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Rogério Silvério de Farias Vingador do além 1 VINGADOR DO ALÉM Rogério Silvério de Farias

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Rogério Silvério de Farias – Vingador do além

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VINGADOR DO ALÉM

Rogério Silvério de Farias

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Rogério Silvério de Farias – Vingador do além

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Copidescagem, revisão, diagramação e capa: Roger Sildefar Copyright©Rogério Silvério de Farias Janeiro de 2014

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Rogério Silvério de Farias – Vingador do além

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SUMÁRIO

Prólogo, 05

1 Morrendo ao crepúsculo, 09

2 Funeral para Kaliandra Loyola, 15

3 Falecer a cada dia, 21

4 Ivan, o terrível, 26

5 Paixão na cidade dos mortos, 31

6 O filho do coveiro, 36

7 Dias cerzidos de sombras e ódios, 41

8 A megera conta sua obscena história de vida, 48

9 Os segredos do Regnum Tenebris, 51

10 Nada de novo debaixo do sol de Maremontes, 57

11 O ofício de Maura, 62

12 Rituais de desejo e vingança, 66

13 Alice no país dos horrores, 71

14 A sádica alcova do ardor, 77

15 Um sussurro na escuridão, 81

16 Conversando com um demônio, 86

17 As peripécias diabólicas do ingnúkle, 90

18 Sombras em Maremontes, 95

19 O ataque do Rato Louco, 100

20 Morte! Morte! Morte!, 105

Epílogo, 110

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Prólogo

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Delirante de horror, gritando, correndo, correndo como um espectro

insano egresso dos recônditos ardentes das galerias e das antecâmaras

sombrias do inferno, aquele homem de vasta cabeleira negra e com uma

cicatriz horrenda na face cambaleava pela rua em meio à ventania. Atrás de

si, a enorme casa em chamas iluminando como uma tocha gigantesca a noite

escura como uma sepultura profunda.

As estridentes sirenes das viaturas da polícia e do carro do corpo de

bombeiros da sombria e antiga cidade de Maremontes pareciam gritos de

banshees1 loucas anunciando a morte e o apocalipse de fogo na noite

apoteótica do horror.

O homem da cicatriz, com suas roupas fumegando, escapara do

incêndio na mansão onde tentara invadir para assaltar e roubar. Na verdade

ele saltara pela janela quando o fogo tomava conta da mansão, e de algum

modo, mesmo cego pela súbita loucura que tomara conta de si, conseguiu

salvar-se do império de chamas que se apossara do lugar. Na frente da casa

flamejante, coxeando como um morto-vivo, o homem cabeludo e barbudo

caiu ao chão, babando e com os olhos esgazeados na profunda loucura que só

o horror incute.

Enquanto os bombeiros iniciavam o combate ao incêndio, os

policiais estacionaram e, armados, desceram das viaturas, se aproximando do

farrapo humano cujas partes do rosto e do corpo estavam ligeiramente

chamuscados. Os tiras, malgrado soubessem da fama que o indivíduo tinha

de arruaceiro, drogado e meliante, espantaram-se com o semblante de louco

no homem.

─ Mas que diabos aconteceu por aqui, responda, crackeiro safado!

O homem com a cicatriz no rosto era Samuel, vulgo “Sam” ou “

Sam, o Rato Louco”, e ele fitava os tiras com um sorriso de demência e

paranóia rutilando nos olhos vidrados e embaçados pela insanidade, porém a

loucura não tinha sido apenas pelo uso desenfreado de crack. Antes de falar,

virou-se para olhar a casa pegando fogo e soltou uma gargalhada assustadora

que retumbou sinistramente na noite como os gongos negros do inferno.

─ Vão todos pro diabo, seus cachorros!...É o apocalipse em

Maremontes, o passeio do demônio fedorento na Terra!... Eu vi a aparição...

Eu só queria roubar a casa pra poder comparar mais crack... Mas eu vi

1 Segundo a mitologia céltica, ente fantástico cujo grito anunciava a morte de

alguém.

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aquilo... O verme podre e verde dançou fedorento e alegre nas chamas, como

um anão sangrento, e anunciou a morte e a vingança... Ele fede a charneca,

pústula e pecado... A epifania do caos e do pavor, minha mente agora sabe,

na abrangência do mar de imundície cósmica que é este mundo de

desgraçados... Eu fui pra roubar, mas vi a coisa medonha... Aquilo... Ele me

disse o que era e de onde veio... Veio pra matar e levar todos pras cloacas

imundas do inferno... Me fez ver coisas na mente, a podridão negra dos

mundos da mente, e o fedor do espírito humano...O anão que não era

exatamente um anão e nem gárgula...Ele me falou daquele livro terrível, o

Regnum Tenebris... O pequeno, o diabólico demônio verde... Eu quero

morrer! Eu quero morrer!...

Antes de pegá-lo, algemá-lo e empurrá-lo para dentro de um

camburão, os policiais, aos gritos de “toma, vagabundo!” aplicaram-lhe uma

surra, com golpes de cassetete e socos, que arrancou de Rato Louco vários

“ais!” e “filhos da mãe!”.

Um prólogo à guisa de epílogo? Um prólogo que deveria ser o

epílogo, então? Talvez, porque a história não começa aqui. O horror em

Maremontes começou muito antes... Muito antes... E talvez continue solto a

cada noite escura, escura como as catacumbas fétidas sob os golfos negros do

inferno, aquela dantesca aparição nascida dos mares profundos da imundície

espiritual cósmica!...

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Capítulo 1

Morrendo ao crepúsculo

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Que mistério insondável e diabólico cobre como um véu lúgubre a

fugaz passagem da vida humana nesta esfera de loucura, ódio, maldade e

desespero que se chama Terra? Seria a vida uma pilhéria sem graça contada

por deuses insanos e sardônicos? Ou a vida seria apenas a dramática

contagem regressiva para a morte? Talvez um pesadelo dantesco e pútrido

pintado pelos pincéis de entidades invisíveis demoníacas e sarcásticas que

regem os destinos funéreos de nós, tolos e pobres mortais?

Kaliandra Loyola, uma escritora espiritualista e socialite da alta

burguesia da sombria e antiga Maremontes, dirigia seu automóvel com toda a

fleuma peculiar de quem tem a conta bancária em alturas estratosféricas e

não precisa se preocupar com nada, a não ser a morte.

Ela seguia por uma estrada da provinciana e estranha cidade de

Maremontes. Maremontes fica próxima ao mar, e é repleta de belezas

naturais de mirífico esplendor. Dir-se-ia que Maremontes ficava numa

península portadora de magnífica, estranha e admirável geografia.

Maremontes situava-se lá para as bandas do sul, era antiga, estranha,

sombria.

Era um belo fim de tarde, aquele. Na verdade o crepúsculo

aproximava-se com tons ambarinos e áureos, fornecendo um quê de

melancolia, algo como um sombrio véu de matizes aziagos.

De repente Kaliandra notara isso, que o crepúsculo pintava o

horizonte com sombrias cores, cores depressivas e ao mesmo tempo belas.

Parece um pintor louco, obcecado por mórbida arte!, pensou

Kaliandra , enquanto dirigia.

Agora a estrada cortava a encosta verdejante de um monte. Lá

embaixo, as ondas do mar quebravam-se espumosas no donaire lúbrico com

os rochedos, em estrondos intermitentes como uivos orgiásticos de deuses

aquáticos, que mais pareciam urros ferozes e bestiais de titãs em fúria

incontrolável, funesta.

Kaliandra ligara o rádio do carro. Sintonizara a emissora que só

tocava música clássica, a Maremontes FM. Tocara a maior parte da viagem a

sétima sinfonia de Beethoven, mas agora...Agora estava tocando Noturno, de

Chopin.

Oh! Como é magnífico e sombrio ao mesmo tempo!, pensou

Kaliandra , passando a mão numa mecha que lhe caíra sobre um dos olhos.

Chopin é simplesmente divino, sublime... Noturno soa como uma triste

música do sofrimento das almas no cárcere carnal da vida terrena.

Kaliandra, a maior socialite da burguesia maremontense, realmente

adorava a melancolia lancinante, pungente, daquela música do genial

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compositor. Para ela, era como a trilha sonora de sua vida, vida quase sempre

imersa em futilidades, numa névoa cinzenta de atroz melancolia. Ela já não

era mais nenhuma jovem, e seu corpo já começava a sentir o peso da idade,

sem contar na obesidade mórbida que iniciara a lhe consumir. Sua vida ia

numa névoa cinzenta, de cruel tristeza e tédio, numa monotonia de existir.

Oh! Gostaria que fosse a trilha sonora da minha morte, Noturno de

Chopin, a morte dadivosa, que viria pôr fim ao caos de meu sofrer,

libertando-me da prisão da matéria.

Por alguns minutos, Kaliandra esqueceu seus problemas e de si

própria, no enlevo místico da música. Por certo um átimo de inebriante alívio

– posto que efêmero – no epicentro caótico de sua triste e já insuportável

sina.

Agora uma garoa principiara a cair. Quase uma neblina, tênue véu

de noiva a cair sobre a cidade de Maremontes. A chuva fina tornara a estrada

de asfalto assaz escorregadia, perigosa nas curvas e nas frenagens abruptas,

um convite sinistro para motoristas atoleimados ou imprudentes. A garoa

caía, deveras. E era, destarte, um convite negro e tentador, em suave

concomitância, à libertação espiritual (leia-se neste eufemismo, morte!).

Com ternura de mãe, Kaliandra Loyola, principal socialite da doce e

pútrida burguesia de Maremontes, recordou-se dos conselhos de sua querida

filhinha, seu meigo e pequeno rebento de nome Alice.

Mamãezinha querida, não esqueça de pôr o cinto de segurança,

ensinaram-nos na escola essa prudência que se deve ter ao dirigir!

Porém Kaliandra, a infeliz burguesa, esquecera-se do cinto.

Oh! O meu querido anjinho nascido no céu do meu útero, Alice!,

pensou Kaliandra , esboçando um sorriso de carinho. Como pude esquecer-

me de seu aviso ao sair de casa?

Então Kaliandra puxou o cinto, afivelando-o em si.

A música triste de Chopin ia terminando, flecha sonora perfurando o

coração, o espírito, mas não para matar, mas sim, quiçá, para acordar... ou

enlouquecer!

De repente, numa curva, um grande caminhão. Enorme mastodonte

de lata enviado pelas mãos de um destino ou fadário sombrio. Surgiu de

inopinado na frente do carro de Kaliandra, ela pôde vê-lo através do pára-

brisa molhado e com o limpador indo para lá e para cá.

Na boléia do velho caminhão, o motorista, certo fulustreco barbudo

e cabeludo, sem um dos dentes da frente, conseguiu desviar para o lado com

uma manobra radical no volante, e acionando de imediato os freios que

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guincharam feito demônios loucos, evitando, destarte, o abalroamento

violento.

No entanto, Kaliandra não teve a mesma agilidade. Quando lembrou

de frear, simplesmente ao pisar no breque, o mesmo não funcionou; havia

tempos que o automóvel não passava por uma boa revisão. Assim, o carro

voou por sobre o talude do barranco como se fosse um avião, passando por

sobre os rochedos à beira-mar e mergulhando vertiginosamente nas águas

frias do mar agitado.

No rádio, agora tocava Marcha Fúnebre.

Com o impacto do automóvel sobre a água, Kaliandra Loyola bateu

fortemente com a fronte no volante.

Ela ficou um pouco atordoada, a Marcha Fúnebre ainda tocando, o

mundo todo girando a seu redor, girando feito um carrossel do inferno.

Tudo acontecia tão de repente... Então morrer é isso?, pensou

Kaliandra . A morte é tão estúpida quanto a vida... maldita seja toda divina

ciência que nos pôs no mundo e na vida, esses labirintos da dor e do prazer!

A água invadia o interior do veículo, inundando-o rapidamente.

Num instante, o carro afundava por completo nas águas do mar.

A Marcha Fúnebre ainda tocando sinistramente no rádio... E aos

poucos o som ia gorgolejando e sumindo.

Recobrando a razão com o choque da água fria, Kaliandra Loyola

prendeu a respiração e procurou freneticamente a tranca da porta, tateando

desajeitada e desesperadamente.

A água estava escura, turva, turbilhonando. Com esforço, Kaliandra

logrou encontrar a trava. Porém seu esforço deu-se em vão: a porta do carro

emperrara com o impacto das águas!

O pavor crescente, a sombria perspectiva de morte por afogamento,

tudo estranhamente passava a incutir-lhe forças. E então ela conseguiu

abaixar o vidro. Ergueu-se e tentou passar pela janela do veículo.

Porém não conseguiu passar!

Ficou entalada na janela, devido à sua obesidade.

Mas que droga!, pensou Kaliandra enquanto morria, lembrando

amargamente das promessas que fizera dias antes a si própria de ir a um spa.

Era nisso que dava mentir para si mesma!

Agora ela estava ali, naquela situação tragicômica, morrendo. Era

desse modo ridículo que iria morrer? Sempre sonhara em morrer de uma

forma mais poética, não assim daquele jeito cômico.

Num baque, o veículo alcançou o fundo do mar.

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E então, no mais profundo desespero, Kaliandra Loyola, a socialite,

a escritora esotérica, encontrou seu fim, digamos, patético.

Que sentido tivera sua vida até então? A morte a vencera? A morte a

libertara, afinal, das aflições da carne?

Estava morta, agora.

Enquanto isso, o motorista do caminhão, nervoso e ao mesmo tempo

irritado, estava ali, de pé, parado no alto do barranco feito uma estátua de

indignação.

─ Mas que droga!... ─ ele rosnou.

O motorista não sabia o que fazer. Por isso pusera-se a excomungar

e a lançar injúrias, andando de um lado para outro, como um doido.

Finalmente, erguendo a aba do boné encardido sobre a cabeleira

desgrenhada, retirou os óculos escuros comprados num camelô, e, por fim,

tornou a recrudescer seus impropérios altamente preconceituosos:

─ Mulher no volante, perigo constante!... Praga! É nisso que dá

deixarem essas madames no volante. Devia ser proibido, isso de mulher

dirigir. Lugar de mulher é no tanque, sim senhor. Se botar um volante nas

mãos de uma delas, vai logo pensando que está dirigindo um carrinho de

comparas do supermercado. É... Como dizia meu velho pai, mulher só sabe é

pilotar fogão de cozinha, e olhe lá!

Puxou o telefone celular do bolso e ligou para a polícia rodoviária.

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Capítulo 2

Funeral para Kaliandra Loyola

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O gris do firmamento parecia o olhar sombrio de um gigante em

prantos inconsoláveis: chovia.

Era de fato uma garoa sorumbática e contínua. Pingos tênues que

caíam do alto como econômicas lágrimas de um deus qualquer ante a trágica

aventura humana na negra alfombra da existência.

À beira do túmulo, a voz grave do padre calvo e de meia-idade

soava de modo melancólico, lúgubre, deprimente. Com a bíblia aberta segura

pelas mãos, ele lia solenemente trechos do Eclesiástes, no capítulo que fala

das misérias humanas. Alguém segurava um guarda-chuva sobre o padre, e

também ouvia com atenção o que era proferido pelo sacerdote sombrio:

─ ...Grande preocupação foi imposta a todos os homens, e um

pesado jugo carrega sobre os filhos de Adão, desde o dia em que eles saem

do ventre de sua mãe, até ao dia de sua sepultura no seio da mãe comum de

todos. Os seus cuidados, os sobressaltos do coração, a apreensão do que

esperam, e o dia em que tudo acaba, perturba-nos a todos, desde o que está

sentado sobre um trono de glória, até ao que se cobre de linho cru. Tudo é

furor, inveja, inquietação, perplexidade, temor da morte, rancor obstinado e

contendas. Até no tempo em que repousa na cama, o sono da noite lhe faz

perturbar a imaginação. Breve ou quase nenhum é o seu repouso, e , ainda

no seu sono, está como uma sentinela de dia. É perturbado pelas visões de

sua fantasia, como quem foge do dia de batalha; quando se imagina salvo,

desperta, e admira-se do seu vão temor. Isto acontece a todos os viventes,

desde os homens até aos animais, mas para os pecadores é sete vezes pior.

Além disto, a morte, o sangue, as contendas, a espada, as opressões, a fome,

a ruína dos países, e outros flagelos...

Antes mesmo de o esquife ser baixado no fundo da cova, a filha de

Kaliandra , Alice, já derramava prantos inconsoláveis.

Aquela formosa mocinha sardenta, com óculos de armação preta e

redonda, faiscantes olhos azuis, cabelos ruivos e encaracolados e um quê

misterioso no semblante, tinha perdido sua mãe para as garras gélidas da

inexorável morte.

Havia uma espécie de enigmática beleza naquele cemitério, uma

beleza macabra, por assim dizer. Alice percebera isso. Com efeito, qualquer

um gostaria de ser enterrado naquele lugar. Era uma necrópole suntuosa com

ares de horto edênico. O gramado, amplo e verdejante, estendia-se por quase

um quilômetro como uma grande campina. Uma cidade de mortos abastados.

