardava forte apelo de lugaronde se estabeleceram as bases da nação, abarra por onde entrara Martim Afonso parainiciar a colonização, a terra de tradiçãolibertária dos Andradas. Antigo “porto desal”, que se transformou em “porto de açú-car”, tornou-se a partir de 1854 “porto docafé”, com quase 80% da movimentaçãoexportadora total brasileira. Marcada pelaexpressiva presença estrangeira, populaçãotípica das cidades portuárias, era a porta dechegada das mais ricas culturas, fixandouma nova mentalidade presidida pelo capi-tal comercial e pelo trabalho livre. Ali aassociação liberalismo e laicização se deude forma extremada quando, por seu porto,entrou celeremente o discurso do progres-so e da modernidade (7). Contudo, ao tem-po do nascimento do poeta, em 1866, a ci-dade ainda guardava feição colonial, amon-toado de toscas pontes e trapiches, assom-brada periodicamente pelo flagelo das epi-demias. Em 1844 registrara-se o primeirosurto de febre amarela, vinda do Rio deJaneiro, que reapareceu quatro vezes nadécada de 50, retornando subseqüentemen-te, mesmo quando a cidade já se constituíraem importante praça do café. Em 1889 foiavassaladora, com envolvimento direto deVicente de Carvalho em seu combate.

Bastante significativo, o fato de o poetater nascido junto com a inauguração da SãoPaulo Railway, a primeira estrada de ferropaulista, iniciada em 1860 e inaugurada em16 de fevereiro de 1867, a então vencer aSerra do Mar em pouco mais de quatrohoras, tornando obsoleta a antiga Estradado Vergueiro com suas tropas de muares,carroças e diligências. Com ela, Santosassenhoreou-se do mercado paulista, ultra-passando definitivamente os outros portoslitorâneos, formalizando o binômio SãoPaulo-Santos, estabelecendo uma infra-estrutura decisiva para o comércio cafeeiro(8). E mais: data de sua infância o encetarda discussão sobre a expansão urbana, ini-

6 Vicente de Carvalho, “Palavrasao Mar”, in Poemas e Can-ções, Porto, Livraria Chardron,de Lello & Irmãos Editores,1909, p. 73.

7 Wilma Therezinha Fernandesde Andrade, O Discurso do Pro-gresso: a Evolução Urbana deSantos. 1870-1930, São Pau-lo, tese de doutorado do De-partamento de História da USP,1989.

8 Idem, ibidem, pp. 97-8.

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ciada na década de 1870, suscitando todotipo de debate em torno das questões dehabitação, saneamento e um novo porto.Junto com ela adveio a força do progresso,destruidora de referências ancestrais, queali se expressou na demolição do marcofundante da povoação de Brás Cubas, oOuteiro de Santa Catarina, autorizada pelaCâmara Municipal em 1869.

Isso posto, sem se esquecer da vastapresença do mar, acentuada quando damudança para os “Quartéis” – que lhe per-mitia longas tardes de pescaria –, tem-separte significativa do quadro de sua infân-cia, cenário onde tudo se transformava emface das exigências do café. Desencadea-va-se a otimização das comunicações ge-rada pela ferrovia e a intensificação docomércio exportador, determinantes dainserção de Santos no processo de moder-nização material. Como decorrência, so-brevieram o novo cais, a construção de ar-mazéns, o proliferar de firmas comerciais– da casa comissária à casa exportadora,em geral de capital estrangeiro –, a instala-ção de bancos, a construção de abrigos paraa população imigrante e, também, a multi-plicação dos “cortiços”.

O escritor Júlio Ribeiro, que faleceu emSantos e teve em Vicente de Carvalho omelhor amigo, que o assistiu na hora damorte, legou um dos mais irrepreensíveisretratos da cidade portuária, por volta de1888, a Santos que crescera com o poeta:

“É curiosa Santos como cidade, tem corsua, inteiramente sua. […] Vista do mar,do estuário, a cidade é negra:black townlhe chamam os ingleses. Os enormes vapo-res transatlânticos alemães, os esquisitos ebojudos carregadores austríacos, as feiasbarcas inglesas e americanas de costadobranco, os mil transportes de todas as na-ções, entram pela ria, encostam-se à praia,varam quase em terra, afundam as quilhasno lodo negro […].Pelas ruas vai e vem, encontra-se, esbarra-se um enxame de gente de todas as classese de todas as cores, conduzindo notas deconsignação, contas comerciais, chequesbancários, maços de cédulas do tesouro,

latinhas chatas com amostras de mercado-rias. Enormes carroções articulados, dequatro rodas, tirados por muares possan-tes, transportam da estação do caminho deferro para os armazéns, e deles para aspontes, para o embarcadouro, os sacos deloura aniagem, empanturrados, regurgi-tando de café. […]Às três horas começa a cessar o movimen-to: a população imigra para São Vicente epara a Barra. À tarde a cidade está silenci-osa, deserta e morta. Há todos os dias umatransição crua, brusca, da agitação para omarasmo, que dá tristeza” (9).

Nesse contexto, de predomínio do capi-tal comercial, povos de todo o mundo eensaio de uma mentalidade cosmopolita –e só nesse contexto –, era possível ao me-nino de onze anos, de respeitável famílialocal, abandonar os estudos com primárioconcluído e trabalhar no consulado alemão.A experiência era precoce e inusitada paraum jovem daquela faixa etária e de sua clas-se social.

TEMPO DE ESTUDANTE:

“UM BANDO DE IDÉIAS NOVAS”

Todavia, não só as transformações ma-teriais presidiram o tempo de sua infânciae adolescência. Em 1868, “um bando deidéias novas esvoaçavam sobre nós de to-dos os pontos do horizonte” (10), no regis-tro de Sílvio Romero, marcando o tempomental do adolescente, quando se acirramo avanço do liberalismo e a vogaanticlerical. A queda do ministério Zacariasde Góes e Vasconcelos, em 1868, definiráa radicalização liberal no país e na sua es-teira, em 1870, o lançamento do ManifestoRepublicano, que daria origem à ostensivacampanha republicana, sacudindo o nossoquadro mental.

