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O que há de comum nas pesquisas de paz e justiça de transição: uma exploração introdutória1.
Maria Alice Venâncio Albuquerque2
Resumo:
As chamadas sociedades transicionais ou pós-conflito (sociedades que passaram recentemente por conflitos ou governos autoritários e/ou estão lidando com consequências das atrocidades cometidas) são o pano de fundo para dois campos de pesquisa: a justiça de transição e os estudos de paz. Os dois ramos, ainda que pouco explorados no âmbito das Relações Internacionais e da Ciência Política no Brasil, compartilham quesitos que vão além do framework de análise. Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo de aprimorar alguns fundamentos analíticos basilares aos dois campos. Com isso, tem o interesse secundário de criar condições para a investigação proporcionando diálogo mais profícuo entre as pesquisas e possibilitando a construção de perguntas e hipóteses de futuras pesquisas empíricas.
Palavras-chave: Justiça de Transição. Pós-conflito. Estudos de Paz.
What is common in peace and transitional justice research: an introductory exploration..
Abstract
The so-called transitional or post-conflict societies (societies that have recently gone through conflicts or authoritarian governments and / or are dealing with consequences of the atrocities committed) are the backdrop for two fields of research: transitional justice and peace studies. The two branches, although little explored in the scope of International Relations and Political Science in Brazil, share issues that go beyond the framework of analysis. In this sense, the theoretical-exploratory work aims to improve some basic analytical foundations in the two fields. With this, it has the secondary interest of creating the conditions for the investigation, providing a more fruitful dialogue between the researches and allowing the construction of questions and hypotheses of future empirical researches.
Key-words: Transitional Justice. Post-conflict. Transitional societies. Peace Studies.
Introdução:
A justiça de transição é um campo, ainda que contestado, de estudos que se dedica a
chegar em um acordo sobre as violações cometidas no passado de um país (TEITEL, 2003,
2014). Em geral o contexto de análise e de atuação são o da transição para a democracia ou,
mais recentemente, o contexto pós conflito.
O crescimento e cristalização do campo são refletidos no aumento do número de
publicações sobre o tema bem como com a criação de periódicos especializados. Além disso,
ao longo dos anos 1990 é consolidada uma burocratização da área com a criação de diretrizes,
1 Trabalho em construção. NÃO CITAR. Referências e dúvidas contactar a autora por email. 2 Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista CAPES. Email: [email protected].
práticas, normas e um corpo técnico especializado junto a organizações internacionais e
organizações não governamentais.
Os estudos de paz foram se consolidou como disciplina distinta em o daqual se criou
centros e agendas de pesquisa própria recentemente. Seu posicionamento epistemológico
desde seu surgimento tem substancia crítica, incorporando os aportes de diferentes disciplinas
de forma crítica no intuito de verificar a aplicabilidade prática das expectativas geradas no
campo analítico.
Procura, assim, lançar olhares diferentes às noções de conflito, violência, Estado e
ameaça, relativizando alguns conceitos e considerados outros níveis de análise –
principalmente as contribuições a nível local/do indivíduo - para a investigação de causas e
condições para o conflito e prospecções para a construção de paz durável – objetivo último e
norteador da pesquisa para a paz.
As literaturas de ambas as pesquisas tem, grosso modo, muitos aspectos em comum.
No entanto, poucos trabalhos tem como foco o levantamento, mesmo que não sistemáticos
desses aspectos, aparecendo-os de forma embaralhada na literatura voltada para um ou outro
campo.
O objetivo, com isso, é revisar a literatura do tema no intuito de avançar em alguns
pontos conceitualmente inconsistentes, negligenciados e/ou contestados em ambas as
pesquisas. Potencialmente, a falta de clareza das correspondências entre os dois campos pode
limitar o estudo empírico de sociedades transicionais/pós-conflito. Onde as duas pesquisas se
encontram/se sobrepõe e quais pontos podem ser reforçados mutuamente são os principais
aspectos levantados por esse breve ensaio.
A construção se dá, portanto, dá seguinte forma: primeiro apresenta resumidamente,
um panorama conceitual sobre a justiça de transição, apresentando brevemente seus principais
mecanismos e pilares que distinguem o campo. O mesmo é feito para os Estudos de Paz.
