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HOSPITAL: MITO, FANTASIA OU REALIDADE? Robert Browning, célebre poeta inglês do século passado, costumava dizer: o hospital é o melhor lugar para se morrer. O nosocômio vestiu uma roupagem diferente. Transformou-se em empresa como qualquer outra, onde se espera encontrar uma equipe dinâmica atuando com equilíbrio e harmonia. Na realidade, o cotidiano de tal contexto apresenta situações vivenciais diversas do esperado. O hospital aqui enfocado funciona como uma rede de intrigas pela participação de agrupamentos humanos heterogêneos, incapazes de separar os próprios dramas do envolvimento com os clientes. As equipes médicas e de enfermagem, de atuação essencial na assistência médico- hospitalar, são encaradas segundo uma ótica humanística importante e em condições de retratar a verdadeira face daquele casarão branco a assustar a maioria das pessoas. Os personagens apresentados estão interligados por um traço comum: a solidariedade. A falsa frieza das pessoas lidando com a vida humana é dissecada e substituída por seres humanos sofrendo diante da limitação profissional na luta contra a dor e o sofrimento. Não será fácil ao leitor estabelecer uma zona limítrofe da realidade com a ficção. As rotinas, tramas e intrigas podem acontecer, a todo momento, em qualquer hospital do mundo. Realidade ou ficção, a última palavra será dada pelo leitor, buscando no texto e nas entrelinhas, empaticamente, o papel de cada personagem como profissional e muito especialmente na qualidade de ser humano diante das imagens do cotidiano. Os dramas, as emoções e as frustrações ante as condições peculiares de cada paciente e o seu contexto familiar terminam por envolver a equipe hospitalar e mais notadamente o médico. O cenário é real e as emoções podem sê-lo. O mais importante é lembrar ao leitor: o hospital retratado, os nomes e os fatos registrados deverão ser encarados como mera coincidência com relação a locais e pessoas vivas ou mortas. O autor

 · Web viewPreferi falar-lhe sozinho. Não tinha a menor idéia de como o senhor iria receber a notícia. Procurou resumir a ocorrência e prosseguiu - o moço está sendo operado

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HOSPITAL: MITO, FANTASIA OU REALIDADE?

Robert Browning, célebre poeta inglês do século passado, costumava dizer: o hospital é o melhor lugar para se morrer. O nosocômio vestiu uma roupagem diferente. Transformou-se em empresa como qualquer outra, onde se espera encontrar uma equipe dinâmica atuando com equilíbrio e harmonia. Na realidade, o cotidiano de tal contexto apresenta situações vivenciais diversas do esperado. O hospital aqui enfocado funciona como uma rede de intrigas pela participação de agrupamentos humanos heterogêneos, incapazes de separar os próprios dramas do envolvimento com os clientes. As equipes médicas e de enfermagem, de atuação essencial na assistência médico-hospitalar, são encaradas segundo uma ótica humanística importante e em condições de retratar a verdadeira face daquele casarão branco a assustar a maioria das pessoas. Os personagens apresentados estão interligados por um traço comum: a solidariedade. A falsa frieza das pessoas lidando com a vida humana é dissecada e substituída por seres humanos sofrendo diante da limitação profissional na luta contra a dor e o sofrimento. Não será fácil ao leitor estabelecer uma zona limítrofe da realidade com a ficção. As rotinas, tramas e intrigas podem acontecer, a todo momento, em qualquer hospital do mundo. Realidade ou ficção, a última palavra será dada pelo leitor, buscando no texto e nas entrelinhas, empaticamente, o papel de cada personagem como profissional e muito especialmente na qualidade de ser humano diante das imagens do cotidiano. Os dramas, as emoções e as frustrações ante as condições peculiares de cada paciente e o seu contexto familiar terminam por envolver a equipe hospitalar e mais notadamente o médico. O cenário é real e as emoções podem sê-lo. O mais importante é lembrar ao leitor: o hospital retratado, os nomes e os fatos registrados deverão ser encarados como mera coincidência com relação a locais e pessoas vivas ou mortas. O autor

1. Por um fio

Sexta-feira de verão. Como a ante-sala de uma sauna. Machos felpudos. Na maioria, calvos e barrigudos, peitos flácidos, sobrancelhas cerdosas, orelhas ouriçadas. Cinqüentões. Andropausa: conversas sobre a última loura no escritório. "Aconteceu ali mesmo, no sofá. Em processo de desquite", contava o advogado. "Comigo, uma morena, de trinta e cinco anos. Durante o exame. Posição ginecológica perfeita". "Desquite, também?" "Não. Fibroma". Abriu a geladeira e serviu-se de uma laranjada. Nada de álcool. Horror aos hidrocarbonatos,

principalmente o uísque. Nada de cerveja. Nem fumava. Aos quarenta, ainda praticava esportes regularmente. Passava fome de verdade. Família de obesos, embora alguns tipos hercúleos, preocupação maior - afora as mulheres - sua forma física. Pensava: uma coisa dependia da outra. O suco gelado desce suavemente, a pequenos goles. Estendido no sofá, olhou o telefone. Marina, sua segunda mulher efetiva (Eliana fora a primeira, Carmem a "regra três"), saíra da mansão, logo depois do almoço. Havia uma exposição de cães e ele tinha alergia a cachorro: cinofobia, talvez não tanto pelos animais, como pela chatíssima companhia dos cinófilos, aquela mistura de solteironas insossas e cavalheiros compensados. A empregada também saíra, para uma sabatina na igreja. A filha única acompanhara a mãe, com seus quinze anos e os dois diabretes encoleirados, um minúsculo não sei a raça e outro quadrúpede felpudo, onde mal se viam dois olhos e um focinho. Ser não acreditasse nas leis de Mendel, aquelas duas convenceriam o mais cético. O telefone de novo. Peça de museu, talvez a réplica do primeiro usado, comercialmente, nos Estados Unidos. Penúltima viagem da Carmem, aquele trambolho, cheio de niquelados como o "carango" de um pleibói. Denise espreguiçou-se como uma gata, nua num monte de almofadas estendidas no tapete. O telefone tilintou e ela rolou os seus cinqüenta e cinco quilos (metade de busto e traseiro, para um metro e setenta de carne moreno-jambo) e sentou-se, para atingir o tilintante objeto. Estava quente, mesmo naquela cobertura de janela aberta, onde havia um solário para uniformizar-lhe a cor de uma nesga de seios e outra menor de nádegas. - De onde falam? - Da residência do doutor Stronheim. - Denise? - É a senhora Sérgio Stronheim. - Como vai!? Ligeira demora. - Identificara aquela voz forte, bem modulada e ligeiramente velada, próxima, tão junto ao ouvido. - Muito bem, e você? - Lembra do dia de hoje? - Não... realmente, os dias parecem tanto... - Claro, lembra sim! O tom de voz mostrava uma ligeira ponta de ressentimento: - Puxa vida! Tinha a impressão de você ficar feliz com a lembrança de uma data assim, tão... - Minha memória funciona como uma folha de papel em branco. - Ora, você tá me gozando! Ela esfregou-se no tapete peludo. De busto. E ronronou: - Então fala de uma vez... O gelo se derretera quase todo no copo, misturando-se no açúcar dos últimos restos do suco de laranja. Assim mesmo, bebeu; depois, mais convincente: - Então, vou reavivar sua memória. Há um ano, nesta mesma data... - E daí? - Encontramo-nos na festa de aniversário daquele decorador, você a mais elegante da noite, as mangas moles, o decote incrível, o corpo lindo. Lá pras tantas, você esbarrou em alguém e derrubou o copo de uísque. Justamente na minha lapela. Ficou preocupada, oferecendo-se para acompanhar-me ao vestíbulo e limpar a mancha. - Ainda não consigo me lembrar. Positivamente passava da conta. Mas era o seu jeito, rodear a negaça ardilosa, tão cheia de promessas. - Ficamos no jardim - continuou, você parecia imaginar-me irritado. - E não? - No dia seguinte, você telefonou para o escritório e combinamos fazer as pazes num lugar de queijo e vinho. Lembra-se agora? - exclamou mais animado. - Ah! Agora me lembro. Um Chateau Lacave. Estava maravilhoso. - Não tanto por mim? - Ainda gosta de provocar elogios? - Você pode sair hoje, à noite, para comemorarmos? Ela espreguiçou-se como uma pantera, lânguida e lenta: - Deixa ver. (Pausa estudada). Sérgio telefonou há pouco dizendo haver reunião da diretoria. Quando isso acontece, ele geralmente chega tarde e nem dá papo. Além disso, as crianças desceram para o Guarujá. Estou sozinha. Incrivelmente solitária. E não faço parte da diretoria. Dizem, na sua terra "chumbo trocado não dói". Topo o convite. - Irei armado... - Oito e meia, ok? - Se você quiser, posso telefonar antes. - Não precisa. Oito, em ponto, já produzida. Trinta minutos depois, espero sua buzina, no terraço. - Por quê os trinta minutos de intervalo? - Para sonhar um pouco. Olhando a lua, hoje

é crescente. - Deixo o escritório às seis e meia, troco de roupa em casa. Passo aí e a gente resolve onde vai jantar. Ela não desligou logo. E sentiu como se o aparelho repetisse, mais lentamente, o som suave de uma extensão desligada. Espreguiçou-se, um banho de chuveiro, disparou para o escritório. Um resto de brisa, entrando pelo carro diminuía o calor. Mas... a sofreguidão de uma espera de quatro horas... Denise apanhou uma toalha, enrolando-a na maciez da carne nua, e entrou no banheiro, para aquela cerimônia, quase litúrgica, de contemplação encantada das formas exuberantes.

2. Um passeio proibido

Mercedes preto, parado, ladeando o meio-fio do imponente prédio central no mais sofisticado condomínio fechado do Jardim Europa - 20:30. Acionado por controle remoto, o portão dá passagem àquela figura de preto, misto de gata e pantera, num conjunto de seda preto, busto à mostra, onde tudo combina. Rapidamente, Caio rodeia o carro e abre a porta. - Como você está linda! - À altura de acompanha-lo. Aonde vamos? - Eis apenas um leal servo. Você escolhe. - Inauguraram um restaurante francês ali perto do Portal do Morumbi. Muito fino, além de discreto. E tem como ponto alto um pianista fabuloso. - Então podemos unir o útil ao agradável: jantar e dançar. - As comemorações valem mais quando completas. Tomaremos aquele vinho igual ao derramado em sua lapela no ano passado. Acionado o carrão, descontraídos e alegres, Dr. Caio Gomes de Salles e Silva, lobista quatrocentão e D. Denise Marchioni Stronheim buscavam o refúgio do restaurante escolhido. - Caio - Veja o céu de brigadeiro. Uma noite linda como esta nem parece paulista. - Isso mesmo. Sexta feira, 13 de dezembro. Você acredita em azar? - Senão, não sairia hoje. O diálogo prossegue, doce, descontraído, enquanto o Mercedes sobe a Ladeira do Morumbi. De repente, um caminhão desgovernado tolhe a passagem do carro. - Cuidado! Caio. - Meu Deus! O impacto da batida cortou-lhe a frase. O motorista do caminhão ainda sob o efeito do choque inesperado, mesmo cambaleando, abandona o veículo e desaparece no matagal, embuçando-se no manto da noite. Com o choque, um corpo feminino é atirado para o meio-fio, enquanto o motorista fica preso ao volante. Nem se ouvem gritos. Dois corpos inertes davam um tom macabro à fantasia nem começada. Imediatamente após, freia bruscamente um veículo. - Janaina você viu? - Orildo, ainda permanecem vivos? Olhe o motorista do caminhão fugindo. Vamos gritar! - Cale a boca Janaina! Deixe o cara pra lá! Vamos ver o ocorrido com os dois. Saltam e logo divisam um corpo ensangüentado de mulher. Janaina. Ela ainda respira. O pulso quase filiforme. Pelo jeito, deve ter fratura de base do crânio. Tentam puxa-la até a calçada, quando notam evidente flacidez no braço direito. - Ih! Janaina, braço quebrado! - Olhe, Orildo, o motorista preso no carro! Parece gemer. - Vamos telefonar para a polícia. - Logo ali tem um orelhão. - Mais em baixo existe uma banca de revistas aberta. Podemos pedir auxílio lá. - Não vai adiantar nada. Telefonaremos para a polícia de uma vez. - Você tem uma ficha? - Tenho, sim. Olhe ali, Orildo. Há um carro de rádio patrulha passando ali. Hei! Socorro! - Calma, Janaína eles

estão retornando. Nem bem o soldado pára o veículo e Janaina se adianta: - Hei! Seu guarda! A coisa aqui pretejou. Tem uma mulher caída no meio-fio e um cara preso no Mercedes. - Não parece melhor a gente ligar para o PS do Hospital Central? É o mais próximo daqui e tem ambulância - completou Orildo. Naquele momento, a Ladeira do Morumbi assemelhava-se a uma feira livre. Carros encostados, muitos curiosos e todo mundo querendo ajudar. Enquanto um dos policiais tentava entrar em contacto com o PS do Hospital Central, Orildo e o outro soldado deslocam a mulher até a calçada, lenta e cuidadosamente. Logo em seguida, um praça procura baixar ainda mais o encosto do banco do motorista. Ele continua gemendo, sem conseguir falar. Minutos incontáveis conspiravam contra os dois acidentados. Instantes depois, sirenes a todo vapor, encosta uma ambulância. Rapidamente salta uma figura jovem, de branco, acompanhada de outra com uma caixa de medicamentos de urgência. Era a dupla histórica: médico e enfermeiro, presente em quase todos os veículos para socorro urgente. - Ainda bem, temos duas macas, doutor. - Vamos colocar primeiro a moça caída na calçada. Depois pegaremos o motorista. Enquanto isto, o policial tentava baixar ainda mais o encosto do banco do motorista, respiração ofegante, não conseguindo emitir além de gemidos. - Ela ainda respira. Cuidado, deve ter fratura do braço direito. Precisamos deslocá-la bem devagar. - Deixe comigo, doutor. Há vinte anos não faço outra coisa - retruca o enfermeiro. Orildo ajuda a erguer a mulher e observa sua cabeça pender para um lado. Colocada a primeira vítima na ambulância, a dupla tenta carregar o motorista, desta vez com maiores dificuldades, pois, além de bem mais pesado, reagia desordenadamente. O policial anotou a placa do carro e entregou os documentos do motorista ao médico. Da mulher, não se encontrou nada; certamente o impacto lançara sua bolsa bem distante do carro. Como identificação, apenas uma corrente com uma medalha onde se lia: "Denise Marchioni". Minutos depois, o trânsito fluía mais rápido. Somente o Mercedes ainda despertava a curiosidade de motoristas reduzindo a marcha. Veio a polícia técnica tomando as medidas de praxe. Um guincho levou aquele monte de ferros retorcidos, enquanto policiais encostavam o caminhão desobstruindo a ladeira. Nem mais curiosos havia por lá. Somente uma poça de sangue coagulado permanecia como o último resquício da aventura e sinal de um trágico romance.

3. Onde alguém repousa

A Unidade de Terapia Intensiva é um dos setores mais complexos, de mais difícil e cara manutenção do hospital moderno. Recebe doentes politraumatizados, as vítimas de variados sinistros, capazes de produzir uma sucessão de agressões anátomo-fisiológicas simultâneas: síndromes cardíacas gravíssimas, traumatismos cranianos, angioespasmos, tromboses, aneurismas, enfim, tudo aquilo considerado, antes, como "estado gravíssimo". Por isso, dispõe de monitores, desfibriladores e uma série de equipamentos eletrônicos capazes de, a qualquer momento, colocar o médico intensivista em condições de produzir um diagnóstico mais rápido, mediante a utilização de um arsenal terapêutico e de pesquisa urgente. O registro da pulsação,

da temperatura, da pressão arterial, do desempenho do aparelho circulatório com a identificação de cada distúrbio da função respiratória e do sistema nervoso, oferecem ao clínico o melhor quadro elucidativo do estado do paciente. Trata-se, em função desta condição funcional, de uma das atividades mais estafantes no campo médico-cirúrgico, esgotando pacientes, amigos, parentes, médicos, enfermeiros, enfim, toda a equipe de atendimento. Apesar de sempre dotada de equipamento moderno e pessoal altamente especializado, a U.T.I. não deixa de assustar o doente e seus acompanhantes, à semelhança de uma antecâmara da morte. - Plantão numa sexta-feira, véspera de praia, num verão como este, em São Paulo, não é mesmo o melhor programa! Tem-se de ficar deprimido, resmunga o Dr. Francisco Braida, intensivista de plantão, espichado numa cadeira da sala. - E daí? O consolo é não sermos os únicos. Imagine, num hospital deste tamanho, quanta gente enfrenta o mesmo estado de espírito, responde-lhe o Dr. Grimário Oliveira, supervisor da equipe, acendendo um cigarro. É um nortista enxuto e atarracado, zigomas salientes, sempre exibindo o estoicismo da sua gente, apesar de conterrâneo do interlocutor, meio sibarita. - Tá certo, você tem razão - concorda o intensivista. Mas, veja as outras equipes de plantão. A turma de obstetrícia fica deitada e só se levanta para fazer parto. E no período expulsivo, para não se amolar muito. A da Cirurgia só quer receber o caso muito bem mastigadinho. E nós, aqui, da Terapia Intensiva, não temos a menor chance de descanso. Também acendeu seu cigarro e continuou: - No começo, era muito interessante, tudo novidade. Inauguração festiva, muito discurso, propaganda nos jornais. O maior serviço da América do Sul. E outros babados políticos, de final de governo e véspera de eleição. Puxa vida! Não sei como a gente agüenta. Dia de plantão, rezo um Pai Nosso e entro no carro com o pé direito... - Bom. Não adianta dourar a pílula - concorda o colega. - Na verdade, o problema de terapia intensiva é um assunto preocupante para os donos de hospitais. Aparelhagem caríssima, taxas astronômicas e, no final, todo o mundo reclama. Já se inventou uma expressão nova, para cobrar mais: custo do paciente-dia. No final de contas, o industrial se vê recompensado, o dono do hospital fatura alto e os médicos sempre na base do mínimo profissional. - É, mas de vez em quando aparece um pessoal melhor, a gente bate um bom papo, ganha um convite agradável, uma festa inesperada, um almoço regado a bom vinho. Enquanto se está solteiro, o negócio até não é ruim. E sonha-se. Sonhar é de graça! Quem sabe a gente não apanha uma quatrocentona, ainda com boas reservas financeiras? Você sabe como o infarto é doença exigente, gosta de gente rica, bem vivida, superalimentada, talvez mal dormida. Nem sei se se dorme mal, bem acompanhado... Já pensou? Um dia, bate aqui na U.T.I. uma herdeira privilegiada e o papai dá uma de Cinderelo. Pode ser até uma viuvinha inconsolável ou uma órfã apetecível. - Te manca! Vê lá se uma grã-fina vai dar bola para um "pau de arara" com semelhante anatomia... - Não sou nenhum Adonis, certo. Mas sirvo para o gasto, ora essa. Você não viu o nosso superintendente? Também é "pau-de-arara", com um sotaque pernambucano de lascar. E não ganhou a "loteca matrimonial?" Chegou, viu uma bela herdeira e venceu. Há poucos anos, era um médico sem clínica particular, como nós. Agora... Puxa vida! Você já pensou em falar com ele? Tem de marcar audiência um mês antes. A secretária - aliás é uma boazuda! - parece ter um rei na barriga. Dizem ser "galho" dele. E a pose quando nos recebe! Ouvindo a longa tirada, o supervisor esmagou, no cinzeiro, o toco do cigarro, já no filtro. Depois de expelir a última tragada, comentou: - Dizem, lá fora, só haver três maneiras de médico ficar rico: o "golpe do baú", acertar na loteria ou herança de parente milionário. - Atualmente - completou o colega, para se fazer um pé-de-meia razoável, ou a gente sai para cirurgia embelezadora, tratamento

de celulite, combate à obesidade e certas fisioterapias sem falar de florais ou faz cesariana de madame e ortomolecular. - Por quê de madame? - Ora, grã-fina não gosta de parto com dor. Pede logo cesárea e o doutor fatura mais. E, assim, vai... - Infelizmente, essas coisas acontecem. Mas não estou muito interessado em dar do golpe do baú. Depois, a mulher começa a lançar na cara da gente: "o dinheiro é meu, veio do meu pai, você ganha uma mixaria!" Ou passa a gente na cara, sempre o pior. Tá doido! Vou arranjar um negócio menos complicado. A gente tem mesmo de trabalhar não tem? Então, vou ficando até encontrar uma boa oportunidade profissional. - Não deixa de ser uma idéia. Esperar, esperar... O telefone estridula e o supervisor atende: - Sim. É o supervisor de plantão da U.T.I.. Mais devagar, rapaz. Repita, com calma. Acidente no Morumbi? E estão vindo para o Pronto Socorro... Quando? Nove e meia? (Olha o relógio de pulso). Não faz muito tempo. - Passam cinco minutos das dez horas - intervém. - Duas? Um casal? Vejamos: suspeita de fratura de base de crânio, hemorragia interna e fraturas nos membros. Superiores ou inferiores? Sim... sim... Informações da Rádio Patrulha. Está bem. Vamos preparar o material. Até logo. Desligou e expediu a primeira ordem à enfermeira, pelo interfone: - Dona Lúcia Helena, a senhora quer dar uma passadinha aqui, por favor? - Sim, doutor - soou a voz feminina, ligeiramente anasalada, enquanto se voltava para o colega: - Você ouviu tudo. Comunicação do serviço de emergência, relatando um acidente grave. Fraturas e hemorragia interna, no rapaz. Voltou ao telefone: - Já sei. A senhora quer fazer o favor de mandar preparar o material de urgência e avisar o Centro Cirúrgico? Ora, sei lá se teremos de intervir imediatamente! Acho melhor preparar dois boxes, aqui mesmo na U.T.I.. Há mais recursos, ora essa! Aliás, a sala de operações deve ser aquela usada para cirurgia cardíaca. Certamente é algum grã-fino enchendo a cara, e encontrando o inesperado. Como? Ora, não há dúvida, comunique ao anestesista. Dona Lúcia Helena já saiu pra procurá-lo. Desligou e, enquanto a enfermeira-chefe ia saindo, avisou-lhe: - Dê conhecimento ao Mânlio. É o cirurgião-chefe de plantão, no repouso da cirurgia. Os movimentos foram precisos.As palavras, rigorosamente as necessárias. O intensivista acompanhara a conversa telefônica e achava confortável trabalhar com um sujeito assim, tranqüilo, eficiente, frio, pelo menos na aparência. Lá fora, uma garoa fina substituía o intenso calor castigando o paulista desde cedo. E não é a Paulicéia o único lugar do Brasil com as quatro estações todos os dias?

4. Intervalo .... mas não grande

A caranguejola (como o enfermeiro-de-plantão apelidava a ambulância) deveria demorar uns quinze minutos. Sirene rotativa de sinal vermelho, o motor novo e um chofer desabusado suficiente para romper o trânsito, na hora do "rush". Grimário saíra da sala, enquanto Francisco, mais tranqüilo, continuava no sofá estofado, quase a fio comprido, devaneando. Boa pedida, uma quatrocentona rica. Mas o diabo era mesmo a paixão por uma colega por ginásticas inconcebíveis de um sub-tenente aposentado, seu pai, conseguira, concluído o curso

normal, ingressar na Faculdade de Medicina, em terceira tentativa. Por isso formara-se aos vinte e oito anos e, agora, beirava os trinta. Morena enxutíssima, no segundo ano de residência, só falando em "socialização da medicina" e nas experiências espetaculares de Fidel. Também com acupuntura, um pouco de taoísmo e umas pitadas de marxismo, pode-se fazer "medicina de pés descalços". Lembrou-se do sertão nordestino, da infância, o médico a trinta léguas, o farmacêutico semi-analfabeto, as tissanas, as garrafadas, as simpatias, balas extraídas a ponta de punhal, gengibre para estancar hemorragia e, afinal de contas, ninguém nasce para semente. A Faculdade na Paraíba, poucos acreditando nela, professor de anatomia vindo do Recife, falta de cadáveres, um microscópio para dez. Entra novamente o supervisor e, mais uma vez, avança para o telefone: - Mânlio? Sei, meu sotaque é inconfundível! E daí? Pode ficar certo, não desceu aqui, nenhum disco voador. Apenas vão chegar dois acidentados. Um casal enfiou as fuças numa jamanta, ou vice-versa. Como aconteceu? Amanhã eu vou à delegacia saber, somente para satisfazer a sua curiosidade... Gozador? Decerto, neste mar de rosas. Pois, vá lá. Os dois veículos se enfrentaram na Ladeira do Morumbi, bem naquele cruzamento, onde há um pisca-pisca. Sim, sim, farol. Ou melhor, para ser mais exato, semáforo, tá? Um deles ultrapassou o sinal. Sim, de frente. Claro, com um caminhão daqueles nunca acontece nada, quando a batida é num carro de passeio. Mas o Mercedes

... uma mulher, carro, seu calhorda. A mulher ia dentro, com o motorista. O Mercedes acabou, se lhe interessa esta parte. Sei lá se você não é sócio de um ferro-velho! Olhe aqui, meu chapa: a dona apresenta - segundo hipótese alheia, claro - suspeita de fratura dos membros superiores e hemorragia interna. Chegaram, sim. Vamos levá-los à U.T.I. e verificar. Para fim de papo: seria bom se você também pudesse dar uma espiada. Ótimo. Espero. Desligou e voltou-se para a enfermeira-chefe: - Dona Lúcia, tudo pronto? Ela acabara de entrar, menos tranqüila. - Sim, doutor. - Vamos colocar os dois pacientes na sala de exames e, enquanto Francisco - anda rapaz! - vê o problema do motorista, vou examinar a moça. Avise o Banco para providenciar sangue urgente. Temos uma suspeita de hemorragia interna. - Pode deixar, doutor, Tomarei todas as providências. Formalíssima, olhos amendoados aparentemente inexpressivos, bata imaculadamente branca, passo rápido. - Prova provada de eficiência do "know-how" japonês. - Embora apenas nissei. - De qualquer modo, não me serve. Dizem serem atravessadas ... - gracejou. Dirigiram-se às duas macas, na sala de terapia. Cada um procurava trabalhar o mais conscienciosamente possível, quando, de repente, inquieto, Francisco se voltou para o colega: - Grimário, dê uma espiada aqui neste paciente. Há hipótese de derrame grave, ao menos pela reação abdominal. Enquanto isso, vejo a moça. Brutal, este trauma craniano. Fratura exposta do fêmur direito. Hum... Um bruto hematoma na cabeça do úmero esquerdo. Fratura, na certa. Quer saber de uma coisa? Vou pedir uma radiografia da cabeça. - A moça aqui também levou uma bruta sarrafada. Parece moída, fala, preparando a veia do rapaz. - Dona Lúcia - chamou Grimário. - Diga, doutor. - Por favor, peça ao Raio X para mandar-me um aparelho portátil e um técnico. Desaconselha-se o deslocamento do paciente. - Sim, doutor. Enquanto a enfermeira saía, Grimário indagava: - Muito grave? - Uma verdadeira carnificina. Melhor não arriscar a movimentação. Afinal de contas, utilizaremos o Raio X transportável e um cara encarregado de manejá-lo? Um repentino silêncio. Até parecia terem as paredes brancas, transfundidas de luz, devorado os derradeiros sons do mundo, enquanto as lâmpadas golfavam hemoptises de glóbulos brancos. Procedidos os exames radiológicos possíveis com um aparelho transportável, o supervisor examina as chapas e conjectura quanto

à necessidade de uma intervenção cirúrgica de urgência. Certamente, indicar-se-ia uma laparotomia exploradora. Mas isso transcendia à sua capacidade profissional. Gostava mesmo de U.T.I. e quanto à cirurgia, a segurança de toda a equipe de plantão no HC repousava na capacidade do amigo Mânlio, além de colega, conterrâneo. Continuava observando o paciente, comparando os sinais clínicos com o achado radiológico, para poder colaborar com o cirurgião na escolha do procedimento médico mais adequado. Nisto chega Mânlio, o mais respeitado cirurgião geral do Hospital Central. Profissional bem sucedido, ninguém conseguia entender porque insistia em continuar como cirurgião-chefe da equipe de plantão de sexta-feira. Há mais de vinte anos lá estava ele com aquele desvelo. Os residentes de cirurgia brigavam para ajudá-lo, buscando, em cada trajeto do bisturi, do afastador, da pinça, da tesoura uma lição a mais. Não gostava de passar os seus pacientes operados para a equipe de rotina. Solteirão empedernido, quando lhe perguntavam porque jamais se casara, saía-se com esta: - Casei com a cadela do Robinson Crusoé... - Examina cuidadosamente o paciente, ausculta, palpa, percute, observa detidamente as chapas radiográficas e vaticina: - Grimário, vamos levá-lo imediatamente para o Centro Cirúrgico, enquanto preparo a equipe de porta. Já falei com Eliomar, ele me ajuda e você pede a dona Margarida para preparar a sala grande. Pode haver necessidade de uma toracolaparotomia e a sala grande é mais confortável. Consultou o relógio, 22:50h. O supervisor da U.T.I. tira o fone do gancho e... - Dona Margarida, é o doutor Grimário. A senhora quer preparar a sala de cirurgia de tórax? Tenho uma suspeita de hemorragia interna. Batida de carro. Prefiro a sala de tórax, para o caso de ser necessária uma toracolaparotomia. A dona Lúcia lhe havia avisado? Não precisa se preocupar com a busca de um auxiliar. Providencie sangue e pode chamar o anestesista. Já falei com Mânlio e ele vai levar Eliomar. Do outro lado, com o seu gesto de enfiar o polegar e o indicador na cabeleira loura, procurava concluir: - Está bem, doutor. Mas ele ainda insistiu: - Apresse a dona Lúcia na U.T.I. e veja quem é o cardiologista de plantão na emergência, pois precisamos dele na cirurgia. - Pois não, doutor. Desligando, resmungou: - Deve ser alguma caixa alta, para justificar tamanho interesse. Mas nem por isso realizou sua incumbência com menor dedicação: aquela mesma eficiência profissional produto do treino, independente do interesse especial por um paciente desconhecido.

5. No Box no. 5

Paciente deitada. Nenhum movimento, além de uma respiração lenta e superficial. O belo vestido de noite, em farrapos, substituído pela camisola do hospital, mal lembrava a jovem elegante, cheia de amorosa palpitação, saindo de casa para uma escapadela da monótona vida conjugal. Tinha, de sobra, dinheiro e posição social, vitalidade e apetite para a vida. Os colunistas sociais de maior prestígio decantavam-lhe o charme aos quatro ventos. "Aconteceu no solar Stronheim. São Paulo de A a Z se fez representar à recepção. Denise, "née" Marchioni, com sua beleza, num longo preto de Dior, toda encanto. Sérgio, jovem capitão da Indústria de

Alimentos Crescente, distribuía suas atenções de anfitrião, servindo o melhor "scotch", para comemorar mais um ano de vida matrimonial." Não se pode falar, propriamente, em dia aziago. Mas, para provar a descrença em supertições, Sérgio e Denise haviam casado no dia 13 de dezembro, numa sexta-feira. O intensivista tenta medir a pressão da paciente. Parece em dúvida: novas tentativas frustradas. Ansioso, ar desolado, pede o auxílio da enfermeira. - Dona Vivian, não ouço bem a pressão desta paciente. Talvez, o cansaço. Quem sabe? A preocupação. Não ouço mesmo, Deus meu! Veja se me arranja outro aparelho - solicita o Dr. Francisco, mal contendo o nervosismo. - Pois não, doutor - responde a enfermeira de cabeceira. Ele volta a auscultar o peito da moça, crescendo-lhe a preocupação. - Penso não se tratar de aparelho. Veja se a senhora consegue ouvir a pressão. O pulso acelera-se perceptivelmente. A enfermeira bombeia o aparelho, aguça o ouvido e responde: - Doutor. Também não ouço nada. - Nem pelo pulso está dando. - diz o médico, quando a conversa é interrompida pela entrada de outra figura de branco na sala semelhante a uma campânula fosforescente. - Partiu daqui um chamado ao Banco de Sangue? - indaga o novo personagem. - Sim, daqui mesmo - responde-lhe o intensivista. - Então, vou retirar uma amostra do sangue dela. - Prefiro a transfusão imediata independente do grupo sanguíneo. A pressão sumiu e é melhor arriscarmos com "O" negativo. O mais rápido possível! - completou o intensivista ansioso. - Vou buscar o "O" negativo, mas preciso fazer a prova cruzada - aconselhou o laboratorista. - Tudo bem - respondeu-lhe o intensivista acrescentando: - Dona Vivian, a senhora quer trazer o Bird do Box 1? - Prefiro o mais próximo, o 3 - sugere a enfermeira. - Não. Traga o do 1, regulado há poucos dias. Parece mais em ordem. Aproveite e chame o anestesista de plantão para entubar a paciente. Dada a ordem, vai ao telefone: - Quem está falando? Por favor, venha urgente à U.T.I.. É Francisco. Obrigado. Correm rápidos os segundos. Quando chega o jovem colega, barba retinta, bem aparada, comenta o intensivista: - Não me lembro de tê-lo visto antes... - O nosso serviço passou por uma série de modificações. Acabo de chegar dos Estados Unidos, onde fiz estágio no Hospital Universitário de Minneapolis. - Este caso exige uma entubação rápida. Um acidente automobilístico há poucas horas, entende? A paciente projetada do carro vem apresentando algumas alterações na freqüência respiratória, pulso filiforme e pressão inaudível. Acho melhor você tentar fazê-lo. - Também não ouço nada - disse o anestesista. Nem com o aparelho: a paciente não apresenta pressão perceptível. Trouxe sonda, laringoscópio e balão. Possa entubá-la agora. O intensivista respirou fundo. Sentia-se muito aliviado e disse, antes de sair: - Se precisar de ajuda, estarei do lado. - Esta cama de recuperação não parece muito boa para entubação endotraqueal. Mas o senhor pode ajudar-me, provocando uma hiperextensão da cabeça. Assim, haverá melhor exposição da glote. - OK, rapaz. Prefiro ser tratado por você. Movimentaram-se agilmente. Cuidadosas as tentativas iniciais do anestesista, davam a impressão de não pretender causar danos à tão bela dentadura. Com muito jeito, introduziu o canudo de borracha na traquéia da paciente. Algumas tossidas à passagem viscosa do tubo, revelaram o único sinal de reação da acidentada. - Agora melhorou e a gente trabalhará mais sossegada. O traumatismo, pela sua violência, reduziu-lhe a reação. Vamos aspirar mais um pouquinho e instalar o Bird. Com isso, garantiremos a respiração - concluiu o anestesista. - Realmente, a aplicação de um sistema de respiração artificial tem salvo muitas vidas. É sempre mais seguro a instalação de um respirador mecânico para garantir o processo respiratório. - Apesar de não fazer milagre, a respiração assistida, bem controlada, permite a atuação do médico em áreas até há pouco consideradas de exploração impossível - completou o outro. - Às vezes, temos recebido casos

onde o eletroencefalograma transmite a idéia de morte cerebral, principalmente depois de uma parada cardíaca ou em acidentes vasculares cerebrais. - Isto, sem falar nos traumatismos cranioencefálicos. Surge um dilema: constatada a morte cerebral - indagou o anestesista - por quê continuar com respiração artificial? - Nós, de rotina, atendemos tais casos, caro colega. (A cerimônia ia cedendo lugar a intimidade). Sempre uma discussão constrangedora, quando se repete, em nossa mente, o quadro inteiro das velhas discussões sobre a eutanásia. - Parece tratar-se de um problema de âmbito internacional. Nos Estados Unidos, onde permaneci alguns anos, a lei impede o desligamento dos respiradores, antes da parada cardíaca. Os jornais têm publicado casos de pacientes, com a morte cerebral evidenciada por eletroencefalograma, permanecer vivo, graças aos métodos mecânicos de respiração artificial, controlada automaticamente. Mas, em futuro próximo, tanto a lei como a moral, vão aceitar a tese de evidente a morte de um cérebro, não se deve insistir em prolongar uma vida artificial, meramente vegetativa. - Aqui mesmo, tivemos um caso assim: uma senhora ficou três meses descerebrada, com respiração artificial - informou o intensivista, acrescentando: - Convenci-me ter aquela vida artificial permanecido por noventa dias devido a uma falha mecânica no respirador. Se o aparelho não houvesse pifado, acredito estar ainda vegetando. Por uma questão de curiosidade, solicitamos à administração do hospital o levantamento do custo da sobrevida daquela paciente, depois de constatada a morte cerebral. Infelizmente, soubemos a despesa daria para pagar o atendimento de trezentos casos de desidratação infantil, com uma permanência de vinte e quatro horas-dia. Ficamos abismados! Valeu a pena? Esta indagação persiste até hoje. O jovem anestesista sorriu. - "Chi lo sá?" O problema envolve uma velha discussão sócio-política: civilizações juvenis versus culturas senescentes. E o interessante é verificar-se, hoje, o duplo cuidado extremo com a infância e a velhice, a união da pediatria com a geriatria... - É sua opinião? - Bem, não sou político, nem fiz medicina pública ou social, ou outro nome qualquer. Mas penso na explosão demográfica, campo onde os velhos pouquíssimo contribuem. E num mundo governado preferentemente por velhos. Não vão à guerra , mas armam os homens válidos, sua opinião não é a mais válida. - Um pacifista? - Não, um homem ainda jovem. - Sob seu ponto de vista pessoal, qual o momento a considerar o paciente clinicamente morto? - Olhe, foi-se o tempo onde o conceito de morte apresentava uma relação direta com os batimentos cardíacos. Dizia-se: parou o coração, morreu. O desenvolvimento tecnológico, iniciado ainda na década de 50 e intensificado de maneira mais evidente nos anos 80, não somente aumentou as esperanças de vida, como possibilitou a um número cada vez maior de pessoas, a experiência de ter chegado bem próximo da morte e dela ter voltado para contar o visto e sentido num estágio sobre o qual se tem pouca informação. - Como assim? - A vida de um especialista em anestesiologia ou de um intensivista é muito rica de vivências com parada cardíaca. Por mera curiosidade, quando nos familiarizamos mais profundamente com os pacientes, fazemos algumas perguntas das lembranças do período vivido em estado de coma, parada cardíaca ou um choque neurogênico lhes provocando uma perda dos sentidos. As respostas são muito desencontradas. - Lembra-se se algum viu São Pedro? - Olhe, não goze. Ainda não chegamos a este ponto. Alguns pacientes lembram de terem passado por situações agradáveis, outros tiveram sonhos fantásticos e certa ocasião, ouvimos um depoimento despertando o nosso maior interesse: quando uma paciente afirmava sentir saudade daquele momento, sensação de leveza, de tranqüilidade quase infinita. Ela ainda se recordava da duração do seu estado de coma: vinte e oito dias. - Bastante tempo. Na minha vida profissional ainda não acompanhei caso de coma tão longo.