Esse confronto, o jovem Vicente deCarvalho viverá em São Paulo, quando, va-lendo-se da ferrovia, subiu a serra paraestudar na capital. Novamente se depara

9 Júlio Ribeiro, A Carne, Rio deJaneiro, Livraria Francisco Alves,1917, pp. 135-6.

10 Sílvio Romero, “Explicações In-dispensáveis”, prefácio aosVários Escritos de Tobias Barretode Menezes, in Obras Com-pletas, Sergipe, 1926, t. X, p.XXVI.

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com o ambiente convulsionado em nomedo progresso, quando a cidade desmontavaseu cenário colonial e se transformava emcanteiro de obras, reedificando-se sob ocrivo do figurino francês. Já o circuito es-colar revelou os questionamentos de suageração, dividida entre a tutela da Igreja ea busca da laicização. A passagem pelo in-ternato do Seminário Episcopal, tradicio-nal reduto ultramontano das famílias deelite, foi rápida, optando pelos ColégiosNorton e Mamede, onde concluiu os prepa-ratórios com apenas dezesseis anos. Passoseguinte, a entrada na Faculdade de Direi-to, para o que solicitou licença de idadelegal, concedida pela Assembléia Geral doImpério, a 17 de julho de 1882, pelo decre-to no 3. 075.

De 1882 a 1886, Vicente de Carvalhoseria o estudante de Direito do Largo deSão Francisco, caminho natural trilhadopelos jovens de sua classe, com todas asimplicações que este título trazia: boêmio,abolicionista, republicano, versejador.Contudo, também nesse espaço ocorriatransformação de monta, com a recém-implantada Reforma de Ensino, de Leôn-cio de Carvalho, que entre outras provi-dências admitia a freqüência livre dos alu-nos ao curso. O vetusto casarão franciscanoesvazia-se de estudantes e até mesmo dosprincipais lentes. Aqueles voltam-se para ojornalismo, para as caçadas, as viagens, astemporadas do Lírico; os lentes, requisita-dos para altos cargos do Império. E mais.As dependências físicas da Escola estão em

Vicente de

Carvalho e

família na

Bélgica.

In Octavio

d'Azevedo,

Vicente de

Carvalho e os

Poemas e

Canções, Rio

de Janeiro, José

Olympio, 1970

Bibl

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estado deplorável, conseqüência do incên-dio que a comprometera em 1880. A Me-mória Histórica do prof. Vicente Mamede,de 1882, fixa o seu aspecto exatamente noano de ingresso de Vicente de Carvalho:“[…] Acha-se no seu exterior em estadomedonho, pelos estragos e sujeira, que os-tenta, e, no seu interior, não reúne as aco-modações, indispensáveis e conveniênciaà seriedade e regularidade do ensino” (11).

Não obstante, a “mística das Arcadas”,a aura do espírito liberal, o ardor das cam-panhas sociais em curso estavam mais pre-sentes do que nunca para aquela geração de80, na esteira da atuação pregressa de Ál-vares de Azevedo, Castro Alves, FagundesVarela, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco etantos… (12). A seu tempo, a despeito deturmas separadas, seria contemporâneo deRaul Pompéia, Estevão de Almeida, JoséManoel de Azevedo Marques, JuvenalMalheiros, Primitivo Sete, Borges deMedeiros, Cincinato Braga, momento emque a campanha abolicionista deslanchou,arrebatando todo o país. Vicente de Carva-lho coloca-se no jornalismo, escreve nosperiódicos e granjeia fama de literato.Spencer Vampré, ao referir-se à sua turmaacadêmica, aquela que ingressara em 1882,dá-lhe destaque. Relaciona “Pedro AugustoGomes Cardim, Wenceslau José de Olivei-ra Queiróz e Vicente de Carvalho, três po-etas, dos maiores da Academia” (13).

A despeito do envolvimento com asletras, Vicente de Carvalho é um jovempragmático e de posses modestas. Ressen-te-se do marasmo da Academia naquelemomento, seja pela ausência dos alunos,pelo desfalque do corpo docente e peladecadência física do próprio edifício (14).No terceiro ano solicita permissão para fazero curso livre e retorna a Santos, não exata-mente para pescar e caçar, mas para orga-nizar um negócio em sociedade com oamigo e padrinho de casamento LuisSuplicy – uma sacaria de aniagem – de du-ração efêmera, empregando-se em seguidanuma firma comercial no efervescentecotidiano santista.

É nessa ponte, entre Santos e São Paulo,que exercita a militância abolicionista, tor-

nando-se o elo entre a cidade de tradiçãolibertária, que abrigava os maiores quilom-bos, e a ação abolicionista vivenciada nasArcadas. Privando com o grupo doscaifases, de Antonio Bento, junto de seusamigos Guilherme e Pedro de Melo, ArthurAndrade, Rubim César e Alberto de Sousa,encaminha os negros fugidos para o Jaba-quara, o quilombo que mais tarde cantariano épico Fugindo ao Cativeiro. Sobrevi-nha uma primeira vitória: na cidade abertaà liberdade, tinha o poeta vinte anos quan-do a 14 de março de 1886, em sessão soleneno Teatro Guarani, reunidas mais de duasmil pessoas, foram alforriados todos osescravos de Santos.

A camaradagem com militantes de cau-sas afins foi traço recorrente de sua atua-ção. É essa solidariedade de princípios queo ligará ao polêmico escritor Júlio Ribeiro,então morando em Santos, a quem vai as-sistir até à morte, defendendo seu ateísmo;assim como, em 1895, protege e escondede perseguição descabida o já envelhecidogeneral Couto de Magalhães, a quem seligava por admiração intelectual.

Às vésperas da Proclamação da Repú-blica estava formado o agente social dageração que pensou o Brasil, aberto à suaconstrução. Está no entrelaçamento dastemáticas que presidiram aquela transição,pontuada pela discussão ideológica entreprogressistas e conservadores, divididosentre o ingresso na modernidade e a guardada tradição.