Nessa primeira o intuito é oferecer uma apresentação dos dois campos de pesquisa afastando-
se de uma perspectiva necessariamente crítica. O mesmo é feito para os Estudos de Paz. Dada
a apresentação dos fundamentos que baseiam as disciplinas do seu nascedouro ao estado
status atual, o ensaio aponta algumas circunstancias, elementos e desafios compartilhados
pelos dois campos de pesquisa que podem ser, até então, sugeridas pela averiguação da
literatura. Por fim, como considerações finais, procura-se apresentar algumas possibilidades
de problemas/questões de pesquisa, bem como de técnicas de pesquisa possíveis para a
exploração empírica em pesquisas que compartilhem do framework das sociedades pós
conflito.
1. Justiça de transição: a prática da teoria ou a teoria da prática?
A origem da justiça de transição pode ser avaliada e periodizada sob diferentes pontos
de vista. Aqueles que ressaltam a estrutura legal da justiça de transição, datam seu surgimento
do pós guerra a partir do paradigma de Nuremberg. Para esse grupo, o marco da consolidação
das bases da justiça de transição é o Estatuto de Roma e a criação do Tribunal Penal
Internacional.
Nesse sentido, autores como Teitel (2003; 2014) e Elster (2004) datam o surgimento
da justiça de transição com bases nas ideias hoje associadas ao termo, ao contrário de Paine
que avalia o surgimento do campo a partir do reconhecimento cognitivo embutido no termo.
Para esse entre outros autores (ANDRIEU, BELL, 2009), o termo foi cunhado por Neil Kritz
em 1995 na obra “transitional justice: how emerging democracie reckon from former
regimes”. Porém, há um consenso na literatura tradicional de que a cristalização como um
campo de conhecimento acadêmico e de ação prática foi concebida um pouco antes, durante a
chamada “terceira onda da democracia” com as quedas e posteriores transições de regimes
autoritários na América Latina e Leste Europeu para democracias liberais (ANDRIEU, 2010;
BELL, 2009).
A justiça de transição é basicamente conceituada como “[…] processes and
mechanisms associated with a society’s attempts to come to terms with a legacy of large-scale
past abuses, in order to ensure accountability, serve justice and achieve reconciliation” (ONU,
2004, p. 4; TEITEL, 2003, 2014). O Centro Internacional de Justiça de Transição (CIJT)
discorre sobre o conceito do campo como: transitional justice refers to the set of judicial and non-judicial measures that have been implemented by different countries in order to redress the legacies of massive human rights abuses. These measures include criminal prosecutions, truth commissions, reparations programmes and various kinds of institutional reforms
Logo, sua formação está ligada a diferentes paradigmas. O primeiro deles é o do
Direitos Humanos e, por sua vez, à demanda por responsabilização pelas violações cometidas
durante as transições. É importante ressaltar e, nesse sentido, justificar a justiça de transição
como um campo distinto (BELL, 2009), que diferente dos Direitos Humanos - que preocupa-
se com violações correntes - o foco da justiça de transição está no legado deixado por
violências ocorridas no período de regime autoritário ou durante conflitos civis. Preocupa-se
então com a reparação, reconhecimento e/ou responsabilização histórica de violações
ocorridas no passado de um país.
Um outro paradigma orientador da justiça de transição remete-se ao próprio sentido de transitoriedade. Tradicionalmente, o sentido de transição advém das transições para a democracia. Porém, se transição refere-se a mudanças políticas, elas podem ser experimentadas de variadas formas:
revolutions,” others “transfers of power,” othersregime change,” or “restorations,” or “independence,” or “modernization,”or “political development,” or perhaps “transitions” of one sort or another.These terms encapsulate changes from capitalism to socialism, militarydictatorship to civilian rule, authoritarianism to democracy, communism toliberal democracy, communism to a market economy, and more
Além disso, alguns autores questionam se as chamadas transições para paz estão
estabelecidas sob o mesmo paradigma: da justiça de transição como facilitadora da transição
para a democracia.
É inegável que o alargamento da JT passou pela expansão do Direito Internacional e
envolveu a inclusão de novos regimes legais e mecanismos, como por exemplo, os tribunais
ad hoc para a Yuguslavia e Ruanda – ICTY e ICTR3 respectivamente; a ênfase em
mecanismos não judiciais como as comissões da verdade, com destaque para Comissão da
Verdade da África do Sul (1995); a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) em 1998; e
alastramento do seu alcance normativo para abarcar conflitos intraestatais (MANI, 2008).
