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TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009 p.176-201E
VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA
(1988-2008): ALGUMAS REFLEXÕES A RESPEITO DA
CATEGORIA “REMANESCENTES DE QUILOMBOS”
Carlos Eduardo Marques
RESUMO
Busca-se neste artigo, através de uma breve
discussão revisória, demonstrar que apesar da
necessidade de se conhecer a definição histórica
de quilombo, a mesma não se aplica de forma
adequada à categoria remanescentes de quilombo
ou quilombolas. Por ser um constructo, tal cate-
goria só atinge sua plenitude na interface entre
os discursos antropológico, jurídico e quilombola
(nativo), bem como dos movimentos envolvidos
com a temática. Opta-se por focar a análise a
partir da Constituição Federal de 1988, obser-
vando a necessária transdisciplinaridade entre
os campos do saber antropológico e jurídico.
Ao final, recomenda-se que a prática do Direito
nesta temática seja sempre pautada por uma
visão hermenêutica.
PALAVRAS-CHAVE
remanescentes de quilombos
antropologia
direito
Estado democrático
177
INTRODUÇÃO
Os desafios colocados à democracia brasileira ampliam-se a cada dia. As exigências
de ordem teórica e prática têm expandido o leque de questões a serem considera-
das. Constantemente, novos atores sociais, novas questões e novos dilemas têm
apresentado elementos que revelam as contradições e as possibilidades de avanço
da democracia e do processo de emancipação social, em uma perspectiva que res-
ponde às questões de uma cidadania que requer simultaneamente reconhecimento
da diferença, redução das desigualdades e inclusão através da redistribuição mais
eqüitativa de recursos.
Dentre os desafios impostos às democracias encontram-se várias lutas e
movimentos por direitos coletivos que mobilizam questões identitárias, mate-
riais e simbólicas como, por exemplo, as terras tradicionalmente ocupadas por
quilombolas, indígenas, babaçuais livres, castanhais do povo, faxinais e fundos
de pasto, entre outros (Almeida 2006). Eles se organizam em torno de questões
diferentes, mas que, em última instância filiam-se a objetivos semelhantes como
as lutas contra a profunda iniqüidade e/ou a opressão que impede a manifestação
das diferenças, da pluralidade social e cultural, bem como de patamares mais
igualitários de acesso a bens materiais e simbólicos.
Constantemente tais lutas, ou a resolução desses conflitos, têm sido debatidas
sob o domínio das instituições jurídicas. Este processo de jurisdicionalização pode
ser entendido, em uma sociedade democrática para os operadores do campo das
ciências sociais ou em um estado democrático de direito para os operadores do
campo jurídico, como um modo profícuo de ampliação e efetivação da cidadania.
No entanto, para que de fato cumpra-se esse papel é necessário que tal jurisdicio-
nalização opere dentro de uma hermenêutica jurídico-constitucional.
A etimologia da palavra quilombo, segundo o Dicionário Aurélio (1988) significa
“s.m. bras. Valhacouto de escravos fugidos”. Dito de outra maneira, quilombo de-
signa os redutos constituídos pelos negros fugidos da escravidão no Brasil Colonial
e Imperial. Segundo Blanco e Blanco (http://www.filologia.org.br/ivjnf/15.html):
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E178
O dicionário do Brasil Colonial nos informa que a palavra quilombo é
originária banto (língua africana) kilombo e significa acampamento ou
fortaleza e foi usada pelos portugueses para denominar as povoações
construídas por escravos fugidos.
A idéia de quilombo percorre há longo tempo o imaginário da nação e é uma
questão relevante desde o Brasil Colônia, passando pelo Império e chegando à
República. Concorda-se com Leite (2003) quando esta afirma que tratar do tema
quilombos e dos quilombolas, ainda na atualidade, é tratar tanto de uma luta
política quanto de uma reflexão científica em processo de construção.