O HOMEM PÚBLICO

Os passos iniciais da carreira do bacha-rel foram cumpridos à risca: o envolvimentocom a política, a banca de advogado con-ceituada, a ligação por casamento com fa-mília de prestígio da elite paulistana, pro-prietária do jornal A Província de S. Paulo,futuro O Estado de S. Paulo. Em outraspalavras: membro do Diretório Republica-no de Santos, antes mesmo de formar-se,em 1885, com dezenove anos; no ano se-guinte, recém-formado, trabalha no escri-

11 Vicente Mamede, Memória His-tórica para o Ano de 1882,São Paulo, s/e, 1883, p. 14.

12 Ana Luiza Martins; HeloisaBarbuy, Arcadas. História daFaculdade de Direito do Largode São Francisco, São Paulo,Alternativa, 1998.

13 Cf. Spencer Vampré, Memóriaspara a História da Academiade São Paulo, São Paulo, Livra-ria Acadêmica, Saraiva Edito-res, 1924, v. II, pp. 441-2.

14 Foram seus colegas de turma:Luis B. Gama Cerqueira,Ernesto Moura, ManoelPacheco Prates, que se torna-ram lentes da Faculdade;Augusto Meirelles Reis, FirminoAntonio da S. Whitacker Filho,Eliseu Guilherme Cristiano, maistarde ministros do Tribunal deJustiça de São Paulo; PedroAffonso Mibielli, ministro doSupremo Tribunal Federal;Alberto de Seixas Martins Tor-res, filósofo e sociólogo; Cus-tódio J. Coelho de Almeida,conceituado financista; AlvaroAugusto da Costa Carvalho,parlamentar e político paulista;Antonio Victor de Macedo, ta-lento literário precocementefalecido. Cf. Spencer Vampré,op. cit.

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tório de Martin Francisco e Silva Jardim;em 1886, com vinte e dois anos, casa-secom d. Maria da Conceição Ferreira de Mes-quita, irmã do jornalista Júlio de Mesquita.

Entre os amigos, a brilhante plêiade desua geração: Joaquim Dias da Rocha Jr.,José Francisco de Paula Novais, RodrigoOctávio de Langaard Menezes, AlfredoOlímpio de Oliveira Duarte, João Marcon-des dos Santos, João Ribeiro de Oliveira eSouza. Em Santos, sua roda é aquela deInglês de Souza, Assis Pacheco Neto, CarlosAfonseca, Eduardo Salamonde, João Pe-reira J. de Menezes, Gastão Bousquet eAdolfo Assis. Estava alicerçada a carreirado homem público, pois o literato já secolocara com duas publicações, muito bemrecebidas pela crítica: Ardentias e Relicá-rio, em 1885 e 1888, respectivamente.

Mais tarde, o também bacharel peloLargo, Valdomiro Silveira, advogado emSantos, seria o interlocutor constante, afi-nado com a temática nacionalista, que fezde ambos autores inaugurais. Valdomirolançava o conto caipira regional; Vicentede Carvalho elegia o “seu mar”, para cantara paisagem nacional. Privaria ainda comMartins Fontes, igualmente santista, egres-so das Arcadas e poeta.

O figurino do bacharel fin-de-siécle,republicano de primeira hora, assentou-lhecom perfeição, ao cumprir as clássicas eta-pas daquele percurso: participação no Con-gresso Republicano de São Paulo em 1887,chefia da imprensa republicana local, de-putado ao Congresso Constituinte do Esta-do, membro da Comissão de Redação daConstituição Paulista, secretário do Interi-or do primeiro Governo Constitucional doEstado, na administração de CerqueiraCésar, nomeado em 26 de fevereiro de 1892.Percorreu o roteiro de sua utopia até atingiro clássico desfecho da desilusão, comum aseus pares de militância, confirmando queaquela também não era a República de seussonhos e concluindo: “O país aderiu, não àRepública, mas ao Governo”. Em 30 de se-tembro de 1892 afastava-se definitivamenteda política, para nunca mais voltar, nemmesmo como eleitor. Tinha Vicente de Car-valho vinte e seis anos e cinco meses de idade.

À saída, um gesto surpreendente vindode um poeta, mas previsível pelo rígidotemperamento: uma bofetada em públicoem seu desafeto imediato, o secretário daAgricultura, dr. Alfredo Maia, que insinu-ara falta de lisura nas transações de suapasta. O local? Durante a solenidade deposse da Câmara Municipal, repleta defraques e cartolas. “O Sr. insultou-me emofício: eis a resposta!”, a que se ouviu oestalo da bofetada (15).

Não obstante tão fugaz passagem pelavida pública, deixou a marca de adminis-trador de largas vistas, premido pela solu-ção dos problemas candentes de seu tem-po. Uma vez no poder, procurou avidamentecumprir seu papel naquela geração, ansio-sa por construir o país moderno, de elevaro Brasil “ao nível dos países cultos”, con-forme jargão reverberativo entre seus pa-res. Investiu na reforma da instrução públi-ca do Estado, através da lei no 88, de 8 desetembro de 1892, com vistas à ampla dis-

15 O episódio foi transcrito porHermes Vieira, a partir das edi-ções de O Estado de S. Paulo,de 1 e 2/10/1892. HermesVieira, op. cit., pp. 131-2.

Vicente de

Carvalho

declamando

para Judith

Fomm Mangin

da Cunha, no

Horto

Botânico, em

1916

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seminação da alfabetização; criou a Seçãodas Caixas Escolares, embrião das CaixasEconômicas, sancionadas pela lei no 117,de 1o de outubro de 1892; autorizou a fun-dação de uma Escola Superior de Agricul-tura e outra de Engenharia, em São Paulo,pela lei no 26, de 11 de maio de 1892, ambaspensadas em caráter técnico-profissio-nalizante; determinou a instalação de dezestações agronômicas em lugares apropria-dos, voltadas para alunos pobres; cuidouainda de organizar a Repartição da Estatís-tica e do Arquivo do Estado, imperativopara a boa organização do serviço público.