Outro passo importante no caminho para sua distinção e institucionalização foi o
envolvimento da Organização das Nações Unidas através da divulgação de diretrizes
normativas ligada a um reconhecimento mais explícito da JT como ferramental para alcançar
objetivos além da responsabilização criminal per si junto à criação de organizações não
governamentais especializadas, como o já citado ICTJ que fornece suporte técnico junto a
organizações internacionais e governos (HIRSH, 2012).
Percebe-se, entretanto, que não há um consenso em torno de uma definição de justiça
de transição e, com isso, também quanto ao escopo de seus propósitos, mecanismos e a quem
se destina, na prática, seus fins (BELL, 2009; MACDONALD, 2013). Em outras palavras o
nível de análise do indivíduo/local é pouco explorado como integrante da teoria e da prática
da justiça de transição.
Os primeiros trabalhos ligados ao campo tem como traço marcante o cunho normativo
e descritivo dos mecanismos que foram sendo instaurados nos diferentes lugares do globo.
Logo, boa parte da literatura é composta da narrativa de casos que, posteriormente,
começaram a ser colocados em perspectiva comparada (MACDONALD, 2013). Mais
recentemente, os pesquisadores têm procurado acessar o impacto dos mecanismos.
3 International Criminal Tribunal for the former Yugoslávia e International Criminal Tribunal for Ruanda
Entre os mecanismos que integram o escopo da justiça de transição estão: (1) tribunais:
mecanismos que executam o exame legal, dentro de uma estrutura doméstica pré existente –
ou em reforma - dos crimes alegados através de procedimentos judiciais. Tomam a forma de
persecuções domésticas, internacionais e tribunais ad hoc4. (2) Comissões da Verdade5: são
definidas como corpos investigativos oficialmente sancionados pelo Estado com mandato
temporário, foco em um determinado padrão de abusos e em um particular período da história
do país (Hayner, 2011).
Esses são mecanismos que podem ser considerados “confrontatórios”, ou seja, estão
mais comprometidos à responsabilização, exposição e recomendação de políticas a respeito
das violências cometidas, que com os termos da transição política em si – ainda que seja
impossível dissociar as necessidades de justiça do contexto político – ou seja, despolitizar a
justiça de transição (ANDRIEU, 2010).
Ainda, as (3) reparações: são compensações dadas pelo governo a um indivíduo ou
grupo que foi prejudicado de alguma forma durante o conflito. São geralmente solicitadas por
acordos de paz ou outros tipos de acordo entre as partes do conflito. (4) Anistias: são
promessas/concessões de parte do governo/grupo que está para ingressar no poder para não
punir/processar os violadores. Em geral tomam a forma de uma legislação formal e de
natureza unilateral concedida a todas as partes de um conflito e costumam aparecer como pré-
requisito para a exequibilidade dos acordos de paz. (5) Expurgos: também referidas como
políticas de vetting ou lustration policies, estão relacionadas ao ato de remover/proibir
políticos e membros do governo predecessor de setores estratégicos como forças armadas ou
judiciário por suas alegadas colaborações ou participação no conflito. Tem o intuito de limitar
a ação dos chamados spoilers.
Independentemente de ser compreendida como uma disciplina em si ou meramente um
rótulo, a justiça de transição é comumente entendida como um campo do conhecimento ligado
à atuação prática – conectando, assim, acadêmicos, ativistas e tomadores de decisão. Entre
4 Sobre os diferentes tipos de tribunais ver: Gibson, K, ‘An Uneasy Co-Existence: The Relationship Between Internationalized Criminal Courts and their Domestic Counterparts’, International Criminal Law Review, Vol.9, 2009, pp 275-300; Is Transitional Justice Really Just? Brown Journal of World Affairs, 2004. Vol XI, ISSUE 1; Roper, C. Barria, L. How effective are International Criminal Tribunals? An analysis of ICTY and the ICTR. International Justice of Human Rights. Vol 9, N°3, 2008. 5 Alguns autores como Roper e Barria (2009) se referem às comissões da verdade como “comissões da verdade e reconciliação”, no entanto, essa alcunha é passível de crítica uma vez que restringe o termo àquelas comissões da verdade que tem dentre seus objetivos a reconciliação. O termo “comissão da verdade” é guarda chuva, utilizado para se referir a organismos com as características e funções já citadas. Outra crítica que pode ser feita é quantoa própria imprecisão do termo que foi sendo apropriado política e academicamente sem uma sistematização do termo. Ver: Rettberg, Urquiza (2016) e Clark, J.N, ‘The Three R’s: retributive justice, restorative justice and reconciliation, Contemporary Justice Review, Vol.11, No.4, 2008, pp 331-350.
eles há a preocupação sobre como lidar com violações de direitos humanos em sociedades em
transição (BELL, 2008).
