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l Introdução l Há mais de uma forma de contar a história da modernidade (ou qualquer espécie de história). Este livro é uma delas. Falando sobre Aglaura, uma das cidades bizarras, mas estra- nhamente familiares, relacionadas em A cidade invisível, de Ítalo Calvino, Marco Pólo afirmou que com dificuldade poderia ir “além das coisas que seus habitantes sempre repetiram”, mesmo que suas histórias destoassem daquilo que ele próprio julgava es- tar vendo. “Você gostaria de dizer o que ela é, mas tudo que já se disse sobre Aglaura tem o efeito de aprisionar suas palavras e obrigá-lo a repetir, em vez de dizer.” E assim, abrigados em segu- rança pelas muralhas da cidade, feitas de histórias sempre re- petidas, da mesma forma que os baluartes de algumas cidades são feitos de pedra, os aglaurianos “vivem numa Aglaura que cresce apenas com o nome Aglaura, sem notarem a Aglaura que cresce so- bre o solo”. Como poderiam, na verdade, comportar-se de outro modo? Afinal, “a cidade de que falam tem a maior parte daquilo de que se necessita para existir, enquanto a cidade que existe em seu lugar existe menos”. 1 Se lhes perguntassem, os habitantes de Leônia – outra das ci- dades invisíveis de Ítalo Calvino – diriam que sua paixão é “des- frutar coisas novas e diferentes”. De fato. A cada manhã eles “vestem roupas novas em folha, tiram latas fechadas do mais re- cente modelo de geladeira, ouvindo jingles recém-lançados na es- 7

vidas desperdiçadas

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  • H mais de uma forma de contar a histria da modernidade (ouqualquer espcie de histria). Este livro uma delas.

    Falando sobre Aglaura, uma das cidades bizarras, mas estra-nhamente familiares, relacionadas em A cidade invisvel, de taloCalvino, Marco Plo afirmou que com dificuldade poderia iralm das coisas que seus habitantes sempre repetiram, mesmoque suas histrias destoassem daquilo que ele prprio julgava es-tar vendo. Voc gostaria de dizer o que ela , mas tudo que j sedisse sobre Aglaura tem o efeito de aprisionar suas palavras eobrig-lo a repetir, em vez de dizer. E assim, abrigados em segu-rana pelas muralhas da cidade, feitas de histrias sempre re-petidas, da mesma forma que os baluartes de algumas cidades sofeitos de pedra, os aglaurianos vivem numa Aglaura que cresceapenas com o nome Aglaura, sem notarem a Aglaura que cresce so-bre o solo. Como poderiam, na verdade, comportar-se de outromodo? Afinal, a cidade de que falam tem a maior parte daquilode que se necessita para existir, enquanto a cidade que existe emseu lugar existe menos.1

    Se lhes perguntassem, os habitantes de Lenia outra das ci-dades invisveis de talo Calvino diriam que sua paixo des-frutar coisas novas e diferentes. De fato. A cada manh elesvestem roupas novas em folha, tiram latas fechadas do mais re-cente modelo de geladeira, ouvindo jingles recm-lanados na es-

  • tao de rdio mais quente do momento. Mas a cada manh assobras da Lenia de ontem aguardam pelo caminho de lixo, eum estranho como Marco Plo olhando, por assim dizer, pelasfrestas das paredes da histria de Lenia, ficaria imaginando se averdadeira paixo dos leonianos na verdade no seria o prazerde expelir, descartar, limpar-se de uma impureza recorrente.Caso contrrio, por que os varredores de rua seriam recebidoscomo anjos, mesmo que sua misso fosse cercada de um siln-cio respeitoso (o que compreensvel ningum quer voltar apensar em coisas que j foram rejeitadas)? Como os leonianos sesuperam na sua busca por novidades, uma fortaleza de dejetosindestrutveis cerca a cidade, dominando-a de todos os lados,como uma cadeia de montanhas.

    Poderamos perguntar: ser que os leonianos enxergam essasmontanhas? s vezes sim, em particular quando uma rara golfa-da de vento leva a seus lares novos em folha um odor que lembraum monte de lixo, e no os produtos plenamente frescos, reluzen-tes e perfumados expostos nas lojas de novidades. Quando issoacontece, difcil para eles desviar os olhos teriam de olhar,cheios de preocupao, medo e tremor, para as montanhas, e sehorrorizar com essa viso. Eles abominariam a feira delas e asdetestariam por macularem a paisagem por serem ftidas, in-sossas, ofensivas e revoltantes, por abrigarem perigos conhecidose outros, diferentes de tudo que conheceram antes, por seremdepsitos de obstculos visveis e de outros nem mesmo imagin-veis. No gostariam dessa viso e prefeririam no continuarolhando por muito tempo. Odiariam os dejetos de seus devaneiosde ontem to apaixonadamente quanto amaram as roupas damoda e os brinquedos de ltimo tipo. Gostariam que as monta-nhas se desvanecessem, sumissem dinamitadas, esmagadas,pulverizadas ou dissolvidas. Iriam queixar-se da preguia dosvarredores de rua, da doura dos capatazes e da complacncia doschefes.