Recordo-me de uma senhora, mãe de doze filhos, dizendo-se atéia antes de passar por uma experiência desta natureza e segundo as suas palavras: "Fiquei muito impressionada e meio deslumbrada com a existência do outro lado. Entrei em contacto com seres espirituais, alguns conhecidos falecidos e outros médicos, auxiliares no meu tratamento". - Como dizia, na medicina a transformação proporcionada pelo avanço da tecnologia é tão grande, chegando a modificar o conceito de morte. As discussões têm sido acaloradas e a questão se complica quando se discute o momento exato onde ocorre, principalmente quando se fala na possibilidade de usar órgãos para transplante. - Por falar em transplante de órgãos, acompanhou aquele caso de Taubaté, onde um Professor da Faculdade de Medicina acusou colegas docentes de cirurgia de retirarem órgãos antes da hora e vendê-los para hospitais? - Isto faz lembrar aquele filme, se não me engano, "Coma", onde havia uma verdadeira quadrilha cometendo homicídios na busca de órgãos transplantáveis. Foram até mais longe: criaram um sistema de leilão sui generis: as peças eram arrematadas como uma obra de arte. - Acredito não haver o pessoal de Taubaté atingido tal requinte, mas a celeuma jornalística foi grande. - Não podemos discutir hoje o fato da vida não residir na existência de batimentos cardíacos, mas na atividade cerebral. Para você não é difícil aceitar a tese de sua morte ser constatada por dois exames: eletroencefalograma e arteriografia cerebral, através das artérias carótidas. Em síntese, caracteriza-se a morte cerebral ante a inexistência de movimentos respiratórios voluntários, arreflexia universal e dilatação permanente das pupilas. - O problema dos transplantes tem ligação íntima com a morte cerebral, qual um dogma aceito pela legislação de países desenvolvidos para a definição de morte com vistas ao transplante de órgãos: não há volta possível. - Uma parada cardíaca com duração inferior a cinco minutos, apresenta uma situação onde, descartada a lesão cerebral por falta de oxigenação, o paciente volta à vida. Neste caso não houve morte cerebral. - Evidente. Aí vem o caso da "quase morte". Li um trabalho do médico norte-americano Raymond Moody com um relato após ouvir 150 pessoas passando pela chamada "morte clínica" ou "experiências de quase morte" e, no livro "Vida depois da Vida", registrou uma conclusão interessante "a grande semelhança de relatos, a despeito do fato de virem de pessoas com diversas religiões e diferentes circunstâncias sociais e educacionais". Com base nestas semelhanças, Moody descreve um caso típico: ao ser declarada morta, a pessoa começa a ouvir um ruído desagradável, e, ao mesmo tempo, vai se movendo rapidamente através de um túnel longo e escuro. Depois, se encontra fora de seu corpo físico, vendo o corpo à distância e assistindo às tentativas de ressurreição num estado de perturbação emocional. Neste ponto, normalmente, a pessoa se encontra diante de espíritos e, em alguns casos, reexamina sua vida, uma recapitulação panorâmica e instantânea. De acordo com Moody, muitas pessoas dizem relutar em voltar à vida, pois a esta altura imaginam-se inundadas de sentimentos de alegria, amor e paz. A experiência sempre afeta a vida dessas pessoas, especialmente suas opiniões sobre a morte e suas relações com a vida. - Eu penso completamente diferente do Moody. Certa vez, jogando futebol, levei uma bolada na cabeça e desliguei. Acordei na U.T.I. da Santa Casa e a minha primeira vontade foi soltar os meus braços amarrados. Não me recordo de nada, nem ao menos da pancada na cabeça. - Veja o caso desta paciente. Diria estarem presentes: inexistência de movimento respiratório, arreflexia universal e dilatação quase permanente das pupilas. Terá volta? - O "quase" na dilatação pupilar é sempre um fio de esperança. Quase em medicina é irracional. Somos racionalistas juramentados e acredito nenhum médico afirma diante de um quase. A conversa continuou, a meia voz, naquele ambiente depressivo. - Anestesista, você acredita em azar? -

Por quê? - Veja o relógio da U.T.I., sexta - 13. - Para muitos, nada além de uma noite de verão, ou, melhor, de fim de primavera. - Inventar esta batida na Ladeira do Morumbi! Qual o seu programa? A gente não tem nada com isso. - A gente não tem nada a ver com isso? - Sabe, ela não ia sozinha, não. Acompanhava justamente aquele cara com suspeita de hemorragia interna, enviado pelo Grimário para o Centro Cirúrgico. - Parece sim. E o serviço de registro encontra dificuldades em localizar as respectivas famílias. - Ambos casados... - ...Mas não entre si. Mais uma pausa. Novo silêncio. Cuidadoso, o anestesista lentamente regula os controles do Bird na ânsia da melhor forma de assegurar uma respiração adequada à paciente. De novo o intensivista quebra o silêncio. - Enquanto você controla o Bird, vou dar uma passada no Grimário e ver o outro paciente. É logo em frente no Box 2. Qualquer coisa me chame. - Pode deixar comigo. Morte clínica, morte cerebral, morte aparente. Uma sombra multiforme, debatendo-se nos cantos, como um opaco morcego multimilenar ou um exótico inseto preso numa teia imperceptível, até sumir-se, como um besouro, nos profundos desvãos da memória. Um arquétipo em agonia.

6. No Centro Cirúrgico

- Imagine, começar uma cirurgia destas à meia noite. É a oitava cirurgia de emergência no meu plantão - ar cansado, D. Margarida, supervisora do Centro Cirúrgico, inicia um diálogo com o Dr. Eliomar, cirurgião auxiliar. - Verdade? Nem havia notado. Mânlio parece atrair enguiço. Oito operações, num plantão iniciado às sete da manhã. - Doutor Eliomar, além de se benzer, o senhor deve ir a um terreiro. - Você conhece algum bom? - Lá na Favela do Vergueiro há um bacana. Quem fala muito nele é a Luzinete, do Centro de Material. - Aquela lá, com tanto colar e pulseira parece até a Mãe Menininha. Mãe de Santo, na certa. - Se o senhor entrar a qualquer hora no Centro de Material, topará com um altar onde se incluem São Benedito, São Jorge, Santa Bárbara e duas velas acesas o dia inteiro. - E a administração, tem conhecimento? - O administrador é pau de arara, baiano de Salvador mesmo. Tem um medo dela! Há uns dois anos atrás, a enfermeira-chefe do hospital tentou acabar com o mini-terreiro e foi ameaçada de sofrer um acidente. Não ligou e deu um prazo de vinte e quatro horas para o desmonte do terreiro. Teve um azar danado. No dia seguinte, entrou com o carro dela na traseira de um ônibus da CMTC e ficou seis meses engessada na ortopedia. E São Benedito, São Jorge e Santa Bárbara voltaram pro altar no Centro de Material "Gloriosos e Triunfantes", no dizer de Luzinete, quase promovida a "princesa do terreiro". - Ah! E a senhora acredita haver alguma ligação? - Não sei não. A turma da enfermagem morre de medo da Luzinete deitando e rolando no Centro de Material. Arranja folga a mais. Chega atrasada quando bem entende. Não dá plantão no Natal, no Ano Novo e menos ainda no dia 2 de Fevereiro, festa da Padroeira dela. Dá passes e faz benzimentos às claras. O filhinho do chefe da Lavanderia teve um problema de vista, foi a tudo quanto era médico e só melhorou depois dos passes da Luzinete. A mesma coisa aconteceu com o marido da dona Olga, Enfermeira da Psiquiatria, louco

varrido. - Também, depois de agüentar aquela megera algum tempo, tem mesmo de acabar doido. - É, mas depois dos passes o homem ficou bonzinho. - Bom até demais. Para pagar os serviços da Luzinete ele virou galho dela. - E como o senhor sabe disso? - Tudo neste hospital é motivo de assunto na residência. Nas noites de folga, fora do plantão, a gente fica só escutando fofoca. E por falar em fuxico, a turma anda metendo a ripa no Grimário com aquela japonesinha da U.T.I.. - Dona Lúcia? - Ela mesmo. - Não acredito nisso. Logo dona Lúcia, casada com o doutor Raul do Laboratório Central. - E daí? - Não é novidade! Não dá nem pra pensar. A japonesinha toda certinha, arrumadinha, eficiência total, com aquele crioulo boliviano parecendo um hipopótamo? - Olhe, dona Margarida, não queira dar uma de inocente. - Neste hospital a mulherada gosta de um programazinho. Quando a gente entra na residência, os RII dão logo a ficha da piranhada. Com exceção da turma da clínica médica, onde a unanimidade é lésbica e não gosta de homem a não ser os dois auxiliares bichas, a mulherada deste hospital é fogo. - Eu jamais imaginara haver tanto assunto deste gênero aqui. - Quantos anos a senhora tem de hospital? - Aqui? Quinze. - Ah! Então não venha dar esta de inocente. No ano passado, pegaram o administrador num motel com a diretora de enfermagem do hospital, casada e muito bem casada. - Não diga. - Foi tão chato. Os dois estavam num motel na Raposo Tavares, perto da Granja Viana, quando houve um assalto. A polícia chegou e logo começou um tiroteio danado. Morreram quatro: três assaltantes e um policial. O escândalo foi tremendo. Todo mundo em cana para prestar declarações na Delegacia da Vila Sônia. Por azar, o investigador chefe do plantão aqui do hospital estava na Delegacia bem na horinha. A dona Agda empalideceu quando viu o investigador. - Ela até é meio branquela. - Como não podia deixar de acontecer, o administrador pediu ao investigador para não comentar o fato com ninguém. - Pedir segredo numa hora destas equivale a mandar recado. - E não deu outra. No dia seguinte, todo o mundo no HC estava sabendo da aventura da dona Agda. - Por isso ela entrou de licença? - Isso eu não sei. O Administrador não pode nem ver a cara do investigador chefe. - Doutor Eliomar. O senhor gosta de uma fofoca, hein? - Nada disso. Em sociedade, tudo se sabe. - Deixa isso pra lá. Este caso é mesmo complicado. O doente parece muito moço. Aparenta uns quarenta anos. Uma hemorragia incontrolável. Tomou seis frascos de sangue e a pressão não sai do zero. Tentaram três aparelhos de pressão. Apressadamente, ar cansado e preocupado, o cirurgião-chefe adentra o Centro Cirúrgico. - Eliomar, tudo pronto? - Sim, Mânlio. Só falta o paciente. Já vem subindo. E aí? - Acho melhor começarmos com uma laparotomia exploradora. Sem a menor dúvida deve haver sangue na cavidade. Não. O melhor mesmo é uma tóraco-laparotomia, porque a chapa mostrou várias costelas quebradas, sugerindo uma perfuração alta. - Então há possibilidade de lesão pulmonar? - A princípio não parece. Pelo menos a chapa não revela zona de derrame. O mais evidente é líquido na cavidade. De qualquer maneira, tendo de abrir, uma toracolaparo só ajudará. - E ele vai agüentar uma tóraco?... - Imprevisível qualquer coisa diante do estado de choque. Não vejo alternativa. - Doutor Mânlio, o doente está na mesa, corta o diálogo D. Neide. - Vamos, então, Eliomar. - O ritual operatório inicia-se muito antes do cirurgião pegar no bisturi. Ao ingressar no Centro Cirúrgico, toda equipe passa pelos vestiários colocados estrategicamente fora das salas de cirurgia onde, seguindo uma técnica internacionalmente usada, se prepara para vestir o avental e calçar as luvas. - Óxente! Este Centro Cirúrgico nunca entra na linha - fala em altos brados o cirurgião, logo após abrir a torneira do lavabo. - Por quê? - Veja, Eliomar. A gente chega para lavar as mãos e a merda desta água, de tão gelada, dá até um frio na espinha... Todo mundo sabe, mesmo no verão, a gente prefere água quente. No inverno, então, quando

se abre a torneira, vem aquele jato frio, dando vontade de nem operar mais. - Ainda não me acostumei com esta técnica moderna de não usar mais escovas. Este líquido mata qualquer micróbio? - Acho melhor o sistema antigo. A gente escovava as mãos por mais de cinco minutos com escova dura e sabão de coco. Assim os micróbios morriam até de cócegas. - Na verdade, após a descoberta do antibiótico, ninguém liga mais pra assepsia. Até virou rotina. Qualquer cirurgiazinha: lá ia uma batelada de antibióticos. E de largo espectro. Penicilina já era. Na verdade, micróbio hoje, só do tamanho de elefante para cima. - Não vá atrás disso não. Quando a gente pega uma peritonite brava, resistente a qualquer antibiótico, não tem quem se salve. - É, mas o antibiograma tem ajudado muito. - Sim, ajudar ajuda, mas não resolve. Serve para indicar qual o tipo de antibiótico eficaz para aquele micróbio específico. Já vi vários casos de micróbios resistentes a todos os antibióticos conhecidos. - Mesmo assim, muitas vezes, a gente pede um antibiograma e quando o resultado chega o doente se curou sozinho ou então, de tantas tentativas, o germe adquiriu maior resistência. - E daí? - Morte na certa. Ou Deus cura ou o doente veste o "pijama de pau". - Mas, o povo usa e abusa. Todo o mundo conhece antibiótico, basta um resfriado à-toa e pumba: cloranfenicol, amplicilina, gentamicina e assim por diante. Depois, quando o micróbio fica resistente, aí é um Deus nos acuda. Coisa engraçada! Nos Estados Unidos, Inglaterra e França, entre os países mais conhecidos ninguém consegue uma penicilina sem receita médica. - Mas, isto deve ser somente nos grandes centros. - Não. No começo deste ano fui aos Estados Unidos e em New York aluguei um carro para ir ao Canadá. Logo em Boston senti uma dor de ouvido muito forte. Pois bem: nenhuma farmácia quis me vender qualquer antibiótico, mesmo eu me identificando como médico. Sem receita, nada. Durante todo o trajeto de Boston até New York, novamente, atravessando Montreal, Ottawa, Toronto, Niagara Falls e Rochester, não consegui, em nenhum lugar, comprar antibiótico. - E daí? - Quando cheguei em New York, como bom brasileiro, dei um jeitinho. Conhecia um dono de farmácia e tive a chance de comprar o antibiótico usado por mim para aquela dor de ouvido,. Foram nada menos de nove dias com otite braba. - Ora. Até isso chegar ao Brasil, ainda tem muito chão. - Imagine alguém ir a uma farmácia, pedir um antibiótico e ouvir do farmacêutico: - Não posso vender sem receita médica. Logo o infeliz vai escutar: - Sabe com quem está falando? E aí, até logo legislação. - Vamos começar, então. - Anestesista, posso começar? - Pode, sim. O paciente está anestesiado sozinho com sangue sob pressão e o pulso muito fraco - informa preocupado o anestesista. - Trata-se de uma verdadeira urgência. - Procedida a incisão da pele, o bisturi corta o tecido celular sub-cutâneo, aponevrose, uma tesoura afiada abre o peritônio e, enquanto o auxiliar tenta rapidamente pinçar os vasos sangrando abundantemente, Mânlio corta o silêncio: - Olhe aqui! - Meu Deus Quanto sangue na cavidade! O anestesista interrompe o diálogo mal iniciado: - Dona Neide, a senhora quer pedir mais sangue ao Banco, o pulso fibrila! - Tem razão - fala Mânlio, assustado. Nunca vi tanto sangue na cavidade. Olhe aqui. Olhe aqui. Veja. Lesão no fígado, duas, três. Êpa! - Vamos suturar isto aqui - entra o auxiliar. - Não. Vamos pinçar primeiro. Precisamos debelar esta hemorragia o mais rápido possível. Com agilidade espantosa, a equipe tenta pinçar as veias sangrentas, quase a um só tempo. Os segundos são preciosos. Qualquer demora pode resultar em choque hipovolêmico irreversível. - O fígado parece sob controle - Mânlio, mais tranqüilo, quebra o silêncio. Dura pouco o alívio. Primeiro, um pontinho rubro. Logo em seguida, um verdadeiro lençol de sangue, sempre um sinal temido, artéria lesada. Cuidadosamente o cirurgião tenta pinça-la e ao conseguir suspira mais tranqüilo. Mais à esquerda, um jato rubro escurece o campo cirúrgico. - Êpa - intervém o auxiliar. O baço parece

uma papa. Com esta hemorragia toda tenho dúvidas se conseguiremos tira-lo com vida da sala. - Concordo. Vamos fazer logo uma esplenectomia. Ele poderá viver perfeitamente sem baço. Sem fígado, não. Pince aqui. Vou isolar o baço para tira-lo. Rapidamente isolam o baço e iniciam uma esplenectomia, tentando debelar mais um foco de hemorragia. Concluída a retirada do baço, o sangramento ainda prosseguia, embora mais lento. - Veja aqui, Eliomar. Apesar da esplenectomia e das suturas no fígado, a hemorragia continua. - Vamos limpar mais um pouquinho. Quem sabe é só sangue coletado. - Mas parece ainda ter alguma coisa. - Não será algum vaso da parede? - Não. Na parede não há nada. - Deixe ver. Retiramos o baço, suturamos o fígado e ressecamos os intestinos... - Ah, não! Tá vendo aqui no estômago? Bem próximo do piloro? - Olhe aqui! - Eita! Até no estômago? - Veja! Quase ia passando despercebido. Justamente em cima da curva. - Tem razão. Vamos ver se a gente acerta. - Não compensa gastrectomizar só por causa desta lesão. - Ainda não sei. Nos casos de úlcera perfurada alguns cirurgiões preferem gastrectomizar o paciente. Outros acham melhor suturar a úlcera, preparar o doente e, quando o seu estado geral melhora, fazem a gastrectomia. Parece uma pena tirar um estômago só por causa desta perfuração. Neste caso, a lesão é traumática e na úlcera ela é crônica. - Quem sabe a gente arriscaria suturar o estômago? Como o cara vai ficar em observação, pode-se conseguir evitar a gastrectomia. Cuidadosamente, suturam a perfuração do piloro, confiantes na solução do problema. - Incrível. Olhe aqui! O intestino delgado também apresenta perfuração. - É mesmo. Uma, duas. Vamos suturar logo. - Você contou as compressas? - Sim. Até agora foram dezesseis. - Tenha muito cuidado. Imagine, depois de uma maratona destas, ainda deixar compressa na barriga. - Não é a primeira vez. Tal fato é comum? - Pelo menos comigo, não. - Veja aqui. Mais uma perfuração. Até agora são três, só no intestino delgado. Pelo visto, a pancada não deve ter sido pequena. Foi embora o baço, o fígado tá um negócio e ainda três perfurações no intestino. - Realmente, a coisa não está muito fácil. Anestesista, como está a pressão? - Parece melhorar. Aumentei a pressão do sangue e o pulso ficou mais cheio. O pior passou. - Bem, espero não haver mais perfuração. - Já não era sem tempo. - Vamos limpar a cavidade. - Dona Neide, a senhora pode me conseguir soro fisiológico morno, com urgência? - Pois não, doutor. - Ô Mânlio, pra fazer tanto estrago é preciso uma pancada muito grande, após um impacto tremendamente violento. - Nem sempre. Batida de carro geralmente traz conseqüências imprevisíveis. Às vezes, a gente vê cada acidente, carro virado pro ar e não acontece nada com ninguém. Em outras, uma batidinha de nada e o cara entra no hospital com sangue até nos olhos. É difícil mesmo. Acredito ser uma questão de ângulo. Com o impacto, ele foi de encontro ao volante, provocando as perfurações. Há também costelas quebradas. Cortando o diálogo, o anestesista insiste: - Mânlio. Quanto tempo você ainda vai levar? Utilizo uma técnica anestésica superficial e como o paciente está querendo reagir, seria bom se soubesse quanto tempo mais teremos de operação. - Praticamente terminamos. Vou limpar a cavidade e fechar a parede. Pode contar, no máximo, mais meia hora. - Pronto, doutor Mânlio. Eis o soro morno. O cirurgião pega o frasco de soro e observa uma temperatura elevada. - Vamos aguardar mais um pouquinho. A senhora mistura com um pouco de soro frio e conseguiremos uma temperatura melhor para a cavidade. Embebendo a cavidade com o soro, o cirurgião tenta limpar os últimos resquícios de sangue coletado. Instantes após, rompe o silêncio. - Mais um litro, por favor. Êpa! Ainda continua com sangue. Vamos ver se subsiste alguma perfuração. - Não. Não parece. - Acredito havermos conseguido debelar a hemorragia. - Dona Neide. A senhora quer providenciar um pouco mais de soro morno? - Vamos limpar bem esta cavidade. - Há ainda um

pouco de sangue aqui bem perto do antro. - Sim. Mas deve ser somente sangue coletado. Pegue mais compressas e não esqueça de contá-las. - Só faltava esta. - Anestesista. Tudo bem? A hemorragia parou. - Sim. A pressão parece estabilizada em 8 X 6. Nos casos de urgência a gente não sabe qual a pressão normal do paciente. Mas, de qualquer maneira, vou tentar elevá-la para uns 11 X 7. Um cara com esta compleição não deve ter pressão inferior a 11 X 7. A hemorragia parou, mesmo? - Sim. Não encontro mais nenhum vaso sangrando. Também não há hemorragia em lençol. Vamos fechar a parede. - Ok. Como você pretende fazer o fechamento: ponto contínuo ou separado? - Prefiro ponto separado, dá mais segurança. A incisão foi bastante grande. - Quer drenar? - Prefiro. Nestes casos sempre fica um pouco de líquido na cavidade e a absorção geralmente demora mais quando não drena. A senhora me arranja um dreno de Penrose? - Nem precisamos mexer no tórax - está integro o diafragma. - Só faltava perfuração pulmonar! Quanto tempo faz de cirurgia? - Duas horas e quinze. - Eu previa mais ou menos este tempo. Se fosse só esplenectomia e sutura de fígado demoraria menos. Mas, com perfuração intestinal, não tinha como diminuir o tempo de operação. - Tivemos um ato cirúrgico bastante rápido. - E por quê esplenectomizo mais rapidamente? - Não esqueça, como cirurgião pau de arara, tive a minha formação acadêmica no Pedro II do Recife. Lá, pela quantidade de esquistossomose, a gente fazia muita esplenectomia. - Quando a gente sai de lá, pensa nunca se adaptar fora da terrinha. Mas é um engano da peste, a gente perde o sotaque mais cedo do imaginado. - Nasci no Ceará. Em Guatú. Formei-me na Nacional e numa mais voltei pra lá, nem como visita. - Dizem ter o cearense o nomadismo do judeu. - Realmente, ele se adapta melhor com relação aos outros nordestinos. Rápida e cuidadosamente, a equipe prossegue no fechamento da parede. Peritônio, aponevrose, músculos abdominais, tecido celular sub-cutâneo e finalmente a pele já formando a futura e irremediável cicatriz. Terminado o último ponto, enquanto procedia a limpeza e assepsia da pele, o cirurgião talha o silêncio: - Você descreve a operação. Vou conversar com o pessoal da recuperação pós-anestésica para ver os cuidados pós-operatórios imediatos. - Esta de descrever a operação equivale a uma rotina capaz de encher até roda de trem. Ao acabar uma operação, nos transformamos em burocratas. O melhor seria gravar a descrição e depois passar à secretária. Cada vez exigem mais burocracia. Só faltam obrigar a operar de paletó e gravata. - E a coisa piora cada vez mais. O hospital arranjou um computador rejeitando tudo. Imagine você um computador burro, controlado por um leigo asno, decidir quantos tubos de catgut, quantos frascos de sangue, quantos gramas de antibiótico a gente deve usar num paciente. - Veja um exemplo. Dona Neide, por favor, quantos tubos de fio a senhora abriu nesta cirurgia? - Dezoito, doutor Mânlio. - Já pensou? Se o hospital cobrar 18 tubos de fio, dou meu pescoço à forca se o SUS não glosar a conta. Para receber depois tem de fazer uma justificativa maior ou igual a um rosário. - Para mim, nem tanto - intervém o anestesista. Depois de instalado um serviço de taxímetro não há mais problema. Começou a anestesia, ligo o reloginho e só desligo quando o cirurgião dá o último ponto. Anoto o tempo de anestesia e recebo por hora. - Não há nenhuma dificuldade? - Bem. O cirurgião e a enfermeira chefe concordando com o tempo anotado, o SUS paga. - Onde nós chegamos, o tempo anestésico governado por um triunvirato? - Uma autocracia é pior. - Prefiro democracia dirigida. - Ou ditadura da minoria? - Vamos mudar de assunto. - Sabe? Eu não gosto do sistema aqui do hospital. O cirurgião de plantão opera uma emergência e depois passa o paciente para a rotina, reduzindo a continuidade. A única exceção é para pacientes ricos ou políticos. - Neste caso, sua preocupação nem deve existir. Pelo visto, a vítima estava num Mercedes. - No meu

caso, sempre continuo o tratamento. Vou dar uma passadinha lá na recuperação, enquanto você termina a burocracia e prescreve a medicação. Não esqueça de ver com o anestesista o problema do sangue. - Anestesista, você precisa de mais sangue? - Vamos fazer assim: termino este frasco iniciado agora e você pode prescrever mais meio litro. - Com este, são nove frascos. Chega por enquanto. - Tá certo. Como agente não sabe a evolução, deixa uma veia só pro sangue e na outra fica o soro. Este frasco de sangue começado agora vai ser transfundido muito lentamente; até o fim do seu plantão ele ainda estará correndo. Passa das três horas da manhã. - completou o anestesista. - Está bem assim. Encontro você logo mais no repouso - diz Mânlio afastando-se da sala.

7. Na Residência do Hospital

Residente e plantonista trocam idéias. - Ainda dizem ser a residência do HC folgada! - Não é nada disso. Começa às 7 da manhã e vai até não sei onde. Temos de corrigir as anamneses dos internos e quando a gente comenta algum erro o cara fica braço e fala - "Não se preocupe, no próximo ano sou médico igual a você e a única diferença entre nós dois é você ser formado primeiro. Trata-se apenas de uma questão de tempo". - O pior, trata-se de uma verdade incontestável. - No próximo ano, mais um residente semi-analfabeto como nós, na praça da alegria. - Plantão três vezes por semana. A maior dificuldade do mundo: falar com o preceptor. Num plantão onde se atende 1.500 pessoas nas 24 horas, chamar o preceptor para ver um paciente para tirar dúvida torna-se um crime de lesa majestade. - Olhe. Só em pensar a demora de três anos! Fosse a comida melhor e as acomodações menos parecidas com um galinheiro, talvez suportássemos mais satisfatoriamente. - É mesmo uma merda. A gente termina um curso médico, iniciado a duras penas após um vestibular com oitenta candidatos para uma vaga, agüenta seis anos de pressões de toda ordem, aprende muito pouco de medicina prática, falta tudo, recebe um diploma, se inscreve no CRM, adquire o direito de exercer a profissão em todo o território nacional mas, de medicina mesmo, não manja nada. - Como estudamos em faculdades diferentes, talvez o seu caso seja diverso do meu. Durante o curso, o mínimo de acesso ao hospital. Ninguém gostada da nossa presença. Éramos marcados pela enfermeira sempre nos fiscalizando. No 5o ano aprendi a viver melhor. Como queria seguir cirurgia, comecei a peruar a clínica cirúrgica através do caminho mais fácil: passei a sair com a enfermeira-chefe. Foi um barato. Tinha acesso a tudo. Como vivia numa pior, a dona pagava o motel. Por azar tinha uma namorada, colega do 4o ano e resolvida a me acompanhar em cirurgia. Aí me estrepei de verde e amarelo. A enfermeira ficou louca da vida e mandou-me passear. Perdi as mordomias e me danei todo. A coisa ficou difícil, até para pedir exame de um paciente passei a enfrentar dificuldades. - Neste particular vivi idêntica situação. No hospital onde fiz meu internato o pedido de exames estava sujeito à autorização prévia. Muitas vezes, quando esta chegava, o paciente havia recebido alta. E vou mais longe. O resultado demorava muito e o paciente já havia saído do hospital, morria ou curava-se espontaneamente. - 75%

das sintomatologias se curam sem médico e remédio. - Não sei não. Li, certa ocasião, a respeito de um fato estranho e fiquei cabreiro. Aconteceu em Israel. Os médicos entraram em greve por melhores salários. Na época, o Primeiro Ministro era uma mulher, a Golda Meir. Ela deu uma dura neles, agüentou a barra e falou: "Em greve não negocio. Parem-na e discutiremos." Os colegas não a suspenderam e se mantiveram parados por cerca de trinta dias. Não deu outra. A Primeira Ministra mandou fazer uma estatística de morbidade e mortalidade. Conclusão: o número de patologias e de casos de óbito diminuiu. Resultado: a greve implodiu. - Na nossa profissão, cada vez a situação do médico se complica mais. Inventaram uma socialização da medicina totalmente fajuta. Observa-se, tranqüilamente, uma proletarização de quinta categoria. - A gente corre, voa, dá três a quatro plantões por semana, para pagar a prestação de um KA. Apartamento só quitinete. Quarto e sala custa muito dinheiro. O pior. Tudo é mais caro, o vendedor fica repetitivo, no refrão: doutor pra cá, doutor pra lá. Todo mundo imagina: médico nada em dinheiro. - Por conta de quatro ou cinco medalhões, a categoria passa por rica e, no final, não fazemos outra coisa senão pagar prestação. Além disso, a imprensa não gosta de nós e a polícia muito menos. Antigamente, tudo estava bem feito. Agora, chegam a cronometrar até o tempo gasto pelo paciente esperando uma consulta. Não demora, vamos ter uma polícia específica, trabalhando em caráter permanente nos consultórios médicos, assistindo-nos e verificando se examinamos corretamente os pacientes. - Você viu no jornal? Há poucos dias um delegado de polícia invadiu um hospital e prendeu o médico se preparando para entrar na sala de operações e executar uma cesariana. - O cara invadiu o Centro Obstétrico? - Isto mesmo. O doutor só teve tempo de tirar o avental, a máscara e o gorro, senão ia mesmo fantasiado para o xilindró. - E qual o motivo alegado? - O delegado simplesmente acusou o médico de omissão de socorro. Motivo: o médico deixara de atender sua sobrinha com gripe, alegando dever ir urgente para o Centro Obstétrica. A família da mocinha não se conformou e telefonou para a autoridade policial. Não deu outra. O homenzinho nem quis escutar as ponderações do colega. Simplesmente, enjaulou-o. Na delegacia, esclareceu-se tudo e mais um pedido de desculpas acabou a briga. O médico retornou ao hospital e pôde iniciar o ato cirúrgico. - Você já imaginou o estado de espírito do colega diante de um vexame desta natureza? - Nesta hora, imagina-se um profissional frio o suficiente para não se abalar com tal escândalo. O pior: você Não tem a quem reclamar. - Veja uma coisa: por mais censurável a atitude do médico deixando de atender prontamente a um caso de estado gripal, impossível justificar-se uma autoridade policial retirá-lo do Centro Obstétrico, aos empurrões, quando o cara se preparava para uma intervenção, reconhecidamente de urgência. - Aonde vamos parar? Limitados pela capacidade profissional, experiência e especialização, quantas vezes atendemos a um caso, prestamos o primeiro socorro e, em seguida, encaminhamos o paciente a um especialista capaz de lhe propiciar melhores cuidados. - Na verdade esta rotina parece a mais adequada. Todavia, o problema reflete uma situação bem mais complexa. Se insistimos em intervir, infringimos o Código Penal em imprudência e imperícia. Limitando-nos a atender de acordo com a nossa competência, arriscamos omissão de socorro ou negligência, principalmente quando encaminhamos o paciente. Quase diariamente vemos estampados nos jornais, manchetes como estas: "Médico e hospital indiciados em inquérito policial, por omissão de socorro. Onde está o Juramento de Hipócrates? Médico condenado por negligência. Facultativo indiciado - Imperícia". Atualmente, atendemos os pacientes nos sentindo inseguros, assustados e acuados. - Quando o paciente é conveniado, a coisa piora. Gastamos mais tempo preenchendo

papel, fazendo laudos, preparando declarações, justificativas e atestados. Dizem-nos autônomos, porém respondemos pelos nossos atos perante o Conselho Regional de Medicina, a Justiça Civil e a Justiça Criminal. - Como assim? - Fácil. Tenho um tio atuando como diretor de uma empresa médica. A entidade presta serviços a clientes conveniados. Pois bem. Numa determinada ocasião, um médico cirurgião vascular foi fazer uma operação de varizes... - Safenectomia? - Isto mesmo. Por uma infelicidade seccionou a artéria femural e a circulação colateral não foi suficiente para substituí-la. Outros especialistas intervieram, tentando tudo. Ao final, a paciente perdeu a perna. A família ingressou na Justiça Civil com uma ação de perdas e danos contra a empresa e outra contra o cirurgião. Além disso, uma ação penal contra o cirurgião e ainda entrou com queixa junto ao CRM argüindo imprudência, imperícia e negligência. - Por quê imprudência? - Desconheço. Imperícia vá lá. Mas, imprudência e negligência não vejo como. - Segundo o meu tio, há uma tendência de juntar sempre imperícia com negligência, pois o imperito foi também negligente. Trata-se de ponto de vista e não de dogma. O processo ético deu em condenação: o cirurgião foi suspenso por 30 dias, o chefe da equipe recebeu Censura Pública e o meu tio, de férias na ocasião, nos Estados Unidos, também, recebeu suspensão mas conseguiu ser absolvido na instância federal. - A coisa está apertando cada vez mais para o médico. Nós, os iniciantes entramos numa fria. - Mais uma coisinha. Um primo meu é Cirurgião Plástico no Rio e há algum tempo fez uma rinoplastia. Em condições normais não dá problema. Deu um azar danado: formou-se uma cicatriz, tipo quelóide, e a interessada era apresentadora de noticiário de televisão. Antes da cirurgia tinha apenas um nariz apapagaiado: sem muita repercussão no conjunto. Ela cismou com o nasal e propôs a cirurgia. - Você bem pode avaliar: quando a pessoa cisma com uma coisa não há quem a mude. Pode ressuscitar até Freud e não vai conseguir nada. - No caso, o meu primo, com um senhor curriculum, fez a cirurgia por um preço simbólico. Após a queloide instalada reoperou-a, fez de tudo e está respondendo a processo por imperícia. - Vê se pode. Muita gente pensa: médico e mágico são iguais. As coincidências residem ma primeira letra e no fato de serem palavras proparoxítonas. Na prática, nem o médico pode prometer êxito de 100% ao final do tratamento, nem o paciente deve esperar tudo correndo às mil maravilhas. Além do saber médico, estão em jogo: condições sociais, culturais, emocionais e a natureza orgânica do cliente, e mais, uma gama interminável de situações onde a natureza atua de maneira imprevisível. - Ultimamente, os burocratas vêm querendo deturpar os nossos serviços. - O objetivo do médico é atender ao paciente. Os exames complementares necessários devem ser perfeitamente racionalizados. Não se pode pedir um exame sem a devida justificação. Se ao menos o laboratório e o RX enviassem o resultado com tempo de se fazer alguma coisa! Mas, na verdade, isto nunca acontece. Com esta estória de eficiência hospitalar, não se entende mais nada. Não é possível pensar em eficiência, dizer até o número de dias de internação do doente, delimitados não pelo corpo clínico e sim pela administração. Finalmente, só temos obrigações e os direitos são representados pelos nossos salários. A desproporcionalidade é muito grande, pois as obrigações são quase ilimitadas, o mesmo acontecendo também em relação à nossa insegurança. Dizem estar a classe médica atravessando uma fase de transição. - Meu avô praticou a medicina no tempo da bengala, fraque e cartola. Meu pai também resolveu segui-la. Este, acredito mesmo, por vocação. Foi um dos pioneiros da cirurgia torácica e quando estava se preparando para começar a cirurgia com circulação extra-corpórea caiu fulminado por um infarto aos quarenta e sete anos. Na época, eu cursava o terceiro ano de medicina. Tinha começado a acompanhá-lo e a admirar sua perícia. Talvez pelo tempo de

clínica, herdamos uma casa, um apartamento no Guarujá e um carro. Ele tinha direito ao INPS como médico funcionário, minha mãe teve pensão integral e, como autônomo, aquela caiu pela metade. Com tudo calculado em salário mínimo, a renda familiar não passou de dez. Imagine tal renda para uma família de quatro pessoas. Depois da morte de papai, descobrimos a casa haver sido comprada pela Caixa Econômica no Plano de Equivalência Salarial, com juros e correção monetária. Como foi difícil o restante do meu curso médico! E pior! A gente não tinha consciência da real situação financeira do velho. - É duro ser cientista na época atual. Penso completamente diferente. Procurarei fazer uma boa medicina, na medida das minhas limitações... Toca o telefone. - Alô. É o plantonista do Banco de Sangue? - Sim. Vou já! - E daí? - Um acidente lá na Paulista. Estão precisando urgente de sangue na U.T.I.. Vou indo. Quer ir junto? - Não. Por hoje chega. - Se fosse para um programa social você iria, né? - Também não. Você nem me convidaria. - A gente se encontra logo mais no refeitório. - Viu o cardápio? - Virado à paulista. - Este foi de ontem, meu dia de folga. - Não, é o de hoje. - Pensava em peru à Califórnia com fio d'ovos e crepe suzette como sobremesa. - Até pode ser. Depois me diga. Vou jantar fora.