Lie, Binningsbø e Gates (2007) em relação a esse conceito, apontam para um ponto
sensível à justiça de transição: as vítimas. Elas estão envolvidas nas guerras civis
independentemente do propósito dos beligerantes.
Logo, pesquisas que examinam – em âmbito global - como o ambiente político
influência a adoção de políticas de justiça de transição nem sempre ressaltam/discriminam as
diferenças entre esses dois contextos: autoritarismo e guerras civis (KIM, 2006) que guardam
características e especificidades substancialmente distintas.
Como forma de direcionar essas incongruências, alguns autores, como Skaar (2011)
adotam o termo post-transitional justice em busca da adequação do termo ao contexto - nos
casos por ele tratados de transições políticas. Já Loyle e Binningsbo (2014, p.4), ressaltam que
muitos dos mecanismos aplicados na região africana fazem parte, na verdade, de uma during
conflict justice, definindo justiça de transição, nesse sentido, como “qualquer processo
judicial ou extrajudicial iniciado durante o conflito armado que tenta perfazer transgressões
ocorridas ou que estão ocorrendo como parte daquele conflito”.
Embora com pouca clareza conceitual, a literatura empírica se volta para os
mecanismos adotados no período pós-conflito, ou seja, propostos uma vez que a violência é
estabilizada. A compreensão e o sentido da violência e o que é tratado como conflito é
bastante limitado dentro dos pressupostos que informam a justiça de transição,
problematização que integra, todavia, as pesquisas para a paz.
2. A pesquisa de paz: compreender para construir
Os estudos de paz emergem como campo de pesquisa a partir da década de 1960, se
consolidando, todavia, ao longo dos anos 1990 (GALTUNG, 1996). Desde o seu surgimento
o campo se mostrou de natureza interdisciplinar, buscando através de diferentes disciplinas
um conhecimento o mais abrangente possível sobre cenários de conflito fornecendo, também,
caminhos alternativos no sentido da construção de paz (GALTUNG, 1969).
Formado, assim, pelos aportes teóricos de outras disciplinas, os estudos de paz tem no
exercício empírico a estrutura base de validação epistemológica, dedicando-se também a
crítica histórica e a comparação de diferentes teorias no intuito de gerar seu próprio aporte
teórico para a geração de novas perspectivas e formas de atuação promotoras de paz.
A paz e a investigação em torno desse fenômeno pode ser compreendida pelo viés da
erradicação da violência. Nesse sentido, é por vezes confundida com os estudos de segurança,
pois assim como esses, se dedica a estudar ameaça. Porém, a perspectiva lançada pelos
estudos de paz sobre a noção de ameaça é outra, muito mais multidimensional, embaraçando a
noção de fronteiras e trazendo para sua agenda pautas não tradicionais deixada de lado pela
segurança (GALTUNG, 1990;BUZAN, 2003).
A noção de violência trazida pelos estudos de paz também é diferente. Para esse
campo violência é “a causa da diferença [evitável] entre o potencial e o atual [das realizações
somáticas e mentais do indivíduo], entre o que poderia ter sido e o que é [...]” (apud Galtung
1969, 168-9). Logo, é uma noção intimamente atrelada a ideia de emancipação trazida por
Booth. Nessa perspectiva, a violência pode ser compreendida em três frentes: direta, estrutural
e cultural. As manifestações de uma reverbera na outra, sequenciando em cultural ->
estrutural -> direta, com “->” representando o sentido da repercussão da violência.
Ao centralizar seu foco no estudo da violência – distanciando-se da noção de Estado
como detentor do monopólio da violência – os estudos de paz mostram como faz uso crítico
de aportes teóricos e analíticos já existentes para lançar novos olhares sobre determinados
fenômenos como a violência. Fundamentos teóricos das Relações Internacionais (RI), por
exemplo, como o uso da força, fenômenos como o tráfico de entorpecentes, armas e pessoas e
a securitização de determinados atores e agendas como a da migração, passam a ser pensados,
por exemplo, como manifestações de violência, sendo, nesse caso, a primeira uma
manifestação de violência direta, a segunda uma manifestação estrutural da violência – onde
aspectos estruturais abordam a distribuição de recursos (MASCHIETTO, 2015), terceira,
uma forma de violência cultural ao associar através do discurso de segurança, o imigrante,
determinada etnias e o próprio movimento migratório como ameaças.