    Mais ainda que os prprios dejetos, os leonianos odiariam aidia de sua indestrutibilidade. Ficariam horrorizados com a no-

  • tcia de que as montanhas de que desejam to avidamente se des-vencilhar mostram-se relutantes em se degradar, deteriorar edecompor por si mesmas, assim como resistem e so tambmimunes aos solventes. Desesperados, no aceitariam a simplesverdade de que os odiosos montes de lixo s poderiam no existirse, antes de mais nada, no tivessem sido feitos (por eles mesmos,os leonianos!). Eles se recusariam a aceitar que (como diz a men-sagem de Marco Plo, que os leonianos no ouviriam), medi-da que a cidade se renova a cada dia, ela preserva totalmente a simesma na sua nica forma definitiva: o lixo de ontem empilhadosobre o lixo de anteontem e de todos os dias e anos e dcadas. Osleonianos no ouviriam a mensagem de Marco Plo porque oque ela lhes diria (quer dizer, se quisessem ouvir) que, em vez depreservarem o que afirmam amar e desejar, s conseguem tornarpermanente o lixo. S o intil, o desorientador, repelente, vene-noso e temvel resistente o bastante para permanecer ali en-quanto o tempo passa.

    Seguindo o exemplo dos aglaurianos, os leonianos vivem seudia-a-dia, podemos dizer, numa Lenia que cresce apenas com onome Lenia, alegremente inconscientes daquela outra Leniaque cresce sobre o solo. Pelo menos desviam ou fecham os olhos,fazendo o possvel para no ver. Assim como no caso dos aglauri-anos, a cidade de que falam tem a maior parte daquilo de que senecessita para viver. O que mais importante, ela contm a his-tria da paixo pela novidade que eles repetem a cada dia, demodo que essa paixo possa renascer e se reabastecer eternamen-te, e sua histria possa continuar sendo contada, escutada, ouvidacom avidez e aceita com fidelidade.

    S um estranho como Marco Plo poderia perguntar: qual ,afinal, a fonte de subsistncia dos leonianos? As coisas modernase encantadoras, sedutoramente novas e misteriosas, desde quevirgens e no experimentadas ou, em vez disso, os montes delixo sempre maiores? Como se poderia explicar, por exemplo, suapaixo pela moda? Na verdade, o que a moda substituir coisasmenos adorveis por outras mais bonitas, ou a alegria que se sen-

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  • te quando as coisas so jogadas num monte de lixo depois de se-rem despidas do glamour e do fascnio? As coisas so descartadaspor sua feira, ou so feias por terem sido destinadas ao lixo?

    Questes complicadas, afinal. Respond-las tambm . Asrespostas dependeriam de histrias que ecoam entre as muralhaserguidas a partir das memrias das histrias contadas, repetidas,ouvidas, ingeridas e absorvidas.

    Se essas perguntas fossem feitas a um leoniano, a resposta se-ria que cada vez mais coisas novas devem ser produzidas parasubstituir outras, menos atraentes, ou que perderam a utilidade.Mas se voc perguntasse a Marco Plo, viajante estrangeiro, ctico,forasteiro no-envolvido, recm-chegado, perplexo, ele respon-deria que em Lenia as coisas so declaradas inteis e prontamentedescartadas porque outros objetos de desejo, novos e aperfeioa-dos, acenam, e que elas esto fadadas a serem jogadas fora a fim deque se abra espao para as coisas mais novas. Ele responderia que,em Lenia, a novidade de hoje que torna a de ontem obsoleta,destinada ao monte de lixo. As duas respostas soam verdadeiras,ambas parecem transmitir a histria da vida dos leonianos. Demodo que, no final, a escolha depende de se a histria repetidacom monotonia ou, ao contrrio, se os pensamentos vagam soltosno espao livre de histrias...

    Ivan Klima se recorda do jantar que teve com o presidente daFord na residncia deste, em Detroit. O convidado perguntou aoanfitrio, que se gabava do nmero crescente de carros modernose velozes que saam da linha de montagem da Ford, como eledava fim a todos aqueles carros quando eles deixavam de ter utili-dade. Respondeu que isso no era problema. Qualquer coisaque fosse fabricada poderia desaparecer sem deixar vestgio, eraapenas um problema tcnico. E a imagem de um mundo total-mente limpo e vazio o fez sorrir.