Uma necrópole suntuosa, evidentemente reservada aos defuntos ricos;

cadáveres de pobres ali não tinham vez; assim, quem não tinha onde cair

morto, não ia parar naquele plácido paraíso macabro. Lugar de defunto pobre

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e desqualificado, sabia-se, era em vala rasa... ou em um caixão barato

comparado em suaves prestações, numa funerária de quinta categoria. Pelo

menos era assim que pensava a burguesia impiedosa da sombria

Maremontes.

Aquele cemitério onde o corpo da mãe de Alice, Kaliandra , iria

descansar eternamente era um cemitério todo especial, requintado, da elite

Maremontense. A necrópole vip da alta burguesia, digamos.

Kaliandra seria bem enterrada. Seria chique até na morte. Mesmo

assim, os vermes não usariam black-tie, e a devorariam sem distinção de

classe social, pois que são, sobretudo, igualitários.

─ Descanse em paz, Kaliandra querida – falou Ivan, o viúvo,

tentando demonstrar toda a melancolia possível. ─ Descanse em paz...

Realmente Ivan, o viúvo, esforçava-se por demonstrar uma

melancolia que absolutamente não sentia. No fundo, estava era bem

exultante. Interiormente, rejubilava-se com o terrível passamento de sua

esposa. A máscara da hipocrisia, no entanto, ocultava isso; ela cabia-lhe

muito bem, cumpre salientar.

Havia uma razão muito especial para todo aquele fingimento. Agora

que Kaliandra Loyola estava morta, Ivan seria dono de uma fortuna

invejável, já que o patrimônio da família Loyola era um dos maiores do país.

Então Ivan precisava simular uma grande tristeza e um grande

abatimento pela morte horrorosa e grotesca de sua esposa.

Estava com tudo, agora!

Ivan tinha sido mais que esperto; era um espertalhão! Senão tivesse

casado com a rotunda Kaliandra, na época uma rica, solitária e feia solteirona

encalhada, ele ainda estaria na miséria, muito provavelmente vegetando

como um mero e reles operário suburbano trabalhando naquela maldita

fábrica de preservativos de qualidade duvidosa, enchendo-se de cerveja

depois do expediente e nos fins de semana como um operário desgraçado que

era.

Havia um quê de demoníaco na personalidade de Ivan. Nem Freud

explicaria. Uma vez, Ivan tinha visto um documentário sobre a vida de Adolf

Hitler. Ele admirava o terrível ditador que quase arrastou o planeta para os

abismos do inferno. Numa velha imagem em preto e branco, via-se Hitler

discursando com ênfase de louco. Ele dizia que os homens deveriam ser

espertos como a raposa, rápidos como o vento e duros como o aço. Só

esqueceu-se de dizer que o homem tem mais de demônio do que o próprio

Satã.

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Em seus sonhos loucos de grandeza e poder, Ivan via-se sempre

ocupando o seu lugar no mundo, e o seu lugar no mundo era o topo, o lugar

dos poderosos. Ele seria o senhor do mundo! E seria mais forte e impiedoso

que o outro louco da História, Hitler. Ele faria a sua Solução Final2:

exterminaria os fracos, deixando alguns para lhe servirem, evidentemente.

Daria um grande pontapé no traseiro no mundo, faria embaixadas com ele,

dominando-o no peito e na raça e chutaria, por fim, marcando mais um gol da

crueldade e da conquista desapiedada no duro certame da vida.

Com muito dinheiro, ele teria o poder sobre tudo e todos. Seria o

xeque-mate, o dinheiro. O palanquim do poder, do seu poder – o dinheiro!

Quando menino, a mãe de Ivan, muito religiosa, desejara

ardentemente que ele se tornasse sacerdote. Um padre. Que padre daria Ivan!

Um padre dos infernos. Seria um padre hipócrita e apóstata, seduzindo beatas

e coquetes, dominando as frágeis mentes da paróquia. Sim, a falecida mãe de

Ivan desejara que o filho querido e mimado se tornasse um padre. Sua mãe

sempre fora uma grande estúpida, sempre querendo realizar-se através do

filho. Que grande idiota!, Ivan pensava. E ele se lembrou da maneira que sua

mãe morrera. Que morte cretina!... A velha tomando banho. De repente,

deixou cair o sabonete. Ao tentar apanhá-lo, escorregou no mesmo, batendo

com a têmpora no vaso sanitário. Uma morte ridícula, com os eflúvios da

caca coroando tudo de uma maneira fedorenta, imbecil, torpe.

Agora Ivan estava com o queijo e a faca na mão. E seu Transtorno

da Personalidade Anti-Social3 era uma a ferramenta a mais para seus delírios

de poder e grandeza. A loucura às vezes toma forma de uma espada.

Sem Kaliandra, a grande bola de banha, como ele dizia em

pensamento quando se irritava com a esposa (agora uma defunta), tudo

estava como o diabo gostava, ou como Ivan gostava... o que dava no mesmo

(?).

Claro, havia Alice, o fruto do matrimônio com a gorda e já falecida

Kaliandra, mas a filha não seria óbice.

2 Refere-se ao plano nazista de genocídio sistemático contra a população

judaica durante a Segunda Guerra Mundial. 3 Sociopatia, transtorno de personalidade caracterizado pelo comportamento

impulsivo do indivíduo afetado, desprezo por normas sociais, e indiferença

aos direitos e sentimentos dos outros.

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Uma vida inteiramente nova e repleta de volúpias e conquistas

estendia-se à sua frente, sim, sem os empecilhos da pindaíba do passado ou

de uma esposa insípida e medíocre no presente.

Ivan administraria a fortuna da família Loyola (que era sua agora)

com firmeza e dureza.

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Capítulo 3

Falecer a cada dia

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No cemitério, o padre terminava o discurso do funeral.

─ ...Tudo o que é da terra, tornar-se-á em terra, como todas as

águas voltam ao mar. Toda a dádiva para corromper, e toda a iniquidade

perecerá, porém a retidão subsistirá eternamente...

Seria mesmo assim?...

Palavras, palavras... São como carimbos de esperança e desilusão na

passagem louca da raça humana pela terra.

Segurando seus guarda-chuvas, todos se afastaram lentamente,

cabisbaixos, introspectivos, reconhecendo o invencível poder da morte.

Antes de sair do lugar, a última morada de sua mãe morta, Alice

olhou para o túmulo suntuoso, no requintado jazigo de sua família.

Alice murmurou, então, inconsolável, entre um soluço e outro:

─ Oh, querida mãezinha, que você seja recebida no céu pelos anjos

de Jesus, e que você encontre o aconchego nos braços de Deus!...

Dolores, a governanta, afagou os cabelos da adolescente,

consolando-a ternamente. E disse-lhe com a ternura das almas boas:

─ Ela ficará bem, Alice querida. Tenha certeza: os justos falecem,

mas sempre ficam bem. Sempre. A vida é um falecer a cada dia, mas sempre

podemos ter esperança, e nela... renascermos.

Alice olhou-a, perguntando-lhe:

─ Por que ela teve de morrer assim, Dolores? Por quê? Por que

morremos, Dolores?

Dolores afagou o rosto da mocinha. Limpou-lhe com carinho os

olhos tristes de Alice com o dorso da mão. Disse-lhe, por fim, com sua

bonomia costumeira:

─ Porque os desígnios de Deus estão além de nossa compreensão,

querida. O Criador tem planos inescrutáveis para todos nós. Não somos deste

mundo, querida; estamos apenas emprestados aqui, por algum motivo. Além

disso, devemos olhar a morte de uma outra forma. Talvez olhá-la sob um

outro prisma, como uma porta que se abre, uma grande porta que se abre

neste quarto escuro que é a vida. Uma mudança de consciência que traz em

seu bojo a luz. A morte deve ser encarada como a mais alta oportunidade da

esperança humana. Lembre-se disso sempre, querida.

─ Às vezes duvido de tudo, minha fé afunda no labirinto profundo

das noites psíquicas.

─ Você é uma garota muito inteligente querida, reveja seus

conceitos e tenha fé.

─ Será que Deus existe mesmo? Será que existe mesmo vida após a

morte?

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─ Bem, todos temos momentos em que nossa fé fraqueja. É natural.

Mas precisamos resistir a esses momentos de fraqueza espiritual.

─ Acho que vou virar uma ateia.

─ Oh, querida ─ fez Dolores, esboçando um ligeiro sorriso de

ironia. ─ Os ateus são como poetas de uma poesia que ninguém deseja ler.

Essas pessoas seguem um fatalismo sombrio.

─ Por que Deus nos criou assim, tão vulneráveis? Um acidente

horrível, e num piscar de olhos estamos fora da vida. A morte é tão

incompreensível! Gostaria de compreender os desígnios do Todo-Poderoso,

assim não sofreria como estou sofrendo agora.

─ Apenas tenha fé, querida. Existem coisas que estão além de nossa

compreensão. Só resta uma coisa: manter a chama da fé em nossos

corações, não deixar que ela se apague pelos vendavais da desesperança.

Minha mãe costumava dizer: Para o sapo no fundo da fonte, o céu tem o

tamanho da boca do poço.

─ É difícil...

─ Sei disso... Mas tenha coragem, filha. Cristo está conosco. Com

Cristo em nossos corações, teremos forças para encarar o rosto da morte.

─ Oh, Dolores! É tão difícil...

Dolores procurou consolar ainda mais Alice, que se mostrava

deveras arrasada.

─ Tenha fé, muita fé e esperança, filha.

─ Sabe, na sala de aula, o meu professor de filosofia, Silas

Mortágua, diz não crer em Deus e tampouco em vida após a morte... Ele diz

que divindades são consolos inventados pela mente humana, algo como

placebos mentais ou psicológicos...

Dolores diminuiu o passo. Lembrou-se de Silas, um amor do

passado.

─ Então é ele quem está exercendo uma influência ateia sobre você,

heim querida? Silas, além de professor, é um materialista empedernido.

─ Bem, ele nos disse que a crença numa vida após a morte é uma

tola ilusão dos animais humanos, uma vã esperança para tentar diminuir o

desespero de sabermos que todos irão morrer, mais cedo ou mais tarde.

Todos.

─ Silas é irremediavelmente um infeliz. Boa parte das pessoas

eruditas é feita de indivíduos que fizeram da razão o seu deus supremo. Mas

a razão dos homens não pode alcançar a respostas para questões espirituais.

Dificilmente um diploma universitário ou um doutorado pode conceder a

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alguém a sabedoria espiritual. Só se alcança Deus através do espírito, da fé,

da esperança. Lembre-se disso, Alice.

Houve uma pausa. Aquele discurso enteu de Dolores causara uma

profunda reflexão na adolescente.

Depois Alice perguntou:

─ Uma coisa me preocupa, agora, Dolores...

─ E o que seria essa coisa, minha querida?

─ O que vai ser de mim...

Dolores olhou-a com a ternura de um anjo encarnado na Terra,

abraçando Alice.

─ Oh, querida... Você tem seu pai.

Alice torceu o nariz, e fez um esgar de desdém.

─ Ele é tão negligente como pai, cuida mais dos negócios do que de

mim e...

─ Não fale assim de seu pai, Alice.

─ Mas é verdade. Minha mãe sempre dizia isso.

─ Sua mãe falava isso em momentos de raiva. Coisas de casal,

rusgas inevitáveis do convívio entre homem e mulher.

─ Talvez.

Dolores lançou-lhe um olhar sério e disse a Alice:

─ Ele não pode dar atenção a você o tempo todo. Seu pai tem

negócios para cuidar. Ainda mais agora, que sua mãe se foi...

─ Tentarei compreender isso. Graças a Deus ainda tenho você,

Dolores...

Dolores sorriu maternalmente. Todavia, Dolores sentia uma tristeza

enorme, a qual ela tentava esconder. Como explicar a Alice que o pai da

garota a demitira assim que Kaliandra morreu, colocando Dolores no olho da

rua, sem mais e sem menos?

Alice ia sentir muito a falta de Dolores.

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Capítulo 4

Ivan, o terrível

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Enquanto todos iam pela alameda, Ivan ia ficando propositalmente

para trás, olhando para o túmulo da esposa, e sua forçada e teatral tristeza

transformou-se num sorriso cínico e malévolo que ele ocultou aos olhos

alheios. Ele murmurou para consigo mesmo:

─ Ora, ora... O que temos aqui... O cadáver da pachorrenta

Kaliandra. Em vida, sua habitual fleuma era irritante. Às vezes, finada

esposa, tu parecias um cubo de gelo ambulante. Ou melhor, um grande cubo

de banha congelada. Agora, ao vê-la aí, eternamente frígida, morta,

maravilhosamente morta, tua fleuma cai-lhe muito bem. É tua fleuma

tumular, o teu rigor mortis.

Alguém que ia mais a frente olhou para trás. Ivan disfarçou,

fingindo chorar, e quem olhou foi desaconselhado por outros, para que

deixasse o viúvo dar as últimas despedidas à esposa morta. As pessoas se

foram, então.

Vendo que estava sozinho no cemitério, Ivan por fim concluiu, num

pensamento feroz:

Assim sendo, minha esposa... Queime no fogo do inferno!

A gargalhada foi contida, não sem algum esforço de Ivan.

A mente dos homens é como um labirinto escuro, profundo e sem

fundo. O labirinto da noite psíquica de Ivan era profundo, insondável.

Labirinto psíquico em cujos recônditos mais sinistros habitavam eus

malignos de sua personalidade assaz maquiavélica. A verdade era que a alma

de Ivan estava envolta pela negra noite do mais insano egoísmo. Era de um

mal-caráter incrível, e assumia isso, embora disfarçasse, evidentemente;

enfim, era um pulha, um canalha. O biltre não tinha escrúpulos. O brilho

insano de seus olhos denotava o seu egoísmo famélico e mórbido, contumaz

e louco. Uma alma das sombras, esse Ivan. Um demônio em forma de

homem, dir-se-ia. Para esse homem só havia um sentido na vida: saciar a

fome de seu ego louco. A posse de muito dinheiro, de bens materiais, a

fruição dos prazeres carnais sem limites, o poder sobre os homens e sobre as

instituições, tudo isso o inebriava. Praticamente já tinha quase tudo isso, mas

ele queria mais, muito mais. Queria o mundo, agora!

Sua primeira meta, agora, era chegar à prefeitura de Maremontes,

depois o governo do estado e, por fim, a presidência. Tinha sido picado pela

mosca azul. Arquitetara planos para candidatar-se e ser eleito nas próximas

eleições em Maremontes. A prefeitura de Maremontes seria o trampolim para

chegar até a presidência do país. Seria então o primeiro passo na escalada

para o domínio do mundo, Ivan planejava.

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É certo que com o dinheiro e prestígio que tinha certamente

conseguiria alcançar os pináculos mais sórdidos do poder, esmagando todos

aqueles ineptos que se pusessem no seu caminho de paranóia e megalomania.

Tudo seria fácil como roubar doce de criança. Numa cidade onde

predominavam miseráveis, ignorantes e alienados, qualquer pilantra poderia

ser eleito a qualquer cargo político, desde que agisse com planejada

maquiavelice. A receita era infalível: se o candidato não tiver muita

inteligência e for pobre ainda por cima, há que se ter certa lábia, um bom

discurso demagógico e populista; se tiver uma razoável conta bancária, basta

um favor aqui, outro ali, e aí, pronto! Na verdade a receita é simples:

primeiro vem a semeadura, ou seja, o velho clientelismo, adubado com as

promessas de todo jaez, principalmente empregos, sejam eles belas sinecuras

em secretarias inúteis ou meros subempregos assalariados em empreiteiras de

pseudo-empresários, verdadeiros sevandijas sugadoras de sangue e suor de

operários; depois vem a maturação, que é o processo de formação do curral

eleitoral, e , por fim, a colheita execrável: a eleição. No entanto, para um

pulha chegar à presidência, é mais uma questão de lobby na Câmara Alta e

na Câmara Baixa, um marketing pessoal certo e eficaz, alianças espúrias

entre partidos, e, óbvio, uma dose do mais vil caradurismo, da mais torpe

dissimulação. Em suma, a arte de se eleger é a arte de saber enganar.

Ivan era assim mesmo: personalidade perversa atravessando a ponte

que conduz à insanidade. E, pergunta-se, não são assim em sua totalidade

esses bichos falantes e funestos, os homens? Não lutam os homens para não

deixarem seus demônios interiores aflorarem por completo, mas que

fracassam nessa luta e acabam sucumbindo? É triste a condição humana em

seu alegre caminhar para a loucura e a morte. A miséria humana é tão insana

e deplorável quanto sua grandeza. O homem não voa, mas tem asas; pula no

charco das neuroses, sapo azucrinando pelos dias e noites de pântanos

psíquicos. Terá alguma esperança de redenção a incrível raça humana?