Todavia, foi no âmbito da modernapolítica urbana que se empenhou e obteveresultados imediatos. Vivenciara os flagelosda febre amarela e da varíola; assistira àdemolição agressiva do cenário de sua in-

fância, quando se eliminaram gradati-vamente os marcos históricos da cidade co-lonial para rasgar novas avenidas, con-temporâneas de sua mocidade. Tinha vintee um anos em 1887 quando se iniciou a aber-tura das avenidas Ana Costa e ConselheiroNébias. Com vinte e três anos assistiu àdemolição da ponte do trapiche “Brazil”, nacurva do Paquetá, em fevereiro de 1889, fatoconsiderado tão importante que um fotógra-fo foi chamado para documentá-lo (16).

Em face dos problemas candentes dosaneamento e higiene urbanos, estudou amatéria e lançou as bases do Hospital deIsolamento do Instituto Bacteriológico e doInstituto Vacinogênico, enquanto monta-va os quadros de cientistas estrangeiros,responsáveis pelo programa sanitário en-tão implantado. Em carta de próprio punhose dirigiu a Pasteur, solicitando-lhe que“desse ao Brasil a glória de sua visita, ahonra máxima de sua presença, e viesse,entre nós, como hóspede, como salvador,médico de todos os doentes do planeta, detudo quanto vive e sofre, criar o nosso ser-viço sanitário, estudar a febre amarela, erigiro Instituto bacteriológico” (17). Não con-seguiu a vinda do mestre, até pela sua idadeavançada, mas obteve indicação do discí-pulo Felix Le Dantec, biólogo renomadoque, junto com o prof. Lachaud, respondeupelo Laboratório de Análise e de Broma-tologia do Estado de São Paulo.

Apontado como precursor da obra deCesário Motta, na Higiene, organizou oServiço Sanitário do Estado, através da leino 43, sancionada a 18 de julho de 1892.Determinou a inspeção sanitária de esco-las, fábricas, oficinas, hospitais, quartéis,prisões, asilos e a fiscalização da alimenta-ção pública, do fabrico de bebidas nacio-nais e estrangeiras, naturais e artificiais, docomércio e exploração de águas minerais.Prescreveu a realização anual de Congres-sos de Higiene e dividiu o Estado em quatroseções distintas para a execução do serviçosanitário: Capital; Santos e Campinas; de-mais cidades; vilas. Formulou, sem obterseu cumprimento, a lei que previa a constru-ção de fornos crematórios nas cidades deSão Paulo, Santos e Campinas, exatamente

16 Hermes Vieira, op. cit., p. 108.

17 Martins Fontes, “Santos, supre-ma glória da Pátria!”, conferên-cia real izada no ColiseuSantista, em 13 de maio de1925. Apud Hermes Vieira, op.cit., p. 118.

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aquelas mais atingidas pelas epidemias.Inferindo de forma arguta os problemas

de Santos, a sua cidade, dispensou-lhe totaldesvelo, empenhando-se na vinda do enge-nheiro sanitário dr. A. Fuertes, responsávelpelo bem-sucedido saneamento da cidadede Nova Orleans, nos EUA. Em meio à re-novação urbana, já encetada na décadaanterior, forças antagônicas se digladiavam,divididas entre sua demolição e/ou preser-vação, vale dizer, entre o que se considera-va, na época, Progresso e/ou Tradição. Osecretário do Interior e santista Vicente deCarvalho ponderava:

“Com relação a essa cidade, a situação éextrema e só dois alvitres extremos se nosoferecem à escolha: ou o Estado cria outroporto que lhe permita dispensar para as suasrelações comerciais com o exterior o deSantos e abandona, no interesse da sua pró-pria segurança aquele foco de infeção; ouenfrenta energicamente com saneamentodefinitivo da nossa principal cidade marí-tima. Entre as duas soluções, não parecesusceptível de dúvidas a preferência. Oabandono do porto de Santos seria um de-sastre sob todos os pontos de vista…” (18).

Seu alvitre foi levado avante. A acele-rada reforma do porto de Santos transfor-mou o palco de sua infância em cenário damodernidade.

FAZENDEIRO DE CAFÉ

A desilusão com a política o impeliupara novo campo, diretamente ligado àslides da cidade na qual se formou: fazen-deiro de café. Como morador de Santos,conhecia uma ponta do processo, a final,aquela da comercialização e despacho doproduto para o mundo. Naquela altura, tudoindicava que lá nas origens os lucros brota-vam facilmente da terra. O “enriquecerafazendando-se” era um norte para aquelageração, pois a propriedade de terras seconstituía em bem, não só pecuniário massocialmente qualificador. Foi experimen-

tar. Valendo-se da fantástica subida de pre-ços do café, em ascensão desde 1886, re-presentando 3/5 das fontes de divisas daeconomia brasileira, adquiriu terras emFranca – a fazenda Frutal – lá na bandanoroeste do estado. O momento, contudo,não foi propício. À euforia dos preços, so-breveio uma crise no setor, com a baixacotação do produto, a partir de 1896. Foiuma catástrofe.

O desfecho não o abate. Antes, o mobi-liza para a luta. Retorna a Santos em 1901,para a advocacia, enquanto deflagra viaimprensa – vale dizer, pelo jornal O Estadode S. Paulo, do cunhado Júlio Mesquita –uma série de artigos em que propõe solu-ções ousadas e polêmicas. Entre elas, a quei-ma do café excedente, estoque que no seuentender era responsável pelo desequilíbrioentre a oferta e a procura do mercado mun-dial. É o economista de plantão que está nocentro do problema, que fala como lavra-dor, como porta-voz dos interesses do jor-nal O Estado de S. Paulo e também comosantista, que desde cedo vivenciara a cida-de e o porto do café.

A série de artigos que publica vai de-sencadear reações diversas, com umaavalanche de contestações, o que prova queo jornalista Vicente de Carvalho era muitolido. A maioria provinha de leitoresdesinformados da matéria, que até confes-savam não entender do assunto. Houve porbem fundamentar suas afirmações e estu-dou exaustivamente a crise para ajuizar comisenção, publicando em 1901 a Soluçãopara a Crise do Café, alentado trabalho de154 páginas, hoje, raridade bibliográfica.