É importante aclarar que a compreensão do que é conflito é complementar aos
pressupostos dos Estudos de Paz. Nem sempre o conflito pressupõe violência e é definido pela
natureza relacional entre atores em determinada situação. Na base de uma relação conflituosa
está, pois, a contradição “geralmente decorrente de objetivos, (b) suposições e atitudes quanto
ao sistema em que se inserem e os atores com que interagem (nível sutil de ação) e (c)
comportamento (nível manifesto de ação)” (ALAN, SANT’ANNA, 2015). O conflito
violento, forma como comumentemente entendemos conflito, é definido todavia pela chamada
escalada da violência (GALTUNG), ou seja, quando o grau de violência se eleva ao nível
comportamental de manifestação (ALAN, SANT’ANNA, 2015).
3. O que há de comum?
Para esse tópico, é importante clarificar que a revisão sobre a correspondência entre as
duas pesquisas não foi feita, ainda, de forma sistemática, ou seja, a revisão de literatura aqui
não está sendo usada como uma técnica de pesquisa propriamente, que por sua vez, a
depender do propósito do pesquisador tem diferentes formas/técnicas de execução6.
Dito isso, os aspectos em comum encontrados nas duas pesquisas são levantados de
forma exploratória e não sistemática podendo ser encontradas mais ou menos
correspondências em um estudo sistemático e operacionalizado das literaturas.
Primeiramente, em relação ao surgimento dos dois campos, a literatura mostra que os
surgimentos das duas pesquisas têm um cunho essencialmente normativo. Essa tendência, em
relação à justiça de transição é marcante sua vertente legal/jurídica que ainda domina a
pesquisa a prática do campo. Disciplinas como a ciência política tentam sistematizar a relação
de causa e efeito entre medidas de justiça e transições, enquanto as Relações Internacionais
tem estudo mais recentemente a emergência da justiça de transição como norma internacional,
sem contudo, questionar-se – como é tendência no estudo sobre normas internacionais – sobre
sua variação e as possíveis fontes.
Allan e Sant’Anna (2015) apontam para alguns bancos de dados que estudam de forma
mais abrangente e sensível o conflito, ao considerar características mais sutis para sua análise
não interestatal. A compilação de dados em a partir desse ponto de vista pode auxiliar a
visualização de pontos em comum com a justiça de transição. Os autores apontam: Conflict
Barometer – Heidelberg Institute for International Conflict Research (HIIK – Universidade de
Heidelberg); Fragile States Index – The Fund For Peace; Citizen Security Database – Instituto
Igarapé; International Country Risk Guide (ICRG) – PRS Group; Conflict Analysis
Framework (CAF) – Banco Mundial; e o UCDP/PRIO Armed Conflict Dataset – Uppsala
Conflict Data Program (UCDP). Embora se apresentem num formato predominantemente
jornalístico, também são consideradas as matérias, relatórios e outros materiais qualitativos
elaborados pela base Insight Crime – Insight Crime Foundation. Os pesquisadores apontam
para conceitos centrais que orientam a coleta dos dados nesses bancos – as quais chamam de
questões-problema: risco político, segurança cidadã e conflitos violentos.
Os componentes que identificam o conflito são compreendidos através de três
elementos perceptíveis nessas bases de dados: (a) causas específicas das condições
6 é um tipo de investigação científica. Essas revisões são consideradas estudos observacionais retrospectivos ou estudos experimentais de recuperação e análise crítica da literatura. Testam hipóteses e têm como objetivo levantar, reunir, avaliar criticamente a metodologia da pesquisa e sintetizar os resultados de diversos estudos primários. Busca responder a uma pergunta de pesquisa claramente formulada. Utiliza métodos sistemáticos eexplícitos para recuperar, selecionar e avaliar os resultados de estudos relevantes. Reúne esistematiza os dados dos estudos primários (unidades de análise).
conflituosas, (b) motivos estruturais ou sistêmicos para deflagração de conflitos e (c) os
conflitos em si concretizado em comportamentos de violência direta (ALAN, SANT’ANNA,
2015).