Talvez a extinção seja o seu caminho. Talvez a extinção seja o caminho dos

seres humanos, se eles não seguirem o caminho do entendimento e da razão.

Talvez o inferno da mente seja a pena adequada para os seres humanos que,

mergulhados na estupidez, julgam-se semideuses ou titãs, quando na verdade

são menos que gusanos do lodo da terra.

As sôfregas paixões dos homens, quando extrapolam os limites da

decência e do razoável, fazem aflorar todos os seus demônios interiores,

todos os desejos mais recônditos e proibidos, todos os secretos anseios

sombrios e mórbidos, as sombras do egoísmo desenfreado. O furor, então,

intensifica-se. E o mal então desabrocha como uma rosa negra e obscena do

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inferno psíquico nos jardins outoniços da terra, e então, o Diabo ─ talvez

apenas nossa consciência entorpecida pelo egoísmo doentio ─ está pronto

para semear a dor, preparando a colheita ulterior, a colheita da morte

horrorosa, da morte sem nenhuma esperança, da morte em vida, por assim

dizer.

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Capítulo 5

Paixão na cidade dos mortos

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Ivan lembrou-se de algo, ali no cemitério, a cidade dos mortos. Algo

muito importante. Ali, na necrópole suntuosa, ele procurou ansiosamente

aquela mulher misteriosa e bela que durante todo o desenrolar da cerimônia

fúnebre a tudo observara, de longe, oculta trás de um grande e soturno

cipreste.

Ele a avistou, então. Foi como haviam combinado. Ali estava ela,

bela, misteriosa, exuberante como uma estrela cadente. Linda, esfíngica.

Havia poucas palavras no mundo dos homens para cantar toda a sua mirífica

formosura. Realmente ela possuía uma beleza exótica ímpar. Na verdade,

somente um poeta insano seria capaz de cantar sua beleza bizarra, digamos

assim. Era uma beldade morena dona de olhos cor de safira. O corpo era

esguio, sensual, tentador como um fruto proibido no Éden dos desejos. Os

cabelos, tão negros quanto as sombras que perambulam na meia-noite,

emolduravam magnificamente um semblante malicioso e sedutor. Porém, o

que poucos sabiam era que, por detrás daquele invólucro carnal de radiante

beleza, ocultava-se a feiura quasimodal de uma alma malígna. Seu nome?

Morgana Trevors. Morgana, a devoradora. Morgana, uma bruxa dos tempos

modernos. Qual era a sua magia? A terrível magia negra da sedução,

indubitavelmente.

Logo Ivan foi ao seu encontro, como fora combinado, e ambos então

se abraçaram languidamente sob a garoa que pouco a pouco ia se tornando

quase que um véu espectral cobrindo a manhã do frio mês de agosto.

─ Oh, meu amor... Creio que agora sim, estamos realmente livres.

Livres de sua roliça e imbecil esposa. Livres para sermos nós mesmos, livres

para a vida, enfim!...─ falou Morgana, quase num murmúrio cheio de

volúpia, ardor.

Ivan falou, acrescentando:

─ Com toda certeza, minha querida. Seremos definitivamente livres

e felizes... Com todo o dinheiro que nós merecemos.

Beijaram-se de um modo assaz lúbrico. Todo o ardor incontrolável

das terríveis vontades somando-se aos ardores dos dois.

Havia naquela paixão algo de diabólico. Certamente uma paixão

nascida das sombras da maldade.

Ivan ainda comentou, entre um ósculo e outro:

─ Sem dúvida, levaremos uma vida plena. Uma vida de luxúria e

ostentação, de deleites inefáveis, de conquistas grandiosas, minha cara. Sim,

sim... E que morram na agonia da miséria todos os cães medíocres que

ousarem se interpor em nosso caminho de grandeza e gozo!...

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Ambos riram com muito gosto. O riso profano dos que julgam terem

alcançado a onipotência na terra, o riso dos que se julgam semideuses, o riso

de escárnio dos que pensam que a vida é um mero banquete a ser saboreado

somente por quem tem muito dinheiro e poder.

─ Contigo ao meu lado, querida, tudo irá bem, muito bem.

Lascivos, os dois se riam e se acariciavam como dois pervertidos na

imundície da luxúria terrena morbosa. Bolinagens indecorosas à luz do dia.

Duas mentes deformadas, diabolicamente titânicas na reciprocidade de uma

paixão doentia, repleta de taras libidinosas e sonhos loucos de ganância,

avareza e poder. Eles faziam da libido a lama etérea que apodrecia suas

almas, suas psiques, enfim.

A essa altura, todos os outros já estavam ultrapassando o grande

portão de ferro da necrópole suntuosa.

Insano de tanto desejo, Ivan olhou ressabiado para os lados, depois

abaixou sofregamente sua calça, num verdadeiro atentado violento ao pudor.

E seguiram-se, então, momentos obscenos que talvez não devessem

ser descritos com minúcias e pormenores, posto que fruto de uma

concupiscência impura e má.

De suas bocas desprenderam-se obscenidades e turpilóquios que

fariam corar a mais depravada rameira. E, num átimo, já estavam prestes a

explodirem de gozo venéreo irresponsável, como duas estrelas cadentes de

carne e sangue cintilando no silente vácuo do espaço microcósmico da

solidão humana.

Suas mentes mórbidas e cheias de terrível luxúria estavam imersas

no revolto mar de um êxtase carnal lúbrico, mórbido.

Por instantes que pareceram eternidades, os dois tiveram uma

pequena noção do que poderia ser o paraíso sonhado pela pueril mente

humana, nas primícias dos amores juvenis.

Contudo, tinha sido apenas um simulacro fugidio de Éden, de sorte

que, malgrado satisfizesse fisicamente, eles continuavam sem a satisfação

metafísica, espiritual que só o amor verdadeiro e não a paixão lúbrica pode

ter.

Depois de porem termo ao lépido conúbio lúbrico, só lhes restara a

costumeira aflição desesperadora da insaciável concupiscência humana

enlaçada pelos liames da matéria bruta e soez do planeta material chamado

Terra; outrossim, a cruel certeza de que não passavam de meros pedaços

ambulantes de carne e sangue, e que a Terra, no final das contas,

permaneceria sendo sempre o que era: um vale de lágrimas entremeados de

prazeres e alegrias, onde somente os mais fortes não choravam, ou se

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choravam, o faziam por ódio, medo ou vingança. Mas para os dois, ainda

assim, apreciavam a loucura da vida na Terra e seus sonhos. Ou será que

estavam mesmo eram metidos nas lamas das ilusões terrenas, que são lodo,

mas também vinho inebriante e capitoso?

Vestiram-se com celeridade, recompondo-se, Ivan aconselhando

Morgana a sair depois dele, para que ninguém que por acaso tivesse ficado

para trás, no cemitério, os visse juntos, já que ainda era assaz cedo para que

ambos se exibissem assim, aos amplexos, ósculos e beijos ardorosos – o

defunto de Kaliandra ainda nem esfriara, cumpre salientar!

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Capítulo 6

O filho do coveiro

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Ivan e Morgana saíram do cemitério sem perceberem que tinham

sido observados de soslaio. Era o coveiro que por ali estivera. Passara a

alguns metros de distância na hora em que o casal praticava atos libidinosos

naquela cidade de mortos. Era o coveiro Sandoval, que tinha ajudado no

sepultamento de Kaliandra Loyola.

Agora ele caminhava pela alameda dos mortos, o cabo da pá sobre o

ombro de velho cansado.

Ele vira tudo e agora refletia sobre a pilhéria da vida. Coveiros são

bons em reflexões desse tipo, provavelmente por lidarem no dia a dia com a

morte, que de certo modo conscientiza esse profissional de que a vida, no

fundo, não vale meio quilo de vermes.

Agora ele assobiava uma velha canção, lembrança sôfrega de um

tempo em que ele era feliz e não sabia. Estava velho, mas a morte não o

assustava mais. Convivera com ela diariamente praticamente a vida toda,

durante o exercício de seu macabro ofício.

Ele havia olhado o casal minutos atrás. Olhado com o rabo dos

olhos.

Burguesia depravada!, Sandoval, o coveiro filósofo, pensara. Não

respeitam nem os mortos!

Sandoval percebe-se, era um coveiro nada convencional, digamos

assim. Era culto demais para estar ali, no duro mister de enterrar os mortos,

isto era ostensivo, claro.

A verdade é que me impressiona deveras a frivolidade da raça

humana em sua degradação paulatina nesta viagem que é o Tempo!

Coveiro. Sua profissão era enterrar os mortos. Ofício macabro e

insalubre, e colhem-se enfermidades várias, tanto físicas quanto psíquicas

nesse trabalho metuendo, necessário, porém sombrio. Todo dia era a mesma

coisa, morte, morte e morte!

O que doía mais era enterrar crianças. Sandoval enterrara muitas

crianças durante os anos de profissão macabra. Sandoval morria sem morrer,

quando enterrava uma criança.

Morte em vida, pois quem enterra, morre também – morre mais que

o morto!

Como filósofo, ele questionava: Como um deus pode ser tão

miserável e cruel assim, a ponto de matar crianças e envelhecer adultos, ou

adoecê-los mortalmente, ou aleijá-los? Sem falar nos cegos ou surdos. Como

um deus poderia criar algo imperfeito – o homem – para depois matá-lo

simplesmente por ser... imperfeito? Ou por que sujeitá-lo a forças malignas

personificadas pelo Diabo?

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O Diabo... seria a vontade humana degenerando?

E o que é o mundo, senão o pomar da morte? Os frutos eram os

vivos, que maduros ou não, viram mortos – os frutos da árvore negra da

morte.

E Sandoval perdia-se no labirinto de suas noites psíquicas.

* * *

Ele era uma espécie pitoresca de ser humano, embora fosse, na

superfície de sua personalidade, um delinqüente a mais, um eterno

adolescente rebelde sem/com causa. Era o filho do coveiro filósofo Sandoval.

Fumava maconha três vezes ao dia – a refeição fumarenta para uma

mente velhaca e revoltada. Fumava, por que logo trocou de droga, como se

verá em parágrafos subsequentes.

E jurava que ia tocar fogo no mundo, um dia. Quero mais é ver o

circo pegar fogo, a droga do circo do mundo e da vida!, pensava ele nos dias

de tédio e ira mais profundos e intragáveis.

Já ia pelos 45 outonos, e já tinha tentado de tudo na vida.

Evidentemente fracassara em tudo. Era um fracasso na vida, um fracassado.

E ele achava uma coisa: só os calhordas bem comportados tinham sucesso na

vida; ele era um calhorda, mas não era comportado. Herdara certo jeito de

filosofar levemente semelhante ao de seu pai, embora a filosofia deste fosse

um tanto estóica.

Sucesso em nossa sociedade ocidental tem a ver com dinheiro. Não

existe um cara bem sucedido sem dinheiro – só no cemitério, como suicida.

O filho do coveiro Sandoval tinha tentado de tudo. Tentou ser pintor

e... fracassou – sua arte era macabra, bizarra, sobretudo de mau gosto (só

desenhava caveiras, esqueletos, mortos-vivos, monstros, demônios e

quejandos). Acabou virando pintor de paredes, mas logo largou o ofício para

pintar o sete.

De que vivia esse estranho pássaro, o Samuel, filho do Sandoval,

então? Não tinha um trabalho fixo ou uma ocupação rentável?

Vivia de rolos, trapaças. Rolos entendido aqui como falcatrua

popular de gente sem escrúpulos. Além dos rolos, vivia também de furtos –

ou qualquer outro expediente desonesto.

O Samuel era do tipo sociopata. Mas poderia ser presidente ou

sacerdote, ninguém notaria. Ninguém mesmo. Então virou uma espécie de

punk-anarquista-livre-pensador quando ainda era bem jovem, e assim

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tornou-se um vigarista virulento também, um boêmio, bandido solitário à sua

maneira – que não era de boas maneiras, evidentemente.

Não ligava muito para seu pai, o coveiro filósofo Sandoval, que ele

chamava debochadamente de “fantasma vivo”. Ele ainda vivia com o velho

pai estóico, encostado na velha fleuma tumular do velho, principalmente

quando a grana escasseava e o progenitor tinha que fornecer-lhe grana para

as drogas. Contudo, Samuel vivia mais na rua do que em casa. A gandaia e a

ociosidade, a rua, enfim, era seu lar.

Assim era Samuel. Um vigarista diplomado na universidade sórdida

da vida.

Uma vez, pertencera a uma gangue de rua. Os Caveiras. Mas

abandonou o grupo de arruaceiros para agir por conta própria.

Samuel tinha um cognome, um apelido. Só seu pai o conhecia por

Samuel. Na verdade, Samuel, na rua ou nas conversas do populacho, era

conhecido como “Rato Louco” ou “Sam Rato Louco”.

A coisa piorou ainda mais quando Sam Rato Louco passou da

maconha para o crack. Passou a roubar cada vez mais para conseguir a

maldita droga.

Pois então, eis aí, um ligeiro apanhado da personalidade psicótica e

da vida do cidadão ou meliante, Samuel, o Rato Louco.

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Capítulo 7

Dias cerzidos de sombras e ódios

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No automóvel, defronte ao cemitério, Dolores e Alice aguardavam

sombrias.

A chuva, que havia amainado, agora voltava a cair.

─ Seu pai já deve estar vindo, Alice. Ele falou para que nós duas

aguardássemos no carro. ─ Dolores falou enquanto enxugava com a ponta do

lenço uma pequena lágrima que rolava qual pérola de tristeza pela face da

garota.

─ Pobre papai. Ele sentirá muito a morte de mamãe! ─ Alice disse,

olhando melancolicamente para Ivan, seu pai, que já se aproximava do

automóvel.

─ Certamente, Alice. ─ comentou Dolores com uma convicção que

não sentia, olhando com certo desprezo para Ivan, que agora já abria a porta

do carro. ─ Ele saberá superar a dor...

* * *

O tempo, inimigo de todos, fugiu rápido desde a horrorosa morte de

Kaliandra Loyola. Escorrera lépido, mas indelével em suas nuanças mais

pungentes.

As coisas haviam mudado muito, principalmente na mansão Loyola.

Mudaram como da água para o vinho. E breve mudaria outra vez, como da

água para o sangue!

Alice completara quinze primaveras (ou seriam quinze outonos de

tristeza?). As sardas aumentaram em seu rosto, e agora ela estava muito

magrinha e bastante pálida. Uma adolescente rebelde, com jeito sombrio,

meio gótico. Cheia de inquietudes espirituais, cheia de problemas inerentes à

adolescência.

Agora era perseguida por sua madrasta, a cruel e perversa Morgana.

Sim, Ivan, seu pai, casara-se com Morgana, e a megera tornara-se o

tormento cotidiano de Alice.

Era com um tipo meio sarcástico de crueldade que Morgana

perseguia Alice. Morgana mostrava, assim, toda a sua nequícia de víbora

humana, sua maldade requintada pelo vinho negro do sarcasmo.

Para Morgana, adolescentes só causavam incômodos e embaraços.

─ Eu te odeio, Morgana! ─ gritou Alice, certa manhã, ao ver que a

madrasta chutara seu gato preto de estimação, o felino chamado Sombra. O

bichano atravessara displicentemente o caminho da megera quando esta se

encaminhava indolentemente para a piscina.

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─ Peste! ─ Morgana falou, furiosa, entre um espirro e outro ─Já

disse para o teu pai se livrar desse gato imbecil. Detesto gatos! Sou alérgica a

eles! Este maldito quase me derrubou. Odeio gatos, sou como aquele

personagem do conto de Poe, e se pudesse, emparedaria todos os malditos

bichanos do mundo!

─ Sombra não tem culpa de tu seres tão desastrada, e não faças Poe

revirar-se no túmulo com tua citação sobre a obra imortal do autor de O

Corvo ─ Alice disse, acariciando o dorso do gato chamado Sombra. O

bichano negro tinha fugido para o terno e aconchegante regaço de Alice.

─ Cala-te, idiotinha! Tu não irás conseguir estragar o meu dia ─

rosnou Morgana, atirando-se na piscina. Deu algumas braçadas e depois

parou, boiando. Disse então: ─ E então, idiotinha? Gostaste da nova

governanta? Suponho que seja melhor que Dolores, não?

─ Ela é uma bruxa, igual a ti. O que pretendes, afinal? Fundar uma

associação de bruxas em Maremontes?

─ Não fiques enfezada, idiotinha. É para o teu próprio bem, essa

nova governanta.

─ Me engana que eu gosto.

─ Dolores era uma solteirona tonta. Não sabia cuidar direito nem

dela mesmo, quanto mais de ti. O que tu precisas é de alguém com mais

energia, alguém que te mostre o que é a vida.

─ Sei ─ fez Alice, com certo deboche.

─ Acabaram-se os teus mimos, garota. Tua conduta estupidamente

rebelde está com os dias contados. Breve, terás de ser tão obediente quanto

um relógio. Monandra Torquemada mostrará sua eficácia em disciplinar

garotas como tu, e será uma ótima governanta, sem dúvida.