Mais do que revelar outra inusitada di-mensão da vida do poeta – homem de negó-cios e arguto analista econômico –, o estu-do do tema resultou em substanciosa publi-cação, repertório de alto valor para a histó-ria econômica do país e, sobretudo, para oentendimento da política do café. Admitin-do que só o livro permitiria leitura reflexi-va, desapaixonada e passível de melhorcompreensão de seus pontos de vista, reu-niu os artigos vindos a lume na imprensadiária, republicados com o “o sincero dese-jo de ser útil” e “inspirado no legítimo in-

18 Cf. Relatório do Secretário dosNegócios do Interior, Vicentede Carvalho, 7 de abril de1892, in Wilson R. Gambeta,“Desacumular a Pobreza. San-tos, Limiar do Século”, p. 4.Apud Wilma Theresinha F. deAndrade, op. cit., p. 121.

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teresse que tenho no assunto como brasi-leiro, como paulista, como lavrador” (19).Procurava não se deter em “tiroteios parci-ais” e responder às interpelações, “protegi-do pela sombra de uma boa árvore”, alu-dindo à competente bibliografia interna-cional anexa.

Em apêndice, apresentava tabelas, es-tatísticas, quadros, documentos sobre ospreços do café em Santos e cotações mun-diais, sua produção internacional, incorpo-rando análises de países de produção ex-pressiva do produto, resultando em beloestudo comparativo. Sem meias palavras,partia do princípio de que a desvalorizaçãodo produto se devia exclusivamente à su-perprodução brasileira. Vejamos a prosado poeta neste terreno:

“Em números redondos, para quatorze emeio milhões de sacas que o mundo conso-me anualmente, há dezesseis e meio milhõesde sacas que entram nos mercados. Deve-setal excesso exclusivamente à produção bra-sileira. Nos vinte e seis anos últimos a pro-dução do resto do mundo manteve-se esta-cionária. […] O grande fator da baixa somossó nós, que fazemos o excesso da produçãosobre o consumo. E, fato digno de toda aatenção, esse excesso não consiste propria-mente em café, mas nas impurezas com queexportamos os nossos cafés, e que ‘comocafé são torradas e oferecidas ao consumodo mundo’. Isso, que em linguagem comer-cial se chama ‘cafés baixos’, é o que faz, porsi só, a superprodução” (20).

Como testemunha do processo, infere eelenca as causas do crescimento excessivoda produção, entre 1888 e 1895: a baixa docâmbio, responsável pelas proposições ar-tificialmente colossais aos preços naqueleperíodo; o incremento excepcional da fer-rovia nas zonas cafeeiras; a extraordináriacorrente de imigração, então em refluxo; amudança da força de trabalho, de escravapara livre, “geralmente de europeus, e muitomais inteligente e esforçado”, num rasgo deapreciação sutilmente racista, bem ao saborda época, muito embora o poeta se colocas-se contra a corrente eugenista em voga.

A busca de solução suscita polêmica, aopropor a destruição de 20% da produção:

“Deliberação corajosa de destruir 20% danossa safra próxima, e a resolução solenede destruir das duas que se lhe seguirem aporcentagem que representar excesso daprodução sobre o consumo. Mudaremos,com isso, a situação do café no mundo.Dispomos de força para isso, porque pro-duzimos 75% do café fornecido ao mundo.Poremos assim de nosso lado a especula-ção, que aproveitará o elemento natural daalta, fornecido por nós. […] Mesmo que aeliminação, durante dois ou três anos, de20% das nossas safras, isto é, a superprodu-ção anual de dois ou dois e meio milhões desacas de cafés baixos, só tivesse como resul-tado uma alta de 20% nos preços, essa elimi-nação seria, ainda assim, de extrema conve-niência. Compensada a quantidadesacrificada pela melhora correspondente dopreço, nenhum prejuízo sofreria o produtor;e conseguiríamos, assim, sem sacrifício, areabilitação do café brasileiro, pela exporta-ção unicamente de café depurado e superi-or. Habituaríamos assim os consumidores abeber realmente café. Não se pode imaginarmais eficaz elemento de propaganda” (21).

Não cabe nestes limites ajuizar da perti-nência da sugestão. Contudo, importa reterque seus alertas com relação à necessidadede otimizar o produto foram proféticos, la-mentavelmente pouco ouvidos, concorren-do ainda hoje para uma imagem desfavorá-vel da qualidade do café brasileiro. Na oca-sião, ponderava sobre a importância de re-duzir os lucros em favor de sua qualificação.

“A influência nefasta dos cafés baixos nãose faz apenas sentir na superprodução.Chamamos toda a atenção para este ponto.Esses tipos impuros, verdadeira falsifica-ção do café, são um formidável concorren-te do verdadeiro café. A observação dosmercados nos últimos anos mostra que elestendem a nivelar-se com as qualidades su-periores, não subindo até estas, mas des-moralizando-as. De ano para ano as dife-renças entre os cafés superiores e os tipos

19 Vicente de Carvalho, Soluçãopara a Crise do Café, SãoPaulo, Livraria Civilização,1901.

20Idem, ibidem, p. 17

21Idem, ibidem.

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ínfimos se tornam menores. A baixa atacade preferência, com maior intensidade, osbelos tipos de ‘mokas’ e ‘finos’. Esse ca-minho leva-nos ao desastre de piorar cadavez mais o nosso produto, pela falta de in-centivo que obrigue o produtor a melhorara produção. A pequena preferência de pre-ços obtida atualmente pelos cafés sem de-feito já compensa mal o esforço que o la-vrador emprega para conseguir esses ca-fés, e o que ele perde em quantidade e peso.Essa preferência tende a diminuir cada vezmais. Caminhamos assim para este desas-tre: ser de bom conselho não empregar tra-balho e despesas para obter café sem defei-to; mas, pelo contrário, poupar o esforço eaproveitar os defeitos, que fazem avultar aquantidade. Nesse declive em que vamos,a lavoura brasileira se lançará, descuidada-mente no que se pode chamar uma verda-deira falsificação do produto” (22).