Na análise dessas bases de dados (tanto das de paz quanto das de justiça de transição)
é preciso estar atento aos objetivos dos institutos ao coletar e reunir aquelas variáveis. Embora
estejam medindo – de forma indireta – o mesmo fenômeno, conflito, bancos de dados
diferentes podem medir ameaça com base em variáveis que aferem riscos econômicos e
financeiros ou com base em riscos políticos diretos que se sobrelevam em cenários
conflituosos.
O caráter normativo (MASCHIETTO, 2015), a proposição de ações para a não
repetição, são outros aspectos compartilhados pelas literaturas. Lie et al (2007, p.10)
investigam empiricamente algumas dessas principais assunções para o contexto pós conflito
no intuito de verificar seus efeitos sobre a duração da paz7. Esperam, por exemplo, que na
transição da guerra para a paz, o equilíbrio de forças será mais decisivo, visto que com a
vitória de um dos lados do conflito políticas de justiça de transição são mais prováveis que se
o conflito terminar por acordos, negociações ou cessar-fogo. Acordos de paz são contratos
que tem o intuito de encerrar um conflito violento8. Esse tipo de acordo/documento pode - e,
em geral, assim tem feito - prescrever mecanismos de justiça de transição como forma de
direcionar demandas de partes do conflito ou como forma de apaziguamento social9.
Expandido a lógica da duração do regime para a construção de paz, os autores
apontam que conflitos duradouros são menos propensos a resultar em políticas transicionais
pois “as memórias do sofrimento parecem ser mais vívidas e as emoções
correspondentemente fortes” (LIE et al, 2007, p.10). Em uma ditadura de longo prazo é
possível o estabelecimento de mecanismos mais rotineiros de controle social que dificultem a
identificação e exposição de malfeitores e vítimas além dos abusos ficarem mais associados a
eventos particulares (LIE et al, 2007 apud de Brito, Gonzalez-Enriquez & Aguilar 2001).
Quanto aos Estudos de Paz, o trabalho aponta como sugestão uma interlocução mais
íntima que tange suas preocupações com as percepções locais sobre os processos que
7 As autoras controlam esses fatores na análise para determinar se diferentes aspectos do PCJ têm um efeito independente sobre a paz pós-conflito ou se a paz e a justiça são produtos dos mesmos fatores subjacentes (2007, p.9). 8 Os documentos dos acordos de paz são difíceis de serem classificados, porém de acordo com a ONU: acordos de cessar fogo, acordos de pré negociação, acordos preliminares, acordos de compreensão, acordos de estrutura e acordos de implementação 9 No Peace Agreements Database Search entre as subcategorias de busca está “Justiça de transição/Verdade e Reconciliação” e “Justiça Internacional e Responsabilização”. Disponível em: http://peacemaker.un.org/document-search
envolvem o conflito (HIRSH, 2012; MACGINTY, 2014; MACDONALD, 2014). Tal
literatura acaba destacando alguns pontos não examinados por modelos tradicionais de justiça
de transição (UGARRIZA, RETTBERG, 2016).
4. Considerações finais
A exploração inicial de fatores e correspondências– como uma fase prévia para/de
uma pesquisa comparativa – tem o intuito de explorar as conexões entre o que é ompartilhado
entre os pesquisadores sociais e as evidências nos casos. Esse exame – ainda que incipiente –
pode auxiliar na reflexão sobre as causas relevantes e natureza dos resultados.
No rastro metodológico, sugere o uso/aplicação dos set-theoretical methods, mais
especificamente, a versão mais desenvolvida, o qualitative compartive analysis (QCA); e no
caminho ontológico, indica a incorporação/aproximação com pesquisas orientadas para o
nível local.
Os set-theoretical methods trabalham numa lógica de relações dos fenômenos sociais
como relações de conjuntos que, por sua vez, são interpretadas em termos de condições
necessárias e suficientes e condições decorrentes dessas (CARSTEN; SCHENEIDER, 2007).
O QCA, por seu turno, é definido como uma composição entre a lógica quantitativa e
qualitativa que procura identificar a presença ou ausência de variáveis para a ocorrência de
dado fenômeno sem a preocupação com estimação (CAMPOS, 2016). Entre as demandas para
fazer um bom estudo comparativo, em especial o chamado QCA, está a familiaridade do
investigador com a literatura referente ao resultado (outcome) e com os casos incluídos no
estudo a fim de apontar as variáveis que merecem ser testadas (CAMPOS, 2016). As
explicações dadas para a implementação de mecanismos, por exemplo, seriam compostas,
pois, por condições e não variáveis (SCHENEIDER; WAGGEMAN, 2010).