    Depois do jantar, Klima foi ver como o problema tcnicoera enfrentado. Os carros usados, assim como os declarados gas-tos e no mais desejados, eram comprimidos por prensas gigan-tescas at se transformarem em elegantes caixas metlicas. Mas

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  • essas caixas metlicas no se desvaneciam... Eles provavelmentederretiam o metal esmagado para produzir ferro e ao novo paranovos carros, e assim o lixo se transforma em lixo novo, apenasem quantidade ligeiramente maior.

    Tendo ouvido essa histria e visto o que ela supostamentecontava, Klima reflete: No, no se trata apenas de um problematcnico. Pois o esprito das coisas mortas se ergue sobre a terra esobre as guas, e seu hlito o pressgio do mal.2

    Este livro dedicado a esse problema no apenas tcnico.Tenta explicar o que mais ele , alm de tcnico, e por que, antesde mais nada, um problema.

    Nosso planeta est cheio.

    Essa afirmao, permitam-me esclarecer, no vem da geo-grafia fsica ou mesmo humana. Em termos de espao fsico e daamplitude da coabitao humana, o planeta est longe de estarcheio. Pelo contrrio, o tamanho total das terras desabitadas ouesparsamente habitadas, consideradas inabitveis ou incapazesde sustentar a vida humana parece estar se expandindo, e no seencolhendo. medida que o progresso tecnolgico oferece (aum custo crescente, sem dvida) novos meios de sobrevivnciaem hbitats antes considerados inadequados para o povoamen-to, ele tambm corri a capacidade de muitos hbitats de sus-tentar as populaes que antes acomodavam e alimentavam.Enquanto isso, o progresso econmico faz com que modos deexistncia efetivos se tornem inviveis e impraticveis, aumen-tando desse modo o tamanho das terras desertas que jazemociosas e abandonadas.

    O planeta est cheio uma afirmao da sociologia e dacincia poltica. No se refere situao da Terra, mas s formas emeios de subsistncia de seus habitantes. Sinaliza o desapareci-mento das terras de ningum, territrios adequados a serem de-finidos e/ou tratados como desprovidos de habitaes humanastanto quanto de uma administrao soberana e assim abertos a(e clamando por) colonizao e povoamento. Tais territ-

  • rios, agora amplamente inexistentes, desempenharam durante amaior parte da histria moderna o papel crucial de depsitos delixo para os dejetos humanos produzidos em volumes cada vezmaiores nas partes do globo afetadas pelos processos da moder-nizao.

    A produo de refugo humano, ou, mais propriamente, deseres humanos refugados (os excessivos e redundantes, ouseja, os que no puderam ou no quiseram ser reconhecidos ouobter permisso para ficar), um produto inevitvel da moderni-zao, e um acompanhante inseparvel da modernidade. uminescapvel efeito colateral da construo da ordem (cada ordemdefine algumas parcelas da populao como deslocadas, inap-tas ou indesejveis) e do progresso econmico (que no podeocorrer sem degradar e desvalorizar os modos anteriormente efe-tivos de ganhar a vida e que, portanto, no consegue seno pri-var seus praticantes dos meios de subsistncia).

    Durante a maior parte da histria moderna, contudo, partesimensas do planeta (atrasadas, subdesenvolvidas, quandoavaliadas segundo as ambies do setor do planeta j moderno,quer dizer, obsessivamente modernizante) permaneceram totalou parcialmente inatingidas pelas presses modernizadoras, es-capando dessa forma de seu efeito superpopulacional. Con-frontadas com os nichos modernizantes do globo, essas partes(pr-modernas, subdesenvolvidas) tendiam a ser vistas e tra-tadas como terras capazes de absorver os excessos populacionaisdos pases desenvolvidos destinos naturais para a exportaode pessoas redundantes e aterros sanitrios bvios e prontos aserem utilizados para o despejo do refugo humano da moderni-zao. A remoo desse refugo produzido nas partes moder-nizadas e em modernizao do globo foi o mais profundosignificado da colonizao e das conquistas imperialistas ambastornadas possveis, e de fato inevitveis, pelo poder diferencialcontinuamente reproduzido pela completa desigualdade de de-senvolvimento (de maneira eufemstica, chamada de atrasocultural), resultante, por sua vez, do confinamento do modo de

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  • vida moderno a uma parte privilegiada do planeta. Essa desi-gualdade permitiu parte moderna do globo buscar e encontrar solues globais para problemas de superpopulao produzidoslocalmente.