Apaixonado pela causa e secundado pelagrande maioria do comércio comissário deSantos, de vários núcleos da lavoura e dealgumas câmaras municipais, lidera a fac-ção mais poderosa de cafeicultores e co-merciantes. Solicita ao Congresso do Esta-do a iniciativa de um convênio entre todosos estados brasileiros produtores de café ea eliminação, durante algum tempo, de umaporcentagem de nossa safra. Na ocasião,agradece o apoio de Antonio Prado,Rodrigues Alves, Luís Pereira Barreto (23).

A despeito do respaldo e da competenteargumentação, não logrou a implantaçãodo projeto. Onze anos depois, passada acrise pela “solução natural”, demonstraria,por outro texto, a pertinência de sua pro-posta, lamentando o quanto a lavourapaulista pusera fora desde 1901:

“Que imensa fortuna a lavoura paulista pôsfora desde 1901! Parece-me que lhe devedoer a ela, mais do que o remorso, a certezade que não quis sacrificar um total de 60.000contos para conseguir a eliminação de7.609.000 sacas de café ordinário em 1901-1903 – e tem agora de pagar, como estápagando e pagará durante prazo desconhe-cido, 30 mil contos por ano… Para quê? Na

hipótese mais favorável, favorável até aoabsurdo, para obter, depois de tantos anosperdidos, um resultado igual ao que teriaobtido desde 1901…” (24).

Oportuno lembrar que, posteriormente,na década de 1930, a proposta pioneira deVicente de Carvalho seria adotada pelo go-verno quando, em face da superprodução,se decidiu pela queima de parte do produto.Com uma diferença: a orientação do fazen-deiro Vicente de Carvalho incidia sobre adestruição do excedente, relativo aos “cafésbaixos”, desqualificadores da produção bra-sileira; em 1930, esta seleção não ocorreu.

EMPRESÁRIO DE SUCESSO

O tino comercial, surpreendente numbacharel e poeta, mas previsível no santistaque muito cedo se envolvera com as lidesmercantis, explica o cuidado em diversifi-car seus negócios. Quando fazendeiro emFranca, associou-se ao amigo João da Sil-va Martins na fundação de uma firma vol-tada para a exploração da navegação fluvi-al no Vale do Ribeira. Nascia, em 1902, aSilva Martins & Cia., que ganhou a concor-rência do Governo do Estado para a nave-gação no Ribeira de Iguape e seus afluen-tes. Adquirira dois vapores que se encon-travam no Rio Mogi, propriedade da Com-panhia Paulista de Estradas de Ferro e onegócio foi tomando vulto. Sob o título deEmpresa de Navegação Fluvial Sul Paulistapassou a servir a região, acrescida de novomaterial flutuante, chegando a contar em1917 com uma frota de oito vapores e vá-rias embarcações menores. Transformou-se em sociedade anônima, empresa sólidae altamente lucrativa.

Os cargos que assumiu posteriormentena magistratura – juiz de direito, em 1908,e ministro do Tribunal de Justiça do Estadode São Paulo, em 1914 – obrigaram-no amanter-se à margem dos quadros da firma.Não obstante, detinha o maior número dequotas do capital, e era o principal mentorde sua administração.

22 Idem, ibidem, pp. 3, 4

23 Idem, ibidem, p. 72.

24Hermes Vieira, op. cit., pp.155-6.

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Dotado, enfim, de folga econômica,passou a desfrutar com a família de viagenspara a Europa em 1905, 1909 e 1913, algu-mas delas em busca de tratamento da saúdejá abalada. Na última, com a mulher e ostreze filhos, tendo o caçula apenas um anode idade, estabeleceu-se em Bruxelas, fi-xando depois residência em Genebra porsete meses.

A LUTA PELA ACADEMIA

A personalidade múltipla o conduziu apaixões várias. Surpreendentes, sempre.Com o mesmo afinco que se colocaria comofazendeiro e empresário, obstinou-se damesma maneira por aquilo que considera-va um direito seu: a vaga na Academia.Primeiro, na Academia Brasileira de Le-tras, sob a presidência de Machado de As-sis, quando contou com o apadrinhamentode Euclydes da Cunha. Em carta deste aVicente de Carvalho, de 9 de setembro de1904, infere-se parte dos bastidores e asestratégias para o cobiçado ingresso. Infor-mava-lhe Euclydes:

“[…] tenho tempo de trabalhar um poucoem prol da tua candidatura. […] Escrevi aoNeto [Coelho Neto] para que ele, por suavez, a agitasse […] Amanhã espero aqui oOliveira Lima e vou atacá-lo diretamente.Depois, no Rio, espero conseguir algumresultado.Mas lembra-te que esses homensnão te conhecem como eu te conheço e queeu não posso, em que pese as mais entusi-ásticas referências, dar-lhes uma idéia exa-ta do teu real valor. É preciso agir. […]Traço-te um programa que deve ser estri-tamente cumprido: deves ir a São Paulo,reunir o melhor de tuas publicações, con-tratar logo o editor e a impressão, e anun-ciar desde já o livro, com título competen-te. – Não há tempo a perder. Não devesperder um dia” (25).

Só logrou ingressar, contudo, em 1909,na vaga de Arthur Azevedo, ocupando acadeira no 29, já tendo publicado, além das

obras da mocidade, Rosa, Rosa de Amor(1902), Poemas e Canções (1908) e Versoe Prosa (1909). Páginas Soltas, reunindotrabalhos de ordem vária, sairia em 1911.

Mais aguerrida ainda a disputa para aAcademia Paulista de Letras. Nesta, a si-tuação apresentava um fato complicador:Vicente de Carvalho se opusera à sua cria-ção, alegando bastar a representativida-de da Academia Brasileira sediada na ca-pital. Considerava o país ainda fraco deliteratura regional, não comportando ins-tâncias estaduais da instituição. Foi o quebastou para que ao inaugurar-se aagremiação, com quarenta “imortais”, opoeta fosse excluído.