8. No ninho do amor

No momento da tragédia, Sérgio Stronheim e Norma Toledo de Aguiar, no seu ninho de amor, dialogam: - Norma, cochilamos e perdi a hora. - Mas, só são quinze para a meia noite... - Não diga! Avisei a Denise sobre um possível atraso, pois tínhamos reunião de diretoria, mas nem falei em jantar fora. - Eita chatice... - Bem. Façamos o seguinte: a gente se veste e eu vou embora. - Ah! Seu pilantra. Toda vez a mesma coisa. Pra vir falar comigo a desculpa é uma reunião de diretoria; depois, jantar não gosta. Não quer é aparecer, principalmente comigo. Quando chega a hora de ir embora, veste-se em dois minutos. Isso não vai mudar nunca? - Ah, Norma. Gosto muito de você. Deixe de criar caso. - Uma maneira diferente de gostar. Você gosta de mim, só na cama. - Não fale assim, Norma; amo você de verdade. - Você deveria dizer: Norma, eu gosto de você na cama, só pra cama você me quer. - Não seja injusta, Norma. Sempre fui o seu melhor amigo. - Amigo sim! Belo conceito você tem de amizade! A história é sempre a mesma: "Eu estou pensando em me desquitar, mas não tem sido possível." Antigamente, por serem as crianças muito pequenas; depois, porque não sabe como deixar a diretoria da fábrica. A fábrica é do sogro e, com o desquite, seu diretor vai camelar um emprego. Depois, a desculpa maior: crescidas as crianças, aumentaram os problemas. Desculpas e mais desculpas e a Norma esperando; a comunicação tornou-se difícil a ponto de não haver oportunidade para um telefonema; é preciso ficar sempre em casa para receber um restinho da sua companhia. Olhe, Sérgio, um belo dia, quando você menos esperar, a Norma se mandou. - Ah, Norma, deixa de fazer onda, vá. Não exagere. Quantas vezes saímos juntos. Fomos jantar, meus amigos a conhecem, trato-a com toda consideração. Quando sua menina quis estudar na Suíça fiz questão de ir com você leva-la até lá e depois voltamos por Londres,

Paris e fizemos aquela lua de mel. Agora você esquece tudo só porque é quase meia noite e preciso ir para casa. - Não é nada disso. É seu costume. As desculpas, as mais esfarrapadas, mas para mim sobra apenas um pouquinho. - Nossa! Meia noite. Norma, liga aí a televisão, vamos assistir ao noticiário da meia noite. - "Mais um grave acidente, desta vez no meio da Ladeira do Morumbi; a onda de choques de veículos nesta cidade preocupa cada vez mais as autoridades. Segundo laudo da polícia técnica, foi um acidente quase impossível. Vejam o flash de reportagem. Um Mercedes zero km bate num caminhão, no cruzamento próximo ao Palácio dos Bandeirantes. Pelo visto, os telespectadores podem verificar, parece impossível a obtenção de um ângulo capaz de provocar tal tipo de acidente. Os passageiros do Mercedes receberam graves ferimentos, foram internados no Hospital Central e ainda não foram identificados, apenas sabe-se ser um casal." - Viu, Norma! É muito azar, um casal saindo numa belíssima noite de lua, em pleno verão e não seria rezar no Morumbi. Lá nem existe igreja. É muito pouco programa. Não seria mais interessante pegar uma praia? Essa gente não aprende, hein? E depois dar explicação para a família. Certamente não era marido e mulher. Era algum biscate. - Ô Sérgio, controla esta língua, talvez seja um casal em lua de mel, desejoso de contemplar São Paulo à noite no Morumbi. Quantas vezes nós o fizemos. Até isso você esqueceu... E naquele tempo havia romance. Agora, Sérgio, a coisa mudou. - Êpa, Norma! Vai começar de novo. Corta essa, chegou a hora de ir embora e sempre na despedida surge um problema. Vamos esquecer, tá. - Verdade, com você não adianta falar. Sempre o mesmo epílogo, você vem e eu, pronto, esqueço tudo. - Exato, amor é amor, e você sabe disso. E um coroa enxuto não anda por aí dando sopa. Vou embora mesmo. Acabou a novela. Denise deve estar louca da vida. - Volte pra sua pura. Qualquer dia você chega em casa e ela também saiu. - Norma. Não brinque. Brincadeira chata, e eu não gosto. - Tudo pode acontecer na roda da grã-finagem. - Sim. Mas, você conhece bem a Denise. - E como! - Cuidado com a insinuação. - Nada de especial. - Eu sou desquitada. Fui uma senhora casada e de muito respeito, enganando Cid somente com você, já esqueceu? - Não. Não esqueci. Mas levei muito tempo para conseguir alguma coisa. - Sim, mas conseguiu. - E se desquitou por minha causa? - Não disse nada disso. Sérgio beija Norma, e qual Ulisses pega o carro em busca da Penélope imaginária...

9. No repouso do plantão

- Alô, doutor Mânlio. É a enfermeira do Centro Cirúrgico. O anestesista está chamando o senhor imediatamente na sala, porque a pressão do paciente operado há pouco, vem caindo de repente e não se consegue ouvi-la. O senhor pode subir? - Bolas! Ainda aquele paciente? Meu Deus, e agora? - Não sei. O senhor quer falar com o anestesista? - Não. Pode deixar. Vou subir imediatamente. - E aí, Mânlio? - pergunta o Dr. Eliomar. - Chegou um chamado urgente do anestesista. A pressão continua caindo. - Vamos lá em cima. Vai ver ficou alguma perfuração não detectada. - Inacreditável? E o anestesista disse estar a pressão voltando ao normal! - Vamos lá. Sobem apressadamente a escada e ingressam no Centro Cirúrgico, já

ouvindo as explicações dos responsáveis. - Pois é, Mânlio, a pressão caiu, de repente. Achei melhor leva-lo para a recuperação pós-anestésica. - E daí? - Julguei melhor chamá-lo. Aumento a velocidade do sangue, ou você prefere abrir novamente? - Ora, se você continua aplicando sangue e a pressão prossegue caindo, vamos abrir novamente. Há algum inconveniente do ponto de vista anestésico? - Não. A gente pode tentar encontrar uma fórmula conciliatória. Eu faço uma anestesia bastante superficial e você abre novamente. Não há outra alternativa. - Então, vamos. Quando puder começar você avisa. E não se esqueça do disparo de pulso. Meu Deus, perderemos este paciente? Por favor, veja aí, pelo menos, enquanto abro novamente a cavidade. - Pode começar. - OK. Novamente a rotina operatória quase litúrgica se iniciava, a incisão na ferida cirúrgica, com tão poucas horas. O mesmo ocorreu com as camadas teciduais seguintes, até a exposição do peritônio. A ansiedade pelo conhecimento do pior vestiu a roupagem de uma situação clara e evidente: havia sangue na cavidade, talvez o fator de maior preocupação para uma equipe cirúrgica ao iniciar uma laparotomia exploradora. Fisionomia preocupada, o cirurgião quebra o silêncio: - Como você verifica, há bastante sangue. Alguma perfuração passou despercebida. - Merda, nunca vi tanto azar. Este cara quando sair daqui vai ter de se benzer. - Não é possível. Não, não, na verdade deve ter mais alguma perfuração. Aqui na sutura do estômago não aparece nada, no intestino delgado, também não. - Ah! Desgraçado, olha aqui! Exatamente no transverso, bem na curvatura. - Como a gente não viu isso? Deve ter havido o seguinte: sendo exatamente aqui na dobra, no momento da revisão não apareceu. Certamente houve um tamponamento natural. Com a movimentação das alças, a hemorragia drenou para a parte posterior do abdômen, o intestino cobriu o sangue e nós não vimos. - Mesmo assim, não parece uma lesão muito grande para justificar esta queda de pressão. De qualquer maneira, vamos suturar e esperar. - A senhora me arranja mais um pouco de soro morno? Quem sabe vai resolver o problema... Enxugue aqui. Não, não era só isso. Você está vendo mais sangue? - Sim. - Aqui na parte posterior do fígado ainda há hemorragia. - Nem adianta a gente insistir se viu ou não. O importante é resolver logo este problema de uma vez. - Ei, cara! O quadro se agravou, mais vai dar para resolver. Vamos fazer esta sutura aqui no fígado. Agora acaba. - OK. Tá bom. - A senhora me consegue mais um pouquinho de soro? - Qual a situação do paciente? - pergunta ao anestesista. - Melhor, mas o pulso ainda muito fraco. Estou intensificado o fluxo sanguíneo, porém, mesmo assim, a máxima mantém-se em torno de quatro. - Não pode ser. - E não é o aparelho, não. - Você pediu mais sangue? - Sim. Se a hemorragia for debelada aí, do meu lado não haverá problema maior porque a pressão se elevará só pelo sangue aplicado. - Vamos proceder ao fechamento da cavidade. Fazemos novamente pontos separados. É o melhor neste caso. - Geralmente neste Pronto Socorro é assim. Quando é médico, filho de médico ou grã-fino, Deus do Céu! Parece azar nessa gente. - Casualidade ou coincidência? - Ainda no meu tempo de residência sempre foi assim. Médico, Mulher de médico, mãe de médico, político e gente rica normalmente a coisa enguiça. - Aprendi mais uma. - Vá aprendendo, rapaz. No 3o ano de residência de cirurgia era para saber isso. - Ouço isso pela primeira vez. - Como anda aí a pressão? - Em torno de 6 x 4 com o pulso bem mais cheio, freqüência de 156. - Necessário baixá-lo. - Realmente. Agora tende a estabilizar. Só depende de não haver mais hemorragia. - Parou a hemorragia. Pelo menos, espero. Imagine você, com tudo à mão, como temos aqui, uma equipe com esta experiência, deixamos o paciente certos de haver resolvido o problema e, menos de uma hora depois, voltamos ao Centro Cirúrgico para começar tudo outra vez. - Nos centros menores como deve surgir enguiço a todo momento. - Como eles resolvem? - Sei

lá, Não tenho idéia. Geralmente, quando ocorre um êxito letal, a coisa vai pro lado da fatalidade. - Até o termo ficou sofisticado; não se diz mais morte e sim êxito letal. - É mesmo. Desde quando vestir o pijama de pau é êxito de alguma coisa? - Por sorte, azar, bom senso, realmente nesta profissão tudo é possível. Quando a gente menos espera a coisa complica. - Tinha certeza de debelar a hemorragia anteriormente. Agora não confio tanto. Bom, você faz a descrição e vamos ver com o anestesista. - Olhe, e a pressão? - Mantém-se em torno de sete. Vou esperar um pouco antes de desentubar o paciente. Se surgir qualquer coisa, lhe comunico. - Certo. Vou descer para o repouso, mas antes passo lá na U.T.I. para saber o estado da mulher dele, com suspeita de fratura na base. - Tá bem. Enquanto o auxiliar procede aos últimos retoques, o cirurgião desce para a U.T.I., na expectativa de notícias da acompanhante do paciente. Mesmo acostumado, diuturnamente, com a dor e o sofrimento, o médico não perde aquela curiosidade quase inata com relação a tudo. No caso, o problema da paciente não lhe dizia respeito: bastava o intrincado tabuleiro de xadrez no abdômen do seu paciente. A companheira de infortúnio dele não apresentava sequer problemática cirúrgica e, se o fosse, competiria à neurocirurgia acompanhar o caso. Mesmo assim, quem sabe se, por um toque de magnetismo inexplicável, o Dr. Mânlio se deslocava para a U.T.I., na busca de maiores esclarecimentos do caso da paciente do Box no. 5. Aquela mulher em coma profundo, potencialmente descerebrada, por quê o faria estar descendo do Centro Cirúrgico para a U.T.I. na madrugada de um plantão agitado e estressante? Certamente, nem ele conseguiria responder a indagação.

10. Na UTI

- Como vai a coisa aí? Mânlio quebra o silêncio. - Péssima, rapaz; o caso vem se complicando. A mulher continua num coma se aprofundando cada vez mais. Eu imaginei, no começo, ter um caso mais simples, responde-lhe desanimado o intensivista. - É, o meu parece ainda mais complicado. Levei-o para o Centro Cirúrgico, operei, havia uma hemorragia interna muito grande, perfurações no intestino e no fígado. O baço parecia uma papa. Fiz uma esplenectomia e observei também uma perfuração no piloro. Até havia pensado na possibilidade de fazer uma gastrectomia, Mas resolvi suturar o estômago e limpar a cavidade. A pressão normalizou-se e não havendo mais sangue fechei a parede e imaginei estar tudo bem. O cansaço me deixou faminto. Dirigi-me ao refeitório e quando voltei para o repouso o Centro Cirúrgico me chamou novamente. Fiz uma nova laparotomia e constatei uma perfuração na região posterior do fígado. - E a pressão? - Caiu bastante. Mas não chegou a haver parada cardíaca. - Sim. Quando a pressão vai a zero por muito tempo podem surgir seqüelas imprevisíveis para o sistema nervoso. - Vira esta boca pra lá. Depois de uma maratona como esta, pensar em seqüela? - Vou esperar. Não há mais nada a fazer. A pupila apresenta midríase. E pupila dilatada, neste caso, é fogo. Pedi uma consulta na neurologia, mas só pode ser feita amanhã cedo. A respiração controlada pelo Bird e a pressão mantida com sangue. Se ela vai viver, não

sei. Mas, se a pupila não voltar ao normal, certamente ficará descerebrada. Curiosamente, o cirurgião examina a pupila e arrisca: - Francisco, a pupila não parece muito dilatada. - Sabe? Deve haver um engano de avaliação. Quando entrei no plantão, lá no estacionamento dei de cara com Marchioni, neurologista. Deve estar de plantão. - É melhor verificar. Dona Lúcia, a senhora quer ver se há neurologista de plantão? - Vou em seguida, doutor Francisco. Alguns instantes depois, a enfermeira corta o silêncio dos dois médicos absortos e interessados naqueles intrincados equipamentos e fios emaranhados mais parecendo uma mesa telefônica, onde a central retratava uma das mais badaladas figuras de nossa crônica social. Ali, inerte, vestes rotas, repousava, se repousava e não vegetava, jamais saberemos, Denise Marchioni, ao iniciar uma despreocupada aventura extra-conjugal. - Doutor Francisco! Localizei o neurologista de plantão, o doutor Marchioni vem subindo. - Ainda bem. Assim poderemos ter uma idéia mais completa do caso. Agora esclareceremos o problema da pupila - intervém o cirurgião. - Pois é. Se realmente a pupila não reagir só resta um eletroencefalograma. Aí não haverá mais dúvida. - Deixando de lado o problema neurológico, pois o neurologista vem subindo, temos de pensar em dois aspectos: as fraturas e uma avaliação clínica global. - Agora tudo vai depender do exame neurológico. Se realmente houve morte cerebral não vejo necessidade de intervenção do ortopedista nem de avaliação clínica. Só se você quiser enterrar um esqueleto todo certinho. - Não. Isso não. Eu só queria ganhar tempo. Como todo bom cirurgião, você é bem imediatista. Se dependesse de você, ao invés de estetoscópio, termômetro, lanterna e martelo para pesquisa de reflexos, levar-se-iam bisturi, catgut, pinça, tesoura, clorofórmio, anestésico local, algodão, gaze, compressa e... - esclarece o intensivista. - Ah, não exagere, Francisco, Tudo se resume numa questão de escola. No meu caso, penso muito, antes de indicar uma cirurgia. Veja a nossa percentagem de apendicectomias considerada como a de maior freqüência na classificação das comerciais. Não chega nem a um por cento. - E não esqueça de rotular o HC como um hospital escola. Além disso, os honorários médicos estão embutidos no seu salário. Aliás, diga-se de passagem, dez salários mínimos mensais por trinta e seis horas semanais. - Não goze, Francisco. - Olhe, Mânlio! Eu tenho um primo, dono de um hospital no norte do Paraná. Ele me contou: para cem cirurgias entre eletivas e urgências, cinqüenta se rotulam como apendicectomias. E não adianta querer mudar. - Isso também parece exagero. - Isso pensa você. No ano passado encontrei o Miguel, aquele paraguaio nosso colega de residência. - O marido de Maria Isabel? - Ele mesmo. Pois bem. Depois da residência mudou-se para uma cidade do norte do Paraná, se não me engano, Campo Mourão e lá substituiu um colega, dono de um hospital, em gozo de férias. Uma semana depois, apareceu a mulher do prefeito com uma filha de quinze anos com suspeita de apendicite, diagnóstico fechado pela mãe, vizinhas e comadres. Escrupuloso como ele só, Miguel auscultou, palpou, percutiu, tirou história, pediu exames e concluiu: não é apendicite. Não deu outra. A família levou a menina para outro hospital, o médico diagnosticou apendicite aguda e operou-a a uma hora da manhã. Ainda fez graves acusações ao Miguel, taxou-o de irresponsável e acabou com a raça dele. Sem outra alternativa, Miguel teve de mudar de cidade. - E a criança? - O caso evoluiu pessimamente. A ferida contaminou e dez dias após a cirurgia, a menina morreu de tétano. - Então deve ter sido catgut contaminado. - Catgut contaminado ou não, jamais se vai saber. Nos Estados Unidos ou em qualquer outro País onde se leva a sério a vida humana, o apêndice retirado segue automaticamente para o anátomo-patológico e, verificada a inexistência de patologia, o cirurgião e hospital dançam mesmo. - Ah, Francisco, não exagere. Você e seu despeito com a cirurgia. - Não Mânlio. Quando ingressei na

Faculdade de Medicina meu maior desejo era entrar na cirurgia. Mas um problema congênito de visão, astigmatismo muito acentuado do olho esquerdo, me impede de fixar por muito tempo um determinado ponto. Como bisturi exige, pelo menos, uma boa acuidade visual, senti dificuldades de cara. Com o tempo fui gostando do trabalho em U.T.I., embora muito estressante. Realizei-me e me considero um intensivista pioneiro. - Nem sei se posso dizer o quanto me realizei como cirurgião geral. Às vezes, tenho aquela sensação de tranqüilidade, principalmente quando vejo o caso evoluir bem. Neste momento me sinto um tanto inseguro... - Inseguro por quê? - Veja esse cara operado agora. Tive um cuidado imenso durante todo o ato cirúrgico, fui obrigado a reoperá-lo e ainda permaneço intranqüilo. Nestas horas, não interessa se estava bêbado ou não, se é pobre ou rico, marido ou galho desta dona aí. Nem sei de quem se trata, mas não estou bem comigo mesmo. - Ora, Mânlio, talvez haja um pontinho da vaidade ferida. Você operou com algum residente? - Operei sim. Com o Eliomar, é um residente de 3o ano, nortista como nós, falante como ele só. - Já vi tudo. Quando a gente atua com residente o peso da responsabilidade parece maior, além daquela vaidadezinha de professor frustrado... - Frustrado coisa nenhuma. Não fiz doutoramento em cirurgia porque aquele velho gagá me podou após ter deixado de sair com a filha dele, além de tudo lésbica. Imagine eu, um pau-de-arara convicto, casar com a filha do professor, sapatão. Essa não dava mesmo... - Ora - cortou Francisco. A Lígia transa com mulher? - Sim. No ano passado Eliomar, o ajudante nesta cirurgia, encontrou-a na Boate Medieval, lá na Augusta, agarrada com a psicóloga do 4o andar. - Aquela loura bonita? A dona Maria? - Ela mesmo. E ainda fizeram questão de levar Eliomar para a mesa delas. O pau-de-arara encabulou e ficou cheio de dedos. - E não gostou? - Coisa nenhuma. Entrou de gaiato. Como bom nortista, quer conhecer tudo. Algum residente cara de pau falou da abertura de uma boate só de mulher desacompanhada. Era só chegar e se enturmar. O cara resolveu ir sozinho e não falou pra ninguém. - E danou-se todo. - Exatamente. Pra mim foi até bom. Esclareci tudo e saí do campo da suspeição. - E você não contou nada ao Professor. - Não tive nem jeito. Dei o namoro por terminado e disse-lhe estar querendo sair de São Paulo. E não deu outra. O velho renunciou a orientação da minha tese. - E agora? - Agora só resta esperar. Daqui a dois anos ele vai entrar na compulsória e poderá acalentar a sua lésbica. Vou aguardar o substituto e tentar outra vez. - O candidato mais forte é bicha. Deixar uma lésbica por um bicha não parece uma boa pedida. Vai haver uma mistura muito grande de hormônios para confundir a sua beleza Mânlio. - Virá um candidato de fora, muito forte, com todas as qualidades técnicas, morais e até políticas, para arrebanhar a cátedra. - Já sei. E também amicíssimo do Governador. - Deixa isso pra lá. E o neurologista não vem? Nisso, adentra na U.T.I. o neurologista. - Doutor Francisco? Sou o neurologista de plantão. - Temos um caso nos deixando preocupados, falou Grimário. Este é Mânlio, cirurgião-chefe da equipe. - Já o conheço. Cruzei com você no estacionamento. - Bem. Trata-se de um caso de acidente. Rapidamente, o Dr. Marchioni preparou o material para um exame mais detalhado das condições neurológicas da paciente e, assustado, quebrou o silêncio: - Êpa! Denise! - Quem? - indagou o intensivista num misto de curiosidade e estupefação. - Denise Marchioni, minha prima. - Sua prima? - intervém o Dr. Mânlio. - Sim. O marido dela também acidentou-se? - Se é marido eu não sei. O nome constante no Prontuário do cara é Caio. - Ué! O marido dela se chama Sérgio Stronheim, diretor da Crescente. - Aquela fabricona alí bem no começo da Anchieta? - Sim. Aquela mesmo. Não sei como a Denise poderia estar com esse tal de Caio numa Mercedes na Ladeira do Morumbi. E com o Sérgio não aconteceu nada? - Olhe, Marchioni: você já ouviu, só havia dois no Mercedes. Se existia

algum Sérgio saltou antes do acidente. - Meu Deus! Vou falar com o doutor Juarez. - O chefão? E daí? Intervém Dr. Francisco. - Sim, o doutor Juarez é amigo do pai da Denise. Ainda ontem eu cruzei com ele no saguão do hospital, batemos um longo papo e... - Íntimos? Hein! - corta Mânlio num misto de ironia e curiosidade. - Como sou sobrinho do pai da Denise e o doutor Juarez é muito amigo dele, meu tio me apresentou a ele e falou da residência de neuro. E como aqui é o melhor serviço, nada como pleitear o melhor. - Tráfico de influência é o termo mais exato, ironizou. - Nem foi. O doutor Juarez falou nada poder fazer na primeira fase, era exame escrito. Só se eu passasse nela. A segunda seria uma entrevista. Neste caso, falaria com um amigo dele. Saí-me bem na escrita e na entrevista deu tudo certo. Após a residência fui contratado como assistente de trinta e seis horas semanais. - E dez salários mínimos mensais - completou Dr. Francisco com uma ponta de ironia. - Bem, continuando - prosseguiu o neurologista. O superintendente me contou ter recebido um cartão do meu tio atualmente cumprindo uma temporada de esqui em Mengéve, na Suíça. Falou pouco, pois estava com pressa, sairia mais cedo para não perder a cerimônia de condecoração do comendador Condeixas Rodrigues, a receber uma medalha de honra das mãos do Governador no Palácio Bandeirantes. Depois haveria uma recepção na casa do comendador, na Giovani Gronchi. - O comendador Rodrigues não é aquele do grupo Coroa acabando de explodir? - Não. Ele saiu antes do estouro na praça. - Não foi assim, Capemi, Coroa, Delfin? Fala mais uma vez o intensivista sem perder o gosto pela ironia. - Vem. Vamos ao caso, muda bruscamente de assunto o neurologista. Com uma lanterna de bolso e um martelo de reflexos, pesquisou o nível de consciência, observou a paciente sem percepção, não reagindo aos estímulos auditivos, embora movimentasse os quatro membros mediante estímulos dolorosos, fletindo os braços, tentando localizar a fonte do estímulo. As pupilas de diâmetro médio reagiram anormalmente à luz da lanterna. Tentando o desligamento do respirador, notou a paciente mantendo um ritmo respiratório entremeado de momentos de apnéia, movimentos inspiratórios progressivamente crescentes mais amplos, seguidos novamente de apnéia. Instantes após, o neurologista sentenciou: - Esta paciente tem uma contusão cerebral grave. A respiração é Cheyne Stokes típica. - E quanto ao Bird? Pergunta. - É melhor mudar o respirador. Deve ser usado um de ciclo a volume. - E a medicação? - Pode continuar como está - completou o neurologista. Agora tentarei avisar o doutor Juarez.

11. Festa interrompida

Alô - 542.1133? Da residência do comendador Rodrigues? - A senhora pode localizar o doutor Juarez Campos, superintendente do Hospital Central? Urgente, sim. É o doutor Marchioni, neurologista do hospital. Instantes depois, do outro lado do fio: - É o doutor Juarez Campos. Dr. Marchioni vai direito ao assunto. - Meu Deus - corta o doutor Juarez. O comendador encontra-se na Suíça, em Mengéve. Vou aí urgente, me espere por favor e avise ao Grimário. Desligado o telefone, procura o dono da festa para a despedida inesperada, tão comum

quando se trata de médico e no caso, do diretor do maior hospital do País. O comendador Rodrigues quis logo saber detalhes do problema, pois se incluía no rol de amigos íntimos do comendador Marchioni. - Pois é. Denise, filha única do Marchioni, está no HC e não posso deixar de ajudá-la. Ainda terei de ajeitar o pessoal da imprensa, abafar a notícia e conversar com a turma da polícia. É muito fácil avaliar a repercussão de um caso desses. - Por falar nisso, você não viu o delegado geral aqui na festa? - Não, não o vi. Aliás, meu velho conhecido desde o tempo da pós-graduação. Moramos juntos, numa pensão na Teodoro Sampaio e ele tentava ingressar na carreira. - Então, vamos procurá-lo. Rapidamente penetraram naquele aglomerado de convidados, São Paulo de A a Z na crônica social de domingo. Senhoras elegantérrimas de preto e branco, cores da última grife, jóias verdadeiras em profusão, risco dos maiores, num local onde a sucessão de assaltos não alcança intervalos interiores a dois por dia. Logo, encontram o Dr. Francisco de Souza, delegado geral da polícia paulista, cabelos escovinha e bigodes à Poirot. - Ei! Francisco - fala o Dr. Juarez barrando-lhe os passos. - Oi, conterrâneo. Há quanto tempo! - Após sua promoção a delegado geral, não tem mais tempo para os amigos. - Não exagera, Juarez. Os assaltos, trombadinhas e até as eleições não deixam tempo pra mais nada. E daí? Você parece preocupado e como é abstêmio o meu faro policial já está buzinando... Cuidadosamente, para não chamar a atenção do restante da roda, pois a curiosidade generalizava-se; imagine-se: o dono da casa, o diretor do HC e o delegado geral cochichando, algo de estranho estaria acontecendo. O Dr. Juarez, quase num sussurro, traçou em linhas gerais um esboço do acontecido. - Sim, Juarez entendi; e a minha participação? O médico é você! Muito sutilmente, fez ver ao delegado quanto à necessidade de abafar o caso, principalmente nos aspectos de imprensa e polícia. - Sabe como imprensa é fogo. E quando se trata de gente importante o abuso vem a jato. - Entendi, Juarez. Vou ligar para o titular do Distrito e ele mandará um delegado ao HC conversar com você. Espere só um instante. Enquanto aguardava a resposta do delegado geral, o Dr,. Juarez escutava os mais descontrolados cochichos naquele borburinho: - Não estão assaltando a casa? - Juntar o comendador, o delegado geral e o diretor do HC de repente no meio da festa, certamente, as coisas não andam às mil maravilhas. - Vai ver: comício do Lula no ABC... - Maluf assaltou o Banco do Brasil... - O filho do presidente foi em cana... A voz do delegado geral interrompe seus pensamentos. - Juarez, tudo certo. O titular já mandou um delegado para o HC onde lhe esperará. Rapaz de confiança, pode abrir o jogo. - Obrigado, Francisco. - Ora, Juarez. Você não tem nada a agradecer. Hoje você precisa, amanhã preciso eu. No fim, tudo vai dar certo. Não esquenta, Juarez. Até logo. Vou continuar tomando o uísque do comendador. Rapidamente, Dr. Juarez afasta-se em busca da esposa, entretida no grupo predileto de buraco. Cochichando ao pé do ouvido, comunica-lhe a necessidade de uma rápida despedida. - E essa pressa? - Falaremos no carro. Próximo do casal, D. Maria Tereza Sampaio das Neves, rechonchuda quatrocentona, conhecida no meio social como a rainha das gafes, insiste em saber de tudo. - Doutor Juarez, alguma novidade? Eu vi os seus cochichos com o comendador e o delegado geral? Olhe, hoje dei folga ao guarda lá de cada e estou cheia de jóias. Veja se não vai me deixar em apuros. - Nada disso, dona Maria Tereza. Vamos amanhã muito cedo para a fazenda de um amigo, passar o fim de semana - justificou-se, quase sem esconder a irritação. - Belinha acabou de combinar uma partida de buraco para amanhã à tarde - insistiu a gorducha. - Eu nem havia me lembrado da nossa viagem. Ainda bem, senão eu iria deixar o pessoal esperando para o joguinho. Com um riso um tanto forçado, a D. Belinha tentou contornar a sucessão de mal-entendidos. - Olhe bem, doutor! Veja se o senhor não vai deixar a gente em maus lençóis.

- Fique tranqüila, nada acontece. Nem bem o casal deixava o grupo, a gorducha inconformada ainda insistia: - Glorinha. Ele não está escondendo nada? Foi chamado ao telefone, falou um tempão e depois reuniu o comendador e o delegado geral. Vi perfeitamente quando o delegado foi para o telefone e, ao voltar, o doutor Juarez resolveu ir embora. - Finalmente, quem é este cara? - Diretor do Hospital Central. - Ah! Houve algum acidente grave ou coisa semelhante - disse desinteressada. Enquanto o carro subia a ladeira do Palácio Bandeirantes, D. Belinha insistia em obter maiores detalhes do acidente... - Olha, Belinha. Já lhe contei tudo. Agora vou deixar você em casa e tocar direto para o HC. - Mas Juarez eu poderia ir junto. Finalmente, sou amiga e companheira de buraco da Nilsa Marchioni e numa hora dessas até poderia ajudar. - De jeito nenhum, Belinha. Imagine chegar o superintendente do hospital com a esposa a tiracolo, em plena madrugada... - Ninguém notaria nada. Quem iria saber da nossa ligação com os Marchioni? - Belinha, tem dó. O pessoal do hospital nada tem de burro. Além disso, logo na entrada fica a turma da imprensa e o investigador de plantão. Se eu vou ter de esconder tudo, começaremos dando o exemplo em casa. Insatisfeita, num resmungo inaudível, D. Belinha conformou-se e permaneceu calada, até a porta eletrônica da garagem abrir lentamente. - Você não vai demorar muito? - Só o tempo de conversar com o delegado, visitar Denise e ligar para Marchioni em Mengéve. - Se surgir alguma novidade me avise logo. Lentamente, o carro seguiu na direção da Avenida Rebouças em busca do HC. Absorto nos pensamentos, divagava: "filha única, ainda muito bonita, figura central do nosso meio social, inventando um programa desses, justamente quando as duas filhas estão no Guarujá e os pais na Europa? E esse tal de Caio? Não me parece um nome conhecido. Não seria um passageiro do outro carro? Mas se a batida foi num caminhão, dificilmente o motorista do veículo, num acidente desse tipo iria parar no hospital em tão mau estado". Deixando o carro na frente do hospital, vai direto à sala do administrador de plantão. - Senhor José Roberto, como está o caso dos acidentados na Ladeira do Morumbi? - O delegado do distrito está na sala ao lado, aguardando o senhor. Como devo proceder junto à imprensa? - Despache-a e não adiante nenhum detalhe, além do conhecido. - Pode chamar o delegado e por favor deixe-nos a sós. - Está bem, doutor. Os pensamentos pululavam na mente do superintendente...