O QCA é apontado aqui como uma abordagem metodológica a ser seguida porque
diferente das pesquisas que buscam inferir e estimar a causalidade entre uma determinada
variável e um efeito/resultado, o QCA trabalha com a busca de configurações causais, ou seja,
a qual/quais conjunto(s) de condições está ligado um particular resultado – no caso desse
trabalho, por exemplo, quais condições que conjuntamente levam um país a adotar algum
mecanismo de justiça de transição.
Para isso, o investigador deve ter a disposição um conjunto de casos que combinem
em algumas condições, mas levem a resultados diferentes. Logo, é recomendável que o
pesquisador determine qual/quais fatores adicionais (o que falta em um caso e está presente
em outro) levou ao resultado de interesse.
Como já aludido, não há um consenso em torno dos efeitos dos mecanismos de justiça
de transição sobre a consecução da paz ou medidas consensuais de sucesso e, embora autores
como Lie et al (2007, p.10) reconheçam que sobre a maneira que a sociedade lida com seu
passado por meio de tribunais, expurgos, reparações as vítimas e comissões da verdade pesa
características não só do próprio conflito mas da sociedade em si, nem sempre a sociedade é
consultada previamente quanto adoção/implementação de organismos . Tais como as
comissões da verdade, alguns desses mecanismos dependem diretamente da participação e
interesse das sociedades – entre os diretamente e indiretamente afetados pelo conflito e,
assim, pelas políticas que seguintes. Embora voltados para as necessidades pós-conflito, essas
muitas vezes parecem não ter um endereço.
Essa compreensão está atrelada a como a agenda de peacebuilding e os indicadores de
paz – muito ligada à democracia e a liberalização econômica - veio sendo construída por
organismos e instituições internacionais, focando em mudanças objetivas e deixando de lado
as perspectivas dos atores locais. Dessa forma, esses aspectos acabam não constituindo
formas de redistribuição de poder e empoderamento, mas sim receitas para prevenir a
violência direta sem direcionar as assimetrias de poder incrustadas na dinâmica social.
Um dos conceitos que podem ser explorados, pois, pelas pesquisas de justiça de
transição é o de empoderamento. O conceito é utilizado como discurso político por
organizações como a UNPD e o Banco Mundial e é entendido como um compromisso para
incorporar iniciativas de agentes locais às formulações de políticas. Marjoritamente é feito
através de uma abordagem participativa bem como pela ideia de “construção de capacidades”
como meio de aumentar o potencial das pessoas alcançarem suas próprias aspirações.
Maschietto (2016) analisa o empoderamento em três frentes: como discurso, como
política e como ferramenta analítica. Logo, relacionando o empoderamento com políticas de
justiça de transição, elas podem ser pensadas de forma a contribuir para o empoderamento
local ou em que medida são desenvolvidas como políticas empoderadoras.
A incorporação de atores locais requer cautela, todavia, cautela. Essas ações podem ser
compreendidas como meio de legitimação e desautorização, ao passo que apenas aqueles
atores que aderem ao discurso ligado a norma internacional estariam apropriando
adequadamente a norma a nível local. Desta feita, acabam por limitar o espaço da dissidência.
A sugestão de aproximação com os Estudos de Paz, se dá, outrossim, pela busca de
outro discurso para legitimar o uso da justiça de transição diferente daquele do
“transbordamento do conflito” invocado pelo discurso de segurança. Essa securitização da
justiça de transição (HIRSH, 2012, p. 392), não diretamente ligada à paz nem com o nível
local podendo embaçar, mais uma vez, o direcionamento das ações da justiça de transição.
Procurando ligar os dois campos, a averiguação de compreensões locais podem
desmistificar alguns significados que prejudicam a tradução de algumas expectativas/noções
em fatores operacionalizáveis, auxiliando, desta forma, no levantamento empírico do que
realmente importa para a adoção e de uma política voltada para as necessidades pós conflito.
A literatura, pois, demonstra uma contínua tendência em explorar casos de adoção e
buscar medir seus efeitos, ao invés de questionar os diferentes processos empreendidos por
essa pretensa norma internacional de adoção de mecanismos de justiça de transição.
Referências
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