─ De onde tiraste essa vagabunda, só o Diabo sabe.

─ De onde ela veio? Bem, porque não perguntas a ela mesma? Aí

vem ela...

Alice olhou de soslaio para a mulher que se aproximava. Monandra

Torquemada trazia uma bandeja sobre a qual havia um copo de champanha, a

bebida predileta de Morgana. Monandra era alta e magra. Pálida. Seca. Os

olhos eram ferozes, sombrios, duas luas negras e aziagas no céu de seu

semblante carregado. Fumava um charuto, soltando baforadas longas,

vagarosas, insuportáveis.

A nova governanta serviu a bebida à sua patroa; Morgana nadara até

a borda da piscina para apanhar o copo, pondo-se em seguida a beber o

champanha com toda a tranquilidade do mundo. Uma brisa primaveril

soprava seus cabelos úmidos, agitando-lhes sensualmente.

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Monandra aproximou-se, soltando uma baforada no rosto de Alice,

que fez um esgar e tossiu, comentando a seguir:

─ Um autêntico mata-rato, isso que tu fumas.

Alice olhou para Morgana, que ria e bebia depois lhe falou:

─ És uma dipsomaníaca, Morgana. De manhã cedo e já bebendo...

Pena não teres talento como Poe.

─ É? E tu és uma cadelinha estúpida e metediça! ─ rosnou Morgana,

com raiva.

As duas mulheres trocaram olhares sarcásticos, cúmplices,

malévolos.

Então Monandra falou:

─ Sabes de uma coisa, madame Morgana?...Às vezes penso que um

pouco de pimenta na boca desta mocinha ajudaria a medir melhor suas

palavras...

─ Por que não pegas a pimenta e aproveita para pô-la em outro lugar

do teu corpo, Monandra? ─ rebateu com firmeza Alice, o rosto tornando-se

um esgar de raiva. ─ Eu só falei a verdade: Morgana não passa de uma

dipsomaníaca. Tu és quem não deverias te meter.

─ Dipsomaníaca! Que palavrinha difícil! ─ Morgana falou. ─ De

onde desencavou essa coisa, heim?

─ Do dicionário, madame Monandra! ─ interferiu Monandra, rindo

debochadamente num tom de hiena humana. ─ Seu quarto está repleto de

livros que ela retirou da biblioteca de sua finada mãe. Perceba, madame

Morgana, estamos diante de uma precoce intelectualzinha.

─ Tu! Como ousaste entrar em meu quarto para bisbilhotar?

Desgraçada!... ─ Alice gritou, lançando perdigotos no ar, tamanha era sua

raiva.

─ Ela também não consegue esquecer a falecida mãe; o pequeno

porta-retrato da volumosa finada sobre a cômoda do quarto de Alice atesta o

que digo, madame Morgana ─ completou Monandra, ainda mais sardônica.

─ Oh, quão comovente é o amor de uma filha para com sua mãe ─

ironizou Morgana, com ar de deboche.

Alice rebateu firmemente:

─ Sim, o meu amor por minha querida mãezinha deve realmente te

surpreender. O amor é uma coisa que tu jamais terás o prazer de compreender

ou mesmo sentir. Acho que tua mãe, Morgana, era tão má quanto és, por isso

tu és tão amarga assim, tão ruim assim. Sabes de uma coisa? Tenho dó de ti,

Morgana.

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Vencida pela ira, Morgana atirou o copo de champanha contra

Alice, que só com muita agilidade conseguiu esquivar-se a tempo. O gato

Sombra, que Alice apanhara e pusera no colo, miou alto.

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Capítulo 8

A megera conta sua obscena história de vida

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─ Cala-te, garota estúpida! Viraste psicóloga, agora, é? O que tu

sabes sobre a vida? Nasceste em berço de ouro, no confortável seio da

burguesia. Não sabes como é a vida lá em baixo, na pobreza, na miséria, no

inferno em vida. Garota, a pobreza é feia, repleta de horrores... Quer saber da

verdade, garota? Eu nasci num bairro pobre de Maremontes, do tipo barra-

pesada. Tive que lutar muito para sobreviver e para chegar até aqui. Lutei

num mundo onde o dinheiro compra tudo, pode tudo. Achas que tive acesso a

uma boa educação como tu tiveste? Não! Logo cedo, aos 15 anos, eu já

mercadejava meu corpo e...

─ E tu adoraste isso, eu tenho certeza! ─ Alice falou irônica, após

soltar uma gargalhada. ─ Mercadejar o próprio corpo!

─ Cala-te, idiotinha!... De uma forma ou de outra, nós somos

mercadorias humanas; se não vendemos o corpo, vendemos a alma! Dá tudo

no mesmo, no final das contas. Eu mercadejei meu corpo, sim... para poder

ter o que comer! E digo ainda mais: não foi só para comer, não. Minha mãe

ficara doente; o destino a presenteara com um câncer. Em pouco tempo,

minha mãe jazia como um vegetal inerme sobre a cama. Mas tudo foi em

vão, porque ela acabou perdendo a batalha para o maldito câncer, morrendo

logo em seguida. Morreu, entendeu? Enquanto eu continuei viva, muito viva.

Apesar dos problemas que surgiam dia após dia como maldições cotidianas,

eu me tornava mais forte. Sim, forte como a morte. Forte e pronta para me

vingar do destino, pronta para destruir quem se atrevesse a estragar meus

sonhos e ambições. Hoje, posso dizer que sou uma vencedora. Venci um

destino maldito e sórdido.

─ Tu és uma louca, Morgana ─ Alice falou, meneando

negativamente a cabeça, ao mesmo tempo em que afagava o gato Sombra em

seu colo. ─ Só o tonto do papai é que não consegue ver isso.

─ Hah!...Os homens são meros fantoches nas mãos das mulheres.

Teu pai é o meu fantoche, e ele fará tudo por mim. Até mesmo despachá-la

para estudar no estrangeiro, de preferência para um daqueles países onde o

inverno é rigoroso.

Monandra comentou:

─ Oh, madame! Em alguns desses países gélidos a vida se torna

entediante e deprimente, ainda mais para uma jovem nascida num país

tropical como o nosso. Apesar de que Maremontes esteja no sul, os

habitantes daqui talvez não se adaptem com facilidade em países de intensa

invernia e temperatura baixa. A taxa de suicídio em países onde neva e os

invernos são rigorosos é muito alta.

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─ Exatamente, Monandra. O desterro de Alice será gélido e

deprimente. Quem sabe, assim, se a sorte nos sorrir, receberemos a notícia

em breve de que Alice entrou em depressão e cortou os pulsos, sangrando até

morrer.

─ Seria um alívio para todos nós, livrarmo-nos dessa pestinha, não é

mesmo madame? ─ comentou Monandra, acrescentando.

─ Bruxa! ─ Alice esbravejou, quase chorando, o gato Sombra

miando em seu colo, como se estivesse concordando. ─ Vou contar tudo para

o papai a conversa que tive agora contigo!

─ Tola! Já te disse, guria: teu pai não fará absolutamente nada. Ele é

meu títere, um boneco em minhas mãos.

─ Demônia! Dolores estava certa na última conversa que tive com

ela. Tu enfeitiçaste papai, por meio das artimanhas negras de tua sedução de

coquete! ─ Alice xingou.

Monandra e Morgana riam alto, num tom debochado, enquanto

Alice se retirava cabisbaixa e indignada, quase chorando de tanta raiva, com

o gato Sombra no colo.

─ Sedução de coquete! Essa foi demais!─ Morgana riu, olhando

para Monandra que também sorria. ─ Dolores então disse isso a Alice, heim?

Ela então mereceu ser despedida por mim.

As duas diabólicas mulheres riram mais uma vez.

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Capítulo 9

Os segredos do “Regnum Tenebris”

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A noite estava quieta, solene. Melancólica como uma sepultura

antiga.

A alma de Alice estava imersa nas sombras da infelicidade, e agora

já estava com suas dezesseis primaveras, que mais semelhavam a outonos.

Sua vida tinha virado um tormento desde que sua mãe morrera e a diabólica

Morgana casara-se com seu pai, então viúvo.

A lua cheia estava brilhando no céu como um grande e melancólico

sol noturno sobre Maremontes, a mais antiga e misteriosa das cidades do sul.

Com efeito, era um plenilúnio magnífico, malgrado transmitisse estranha

tristeza.

Alice estava absorvida na leitura de um estranho e grande alfarrábio

que ela comprara num velho sebo de um bairro sombrio de Maremontes. Na

verdade, tratava-se de um velho e raro tomo de ocultismo, o lendário e

terrível Regnum Tenebris, escrito pelo mago louco Kolga Salba, nos

primórdios da antiga Lemúria, e adaptado e traduzido para o latim, segundo

alguns exegetas da literatura ocultista, pelo excêntrico monge e alquimista

medieval chamado Rosabis Torvatus,. Torvatus, diziam tais ocultistas, era a

própria reencarnação de Kolga Salba, que com sua própria pena adaptara a

obra escrita em uma de suas muitas vidas passadas, alterando em alguns

trechos, para o seu tempo, na Idade Média.

O Regnum Tenebris era uma raridade, e segundo outros estudiosos,

havia apenas mais seis exemplares em todo o mundo, sendo que um desses

foi causa de uma verdadeira matança em Kapliorca, uma ilha do Pacífico,

uma pequena e obscura republiqueta de poucos habitantes, onde parte da

população e alguns dos aborígenes de tribos canibais, liderados por um

ditador comunista sanguinário e um xamã cruel e insano, causaram um quase

genocídio dos kapliorcanos descendentes dos primeiros colonizadores

americanos e brasileiros que povoaram, noutros tempos, a assim chamada

Ilha da Anarquia. Chegou a entrar para a história nas crônicas de Kapliorca

como o Dhuhunkat Epleinmorc - A Noite dos Mortos-Vivos Canibais.

Curiosa, Alice engolfara-se naquela obra de criptologia antiga e

magia negra. A possibilidade real de fazer aparecer em nosso mundo

tridimensional, por meio de secretas invocações e manipulações energéticas e

vibratórias, certas individualidades ou entidades místico-energéticas de uma

outra realidade, era coisa que a fascinava por sua qualidade e intensidade

inauditas.

Alice se apaixonara por um capítulo em especial, que falava de

certas criaturas denominadas de Ingnúkles ou proto-elementais do fogo do

inferno.

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Os Ingnúkles, Alice acreditava, muito provavelmente fossem os

irmãos mais novos, evoluídos e maléficos dos famosos espíritos-da-natureza,

gnomos, elfos, silfos, salamandras, ondinas, e tais criaturas. E esses

Ingnúkles deviam ser mais fascinantes e poderosos do que falava o

necromântico e diabólico Regnum Tenebris.

Se fosse realmente verdade que havia uma forma, secreta, porém

eficaz, de travar contato com essas estranhas e inumanas entidades de outra

dimensão, de fazê-las servas de uma pessoa, tal pessoa, por conseguinte,

seria detentora de um poder extraordinário. Um poder sobrenatural, uma

força inigualável e inaudita que poderia servir de instrumento ou arma, tanto

para o bem quanto para o mal – ou muito além de ambos.

Então a jovem Alice resolveu que tentaria os rituais nefandos e

iníquos descritos nas páginas profanas e execrandas do lendário e apavorante

Regnum Tenebris.

Embora jovem, ela traçara metas, planos e objetivos malévolos de

pura vingança – ou uma lição na megera Morgana.

Combateria o mal com o mal, indo à forra através dos poderes da

magia negra!

Em seu quarto, iluminado pela suave luz do abajur, Alice lia, em voz

alta e com entonação e interesse incomuns, certas passagens do livro, trechos

da verve sombria criada pela pena insana do mago negro Kolga Salba. Lia

não sem arrepiar os cabelos e sentir um calafrio percorrer-lhe o corpo.

“... e os sinos de bronze do inferno tangem ante os sinais do

apocalipse astral, anunciando os conhecimentos negros que eu, Kolga Salba,

presenciei e absorvi durante milênios de vidas, mortes e renascimentos. Eu, o

peregrino de muitos mundos e eras, decifrei o enigma da magia das sombras,

que se alicerça no aforismo milenar do fazer o que se quer, para que não

sejamos dominados, pois é sabido que o superior deve reinar sobre o inferior;

o que está em cima domina o que está debaixo. Destruir para não ser

destruído, devorar para não ser devorado. É a lei do trogoautoegocrático

cósmico comum: devore e seja devorado!

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com os Deuses da

Noite, e o Verbo era os Deuses da Noite. O Verbo era no princípio com os

Deuses da Noite e todas as coisas por Eles foram feitas, e sem Eles nada do

que foi feito se fez. Neles estava a vida e a morte, e a vida e a morte eram a

luz e a treva dos homens sinistros.

“Nos eons sombrios e nos orbes em que vós, ó discípulos da

escuridão, reencarnastes, possais obter a vitória frente ao inimigo, e para tal

as forças dos mundos invisíveis adjacentes ao vosso devem ser conjuradas e

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invocadas, para que vos sirvam de gládios para matar e destruir vossos

inimigos...

“E assim, todo o mundo ajoelhar-se-á ante vossa vontade soberana

para que possais impor a força negra que move o universo e, destarte, possais

com vossos espíritos semeardes o caos, nos êxtases inebriantes do paroxismo

do poder espiritual individual e soberano.

“A morte é o derradeiro enigma, bem–aventurado sois vós entre os

vivos que serão mortos um dia, e louvado seja vós que ostentais a chave que

abre a porta dos mundos ignotos do grande além.

“Ó deusa morte! Vós sabeis: para escravizar é preciso reinar, e o

consórcio de potestades invisíveis e deletérias aos olhos sãos, faz-se o cetro

mágico que ostentarás para reinar.

“Tais forças nasceram em prístinas eras, muito antes da Lemúria ou

Atlântida, nos reinos protoplasmáticos da aurora do mundo. São os filhos do

licor seminal dos mascotes onanistas do Demônio ou nascidos das poluções

dos cães do inferno amantes de Lilith.

“Havia sombras medonhas nas profundezas do Abismo onde eles

nasceram; o sopro fétido do Demônio pairava na superfície das águas

quentes, caóticas e pútridas do caos, e o Demônio disse que a treva absoluta

fosse feita! E a treva absoluta veio a ser, e com elas, Eles, os Ingnúkles!

“Eram bizarros, cantando em uníssono o poder da música elétrica da

morte. Eram, pois, as mais assustadoras criaturas do mundo invisível das

sombras, que é um mundo que coexiste com o nosso, nem sempre

pacificamente. Os Ingnúkles, irmãos dos Goshoths, têm múltiplas e variadas

formas, e são mais em força do que os próprios Goshoths, mas quase sempre

aparecem nos mundos materiais sob a forma grotesca de homúnculos com

leve aparência de gárgulas. Sim, são vistos como anões, aparentemente

frágeis. São invisíveis, mas podem se tornar tangíveis e visíveis se assim o

quiserem.

“Como os Goshoths, eles todos são horrendos, e como quase todos

os habitantes da dimensão desconhecida, podem tudo com sua força criadora

do mal. Em geral, são realmente invisíveis à visão física, porém têm a

faculdade de materializarem-se e tornarem-se visíveis mesmo aos que não

possuem a clarividência ou a terceira visão, que é a visão psíquica das coisas.

Também podem ser vistos quando um mago ou mesmo uma pessoa muito

sensível entra no estado de transe necessário para o contato com o mundo

invisível à nossa volta, o que pode causar a loucura eterna e a descida

prematura ao inferno. Não existem maldades que eles não sejam capazes de

praticar; eles têm o humor violento, insolente , e isto faz com que maquinem,

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amiúde, embustes e armadilhas. Algum deles ainda vivem perto da crosta

terrestre, outros mais distantes, no Reino Astral, no Plano Etérico ou na

Espectrosfera. Os Ingnúkles obedecem à vontade boa ou má de quem os

dirige, mas não cegamente; são irresponsáveis por seus atos, quase sempre, já

que são insolentes e irreverentes. Os magos negros de todas as eras serviam-

se deles para seu propósitos nefandos, e há mundos em estrelas distantes,

como Ozrogath, Krymlla e Changan-Pieawunoth, que foram envenenados

por eles. Podem ser evocados da seguinte maneira, como descrito aqui nas

páginas do Regnum Tenebris: numa noite metuenda de tempestade, o mago

deverá ficar no centro de um pentagrama traçado no chão com sangue de uma

virgem. Em cada ponta do pentagrama, um grande círio. A cerimônia deve

ser feita num cômodo às escuras, na mais completa solidão, no auge da

tempestade. Recita-se, então, certas palavras mágicas que revelarei em

parágrafos adiante, as quais abrirão os portais negros da dimensão

invisível...”

Alice terminou a leitura, fechando o livro, pondo-o sobre o criado-

mudo. Mordeu levemente o lábio inferior, os olhos fixando-se no teto.

Agora ela já sabia o que e como fazer. Mas... Teria coragem?