12. Quando a polícia ajuda

Na entrada do Gabinete da Superintendência. - Boa noite. Queira sentar. - Boa noite, doutor Juarez, com licença, sou o delegado do Distrito - responde Dr. Rodolfo Mena. Dr. Juarez vai direto ao problema. - Trata-se de assunto importante para mim. Aliás, falei com o delegado geral. Houve um acidente muito grave na Ladeira do Morumbi e eu gostaria de sua ajuda para evitar alarde por parte da imprensa, ultimamente atirando fogo em cima do HC. A moça é filha de um grande amigo meu, o diretor presidente da Crescente, retornando da Europa em caráter de urgência. Acredito haja ela saído com um amigo, criando esta situação tão desagradável. Se o senhor conseguir evitar uma divulgação escandalosa do fato, estará me

prestando um grande favor. Quando este tipo de notícia chega a determinada imprensa, a todo momento surgem repórteres enchendo a paciência, o dia inteirinho. E, não satisfeitos, ainda ficam de plantão na frente de minha casa. - Não precisa se preocupar, doutor. O titular me mandou fazer a ocorrência sigilosamente. Finalmente, trata-se de um caso de acidente de carro como outro qualquer. Temos algumas dezenas de casos deste tipo em São Paulo. Além disso, o motorista do automóvel parece não ser culpado. O caminhão cortou o sinal. Fiquei com pena do carro. - O Mercedes não importa. - Bem, doutor. Encontrarei um jeito capaz de satisfazer a todo mundo. Vou providenciar tudo e depois acerto com o delegado geral; se houver mais alguma coisa, comunico-lhe. De qualquer maneira, não teremos problema com a imprensa. - Certo. Se por acaso eu não me encontrar no hospital, estarei em casa. O senhor poderá ligar pra aqui ou pra minha residência. Fique com o meu cartão para qualquer eventualidade. - Tudo bem. Deixe comigo. - Muito obrigado, por enquanto. Após a saída do delegado, o superintendente permaneceu imóvel por alguns instantes, entregue a uma interminável rede de intrigas, sem definir um modo não alarmista de telefonar para a Suíça e dar a notícia aos Marchioni. Consultou o relógio: 1:45 do sábado, 14 de dezembro. Lembrou-se do fuso horário da Suíça com quatro horas de diferença. Lá deveria ser exatamente 5:45 da manhã. Antes de pedir a ligação, preferiu chamar o supervisor da U.T.I. para maiores esclarecimentos. - Telefonista. Por favor localize o doutor Grimário na U.T.I. e peça-lhe para vir à minha sala. Sim, urgente. Obrigado. Enquanto aguardava, ligou para casa, certo de sua esposa estar preocupada. Além disso, precisava do endereço dos Marchioni na Suíça. De posse dos dados, pediu uma ligação internacional para Mengéve. Narrou sucintamente o ocorrido e procurou tranqüilizar o casal, tomando providências imediatas para o retorno ao Brasil, o mais rápido possível. D. Nilsa parecia mais interessada em conhecer detalhes e, por incrível pareça, do caso social em si: quem era o acompanhante, sua árvore genealógica, se casado - o deixou ainda mais tenso. Nem havia desligado o telefone, quando ouviu batidas na porta. - Quem é? - perguntou ainda sob o impacto da conversa com D. Nilsa. - Grimário, doutor. O senhor mandou me chamar? - Sim entre. Ante a autorização, adentrou na sala do superintendente e narrou o caso com maiores detalhes. - Já imaginou? Primeiro, não estava com o marido; segundo, na Ladeira do Morumbi; terceiro, as crianças dela no Guarujá; quarto, parece um caso antigo e o marido não sabe. - Ah, doutor, deixe isso pra lá. Em sociedade tudo se sabe. Além do mais, problema deles, a gente deve atender a parte médica. Os aspectos social e policial, deixemos para a solução deles. Enfim, vips, se entendem. - Preferia assim. Se o caso chegar ao conhecimento da imprensa, vai dar muito comentário. Lembra aquele problema da milionária suicidada no quilômetro 42 da Anchieta? - Sim. Naquela época eu fazia residência na Santa Casa de Santos, estava até de plantão, quando ela chegou. Aliás, praticamente morta. - Pois bem, rapaz. Aquilo deu tanto enguiço! A imprensa se movimentou a valer. - Tempos depois, conversando com o legista, ele me disse? "Suicídio coisa nenhuma! Aquilo foi um tiro à queima roupa, de pistola automática e a mulher ainda apresentava sinais de violência física. Quanto ao agressor, esqueceu até de tirar o anel com suas iniciais, marcara o rosto da moça. - O fato deve ter criado problemas políticos. O primeiro promotor morreu, o segundo desapareceu do contexto e o médico legista, atendeu o caso e jamais foi ouvido. Final da história: suicídio ou crime insolúvel? - A sua maior preocupação no momento é evitar a divulgação do acidente pela imprensa. Na condição de superintendente, com o seu prestígio, uma conversinha com o delegado não evita o fato chegar ao conhecimento da imprensa? - Realmente, farei o possível. Por disposição legal, caso de interesse policial deve ser

imediatamente comunicado. - Ah, doutor! O delegado não vai vir aqui? - O delegado do Distrito saiu daqui um pouco antes de você chegar. A nossa conversa bastante produtiva culminou com a promessa de maior empenho para reduzir o impacto do noticiário. - Todo fato escandaloso chama a atenção do grande público. - Porém, em se tratando de assunto onde se ressalta uma desgraça de qualquer natureza, a imprensa vibra. - Tenho notado isso na convivência em U.T.I.. Os pacientes despertam uma atenção incrível por parte das pessoas, independente de serem familiares ou visitantes. Lá fora, quando me identifico como intensivista, a curiosidade redobra. Mais estranho ainda, as perguntas em geral, sempre as mesmas. Até poderia andar com um gravador, satisfazendo melhor aos curiosos. A conversa foi interrompida pelo chamado da telefonista. - Doutor Juarez! Há um recado telefônico da Suíça para o senhor. Não entendo nada, nem reconheço a língua. - Inglês, na certa. Passe a ligação. Era um recado do comendador Marchioni de Mengéve em direção a Zurich. Tinha esperanças de chegar ao Brasil ainda no sábado ou, quando muito, na madrugada de domingo. Pedia-lhe ainda para aguardá-lo no Aeroporto. Voltou-se para Grimário: - E o seu prognóstico? - Olhe, doutor Juarez. Tudo vai depender da reação dela. Pelo menos, dentro das próximas vinte e quatro horas, qualquer prognóstico pode conduzir a erro de interpretação. - Mantenha-me informado. Não pretendo viajar neste final de semana, para não me afastar do caso. Falei, por telefone, com os pais dela no momento na Suíça, e eles devem retornar ao Brasil ainda hoje ou amanhã, no máximo. O comendador Marchioni insistiu para eu providenciar a remoção da filha para o Albert Einstein ou o Sírio Libanês. Convenci-o da impraticabilidade, pelo menos no momento, de movimentá-la. - Fez muito bem. No estado dela, qualquer movimento pode ser danoso e até fatal. Entendo a preocupação dos pais dela. A gente lá de fora não tem a menor idéia de quanto estamos adiantados em matéria de aparelhamento e tecnologia. Além disso, internada em U.T.I., não haverá a menor diferença, mesmo em hospital mais caro, porque terapia intensiva em todo mundo é igual. - Realmente, trata-se de argumento irrefutável. Mas, não há como fazer o povo compreender estar o maior conforto para o paciente fundamentado no equipamento, nas instalações e, principalmente, no gabarito técnico e sentido humanístico envolvendo seu tratamento. - O senhor não prefere ir comigo até a U.T.I. e ver in loco as condições da paciente? - Sim. Acompanho-o Ao ingressar no box, num misto de susto e preocupação, viu aquela figura imóvel, presa na intrincada aparelhagem, mal disfarçando uma possível vida vegetativa. Na ânsia de uma resposta favorável, quase instintivamente, o superintendente aproximou-se da paciente tentando observar alguma reação. - Ela não apresenta nenhum reflexo? - Não, doutor. A pressão oscila entre 6 X 4 e 11 X 6. O pulso de vez em quando dispara. - E o neurologista? Aliás, primo dela. Falou-me por telefone há cerca de uma hora, mas nada adiantou além do dito por você. Ele não se encontra aqui? - Sim, senhor. Aguarda o seu chamado. O diálogo prossegue. - Conosco agiu da mesma forma. Como o senhor bem sabe, a certeza de uma morte clínica nestas condições não parece fácil. Nas próximas vinte e quatro horas algo pode acontecer. As fraturas não têm muita importância. Na contusão cerebral repousam as nossas dúvidas. Fizemos um pedido de consulta a neuro, porque as chapas relevaram fraturas de ossos do crânio. O senhor gostaria de ver o acompanhante? - Qual o Box? - No momento, encontra-se no Centro Cirúrgico. Mânlio operou-o e notou várias perfurações. Inclusive, esplenectomizou-o e ressecou algumas alças. - Não gostaria de ir ao Centro Cirúrgico. Peço-lhe o maior empenho, pois esta jovem é como se fosse minha filha. - Alguma determinação especial quanto às visitas? As nossas regras primam pelo rigor. - Evidentemente, num caso com tanto

envolvimento social, deverei receber pressões de todos os lados. Confio no seu bom senso. No concernente à sala de visitas, não vejo problema maior. Quanto à presença no box, temos de nos salvaguardar. De qualquer maneira, gostaria de me manter informado. Deixo-lhe o telefone de casa e o meu BIP. Agradeço-lhe toda a atenção dada à Denise. Quanto ao outro paciente, vamos esperar o comparecimento dos familiares. Nisso, passos apressados, adentra no box, o Dr. Marchioni. - Boa noite. Procurando resumir ao máximo a sua atuação no caso, o especialista ventila a possibilidade de um coma irreversível, mas resiste à pressão para uma tomada de posição mais comprometedora. - Mas, Marchioni, finalmente existe ou não um descerebramento em Denise? - Olhe, doutor. Ainda necessitamos de mais alguns dados para um diagnóstico definitivo. Amanhã, quando o pessoal da neuro-radiologia chegar e proceder a outros exames, teremos maiores esclarecimentos. Só a partir daí, poderão surgir novas idéias quanto ao grau de profundidade do coma a lhe afligir. Marchioni mostrava-se prolixo. Dizem alguns: prolixidade é uma das características mais evidentes da insegurança. Mui comumente, quando se aperta o médico para uma definição mais convincente corre-se um risco adicional: o doutor sai pela tangente. Não se pode considerar tal atitude como um defeito ou mesmo má vontade. Nem ao menos rotulá-la de insegurança. Não tem sido fácil ao facultativo, principalmente no Brasil, onde as atitudes emocionais distanciam-se do racional, vaticinar um prognóstico diferente daquilo desejado pelo paciente ou sua família. Mesmo no colóquio de colega para colega, uma sentença definitiva não flui com rapidez. E não é a esperança a última a morrer? Embora contrafeito com a indecisão do neurologista, restava ao Dr. Juarez o consolo da esperança. Dando-se por satisfeito, despede-se dos colegas e procura assegurar-se da discrição de ambos. Em seguida, volta ao gabinete. Formalíssimo, o superintendente não se expunha a vexames; tinha consciência de seu papel naquele contexto político, principalmente quanto à quebra da disciplina imposta pelos regulamentos e rotinas. Incapaz, em condições habituais, de permitir deslizes disciplinares, antevia, preocupado, o desenrolar dos acontecimentos, desta vez envolvendo pessoas do mais alto escalão político e social da capital paulista. E o pior. Seus amigos! Não conseguiu demorar muito no gabinete. Logo concluiu ser melhor ir para a residência. Deixou o gabinete e passou pela sala do administrador de plantão, onde reiterou sua preocupação com o caso, solicitando-lhe, de forma veemente, todo cuidado com visitas e pedidos de informações. Em casa, não deu outra. D. Nilsa mostrou-se mais interessada na problemática social, acima do infortúnio. A maioria das perguntas, naquela verdadeira inquisição, tinha como objetivo específico a repercussão do evento no contexto social, numa evidente troca de valores e conceitos. Enquanto aguardava o sono, recordava-se dos versos do poeta pernambucano Ascenço Ferreira, a quem conhecera, durante sua vida universitária, na velha Faculdade de Medicina do Derby, margeando as águas do Capibaribe. "Na minha vida, cruel e avara o amor tem sido a chama clara alumiando a escuridão. Porém, repara bem, repara, e vê a nada se equipara o imenso horror dessa aflição. - Se acaricio a chama clara a chama queima a minha mão." "Por quê tanta preocupação com o fato social, se os fatores em jogo podem ser outros? Não seria possível aquela mulher, ainda jovem, estar presa a um estado emocional tão profundo levando-a ao passeio quase fatídico? Não poderia a relação com o marido ter atingido o fundo do poço. A vida é tão curta e nada nos deve impedir o melhor aproveitamento dos momentos de emoção. Eles são tão poucos." Recordou-se ainda de um repentista de Caruaru, quando instado a conceituar o modo social, saiu-se com esta: "O mundo vá pras favas. O mundo só vale o meu. Dos outros esqueço as falas. O valor quem tem sou eu".

13. Marido traído não tem vez

Sérgio, desolado, tenta obter alguma informação sobre a possível entrada da sua esposa no PS do HC. Estivera, antes, na Santa Casa, nos Prontos Socorros municipais e nas Delegacias. Curiosamente, deixara o HC, a sua derradeira esperança, por último. O relógio marcava cinco e vinte da manhã de sábado, 14 de dezembro. Logo à entrada, a primeira barreira - não havia sido atendido ninguém com o nome de Denise Stronheim, pelo menos nas últimas quarenta e oito horas. Sonolento, o registrante do PS insistia para ele desistir da busca naquele local. Nisso, como num passe de mágica, Sérgio retirou um maço de notas do bolso do paletó e entregou-o ao funcionário. Este o chamou do lado e longe dos olhares curiosos saiu-se com esta: - Vou procurar melhor. A única Denise constando aqui tem por sobrenome Marchioni; Stronheim mesmo, não há registro. - Mas, a minha mulher chama-se Denise Marchioni Stronheim. - O superintendente chegou aqui e mandou a gente manter sigilo e não falar do caso pra ninguém; também o delegado do distrito veio pessoalmente e conversou com ele. Por isso, tive o cuidado de não abordá-lo na frente de estranhos. Preferi falar-lhe sozinho. Não tinha a menor idéia de como o senhor iria receber a notícia. Procurou resumir a ocorrência e prosseguiu - o moço está sendo operado de urgência no Centro Cirúrgico e dona Denise permanece na Unidade de Tratamento Intensivo, em observação. O caso parece grave, mas uma informação mais precisa o senhor obteria com o supervisor de lá. - Muito obrigado. E como conseguirei falar com o supervisor? - O senhor aguarda um pouquinho? Tentarei localizá-lo. - Não, eu já conheço a U.T.I.. Procurarei falar com ele. - É proibido entrar lá. - Pode deixar, eu acerto. - Aonde vai o senhor? - pergunta, barrando-lhe os passos, D. Arminda, enfermeira da U.T.I.. - Desculpe, minha senhora, procuro o supervisor. - Quem é o senhor? - O marido de dona Denise, uma senhora acidentada há mais ou menos seis horas. - Como? O marido de dona Denise? Impossível. - Minha senhora! Eu brincaria com uma coisa destas? - O senhor me desculpe. Isso já deu uma confusão incrível. Imagine, quando o casal acidentado deu entrada aqui entendemos tratar-se de marido e mulher. Duas horas depois, veio um moço dizendo-se marido dela e o deixamos entrar. Agora o senhor, com o mesmo papo! Há de entender a nossa preocupação... - Olhe, dona. Eu sou mesmo marido dela. Eis a minha Carteira de Identidade. Examine-a por favor. - Desculpe, mas é incomum acontecer isto no HC: duas pessoas dizendo-se marido da mesma paciente. Sente-se aqui um pouquinho. Vou chamar a supervisora. Um momentinho só! - Dona Lúcia! Há uma confusão danada lá fora. Tem um cara dizendo-se marido da Dama de Preto. Parece gozação. O segundo falando a mesma coisa! - Arminda, pare de piada... Tô muito ocupada. - Olhe, dona Lúcia, poliandra ou não, não interessa, o ser tirou do bolso a Carteira de Identidade do bolso e para provar ser o marido dela quase esfregou-a no meu rosto. Não tenho a mínima idéia de qual atitude tomar. Por isso, estou falando com a senhora. - Vamos chamar o supervisor e ele vai decidir o caso. Um momentinho. - Doutor Grimário, Lúcia. Há um homem lá fora querendo falar-lhe a todo o custo. Diz-se marido de dona Denise. - Como? Marido da Dama? Piada de mau gosto. O

segundo contando o mesmo papo! Já imaginou a confusão? Primeiro, a mulher chega aqui acidentada com um cara parecendo o marido. Em seguida, vem um indivíduo, com jeito de "pleiboi", afirmando ser o seu esposo. Depois, aparece o superintendente, sem nunca vir ao hospital à noite, todo preocupado, conversa comigo e com o delegado. Agora, mais de cinco da manhã, pinta um sujeito dizendo-se seu marido. Aí tem coisa. Ainda bem. Com sonda na traquéia, ela não pode esclarecer nada mesmo. - E daí. O senhor vai falar com o cara ou não? - Não tenho escolha. Isto aqui virou consultório sentimental. Dirige-se ao hall de entrada. - Quem deseja falar com o supervisor da U.T.I.? - Eu. Boa noite. Meu nome é Sérgio Stronheim. Sou o diretor superintendente das Indústrias Crescente. Tive uma reunião de diretoria da nossa organização, e após o seu término dirigi-me para casa. Esquecendo a chave, toquei a campainha e como Denise não viesse atender, chamei a empregada, e ela abriu a porta da cozinha. Quando cheguei ao nosso quarto, notei a sua ausência. Procurei-a na residência de amigos comuns, onde ela costuma bater papo e eles até ficaram surpresos quando me viram. Passei em todos os lugares onde pudesse estar: delegacias, pronto-socorros e nada. Aqui, no Pronto Socorro, informaram-me ter ela dado entrada após um acidente na Ladeira do Morumbi. Não tenho idéia do acontecido, porque ela nunca sai, principalmente à noite. Quando tenho reunião de diretoria, espera-me em casa. Eu não estava sequer emocionalmente preparado para este tipo de acontecimento. Perdoe a insistência, mas gostaria de ver a minha esposa. - Realmente, dona Denise deu entrada aqui depois das vinte e uma horas. De início, suspeitávamos de uma fratura do fêmur direito e outra no terço superior do úmero esquerdo. Mas, quando tiramos-lhe a pressão, verificamos estar praticamente nula e o pulso filiforme, quase imperceptível. Preocupados, chamamos o anestesista de plantão. Ele prontamente passou um tubo na sua traquéia, assegurando a respiração e instalou um aparelho de respiração assistida. - Muito grave, doutor? - Sim, muito. Ainda fizemos uma série de exames radiológicos para pesquisa de outras fraturas, comprometimento abdominal, do sistema nervoso central e observamos uma evidente fratura de base do crânio. Veio também o cardiologista medicando-a de pronto, o neurologista procedeu à pesquisa de reflexos e referendou a possibilidade de abalo no sistema nervoso central, só podendo ser aclarado, logo mais, quando chegar a equipe de neuro-radiologia. No momento, está desacordada. - Poderia vê-la? - Sim, mas ela não fala. Aliás, o senhor obterá melhores informações com o neurologista de plantão, por sinal primo dela. O doutor Marchioni. Foi ele quem a identificou, pois o pessoal da ambulância não conseguiu encontrar nenhum documento de identificação. - Estranho. Muito estranho mesmo. Ela usava uma corrente de ouro, bem grossa, com um medalhão e seu nome gravado. Certamente, com o impacto, a corrente soltou-se e caiu. - Nestas horas, jóias e dinheiro desaparecem como por encanto. Até os curiosos furtam. Nos acidentes desta natureza temos tido dificuldades para a identificação das vítimas. Felizmente Marchioni a identificou. - Nosso primo, sim. Sobrinho do pai dela. - Primeiro vamos vê-la, depois encaminho-o a Marchioni no repouso do plantão geral. Após uma noite onde mesclaram juras de amor, sonhos, fantasias e pesadelos e mais, a busca da cara metade, desaparecida como por encanto, o estado de espírito de Sérgio Stronheim não poderia refletir harmonia, nem tranqüilidade. Pelo visto, a situação somente se esclareceria após a recuperação de Denise. Numa hora destas, a mente humana funciona como um verdadeiro computador: idéias surgem e passam numa rapidez espantosa. Misturam-se: amor próprio ferido, machismo, sensação de perda, sentimento de culpa, espírito de família, drama de consciência, insegurança e até amor real. Ingressam na U.T.I. em direção ao box onde Denise travava a maior das lutas:

sobrevivência ante o fatalismo da situação. Ao vê-la naquele estado, no mínimo lastimável, sua atitude nem poderia ser considerada como inesperada. - Deni! Deni! Sou eu! Sérgio. Doutor, ela nem mexe os olhos. Ainda está viva? - Sim, senhor. Porém sem condições de responder ao seu chamado. - Doutor, eu poderia sentar um pouquinho? Não estou mais agüentando permanecer de pé. - Vamos aqui ao lado. Há uma sala de espera, enquanto isso tento conseguir um cafezinho. - Prefiro um copo com água. Dirigem-se à sala de espera. Instantes após, refeito do impacto inicial, o visitante sugere o seu encaminhamento ao doutor Marchioni, duplamente interessado, capaz de dar-lhe esclarecimentos mais detalhados. Despedem-se e o supervisor volta para o Posto de Enfermagem da U.T.I.. - Dona Lúcia, basta de marido. Nem me agüento de pé. Vou despencar por uma meia horinha. - Pode tirar o cavalo da chuva. Francisco, ar preocupado, entra na conversa. - Chega por hoje. Estou desmoronando. - Por favor, Grimário! É sério. - Desta vez você não pode resolver? - Estamos com onze pontos na loteca e só faltam dois jogos. - Tudo bem. Se ganhar passo o prêmio inteirinho para você. Dará até para comprar o Mercedes da Ladeira, a Dama de Preto e os dois cornos. - Tá doido. Depois dessa, vou preferir ficar solteiro. Arminda descreveu a cara do alemão quando ela falou do outro marido. - Temos um caso de tri-cornice: o motorista da Mercedes, o segundo mais parecendo filho dela e... - Cavalo velho, capim novo. - O terceiro com cara de alemão desbotado. - Pelo visto, vamos morrer solteiros. A não ser se houver alguma coisa por trás de tudo e isso desconhecemos. - Qual a sua idéia? - Ora, alguma trama familiar. Quando se mistura dinheiro e mulher, tudo fica mais complexo. Pode ser um choque de interesses. - Quem sabe não daria enredo para a próxima novela da Globo? - Estranho. A dona não trazia nenhuma identificação, nem ao menos uma aliança. Uma grã-fina como esta, certamente não sairia de casa sem jóias de todo tipo. - O problema maior, é o furto. Aqui no PS, acredito o pessoal ser honesto, principalmente quanto a documentos. Em se tratando de dinheiro, a coisa muda de figura: a turma pode pegar, pois dificilmente identificar-se-á os culpados. Gente demais envolvida, pessoal da rádio patrulha, curiosos, pessoal da ambulância, a turma da polícia. Não é à toa, a direção do hospital pedir para ninguém trazer valores de qualquer natureza. Vai mais longe, isenta-se previamente de qualquer responsabilidade. - Bem, chefe. Quer me acompanhar até o box 8? O japonês da soda cáustica com coca-cola acaba de expelir dois saquinhos de plástico intactos, com um pozinho branco. - Preferiu tomar soda em doses homeopáticas. - Aquilo lá não é coca-cola. Só coca. A soda reduziu a bebida aos seus componentes. - Pela história, a tentativa de suicídio ocorreu durante uma batida policial no bar do japonês. - Então a situação se auto-explica. Fique com o japonês, vou descansar.

14. Na delegacia

O delegado geral ingressa na sala do plantonista para reiterar-lhe o pedido de abafamento do caso. Após os cumprimentos de praxe, vai direto ao assunto. - Não podemos deixar de atender a uma solicitação do doutor Juarez. Um acidente na Ladeira do Morumbi, envolvendo um casal

num Mercedes, às dez horas da noite, é assunto de grande interesse para a imprensa marrom, sempre sedenta de sangue. - A propósito, o senhor já disse se a gente espremer determinados jornais da cidade, chega a sair sangue. Logo após a comunicação estive no local com a polícia técnica e tomamos as medidas de praxe. Em seguida, fui ao hospital, falei com o doutor Juarez, aliás, muito preocupado com o acidente, pediu para não liberarmos o noticiário. Na verdade, desconheço as circunstâncias do caso. De qualquer maneira, parece haver algo estranho nisso tudo. Nem saberia lhe dizer se o culpado foi o caminhão ou o carro. Enfim, não liberei a notícia à imprensa, mas o fato é público. Muita gente, comenta a ocorrência, independentemente do noticiário - esclarece o delegado de plantão. - Realmente, há muitos anos, ainda quando iniciava a minha carreira na polícia e Juarez estudava medicina, ficamos amigos. Somos até da mesma cidade do Nordeste. Eu estava numa festa, e ele também, e lá, depois de receber um telefonema, comunicou-me o fato. Pedir para a imprensa não noticiar, não parece fácil, mesmo porque, mais cedo ou mais tarde, a nota sai. Pelo visto, a moça tem ligação com os donos da Indústria Crescente. Certamente, há muitos interesses em jogo e não sei até onde vamos. Você saiu do hospital há muito tempo? Comentou o Geral. - Logo após conversar com o doutor Juarez, em torno de duas da manhã. - Soube alguma notícia do casal? - Apenas um rapaz estava com hemorragia interna e a moça tinha algumas fraturas e comprometimento cerebral. Desconheço mais detalhes. - Pudera! O caso é tão grave assim? - É sim. Pelo acidente em si, não parecia, porque o Mercedes tem uma lataria compacta e não vinha muito depressa. Mas, segundo o pessoal da RP, pelo impacto, o rapaz ficou preso no volante, daí o choque da direção com o abdômen, provocando a hemorragia interna. A moça foi atirada fora do veículo e bateu com a cabeça no chão, entrando em estado de coma. - E quem é o motorista? - Olhe, doutor. O policial da ocorrência entregou os documentos dele ao médico da ambulância. O seu nome é Caio. Não deu pra saber mais detalhes, porque até a hora da minha saída ainda não tinha aparecido ninguém da família. Sabe-se apenas ser dele o carro. E quem tem um Mercedes daquele não parece pobre. A moça foi identificada por um primo dela por coincidência, cobrindo o plantão de um colega. - Assim? - Sim, senhor. Ela não portava documento algum. Sequer uma bolsa. - Não acredito. Uma mulher tão elegante não sairia de casa sem uma bolsa e, muito menos, sem um documento de identidade. - Enquanto estava no hospital, cheguei a conversar com o motorista e o enfermeiro do caso, e foi uma coisa lembrada. O enfermeiro procurou, na calçada e no carro, alguma identificação da moça. Falta de documentos, dinheiro e jóias é fato bastante comum neste tipo de ocorrência. - Desaparecem como por encanto, você quer dizer. - Não tanto. Na hora do acidente todo mundo corre pra ver. Os transeuntes param, os carros brecam. Na ânsia de ajudar ou por simples curiosidade, mas há sempre uma tremenda confusão em torno das vítimas. Quando a polícia chega, muitas vezes, aquelas mudaram de posição e nesta hora os seus pertences também passaram a outros donos. - Eles não têm perspectiva de sobrevivência? - O motorista, até pode ser. Por ocasião de minha saída do hospital ia ser operado. Quanto à mulher, o pessoal da U.T.I. tinha dúvidas, devido às lesões cerebrais. - Este tipo de acidente nem sempre é totalmente esclarecido. Também, raramente, um esclarecimento serve de ajuda. De qualquer modo, na medida do possível, evitaremos estardalhaço da imprensa. - O carro foi removido e o motorista do caminhão fugiu. - Resta-nos aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Mais tarde, vou descer a serra, pois a família está no Guarujá desde o início do mês. Deixo-lhe o meu celular e se surgir qualquer novidade me telefone. - O doutor Juarez também me deu o cartão dele. - Sim. De qualquer maneira, vale ficar com os dois. Despedem-

se e o plantonista prossegue na rotina de atendimento das queixas e reclamações. Antes comenta com o escrivão. - Luiz. Este acidente ainda vai dar panos pra mangas. Deve haver muita gente importante envolvida. Dou plantão aqui há três anos e nunca tinha visto a cara do Geral por estas bandas. - Concordo plenamente, doutor. Vai ver é gente do governo.

15. Imprensa à vista

No serviço de Registro de Emergência. - Escuta lá, vamos deixar de mistério? Por quê vocês não querem liberar a notícia da Ladeira do Morumbi? - o repórter policial interpela o chefe do Registro de Emergência. - São ordens de cima e não as discutimos. Se você tiver algum problema, procure amanhã cedo o Serviço de Relações Públicas. - Vocês querem tolher o trabalho da imprensa? Todo mundo sabe, vivemos disso. - Se está direito ou não, problema seu. Vocês fazem estardalhaço com tudo no HC. A gente é sempre notícia na imprensa marrom. Ninguém colabora conosco em nada. Quando se pede pra divulgar alguma coisa em benefício do hospital a notícia aparece num lugar onde ninguém lê e com jeito de missa de defunto. Parece estranho. Daqui só sai necrológios. - Não esqueça, a gente vive disso. O dono do jornal quer coisa quente, com vendagem, tiragem. Se o povo gosta de sangue, de desgraça, e se este hospital é de sangue, ninguém pode evitar a exploração do noticiário. Você é profissional, também o somos. E aquele investigador fajuto de plantão? Não custa nada esclarecer. - Isto é problema dele. O policial, ouvindo atentamente a discussão, não deixou por menos: Ei. Eu sou investigador de polícia, não o secretário de segurança. Cumpro ordens. Você não viu o delegado aqui? Então, eu vou soltar a notícia aí, de cara? - Mas, podia maneirar um pouquinho e em troca a gente não faz espalhafato. Também um presuntinho a mais, não vai acabar com o mundo. Atualmente, o povão tá mais interessado nas vitórias do Corintians e nas eleições diretas para a Prefeitura. Dois grã-finos vestindo o pijama de pau, nem vai dar IBOPE. - É mesmo? - E você até não faz espalhafato. Diariamente, a gente abre o jornal e não vê outra coisa senão: "Doente vítima de canibalismo." "Estupro no Poá." "Hospital invadido por marginais da Favela do Vergueiro." E depois acham ruim a gente não concordar com isso. Se conseguíssemos viver em paz, fazer um pacto decente, liberaríamos as notícias e vocês simplesmente as transmitiriam. Mas vocês não querem, fantasiam tudo. - Profissão é profissão. - Profissão não, isto tem outro nome: Imprensa Marrom. - O povo tem o noticiário merecido. Então só quero satisfazer o povo. Com o povo estarei bem. - Não as custas do Central. Setenta por cento das notícias escandalosas publicadas são por conta do Central. Tenha dó... - Vem cá, só uma noticiazinha, vai. Nunca vi tanto grã-fino, tenho impressão de irmos a um baile carnavalesco. Você viu a mulherada? Cada decote! Nem a gente no Guarujá ia ver tanta peitaria. Difícil encontrar tanta dona boa num hospital. - A única conclusão: este casal deve ser da alta. - Não diz bobagem. Só um casalzinho Vip. Vai ver, este cara nem é marido dela. - Isso, eu sei. Viu o ar de tristeza daquele outro? Não o deixaram entrar. - Claro, parece impossível tanto marido de uma mulher só. - Engraçado, notei uma coisa, você diz não

é casal, mas a mulher do cara acidentado ainda nem apareceu. - Realmente não a vi. Mas não tem nada não. Pode não dar notícia policial, mas uma belíssima fofoca na coluna social... - Não sei, não posso falar nada. - De qualquer modo, fica sossegadinho, teu jornal, amanhã, não vai largar esta não. - Para ti, é fria! - Fria só porque você quer. Vou dar um jeito de conseguir qualquer coisa. Amanhã, quando você menos esperar, sai uma notícia mais ou menos assim: "Adultério na Ladeira do Morumbi. A justiça divina tarda mas não falha. Casal Vip da nossa sociedade em busca de um ninho de amor, na Ladeira do Morumbi, encontrou um caminhão no cruzamento do sinal perto do Palácio Bandeirantes. Com o impacto, a Cinderela foi projetada fora do carro e o motorista imprensado nas ferragens do Mercedes. A polícia técnica compareceu ao local, e o casal, removido em ambulância para o Hospital Central. A direção do hospital, não se sabe porque, evitou contacto conosco e não permitiu à reportagem acesso aos serviços de imprensa de plantão. Todavia, estaremos a postos e, na próxima edição, publicaremos na íntegra os acontecimentos." Uma beleza, não acha? - Beleza não. Uma merda de notícia. Você não sabe nem o nome dos pombinhos. - Mas vou saber direitinho o nome desses presuntos.