    A situao pde durar enquanto a modernidade (ou seja, amodernizao perptua, compulsiva, obsessiva e viciosa) perma-necia um privilgio. Quando ela se tornou tal como estava pro-jetada e destinada a fazer a condio universal da humanidade,chegaram os efeitos de seu domnio planetrio. A modernizaoprogrediu de modo triunfante, alcanando as partes mais remo-tas do planeta; a quase totalidade da produo e do consumo hu-manos se tornaram mediados pelo dinheiro e pelo mercado; amercantilizao, a comercializao e a monetarizao dos modosde subsistncia dos seres humanos penetraram os recantos maislongnquos do planeta; por isso, no se dispe mais de soluesglobais para problemas produzidos localmente, tampouco de es-coadouros globais para excessos locais. Na verdade, o contrrio:todas as localidades (incluindo, de modo mais notvel, aquelascom elevado grau de modernizao) tm de suportar as conse-qncias do triunfo global da modernidade. Agora se vem emface da necessidade de procurar (em vo, ao que parece) solueslocais para problemas produzidos globalmente.

    Para resumir uma longa histria: a nova plenitude do pla-neta significa, essencialmente, uma crise aguda da indstria deremoo do refugo humano. Enquanto a produo de refugo hu-mano prossegue inquebrantvel e atinge novos pices, o planetapassa rapidamente a precisar de locais de despejo e de ferramen-tas para a reciclagem do lixo.

    Como que para tornar ainda mais complexa e ameaadorauma situao que j preocupante, uma nova e poderosa fonte depessoas refugadas veio se acrescentar s duas primeiras. A glo-balizao se tornou a terceira e atualmente a mais prolfica emenos controlada linha de produo de refugo humano oude pessoas refugadas. Tambm deu nova roupagem ao velho pro-

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  • blema e encheu-o de um novo significado e de uma urgncia semprecedentes.

    A expanso global da forma de vida moderna liberou e psem movimento quantidades enormes e crescentes de seres huma-nos destitudos de formas e meios de sobrevivncia at entoadequados, no sentido tanto biolgico quanto social/culturaldessa noo. Para as presses populacionais da resultantes asantigas e familiares presses colonialistas, s que na direo in-versa , no h escoadouros prontamente disponveis, seja para areciclagem ou para a remoo segura. Da os alarmes sobre asuperpopulao do globo; da tambm a nova centralidade dosproblemas dos imigrantes e das pessoas em busca de asilopara a agenda poltica moderna, e o papel crescente que os vagose difusos temores relacionados segurana desempenham nasestratgias globais emergentes e na lgica das lutas pelo poder.

    A natureza em essncia elementar, desregulada e politica-mente incontrolada dos processos de globalizao resultou nafundao de novas condies do tipo terra de fronteira no es-pao de fluxos planetrio, para a qual se tem transferido grandeparte da capacidade de poder que se alojava nos Estados sobera-nos modernos. O equilbrio frgil, inapelavelmente precrio, dosambientes das terras de fronteiras baseia-se, como sabido, navulnerabilidade mutuamente assegurada. Da os alarmes sobrea deteriorao da segurana que amplificam os j amplos supri-mentos de temores relacionados segurana, ao mesmo tempoque conduzem as preocupaes do pblico e os escoadouros daansiedade individual para longe das razes econmicas e sociaisdo problema, na direo de preocupaes com a segurana pes-soal (corporal). Por seu turno, a florescente indstria da se-guranase torna rapidamente um dos principais ramos da produ-o de refugo e fator fundamental no problema de sua remoo.

    Esse , em linhas bem gerais, o ambiente da vida contempo-rnea. Os problemas do refugo (humano) e da remoo do lixo(humano)pesam ainda mais fortemente sobre a moderna e con-sumista cultura da individualizao. Eles saturam todos os setores

  • mais importantes da vida social, tendem a dominar estratgias devida e a revestir as atividades mais importantes da existncia, esti-mulando-as a gerar seu prprio refugo sui generis: relacionamen-tos humanos natimortos, inadequados, invlidos ou inviveis,nascidos com a marca do descarte iminente.

    Esses temas, e alguns de seus derivados, so os principais fo-cos deste livro. A anlise que se faz aqui preliminar. Minha prin-cipal e talvez nica preocupao oferecer um ponto de vistaalternativo a partir do qual se possam avaliar os aspectos da vidamoderna que alguns acontecimentos recentes fizeram sair do es-conderijo onde se ocultavam. Com eles expostos s luzes da ribal-ta, certas facetas do mundo contemporneo podem ser mais bemapreciadas, e sua lgica, mais bem compreendida. Este livro deveser lido como um convite a um outro olhar, um pouco diferente,sobre o mundo moderno, supostamente to familiar, que todoscompartilhamos e habitamos.