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Capítulo 10

Nada de novo debaixo do sol de Maremontes

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A manhã era limpa, risonha, fagueira. A manhã era castiça como o

sorriso de uma criança. Linda como o sonho de um querubim indolente caído

na Terra.

O céu azul e sem nuvens era um convite perfeito para um prazeroso

e saudável passeio de bicicleta.

Alice pedalava, observando as mansões e a doce vida daquele

abastado bairro de Maremontes. Não havia nada de novo debaixo do Sol de

Maremontes, ela pensou. Ela própria, sendo rica, concluíra que riquezas

materiais nem sempre eram sinônimos de felicidade. Concluíra, ainda em

tenra idade, que a felicidade era como um zéfiro, igual àquele que, naquele

átimo, ao pedalar, refrescava-lhe o rosto: momentâneo, por certo, contudo

maravilhoso – enquanto durasse, pelo menos.

Certa vez Alice passara por um bairro pobre de Maremontes. Vira as

favelas sombrias nas encostas dos morros, os rostos quase esqueléticos da

populaça que ali habitava. A maior parte formada de negros e brancos, uma

ralé marginalizada por um sistema capitalista selvagem e desumano

concebido por mentes satânicas – provavelmente do mesmo jaez das que

criaram o socialismo e o comunismo.

Era uma gente desiludida, aquela do bairro pobre. E não sem razão,

cumpre salientar. E destituída de qualquer centelha de esperança.

Verdadeiros espectros vivos para quem a busca da felicidade era como

descascar uma cebola: descascava-se, descascava-se, camada após camada, e

nada, nada, nada. Sempre e sempre nada.

Alice lembrou-se, então, das palavras de Morgana. A pobreza é feia,

repleta de horrores.

Alice filosofou, em pensamentos; pensamentos que eram como

pássaros saindo de gaiolas:

A felicidade é um estado de consciência, não um acúmulo de bens

materiais, pelo menos em tese. Porque na prática, a coisa é complicada

como operações com polinômios ensinadas por uma professora bêbada.

Porque, para se viver dignamente, com um pingo de conforto e esperança,

há que se ter pelo menos um pouco de pão, comida, agasalho, acesso à boa

educação e à cultura, acesso à esperança espiritual, enfim.

Alice continuava pedalando e filosofando. Agora a próxima parada

era a casa de Lúcio. Lúcio, aquele!... Era o Lucinho. E ele morava num bairro

pobre de Maremontes.

Ele era um coroinha meio apalermado da igreja de Maremontes.

Lucinho era um garoto com jeito de esquilo tímido. Ele não era rico como

Alice; contudo sua mãe trabalhava para ricos, de modo que ele convivia mais

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com crianças e jovens mais abastados. Era portador de um nariz grande. Era

magérrimo, dentuço. Os olhos eram tristes como duas jabuticabas maduras e

úmidas de sereno ao luar outoniço.

Quando Alice enveredou pela rua da casa do Lucinho, ali estava ele,

no amplo gramado diante de sua casa, sob o sol matinal. Ele empinava uma

pipa verde e vermelha com o escudo ou distintivo do time de futebol da

cidade, o Maremontes Futebol Clube.

─ Olá, Lucinho! ─ cumprimentou Alice, parando a bicicleta com o

freio de mão.

─ Alice?!...O que faz por aqui? ─ perguntou Lucinho, um tanto

surpreso.

─ Vim falar contigo. Tenho um “negócio” a te propor...

─ “Negócio”?!

Lucinho amarrou a linha de nylon na lança do portão da casa e

sentou-se no gramado verdejante. Ele afastou a borboleta que teimava em

voar perto de si, importunando-o.

Alice largou a bicicleta, sentando-se também.

─ E então – quis saber Lucinho. ─ Que negócio veio me propor?

─ Ainda és coroinha?

─ Sou. Mas minha mãe é quem me obriga a essa porcaria. Odeio ser

um maldito coroinha. Não aguento mais a gozação dos amigos. Na verdade

eu sou ateu e materialista, mas finjo que acredito nessa baboseira de Deus.

Não acredito em deuses e nem mesmo em vida após a morte, como ensinou

nosso professor Silas Mortágua. Mas por que perguntas isso, afinal? És uma

ricaça, e ricaços não são todos uns ateus e materialistas também, assim como

os pobres e desiludidos mais esclarecidos?

─ Bem... mais ou menos, Lucinho. O fato é que vim aqui por outro

motivo; não vim para discutir sobre isso. Eu preciso que tu me faças um

favor, um pequeno favor. Eu quero que tu me arranjes cinco círios, lá da

igreja.

─ Círios?! – fez Lucinho. ─ Que diabos tu queres com círios?

─ Ora...Bem, pretendo decorar meu quarto em estilo místico. Sou de

peixes, lembra? Todo pisciano é místico por natureza. E então, vai me

conseguir os círios?

─ Piraste de vez.

─ Talvez. Mas eu te pagarei uma boa quantia. Tu não vives

sonhando em ter um notebook de última geração? Eis tua chance! ─ falou

Alice, sorrindo.

Lucinho pôs a mão no queixo, coçou a cabeça, com um ar pensativo.

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Alice, depois de uma breve pausa, continuou:

─ Olhe bem para mim, Lucinho – ela agora começou a fitar o seu

interlocutor com um cintilante olhar magnético, tal como se estivesse

hipnotizando o garoto. ─ Eu preciso dos círios o quanto antes!

─ Está bem... – disse por fim Lucinho, quase mecanicamente, como

se estivesse sob uma leve hipnose. – Creio que conseguirei pegar sem que o

sacristão Elias me veja roubando os círios. Tentarei pegar a droga dos círios

e...

─ Não tente; consiga-os! – Alice continuava dardejando aquele

estranho olhar quase hipnótico. – Eu te ordeno, pois preciso deles.

Entendeste?

─ Está bem... Vou conseguir – a voz de Lucinho agora era quase

robótica, e seu olhar era como o de um zumbi, um morto-vivo destituído de

vontade própria.

Subitamente Alice deu-lhe um beijo nos lábios. Lucinho enrubesceu

prontamente; ele ficara atordoado, boquiaberto com o beijo.

─ O beijo foi um, digamos, adiantamento – falou Alice, brejeira.

Então ela se levantou, limpou com as mãos seu blue jeans na parte

dos fundilhos e acrescentou, antes de montar na bicicleta:

─ Tua mãe não estranhará o fato de tu apareceres com um notebook

novinho em folha, porque tu dirás que fui eu que te emprestei por uns

tempos.

Lucinho balançou a cabeça, afirmativamente.

Alice continuou:

─ De lambujem, e como incentivo, terás um prêmio, um outro beijo.

Só que um beijo mais ousado.

E então novamente de súbito, ela o beijou. A língua lúbrica de Alice

agora era como uma serpente de luxúria a imiscuir-se na boca do estupefato

garoto virgem.

Após a garota ir-se embora de bicicleta, Lucinho caiu para trás, no

gramado, como uma estátua idiota derrubada pelo vento. Soltou um leve e

feliz suspiro de surpresa e deleite ao mesmo tempo.

Acho que estou apaixonado por Alice, seus pensamentos começaram

a voar alto, sonhando com casamento, filhos, lar e outras bobagens.

Alice tinha razão. Não havia nada de novo debaixo do sol de

Maremontes, e os homens continuavam o que sempre seriam: uns tontos.

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Capítulo 11

O ofício de Maura

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E então chegou o domingo. Domingo, feriado no mundo dos vivos.

Vivos ou mortos-vivos num ramerrão cheio de tédio e monotonia de uma

sociedade e civilização esdrúxula e insana. Vivos que, quiçá, estejam mais

mortos que o os próprios mortos, num certo sentido e metafisicamente

falando.

Era mesmo um radiante e espetacular domingo em que a maior parte

dos cidadãos ainda procurava assassinar o tédio existencial proporcionado

pela massacrante rotina da semana, fosse na sociedade maremontense ou

fosse no mundo todo.

Os cidadãos... esses legumes vivos, com sapatos e roupas, cujas

almas são cozidas na panela da vida ─ na morte, repasto para os vermes; no

inferno, repasto para os demônios!

A manhã passara rápida como um sonho em meio ao verdadeiro

pesadelo real que é o existir – existir num mundo em franca decadência

moral e espiritual, em queda vertiginosa rumo aos abismos do nada.

Logo veio a tarde, mansa e quente, mas que paulatinamente foi

agonizando como um pássaro de cores rubras cujas asas tivessem sido

cortadas pela faca do tempo. Soprava um favônio que aos poucos se

transformou num ventinho bem frio, algo como um fiapo de vento sul.

Não demorou muito e o crepúsculo surgiu, maculando o céu como

um pintor fantasma com tintas ígneas e sombrias, acompanhado de um bando

de arrebóis místicos no horizonte sempre mirífico.

As luzes já estavam acesas na suntuosa mansão Loyola quando

Monandra caminhava pelo corredor do andar superior e deparou com Maura,

a jovem arrumadeira recém-contratada, uma beldade eivada de desejos por

lubricidade.

─ E então, querida? Estás gostando da formidável sinecura que te

arranjei aqui?

─ Oh, sim! Claro que estou Monandra! Estou gostando muito. Foi

uma benção teres me arranjado este trabalho para mim. Já estava

desesperada, pois não conseguia arranjar um emprego.

─ Acredito que sim. As coisas andam ruins em Maremontes,

ultimamente. Por esses tempos, conseguir uma ocupação decente nesta

cidade de desgraçados tem sido como procurar uma agulha num palheiro.

─ Ah, mas o que importa agora é que tenho como custear minha

faculdade. Graças a ti, Monandra, em breve serei uma sexóloga de renome,

que é o que sempre sonhei ser.

─ Creio que se tu continuares eficiente, logo subirás de posição

nesta casa, e consequentemente teu salário subirá como um foguete. – disse

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Monandra, que dardejava um olhar malicioso e magnético. Uma lubricidade

sem limites cintilara naqueles olhos negros de virago.

Monandra, aproximando-se mais, tocou levemente o queixo da

jovem, que estremeceu ligeiramente feito uma rosa orvalhada ao sabor de um

favônio primaveril.

Maura, em seu íntimo, sentiu um ardor prestes a desabrochar em

toda a sua plenitude como uma rosa de ígnea libido.

─ Esta noite, outra vez, combinado, querida? – sussurrou-lhe

Monandra, num ímpeto suave que era misto de pedido e ordem.

─ Obedecerei a sua ordem, Monandra ─ gaguejou a jovem, quase

em estado hipnótico e sucumbindo depois a um frêmito de desejo. Os olhos

de Maura rutilaram servis. – Agora, Monandra, se me der licença... Tenho

um trabalho a fazer.

─ Claro, meu amor... Mas não te esforces em demasia; reserve tuas

energias para a noite... – e dizendo isto, Monandra sorriu, abrindo a boca,

esticando e mexendo a língua lasciva e obscenamente, deixando à mostra um

“piercing” colocado na mesma.

Num movimento súbito, Monandra passou a mão no calipígio

traseiro de Maura, que fingiu brejeiramente nada sentir.

Monandra, a virago, sorriu com malícia, olhando aquele corpo

escultural e sedutor, verdadeiro portal de carne para o Éden do gozo, o

paraíso dos parazeres proibidos.

A noite vai ser um sonho, um doce sonho!, pensou Monandra.

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Capítulo 12

Rituais de desejo e vingança

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Era uma sexta-feira, dia 13. Noite tempestuosa em Maremontes.

Trovões fortes que pareciam querer acordar até os mortos. Relâmpagos –

suas luzes efêmeras parecendo querer transformar a noite escura em dia

claro.

O uivar do vento assemelhava-se aos uivos do cão do inferno.

Ladrava na noite, ganido-lufada tristonho e assustador. Chuva. Grossa a

princípio, amainando paulatinamente. Pingos chicoteando o telhado da

mansão, açoitados por lufadas ocasionais e inclementes.

Dois minutos para a meia-noite – essa hora mística em que, segundo

alguns esotéricos, todas as deletérias forças sobrenaturais parecem convergir

em paroxismo para a face da Terra, espalhando toda maldade possível.

Em seu quarto, trajando um negro capuz preso a uma capa de

idêntica cor, Alice preparara solenemente o estranho ritual mágico, como

ensinado nas páginas do terrível Regnum Tenebris.

Enfim, uma noite mais que propícia!, ela comentou, falando consigo

mesma em pensamento.

Ela conseguira os círios com Lucinho, o tolo coroinha amigo seu.

Agora só faltava o sangue – seiva essencial da vida e da morte, o

néctar rubro que embriaga como um vinho todos os demônios sedentos de

morte.

Foi com o auxílio comezinho e prosaico de uma lâmina de barbear

que Alice fez o pequeno corte na mão, não sem apertar os lábios e sufocar o

gemido de dor. O sangue escorreu então rubro, fresco, pingando depois

lentamente num godê de porcelana.

Ela fez, rapidamente, um curativo na mão.

Em seguida, com um pincel, debuxou o pentagrama com o sangue

colhido. Um pentagrama esotérico no lençol branco foi desenhado, como

recomendava o abominável Regnum Tenebris, colocando, ato contínuo, os

círios em cada ponta.

Alice adentrou solenemente no centro do pentagrama mágico. Agora

só faltava recitar as palavras de evocação, sinistras e sombrias na fonética e

tom. Recitou-as, sentindo um calafrio gélido na espinha.

Após algum tempo, sentiu-se ridícula. Em pleno século vinte e um,

uma jovem esclarecida fazendo aquilo! Sentiu-se medieval, por assim dizer.

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Ou a protagonista de um filme de terror de quinta categoria. Porém ela

prosseguiu. O desejo de vingança falava mais alto. A chama da desforra ardia

nas trevas de sua mente perturbada pelo ódio.

O quarto fracamente iluminado pelos círios acesos, uma atmosfera

mágica, mística e sobrenatural. Uma pequena necrosfera.

O cheiro dos incensos causando imaginações opiáceas...

Trovões estrugindo alto, parecendo estentores infernais gritando em

louvor a Satã, sentado no trono de brasas e ossos.

Alice com os olhos fechados, o rosto como que num transe

mediúnico.

Minutos se passaram. E, de repente, ela sentiu-se ridícula outra vez.

Nada acontecera. Nada de sobrenatural. O ritual não surtira efeito?

Como pudera ser tão tola a ponto de deixar-se levar por superstições

bizarras de um livro esquisito adquirido num sebo? E logo ela, uma garota

lida, quase um gênio precoce, alguém com Q.I. elevado, como pudera, enfim,

ser tão irracional a ponto de deixar-se levar pela imaginação, pela fantasia

delirante, pelo seu senso de inverossimilhança.

Sombra, o bichano negro, miou, como se indagasse alguma coisa a

ela.

Alice assoprou os círios, apagando-os. Imerso o quarto no negrume

da escuridão. Vez por outra, um relâmpago iluminava o aposento.

Ela soltou um muxoxo de reprovação e foi deitar. Acariciou o dorso

negro de Sombra. Já passava da meia-noite.

E logo o sono veio como uma dádiva, arrancando-a do mundo dos

despertos e arrastando-a ao mundo dos sonhos mais alucinantes, um mundo

que era como um bálsamo para a sua alma aprisionada no calabouço da terra,

nos grilhões da carne, um mundo estranho tecido de desejos secretos, medos

insanos, apetites proibidos...Um bálsamo que poderia virar mortalha.

* * *

Monandra não podia conter toda a sua voluptuosidade crescente; o

intenso desejo de prazer era como uma serpente ígnea de mágicos poderes

que devorava a própria cauda, uma fogueira acesa serpenteando na escuridão

de seu ego, como o fogo selvagem da libido contumaz. Toda a sua libidinosa

alma tornava seu corpo uma verdadeira esponja de luxúria esdrúxula que

enxovalhava toda minúscula esperança de pureza da carne. Era, talvez, a

comprovação inequívoca de que o seu corpo estava sendo como um

receptáculo de toda imundície espiritual, emanada dos confins sombrios de

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um limbo situado em regiões metafísicas e sombrias além do tempo e do

espaço.

Monandra bateu levemente na porta, com o nó do dedo indicador. A

voz sensual de Maura, lá de dentro, quis saber num sussurro delicioso:

─ Quem é?

Monandra, por sua vez, falou a senha, num cicio brejeiro:

─ O anjo dos deleites proibidos!

A porta foi aberta. Monandra entrou, sôfrega como Safo diante de

uma virgem.

A noite, para ambas, estava apenas começando. Sem dúvida, seria

uma noite longa, cheia de delírios eróticos delirantes...

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Capítulo 13

Alice no país dos horrores

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O que é um sonho? Na maioria das vezes, um sonho é como uma

espécie de trailer mental de aventuras pelas quais passamos durante as horas

estranhas em que dormimos e “morremos” temporariamente para o mundo

físico. Tais aventuras ocorrem em mundos ignotos que coexistem

pacificamente ou não com o nosso, onde existimos sob uma outra forma de

matéria ou não-matéria (algo como uma sutil matéria espiritual ou

materialidade transcendental), onde existimos com nosso eu verdadeiro ou

com personalidades que desconhecemos dentro de nós. O nosso imo é

variado, o nosso eu de hoje discorda do nosso eu de ontem e discordará do eu

futuro – o ser humano é muitos, embora seja um só.