16. Segredos desvendados

Domingo de verão. Sérgio Stronheim deixa o recinto do HC, angustiado com uma situação de todo inesperada. "Como isto pode ter acontecido? Não conhecia nenhum Caio. Denise jamais mostrara qualquer tipo de desajuste no casamento. Davamo-nos bem até onde permitia uma vivência em comum na mais alta sociedade paulistana. Procurava ter amigos sempre aos pares. Não por puritanismo. No círculo de amizades do casal incluíam-se casados, descasados, homossexuais, bissexuais, polígamos, poliandras enfim de tudo no mundo Vip. Só não conseguia entender o porque da atitude dela abandonado o lar numa sexta-feira à noite, quando havia sido devidamente cientificada de uma reunião de diretoria. Na verdade, não houvera reunião alguma, mas, disso ela não tinha conhecimento." Em casa, pediu um café forte e tentou dormir. Quase não conseguiu conciliar o sono. Os poucos momentos de sono se transformavam em angustiante modorra, entremeada de pesadelos e sonhos fantásticos. A angústia aumentava. Passou a sentir palpitações. Num dado momento, o relógio da mesa de cabeceira trouxe-o à realidade. Eram 10 horas. Raios solares de intensa luz davam um ar de vida, difundindo-se por todo o ambiente. Sempre dormira em cama de casal. Sentia-se muito bem ao lado da mulher. Neste momento, ela lhe fazia falta. Olhou a mesinha de cabeceira do lado dela e observou um fio muito fino saindo da base do telefone. Jamais o notara. "Quê será?" Acompanha o seu trajeto e verifica sua entrada no carpete. "Estranho. Muito estranho, este telefone de uso privativo da Denise. Nem consta da lista telefônica." Desce à cozinha, pega uma chave de fenda, um alicate e uma tesoura disposto a desvendar aquele mistério. Descola o carpete e com a ponta da chave de fenda tenta isolar o fio daquele emaranhado de pelos. Cuidadosamente vai prosseguindo até encontrar uma tampa de alçapão, bem num

cantinho em meio das tábuas do piso do quarto. Levanta-a e depara com um pequeno gravador, estrategicamente disposto. Um verdadeiro trabalho de mestre. Lembrou-se não ser somente ela a usuária daquele telefone. Também ele o fazia para as pessoas mais íntimas. Voltou-se para a sua mesa de cabeceira e observou idêntico equipamento. Concluiu: "Um serviço de espionagem telefônica perfeito. Ela controla os dois aparelhos, e o objetivo?" - Interrogou-se. A busca foi interrompida pelo ruído do telefone. - Papai, gostaria de falar com a mamãe. A filha mais velha, Silvinha, pretendia permanecer no Guarujá até o domingo, não retornando no sábado como havia previsto. Instantes intermináveis, antes da resposta, deixavam a sua mente a mil por hora. "Vale a pena contar a história do acidente? Tinha Silvinha maturidade para sabe-lo de chofre, sem uma preparação? Preferiu calar. Aquele não lhe parecia o momento propício." - Silvinha, a mamãe foi visitar uma amiga acidentada no banheiro. - Tá bem, papai. O senhor deixa a gente ficar hoje no Guarujá? Cláudio vai fazer aniversário e nos convidou. Não terá festa, apenas uma reunião. - Olhe, minha filha. Pode ficar. Mas, é possível a gente descer esta tarde e passar o final de semana com vocês aí. A sua mãe chegando telefona. - Tá bem, papai. Se quando o senhor chegar a gente tiver saído, deixo a chave com o zelador e um bilhete dizendo onde a gente ta. - Sim, Silvinha. Um beijão. Desliga o telefone e incontinenti passa a imaginar um modo prático de colocar as coisas em ordem. Como Marchioni lhe relatara o seu papo com o superintendente do HC, resolveu ligar para ele. Aí tomou conhecimento do casal Marchioni estar retornando para o Brasil. Voltou à tarefa de decifrar o enigma das ligações dos telefones. No seu lado, havia uma caixinha com várias fitas minúsculas. Colocou uma delas no gravador e levou um tremendo susto: - Norma, não dá pra falar agora. Ela entrou no banheiro e pode escutar. - Puxa. Havíamos combinado falar exatamente agora. - Mas não dá, Norma. Vou arranjar uma desculpa e sair. Espere-me no Shopping Center do Morumbi dentro de 40 minutos. Antes telefone para Freitas e ele me ligará falando de um problema na fábrica. Ligue logo. Se Freitas não estiver, procure Oscar. Preciso alguém me telefonando antes para eu poder preparar o caminho. Tchau. Desligou. Ansiosamente, foi colocando novas fitas e a cada conversa gravada, um susto. Cada vez mais tenso, passa para o outro lado e rebusca no cofrinho do gravador. Pega, primeiro, a fita do aparelho, bate na tecla do rewind. Imediatamente, o carretel retorna ao ponto inicial. Um leve toque no play, traz à tona um diálogo ainda fresquinho: - De onde falam? - Da residência do doutor Stronheim. - Denise? - É a senhora Sérgio Stronheim. - Como vai? - Muito bem, e você? - Lembra do dia de hoje? - Não... realmente, os dias se parecem tanto... - Claro, lembra. Sim. Continuou escutando a conversa. Simplesmente aquele papo telefônico falava por si só. Achava-se um tonto. Jamais desconfiara da mulher. Não se conformou. Escutou outras fitas e identificou até a voz do seu motorista, num papo apaixonado com sua mulher. "Meu Deus! Inacreditável, como poderia um cara tão vivido e experiente, cair numa esparrela deste nível. Até com o meu chofer! Aquele mulato fedido com cara de mestre-sala de escola de samba. E agora?" Outra fita, novos choques. Desta vez, o papo era, em inglês. Daniel, um engenheiro sueco, contratado pela Crescente para a elaboração de um projeto de sistemas. Estivera no Brasil por dois meses. Parecia até homossexual. Pelo visto, tocava o mesmo instrumento dele. "Tudo tão estranho". As fitas apresentavam um ordenamento à altura de um arquivista eficiente. Cada personagem era tratado de maneira monogâmica, como se fosse o único na vida dela. Guardou-as cuidadosamente. As incriminadoras, é claro. Destruiu as demais e entrou no banheiro. Encheu a banheira e enquanto aguardava uma temperatura mais agradável fez a barba. Diante do espelho, observava uma fisionomia cansada. Era muito para o

seu equilíbrio: tanto infortúnio em menos de doze horas; parecia demais. Os pensamentos mais desencontrados invadiam sua mente. Lembrou-se dos velhos tempos. Voltou à adolescência. Denise estudava no Colégio Sion e ele recém-ingressara na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e também na Getúlio Vargas. Diariamente a buscava ao final da aula e como ainda não havia completado dezoito anos, Dr. Stronheim, todo disciplinado, não lhe deixava dirigir automóvel. Mas, isso não o atrapalhava muito. O amor ultrapassava todas as barreiras. Andavam de mãos dadas. Pegavam o mesmo ônibus deixando-os no meio da Rebouças. Saltavam e, entre juras de amor caminhavam até o Jardim Paulistano. Como eram vizinhos, a coisa se tornava mais fácil. Aos sábados e domingos, quando não desciam para o Guarujá; freqüentavam o Harmonia ou o Paulistano, trocando juras e mais juras de amor eterno. A namorada insistia em garantir haver sido ele o seu primeiro e único amor. Nem conseguia avaliar a importância de tal fato. Gostava imensamente dela. Surpreendeu-se quando ao ingressar no terceiro ano de Faculdade, o comendador Marchioni o convidou para estagiar na Crescente. A essas alturas tinha o seu próprio carro, um fusca, enquanto a namorada desfilava de Mercedes ou Alfa. Ela, muito rica, nem se dava conta disso. Saiam de fusquinha, desciam a serra, curtiam a Praia da Enseada sem nenhum complexo com o carrinho. Filho de um engenheiro alemão casado com uma jovem quatrocentona, cujo pai, barão do café, jamais se recuperara da debacle da cafeicultura, recebera uma educação esmerada aprendendo, desde cedo, a conviver com pessoas do mais alto nível social. Como presente de noivado ganhara o cargo de gerente adjunto da indústria do sogro e ao retornar da viagem de núpcias foi guindado ao posto de diretor administrativo-financeiro. No começo da vida profissional, as benesses do sogro levaram-no a estágios em indústrias similares em Roma, Milão e Paris. Nas primeiras viagens sempre com a companhia da esposa. Após o nascimento da primeira filha passou a viajar sozinho ou com outros funcionários da indústria. Ao nascer a segunda herdeira, notou o ar de frustração do comendador, desejoso de um descendente varão para dar continuidade ao seu quase império. Como Denise houvera sido submetida a cesariana por duas vezes e interrompera uma gravidez devido a problemas hormonais, não parecia haver interesse na insistência de mais um filho. O casal gostava de receber os amigos e adorava a vida noturna. Tinha assegurada presença na crônica social dominical de vários matutinos paulistas e também participava de eventos beneficentes. Numa vernissage do MASP conheceu Norma. Pode-se caracterizar o seu relacionamento com ela como uma paixão fulminante. O caso culminou com um desquite de Norma, muito bem casada com um professor da USP, Dr. Cid Guimarães, gostando mais de livros e de música e deixando de lado a vida matrimonial. Aquela sensibilidade exagerada poderia estar escondendo uma vida dupla. Mas Norma nem gostava de falar no assunto. Nem se deu conta de Denise poder descobrir seu romance com Norma. Conseguia curtir a situação em toda plenitude. Seu cargo na Crescente exigia constantes viagens para o eixo São Paulo-Rio-Brasília e também idas ao exterior foram se tornando constantes. Com o Concorde conseguia almoçar no Rio e jantar em Paris. Passeios e trabalho, viagens muito apressadas passaram a entediar Denise, sempre preferindo ficar na cobertura do Jardim Europa. Os sogros o consideravam gerente geral do patrimônio e conheciam a importância do casamento em regime de comunhão de bens por exigência da própria filha. O comendador, zeloso do valor real do seu patrimônio, ainda tentara convencer a filha para um regime de comunhão parcial de bens, mas não conseguiu demovê-la. Sabia também enquanto fosse vivo, qual autêntico siciliano de Palermo, daria sempre a última palavra. E o genro tinha consciência disso. Os anos foram passando e Denise mergulhara num

tipo de conduta completamente diferente. Tornou-se apática com relação aos valores considerados importantes. Falar de negócios era quase um crime de lesa majestade. Tinha um apurado gosto artístico e não dispensava os cursos de artesanato de qualquer natureza. O seu forte era uma destreza manual evidenciada no aprendizado de piano, tocando de maneira idêntica à da época de adolescente quando pretendia seguir a carreira de concertista. Todavia, jamais viria a sê-lo, face a uma tremenda e incompreensível timidez. Certa ocasião, uns amigos italianos do comendador, dentre eles um concertista de renome em Milão, tentaram a todo o custo ouvir Denise ao piano e nada conseguiram. Tocava somente para os pais e, após muito relutar, permitiu ser ouvida por ele. Impossível mesmo aceitar-se a idéia da junção de tanto talento com tão inarredável timidez. Dizem mesmo o excesso de timidez poder esconder uma mente rica em criatividade. Porém nem isso deixava transparecer. Não tinha amigas íntimas e, muito menos, confidentes. Adorava ficar sozinha e em determinadas ocasiões nem a companhia das filhas parecia lhe agradar. Mostrava-se uma pessoa amante de si em cima de tudo e de todos. Cultivava a beleza física, gastando minutos intermináveis com ginástica, massagem e na experimentação de dietas de emagrecimento e manutenção de peso. Praticava ioga, mostrando um incomum pendor para a filosofia indu. Certa vez, trouxe dois sacerdotes indianos para um fim de semana em casa e assumiu uma atitude contemplativa de chamar a atenção. Detestava jóias e nem relógio usava. A única exceção era uma corrente de ouro com um medalhão, com o seu nome gravado, presente de um tio italiano. Afora isso, mais nada. Quando alguém lhe presenteava com jóia de qualquer natureza, tentava a todo custo recusar o presente. Sua única e evidente superstição era o costume de só entrar e sair de casa com o pé direito. Mantinha um certo distanciamento das filhas, embora fosse grande a sua exigência em matéria de comportamento e etiqueta social. Não parecia cultivar a intimidade com elas. Com a mãe o relacionamento era cordial e bastante profundo, chegando a telefonar-lhe várias vezes ao dia, enquanto com o comendador parecia haver uma certa distância. Contaria os seus inúmeros casos amorosos a D. Nilsa? Não gostava muito de dirigir automóvel, sob a alegação de não suportar o trânsito da paulicéia. O seu pavor de tomar as rédeas do volante aumentou quando Eduardo, um mulato baiano, foi contratado como motorista da família. Até passou a sair mais de casa se Eduardo estivesse à sua disposição. Não tinha alternativa. A sua única chance: enfrentar a situação. Não teria mais ambiente para dirigir a fábrica do sogro. Também isto não constituía o menor problema: casado com comunhão de bens, além dos 50%, ficaria com a guarda das filhas. Destruídas as fitas capazes de incrimina-lo, restavam simplesmente aqueles colocando Denise em maus lençóis. Sim. E se ela, matreira, as tivesse copiado e mantivesse em algum lugar secreto? Vasculhou todo o quarto em busca de algo criado pela imaginação. Abriu até o cofre e não se deu conta da perda de tempo. Se ele portava a chave, não poderia Denise ser tão estúpida a ponto de colocar alí algo comprometedor. Abriu a janela do quarto e contemplou a vista daquela manhã de verão. Um dia realmente lindo; nem parecia uma manhã paulistana. Vestiu-se e desceu para o café matinal. Nem se preocupou com a leitura dos matutinos, sua primeira iniciativa ao levantar-se. Pensou nas meninas. O melhor seria buscá-las no Guarujá. Daria uma nova passadinha no HC, veria o estado dela e desceria a serra. Lembrou-se de Norma. Resolveu telefonar-lhe. A empregada atendeu. Não se sabe porque, não se identificou. Foi cientificado da descida de Norma para o Guarujá com um amigo a quem buscara no Aeroporto de Cumbica. E descera sem as meninas. Desligou ainda mais confuso. Piorou. "Norma também?" Sentiu-se mal. Acordou com a empregada gritando. - Doutor Sérgio. Doutor Sérgio! O senhor está bem? - Não é nada, Sebastiana. Apenas um ligeiro

mal-estar. Talvez o calor muito forte. Além disso, Denise está na U.T.I. do Hospital Central. - Como doutor? A dona Denise está no hospital? E por quê? - Ora, Sebastiana, ela sofreu um acidente ontem à noite. Saiu para jantar e o táxi levou uma batida. - Táxi, doutor? Então não era ela. - Por quê? - Ela saiu num carro igual ao seu e iria voltar bem tarde. - Como? Ela lhe disse isso? - Sim, doutor. Quando ela ia voltar tarde sempre me avisava. Mas pedia para não falar pro senhor. Como o senhor chegava mais tarde... Caio cortou-lhe a frase. - Sabe com quem ela saiu! - Não, doutor. Isso ela não me disse. "Puxa vida! Até a negra estava por dentro das aventuras e o burro aqui dando uma de inocente. Só faltava essa." Nem terminou o café. Levantou-se e comunicou à empregada a descida da serra e pegar as meninas no Guarujá. Se alguém o procurasse, dissesse voltará no final da tarde. Pegou o carro e resolveu passar antes na U.T.I. do HC. Durante o trajeto, um emaranhado de imagens conflitava na sua mente. De todo o ocorrido, o pior era o caso de Denise com o motorista. "Ela desceu ao fundo do poço. Imagine-se o meu ridículo por todo esse tempo diante do pessoal da indústria. Aquele negro desgraçado deve ter falado para toda a peãosada das transas com a minha mulher." Lembrou-se ainda do incidente na entrada do HC quando procurava Denise. "Ela resolvera envolver-se até com rapazes. Não ficara louca? Certa ocasião, quando Mônica, amiga dela de infância, comunicou-nos a procura do divã de um analista, foi até motivo de gozação por parte de Denise. Celi, antes de se desquitar, também tocou no assunto. Denise não entendia porque as duas amigas poderiam precisar de um analista. Para ela, tudo se apresentava de maneira tão natural inexistindo problemas. Quando a coisa amainar, vou pegar o diabo daquela negra alcoviteira e dar-lhe um vomitório. Vou saber de mais coisas. E vai adiantar? Conheço o suficiente para não duvidar de mais nada. Agora, analisando os fatos, começo a entender aquele ar de gozação de Norma, ontem à noite, quando falei de Denise. Caí no conto do marido enganado: fui o último a saber e para tanto tornou-se necessário aquela piranha parando na U.T.I. do H.C.. Mas, não tem nada não. A justiça divina não tarda. Ela há de pagar tudo. Vou botar aquele negro filho da puta na rua, e ainda hei de descobrir o pleibói falso marido daquela galinha na U.T.I. do HC." Amor e ódio são sentimentos bastante próximos. Neste momento Sérgio odiava. Desta vez não teve dificuldades para ingressar na U.T.I. do HC. O superintendente liberara os horários de visita para os familiares. De tão enraivecido nem declinou a condição de marido de Denise. O recepcionista era o mesmo da primeira vez. Quase o foi buscar na porta de entrada. Adentrou a U.T.I. sem maiores problemas e seguiu direto para o box 5. Olhou para Denise, sem insistir numa resposta. Nem sequer a estimulou. A enfermeira ao lado achou um tanto estranha a sua atitude: imóvel por instantes, nada falou e nem tampouco perguntou. Ela, totalmente fora de órbita, não mostrou nenhuma emoção. Também, nem poderia fazê-lo. Sérgio retirou-se e pediu para dar uma olhada no paciente do box 2, seu rival naquele emaranhado de intrigas. A enfermeira mostrou-lhe o paciente ainda bastante sedado, debatendo-se naquela confusão de fios e aparelhos. Sérgio não lhe dirigiu nenhuma palavra. De nada adiantaria, pois, certamente, Caio sequer o conhecia. "Quem é esse cara? Não me recordo de jamais tê-lo visto. Incrível o mundo onde a gente vive. Só posso explicar tudo isso como um gesto de loucura de Denise. Mas, considerando o número de pessoas com quem transava, deve ser uma insanidade crônica e bastante antiga. Se ela ficar boa, vou interna-la numa clínica especializada." Deixou o HC e desceu a serra. No Guarujá passou por inúmeras dificuldades para pôr as duas filhas adolescentes a par do ocorrido. Silvinha, a mais velha, chocou-se bem menos, enquanto Regina demorou muito a aceitar a trágica situação. Sérgio evitou incriminar a mãe, mesmo porque concluíra, por antecipação,

atirar pedras na imagem de uma mulher naquele estado nada construiria com relação às suas filhas, guardaria somente os momentos felizes de convívio com a mãe. No caso de Denise, filha única, uma verdadeira vida de princesa, certamente haveria de transmitir às filhas um esboço do mundo por elas conhecido. O seu mundo. Ninguém consegue avaliar o desconhecido. E as meninas, na certa, julgariam a mãe com os parâmetros por ela transmitido. Denegrir a sua imagem evidenciaria ausência total de lucidez e Sérgio tinha consciência disso. Concluída a narração dos fatos, determina a arrumação das coisas e o imediato retorno a São Paulo para aguardar, em casa, notícias do regresso do casal Marchioni. - Papai, e a gente não vai ver logo a mamãe? Pergunta ansiosa Regina, a caçula. - Não vai dar. A mamãe não pode receber visitas. Assim, vamos aproveitar a chegada dos vovôs para ir todo o mundo junto. O superintendente do HC é muito amigo do vovô e se prontificou a permitir a nossa entrada. O retorno para São Paulo foi entremeado de soluços das meninas, recusando aceitar as novas circunstâncias, apesar de Sérgio ter procurado tranqüiliza-las o tempo inteiro. Em casa, o ambiente ficou ainda mais tenso. O telefone não parava de tocar. Parecia uma inquisição coletiva. Todos queriam saber mais do ocorrido e menos do estado de saúde de Denise. Alguns mostravam aparente confusão e não entendiam como o Sérgio saíra ileso do acidente. Mesmo sob tensão, tentava contornar a situação, evitando, ao máximo, detalhar certos pontos obscuros envolvendo o acontecimento. Sebastiana, a um canto, dava sinais de evidente desespero. Tentava guardar uma fidelidade canina à patroa, mas não conseguia encarar o dono da casa. Assustava-se ante qualquer pergunta, chegando mesmo a gaguejar. "Negra filha da puta. Te prepara, quando isso passar vou te pegar"- sentenciava para si mesmo, quase perdendo o controle. À noite ante a expectativa da chegada dos sogros, cresceu-lhe a angústia. Valerá a pena falar-lhes dos casos de Denise? Haverá condições psicológicas no casal para audição das fitas gravadas? Até há possibilidade do comendador entender o seu problema. Mas, na qualidade de super-mãe, Nilsa não teria condições sequer de ouví-lo. Além do mais, a precária situação de saúde de Denise iria decerto influir em qualquer juízo dos seus pais. Certamente escutaria: - Sérgio, vamos deixar este assunto para depois. A nossa filha vive uma condição de saúde a exigir, pelo menos no momento, um carinho sem qualquer interrupção. Ponha-se no seu lugar: de um momento para outro um acidente a deixa quase num estado de morta-viva desanuviando-lhe, a cada passo, as esperanças de um regresso ao convívio dos seus entes queridos. De qualquer maneira, você a amou. E a seiva do amor não fenece em dez horas. As datas do amor não estão no calendário. O espírito religioso de Nilsa, por demais arraigado, ligado por fortes cadeias familiares ao catolicismo, sobrinha direta do Cardeal Massina, não teria a mínima condição de concordar com uma possível retaliação proposta pelo genro. Poderiam ir mais longe: o acidente, a dor e o sofrimento teriam-na purgado de todos os seus erros. E se ele ainda insistisse, correria um risco adicional: entre você e seus pruridos machistas estúpidos e a nossa única filha, preferimos ficar com ela. Finalmente, optou pela manutenção do segredo. Evitaria a inconfidência até a recuperação total da esposa infiel. Ele também ser infiel, não o preocupava. No seu contexto machista, a figura do varão não se coadunava com os conceitos vigentes de infidelidade. Ele poderia sê-lo tranqüilamente, pois tal não o desprestigiaria. Também não adiantaria nada deixar de reconhecê-lo: as fitas gravadas, mesmo totalmente destruídas, representaram um importante papel na elaboração do perfil infiel de sua mulher. O seu trunfo, as fitas talvez nem tivessem validade. As idéias mais desencontradas o invadiam com incrível rapidez. Pensamentos estranhos quebravam a sua harmonia. Arroubos de vingança se entremeavam com sensação de saudade, perda de

algo importante na sua própria vida. Jantou com as filhas, ligou o vídeo cassete e nem bem começou o filme caiu no sono. Acordou-se sobressaltado com uma chamada telefônica do sogro comunicando-lhe a chegada no Aeroporto do Galeão e fretamento de um jatinho para Congonhas. Chamou as filhas e minutos após postava-se na sala vip do aeroporto, onde encontrou-se com o primo Marchioni, Dr. Juarez e D. Belinha.

17. Mengéve, Suíça, sábado 2:20 da manhã

Após desligar o telefone, com a voz embargada pela notícia, o comendador quebra o silêncio: - Denise ainda está viva? E este tal de Caio? - Olha, Marchioni. Juarez não enganaria a gente. Se ela tivesse morrido, nos diria. Acredito piamente em tudo - falou mansamente a D. Nilsa, tentando tranqüilizar o marido. - Apesar de amigo nosso, muito amigo mesmo, ele não deixa de ser médico. E pra esconder as coisas esta gente é fogo. Você não pode esquecer o caso da sua mãe, já sem fala, e eles dizendo vai ficar boa. - Sim. Minha mãe tinha câncer generalizado, e o médico fez todo o possível. Até prontificou-se a levá-la para os Estados Unidos. Denise vive uma situação diversa. - Aí a coisa muda. Ele queria leva-la para os Estados Unidos e ganhar uma viagem com mordomia e tudo. Você conhece esse tal de Caio? - Francamente não sei. Conheço um pessoal ligado a Sérgio e Denise, mas não lembro de ninguém com este nome. Poderia muito bem estar dirigindo o outro carro. - Não. Tenho certeza. Juarez foi muito claro ao telefone. Denise estava mesmo com ele. - Quem sabe, até de carona? - Ora, Nilsa, não seja ingênua. Imagine se a nossa filha ia dar carona a um desconhecido, à noite, na Ladeira do Morumbi! - Sim, mas não podia ser ela a carona? - Também não. Com dois carros na porta, só para ela, ía precisar de carona? Você tem cada uma. - Lá vem maldade. - Veja bem. Nossa filha única, desde menina a tratamos como uma princesa. Quando começou a namorar Sérgio você e eu demos-lhe todo o apoio. O casamento, acontecimento do ano. Viagem à Europa, enxoval todo bordado à mão, cobertura no Jardim Europa. Enfim, satisfizemos uma moça rica. - Sim, Marchioni. Nós lhe demos tudo, nem podemos lastimar nada. Seja quem fôr esse Caio, não devemos nos incomodar. Vamos tratar do imediato retorno ao Brasil. - Alugaremos um carro com motorista em Mengéve e iremos direto para Zurique. Não vai ser difícil conseguir passagem para o Brasil. A temporada de inverno ainda anda a pleno vapor, e os turistas não iniciaram o retorno. Você deve ir arrumando as malas. Com sorte, conseguiram uma conexão Zurique-Paris e lugar no vôo aterrizando no Galeão no sábado. Do Rio, facilmente alugariam um táxi-aéreo para São Paulo. Durante o trajeto, nos diálogos intermináveis, na maioria das vezes, a preocupação mais evidente relacionava-se com Caio. Embora totalmente desconhecido de ambos, o pivô do caso transmudava da Denise para o vilão, certamente um seqüestro. Novo rico, o comendador Marchioni constituía-se em figura badaladíssima nos meios empresariais da capital paulista, presença permanente na coluna social mais lida. - Imagine se as Notícias Populares tomarem conhecimento do assunto. Amanhã, em letras bem grandes, não deixarão por menos. "A filha do comendador Marchioni e seu amante sofrem um

acidente na Ladeira do Morumbi." - Deixa isso pra lá, Marchioni. Juarez nos garantiu haver falado com o delegado geral. - Boato chama boato. Sempre haverá alguém batendo com a língua nos dentes. - Ora. Caio constitui problema dos pais dele; Denise, assunto nosso. - Ou problema da mulher dele. E se ele for casado? - E daí? Casado ou não, nada temos com isso. - Sérgio nem ligou para nós. Você notou? - Lá vem você com idéias novas! Ele pode só ter tomado conhecimento mais tarde, e quando nos telefonou já havíamos deixado o hotel. E Juarez deve ter-lhe dito, pois falou conosco. - Ligamos para a casa dela e ninguém atendeu. - As crianças estão no Guarujá, e empregada, você sabe como funciona. Quando a patroa sai, desaparece. - Não entendi aquela de Juarez não querer transferi-la pro Sírio Libanês ou Albert Einstein. - A gente sempre escuta falar no Hospital Central como dono do melhor aparelhamento da América do Sul. O pessoal técnico, de primeiríssima categoria. Certamente Juarez não achou bom mexer, por enquanto... - Sabe como funciona hospital de graça. Os doentes são igualmente tratados, e não havendo um certo interesse pode faltar alguma coisa assim mais cara. - Se a gente a levasse para os Estados Unidos? Juarez poderia ir junto e levar um médico especialista acompanhando. Pelo menos, ficaríamos mais tranqüilos pois não iria faltar nada para a nossa filha. Quando chegarmos em São Paulo vou falar nisso com ele. A rotina de atendimento médico-hospitalar no Brasil apresenta certas características, até certo ponto justificáveis, pelo menos para o grande público. As pessoas de nível econômico elevado, quando necessitam de assistência mais complexa, buscam-na nos centros maiores, culminando com a última esperança: os Estados Unidos. Quando o Presidente Figueiredo deslocou-se para Houston, para operar o coração, houve celeuma em torno do caso. Até mesmo organizações médicas contestaram a necessidade do governante brasileiro voar para a terra do Tio Sam, pois em São Paulo e no Rio havia recursos materiais e humanos eficazes para a intervenção proposta e em condições idênticas às dos melhores centros norte-americanos. O presidente voltou bem de saúde, logo retornando à agressividade, e desistiu de coordenar o processo sucessório. Uma intervenção cirúrgica de urgência no Presidente do Senado, alguns meses após o caso do Presidente da República, seguida de óbito, ainda no período pós-operatório, no melhor e mais aparelhado serviço do País, deixou muita gente rica preocupada. Antes da meia-noite do sábado, 14 de dezembro, pouco mais de vinte e quatro horas após o acidente, o casal Marchioni desembarcava no Aeroporto de Congonhas, num jatinho fretado. Na sala Vip do Aeroporto, liderados pelo superintendente do Hospital Central, Sérgio Stronheim, as filhas adolescentes, amigos e parentes do casal se acotovelavam, querendo levar até os Marchioni os sentimentos de amizade e solidariedade. Naquela hora, toda a atenção do casal se voltou para o Dr. Juarez, procurando tranqüiliza-los e conduzi-los ao HC.

18. Pedido de consulta

O neurologista-chefe adentra na U.T.I. e se dirige a D. Marta, enfermeira encarregada do turno. - Bom dia. Gostaria de ser acompanhado até o box da dona Denise. Sou o neurologista-

chefe e tenho um Pedido de Consulta: caso de acidente ontem à noite. - Pois não, doutor. Pode vir aqui, no box 5. - Arranje-me lanterna, abaixador de língua e aspirador. - Doutor, nós temos aspirador e oxigênio centralizados ao lado da cabeceira. - Então só aparelho de pressão, lanterna e abaixador de língua. De posse dos equipamentos solicitados, projeta o foco luminoso nos olhos da paciente. Os reflexos pupilares estão diminuindo: a pupila não reage à luz. Há suspeita de midríase paralítica. Não há sangue no hipofaringe, nem, decerto, hemorragia nas fossas nasais. O conduto auditivo não apresenta sinais de sangue. Dona Marta, foi feito algum exame radiológico de crânio nesta paciente? - Foi sim senhor. - E o neuroradiologista disse alguma coisa? - Olhe, doutor, eu não sei; não me encontrava aqui no momento do exame. - A senhora quer trazer-me as chapas? Instantes após, com as chapas no negatoscópio, sentencia: - Realmente, há sinais de lesão óssea, mas não tenho condições suficientes para afirmar se esta midríase é permanente. - Localize por favor o neuroradiologista. Gostaria de falar com ele. - Sim, doutor. Um momentinho. Poucos minutos após, chega o neuroradiologista. - Tudo bem? Recebi um Pedido de Consulta para examinar esta paciente apresentando sinais de midríase paralítica. Olhando a chapa da cabeça, suspeitei de uma lesão óssea, próximo ao buraco occipital. Qual a sua opinião? - Realmente, esta suspeita existe. - Há uma fratura exatamente onde você falou, mas é difícil a gente precisar qualquer coisa, sem abrir. Eu não sei se o neurocirurgião viu o caso, mas, de qualquer maneira, poderíamos pedir o parecer do pessoal da medicina nuclear, com condições de verificar se há lesão mais profunda, inclusive com comprometimento cerebral. - Está bem, obrigado. Despediu-se e ambos deixaram o recinto.

19. Amar, um verbo relativo...

Mansão imensa no Morumbi. Como vizinhos, as mais badaladas figuras do grand monde paulistano, Caio levava uma vida onde nada faltava. Marina, a segunda esposa, muito embora não de papel passado, ex-miss Guanabara e com boa classificação no Miss Mundo, em Londres - considerava-se a mulher ideal para Caio. Não conseguira concluir o primeiro ciclo, mas, em matéria de sofisticação e cafonice, obteria facilmente uma cátedra na Sorbonne. Os amigos comuns questionavam: Caio usava a mulher, ou não passava de mero instrumento nas suas hábeis mãos? Preferia o Porsche esporte, vermelho, e não dispensava a massagista diária, o cabeleireiro chamado à mansão (segundo os boatos não jogava no time dos homossexuais, pelo contrário) e adorava ver o seu nome na coluna social dos domingos. As amigas ou inimigas apelidaram-na de Marylin Monroe da Paulicéia, linda de morrer, se calada o tempo inteiro. Quando abria a boca, logo surgia uma evidente impossibilidade de pronunciar cérebro ou problema sem despertar um risinho no interlocutor, com o lambdacismo. Não havia muita explicação para o fato de dormirem em quartos separados. A curiosidade da filha única satisfez-se com a explicação das constantes ausências do pai e parecia residir na Ponte Aérea. Aquilo mais parecia um conglomerado de desencontros, jamais uma vida conjugal a dois. De

tão desligada, Mariana sequer se lembrou de, no domingo de manhã, verificar, na suíte ao lado, se o marido chegara. A preocupação surgiu somente ante a insistência da filha, pois não conseguia acordá-lo. Caio havia prometido levá-la para almoçar no Harmonia. - Mãe! Mãe, não consigo acordar o papai. Bati várias vezes na porta, chamei-o e nada. Refestelada na banheira, num ritual aquático de duas horas, Marina não parecia nem um pouco interessada. - Ora, filha, chame-o pelo interfone. Vai ver, ele teve algum compromisso até mais tarde, chegou de fogo ou está com preguiça - respondeu-lhe, enquanto aumentava a velocidade da hidromassagem. Minutos depois, a filha volta a insistir: - Mãe, o pai não chegou mesmo. O interfone não está atendendo - chama, chama e nada. - Mas, ele não falou de nenhuma viagem. - É, mamãe. O papai não combinaria comigo de irmos ao Harmonia se tivesse programado uma viagem. Deve ter acontecido alguma coisa. - Ei, menina de imaginação fértil! Até parece, você ainda não conhecer o seu pai. Quantas vezes viajou, e só ficamos sabendo após o seu retorno? Deixe, pelo menos, eu acabar o banho. Ante a insistência da filha, Marina enxugou-se rapidamente, vestiu um roupão e tentou despertar o dorminhoco. "Ele não veio mesmo, ou errou de casa e foi dormir na Carmen? Aquele desgraçado ainda me paga. Cada uma devolvo-lhe em dobro. Não gosto de jogar para perder. Como esqueceria se prometeu levar a filha ao Harmonia? Combinação com ela, sempre respeitou" - pensava Marina, enquanto forçava a fechadura do quarto. Surpresa - embora isso não a preocupasse - ante a cama vazia, ainda tentou tranqüilizar a filha. - Ele teve alguma viagem inesperada e não houve tempo de avisar. - Não, mamãe. O papai não faria isso comigo, nunca. A senhora bem sabe disso. Existem problemas entre vocês dois, mas, felizmente, não me envolvo. Já superei as desavenças de ambos, pois gosto imensamente da senhora e do papai. Mas volto a insistir, mamãe: alguma coisa aconteceu. - Vira essa boca pra lá, menina. Não aconteceu nada. Lá vem você, de novo, com caraminhola na cabeça. - Então, mãe, telefona para o tio Cláudio, aquele amigo dele, casado com a tia Rosa. Se o pai foi viajar, disse a ele. - Vou tentar. Mas Cláudio não deve saber de nada. Completada a ligação, quase desmaiou ante o escutado do outro lado da linha. - E daí, mãe? - Seu pai sofreu um acidente e o levaram para o Hospital Central. - Como, mãe? Acidente? - Chorando e quase sem conseguir pronunciar as palavras, ainda insistiu: Mãe! Vamos ver o pai. Vou tirar o carro da garagem, enquanto a senhora troca de roupa. - Mas, filha! Eu preciso me preparar. Não posso sair assim. Acabo de deixar o banho. - Não, mãe. A senhora pode se vestir logo. Não entende? O papai pode ter alguma coisa mais grave. Além disso, vamos a um hospital, não a uma festa. - Tire o carro, então. "Ô menina chata. Quando quer uma coisa nem jumento se iguala. Imagine, ir para um hospital com a cara lavada." "Qual a última aprontada daquela sirigaita com meu marido? Já não lhe bastava o apelido de Barba Azul da Paulicéia, saindo com meio mundo e, agora, resolve se envolver com Caio. Vai ver bancava o Nelson Piquet na Ladeira do Morumbi e certamente de cara cheia, enfiou o meu carro debaixo dum caminhão. Na certa, com a desgraçada não aconteceu nada, e o garanhão juramentado danou-se de uma vez", pensa Marina, enquanto se veste. No Hospital Central teve menos dificuldades com relação ao marido de Denise. Também com aquele decote, até as portas da tumba de Ramsés II se abririam sozinhas. O residente-chefe do Pronto Socorro fez questão de acompanhar as duas, mãe e filha, até o box onde, respiração ofegante e sono profundo, repousava o acidentado. - Papai! Papai! - insiste a filha em prantos e quase aos gritos. - Caio! Caio! Por quê você não responde? - Calma, minha senhora. Ele ainda dorme. - Como dorme? O doutor Cláudio me disse, ter sido ele operado ontem à noite, após uma batida de carro, e tudo corria bem! Acho melhor a gente falar claramente. Como esposa, tenho todo