Aguardou circunstâncias favoráveis.Em 1911, por ocasião de vaga, por morte,do dr. Raphael Correa da Silva, veio plei-tear seu lugar, publicando rapidamente umvolume em que justificava suas pretensões.Não sem um travo irônico-jocoso, comoera de seu feitio:

“Não mereci do misterioso sufrágio quedeu origem à Academia Paulista a honrade entrada no ilustre grêmio. Nem por issome sinto impedido de, como parte do pú-blico, associar-me cá da rua às festas deinauguração. Senti, e fora fingimentonegá-lo, ter sido posto à margem dessavolumosa correnteza, destinada a canali-zar para a imortalidade, rios, córregos, ousimples tanques, que formam o sistemahidrográfico de nossa glória literária. Maso meu sentimento não se mescla de indig-nação ou de revolta. Reduz-se ao desa-pontamento vago de quem não tirou a sor-te grande, e lastima-o, sem disso se quei-xar como de uma ofensa” (26).

Colocando-se como escritor genuina-mente paulista, recusando-se à “desnatu-ralização literária que se me quer impor”,conclui enfaticamente e altivo:

“Bato com este livro, como se ele fosse ummartelo, contra a porta que a Academia metrancou. Quero entrar para a AcademiaPaulista: serei candidato em todas as elei-ções que ela tenha a fazer” (27).

25Carta de Euclydes da Cunha aVicente de Carvalho de 9/9/1904, in Francisco VenâncioFilho, Euclydes da Cunha e SeusAmigos, São Paulo, Rio de Ja-neiro, Companhia Editora Na-cional, 1938, pp. 134-7.

26 Vicente de Carvalho,Verso eProsa, São Paulo, Cardozo Fi-lho & Cia, 1909, pp. V-VI.

27 Idem, ibidem, p. XXXII.

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Consumava-se aqui o seu “Viver às cla-ras”, lema que abraçara do Positivismo eque norteava sua vida. Sem meios termos,vinha colocar-se como escritor paulista quenão aceitava exclusão.

Travessuras do destino, acabou por ocu-par a cadeira que teve como patrono JoãoMendes de Almeida e o antecessor, RaphaelCorrea da Silva. Ambos juristas, seus opos-tos em tudo, pois ultramontanos em reli-gião, conservadores na Monarquia, monar-quistas na República, romanistas no Direi-to, vernaculares quinhentistas na prosa.

O PRESERVACIONISTA

Aspectos inusitados são freqüentes nes-te personagem de classificação complexa.Não obstante tantas facetas ainda a seremexploradas – aquela do contista, do causeur,do polemista, do pescador que avançavapelo mar alto, do refinado fundador daSociedade de Cultura Artística, dopositivista, do amável anfitrião na pitores-ca casa que construiu em Indaiá e tantasoutras – cabe registrar aquela do sensíveldefensor de nosso patrimônio natural.

Certo que em meio ao debate naciona-lista que se instaura – suscitado pelos pre-parativos para o Centenário da Indepen-dência em 1922 – a busca das raízes e ocultivo de valores nacionais estavam naordem do dia. O santista Benedito Calixto,secundado pelo zeloso Affonso D’Escrag-nolle Taunay, então diretor do MuseuPaulista, envolvera-se com o registro depaisagens em extinção, que compreendi-am não só as marinhas tão peculiares, peloseu caráter ainda selvagem, mas tambémcenários urbanos e ambientes rurais amea-çados. Amadeu Amaral produzia o seuDialeto Caipira, desvendando aspectos denossa identidade. Monteiro Lobato lançarao Jeca Tatu, estereótipo de nosso caboclo,personagem amiúde citado pelo poeta. Má-rio de Andrade criaria Macunaíma, a repre-sentação do amálgama racial da sociedadeque conformava o Brasil. Valdomiro Silveiraarrebatava com o conto caipira, marco

balizador do romance regionalista nacional.Vicente de Carvalho, Poeta do Mar, já

pela temática da obra, se colocara comoguardião do litoral. Defendera o mar emversos e o fazia pela ação. Defesa não só dapaisagem mas com o mesmo denodo, desua gente e, por conseguinte, da pesca na-cional. É com veemência que, em discursode inauguração de uma colônia de pesca-dores, em Bertioga, propugna pela pescano país, ameaçada por estrangeiros que,“vivendo no Brasil e do Brasil, explorandoem plena liberdade as riquezas de nossosmares e devassando sem compromissos aintimidade das nossas costas […]” (28), seconstituíam em concorrência perversa àsobrevivência das populações ribeirinhas.Na ocasião, considerando o meio milhão

Primeira

edição da

primeira obra

de poesias

Ardentias, de

1885

28 “Discurso de Inauguração daColônia de Pescadores, daPraia de Bertioga. 8.8.1921”,in Dous Discursos e uma Car-ta, São Paulo, Martinelli, Pas-sos & Cia, 192, p. 7.

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Carta de Vicente de Carvalho a Argymiro Silveira, de 6 de agosto de 1903

Biblioteca Guita e José Mindlin

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de pescadores disseminados pelo nosso li-toral, propunha a organização dos pesca-dores brasileiros, natos ou naturalizados,congregados em colônias cooperativas queformariam uma federação. Num rasgo po-ético, ainda sugeria: “As cooperativas depescadores, em vez do nome mal soante deColônias, podiam ter o bem mais expressi-vo, de Vilárias” (29).

De fato, seus cantos em versos se fize-ram acompanhar de defesas ostensivas, quecontrariavam fortes interesses, por vezesde sua própria classe, debatendo-se por elas.É o que se infere de sua arrebatada defesada Praia da Barra, ameaçada de expulsãode sua população para aforamento, comvistas à especulação imobiliária. Atravésde argumentos de extrema atualidade, re-velava a modernidade e larga visão, emassunto que ainda hoje, embora na ordemdo dia, é oportunisticamente desconsi-derado. Vale a reprodução de partes de seuartigo-apelo, veiculado pelo jornal santistaA Tribuna, expressamente dirigido ao pre-sidente da República, Epitácio Pessoa,quando em visita a Santos.