E o pesadelo, o que seria? Seria tudo o que o sonho é só que

multiplicado pela aflição e horror de tudo que jaz abaixo da superfície de

nosso eu, nosso ou alheio, e que suplanta nossa vontade com as patas

colossais e furiosas de entidades com as quais não deveríamos manter

contato (sem saber ou não), salvaguardando destarte nossa sanidade,

espiritual e física.

Alice perdera-se nos turbulentos torvelinhos oníricos alucinantes.

Perdera-se na fantástica dimensão sonial, no incrível e surpreendente mundo

onírico, perdera-se nas névoas dos mundos internos do espírito.

Agora ela vagava solitária por um bosque verdejante e misterioso,

por entre resquícios de uma névoa fantasmagórica e pegajosa. Ouvia-se, ao

longe, uma espécie de algaravia misturada com algo que soava como música

sacra e que, às vezes, confundia-se com o murmúrio da brisa da floresta.

Um frio terrível percorria todo o seu corpo nu, aquele corpo que não

era o corpo físico. Era um outro corpo, parecido com o corpo material, porém

incrivelmente mais real, sob certos aspectos.

Seus pés astrais pisavam o solo úmido e recoberto por um

verdadeiro tapete de folhas outoniças semi-apodrecidas, caídas de velhas e

retorcidas árvores de tétricas configurações e caules pútridos.

Alice atravessava uma clareira misteriosa, agora.

De repente uma inquietante sensação de que alguém ou alguma

coisa a perseguia. O silêncio da mata misteriosa aumentava o seu temor – e

era quase tangível, por assim dizer.

Olhou para trás e, na penumbra onírica, viu alguma coisa espectral e

extraordinária agitando a névoa, como uma multidão de sombras que

tentassem nadar no nevoeiro.

Então ela viu o horror.

Era um misterioso turbilhão de sombras sinistras que

evolucionavam, uma blasfêmia corporificando e que girava. Uma entidade

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sobrenatural e mortífera que vinha célere em sua direção, zunindo, como uma

lufada forte ou um enxame de demônios vesânicos e incontroláveis. E no

epicentro infernal e vertiginoso daquele turbilhão macabro e dantesco, uma

luz mística, uma luz amarela, irritante, ofuscante, piscando, piscando como

um grande sol mágico e diabólico oriundo de esferas ou golfos além do

sonhos e do sono. Era um espécie de ouro vivo e maligno do inferno ou um

xanto precioso, vivo e portentoso, além da compreensão humana hodierna.

O desespero então incutiu forças em Alice, e então ela se pôs a

correr, em desespero.

De repente o chão faltou-lhe a seus pés; caiu num poço escuro, tão

escuro como o futuro da humanidade que persiste em maldades e loucuras.

O ambiente agora era outro. Tudo mudara repentinamente. No

entanto a intensidade da música aumentara e era mais estranha – melodia que

enlouquecia, dominava, encaminhava para buracos espirituais de turbulências

e dores da alma, excruciantes e sobretudo colossais em forma e grau.

Alice agora estava num palácio exótico e misterioso onde não havia

saídas.

Era o palácio pesadelar das sombras do horror!

Ela estava amarrada a uma pilastra alta e antiga enroscadas por heras

mefíticas. Ao seu redor, criaturas semelhantes a faunos horrendos de baixa

estatura cantavam e dançavam frenética e obscenamente ao som insano de

flautas, ocarinas e pífaros feitos de ossos humanos. Aquela música louca era

como um hino de louvor negro aos pecados mais imperdoáveis.

De repente um pequeno sátiro, grotesco e sardônico, apareceu com

uma grande pena amarela numa de suas mãos.

Aproximou-se de Alice e começou a roçar de uma forma libidinosa

o corpo nu da prisioneira, fazendo-a delirar de medo e prazer.

Um urro amedrontador de plena fúria se fez ouvir, como uma fera

gigantesca que tivesse sua garganta cortada e berrasse em cólera espumante e

terrível. Os faunos afastaram-se, aflitos e temerosos, cessando a música e

ocultando-se rapidamente nas sombras do palácio do horror no orbe dos

pesadelos negros e abissais.

Alice então compreendeu tudo. O local profano onde estava era uma

espécie de templo na fronteira entre o universo pesadelar e o grande além.

Algo como um altar de sacrifícios nos umbrais astrais. E ela era a oferenda

do dia ao inominável ente do turbilhão de sombras! A luz amarela no interior

do turbilhão era o deus ou o demônio que os sátiros cultuavam, uma energia

nefanda e mágica que logo surgiria, aterradora e titânica, oriunda de golfos

cósmicos além dos portais da morte.

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E, como temia Alice, o turbilhão demoníaco surgiu, saindo de uma

alcova sinistra mergulhada em sobras e mistérios. Atravessou um amplo

umbral com uma cortina feita de miçangas rutilantes que lembravam

pequenas caveiras humanas. Sim , era mesmo aquele turbilhão amarelo ,

mágico e ameaçador, uma entidade dos confins do cosmo ultraterreno!

Trasnformando-se num zunido enlouquecedor como se fosse um

enxame de demônios-abelha, começou a aproximar-se da indefesa Alice, que

nesse instante começou a gritar desesperadamente; ela estava completamente

aterrorizada, agora.

Ouvia aquela espécie de cantochão macabro, uma litania cantante

vinda de um lugar distante ou de lugar nenhum. Era uma música estranha

realmente, levaria a loucura a qualquer um.

Mas, subitamente, o turbilhão do terror foi diminuindo de

intensidade, até virar uma forma, aparentemente humanóide, de cor

amarelada.

Horror! Horror!Horror!...Alice no país dos horrores!

Agora, diante da estupefata Alice, estava um atarracado, porém

musculoso Minotauro de olhos chamejantes, com uma cimitarra enorme na

mão cintilando como um relâmpago infernal.

Ele se aproximava de Alice cada vez mais. Cada vez mais.

Mãos cálidas, como as de um anjo, atrás da pilastra, desataram o nó

da corda que prendia Alice. Ela não conseguiu ver quem era, apenas ouviu a

voz angelical sussurrando excelsa em seu ouvido:

─ Não devias ter evocado o ser do grande além, frívola criança das

plagas materiais! Não conheces ainda a Lei dos deuses?

Alice estava apavorada. Fez menção de correr, porém já era

demasiado tarde para isso; o Minotauro horroroso, com a cimitarra em riste,

já estava bem à sua frente, e com um único golpe a decapitou cruelmente no

universo dos pesadelos profundos.

Um grito sufocado de terror insinuava-se na garganta de Alice

quando ela despertou num sobressalto.

Um suor frio banhava-lhe o rosto. E ela tremia.

Levou sua mão ao pescoço, para constatar realmente que tudo não

passara de um sonho, um pesadelo infernal brotado de medos ancestrais

incrustados no seu ser.

O gato Sombra ergueu a cabeça um tanto assustado, ouvindo Alice

murmurar-lhe, ofegante:

─ Um pesadelo, Sombra...foi só um pesadelo, um sonho mau.

Vamos voltar a dormir...

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Mas teria sido apenas um pesadelo promovido por seu inconsciente

ou subconsciente ou um aviso espiritual, uma premonição?

A tempestade, lá fora, na noite alta, parecia ter diminuído, numa

trégua momentânea.

Alice pensou: Se eu dormir, posso morrer durante o sono, voltando

para aquele sonho infernal, então viverei o pesadelo de uma eternidade

medonha!

Alice não dormiu aquela noite. E não sabia se voltaria a dormir

sossegada outra vez.

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Capítulo 14

A sádica alcova do ardor

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Subjugada pela dor, Maura gemia obscenamente em sua languidez

erótica. Estava nua, as mãos atadas por correntes negras que pendiam do teto.

Sua mente parecia deleitar-se num mar de lama morna de

sensualidade, onde o desejo era uma serpente devorando a própria cauda.

Maura vibrava nas delícias da libido sem peias ou freios morais. Ela

era agora um frenesi, uma posta viva de carne e sangue bailando entre sonhos

e frêmitos no gozo abissal de delírios eróticos invencíveis.

─ Oh, Monandra... Minhas mãos... Elas estão doendo...

─ Suporte-a um pouco, minha doçura; procure concentrar-te no

sublime prazer místico que somente a dor evoca...

Sádica, Monandra beliscou-lhe as nádegas, com força, fazendo a

moça expelir um ai!

Depois, por trás, abraçou Maura, envolvendo-a com os braços que

mais pareciam tentáculos. E apertou fortemente o bico túrgido do seio de

Maura. A mão de Monandra deslizou como uma serpente cálida, rumo ao

púbis maravilhoso da jovem.

Quando Maura sentiu os finos e longos dedos de Monandra

penetrando sua intimidade, a jovem vacilou, murmurando:

─ Oh!...Pelo amor de Deus, continue! Continue!...Não pare, não

quero que tu pares, não agora...

Minutos de prazer se seguiram, explodindo em siderais galáxias de

deleites ultracósmicos. De repente Maura vacilou. Sua consciência talvez

estivesse pesando, uma parte da consciência onde a moral era uma aguilhão

psíquico para frear certas anseios proibidos pela parte puritana do ego e da

sociedade.

─ Oh, Deus... Tu me matas de prazer... Talvez eu não devesse...

Acho melhor pararmos por aqui e...

Mas então Monandra comentou, num cicio, os olhos hipnóticos

fitando os da companheira:

─ Vamos, liberta-te de teus preconceitos e temores! Te solta, guria...

Nos meus braços... Abra tua mente e teu corpo, abra os portais dos prazeres

proibidos para tua alma no império de nossos desejos...

Maura sucumbia, entre gemidos:

─ Oh, sim, sim... Assim, continue! Não, não pare!...

─ Maura, querida... – falou Monandra, mordendo suavemente o

lóbulo da orelha de Maura, puxando-a violentamente nos cabelos. Sua voz

alterara-se e seu rosto tomara a aparência diabólica , algo como uma sanha

absolutamente perversa: ─ Deixa-te levar pelo meu domínio, minha doce

cadela! Estás condenada a seres minha, eternamente minha, de corpo e

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alma!...Saiba que posso profanar o vaso sagrado no templo do teu corpo,

posso enfiar não somente os dedos, mas posso enfiar minha mão toda, se eu

quiser, e dele colher a seiva da tua carne, o mel dos teus desejos!

Maura gemeu alto, protestando lânguida.

Monandra continuou:

─ Agora quero que repita: bata-me com violência e ardor!...

A moça engoliu em seco, depois gaguejou:

─ Bata-me, meu amor! Bata-me com violência e ardor!...

Monandra retirou os dedos da intimidade de Maura, afastando-a até

um armário, de onde retirou um lenço e um pequeno rebenque.

─ Eis o sagrado instrumento de nossa paixão, o açoite pro nosso

delírio... – disse Monandra, brandindo ostensivamente o chicote e sorrindo

com malícia e sensualidade.

Virando o rosto, Maura observou o instrumento sadomasoquista. E

um arrepio de medo e prazer percorreu-lhe o corpo maravilhosamente nu

como uma eletricidade quente de luxúria.

Com o lenço, Monandra amordaçou Maura.

─ A mordaça evitará teus gritos, que podem acordar os outros, além,

claro, de fazer parte de nosso joguinho de amor, não é mesmo meu bem? Ah,

e não te preocupes querida: prometo-te que não vou bater tanto, como fiz da

outra vez, na choupana que alugamos na beira daquela paraia, no costa sul de

Maremontes. Lembra dela, não? Foi inesquecível demais para esquecermos,

creio...

Então Monandra, a dominadora, pôs-se a chicotear desvairadamente

a carne de Maura, mais precisamente nas regiões das nádegas, por sinal,

formidáveis, calipígias. Maura, então,se contorcia selvagemente de prazer...e

dor!

Em seu delírio erótico, Monandra murmurava, louca:

─ Engula! Engula seus gritinhos de volta, minha adorável! Tu

pertences a mim. És minha, teu corpo todo me pertence. Ele é meu objeto

santo de prazer, agora... E sempre! És a estrela do prazer na noite da minha

vida. És escrava de meus desejos, anjo da minha fé no prazer. Tu és a carne

viva que abre os portais da minha luxúria. E tua alma também é minha

escrava e meu objeto de prazer...

Monandra gargalhou na sua noite insana de sadomasoquismo. E lá

fora os trovões aumentaram, como verdadeiros tambores incentivando os

açoites impiedosos desferidos pela virago no corpo da jovem subjugada pelos

delírios das paixões mais obscenas.

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Capítulo 15

Um sussurro na escuridão

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Certas noites trazem em seu bojo sombrio o horror e o medo. E

aquela noite, em especial, era uma delas.

A tempestade prosseguia implacavelmente, o que tornava tudo ainda

mais sombrio.

Indiferente aos relâmpagos e trovões, Alice conseguira ─ não sem

uma dose maciça de esforço hercúleo de vontade ─ adormecer outra vez.

Sobre o leito, o gato Sombra ressonava placidamente.

Foi de repente que o felino negro acordou. O bichano então ergueu a

pequena cabeça e eriçou o pelo todo.

Pelo estrondo que o acordara de inopinado, o raio caíra nas

redondezas.

A veneziana do quarto abriu-se abruptamente, empurrada pela

lufada súbita, e foi a vez de Alice erguer-se num sobressalto que lhe arrancou

do sono. Ela então olhou e viu e ouviu a veneziana batendo forte no caixilho

como uma asa ruidosa do quarto.

Alice então se ergueu do leito para fechar a veneziana.

Quando Alice se aproximou da janela, a nova lufada de vento quase

a derrubou, mas Alice conseguiu fechar o vidro da janela e a veneziana.

Tornou a deitar-se.

Sombra, ainda com o pelo eriçado, miava um tanto assustado. Alice

tentou aconchega-lo junto de si, acalmando-o.

─ Torne a dormir, gatinho. Foi apenas o vento. Sei que é difícil

dormir com uma tempestade dessas lá fora, mas tente meu bichano...

Passou-se um minuto. No escuro do quarto, ouviu-se um som

sobrenatural. Era um sussurro sinistro, seguido de uma risada gutural,

marota. E palavras estranhas se seguiram, palavras não ouvidas desde que

Satanás se refugiou nos palácios do inferno. A voz era de certa forma meio

pueril, bizarra, grotesca. Parecia uma voz oriunda dos recônditos do além.

Aquela voz estranha murmurava o nome de Alice, chamando-a

lentamente.

─ Alice!...Alice!...

O gato miou sombriamente, o pelo eriçando-se cada vez mais. E

Alice perguntou, por fim:

─ Quem está aí?...

Ao que a voz estranha respondeu:

─ Alice, eu estou aqui... Me chamaste...Pois bem, estou aqui...para

lhe servir, para brincar contigo...

─ Oh, quem és? – ela indagou, gaguejando de medo, os olhos

tremendamente esbugalhados.

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─ Quem eu sou?...Ora, podes chamar-me do que quiseres... Pouco

importa... serei o que tu quiseres que eu seja...sou um ingnúkle, eis tudo...

─ Um Ingnúkle?!... Onde estás? Eu o ouço, mas não consigo te

ver...

─ Estou aqui, humana... Nas sombras...

Alice fez menção de acender o abajur, mas a voz sobrenatural, um

tanto áspera agora, a impediu.

─ Não!...Não faças isso, humana!...

─ Perdoe-me!...A luz... Ela te incomoda?

─ Sim, ela, a luz, me incomoda, às vezes.... Toda forma de luz me

incomoda, às vezes...

─ Tudo bem, então.

Alice percorreu a vista pela penumbra assustadora do quarto. Num

canto mais escuro, um par de olhos amarelos medonhamente pérfidos e

maldosos cintilavam nas sombras como duas pequenas estrelas sinistras.

Alice procurou forçar a vista na tentativa de distinguir o seu

interlocutor. Não havia como a luz de um relâmpago efêmero iluminar o

quarto, ela fechara a veneziana.

Forçou ainda mais visão, a escassa luz do corredor filtrava-se por

debaixo da porta do quarto como uma água luminosa escorrendo, e com um

esforço de vista, Alice conseguiu ver aquilo. Era algo que parecia um

estilhaço de um pesadelo dantesco. Era uma estranha criatura, algo como um

trasgo medonho ou gárgula. Lembrava também um sátiro, mas era pior que

isso. Assemelhava-se, a julgar pelo vulto, com um grotesco anão de circo,

mas sua tez era verde, um verde ligeiramente fosforescente, leproso,

cadavérico. O nariz era adunco, as mãos de quatro dedos com longas unhas.