o direito de saber a verdade. - A coisa parece simples, principalmente quando as pessoas querem tranqüilizar os parentes, os amigos, as visitas. Mas nem sempre o dito traduz todo o contexto envolvido. - Ah, doutor. Prefiro um pouco mais de clareza. Não posso sair daqui em dúvida. Ponha-se no meu lugar. Meu marido saiu de casa ontem à tarde para trabalhar, como faz todo dia, e não aparece hoje até o meio-dia. Falo com um amigo nosso, médico e até professor de faculdade, ele me diz: tudo corre bem. Chego aqui e meu marido com tanto fio parecendo um condenado à cadeira elétrica. Veja, doutor: quatro tubos de borracha nos braços, um na boca e outro no nariz. Qualquer pessoa pensa no pior - desabafa a visitante, presa de crescente nervosismo. - Minha senhora, a situação real nem sempre coincide com o esperado. Seu marido sofreu um grave acidente. Ficou preso no volante do carro e a senhora bem conhece a estrutura de um Mercedes. Veio ao nosso hospital, imediatamente encaminhado ao Centro Cirúrgico e operado, por sorte nossa, pela melhor equipe do HC. Infelizmente, havia uma série de perfurações e, por cima de tudo, duas cirurgias quase simultaneamente, não se poderia esperar outro resultado. Finalmente, a recuperação exige uma sedação mais forte no pós-operatório imediato. Em muitos casos, ao sair da anestesia eles ficam agitados, reagem violentamente, chegando até a se machucar. Por isso, o cirurgião preferiu sedá-lo um pouquinho mais... - E esses canudos de borracha na boca e no nariz dele? - Mãe! Ele tá com as mãos amarradas! E tem um aparelho parecido com um vídeo game, ligado nele. - Não se trata disso. Este aparelho aqui é um monitor cardíaco controlando o funcionamento do sistema circulatório. O seu uso facilita um acesso mais rápido ante quaisquer alterações dos batimentos cardíacos. Este outro, mais conhecido como Bird, produz um tipo de respiração assistida, reduzindo o esforço pulmonar, tanto na expiração como na inspiração. Em síntese, o avanço tecnológico, minha senhora, e a engenharia médica, buscam melhorar as condições de vida. Sem esses mecanismos, os resultados perderiam em eficácia. - E precisa de tantos tubos de borracha nos braços? - Os cateteres nos braços, introduzindo soro e sangue, permitem a ministração de drogas e medicamentos necessários à recuperação total e rápida do seu marido. Embora pouca gente tenha conhecimento, esta U.T.I. ocupa o primeiro lugar em instalações, equipamentos e recursos técnicos em toda da América do Sul. - Desculpe, doutor. Eu nem sabia da existência de U.T.I. e muito menos neste hospital, tão mal falado. - E o papai vai ficar bom? - Vai, sim. Mas o caso, pela gravidade, requer cuidados intensivos e um longo período de internação. - Doutor! Eu posso dar uma espiada na amante dele? - Sua amiga? - Não. Apenas conhecida. Mas, se tava com ele, deveria haver uma certa intimidade. - Aonde mora a senhora? - No Morumbi, bem perto da casa de Roberto Carlos. - E o acidente não ocorreu por lá? - Segundo Cláudio, o acidente aconteceu na Ladeira, perto do Palácio Bandeirantes, próximo da nossa casa. - Olhe, minha senhora, o Regulamento da U.T.I. não permite visita de pessoas estranhas. - Não me acho assim tão estranha, doutor. Além disso, o senhor bem pode dar um jeitinho. Finalmente, é o chefe! Diante de uma mulher daquelas em pleno Brasil, a clássica terra do jeitinho, nem o Regulamento do Hospital se livra. Instantes depois, Marina, a esposa, e a companhia embora fortuita fixavam seus olhares. A segunda, em nítida desvantagem: seus olhos estavam fixos de modo permanente. Reconheceriam a figura da rival? - Parece ruim mesmo, hein doutor? Isto acontece com quem vai fazer programa com o marido das outras. E o mau gosto do Caio sair com uma dessas, envolvida até com o motorista do marido. - Olhe, minha senhora. Nós não temos nada com isso. Cabe-nos atender aos pacientes e prestar-lhes todos os cuidados. Os motivos de cada um podem interessar à polícia, à justiça, à família, apenas desempenhamos o nosso papel. - Veja,

doutor. Meu marido saiu de casa ontem e eu o encontro neste estado, só por causa desta grã-fina de merda. O senhor ainda quer tapar a minha boca? - Reconheço o nervosismo da senhora e a preocupação com seu marido. Mas cumprimos, simplesmente, a nossa obrigação. - Doutor, mais uma pergunta: a gente pode levá-lo para o Sírio Libanês ou o Albert Einstein? Aqui, o meu marido vai ficar sozinho, no meio deste mundaréu de gente. Eu gostaria de ficar junto e não vejo lugar. - No momento, a transferência o prejudicaria. Sabe um acidente desta natureza pode abalar muito a vítima. Em menos de vinte e quatro horas o paciente foi movimentado quase uma dezena de vezes. Tratando-se de um parente meu, deixaria aqui, pelo menos até receber alta da U.T.I.. A senhora não vai poder ficar neste box, mas há uma sala de estar para a família dos pacientes da U.T.I. logo ali, à esquerda, junto à entrada. Lá a senhora poderá permanecer o tempo desejado. Realmente, não há diferença sócio-econômica nos casos de U.T.I., tanto aqui como no Sírio ou no Einstein. O seu marido ficaria sozinho e até mesmo com outros de casos semelhantes. Nós temos aparelhamento e pessoal técnico muito bom, conforme frisei à senhora. Além disso, muitos médicos e enfermeiros da nossa U.T.I. trabalham também no Sírio e no Einstein. - E se eu o levasse para aquele hospital americano onde operaram o Presidente? - Em Cleveland? - Sim. Lá mesmo. - Pior ainda. Haveria necessidade de muitos deslocamentos, totalmente inconvenientes no caso dele. - Ele não pode ficar aqui como particular? A gente pagaria por fora. - Não, minha senhora! Não temos acomodação para casos particulares. Quando ele puder ser removido, a senhora transferi-lo-á para o Instituto de Cardiologia, onde existe acomodação privativa e de muito bom padrão. - Nós temos um amigo na Casa Civil do Governador. Isto ajuda? - Claro, ajuda. O nosso hospital se subordina diretamente ao chefe da Casa Civil. Basta um telefonema, um cartão e a senhora conseguirá a transferência. Mas, não agora. - Doutor, e como eu poderia conversar com o cirurgião? - Hoje não vai dar. A última cirurgia terminou quase às sete da manhã e, segundo eu ouvi, trata-se da oitava em menos de vinte e quatro horas. O cirurgião, doutor Mânlio, faz questão de acompanhar cada paciente até ter a certeza de tudo correr bem e deve ter saído do hospital quase ao meio dia. - E não havia mais ninguém na cirurgia? - Sim. Eliomar, residente da Cirurgia Geral, mora aqui, o ajudou nas duas intervenções, deve ter despencado, de tão cansado. - E onde mora o doutor Eliomar? - Na residência, no prédio ao lado. - E não daria para falar com ele? - Não garanto nada, minha senhora. Na folga proíbe-se chamar o residente. - Ah, doutor, me ajude. O senhor deve ter visto o nosso desespero. Só temos esta filha: veja o estado emocional dela. Poderia colaborar conosco levando-nos até o doutor... como é mesmo o nome dele? - Eliomar. - Pois sim. Se o senhor nos levar até ele, conseguiremos mais informações e sairemos daqui mais tranqüilas. A mulher era mesmo uma gata. Sabia exatamente o momento de tornar mais ousado o decote ou separar a distância do corte da saia, ao cruzar as pernas. O verdor dos quinze anos da filha, ainda mais bela exorcizaria o monge mais asceta. O médico pensou um pouco e aconteceu o tão esperado gesto de ajuda. - Olhe, dona Marina. Vou acompanhá-la até a residência. Tentarei falar com Eliomar, mas não posso garantir nada. - Ah, doutor, eu agradeço. - Deixe ver. Dona Olga, a senhora tem aí o telefone da residência de cirurgia? Eu queria falar com Eliomar. Sim. Obrigado. - Eliomar, é Bento. Está aqui uma senhora, a esposa do paciente da Ladeira, operado por você ontem à noite. - Vale a pena conhecê-la? - Sim. Muito. Eu espero. - Ele vai vir. A senhora não gostaria de aguardar na sala de espera? - Não dá pra ficar aqui? - Não seria bom para o paciente. Vamos então. Minutos após, chega o cirurgião auxiliar. - O senhor operou o meu marido? - Não. Auxiliei na cirurgia. - O estado dele não apresenta problemas? - O caso inspira cuidados.

Pausadamente, o cirurgião resumiu-o, esclarecendo as dúvidas surgidas durante a narração. Embora cansado: uma noite totalmente insone, várias cirurgias quase sem interrupção, não lhe reduziam o interesse por aquela figura, não conseguindo esconder o encanto e a graça, principalmente aquele tão generoso decote. Como bom nordestino, Eliomar tinha um sexto sentido com relação ao lado feminino. O papo continuou. Da doença de Caio para temas mais suaves, foi um salto. Nem demorou muito, Eliomar já testava o Porsche da mulher, até bem poucos instantes, ansiosa e desesperada. - Ele puxa mesmo mais de 200 por hora? - Ora, doutor, Sim, mas não cheguei a tanto. - Pode chamar Eliomar. - Bem, Eliomar. Cheguei em torno de 180, lá na Imigrantes. - O papai já pôs 220, quando a gente foi multada na Castelo Branco. - Desta eu não me lembro. - A senhora não quis ir. O papai queria comprar cavalos no leilão de Avaré. - Quer experimentá-lo? - Não. Agora não. Ainda devo fazer umas visitas. A residência aqui, mesmo de folga, só acaba o serviço depois do meio dia. - Você não se incomodaria de deixar o telefone comigo? Tendo o seu telefone na mão posso a qualquer momento acompanhar o caso do Caio, sem precisar vir aqui. Vou lhe dar também o meu e qualquer coisa você me liga. Aciona o motor e deixa o pátio sem aquela fisionomia tão preocupada. "Esposa mesmo? Nunca vi uma cara mudar tão depressa. De qualquer maneira vou guardar este telefone." Continuou divagando... "Porsche! Já me imagino um fim de semana no Guarujá, com três máquinas ao mesmo tempo: o carango, a coroa e a gatinha. Vou até tirar um retrato e mandar pra Guatu. Não! O velho vai pensar, fiquei rico, e adeus mesada. Mas, dá para criar um clima de suspense na turma da residência. Numa noite dessas, chego aqui com as gatas, invento um alarme falso, a buzina dispara e todo mundo vem pra janela aplaudir o meu triunfo. Chefe de secretária e enfermeira. No mínimo, como o nosso anel simboliza uma esmeralda, reeditam Paes Leme na história dos bandeirantes: saem conosco sempre na expectativa de uma ligação mais profunda. Com um detalhe: saem com todos. Parece pescaria: caiu na rede é peixe. Não entendo como Mânlio e Grimário conseguiram permanecer solteiros até hoje", matutava o residente após a despedida.

20. O drama de uma mãe aflita

- Deni! Ô Deni! Sou eu! Sua mãe! Responda minha filha! Voz embargada, sinais evidentes de desespero, D. Nilsa volta-se para Dr. Juarez. - Juarez, por quê ela não responde? Ela está respirando. Ajude, por favor! - Diante daquele quadro, onde o emocional suplantava, de muito, qualquer equilíbrio racional, o superintendente tinha de reconhecer sua limitação profissional. Todo médico tem consciência de seus limites técnicos ante a força da natureza, das leis biológicas. Os avanços tecnológicos não conseguem modificar os princípios dos fenômenos vitais. Numa situação como esta, o principal dever do médico relaciona-se intimamente com o bom senso e repousa numa tríade: não mentir, nem falsear a verdade, confortar a família e acenar-lhe com uma esperança a mais. Quando o problema tem ligação com a atividade cerebral, evidenciada por um estado de coma profundo, como no caso

específico de Denise, o facultativo vê crescer, mais ainda, a sua responsabilidade ao acenar com uma esperança. - Nilsa, Denise ainda vive em estado de coma. Quando o cérebro retomar as suas atividades, o coma diminuirá progressivamente, voltando à normalidade. Tenha paciência. Tudo vai passar. - Mas, ela não mexe os olhos! Insistia, aflita, a mãe da paciente, inconformada com a falta de reação da filha. - Tia. A senhora deve ter paciência. Amanhã vamos fazer novos exames neurológicos e temos certeza de aclarar o quadro clínico, interveio Marchioni, o neurologista. Para ajudar, entrou na conversa, usou terminologia médica, fugiu um pouco do jargão científico, mas não conseguiu convencer ou, pelo menos, minorar a angústia da mãe desesperada. O comendador acompanhou de perto toda a conversa, cabisbaixo e triste, sem conseguir entender como pôde sua filha única, jovem e cheia de vida, chegar de repente a um estado tão lastimável. Minutos intermináveis, desconforto generalizado, o casal, os Drs. Juarez e Marchioni permaneciam imobilizados naquele ambiente, cujo intrincado de equipamentos e ruídos lembrava um filme de ficção científica. Grimário, na ânsia de encontrar um meio de tira-los dali, propõe: - Vamos agora ao box 2, onde se encontra o senhor Caio. Ele poderia esclarecer alguma coisa. - Não. Não o conhecemos - corta seca e abruptamente o comendador. Mesmo acostumado com situações complexas, muitas vezes, desconcentantes Grimário corou e quis enfiar-se não se sabe onde. Sentiu haver cometido uma gafe. Numa tirada de mestre, o superintendente convida a todos para um papo no seu gabinete, onde buscariam maiores esclarecimentos. Lá, a situação não mudou muito. Toda a conversa girou em torno do imprevisível. A paciente ficaria curada? E em quanto tempo? Sem seqüelas? E uma possível transferência para um hospital particular? Até médico plantonista junto à cabeceira e enfermagem especializada, nas vinte e quatro horas, foram sugeridos pelo comendador. Num misto de desespero e ingenuidade, D. Nilsa ventilou a possibilidade de Grimário cuidar somente de sua filha. Certamente Dr. Juarez o autorizaria. Não foi fácil convencê-la da impraticabilidade da proposta, muito embora o Grimário garantisse vê-la diariamente. O superintendente, calmo e impassível, tentava harmonizar o ambiente ainda tenso. Grimário dava sinais de irritação: era a segunda noite praticamente insone. Ninguém tomava a iniciativa de por termo a uma situação tão incômoda. Após minutos intermináveis, o superintendente propôs o fim daquela reunião constrangedora para todos. Não contava, porém, com a derradeira intervenção da dona Nilsa, insistindo: - Juarez. Eu preciso ficar com a minha filha. Não suportaria ir para casa agora. - Nilsa. As suas condições emocionais não permitem mais uma noite sem dormir. Além disso, não caberia mais uma pessoa no box de Denise. Há uma sala de espera para os familiares lá permanecendo, num misto de desconforto e desespero. Muito melhor você ir para casa com o Marchioni, descansar um pouco, e mais tarde voltam e, se quiserem, poderão até ficar no meu gabinete. - Tia. Posso ficar na sua casa. Se a senhora ou o tio necessitarem de alguma coisa, estarei por perto. - Não. Prefiro você aqui. Tenho de ir embora, você permanecendo no hospital estarei mais tranqüila. - Uma boa idéia. Assim ficamos mais seguros em casa. Vamos então, Nilsa. - Marchioni, deixarei vocês em casa - propôs mais uma vez o superintendente, querendo, a todo custo, terminar a reunião. - Vamos então. Marchioni, você não sai de perto da minha filha? Promete? Ela é a única coisa realmente nossa. Sempre fui uma supermãe. Agora, realmente preciso de você. Faça tudo por ela, apelou D. Nilsa, entre soluços. - Pode deixar, tia. Vou ficar ao lado dela. Garanto-lhe, nada lhe faltará. - Qualquer coisa nos telefone, em seguida, completou o comendador. - Fique tranqüila, tia. - Doutor Grimário, confio no senhor. - Faça pela nossa filha e nós saberemos reconhecer. Não foi à-toa minha cheguada a comendador. - Vá sossegado, comendador.

Garanto-lhe o melhor atendimento possível. A nossa U.T.I. apresenta as melhores condições de toda São Paulo. Não se preocupe com a assistência prestada. Todos se retiram, volta a U.T.I. e se entrega a pensamentos: "Como é constrangedora esta situação. Dr. Juarez, Marchioni e eu sabemos perfeitamente serem ínfimas as esperanças. A paciente praticamente descerebrada. Ninguém quer assumir o desligamento dos aparelhos. Uma mãe desesperada, um pai aflito, um sobrinho, quase filho, com uma tremenda responsabilidade, especialista naquela área; e um superintendente político, todo constrangido pela limitação imposta por rotinas, instalações e política do próprio hospital. Neste caso, sou o mais limitado de todos. Não conheço a família, não tenho ligações maiores com o Marchioni, não dependo das benesses do superintendente, nem preciso do comendador. Mas, sinto-me como mera peça da engrenagem, faço parte do sistema. E qual sistema? O da vida, onde a única certeza repousa na morte. Ontem, uma linda senhora, cheia de vida, de sonhos e de fantasia; hoje um trapo humano, sem ao menos reflexos pupilares." Entra na U.T.I. e logo à porta o Dr. Célio, intensivista de plantão, obstrui a passagem: - Grimário, temos um caso interessante. - Você conhece jogo de dominó? - Sim. E daí? - Passo. Vá voltando daqui mesmo. Além disso, confio em você, um intensivista de grande experiência. Por hoje chega. Talvez não saiba: são duas noites sem dormir um minuto. - Não é à toa. Seu apelido de um homem de ferro. - Ledo engano. De carne e osso. Também fico cansado e tenho sono. - Grimário, só este. Garanto-lhe. - Vamos então. Mas, diga logo. - Um travesti operado em Paris enfiou uma agulha de tricô na bexiga e perfurou até os intestinos. Acredito dever ser operado. Queria, antes, ouvir a sua opinião. - Tem chapa? - Sim. Veja aqui. Dirigem-se ao box, examinam o paciente e opina: - O melhor mesmo é chamar o cirurgião e providenciar a sala de operações. Não vejo alternativa possível. - Eu já esperava. - Pensou verto. Agora tchau. Deixou o recinto, desta vez, sem pensar em mais nada. Na manhã seguinte Manhã de domingo. A U.T.I. não dormira. Nem o fazia por mais aquele dia. Nova equipe. Novas emoções. A rotina prosseguia. - Doutor Célio, o paciente do 4 está com alta. Há um pedido de internação urgente - fala D. Darcy, enfermeira supervisora do plantão. - Olhe, dona Darcy. Não sei se há leito disponível para a transferência do 4, quer ver isso para mim? - Já tinha visto antes. Falei com a Rosa, supervisora da Cardiologia responsável pela arrumação do leito. Se o senhor autorizar, mando logo o paciente e aviso ao PS para encaminhar a urgência. - Qual o motivo da urgência? - Sim. Assalto na Favela do Vergueiro. O paciente recebeu um tiro na cabeça. Está desacordado. - Por quê não o mandam logo para a neuro? - Hoje é domingo, doutor. A U.T.I. oferece maior segurança. Mas, se o senhor quiser, contactuo a neuro. - Não. Pode trazer pra cá. Como estamos lotados, vai ser difícil pôr mais alguém aqui. Não vislumbro nenhuma condição de alta para as próximas horas. - O pior, doutor: o PS tem mais três esperando vaga. Como o senhor deve ter notado, neste começo de verão todo mundo endoideceu. Não damos conta da procura. O pessoal do PS anda apavorado. O número de acidentes e assaltos tem aumentado uma barbaridade. E como não bastasse, trabalhamos com três birds e um respirador a volume de reserva. - E os outros? - A manutenção atravessa dificuldades para conseguir as peças de reposição. Final de ano, a burocracia emperra. Ninguém quer mais nada com o trabalho. A dona reclama todos os dias e só ouve promessas. - Seria bom se a mãe do chefe da manutenção tivesse um acidente grave e necessitasse de um bird. Queria ver a cara dele quando a gente falasse: deixe-a aqui até a próxima semana, aguardando o bird em conservo. O equipamento chegaria aqui até de pára-quedas. A burocracia não nos entende. Acham-nos uns chatos de galochas. Dizem só sabermos reclamar, mas não têm a menor idéia do nosso sacrifício, com um paciente em

estado grave após concluirmos nada mais se pode fazer, por falta de equipamento adequado. Não consigo entender como possa faltar alguma coisa num hospital deste porte. - Olhe, doutor, nós também sofremos quando falta alguma coisa. E ainda agüentamos mais desaforos. A administração imagina nos mancomunarmos com os médicos; estes pensam estarmos do lado da administração e chegam a nos considerar alcagüetes da Diretoria, quando, na verdade, ocupamos todos o mesmo barco. - Quando todo o mundo compreender: o hospital existe para o paciente, independente de qualquer condição social, raça, cor, sexo, religião ou idade, a coisa ficará bem mais fácil. Toca a campainha. O pessoal da cardiologia adentra a U.T.I. com a maca pronta para a remoção do ocupante do box 4. Tudo pronto. A enfermeira liga para o PS dando o sinal verde para a vinda do futuro ocupante. Poucos minutos após, o novo hóspede passa a receber os primeiros cuidados intensivos. Cumprida a rotina, o intensivista solicita os exames necessários para a continuidade do tratamento. - Dona Darcy. Fizeram RX de crânio no PS? - Não tenho certeza. As chapas não vieram com o Prontuário. - O PS não prima pela organização. Vai ver, ficaram por lá ou na própria maca. A senhora quer perguntar? - Sim, doutor. Mas penso não terem sido tiradas. Resposta negativa, cabendo ao intensivista solicitar os exames radiológicos necessários. Preenchida a requisição, só restava aguardar a leitura do exame. - Não sei por quê não instalam um Raio X na U.T.I.? O número de exames já requer um aparelho aqui. - Doutor, existe um no PS com câmara escura e tudo. Só Talvez, por não gostarem de deslocá-lo. Além disso, não há espaço suficiente aqui para guardar o aparelho. Segundo dona Lúcia, no projeto de ampliação da U.T.I. há um local reservado para um aparelho de Raio X com câmara escura e tudo. - Desde o meu ingresso nesta U.T.I ouço falar na reforma. E vão mais de seis anos. - Não. Desta vez as coisas parece melhorar. Segundo eu soube, existe verba e terminou o processo de concorrência. - Nisso, suplanto São Tomé. A rotina prossegue. Ninguém consegue ficar parado. O dia dava mostras de intensa atividade. - Dona Darcy. Vou até o PS falar com o anestesista. - Espere um pouquinho, doutor Célio. O paciente operado pelo doutor Mânlio na madrugada de ontem está muito agitado e quer se levantar a todo custo. - Qual? O cara da Ladeira? - Sim senhor. - Vou vê-lo. Aproxima-se do paciente observando-o agitado, sudorese abundante, tentando soltar as faixas de contenção. - Doutor. Por favor. Queria ficar solto. Estas amarras me incomodam demais. - O senhor sente dores? Falta de ar? - Não, doutor. Não consigo ficar preso. Tenho uma sensação horrível. Não dá pra me soltar? - O problema repousa no fato de o senhor não ficar quieto. As faixas de contenção foram colocadas por conta disso. - Eu garanto, doutor. Se afrouxar este troço, não vou me mexer, nem um pouquinho. - Veja. Vou soltar as faixas mas se não se aquietar corremos o risco do soro e o sangue saírem da veia. O senhor não tem muitas veias em condições de instalar soro. - Pode deixar, doutor. Não vou mexer, nem mesmo, com os braços. Afrouxadas as faixas, o intensivista deixa o recinto, na direção do PS e comunica a enfermeira: - Dona Darcy. Se precisar de algo urgente chame o Eduardo na sala do lado. Não devo demorar.

21. A política também interfere

No gabinete da Superintendência, o interfone toca: - Doutor Juarez! Do Gabinete do Governador. O Chefe da Casa Civil deseja falar com o senhor. Do outro lado, o mentor político do Governador inicia a conversa. - Juarez! Salim falando. Tudo bem com você? Temos um pedido a lhe fazer. - Sim. Tudo bem. Diga. - O Governador falou comigo sobre um caso envolvendo a filha do dono da Indústria Crescente, o comendador Marchioni. Você o conhece? - Sim. Meu amigo pessoal. - O comendador conversou com ele e pediu ajuda. Ventilou a hipótese de levar a filha pros Estados Unidos, mas a equipe médica houve por bem vetar uma transferência, alegando a paciente não estar apresentando condições de remoção. Qual o seu parecer? O superintendente resumiu o caso, detalhando-o quando o interlocutor pedia minudências e prontificou-se a redobrar a atenção, a seu ver total. Terminado o assunto, antes de desligar, o chefe da Casa Civil prosseguiu: - Tem mais. O pessoal do PMDB, pelos seus deputados, também mostrou interesse com relação ao acompanhante da filha do comendador. - O senhor Caio? - Ele mesmo. Trata-se de pessoa muito bem relacionada no meio da bancada. Também perguntaram sobre uma possível transferência para outro hospital. Pelo visto, ninguém valoriza seu patrimônio. Imagine você, as verbas, o seu sacrifício e de toda equipe. Sempre a primeira coisa proposta por esta grã-finagem é a remoção do paciente. - Não fazemos alarde de nosso trabalho. Pense no volume de gente atendida aqui, doentes do País inteiro e um incontável número de pessoas de toda a América do Sul. Quantas vezes salvamos vidas consideradas perdidas. - Isto mesmo. Nós todos, inclusive o Governador, não nos cansamos de reconhecer o esforço anônimo do seu pessoal. Mas, sabe como são as coisas. Apesar do nosso esforço, sempre hão de encontrar defeitos. E, tem mais. A mulher do cara, aliás, uma boazuda, esteve aqui por duas vezes e insiste em ficar com ele. Você não tem como dar um jeito? - Olhe, Salim. Aí a coisa fica bem mais difícil. Você conhece a nossa U.T.I.? - Sim. Certa ocasião ocupei um leito. Na época trabalhava na Assembléia e bati com o carro na esquina da Teodoro Sampaio com a doutor Arnaldo. Na época, você era o superintendente. Fiquei dois dias em observação. Não encontraram nada e me deram alta. Você mandou me levar em casa de ambulância. Não lembra? - Evidentemente sim. Na época a U.T.I. ocupava o 8o andar. Depois da reforma, ficamos ao lado do PS, facilitando o atendimento. Mas, voltando ao assunto da acompanhante. Não temos a menor condição, Salim. Os boxes possuem as dimensões exatas e mesmo querendo apertar, ainda não daria, devido ao problema de infecção. Geralmente, as pessoas não entendem nosso drama. A U.T.I., objetiva prestar serviços aos casos mais graves. Muitas vezes, o paciente chega com uma sintomatologia e, horas ou dias depois, apresenta intercorrências imprevisíveis. Evidentemente, imprevisível é força de expressão, porque, neste caso, tudo se torna possível. Não vejo como atender ao pedido da esposa do senhor Caio. - E a perspectiva de transferência a curto prazo? - Não vislumbro esta possibilidade. O homem foi operado, reoperado e, de lá pra cá, só tem piorado. A equipe cirúrgica é a melhor do Hospital. Por conta disso, redobramos os cuidados e a atenção. Não lhe falta nada. Com toda sinceridade, como o acidente ocorreu na Ladeira do Morumbi bem próximo da Giovani Gronchi, chego a pensar se não teria sido melhor o encaminhamento dos dois logo para o Albert Einstein, bem mais próximo do local. E daí? Caíram aqui, temos de atendê-los bem. - Também penso assim. Quanto menos enguiço, para nós, melhor. O pessoal me aperta, aperta o Governador, o Presidente da Assembléia pressiona, o pessoal de Brasília não sai do telefone, quando todos sabemos ter você uma série

de limitações. O HC, pelo seu gigantismo, em certas ocasiões, foge até do seu controle. A gente tem de reconhecer. Mas, não podemos impedir a procura, somos políticos e devemos nos conscientizar disso. - Tem razão, Salim. Atendemos a mais de duas mil pessoas nas vinte e quatro horas. Ninguém se lembra disso. Um azar, um deslize, muitas vezes, sem importância, e ganhamos destaque nos jornais e na televisão. Nesta hora, desvalorizam todo o nosso trabalho. Às vezes, penso em darmos o lugar a outro. Quem sabe, você não encontra alguém por aí? - Deixe disso, o Governador o respeita e admira, não escondendo pra ninguém o quanto reconhece sua dedicação. Eu mesmo, considero-me seu amigo e de longa data. Claro, recebemos pressões de tudo quanto é jeito, mas sempre concluímos não se mexer em time quando está ganhando. Pra mim, você só deixará o HC quando me enviar um pedido de demissão em caráter irrevogável. Espero tal não ocorrer, enquanto eu ocupar a Casa Civil. - Mas, dizem por aí: você e o Governador são carne e osso. Não se separam, nunca. Vou mais além, a própria imprensa já propala a sua candidatura para o Palácio. - Não com a minha autorização. Os amigos insistem nisso. Você há de convir: política só se faz com amigos. Lembro-me de um político da velha república, sempre repetindo: prefiro errar com os amigos. - Bem, Salim. Reconheço a preciosidade do seu tempo, anotei a sua preocupação com os dois pacientes e peço-lhe transmitir ao Governador o meu maior interesse pelo caso. Não deixarei faltar mesmo nada. Logo seja a transferência possível, providencia-lá-ei. De qualquer maneira, você tem o meu telefone de casa e também o celular. Não deixe de me ligar se surgir qualquer coisa. - Digo-lhe o mesmo. Você também tem os meus números. Mantenha-me informado dos acontecimentos. - Desligado o telefone, o superintendente mais uma vez se sentiu como uma peça naquele intrincado jogo de xadrez. "Dirigir um hospital não parece tarefa fácil. Atuar como superintendente desta torre de Babel exige uma veia política difícil de encontrar. Embora jamais tenha desejado disputar um cargo eletivo, só agüentar dirigir o HC, por quase vinte anos, dá pra me considerar um parente próximo de Maquiavel". Os seus pensamentos foram novamente interrompidos. - Doutor Juarez. Encontram-se aqui três deputados estaduais da região do ABC. Pedem para recebê-los. - De quem se trata? - Os deputados Paulo Silva e João Martins do PMDB e Antônio Nolasco do PT. - Agora virou coligação. Mande-os entrar. Cumprimentos de praxe, vão direto ao assunto. - Posso servi-los? - Doutor. Trata-se do caso de dona Denise Marchioni. O superintendente levou um susto. Desligara o telefone poucos instantes antes, onde tratara do mesmo assunto. Pensou: "Vivemos realmente no País onde mais de evidencia o tráfico de influências do mundo atual. Estes três bobocas nada entendem de U.T.I., e vem aqui meter o bedelho? A indústria de Marchioni emprega mais de dez mil pessoas. Além disso, o comendador tem ainda quinze fábricas de menor porte. Mesmo no PT e na esquerda festiva do PMDB, agradar o comendador constitui investimento". Repetiu-se a mesma ladainha: impossibilidade de transferência da paciente, não deixar faltar nada. O mais difícil: convencê-los, as visitas são terminantemente proibidas, correndo ainda o risco de uma pergunta adicional: pra nós também? O cafezinho de praxe, as juras de amor eterno, a troca de incenso e loas e finalmente o refrão: - Pode deixar, não vai faltar nada mesmo. Vou passar-lhes o número do meu telefone direto. Para qualquer eventualidade, basta discar. Se eu não estiver aqui, a secretária me localizará. O superintendente bem sabe, tal refrão repetir-se-á dezenas de vezes por dia ou sempre ante um fato novo. Nem bem a comitiva deixa o recinto, a secretária, do outro lado da linha, volta novamente à cena: - Dr. Juarez. Tem um pessoal da TV Globo desejando falar-lhe. - Você falou da minha presença? - Não, senhor. - Então diga-lhes: saí para uma reunião na Casa Civil do Governador e não tenho hora para voltar. - Pode deixar.

Saindo pela porta lateral diretamente para o elevador privativo, penetra no mundo dos pensamentos. "Desta me livrei. A notícia vai mesmo sair com todos os seus detalhes. Mas, melhor o de sempre: - A direção do HC não foi encontrada pela nossa reportagem".