“Exmo. Sr. Presidente da República:Simples cidadão, sem outro título que o defilho desta cidade a que V. Excia. dá hojea alegria da sua visita, venho dirigir à V.Excia. uma súplica.[…] Interpreto perante V. Excia., SupremoMagistrado da Nação, um sentimento queestá apaixonando toda a população santista.Paira sobre ela a ameaça de ser privada damaior das belezas de sua terra – da lindapraia da Barra, jóia doada pela natureza eque a nossa cidade vem, de geração emgeração, gozando largamente e conservan-do com carinho. […]Sob pretexto de que esta praia é terreno demarinha, estão particulares tentando apro-priar-se dela a título de aforamento.Entrando assim no domínio do privado, otradicional logradouro público desapare-ceria fracionado, mutilado, despedaçadocomo por mãos de bárbaros, com proveitopecuniário de alguns indivíduos; e,sacrilegamente coalhada de construçõesparticulares, a linda praia da Barra deixa-

ria de existir, como dádiva mal emprega-da feita pela natureza a quem não a soubeaproveitar.[…] Deus do Céu! Que idéia essa de al-guém que é o Governo Brasileiro, e o Gover-no de um brasileiro que se chama EpitácioPessoa, vender pelo prato de lentilhas quea Bíblia consagrou na execração dos ho-mens, uma linda e preciosa jóia de família,da nossa família santista, da nossa famíliapaulista, da nossa família brasileira… […][…] É pensar que, por atenção a pequenosinteresses de dinheiro, de pouco dinheiro,de uma migalha, de alguns mesquinhoscontos de réis que seriam para o Tesouronacional como gotas de água para o mar,para o imenso e verde mar de nossa terranatal, o Governo Brasileiro, o Governo deEpitácio Pessoa, consentiria, nunca em queo que é, tradicionalmente, um patrimôniocomum, fosse partilhado, como res-nuliusentre particulares; que o que é de todos nós,santistas, paulistas, brasileiros, passasse aser de alguns indivíduos. […]” (30).

Trata-se de uma das mais belas defesasprecoces de nosso patrimônio, rara percep-ção de um problema tão moderno: mantera tradição. Longe de saudosismo nostálgi-co, vezo de poetas, Vicente de Carvalhovinha a público para defender um bem na-tural da ganância de especuladores, comvistas à guarda permanente da paisagemambiental.

Com esta página, não obstante haja mui-to a evocar de suas andanças e realizações,encerramos neste momento o percurso pelatrajetória do cidadão santista Vicente deCarvalho, que foi o Poeta do Mar. Nessaaltura, 1921, com 55 anos, já perdera umbraço, em virtude de cárie óssea; dois anosdepois, em 1924, viria a falecer. Sentira-semal em Cananéia, durante formidável pes-caria, onde se encontrava com parte da fa-mília e ilustre caravana dos amigos JoséCarlos Macedo Soares, José Maria Whita-ker, Samuel de Toledo e Erasmo Assunção.Removido às pressas para Santos, foi assis-tido pelos médicos drs. Tomás Catunda,Silvério Fontes e, já no fim, por CelestinoBourroul. O dileto amigo Abrahão Ribeiro

29 Idem, ibidem, p. 9.

30 “Carta Aberta ao Exmo. Sr. Pre-sidente da República. 22. 8.1921”, in Dous Discursos e umaCarta, op. cit., pp. 35-40.

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conseguiu chegar para os últimos minutos.Lá fora, a cidade de Santos não era a

mesma. Tornara-se o maior porto de cafédo mundo, implantara severa política higie-nista, sofrera transformação urbana demonta e apresentava-se como cidade mo-derna e cosmopolita. Em 1920, em Relató-rio da Comissão Geográfica e Geológica,era apresentada de forma superlativa nospareceres técnicos e assim percebida e ad-mirada aos olhos do país:

“Santos é naturalmente o ponto de partidapara todas as comunicações, com a costamarítima e com o interior, seja pela posi-ção, como pelo magnífico porto e pela gran-de rede férrea. É o maior escoadouro dasriquezas do país e da importação. É umadas praças comerciais mais importantes daAmérica do Sul” (31).

Nela, o monumento ao poeta, em bron-ze, de autoria de Caetano Fracarolli, inau-gurado no Boqueirão, guarda muitos per-sonagens. O caiçara de calças arregaçadase pele tostada do sol e o magistrado de togasevera; o panteísta de “Palavras ao Mar” eo místico de “Pequenino Morto”; o natura-

lista e paisagista dos “CrepúsculosPraianos” e o psicólogo de Rosa, Rosa deAmor… (32). No elogio de Guilherme deAlmeida, representava a um só tempo o“poeta épico, e clássico, e lírico, e satírico,e popular, e parnasiano, e simbolista, e na-turalista […]” (33). Pelo relato de seus con-temporâneos, sabe-se que fazia versos aqualquer momento, no primeiro papel queestivesse à mão, no próprio Tribunal, en-quanto transcorriam as sessões, sem quenada lhe escapasse: “Era como se ele fossedois, um fazendo justiça, outro fazendoversos”, endossando neste sentido as pala-vras do poeta – “no fundo justiça e poesiasão a mesma coisa: o estabelecimento daverdade” (34).

Acima de tudo, Vicente de Carvalho,cidadão da República, foi paradigma deagente social de seu tempo, envolvido comas lutas de implantação de uma sociedademoderna, lastreada nas raízes da terra e nocultivo da tradição. Assimilou a paisagembrasileira, especialmente aquela de San-tos, da sua terra natal, e metaforizou-acomo símbolo para o engendrar de umanacionalidade, mobilizadora da constru-ção do país.

31 Exploração do Litoral. Cidadede Santos à Fronteira do Esta-do do Paraná, São Paulo, Co-missão Geográfica e Geológi-ca do Estado de São Paulo,Presidência de Altino Arantes eSecretár io da Agricul turaCandido Mota, São Paulo, Typ.Brazil de Rothschild & Co,1920.

32 Francisco Luis Ribeiro, “Prefá-cio”, in Hermes Vieira, op. cit.

33 Guilherme Almeida, “Discursoquando da Inauguração do Mo-numento do Boqueirão”, inVicente de Carvalho. Homena-gem do Governo de S. Paulo eda Cidade de Santos a Vicentede Carvalho, São Paulo, De-partamento Estadual de Infor-mações, 1946, p. 17.

34 Maria Isabel de Silveira, IsabelQuis Valdomiro, São Paulo, Li-vraria Francisco Alves, 1962(Col. Contrastes e Confrontos 7).

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