Seus olhos, ligeiramente oblíquos e vermelhos, tinham uma íris em forma de

caveira humana. Seus trajes eram por demais esquisitos, antigos, parecendo

fruto dos sonhos ou delírios dementes de algum estilista endemoniado; usava

um colete parecido com aqueles velhos rodaques de antanho. Sobre sua

cabeça, que era calva e ligeiramente desproporcional ao corpo, um barrete ou

bortalá da cor do sangue humano quando este escorre de algum sacrifício

satânico.

Mas, afinal, o que estava acontecendo? O que era aquilo? Aquilo

não poderia ser real, era inverossímil demais. Só podia existir num conto

fantástico, num filme barato de terror, visto num fim de noite num canal

medíocre de TV. Num estilhaço alucinatório de uma viagem psicodélica.

Mas, existia sim, como agente do sobrenatural.

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No entanto, para alguma parte racional da mente de Alice, o

sobrenatural, os entes do além, as criaturas horrendas e disformes do outro

mundo, tudo soava como quimera e delírio, fantasia mórbida ou delirium

tremens, quando não as divagações de um excêntrico místico – ou possíveis,

ao menos para quem estivesse louco ou...sonhando acordado.

Será?...

O que é o real? O que é o irreal? O que é a fantasia, o sonho? A

realidade é tão espantosamente impossível de acreditar como o é uma história

em quadrinhos de horror lida numa tarde monótona num sebo cheirando a

mofo.

Acaso todas as pessoas um dia já não experimentaram, secretamente

ou não, as coisas do além? Mente quem diz que não, que nunca presenciou a

sombra do sobrenatural?

Quem nunca teve contato com coisas inexplicáveis, inauditas, numa

noite perdida no calendário do inesperado e do insólito?

Mesmo os céticos e ateus, já tiveram tais experiências, embora no

mais das vezes neguem – por conveniência, soberba ou tática de imposição

de vontade.

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Capítulo 16

Conversando com um demônio

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─ Tu és um gnomo, duende ou um demônio? – perguntou Alice,

cheia de surpresa e medo, tentando acreditar que era real aquele vulto

sombrio em seu quarto.

A criatura sinistra sorriu maliciosamente. Seu sorriso era

ostensivamente sardônico, desafiador, matreiro. Repleto de perfídia.

Diabólico, enfim.

Alice sentiu sua mente confusa novamente.

Tinha evocado aquilo ou alguma parte de seu ego projetava aquilo

de forma alucinatória?

Estaria louca?

Alice procurou se controlar e esperar uma resposta para a indagação

que fizera.

Então a criatura finalmente respondeu:

─ Sou o que sou... Sou o que tu quiseres que eu seja...

─ Eu te chamei... eu te invoquei, pensando que não serias real, mas

és...Eu te chamei para que fizesses algo...

─ Um trabalho, o nome que dás à vingança – interrompeu o ser do

mundo invisível, completando a frase de Alice.

─ Como sabes...?

─ Sei de muitas coisas, pequena humana. Coisas da terra, do céu...

E do inferno também.

Alice não conseguiu evitar que um calafrio de horror percorresse seu

corpo como uma gélida corrente elétrica de terror e medo.

O anão – ou o que quer que fosse aquilo – não deixava de ser

terrivelmente assustador com aquela sua voz apavorante, algo como um

murmurar sinistro, um regougar baixinho de esferas atemporais, dimensões

negras e perigosas.

Alice teve a certeza: aquele ser não era humano; tratava-se de um

ente sobrenatural, sem dúvida.

O homúnculo do além, então, falou de novo:

─ Queres que eu dê uma lição em alguns de teus detratores,

humanos que detestas com todas tuas negras forças geradas no teu coração.

São gentes que odeias profundamente, gentes ruins...

Alice fez que sim com a cabeça.

A criatura medonha falou então para Alice, enquanto sorria

sinistramente:

─ Farei o que desejas!

─ Farás?...

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─ Sim, eu o farei...

─ E... Posso saber quando irás começar a fazer?

─ Não sejas impaciente, humana. Eu o farei, e isto já basta. Creio

que tua volúpia de vingança será saciada em breve... Muito breve.

─ Eu... Eu gostaria de ver a cara da Morgana... – disse Alice, de si

para si.

─ Poderás vê-la.

─ Eu adoraria.

─ Tu a verás, então.

─ Verei mesmo?

─ Verei, já disse.

O ingnúkle olhou para o aparelho televisor preso no suporte

parafusado na parede do quarto de Alice.

Ele ligou-o, sem precisar tocá-lo ou tocar o controle-remoto. Ligou

o televisor com o seu poder sobrenatural que ele tinha sobre a matéria.

Depois, o ingnúkle sumiu nas sombras do quarto.

Ali, na tela da TV, surgiu o rosto de Morgana.Ela dormia em seu

quarto. Ivan, o pai de Alice, não se encontrava ali; fora até uma outra cidade,

numa viagem de negócios.

A tempestade, lá fora, continuava. As luzes do solar, como por

encanto, apagaram-se todas. Um meio blecaute, já que a única luz agora era

a luz azulada do televisor no quarto de Alice.

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Capítulo 17

As peripécias diabólicas do ingnúkle

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─ Praga dos infernos! – rosnou Monandra. – Esta cidade de

desgraçados não passa mesmo de uma grande porcaria no mapa do mundo.

Vou acender as velas do velho castiçal que é usado em jantares à luz de

velas, até que o maldito gerador seja acionado automaticamente ou por um

dos imprestáveis seguranças da mansão.

Então, com a ajuda de um isqueiro, ela acendeu as velas no tal

castiçal, que ela logo encontrou.

Maura, ainda atada e amordaçada, permanecia passiva, lânguida, à

mercê dos desejos sádicos de sua senhora e amante, Monandra.

As nádegas e as costas de Maura estavam vermelhas, vergastadas

rubicundas lhe marcavam partes do corpo, inclusive as partes pudendas.

A princípio ninguém percebeu quando aquela estranha fumaça

amarela vazou por baixo da porta como uma serpente gasosa, escorrendo

como uma fumarada do inferno.

Monandra só notou quando começou a sentir aquele cheiro horrível,

um odor nauseante parecido com enxofre ou algo ainda pior.

E então ela pôs-se a tossir fortemente, falando com irritação

ostensiva:

─ Mas que droga! Talvez seja um princípio de incêndio. Deve ter

havido um curto-circuito ou coisa parecida...

De repente, então, Monandra teve engulhos. Eram náuseas horríveis.

Ânsias de vômito. Era aquela maldita e estranha fumaça amarela enchendo-

lhe os pulmões como um gás letal!

Por sua vez, Maura, assustada, tentava gritar, enquanto procurava a

todo custo livrar-se das correntes e da coleira que a mantinham presa:

Meu Deus, o que está havendo? O que está acontecendo com

Monandra?, pensava Maura.

Monandra foi ao chão, numa agonia avassaladora, terrível. Toda

aquela estranha fumaça amarela penetrava por suas narinas, intoxicando-a.

Era de fato algo como um vapor tóxico, que a deixava em pânico. Agora a

coisa queimava-lhe os pulmões, as entranhas. E logo ela começou a soltar

golfadas de sangue. E então Manandra sentiu algo quente e latejante subindo

à sua garganta, sentindo ao mesmo tempo uma dor excruciante que

rapidamente atingia níveis insuportáveis. Numa longa golfada, ela observou,

eletrizada de pavor, alguma coisa vir junto, latejando. Algo ainda pulsante...

Seu coração!

Maura, por sua vez, não pôde gritar de horror, pois estava

amordaçada, mas seus olhos se arregalaram de medo e pareciam clamar

inutilmente por ajuda.

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E a morte chegou para Monandra, terrível, inexorável, horrenda.

Ela agora estava morta, levara consigo toda a sua louca

concupiscência para as negras profundezas muito além dos portais da morte.

Maura parecia histérica de tanto medo, uma histeria silenciosa como

um câncer. Amordaçada, ela esperava o pior, e o pior seria a sua morte, a

morte violenta, provavelmente.

Na verdade, Maura estava desesperada, nas garras frias do pânico.

Ela não pudera crer naquilo que seus olhos tinham acabado de assistir. Tudo

lhe parecera irreal demais, dantesco demais, coisa de pesadelo.

E aquela fumaça amarela, fantástica, saindo como um ser vivo de

dentro do cadáver de Monandra, através das boca ainda manchada de sangue.

A fumaça logo se solidificou, transformando-se extraordinariamente

numa forma assustadora, medonha, a forma de um homúnculo bizarro, um

grotesco e infernal anão – o ingnúkle!

Os olhos de Maura arregalaram-se tanto que agora pareciam querer

saltar das órbitas. O cadáver de Monandra subitamente começou a apodrecer

rapidamente, como se meses e anos passassem rápidos, e a decomposição

vertiginosa transformou o corpo numa massa pútrida onde pululavam

frenéticos e horrendos vermes, deixando apenas o esqueleto grotescamente

caído ao chão, entre restos pútridos de carne fétida. O mesmo fim sinistro

teve o coração arrancado de Monandra, ali caído ao chão, fumegante de

miasma e fedentina nauseante.

Aquela entidade sobrenatural grotesca gargalhou diabolicamente,

depois apanhou o chicote.

Maura engoliu em seco, suando de tanto medo ao ouvir aquela voz

sussurrante:

─ Agora, insignificante criatura humana, tu irás apreciar os

verdadeiros prazeres da carne... Da tua carne, é claro!...Tua pobre e mórbida

mente, assim como o teu corpo pecador e perecível, irão sentir a verdadeira e

inefável luxúria, a luxúria da dor!...Irás padecer as inomináveis torturas

infernais, arrependendo-te de teres nascido neste mundo de desgraçados!

E então o ente malévolo pôs-se a chicoteá-la impiedosamente,

entregue a um frenesi sádico, diabólico.

─ Sofra, infeliz! – berrava o ingnúkle, entre gargalhadas e dentes

trincados de ódio e sarcasmo.

Se Maura pudesse gritar, seriam gritos horripilantes de medo e dor,

porém ela estava amordaçada e amarrada, de modo que só em pensamento

poderia pedir ajuda a Deus:

Deus...Ajuda-me!

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De repente, como num passe de magia negra, a extremidade do

rebenque transformou-se numa víbora peçonhenta, a cada vergastada furiosa

e sibilante, era uma picada terrivelmente atroz no corpo nu de Maura, que

lenta e desesperadamente foi enlouquecendo até morrer no mais cruel e

profundo terror.

Ela morreu sem poder gritar, amordaçada, manietada. Seu coração

não aguentara tanto - teve um ataque cardíaco por causa do paroxismo de

um medo terrível!

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Capítulo 18

Sombras em Maremontes

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Em seu quarto, Alice assistira a tudo, totalmente boquiaberta e

estupefata, através das imagens terríveis no televisor encantado.

Agora ela sentia um medo incoercível e terrível esgueirando-se

dentro de si como uma serpente gélida e escura, pois sabia que despertara um

horror inaudito, uma coisa metuenda de abissais golfos situados muito além

da matéria física, em geografias alucinantes e invisíveis ao olho humano

comum. Sabia que sombras caíram sobre Maremontes, as sombras negras da

morte!

Alice já assistira a muitos filmes de terror que a fizeram tremer e ter

pesadelos horrendos, mas nada, absolutamente nada se comparava às cenas

dantescas e apavorantes daquele “filme real” onde ela parecia ser a

protagonista.

O cenho hediondo do ingnúkle apareceu num close-up no aparelho

televisor, dizendo em tom de deboche, no costumeiro murmurar macabro e

diabólico:

─ E então, Alice?...Apreciaste a sessão de horrores?...Bem, creio

que agora precisas de teu pequeno xerimbabo felino...

O gato Sombra miou alto, o pelo eriçado.

Alice retrucou:

─ Acho que o Sombra não quer ir... Murmurou Alice.

─ Hah! Ele virá. Por bem ou por mal, ele virá!... – disse o ingnúkle,

a voz soando áspera, ameaçadora.

Então ocorreu o cúmulo do fantástico. Uma coisa verdadeiramente

inaudita, sinistramente fantástica. A mão gosmenta de unhas pontudas do

ingnúkle “saiu” da imagem no televisor e, esticando-se como se fosse feita de

elástico, apanhou à força o assustado felino negro, agarrando-o pelo pescoço,

arrastando-o consigo para dentro da cena, ou seja, o quarto onde estavam

também o cadáver da governanta lésbica Monandra e sua jovem amante,

Maura.

Lá fora, a chuva forte continuava caindo impiedosamente como um

verdadeiro dilúvio. E mais sombras caíram sobre Maremontes, tornando a

noite por demais aziaga.

* * *

Morgana dormia a sono solto. Sonhava – até mesmo às megeras é

concedida a benção dos sonhos por Morfeu.

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Mas às vezes Morfeu concede sonhos negros, sombrios, de horror e

morte. E esses sonhos, às vezes se tornam realidade.

Morgana sonhava. Sua mesquinha e famélica alma perambulava a

esmo pelos jardins astrais do ilusório mundo onírico.

Foi muito repentinamente que Morgana acordou. Ela ouvira um

ruído? Parecera o som de unhas arranhando a porta de seu quarto.

Então Morgana pressionou o botão do abajur, mas este não

funcionou.

Ela se ergueu do luxuoso leito com dossel, indo à direção da porta.

Girou a chave e a abriu com vagar.

Morgana assustou-se ao ver Sombra, o gato, miando diante de si,

iluminado pela luz de um relâmpago que se filtrara pela vidraça da janela.

─ Gato miserável!...Não me dás sossego nem a essa hora da noite?

Na certa foi Alice que te colocou aqui, para miar a noite toda e assim me

aporrinhar... – vociferou Morgana. – Sape! Dê o fora daqui, antes que eu

mande tirar o seu couro para fazer tamborim! Sim, teus dias estão contados

nesta casa, gato! Amanhã tomarei providências para liquidar-te! – e

tremendamente irada, Morgana bateu a porta com força, fechando-a

abruptamente.

Quando ela girou nos calcanhares para tornar ao leito, não foi um

miado que Morgana ouviu, mas sim um rugido.

Um rugido de uma fera!

Morgana engoliu em seco, esbugalhando os olhos. Voltou-se em

direção à porta.

Vagarosamente ela girou de novo a maçaneta, abrindo a porta

devagar.

O suspense fazia seu coração bater forte, parecendo querer saltar

fora do peito como uma semente sangrenta.

Então as luzes dos relâmpagos iluminaram uma enorme pantera

negra, com sua sanha sanguinária ostensiva, bem ali, parada diante da porta,

pronta para despedaçar uma vítima indefesa. Uma vítima chamada Morgana.

Não houve tempo de trancar totalmente a porta. Não houve tempo

sequer para gritar, muito menos para cogitar ou saber quem ou o que

metamorfoseara o gato Sombra naquela fera sanguinária.

Com sua enorme e poderosa pata de garras afiadas como punhais, a

pantera negra empurrou a porta, derrubando Morgana ao chão.

O que se seguiu foi realmente chocante. A pantera negra dilacerou

com fúria selvagem o pescoço de Morgana. As presas afiadas da fera

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rasgaram carnes, trituraram ossos, fizeram o sangue jorrar tépido e rubro na

noite de terror, jorrou como um vinho macabro oferecido à deusa morte.

E assim Morgana morreu num verdadeiro delírio incoercível de

pavor e dor.

Após completar seu ataque fatal, a portentosa pantera negra largou o

cadáver trucidado da mulher, e quando voltava para o corredor, o corpo

negro do animal feroz foi envolvido por uma luz muito amarela e fantástica,

e logo ocorreu uma nova e sobrenatural metamorfose ou transmutação. A

pantera transformou-se naquilo que originalmente era: o manso gato negro

chamado Sombra.

Então o ingnúkle surgiu na escuridão sinistra do corredor, sorrindo e

dizendo ao gato, que miara assustado ao vê-lo:

─ Agora vá, desapareça de minha frente, animal estúpido! Não tens

mais utilidade para meus propósitos!

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Capítulo 19

O ataque do Rato Louco!

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Sam Rato Louco conseguira entrar na mansão Loyola sem que os

seguranças percebessem.

Foi até fácil.

Os seguranças estavam acessando algumas páginas obscenas na rede

mundial de computadores, na sala que era o quartel-general deles.

O Rato Louco desta vez estava com sorte. Ou não, como se verá

mais adiante.

Rato Louco pulara o muro alto. Era um exímio escalador.

Agora ia invadir a casa por uma das janelas.

Iria roubar algo, nem que fosse apenas um maldito notebook.

Precisava fazer dinheiro para comprar a maldita droga.

O crack transformara Rato Louco num incrível ladrão. E como

estava fora de cogitação ter que trabalhar para sustentar o demoníaco vício,

teve que apelar para o furto.

Rato Louco Fazia jus a seu apelido, pela ousadia e sucesso em

invadir residências.

Entrou na casa e caminhava por um corredor. Foi quando ele

caminhava sorrateiramente que ele deparou-se com o horrendo ingnúkle, que

parecia estar ocupado em seus afazeres macabros, já que tinha o dom da

ubiquidade.