22. Greve à vista

No Gabinete do Assistente Médico. - Dona Marli e esta história de greve? Dr. José Roberto, Assistente Médico do HC, inicia um papo informal com a chefe do Serviço de Comunicação. - Olhe doutor, esta conversa, vem de longe. O pessoal da Associação reúne-se quase todos os dias, mas ninguém diz nada. - Deus meu! Vou completar vinte anos de HC. No começo as coisas eram mais fáceis. Agora, tudo se tornou difícil: a fofocada tomou conta do hospital. E vivemos num mundo à parte. As pessoas de fora nem ficam sabendo da nossa via-crucis. - Mas, o senhor bem entende, num monstro como este, com mais de mil leitos, o administrador faz o papel de um prefeito. Nosso ambulatório atende a mais de mil consultas diárias e o PS não dá vencimento a tanta procura. Os leitos, sempre superlotados: as verbas insuficientes; enquanto o Quadro de Pessoal espera aprovação há mais de dez anos. - Olhe, dona Marli. Existem coisas piores. Pra mim, estas mudanças políticas deixam a situação ainda mais conturbada. Imagine, já fomos subordinados à Faculdade de Medicina, depois ao Reitor da Universidade, em seguida, ao Secretário da Saúde e agora à Casa Civil. É muita mudança, pro meu gosto. O Governo proíbe greve em hospital. Os funcionários descobriram só conseguirem alguma coisa quando entram em greve. Criou-se um círculo vicioso bastante perigoso, verdadeiro festival de Tom e Jerry. - Realmente, a gente do Serviço de Comunicação sofre bastante. Vive tapando o sol com uma peneira. De um lado, a administração exigindo a informação de greve parcial e os serviços de emergência funcionam com 100% de efetividade e eficácia; de outro, a turma do PS, trabalhando com menos de 20% do pessoal e os doentes graves morrendo quase a míngua. - O pior: os chefes. Nestas horas parecem baralho com duas caras à mostra... Na frente dos funcionários aderem à greve, e, diante da direção, dizer estar fazendo o possível para coibi-la. Não sei como podem ter tamanha cara de pau. - O doutor Juarez fica uma fera. - O Secretário da Saúde aperta, o Governador aperta, a opinião pública aperta, e o nortista dança mais na corda bamba. Quando começa o zum-zum de greve, o homem fica nervoso e não sai daqui pra nada. - Claro! E o medo de perder o lugar? - Não sei. Nem o Pão de Açúcar é tão firme. Quando todo o mundo espera a queda dele, a qualquer momento, aí ele se firma mais ainda. O doutor Juarez só cai pra cima, tamanha a sua influência política. - Mas, o Governador não parece morrer de amores por ele. - Como não! O Governador foi até padrinho de casamento de sua filha. - Impossível alguém pertencer a todos os partidos ao mesmo tempo. - Vou-lhe dizer uma coisa: se Lula, do PT, for Governador, periga o doutor Juarez ficar. - Chega! Vira esta boca pra lá. - Olhe, o cara vai descobrir uma tia-avó em Garanhuns, terra de Lula, também tia-avó dele. - Se o pessoal entrar mesmo em greve? - Será como sempre. Piquete X Polícia X Piquete. O superintendente confabulando no gabinete. A

Associação em assembléia geral permanente fazendo comício o dia inteiro e o pessoal, odiando o trabalho, doido para continuar em greve. - E o paciente? - Este se dana todo. No ano passado, a enfermagem ficou com menos de 20% do pessoal realmente trabalhando. No PS havia dias com uma freqüência abaixo de 40%. Se reclamam da falta de pessoal em dias normais, imagine em greve. - Pelo jeito como as coisas andam, não demora muito e o pessoal vai parar. O Governador disse não ter dinheiro para aumentar os vencimentos. - Mas, gaita pra propaganda pessoal, não falta. O elenco de realizações apresentadas na televisão só não mostrou ainda a inauguração do cemitério de Sucupira. - É, mas este tipo de gasto nem aparece. - Bom. O nosso consolo: nenhum chefe pode entrar em greve. No ano passado, dois dançaram porque permaneceram em cima do muro. - Sim, mas o fura-greve impediu-a, caíram do mesmo jeito. Os funcionários não esquecem. Na primeira eleição, "pimba", trocam tudo. - Também, impossível burrice maior. Onde se viu escolher chefe de uma instituição complexa como esta por eleição, se os votantes são, na maioria, subordinados? - O eleito fica comprometido de cara. Como poderá exigir dos eleitores o cumprimento da disciplina? - Veja só. O superintendente é escolhido pelos funcionários, em lista sêxtupla encaminhada pela Associação ao Conselho de Administração. Este, por sua vez, a envia ao Governador. O Governador nomeia o de sua preferência. Como pode um cara ser eleito por seus auxiliares e indicado pelos membros de um conselho, onde, isoladamente, os conselheiros serão seus subordinados na rotina diária? Se houver um ato de indisciplina de um funcionário ligado à Associação, esta vai logo caindo de pau no chefe para dar um jeitinho. Quando o problema chega às mãos do superintendente, de tão mastigadinho, nem sempre reflete o concretamente ocorrido. Pensar em dirigir um hospital deste tamanho é lenda, e imaginar-se dono das rédeas: fantasia pura. - Eu tive um professor de Administração Hospitalar sentenciando: dirigir hospital de quinhentos leitos é piada, com capacidade superior a mil, cretinice. - Agora, veja. Sem envolvimento com subordinado a coisa apresenta dificuldades, imagine este monstro com um diretor eleito pelos funcionários. Olhe só o doutor Juarez. Em toda mudança de governo dá o homenzinho na cabeça. Nem Mandrake. O interfone toca. - Doutor José Roberto. O superintendente deseja falar com o senhor dentro de meia hora. Obrigado. - Estarei lá. Volta-se para a colega. - Dona Marli. Sabe de alguma coisa nova? O chefão quer falar comigo. Não é comum chamar-me com tão pouca antecedência. - Só pode ser o caso da Dama de Preto, certamente pretejou. - Deixa pra lá, dona Marli. Este assunto caiu na rotina. Perdeu a sua importância. Por falar nisso, a senhora não notou o tremendo interesse de Juarez com relação à Dama de Preto? Aí tem dente de coelho. - Não faço a menor idéia. A fofoca neste hospital não anda, voa. Na segunda-feira, quando cheguei pra trabalhar, fui chamada ao gabinete. Em seguida, o diretor clínico falou comigo. Depois, o senhor também tocou no assunto. Finalmente, seu Daniel mostrou-se apavorado com o noticiário dos jornais, a respeito do caso. Tudo isso, envolvendo a Dama da Ladeira. - Não, dona Marli. A Dama de Preto. - Não entendo mais nada. O boato na U.T.I. dá ao caso a conotação de um relacionamento pessoal do chefão com a Dama. Com todo este tempo de HC, só tenho escutado falar de casos o superintendente com as secretárias. Envolvimento com paciente, nunca. - Sempre há uma primeira vez, Não sei se a senhora se lembra de uma fofoca dele com a antiga enfermeira-chefe morta num acidente? - Não. Na época eu ainda, não trabalhava aqui. - Trabalhava sim. Quando a policia atendeu o caso, ao vasculhar a documentação dela encontrou fotos e cartas comprometedoras envolvendo os dois. - Como o senhor soube disso? - Os documentos foram entregues a Fábio, assessor da superintendência, com ódio mortal de

Alexandre. O cara deu com a língua nos dentes e o chefão o demitiu. - Engraçado. Não tenho a menor idéia de como acontecem estas coisas. Meus contactos com o chefão tem sido formais por todo este tempo, nada saberia dizer quanto ao seu perfil. De qualquer maneira, a impressão dele é um formalismo a mais da conta. - A mim, também. Conheço-o há muitos anos. Mesmo assim, nosso relacionamento prima pelo formalismo. Jamais o vi contando uma piada. Só não há o doutor, porque temos quase a mesma idade. - Sabe, doutor José Roberto. Em tudo isso noto algo interessante. Até hoje, jamais escutei falar de cantada ou, pelo menos, insinuação com qualquer funcionária. Veja: temos hoje muita menina bonita trabalhando aqui. Nem mesmo as secretárias dele, quando saem, abrem a boca neste sentido. Reclamam é da incrível distância de todo mundo. - Sorte dele. Bem, Dona Marli, chega de papo. Vamos rezar para a greve não acontecer. Vivemos uma fase política perigosa e um movimento grevista, nesta hora, só trará problemas para o hospital. Esperemos a vitória do bom senso. Deixe-me ver o homem. Dirige-se ao gabinete, movido por uma curiosidade a mais. "chamado urgente tem coisa. Espero estar o assunto relacionado com a greve. O homem de tão bem informado, às vezes me deixa em palpos de aranha. Também pra quê divagar? Dentro de mais alguns minutos ficarei sabendo" - os pensamentos do assistente médico pululavam. Adentrando no gabinete, superintendente foi objetivo: - José Roberto. Devemos estabelecer um critério mais flexível para as visitas ao casal acidentado na Ladeira do Morumbi. Tenho recebido inúmeras pressões de todo lado. Até do gabinete do governador. - A Dama de Preto? - Como? O senhor Caio e a dona Denise? E esta história de Dama de Preto? - Você não sabia? - Não, é claro. - O pessoal da U.T.I., de rotina, costuma apelidar a maioria dos pacientes. Dependendo das circunstâncias da internação, surge o apelido. No caso, a paciente deu entrada na U.T.I., com um vestido preto, sapato preto e até roupa íntima preta. Enfim, toda de preto. Segundo o pessoal de lá, parecia ir para uma festa macabra. Não deu outra: Dama de Preto. - Aquele pessoal não tem jeito. Imagine a família ficar sabendo dos pacientes mais graves recebendo apelidos. Realmente, não soa bem. - Olhe, Juarez. Você, com tantos anos de janela, sabe, a nossa U.T.I. dá show nas melhores do Brasil. Não seria um apelido, instrumento válido para desprestigiá-la. Se você começar a coibir, simplesmente o pessoal vai continuar apelidando da mesma forma. Deixe isso pra lá. Sem esconder a irritação, o superintendente prossegue: - Gostaria de seu controle pessoal das visitas aos dois pacientes. E mais: quero pessoalmente tomar conhecimento de qualquer fato ocorrido com relação aos visitantes. - Pode deixar. Farei o possível. O superintendente tinha como característica pessoal, ir direto ao assunto e usar de total objetividade. Na juventude, no mínimo, fora telegrafista. Enquanto retornava à sua sala, o assistente matutava: "Deve existir alguma coisa por trás de tudo isso. O homenzinho não bate prego sem estopa. Conheço-o há mais de vinte anos, e não me recordo de ter ido á sua sala, sequer uma vez, resolver problemas de visitas. As rotinas são bastante claras e existe um serviço especializado tratando do assunto. Já me imagino porteiro do HC. Ao chegar alguém vou logo me adiantando - Visita é comigo mesmo. Não tem nada não. Mas, descobrirei a nebulosidade de tudo isso".

23. No Box no 2

Quarta-feira. Dr. Mânlio chega ao Isolamento da U.T.I. e se dirige ao box nº. 2. Deitado, quase imóvel, olhar inexpressivo, repousa o Dr. Caio. No contexto, sobressaia-se claramente uma pessoa humana em estado de enfraquecimento físico contínuo e mal falava. As forças minavam-se por uma infecção conhecida nos meios médicos pela alta virulência, a tão temida septicemia. Recusava contactos e, mesmo com os parentes mais próximos, evitava emitir além de monossílabo. Esses procuravam não deprimi-lo mais. Mânlio, seu operador por duas vezes, vinha vê-lo diariamente, procedia aos exames mais meticulosos, mudava a medicação, redobrava os cuidados, porém mal lhe dirigia a palavra, seja por falta de interesse pessoal ou por uma proverbial discrição, somente quebrada quanto a assunto médico. Limitava-se a perguntas estritamente necessárias: - Está se sentindo melhor? - Dormiu bem na última noite? - Tem recebido bem a alimentação? - A enfermagem não lhe tem deixado faltar nada? Mas, desta vez, o colóquio vestiu nova roupagem: - Bom dia, senhor Caio. O senhor entendeu estar realmente melhorando? Aqui nos registros de temperatura, pulso e pressão observamos a sua febre ontem à noite bastante elevada, o pulso ficou mais rápido e a pressão diastólica também subiu. O senhor teve algum pesadelo? Alguma sensação estranha? Pensamento triste? Diga-me, para eu poder avaliar melhor o seu grau de recuperação. - Doutor, o senhor tem um tempinho para mim? - Claro, por isso fiz-lhe tais perguntas. É nossa obrigação e até um compromisso ético, considerar o lado humano do paciente, independente de sexo, idade, raça, religião e até mesmo condição social. No seu caso, ouve um acidente de todo inesperado. Ninguém se prepara para uma mudança tão brusca na vida sócio-profissional. Tem uma linda filha adolescente, uma esposa bastante simpática e muito interessada na sua recuperação. Ela sempre insiste na transferência para um hospital com melhores condições e, assim, poder-lhe prestar cuidados mais diretos. Pelo número de políticos e empresários procurando conhecer o seu estado de saúde, depreende-se ser o senhor uma pessoa importante em São Paulo e, também, em Brasília. - Olhe, doutor, nem sei se sou importante. Tenho um enorme número de amigos e conhecidos, relacionados, principalmente, com o meu tipo de trabalho. - No seu Prontuário Médico consta a condição de empresário. - Realmente, exerço atividades empresariais, como se fora um corretor de negócios. - E como isto funciona? - O meu pai, um dos mais importantes generais da revolução de 1964, durante muitos anos freqüentou os salões palacianos. Como não tivesse jeito para negócios, insistiu para eu abrir um escritório em São Paulo, com filial em Brasília. Deste modo, quase passei a habitante permanente da Ponte Aérea. Geralmente demorava três dias em São Paulo, dois em Brasília e ainda reservava os fins de semana para o Rio ou Guarujá, onde encontrava os empresários para relacionamento comercial. O objetivo era conseguir dinheiro do governo a juros subsidiados para o comércio e a indústria. O governo tinha grana e queria gastá-la a qualquer custo. O empresário necessitava dela para investimentos, ampliações e capital de giro. Como eu tinha acesso aos políticos de maior prestígio, fazia as apresentações e os interessados utilizavam o meu escritório para confabulações e acerto de negócios. - As negociatas, o senhor quer dizer? - Não é bem isso, porque negociatas têm um sentido pejorativo. Eram negócios mesmo, de licitude incontestável. As pessoas procuravam o meu pai buscando cartas de recomendação para políticos influentes. A princípio, o velho evitava o intrometimento. Na época, eu freqüentava uma Faculdade de Direito em São Paulo e o Professor de Introdução à Ciência do Direito, por

detestar o movimento revolucionário, logo me identificou pelo nome, o mesmo do meu pai. E não deu outra: no final do ano, pau na certa. O velho não quis acreditar neste papo e culpou-me das reprovações. Resolvi me transferir para a Universidade de Brasília e o escritório começou a crescer muito depressa. Nunca vi tanto dinheiro na minha vida. Cheguei a ganhar mais de cinco vezes os vencimentos do meu pai, um general de quatro estrelas, talvez o mais badalado da revolução. Por vezes, o seu nome aparecia como um dos mais fortes candidatos à Presidência e, a cada notícia, meu cacife aumentava. Logo me casei, mas o casamento não deu certo porque a vida noturna era parte integrante do meu trabalho. Daí em diante, as mulheres entraram na rotina. Uma parte do dinheiro ganho vinha em dólares. Aliás, nem chegava a vir, depositava-os automaticamente em conta numerada na Suíça ou mesmo nos Estados Unidos. Era dinheiro limpo, pois tratava-se de comissões perfeitamente legais. A Brazil Trade Company - BTC, atendia a todas as exigências governamentais. O maior problema era com a receita federal, porque os lucros superavam, de muito, as expectativas mais otimistas. - A isso se chame Lobby? - Não é bem assim, mas pode entender como tal, doutor. O paciente narrou o seu envolvimento com Marina, sua segunda esposa, a quem conhecera no retorno de uma viagem a Londres, aonde ela havia ido para participar de um concurso de Miss Mundo. Quanto à companheira de acidente, discorreu: Denise é muito simpática e tem um papo bastante agradável. Eu estava sem programa na sexta-feira e resolvi telefonar-lhe. Ela aceitou o convite, pois o marido ia ter uma reunião de diretoria, devendo chegar bem tarde. Peguei-a em casa às 8:30 e nos dirigimos ao restaurante francês recém-inaugurado numa entrada próxima do Portal do Morumbi. Na descida da ladeira e logo após o semáforo do Palácio dos Bandeirantes, um caminhão peou a lateral do meu carro inteirinha. Não pude nem frear o Mercedes. Com o impacto perdi os sentidos, pois não me lembro de mais nada. Quando dei conta de mim, sentia uma dor horrível no peito descendo para o umbigo. Além disso, não teria, conseguido sair do carro sozinho porque o volante mal comprimia o tórax. Denise foi jogada fora do carro, mas não escutei nem um grito. Pelo visto, ela desmaiou logo com o impactou, aliás, muito grande. Não demorou muito e apareceu um casal no acudindo, enquanto ela continuava sem emitir um gemido. Apesar da dor intensa, não consegui entender porque ela não reclamava. - Isso é perfeitamente possível quando uma pessoa é projetada para fora de um veículo em movimento. Qualquer batida na cabeça provoca uma pane geral. - Pois bem, doutor. Logo veio uma rádio-patrulha e depois uma ambulância nos trazendo para o hospital. Uma coisa estranha aconteceu comigo: comecei a ver a vida ir-se distanciando, tive uma sensação de leveza e não sentia dor nenhuma. Perdi o interesse por tudo ao lado, como se estivesse saindo daquilo. O guarda ao me tirar do Mercedes falou sobre dinheiro e documentos e nem me lembro se respondi alguma coisa. Recordo-meter sido quase arrancado do assento, mas não doeu nada. Parecia tudo tão estranho... - Devido à hemorragia interna, na medida da perda de sangue, tem-se a sensação de esvair-se também a vida, levando a uma situação rotulada de choque hipovolêmico irreversível, quando a perda sanguínea atinge um limite irremediavelmente comprometida. - Ainda me recordo das palavras do policial quando pegou os meus documentos - esta carteira está cheia de verdinhas. Certamente se referia a um punhado de dólares esquecidos de colocar no cofre. - E eram muitos? - Não acredito não passassem de cinco mil. De qualquer maneira os esqueci. Imagine o senhor, tentar reavê-los. Terminaria tendo de dar explicações à Receita Federal. É melhor perdê-los de uma vez. - E quanto a Dama de Preto? O relacionamento é apenas superficial? - Quem? - A sua acompanhante. Como trajasse um costume preto, o pessoal do plantão apelidou-a desta

forma. - Eu mal a conhecia. Para ser bem preciso, fui-lhe apresentado numa festa após um incidente onde ela derramou uma bebida na lapela do meu paletó. Saímos para jantar uma vez e, na sexta-feira, seria o nosso segundo encontro. Sei apenas ser ela filha do dono da Indústria Crescente e o seu marido, diretor lá. Nem o conheço. - Este tipo de acidente é mesmo fogo. Até explicar, focinho de porco não é tomada de corrente e nem bico de pato gavetão, muita fofoca vai surgir por aí, principalmente por parte da Imprensa. - E os jornais, doutor? - Olhe, por conta da Imprensa não houve muito estardalhaço. Nosso superintendente, além de administrador, é um político muito hábil e bem relacionado. Conseguiu até hoje, os jornais não relataram os fatos. A única notícia foi no jornal da Globo à meia-noite, ainda na sexta-feira e sem declinar os nomes das vítimas. O carro está escondido, aguardando a evolução dos fatos. - Marina havia me dito isso. Aliás, ela é muito fácil de fazer amizades. Parece haver conseguido um horário especial de vistas através de um amigo dela, se não me engano, o doutor Eliomar, assistente do senhor nas minhas cirurgias. - De fato, ele foi o meu auxiliar. Um residente de 3º ano e muito bom. Aquele rapaz vai longe. - Ele tem vindo sempre aqui com Marina. "O pior tipo de corno é sempre o elogiador do amante da mulher. E este cara não se manca? Eliomar não bota prego sem estopa? Depois, um mulheraço daqueles não vai mais querer investir num pobre coitado com os dias contados" - pensou Mânlio e completou: - Bem doutor Caio. Se precisar de mais alguma coisa, costumo passar por aqui diariamente por volta das três horas. Às 6as feiras permaneço o dia inteiro no plantão da cirurgia. Dona Lúcia poderá me localizar a qualquer momento pelo bip. - Doutor! Mais uma perguntinha. - Diga - O senhor, honestamente acredita na minha reinteração? - Olhe, doutor Caio - A medicina e a tecnologia são imprevisíveis diante de algo ainda mais imprevisível: a vida humana. O senhor é um homem de compleição atlética, pratica esportes em caráter permanente, não fuma, e o mais importante, no verdor dos quarenta anos, tem tudo para debelar quase sozinho qualquer infecção. O problema todo reside na sua vontade de viver. Quando a gente se motiva, a nossa economia orgânica cria uma barreira capaz de vencer qualquer doença. No seu caso, a gente vem tomando as medidas terapêuticas mais avançadas do mundo. - Doutor, não me leve a mal. Não entenda na minha pergunta nenhum vislumbre de falta de confiança ou mesmo insegurança. Peço-lhe recebê-la mais como um gesto de desespero, de um ser humano de todo despreparado para o pior. Não dá para me transferir para o Albert Einstein ou o Sírio Libanês? - Por quê? - Lá existe maiores recursos e como é tudo tão caro, quem sabe não vai faltar nada? - E o senhor sente lhe faltar alguma coisa? - Não, doutor. Longe disso. Sinto-me até bem atendido. Mas lá Marina poderia ficar comigo, não haveria tanta limitação quanto a horário, número de visitas e... - Não é bem assim - interrompe o médico. O problema de visitas tem conotação apenas social e nenhum valor terapêutico. Antes, pelo contrário. As suas defesas orgânicas estão seriamente comprometidas por uma infecção pós-operatória e utilizamos os antibióticos mais potentes. Algumas visitas podem ser portadoras de patologias assintomáticas, ou seja, transmitem moléstias ainda em fase de incubação ou não manifestaram algum tipo de sintomatologia. A presença de uma pessoa portadora ou com uma patologia em período de incubação pode significar um agravamento do problema infeccioso. As condições de recursos tecnológicos, humanos e materiais existente no Sírio, no Einstein, no John Hopkins de Baltimore, em Cleveland e mesmo em Houston não são melhores com relação as nossas. A grande maioria dos nossos médicos estagiou nos melhores hospitais ingleses e americanos. Além disso, uma movimentação do estágio atual de sua evolução clínica é um grande risco. Ademais, convém lembrar-lhe a temperatura nos Estados Unidos e na

Europa cai muito nesta época do ano. Se o senhor fosse meu parente eu contra-indicaria qualquer remoção, mesmo para um hospital vizinho. Quando estiver melhor, poderá escolher um hotel, estância ou um passeio bem tranqüilo para facilitar a sua recuperação. No momento é permanecer no H.C. - E por quê eu tenho de ficar isolado dos demais pacientes? - Por uma questão de dupla segurança sua e dos outros pacientes. A dos demais, pela infecção disseminada, piorará o estado de saúde deles, e sua, porque a defesa imunológica, estando comprometida, com a penetração de outros micróbios no seu organismo enfraquecerá ainda mais suas forças já bastante debilitadas. É como se fosse uma guerra: os micróbios instalados nos seu corpo, querendo vencer as barreiras de defesa e os estranhos , aliados aos primeiros, a engrossar as fileiras inimigas, enquanto as suas defesas não teriam como suportar tantas frentes de batalha. O melhor é o pensamento positivo. Hoje já é o 4º dia de pós-operatório e o senhor está resistindo bem. Aguardamos apenas os resultados do antibiograma nos melhores laboratórios de São Paulo, para ver se precisamos alterar alguma coisa. Conforme seja, mudaremos o tipo de antibiótico e logo o senhor vai sentir uma melhora no seu estado geral, com reflexo direto no emocional. - Puxa, doutor! Como foi bom esse nosso papo. Eu estava tão desesperado e inseguro, nem tendo coragem e lhe falar. Agradeço de coração todo esse incentivo. Muito obrigado, mesmo, doutor. - Ora. Não tem nada a agradecer. Nosso trabalho é este. Nossa motivação é o paciente e a grande meta a cura total do doente. Só se vive uma vez. Por quê não prolongarmos uma vida sadia? O senhor vai sarar logo. - Obrigado, doutor. Estou realmente mais aliviado. Mânlio deixa o box, dirige-se ao Posto de Enfermagem e sobre o balcão encontra os envelopes dos Laboratórios Fleury e Delboni, suas últimas esperanças de um resultado confiável. Os dados confirmavam as suas suspeitas: agentes patogênicos resistentes aos antibióticos comercializados no Brasil. Tentar algo no exterior, totalmente impossível - lutariam contra o tempo - o maior inimigo, diante de uma septicemia com diagnóstico consolidado. Morte à vista. Pijama de madeira, no jargão policial. Pijama de pau na imprensa marrom. Morte à espreita. Milagre? Mânlio era ateu emperdenido. Os cuidados permaneceriam. Os recursos tecnológicos continuariam totalmente disponíveis. No entanto, algo estava definido, claro e inexorável: aquele paciente sairia envolto no lençol branco.

24. Fofoca intensivista

Arminda entretinha-se na Sala de Serviço da UTI, preparando aquele emaranhado de drogas, medicamentos, caixas, fios e cateteres para os boxes, quando é interpelada por Lúcia, a supervisora. - Arminda, como foi o encerramento do curso de atualização em UTI ontem, na Santa Casa? Infelizmente, não pude ir. O caçula estava com febre e Alberto não quis ficar sozinho com ele. Banquei a babá em dobro. - Tudo bem. Uma discurseira de despedida. Até o Provedor da Santa Casa compareceu. Entregaram os Certificados e, por sinal, trouxe o seu. - E ficou nisso? - Não, depois resolvemos dar uma esticadinha no barzinho lá na Oscar Freire. Francisco estava sem programa, aí decidimos juntar as forças. Permanecemos lá uma meia

horinha e fomos jantar no Giovanni Bruno, do Jardim. Finalmente, como tinha de começar aqui cedo, preferi ir pra casa. Por falar nisso, sabe quem eu vi no Giovanni Bruno? - Não! - Grimário. - Foi? - Se eu dissesse o nome da companhia dele, você cairia de costas. - Não faço a mínima idéia. Quem era? - Lembra-se daquela loura alta, de cabelo bem comprido e fala de carioca, visitando o cara da Ladeira dizendo-se assistente dele? - Sim. Se não me engano ela se chama Carmem. - Ela mesmo. O pior foi à tentativa de despistamento de Grimário. Quando nos viu, entrou no banheiro, mas Francisco sacou e resolveu fazer uma brincadeira. Retornando, Grimário ainda quis dar a entender estar deixando o recinto, mas Francisco tomou a iniciativa de convida-los para jantar conosco. Carmem só faltou se oferecer. Grimário encabulou e no fim, tudo deu certo. - E saíram juntos? - Sim. Mas ele tomou o caminho do Eldorado. Lá tem uma boate nova. D. Lúcia sempre mantendo uma postura impecável, quase perdeu a linha. Nem prosseguiu na conversa, passando a completar os Prontuários Médicos. Não demorou muito e apareceu o supervisor da U.T.I.. - Bom dia. Dona Lúcia. - Bom dia. Preciso falar-lhe. - Algum paciente mais grave? - Não. Assunto pessoal. - Por quê não fala logo? - Aqui não dá - reduziu o tom de voz - Arminda está na sala ao lado. Prefiro conversar em outro local. - Não houve nada de tão grave. Poderemos ir até a sala de repouso dos médicos ou na cantina e falar tranqüilamente. - Não, não dá. Chega de dar bandeira à língua do pessoal. Preciso falar com você sozinho, para esclarecermos alguns pontos obscuros. - Quem está mesmo na sala do lado? - Arminda. - Já vi tudo. A picolé de onça deu com a língua nos dentes. - Isto mesmo. Ela me falou de um jantar juntos no Giovanni Bruno: ela, Francisco e aquela sirigaita loura, amante do senhor Caio. - Pura coincidência. Após a saída da Santa Casa, resolvi ir jantar lá e a encontrei, sozinha, pois, segundo ela, brigara com o namorado. - Mentira pura, Grimário. Imagine se uma mulher tem a coragem de jantar sozinha, naquela hora e no Jardim? - Eu também reparei nisso. Mas, como estávamos lá, decidimos ficar. - Será possível uma pessoa grisalha inventar uma história tão inverossímil? Tenho a impressão de se contar mentiras doesse você só curaria com entorpecente. - Cuidado! Arminda pode estar escutando. - Você não passa de um cafajeste. Vive tentando me convencer a deixar Alberto e com a maior cara de pau, sai com a primeira prostituta social à vista. Imagine, se eu vou correr o risco de deixar o meu marido, arriscando ainda perder a guarda das crianças, por um don Juan de meia tigela, sempre pegando tudo quanto é bagaço por aí afora.Eu havia notado tanta atenção e não a uma delas, mas ás duas! Marina e Carmem estão, de há muito, na lista do seu rol. - Não se trata disso. Arminda deve ter exagerado no papo. - Posso chamá-la aqui? - Não, Lúcia. Onde você tem a cabeça? Incluir uma enfermeira subalterna, num caso amoroso, envolvendo os dois supervisores da UTI médico e de enfermagem? - Nada demais. Não é público e notório todo médico ter caso com enfermeira? Você não parece tolo o suficiente para querer tapar o sol com uma peneira. O pessoal antigo aqui do HC sabe havermos sido namorados um tempão e só casei com Alberto, após você dizer não agüentar viver longe da família. - E não foi mesmo? - Coisa nenhuma. Eu descobri com uma amiga minha do Recife, aliás, vizinha sua, você correu porque sua mãe não queria o filho doutor casado com uma nissei. - E por quê você nunca me contou? Só agora, tantos anos depois, resolve falar, Parece algo estranho e... - Estranho coisa nenhuma. Só Deus sabe como sofri. O dono do meu amor me deixar por um problema social de somenos importância. Não tenho culpa de minha origem japonesa. - Nosso casamento não traria danos à sua mãe, morando na Recife e nós iríamos viver em São Paulo. Nem o lado religioso poderia ser levado em conta, pois era batizada e meus pais haviam adotado o catolicismo. - Não entendo tratar desse assunto em plena UTI. Você poderia escolher local e

hora mais adequados. E logo dona Lúcia, toda certinha? - tentava Grimário amenizar a situação. - Não Grimário, chega de enrolação. Desde o meu casamento você ficou complexado. Antigamente, punha todos os defeitos em Alberto e a depender de você o nosso casamento não havia perdurado por um mês. Lá se vão quase oito anos e você não desiste de tentar me convencer a desfazê-lo pra sua mãe amaldiçoar o filho doutor destruidor de um lar abençoado ou dar a entender eu o haver convencido a viver comigo, mesmo tardiamente? - Epa, Lúcia está se excedendo! - Não Grimário. De há muito queria encontrar uma chance para o desabafo final. Nossos encontros, além de fortuitos e sempre com a mesma finalidade, só têm trazido desencantos. Alberto e nem as crianças merecem este meu comportamento. Você está bem, vive bem, fez do seu trabalho, aliás muito louvável, a sua religião, a sua razão de viver. Jamais poderia ter um lar normal, uma esposa, filhos, enfim uma família. Você não suportaria tal rotina, por muito tempo. Estaria bem comigo até aparecer a primeira mulata do Sargentelli aqui na UTI, após uma trombada. Nem sei se não está apaixonado pela Dama de Preto e o seu maior desejo é vê-la abrir e fechar os olhos. A incerteza do seu descerebramento é afetiva e não profissional. O melhor intensivista de São Paulo, e talvez do Brasil, não querer aceitar a limitação profissional e tentar se convencer sermos conduzidos pela cegonha! Acorde Grimário. Procure Luzinete do Centro de Material. Ela é mãe de santo. Tem um terreiro movimentadíssimo na Raposo Tavares. Vá lá, faça uma prece e ressuscite a Dama de Preto. Você insiste em viver no mundo das ilusões. Encha a sua agenda. Hoje chegou um paciente acidentado de moto, a mãe é teleatriz, linda de morrer. Pediu até o seu telefone. Certamente, você autorizará visita livre indo buscá-la e levá-la. Cresça mas tire o meu nome do seu rol de Grimaretes. Tenho condições de sobreviver sem a sua lembrança. Sentimentalmente, um caso perdido. - Escute bem, Lúcia. Estou realmente precisando de um bom período de descanso. Pretendo passar o Natal no Recife e como tenho férias acumuladas nos três empregos, vou aproveitar e ficar até o carnaval. Falei com o chefão e ele não se opôs. Quando vim trabalhar hoje, nem pensei ser este o nosso papo. Entendo bem a sua posição, acredito mesmo no seu arrazoado, mas prefiro voltar ao assunto em outra hora e em local mais adequado. - No My Flowers, no Mykonos ou no Caribe, ou melhor ainda, no Tokyo com seu banho coletivo - prossegue a supervisora em tom sarcástico. - Respondo depois - e, assumindo ar profissional, continua - Dona Lúcia, quer fazer o favor de me acompanhar na visita? - Doutor, começaremos pela Dama de Preto? - Não. Prefiro olhar primeiro o menino do acidente de moto. Terminada a visita aos pacientes internados na UTI, a supervisora retorna ao Posto de Enfermagem e encontra Arminda com ar assustado, a inquire: - Dona Lúcia, escutei, sem querer, é claro, a sua conversa com o doutor Grimário e fiquei preocupada. Até agora os considerava bons amigos mas cometi o mais puro engano. Evidentemente, a privacidade de cada colega de trabalho não se divide, nem cabe-lhe renúncia, mas como devo-lhe este emprego e considero-a minha melhor amiga, decidi levar este papo com a senhora. - Bem. Arminda. Trata-se de uma história antiga. Grimário fazia residência na Santa Casa de Santos e minha família morava na praia do Gonzaga. Eu estudava no Colégio Canadá e me preparava para o vestibular de Medicina. Conheci-o num domingo, através de uma prima, sua namorada. A conversa muito animada e ele não tirava os olhos de mim. Fez questão de dizer trabalhar e morar na Santa Casa, entrou até em detalhes quanto aos horários de suas atividades e insistiu para eu anotasse o seu telefone, para qualquer eventualidade. A minha prima, nem se tocou diante de tanto interesse. Achei aquilo tudo muito estranho, mas não falei nada pra ela. No início da semana seguinte, ia saindo de casa, ao final da tarde, quando observei alguém me seguindo. Não deu

outra: Grimário, um convite para jantar. Fiquei com medo e não aceitei. Duas semanas depois, notei-lhe a presença, sentado na calçada, bem em frente do nosso apartamento. "Pelo visto, este cara quer pegar no meu pé" - pensei. Nem consigo entender a razão, mas desci e logo de cara ele me noticiou o término do namoro com a minha prima. Daí em diante foi uma insistência só: bilhetes, postais, cartas, lembranças. Resolvi então namorá-lo. Jamais havia conhecido alguém tão sensível e dócil em toda a vida. Ciumento como ele só, levava-me e trazia da aula e ajudou-me na preparação do vestibular. Acompanhou-me nos exames, até eu tomar bomba, e me desiludir com a medicina. Resolvi estudar enfermagem. A princípio, ele não gostou da idéia. Teimei, fiz fincapé e voltamos às boas. Consegui unir meu curso, à distância Santos-São Paulo, saindo de casa as cinco da manhã. Mas, sentia valer a pena. Nisso Grimário terminou a residência e resolveu voltar para o Norte. Até aceitei a idéia de morar com ele, no Recife, no entanto, sobre este assunto ele não falava muito, chegava mesmo a cortar o papo e a desculpa maior era a sua mãe católica fervorosa, família tradicional, talvez não se sentisse bem com o único filho varão casado com uma nissei. - Ele não falou no começo? - Olhe, Arminda. No início tudo são flores. Para Grimário parecia existir somente eu. Como não tivera namorado, faltava-me chance de comparação. Aos dezessete anos jamais havia sido beijada. - Ah! Isso é ruim mesmo. - Talvez fosse outra época. Sempre gostei muito de estudar e praticar esportes. Tinha a turminha da praia e o pessoal do colégio me tratava como uma colega agradável. Cheguei até a jogar futebol de praia. Ia tudo muito bem até conhecê-lo. A sua entrada na minha vida provocou inúmeras mudanças. O mundo tornou-se diferente. Eu só enxergava o Grimário; assimilei suas idéias e acatei os seus pontos de vista. Enfim, virei "Grimarete". A conversa de voltar para o Recife rompeu meu equilíbrio emocional, senti-me rejeitada. Os meus pais deram-me imensa força. Chegaram a insinuar um curso de pós-graduação no Japão, enfim, qualquer coisa capaz de ajudar a esquecê-lo. Eu não conseguia entender e, muito menos, aceitar uma mudança tão brusca nas suas atitudes. - E não havia outra no pedaço? - Só se fosse da meia-noite as seis da manhã! - Não deixa de ser um horário adequado para o amor. - Vá, vá Arminda. Não simplifique assim as coisas. Grimário parecia o mais fiel dos mortais. - Você acreditava nisso? - Sim Para mim era Deus no céu e ele na terra. - E daí? - Concluída a residência, como lhe disse, Grimário voltou para o Recife e ficou por lá uns seis meses. Escrevia-me regularmente, mas sempre me deixando no ar. Nada de tomar uma decisão. - Nem trepa nem sai de cima. - Arminda, você está louca? - Pois é. Ir embora para o Recife. Escrever regularmente tomando o seu tempo e não acenar coisa alguma representa bem o papel de ator de novela mexicana. - Lá um dia voltou. Não havia mais se adaptado ao Recife. Continuava gostando muito de lá, porém não para trabalhar. Queria tentar a vida num centro maior. Santos também lhe parecia pequeno. São Paulo pintava como o melhor campo de trabalho. Sabia-lhe competente e, deste modo, emprego não lhe faltaria. - E aí tudo voltou às mil maravilhas? - Coisa nenhuma. Realmente não sei se a permanência mais longa no Recife, a influência da mãe, o retorno vestiu-lhe uma roupagem bem diversa daquela da rotina. Sofri horrores. Imaginei-me naufragando, condenada, sem apelação. - Podia ter se mandado. - Não sei bem se por amá-lo demais ou masoquismo, aceitei a nova situação, perdurando mais alguns meses. Grimário arranjou um emprego no HC, depois prestou concurso para o INPS, ajeitou-se devagarzinho e paralelamente se distanciava de mim. - E você? - Terminei o curso de enfermagem. Perdi a bolsa para o Japão. Isto foi o pior. - Lamentável dona Lúcia. Uma bolsa para o Japão trocada pela esperança de Ulisses? - Eu não sabia ter queda para Penélope. Fiz pós-graduação, aqui mesmo na Escola onde havia estudado,

e prestei concurso no HC. Passei e resolvi morar em São Paulo de uma vez. - E Grimário? - Continuou me procurando, esporadicamente. Ele morava aqui perto. Saíamos à noite e, em certas ocasiões, eu dormia no apartamento dele. - Muito cômoda a situação! - Pois é. Com o tempo comecei a sentir estranho, Não parecia ser isso, exatamente o meu sonho. - Deve ter sido mesmo chato. A senhora toda certinha, sair do apartamento dele de manhã cedo e de cara lavada, parece-me estranho. - Aí conheci Alberto. No começo comparava tudo, até o sotaque completamente diferente. - Alberto não é descendente de alemão? - Isso mesmo. Até no temperamento. Ele insistia muito em sair comigo. Relutei até onde deu: Grimário distanciando-se e Alberto se aproximando. No início não falei nada pra nenhum dos dois. Fiquei na minha, me faltava coragem para romper definitivamente com ele. Aquela esperançazinha teimava em persistir. - Instalou-se então o tradicional triângulo amoroso? - Com Alberto era tudo pureza. - E como terminou o romance eterno? - Jamais terminou. Tentei romper com ele bem um milhão de vezes, mas sempre havia algo impedindo a separação final. Finalmente, abri o jogo. Ele nem se tocou. Aí acredito ter sido o meu grande erro, casei com Alberto. Logo vieram as duas crianças. O alemão, como o chamo em casa, me trata muito bem. É dócil, atencioso e até me ajuda nos serviços domésticos. - Imagine, Grimário de avental na cozinha? - Nem de longe. - E daí? - Após o nascimento do meu primeiro filho, ele voltou a pegar no meu pé. Como trabalhamos juntos, sou obrigada a reconhecer, tudo colaborou para uma nova aproximação. Perdi a linha. - Isto não é perder a linha. A gente só vive uma vez. A senhora só vai se arrepender daquilo quando deixar de fazer. Evidentemente sou bem mais jovem, mas prefiro viver assim. Curto o hoje. O amanhã é sempre uma interrogação. Talvez isso decorra do nosso tipo de atividade. Ontem na aula, os supervisores da UTI do Hospital das Clínicas estatísticas atualizadas 60% das pessoas com traumatismo grave necessidade de atendimento em UTI não conseguem sobreviver. Assim, por quê se privar das coisas boas? - Prefiro levar a coisa para outro lado. A sua geração é mais aberta. Além disso, minha educação sempre pautou pela fidelidade, até mesmo, recíproca. - E Alberto é realmente fiel a senhora? - Aí cabe uma interrogação. Jamais vi ou ouvi alguma coisa a este respeito. Este é também um ponto me deixando mal. Não consigo me justificar saindo com Grimário. - Ora, dona Lúcia, é só dizer não e pronto. - Desejaria exatamente isto. Na prática, ele parece mais forte, termino caindo e me arrependendo depois. - A senhora não imaginou uma possível influência do seu casamento na solteironice dele? - Não faço a menor idéia. Mas uma coisa já definiu: sair com ele mais nunca. - Espero poder à senhora cumprir à risca tal promessa. Lhe faria bem, mas aguentará o tranco? Antes da resposta, o telefone toca. - Sim, Lúcia, supervisora de enfermagem. Temos o box 6. De carro? - Sim. - Não, só dispomos do 6. Há um caso com alta, mas o pessoal ainda não veio buscar. Até ficar pronto vai levar pelo menos uma hora. Peça para aguardar. Vou falar com o supervisor. Dirige-se para a interlocutora. - Arminda. Mais um caso de amor. Marido atira na mulher e tenta o suicídio. - No momento só temos pronto o box 6. - Eu falei para o PS. - Pelo visto, vamos batizar a nossa UTI de "refúgio dos amores frustrados". - Por quê? - Temos a Dama de Preto, o Don Juan da Ladeira, a Janela Indiscreta... - Como Janela Indiscreta? - Ora, o cara curioso para olhar um assalto, ficou escondido atrás da janela e quando abriu a persiana fez barulho e o ladrão atirou nele. - Esta eu não sabia. - Tem mais aquele bicha do 7, Raul Galinha. Enfiou uma garrafa de litro de coca-cola no reto. O Francisco apelidou-o de "rabo espumante". - Coitado, e ainda vai ser transferido para o Emílio Ribas com suspeita de Aids. - Quem vê de fora, nem nota como o pessoal desta UTI é mesmo louco. - Você ainda acredita na possibilidade de pessoas normais irem estudar medicina ou

enfermagem? Quem se mete nesta vida é meio pancada. E ainda vou mais longe: passa a encarar tudo de maneira fria. - Não penso como você. Eu estaria bem na qualidade de médica ou enfermeira, embora acredite ser UTI uma atividade muito agressiva para nossa sensibilidade. Nem sei como vocês conseguem até pôr apelido nos pacientes. - Ora, dona Lúcia. Os apelidos se relacionam com algo marcante do doente. Além do mais, não vejo nenhuma maldade nisso, porque prestamos todos os cuidados possíveis e imagináveis aos nossos pacientes. E a senhora é testemunha ocular de tudo. - A verdade tem de ser dita. Não acredito em nenhuma UTI do mundo os pacientes sejam tratados melhor. A campainha interrompe a conversa. A auxiliar encosta a maca e a paciente baleada inicia uma nova rotina. - Arminda. E o apelido desta aqui? - Ainda não sei. Depende de como ocorreu o fato. Tanto pode ser "um tiro no escuro", "um salto frustrado", "a cigana me enganou" e assim vai. Ao saber lhe digo. - Boca de siri, na nossa conversa a respeito do Grimário. - Pode deixar, dona Lúcia. A senhora me conhece. "Quem diria a doce, eficiente e meiga dona Lúcia envolvida com o supervisor da UTI? Falando ninguém acreditaria. Ou sim? - pensou". Conduzem a paciente para o box 6. Lentamente a nova ocupante, respiração ofegante, pulso quase filiforme, movimentos desordenados, vai se familiarizando com aquele emaranhado de fios e aparelhos, numa seqüência onde a única realidade é a incerteza. Sairá desta? Entrará em coma? Restarão seqüelas? De qualquer modo estará incluída na estatística dos 40 ou 60 por cento. A rotina prossegue. A vida continua, na sua marcha sem retorno.

25. No repouso da cirurgia

Entre um chamado e outro, os plantonistas procuram um momento de descontração na sala de repouso. Geralmente os residentes se consideram sacrificados porque os preceptores e médicos mais antigos procuram resolver apenas os casos cuja complexidade exige maior vivência profissional. Fábio, o catarinense, inicia um diálogo com Eliomar: - E esta história de transar com a mulher do cara da Ladeira? - Eu!? - Sim. Você mesmo. E não adianta ficar com esta cara de peixe morto. Solte já o serviço. - Como você soube? - Primeiro diga: verdade ou não? - Não, é claro. - Mentiroso. Jaqueline, secretária do superintendente, flagrou você com ela naquela danceteria lá no Ibirapuera perto do metrô. E pareciam dois pombinhos. Chega, ou ainda vai continuar mentindo? - Não. Juro. É despeito de Jaqueline comigo. Eu não quis sair com ela. - Também nega ter visto por Orildo e Janaina saindo do My Flowers, juntamente com ela? - Este hospital é mesmo uma merda, a piranhada não faz outra coisa senão falar da vida alheia. Pois tô saindo, sim. A dona é uma máquina. E não parece muito a fim de levar o defunto pra casa. Nem pergunta mais se o cara vai ficar bom. - Ela nem é casada com ele. É até em São Paulo, com mais de dez milhões de habitantes, ninguém consegue esconder nada. Estranho é o cara chegar aqui há seis dias e você transa com a mulher dele. Sabe, Eliomar, o seu apelido devia ser pintinho de prata. - Não prefiro pau de ouro. E pode ajudar espalhando por aí. - Na verdade, auxiliei Mânlio na cirurgia dele no plantão. A mulher queria notícias.

Como é do conhecimento de todos, na UTI. Não pode enterrar ninguém. A enfermeira de plantão, Paula. Sabe como é Paula. Não pode ver homem. Se vislumbra um cara perto logo vai deitando. Lúcia gozava folga, vesti a dona e entrei. Ninguém notou nada. Ela ficou muito agradecida e como a gente não deve fazer nada de graça, convidei-a para jantar. O pior, parei na frente do prédio dela com meu fusca e ela preferiu sair no seu carro; Porsche vermelho. Simplesmente gamei. - Por ela. - Não, seu burro, pelo Porsche. Eu nunca havia andado num carrão daqueles. No domingo, fomos a uma chácara no Embu e viva meu Santo Padinho Cícero. - Falou pro Mânlio? - Não. Viria sermão na certa. - O cara contraiu septicemia, você sabia? - Sim. E disse à Marina. - E ela? - Declarou-se preparada pra tudo - Eita mulher descarada! - Descarada. O cara deixa a mulher em casa, diz ir para uma reunião com o pessoal do PMDB e enfia as fuças no rabo dum caminhão, com a Dama de Preto ao lado. Pelo seu gosto a mulher deve fazer novena pra ele ficar bom logo e depois cair nos braços da outra. Sem essa, meu chapa! - E você de santinho, consolando a pré-viuvinha. - Vocês, aqui do Central só sabem falar mal. Quando vim fazer esta merda de residência, antecipei o meu sofrimento. Agora no terceiro ano quero aproveitar um pouquinho. E por falar nisso, amanhã, 5º feira, vou jantar com aquela gata. Certamente, você não vai querer ir também. - Tenho programa. - Sim e com Jaqueline. Aquela é mesmo geral, secretária do chefão e sai com ele! Doida pra casar, pega um italiano barriga verde. Se o superintendente descobre, até logo contrato depois da residência. - Deus me livre de ficar nesta merda. Terminada a residência volto para Blumenau. Tenho dois tios médicos lá e vou trabalhar com eles. - Como não pretendo voltar pra Guatu, preciso evitar problemas. Quem sabe Mânlio me adota? Ele me chamou para auxiliar algumas cirurgias particulares e nesta vou entrando. Bom, deixa eu ir embora o tempo é curto. Hoje vou com Paula da UTI ao Caribe, com piscina e tudo. Tchau. - Tchau. "Este cara é mesmo louco. Vai logo se intrometer com uma mulher de padrão social alto. No mínimo, ingressará cedo na carreira de gigolô, do mais novo tipo de prostituição: a classe das prostitutas sociais. Só este com a evolução da medicina vamos nos transformar em proletários - matutava Fábio enquanto o colega deixava o recinto.

26. Viver sem emoções, vida vegetativa

Quinta-Feira, 20 horas. Na mansão de Caio Gomes de Salles e Silva. Refestalada numa poltrona, Marina assistia ao Jornal da Globo, quando escuta o telefone. - Alô. Marina? Eliomar falando. Hoje estão inaugurando um restaurante badalado na Avenida Cidade Jardim. Você não gostaria de ir até lá? Amanhã, sexta-feira, não vou dar plantão. Posso acordar mais tarde. Topa? - Sim. Em uma hora estarei pronta. Desligado o telefone, escuta. - Eliomar? Marina não é a mulher do cara da Ladeira? - pergunta ansioso Mauro, seu companheiro de quarto. - Sim. Cala a boca, deixa de dar bandeira. Aqui não sabem de nada. Ademais a minha vida é livre. - Claro. Nem quero me intrometer. Apenas uma ligeira curiosidade. - O pessoal daqui é fofoqueiro demais da conta. Quanto mais a gente evitar comentários, melhor pra todo mundo.

- E o cara? - Cada vez pior. Quando Mânlio fala no assunto, muda até de fisionomia - pelo visto, não vai muito longe. E a mulher dele não se manca? No começo, sim. Agora acostumou. Saí ontem com ela e quase nem falou no marido. - Gozado. O marido pré-defunto e a mulher sirigaiteando. Deixa de ser antiquado! A mulherada nem se incomoda mais com isso. Cada um quer viver o hoje, você, eu e todo mundo. Se você ficar um mês na U.T.I., se transformará inteirinho. Ainda, não estagiei lá. Como faço oftalmo, nem passa pela minha cabeça - não devo ter ido a U.T.I. até hoje, por mais de três vezes. Nem em campo de concentração morre tanta gente. Vou mais longe. Mesmo não faltando nada. Devemos tirar o chapéu pra equipe médica. Os plantonistas não dormem um minuto, o supervisor parece morar lá. Quando a gente escuta falar mal da U.T.I., tem vontade de esganar quem falou. Aquilo parece um relógio. A chefe, uma japonesinha dá um duro danado. O paciente chega em tão mau estado, não consegue sobreviver. Eu não suportaria ser intensivista. Como cirurgião tenho a esperança de, cortado o mal pela raiz, tudo tende a melhorar. Na U.T.I., a chance do médico criar alguma coisa torna-se praticamente nula, em razão do contexto. Escolhi oftalmologia por considerar uma especialidade mais tranqüila. Não tolero dar plantão, nem depender de outro colega, como ocorre na clínica, cirurgia, anestesia. - Dermatologia também não depende. - Dermatologia tem um aspecto degradante e um cheiro a me causar asco. - Fino, você! - Não. Corta essa. Em oftalmo, faço o meu horário, o paciente colabora e quando fecho o consultório, desligo. - Mas as cirurgias enguiçam, tem os corpos estranhos. - Sim. Porém nem sempre acontece. A freqüencia de tais casos não assusta. Chega de papo. Vou tomar um banho ligeiro e curtir um motel com a madame do Porsche. A futura viúva alegre. Quer dizer. Não fará a menor diferença. Viúva ou não, vale o programa. Como todo residente importante, entro com o charme e ela com a gaita. Nem virando a gente de cabeça pra baixo sai grana. Até me acostumei; ela passa o dinheiro por baixo da mesa e pago a conta. Ainda fica com o troco! Olhe pra minha cara. É de gilolô, Mauro? Bote a inveja pra lá. Não entendo como uma dona de casa pode agir desta maneira. Você não esconde o seu espírito nordestino. Nordestino, uma figa! Nasci em Santa Catarina, mas vim pra São Paulo com cinco anos. Considero-me paulista. Meu pai, sim, nasceu em Pernambuco. Certamente, herdou o machismo dele. Não acredito mas, a atitude da madame, com o marido morrendo, foge dos padrões normais. Engraçado, tudo decorreu após um passeio com a outra. A mulher toma conhecimento do chifre e ainda deve ficar rezando? Concordo com ela. Concorda porque leva vantagem. Se fosse com você, gostaria de ver a sua cara. Li uma vez num romance. Se não me engano, Biografia de João Ninguém. Logo no começo, uma estrofe jamais esquecida! Por artes de querer bem e por se ver desamado passa a procurar ninguém a busca só lhe convém e valeu ter procurado. Interessante. E daí? Pura coincidência. A mulher sentiu-se desamada e procurou alguém. Eu também procurava ninguém. Nos encontramos e curtimos a vida, numa boa. Viver sem emoções equivale a vegetar. Além disso, quem fica parado é poste. Não esqueço nunca quando estagiava na U.T.I.; recebemos um rapaz com a medula seccionada ,dando um mergulho na piscina do Paulistano. Vinte e oito anos, solteiro, herdeiro de uma metalúrgica, o pai morrera recentemente e a mãe não queria saber do negócio. Filho único, desconhecia a extensão do patrimônio. Nem bem tomara pé da invejável situação econômica e aconteceu-lhe tamanha desgraça. Diagnóstico final paraplegia irrecuperável. Ao conhecer sua real situação: cadeira de rodas para o resto da vida, impotência permanente, descontrole dos esfíncteres, dependência total de terceiros, perdeu o equilíbrio e o desejo de viver. Por uma semana, batemos longos papos. Não queria aceitar a nova situação, de modo algum. O dia da

alta coincidiu com meu plantão na U.T.I.. O cara estava arrasado, sem esperança. No meio do papo, enfatizou - viver sem emoções, simplesmente não dá. Voltar à fábrica, carregado, encarando a comiseração dos outros, não representa os meus anseios. Fiz-lhe ver a evolução da medicina, acenei-lhe com a possibilidade de um transplante de medula. Afinal, tratava-se de um jovem. Nada o convencia. A fossa dominava-o totalmente. E daí? Deixou o hospital numa quarta. Deu-me o endereço e insistiu para o visitar. Pensei até em fazê-lo um dia. Gostava do seu papo. No domingo seguinte, peguei o jornal e no necrológico, o de sempre: as empresas convidando para o seu sepultamento do seu diretor presidente. Fui ao enterro e conversei longamente com a sua mãe, a quem conhecera durante o tempo de internação do rapaz. Desolada, contou-me do seu suicídio com um tiro na cabeça. Não suportou viver sem emoções. De nada lhe adiantaria administrar vinte e três empresas inteirinhas suas. Não sei se suicídio é a melhor solução. Franklin Roosevelt, o maior estadista do século XX, Presidente dos Estados Unidos por três períodos, ficou paraplégico com menos de quarenta anos. Tivesse ele se suicidado, talvez a história atual fosse diferente. Nem todo mundo tem a estrela de Roosevelt. Também concordo, suicídio não resolve problema de ninguém. Eu estava me referindo apenas às emoções. Bem caro colega, deixe-me curtir mais uma.

27. Um fio de esperança

Repouso da U.T.I. do Hospital Central. O relógio de parede registrava 20:30. - Grimário! E a Dama de Preto? - Francisco retoma o assunto iniciado uma semana antes. Olhe, Francisco. Até agora a mulher não saiu do coma. Nem sequer houve uma superficialização. Continua com intracath em quatro veias. A família não se convence da gravidade do caso. As pupilas em midríase paralítica. Pra mim, está descerebrada há muito tempo. O eletroencefalograma não acusa a menor possibilidade de vida. O próprio superintendente dá sinais de cansaço. - E o Marchioni, neurologista? - Nem peixe ensaboado é tão liso, quando alguém fala em desligar os aparelhos, vota pelo empate: nem sim nem não. - E aquele professor dos Estados Unidos? - Outra história interessante. A vinda do professor dever ter resultado da idéia de levar a Dama para lá. - O pessoal não teria avisado a familia da inviabilidade da remoção? Se nem coube transferência para o Albert Einstein ou o Sírio, imagine para os Estados Unidos! - Exatamente isso o americano, quando o assunto da remoção veio à baila, cortou o papo. - E você, nisso tudo? Quanto a mim, limito-me a dar plantão. E como é semanal, chega a hora, vou embora. - Olhe, Francisco. Parece incrível, o status desta paciente só tem atrapalhado. Como supervisor da U.T.I., não me compete dar plantão. Minha função é mais burocrática e de supervisão do seguimento dos pacientes do plantão. Só peguei estes plantões porque, por conta desta merda de salário, perdemos Jorge, Cláudio e Antônio, preferindo voltar para o Recife, enquanto Raimundo e Guilherme foram para o Sírio, ganhando o dobro. Com tanto desfalque, não tive outro jeito. Às vezes tenho vontade de cair fora. - Imagine, Grimário você sair daqui? Hoje considere-se parte dos móveis e utensílios. Montou, organizou e mantém toda esta estrutura,

reconhecidamente a melhor do Brasil. - Você pode até ter razão. Esta U.T.I. deve ter feito despacho em algum terreiro para eu não largá-la. Mas, voltando ao assunto da Dama. Observando a atitude de Marchioni, logo na primeira consulta neurológica, conclui ser a situação desesperadora. - Sexto sentido? - Imagino um misto de tudo. Experiência, vivência, todos os dias seguindo a mesa rotina. - O caso vem piorando a cada dia. - O noticiário jornalístico e a imprensa marrom já perderam o interesse. A desgraça do casal da Ladeira do Morumbi não dá mais IBOPE. - Em pior situação, acha-se o acompanhante. Foi operado por Mânlio ainda na Sexta-feira. A pressão e o pulso ficaram oscilando o tempo inteiro. Na 2ª feira, Mânlio mostrava-se apavorado com uma febre, não cedendo a nada. Feito antibiograma, observou-se resistência a todos os antibióticos conhecidos. Hoje, pela manhã, mais parecia um cadáver. A respiração de Cheyne-Stokes perdura há muito tempo, embora assistida em caráter permanente. Logo na 3ª feira, fizeram uma traqueostomia, diante de um quadro pulmonar grave. Segundo as más línguas, a mulher dele nem tem aparecido com tanta freqüência. - É mulher dele mesmo? - Pelo menos, ela sempre fala. Mas Eliomar já andou saindo com ela. - Aquele pau de arara é fogo! Deve ter combinado até dia e hora da viuvez. - Engraçado essa clientela procurando saber notícias. - Como assim? - Quem procura a mulher é mais ligado à indústria. Até o superintendente, virou intensivista. Ele nunca aparecia na U.T.I.... - E o fã clube do Don Juan? - Políticos e mais políticos. Até telefonema de Brasília tem chegado. Lobista? Nem sei o seu significado. - Parece um intermediário de empresários e gente do Governo. Apresenta uns aos outros e daí nascem as grandes negociatas. - Tipo Coroa, Garnero... - Não, necessariamente. Eleição custa muito dinheiro e subsídio e jeton não são suficientes para o político se ressarcir das despesas e investir nas próximas eleições. Os gastos são incontroláveis. Haja dinheiro! Tudo isto implica numa troca de favores. Imagine, só o Mercedes de batida, modelo 94, valia mais de 200 mil reais. - Ter Mercedes e Porsche parece incomum, mesmo em São Paulo. - Só um caixa alta pode ter isso! - Põe caixa nisso! - Doutor Grimário, o doutor Jaime, responsável pelo paciente do box 2, pede para o senhor ir lá, urgente. - Vamos lá, Francisco. Diante daquela figura ofegante, mal respirando, mesmo com ajuda, não reagindo diante de nada, Grimário pega um martelo de reflexos e tenta obter alguma resposta aos estímulos mecânicos imperceptíveis, se existentes. - Veja, Francisco. Nem reflexos evidentes. Pelo visto não vai amanhecer o dia. Puxa! Exatamente sete dias. - Entraram no nosso plantão e vão sair envoltos em lençol branco, é muito azar. - Tentaram unir-se em vida, mas vão fazê-lo na morte. - E se amavam muito? - Ninguém saberá nunca. Uma dessas histórias sem começo nem fim. De repente, pinta uma situação na vida de uma pessoa nem sempre entendida. - Nunca o vi tão romântico? - Não se trata disso. Embora há mais de dez anos observando e acompanhando gente em estado grave - criança, adulto, preto, amarelo, jovem, velho, homem, mulher, bicha, enfim, gente como a gente - não me acostumo com a hora do lençol. Sempre penso o paciente não melhora a cada dia. Quando chego aqui pela manhã a minha primeira atividade é olhar os leitos dos mais graves. Ao encontrar algum vazio, imediatamente dentro no reino da fantasia e imagino tudo bem, o paciente recebendo alta. Acredito ser questão de segundos, pois logo caio na realidade e sinto aquele vazio em mim. - Êpa, Grimário! Você não está apaixonado pela Dama de Preto? - Deixe disso, Francisco. Pode ser um misto de sado-masoquismo. Aquela mulher cheia de vida, rica, uma verdadeira princesa, carro com motorista, mordomo, duas filhas, única herdeira daquela fabricona, deitada ao nosso lado, descerebrada, sem a menor chance de vida, quem sabe por conta de um programa nem sequer completado! Realmente, impressionou-me. Não ela propriamente, mas o contexto.

Parecemos frios, diante da vida e da morte, na prática nda disso acontece; somos um bando de tontos, sentimentais, meio pancadas e com os mesmos ou piores problemas com relação aos do lado de fora do hospital. Chego a pensar: isto aqui tem sensibilidade, tem alma. - Ora Grimário! Você está mesmo deprimido. - Não chego a tanto. Mas quanta coincidência; exatamente há uma semana recebíamos a notícia do acidente e antes do final do nosso plantão, sairão juntos para o velório. - E você acredita em alguma coisa depois disto? - Nem sei dizer. - Como assim? - Na minha infância estudei no Colégio dos Maristas, no Recife, fiz primeira comunhão, ingressei primeiro na Cruzada Eucarística, depois na Congregação Mariana e ganhei até medalha de religião. Na Faculdade, o encontro com o primeiro cadáver, aquelas intermináveis sessões de dissecação, o ateismo evidente e o racionalismo eloquente de todos os professores terminaram por bagunçar o meu coreto. Como bom nordestino, racionalidade e superstição parece se misturar em simbiose infraqueável. Freqüentei terreiro, candomblé, sessão espírita, sessões de levitação, consultei cartomantes, quiromantes e ainda não cheguei a nenhuma conclusão. - Olhe, Grimário, sou ateu empedernido. Nem São Tomé. Pra mim, morreu, acabou-se. Quem soube aproveitar a vida, certamente viveu, se foi rotina, vegetou. Eu faço tudo para aproveitar todos os momentos da vida. As divagações são cortadas pela entrada brusca da supervisora da U.T.I.: - Doutor Francisco, quer dar uma espiada na paciente do 5? - Vamos, Grimário? - Não. Vá você. Se precisar de alguma coisa, pode me chamar. Vou divagar um pouco. Rapidamente, acompanhado da enfermeira, o intensivista aproxima-se da Dama de Preto e inicia os exames clínicos para casos graves. - Êpa! Pulso arrítimico, bradicardia de 35. Agüenta aí, dona Lúcia, vou buscar Grimário. - Pode deixar, doutor. Passo acelerado, aos gritos, insiste - Grimário! Grimário! - Dê aqui uma espiada na Dama de Preto. O respirador parece enguiçado. O pulso descompassou completamente. Vai parar. Ih! Parou de uma vez. - Vamos injetar adrenalina na cavidade. Quem sabe o coração volta a bater? - Dona Lúcia, pegue urgente umas ampolas de adrenalina. A paciente acaba de parar. Ligeiro, antes de descerebrar definitivamente. Segundos depois, com a presteza de sempre, a enfermeira entrega o medicamento devidamente preparado em seringa com agulha longa. Pronto, doutor Grimário. Preparei três ampolas. - Imediatamente, mãos treinadas, o médico localiza no peito da paciente o ponto exato e com aquela ânsia de ver o coração pulsar novamente introduz a agulha diretamente na cavidade. Pancadas no peito, quase em desespero, insiste em provocar uma retomada dos batimentos cardíacos. Paralelamente às medidas tomadas, o intensivista tenta ajudar, propondo outra solução heróica: - Grimário, o ressucitador está pronto. Quem sabe, um estímulo elétrico provoque uma reação do miocárdio? Mais uma tentativa, uma esperança, uma busca e nada acontece. Com a fisionomia da desesperança, o fácies da impotência diante de uma realidade evidente e incontestável, o intensivista, embora convivendo diuturnamente com situações idênticas, não consegue se conter: - Meu Deus! Nada mais resta fazer. - Concordo com você. Há exatamente uma semana vimos tentando mantê-la viva. Desde a sua chegada aqui tudo foi desfavorável. Aquela midríase, quase paralítica, logo ao primeiro exame, era um sinal bastante sintomático de comprometimento cerebral. - Mas nada podia assegurar, com exatidão, se tratando de uma situação irreversível. Quantas vezes temos visto pessoas chegando com dilatação pupilar aparentemente sem sensibilidade ao estímulo luminoso, em coma profundo, e alguns dias depois saem com as funções vitais totalmente recuperadas e sem qualquer tipo de seqüela. - Neste caso, observamos o coma parecendo ter ser aprofundado de maneira contínua e progressiva. No espaço de uma semana, sentimos o êxito letal como desfecho. - Vamos ainda mais longe.

Mesmo após o eletroencefalograma ter mostrado a total inexistência de atividade de qualquer natureza, os equipamentos mecânicos e as drogas de manutenção do equilíbrio eletrolítico asseguraram uma vida, aparentemente dentro dos limites de normalidade funcional. Amostras de sangue colhidas periodicamente, controle de urina permanente, dosagens de gases repetidas a curtos períodos, tudo isto mostra claramente a limitação da capacidade técnico-científica. Na verdade, devemos aceitar o nosso limite diante de algo governando a vida humana. - Realmente, neste caso não faltou mesmo nada. O superintendente nunca aparecia aqui , de um momento para outro virou hóspede permanente da U.T.I. Professor do mundo inteiro, disfarçado de visita ou parente, não está no gibi. Em tantos anos de U.T.I., nunca tive um caso recebendo tanta assistência médica. - Dizem sermos nós somos insensíveis, só querendo status e dinheiro, quando, na realidade, a nossa sensibilidade é superior a de muitos familiares nos procurando só pra nos encher o saco. - Concordo com você, em parte. Não notei muita diferença entre a quantidade e a qualidade dos cuidados médicos prestados à Dama de Preto e aqueles aplicados a qualquer paciente com a mesma sintomatologia. A diferença crucial residiu exatamente no envolvimento social, neste caso. Mulher bonita, muito rica, ligada ao nosso superintendente, parenta de colega de trabalho, tudo criou um ambiente de suspense, pelas condições típicas do acidente originando um contexto diferente. - A gente notou claramente isso. Mas eu ainda gostaria de ouvir o seu ponto de vista pessoal, mesmo porque, como sua cria, acredito muito na sua sensibilidade, no seu senso crítico. E não vai aí nenhum confete, mesmo porque recebeu um convite para dirigir a U.T.I. do Regional da Vila Mariana, transformado em fundação e agora vai poder pagar quase o triplo do ganho nesta merda - prossegue o intensivista, com aquela irreverência peculiar. - Sinceramente, não! Olhe só uma coisa: uma midríase paralítica, não reagindo a estímulo luminoso após um acidente automobilístico é, praticamente, um desestímulo a qualquer operação médica. Os pedidos de consulta e os pareceres de especialistas, principalmente do Grupo da Neuro, diminuíram a cada passo a nossa esperança de cura. Além disso, a maior preocupação não se liga apenas à sobrevida do paciente, muito principalmente, às condições de retornar o seu meio social. Doença gera dependência. Neste caso, por exemplo: uma mulher de trinta e seis anos, vivendo como uma rainha, nada lhe faltando... - Evidentemente, para se meter numa enrascada como aquela da Ladeira, era porque algo lhe faltava. - Isto é outra conversa. A gente não vai saber nunca as razões levando a Dama de Preto a se meter naquela aventura. - Aventura, nada mais. - Não tanto. Até aceito um caso extra-conjugal, no mínimo para empatar com o marido na mesma ocasião, com outra. - O exercício da profissão de médico, principalmente numa U.T.I., onde o único ponto comum é a desgraça, tanto em decorrência de uma patologia crônica se agudizando, de um caso agudo grave, como de acidentes brutais, não nos permite ser machista nem feminista. Simplesmente somos médicos. A Dama de Preto previa um simples jantar num restaurante de luxo ocasionando a sua morte de forma tão inglória? - Mas, voltando ao assunto da minha esperança de cura da Dama. Embora não acreditasse numa recuperação total, mesmo levando-se em consideração a problemática das fraturas os traumatoortopedistas resolveriam tranqüilamente, no momento do acidente, pelo choque neurogênico o seu coração pode ter parado por um período suficientemente prolongado a ponto de levá-la a um problema cerebral irreversível. A tomografia computadorizada mostrou evidentes sinais de hemorragia e edemas pressionando segmentos nobres do sistema nervoso central. Pior só seqüela. Uma mulher com menos de quarenta anos hemiplégica, afásica, teraplégica, paraplégica, com problemas de conduta de qualquer natureza, ou, o pior, com a

vida puramente vegetativa, não poderia receber maior castigo. A morte, neste caso, foi o melhor. - Não devemos ser, assim, tão radicais. O diálogo é cortado, abruptamente, pela enfermeira. - Doutor Grimário o paciente do box 2 também está parando. - Santo Deus! E resolveram permanecer juntos? - retruca o supervisor, enquanto rapidamente se desloca para o box vizinho. - Visivelmente pálido, lábios arroxeados, inerte, jazia o companheiro da Dama de Preto, após uma semana inteira de crucial sofrimento. Enquanto preparavam material para mais uma tentativa, os dois médicos ainda mais pasmos pelo inusitado da situação, anteviam com maior clareza o desfecho do caso. Não se tratava de um trama craniano onde tudo é infecção, ainda mais agravado quando contraído no próprio ambiente hospitalar. Tentativas e mais tentativas com um divisor comum: todas infrutíferas. - Desta vez, foi azar mesmo. O nosso índice de infecção hospitalar é o mais baixo do Brasil e este cara, com toda aquela postura sadia quando de sua internação, uma semana depois morre, por conta de um infecção adquirida no mais completo e organizado hospital do País. - Nada mais a fazer. Depois da conversa com Mânlio, apavorado desde quarta-feira, quando o cheiro de pus já emprestava todo o isolamento da U.T.I., fizeram antibiograma, não somente no HC como também no Delboni e no Fleury, e o micróbio era resistente a qualquer tipo de antibiótico disponível, Mânlio, um cara calmo, levando tudo a sério, chegou a perder a linha, culpando o HC. - Na verdade, infecção hospitalar é fogo. - Primeiro, porque o micróbio não é visível a olho nu. Segundo, porque, muitas vezes, não tem sentido uma antibioticoterapia preventiva, e terceiro, quando a infecção se instala por conta do ambiente hospitalar, aí a coisa se complica mais, porque o micróbio do lado de dentro é mais resistente. - E neste caso? - No caso da Ladeira, o paciente tinha hemorragia interna e foi operado duas vezes. Além disso, o zelo da Mânlio chega até ser irritante. Começou com antibiótico de largo espectro na cavidade, antes do fechamento do peritônio. As doses aplicadas foram mesmo cavalares. Assim, se houve culpa de alguém, foi da própria natureza. Paciente traumatizado e espoliado perde a resistência muito mais rapidamente. - E daí ? - A infecção hospitalar é um risco calculado. Geralmente não deve ultrapassar de 5%, mas ai daquele incluido neste limite. O próprio Ministério da Saúde fixou normas para tentar regulamentar o assunto. Em seguida, obrigou os hospitais a instalar e manter em funcionamento, em caráter permanente, Comissões de Infecção Hospitalar. Mas, por não poder ou não querer utilizar a sua autoridade, o Ministério fecha os olhos e a maioria dos hospitais nem possui tal Comissão. - Mas o HC tem! - Sim, tem. Porém na prática, embora funcione regularmente, num caso como este não há Comissão capaz de evitar a infecção. - Mudando de assunto, o meu relógio parou quando eu tentava aplicar o ressucitador na Dama de Preto. Bati com o braço na grade da cama e ele não funcionou mais. - E as horas? - 9:45. - E agora? - E daí? - Pelo visto, os dois se passaram na mesma hora. - Sai dessa! - Procure lembrar-se Quando a enfermeira nos chamou para ver este caso, estávamos tentando ressuscitar a Dama. A diferença da hora do óbito não ultrapassou a cinco minutos. Os dois se entreolharam e permaneceram mudos por instantes. - Grimário! Você é supersticioso? Não é claro. E a razão da pergunta? - Muito simples. Vamos olhar na papeleta a hora de entrada dos dois na U.T.I.. Rapidamente pegaram os papéis dos Prontuários Médicos e prenderam a respiração. Entrada: 13/12; hora: 22:10. - Grimário, se alguém me contasse esta história diríamos ser mentira. - É verdade. Até São Tomé acreditaria em fatalidade, diante destes registros.

- Daria uma novela, uma peça de Nelson Rodrigues: "Pacto de Morte". - Seja menos tétrico. É mais moral: " A justiça tarda mas não falha" Parece bang-bang à italiana. Lá vai uma pitada de romantismo. Seria melhor: " Um azar para os descrentes", ou mesmo " Um caso de amor, sob o manto do hospital"? - Como? - Claro. Saíram de casa para um encontro amoroso. Acharam um caminhão. Uniram-se na ambulância e permaneceram juntos no isolamento da U.T.I., em plena lua de mel. - Dizem, lua de mel vale mais quando o casal conversa pouco, porque aí não há briga. - Sou neófito em matéria de lua de mel. E uma deste tipo não me excita a imaginação. - De qualquer maneira, repita o seu último título para a novela. - "Um casal de amor, sob o manto do hospital" - Talvez pudesse ser reduzido: "Á sombra do hospital" - Com este seu senso de humor substituiria facilmente o Chico Anísio na televisão. - Vamos preencher os Atestados de Óbito? - Prefiro mandar os dois para o Médico Legal. Amanhã ou depois exumam os cadáveres e a gente se dana. - E se o doutor Juarez pedir você assina o Atestado? - Quem? Eu? Nunca. Prefiro ficar de fora. Aqui quem é tonto pega carona em asa de urubu. Se você quiser, assine os dois. - Não obrigado. O telefone tilinta... - Sim, Grimário, o supervisor da U.T.I.. Uma batida? Onde? Na esquina do Jóquei com a Rebouças? E quantos estão vindo pra cã? Estamos desocupando dois boxes na U.T.I., mas um é caso de septicemia e o leito não vai poder ser usado agora. Vamos preparar os pombinhos. - Grimário, alguma novidade? - Exatamente como você acaba de escutar. Dentro de instantes, a nossa rotina começa. - Recomeça não. Prossegue... - Até quando? - Quando souber, respondo. Dona Lúcia quer preparar dois boxes? - Juntos ou separados?

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