Rato Louco pensou: Um anão?Talvez um mordomo anão!

Ah!Ah!Ah!

Mas o ingnúkle não era um mero anão. O ingnúkle falou:

─ És um ladrão. Um rato humano. Tens sorte, verme , pois tenho

coisas mais importantes para fazer. Não obstante, irei te dar uma lição rápida

por teres atravessado o meu caminho, irás rodopiar tua mente no caos da

loucura de visões, o que não poderia ser visto por humanos em vida, pelo

menos, sem enlouquecer.

Então o ingnúkle soltou uma espécie de jorro energético ou

relâmpago pelos dedos que foram atingir em cheio a testa porejada de suor

do Rato Louco, que caiu meio zonzo ao chão, os olhos esgazeados e a língua

para fora.

O ingnúkle se foi.

E o Rato Louco?

Sam Rato Louco tentava não sucumbir à loucura, no paroxismo do

horror de ter visto os abismos de golfos atemporais do grande além, as

sombras negras que aguardam o bicho humano. Levantou-se com

dificuldade, e , cambaleando, procurava achar a janela pela qual pulara, para

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ir embora o quanto antes dali, porque mesmo louco, o instinto de

sobrevivência lhe dizia que a morte rondava, próxima.

─ Eu vi o horror... As sombras negras e rastejantes... Presente,

passado e futuro... O horror, o horror!...Pra baixo, sempre e sempre, pra

baixo, rodopiando e rodopiando, sempre, nas esferas além do tempo e da

morte!...

* * *

Trêmula, Alice parecia ainda não acreditar no que acabara de ver

pelo televisor encantado. Ela desejara sim vingar-se de Morgana, matá-la até,

contudo não daquele jeito sangrento, desumano, horrendo.

Alice derramou uma lágrima de medo. Medo misturado com

arrependimento, numa amálgama sombria.

Ela mexera com forças ocultas, sobrenaturais. Evocara uma entidade

sarcasticamente maligna, um ser meio demônio e meio gnomo ou duende,

uma criatura estranha e terrível do mundo invisível, do além, tão cruel como

a morte. E agora... O seu vingador do além estava fora do seu controle, e ela

não sabia como todo aquele delírio sangrento e apavorante de medo e horror

iria terminar. Em seu íntimo, ela rezava para que tudo não fosse um pesadelo

dantesco. Mas não era, oh! Não era!...

Na tela do televisor, o ingnúkle indagou:

─ Assustada, minha cara?

─ Um pouco... – fez uma pausa e prosseguiu nervosa. - Oh,

Morgana não prestava, mas... Eu... Eu... Apenas queria que tu desses um

susto nela e...

─ Susto? Ela merecia muito mais. Sabes o que ela fez?... Incutiu na

mente insana de teu pai a idéia de dar cabo de sua mãe, mandá-la para os

confins do inferno, para ser mais claro.

─ Meu Deus!...Então foi ela? ─ indagou Alice, abismada.

─ A cadela fez com que seu pai desse um jeito de danificar o freio

do veículo que vocês chamam de automóvel. O veículo que sua mãe dirigia

nos momentos que antecederam aquilo que vocês humanos denominam de

morte.

─ Papai?!

─ Sim, seu pai é cúmplice do assassinato de sua mãe. E digo que o

canalha terá a mesma sorte de sua cadela... Uma morte violenta!

Alice estava em prantos, agora. Eram lágrimas inconsoláveis nas

sombras da noite dos condenados.

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─ Agora, ouça-me, Alice – prosseguiu o monstrengo. – Nesse exato

momento, o cão que tu chamas de pai dirige-se para esta casa; uma força

irresistível o traz de volta, adiando seus compromissos. É a força da sina, do

irresistível fadário de um condenado, a porta do inferno se abrindo e o

aguardando...

E o ingnúkle expeliu de sua boca horrenda uma gargalhada sinistra

que ressoou com o mesmo timbre dos gongos dourados nos templos do

inferno.

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Capítulo 20

Morte! Morte! Morte!

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Ivan estacionou seu carro. Saltou ligeiramente para escapar da chuva

que caía. Ele subiu apressadamente a escadaria da entrada da mansão, quase

tropeçando num degrau.

Tudo na escuridão. Nem sinal dos seguranças. Aqueles inúteis!

Onde estarão? Eles são pagos para serem os cães de guarda da casa, não

para ficarem por aí, na ociosidade!

A chuva aumentava. Grossos pingos despencavam do céu.

Não sei por quê, mas tive uma sensação estranha horas atrás, algo

como um premonição. Pressinti que alguma coisa de errado estava

acontecendo aqui, por isso resolvi voltar, adiando a viagem de negócios,

pensou Ivan.

Quando notou que a casa estava completamente às escuras, teve

então a certeza de que algo anormal estava acontecendo por ali. Quase toda a

criadagem fora dispensada, naquela noite, devido ao feriadão em

Maremontes, que seria no dia seguinte. Mas ele sentia que algo ia errado, ali.

Continuou pensando:

Que diabo terá havido? A casa está às escuras! Seja o que for...

Retirou do bolso interno do blazer uma pequena pistola automática,

antes de concluir:

...Estarei preparado para o que der e vier!

Subindo velozmente a larga escada em caracol, Ivan alcançou o

corredor. Estava arfando, a arma em riste numa das mãos, o isqueiro aceso na

outra, iluminando a escuridão de breu em que mergulhara o interior da casa.

Súbito, deparou com Sombra, o gato preto, a boca do felino ainda

pingando sangue, o sangue de Morgana, o qual ficara acumulado quando o

bichano, transformado então em pantera negra, a atacara impiedosamente.

À luz da pequena chama do isqueiro, auxiliada pelo clarão efêmero

do relâmpago que atravessara o vidro da claraboia, o gato preto tinha um

aspecto aterrador, demoníaco. Ivan assustou-se com o bichano, e

instintivamente, atirou, matando o felino.

Praga do inferno! No susto, atirei sem raciocinar. É só o maldito

gato preto de Ivan!, pensou ele, o coração rufando no peito como um tambor

num carnaval de terror.

Ele seguiu pelo corredor, deixando o gato preto morto para trás.

Iluminava o caminho adiante com a luz bruxuleante da pequena chama do

isqueiro.

Então, da escuridão surgiu repentinamente o terrificante ingnúkle.

Ivan sobressaltou-se com o avejão, vociferando, atrabiliário:

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─ Mas o que é isso?... Quem diabos és tu? Suponho que sejas um

miserável ladrão!...Sim, um maldito anão feioso, fantasiado com uma roupa

estranha e antiga, invadindo a casa dos outros!...Palhaço!...Ladrões é o que

não faltam nesta cidade de miseráveis. Fique parado aí!...Seguranças! Onde

estão vocês, seus imprestáveis!

─ Ah, sim! Os seguranças!...Foi bom teres me lembrado! – falou o

ingnúkle, sarcástico. – É hora do meu repasto!

O ingnúkle retirou do bolso alguma coisa. Eram eles, os

seguranças.Apavorados, os cincos negros musculosos não conseguiam

entender como tinham sido transformados em miniaturas de homens. Alguns

deles pensavam que estavam vivenciando um pesadelo. Vestidos de terno e

gravata pretos, eles pareciam vítimas liliputianas na palma da mão do

ingnúkle, que para eles era a mão de um gigante impiedoso. Em desespero,

alguns deles sacaram seus revólveres, atirando no ingnúkle, enquanto

gritavam de raiva e medo.

Ao ser atingido pelas minúsculas balas, o ingnúkle disse, sardônico:

─ Oh! Mas o que me atinge? Serão insetos que me picam? Bem, se

são insetos, hei de esmagá-los!

E os infortunados negros simplesmente foram esmagados pela outra

mão do ingnúkle. Depois eles foram engolidos, alguns ainda vivos e urrando

de dor por terem os ossos esmigalhados, puderam ver, não sem horror, a

bocarra imensa escancarada como o grande portal da morte.

O ingnúkle, após engolir os homens negros que fazia a segurança da

mansão, pôs-se a eructar. À rápida sucessão de arrotos, seguiu-se comentário

jocoso do ingnúkle:

─ Espero que esses tolos não me dêem uma indigestão...ou

flatulências, como acontece com os humanos.

Ivan, por seu turno, tinha ficado estupefato, mas logo conseguiu

murmurar:

─ Mas que loucura toda é essa? Quem diabos pensas que és, anão,

com essas tolas magias de circo?

─ Quem sou? Bem, com certeza sou muito pior que um simples e

reles anão de circo ou larápio. Fique, pois, sabendo que eu vou te matar.

Primeiramente arrancar-te-ei a caixa craniana, bem como teu cérebro

degenerado, para degustá-lo como acepipe.

Ivan olhou o ingnúkle fixamente. Falou:

─ Ah, é? Matar-me?...Escroto!...Maldito anão hipnotizador ou

mágico de circo e ladrão, é isto que provavelmente és! Um ladrão

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hipnotizador sim, que usa seus truques de hipnose para dominar e amedrontar

as vítimas das casas que roubas! A mim não enganas, escroto!

─ Tolo humano! Não fiz truque algum. A matéria é totalmente

maleável à minha vontade invencível. Para quem possui a chave dos segredos

cósmicos, nada é impossível! Irei te matar, sim! Morte! Morte! Morte!...

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Epílogo

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─ Não irás matar coisa alguma, anão safado! ─ Ivan perdia a

paciência.

─ É o que veremos tolo humano! ─ havia deboche e ira na resposta

do ingnúkle.

─ Acho que tu te pintas todo de verde na tentativa de assustar tuas

vítimas. Não me assustas, nanico idiota! O negócio comigo é na bala! Vou te

mandar para os esgotos do inferno, seu anão filho de uma vaca! – berrou

Ivan, fazendo mira com a pistola, apontando-a para a cabeça do homúnculo

do além.

─ Mandar-me para os esgotos do inferno? Não eu. Tu é quem irás

apodrecer por lá, humano. Mas antes saibas que esta não é a minha única

forma. Na verdade, nós os ingnúkles somos seres proteus, temos a

maravilhosa habilidade de nos transformar no que bem entendermos. Nós

podemos tudo, verme desprezível do lodo da terra!

De repente o vingador do além começou a derreter-se todo, como se

fosse um boneco de cera dentro de uma fornalha. Num instante, ele havia se

transformado num monte de gosma esverdeada, fervilhante, fumegante,

pútrida. E então aquela gosma asquerosa começou a tomar uma nova e

apavorante forma: virou uma criatura ainda mais medonha, repleta de

tentáculos mortíferos, um horror de configuração grotesca, algo como uma

espécie de água-viva ou polvo gigante gosmento, uma bestial criatura

gelatinosa cuja fedentina era insuportável.

Diante de tal metamorfose de horror sobrenatural, Ivan atirou várias

vezes, porém as balas atravessavam como se varassem uma montanha de

lama quente e fumegante; as balas não surtiram efeito no ente sobrenatural

abominável.

─ Não! Isso tudo é loucura, um pesadelo, um delírio fantástico, algo

como uma alucinação maldita provocada por algum tipo de droga

alucinógena! Isso não pode estar acontecendo, recuso-me a acreditar! –

gritou Ivan, perdido em seu espanto, sua mente perturbada diante da verdade

tangível do sobrenatural.

─ Trate de acreditar, humano. Senão irás morrer negando a verdade:

o cosmo e suas maravilhas vão muito além do que supõe tua vã filosofia de

reles mortal! – disse o ingnúkle rispidamente, a voz do ente monstruoso do

além soando mais gutural e medonha, parecendo vir das fossas imundas de

algum antro pútrido do inferno.

Um dos tentáculos gelatinosos agarrou Ivan pelo pescoço, que

gritava de pavor e dor. E Ivan teve então sua cabeça separada do corpo por

um desses tentáculos cruéis; foi como se a criatura houvesse destampado

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uma garrafa de vinho espumante – no caso, a garrafa era o corpo de Ivan, a

tampa era sua cabeça, o vinho...era o seu sangue!

Os tentáculos largaram o corpo decapitado de Ivan, depois disso. O

sangue jorrava denso, rubro, quente, manchando de morte a madrugada.

A tempestade prosseguia em sua interminável fúria sobre toda a

cidade de Maremontes.

Subitamente, um raio terrível caiu sobre a mansão Loyola, como um

castigo decretado por uma justiça superior à dos pobres mortais.

Rapidamente as chamas começaram seu bailado destruidor, alastrando-se por

todo o solar, transformando-o numa fornalha infernal.

Alice parecia estar totalmente catatônica. Sua expressão lívida de

terror atingia o máximo de feiura, dando-lhe um aspecto de estátua de

mármore talhada por um escultor possesso. E breve as chamas alcançariam o

seu quarto, e ela, Alice, morreria também.

A visão dantesca da morte de seu pai parecia ter-lhe arrancado boa

parte de sua sanidade mental. O televisor encantado mostrara tudo, ao vivo,

detalhadamente.

Alice não suportara aquele espetáculo de horror. Sua mente não

aguentara. Alice estava em estado de choque, à beira do colapso da loucura

mais negra.

Agora a fumaça sufocante do incêndio provocado pelo raio já

começava a tornar a respiração de Alice bem mais difícil, mas ela parecia

alheia a tudo, até mesmo a aproximação da morte. Parecia que sua mente

enlouquecida rodopiava como um carrossel de demônios loucos.

Então, bem de repente, uma voz sepulcral, como que vinda das

trevas do além-túmulo, se fez escutar, em meio ao crepitar infernal das

chamas que devoravam famélicas a mansão Loyola.

─ Alice!...Alice!...Aliceeeee!...

De algum modo Alice reconheceu a voz. Era a voz de sua finada

mãe, Kaliandra!

Alguma coisa fantástica semelhante a um ectoplasma surgiu,

destacando-se entre a fumaça e o clarão do incêndio. Um vulto branco,

espectral, assustador. Um abantesma, a sombra de Kaliandra Loyola!

Era de fato o fantasma da mãe de Alice.

A voz espectral continuou:

─ Venha comigo, Alice!...Venha com sua mãe, querida! Não tenha

medo da morte, criança, porque ela, a morte, é apenas um grande susto.

Venha comigo, deixe este mundo de desgraçados. Cumpriu-se a sina de seu

pai, a nossa e a das outras duas megeras, cumpriu-se um fadário de réprobos!

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A voz do ingnúkle, ainda sob aquela forma dantesca repleta de

tentáculos, vinha do meio das chamas, inquirindo com tom cavernoso:

─ Minha senhora, irei embora agora. Não suporto mais as

emanações pútridas da alma humana!

O espectro de Kaliandra, já de mãos dadas com Alice, respondeu,

severo:

─ Vá, criatura desprezível das cloacas do além! Já me serviste, foste

uma ferramenta eficaz com que perpetrei minha vingança. Serviste-me

perfeitamente para meus propósitos nefandos. Torna, pois, a teu lugar, aos

antros do reino invisível. Afinal, não tens tanta culpa assim, mas de qualquer

forma, és tão cruel quanto nós, humanos.

Alice olhou para trás, numa última olhada para o mundo que estava

prestes a deixar, aquele estranho e triste palco ilusório, crisol de almas ─ o

mundo físico, um mundo onde tudo parece acabar em dor, violência e morte!

Sobre o leito, ela viu o seu próprio corpo material queimando,

consumido por chamas vorazes, e então ela sentiu que já estava fora do

corpo, em espírito, e ela compreendeu tudo.

A evocação que fizera na verdade não dera tão certo como ela

pensara. Ela fora apenas um mero canal, tão-somente um inocente

instrumento usado pelo espírito de sua mãe, Kaliandra Loyola, um espírito

ainda preso aos grilhões das paixões terrenas obscurecedoras, uma bruxa que

conseguiu realizar sua vingança, mesmo estando morta, valendo-se de uma

obsessão à sua própria filha, fazendo, destarte, com que Alice evocasse o

ingnúkle para a consumação da vingança.

A garoa que agora caía não era o suficiente para apagar a fúria das

chamas, que auxiliadas pelo vento sul que varria toda a sombria cidade de

Maremontes, brevemente destruiria por completo a suntuosa mansão de

imponente arquitetura neoclássica.

─ E agora, mamãe? Para onde vamos? – quis saber o espírito de

Alice, lúgubre.

─ Para junto de teu pai, querida! – respondeu o espírito de

Kaliandra, uma aura de tristeza circundando-a. – Uma família precisa ficar

unida, mesmo na morte!

─ E onde está papai? Para onde iremos, afinal?

─ Teu pai está no inferno, filha, e para lá iremos nós duas, também!

Teu pai nos espera, no inferno!

Assim como seu pai, Alice e sua mãe iriam pagar por todos os

pecados, saldando todas as dívidas espirituais num canto infernal do grande

além.

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E, pelo menos para os maniqueístas, ficou provado nesta história

que, aqueles que devem a Deus, pagam ao Diabo!

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