O QUILOMBO ENQUANTO DEFINIÇÃO CIENTÍFICA
O que se pretende em uma seção com tal denominação? Um inventário da definição
científica de Quilombo? Tudo indica que sim, embora não seja esta a pretensão,
pois, como bem definido por Mata:
[...] a realização de um inventário prévio de ‘tudo’ o que se publicou a
respeito? Ora, tal pressuposto não é apenas irrealizável. Ele é, em si
mesmo, irrelevante do ponto de vista epistemológico. Somente aqueles
ainda presos a uma concepção de ciência marcada pelo que os pensa-
dores acima [MATA se refere à Simmel, Webber, Schütz] chamaram de
‘realismo ingênuo’(noção sem dúvida menos dada a equívocos que a de
‘positivismo’) se oporiam a tal esforço sob o argumento de que uma base
empírica ‘insuficiente’ inviabiliza toda e qualquer forma de compreensão
(Verstehen) do passado. (Mata 2005: 73-74, grifo nosso).
Pretende-se apenas explorar alguns conceitos que ajudam a definir a idéia
de Quilombo. As definições são amplas e variáveis, alternando de acordo com a
perspectiva de quem as elabora e com qual finalidade o faz. Sendo assim, esse
exercício consiste em uma pequena revisão bibliográfica com a intenção de
apresentar as diferentes concepções na elaboração da categoria quilombo e que,
posteriormente, influenciaram direta ou indiretamente na construção da categoria
remanescentes de quilombos.
Segundo Guimarães (1983), para se identificar um quilombo pouco importa
seu tamanho e o número de negros fugidos que o compõem, mas sim seu traço
marcante, que é a negação do sistema escravista. O autor adere às correntes de
pensamento do século XVIII, segundo as quais existiria quilombo onde houvesse
179VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
negros fugidos, e às teorias de caráter marxista em que o quilombo é a negação
do poder constituído.
A noção de quilombo adotada por Guimarães (1983) baseia-se numa premis-
sa filosófica e política: a busca pela liberdade através da negação de um sistema
opressivo. Sua definição pode constituir uma análise marxista-leninista, pois os
quilombos passam a ocupar o lócus de resistência das classes oprimidas, a primeira
gesta de um movimento revolucionário na acepção marxista do termo.
Assim, o autor em estudo é tributário das análises de Décio Freitas e Clóvis
Moura1, para quem o quilombo representaria um microcosmo das lutas sociais
brasileiras, embriões revolucionários em busca de uma transformação social e,
por essa característica, poderiam ser associados inclusive à luta armada em um
contexto como o de combate à Ditadura Militar, período no qual tais autores
elaboraram suas idéias.
Embora esse movimento intelectual tenha representado um avanço nas
discussões referentes às questões dos conflitos sociais e étnico-raciais e um apro-
fundamento no que concerne à investigação histórica e factual, pouco se estudou
do fenômeno em si.
Em contraposição à corrente político-marxista2 de análise do fenômeno qui-
lombo, poder-se-ia falar de uma corrente tecnicista, em que a melhor maneira de
definir quilombo passa pela busca de certos traços em comum, por uma tipologia
na qual o acento são as dimensões espaciais, o número de membros e as atividades
econômicas desenvolvidas.
Schwartz (1994) considera que um quilombo com até cem membros deveria
ser considerado pequeno. Gomes (1996) fala em uma divisão entre mocambos
e quilombos, os primeiros se dividindo em dois tipos: os pequenos mocambos
(entre 10 e 30 integrantes), os médios mocambos (com duas ou três centenas de
1 Para uma melhor compreensão da figura de Clóvis Moura e de sua sociologia sugere-se a
leitura do artigo “Clóvis Moura e a Sociologia da Práxis” de Érika Mesquita. Segundo a autora,
Moura pode ser classificado como um intelectual revolucionário, com uma postura crítica
e uma proposta radical de mudança da sociedade. Por esse motivo, ainda segundo Érika
Mesquita, ele não se preocupou em fazer carreira acadêmica, mas sim em contribuir com
uma interpretação, no mínimo, autêntica da realidade brasileira. Para maiores informações,
cf. Mesquita (2003)2 Aqui se faz necessário explicar ao leitor que a opção por classificar esses movimentos teóricos
em correntes e denominá-los em corrente político-marxista e em corrente tecnicista foi uma
opção metodológica deste autor. A opção por adotar esta tipologia acredita-se contribuiu para
o melhor desenvolvimento da dissertação da qual este artigo também é produto. Sou grato ao
parecerista anônimo que me chamou a atenção para a necessidade de esclarecer este fato.
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E180
integrantes) e só depois poder-se-ia considerar o quilombo. Por sua vez, Röhring-
Assunção (1996) elabora uma classificação com base na localização geográfica e nas
atividades econômicas e, do cruzamento das duas variáveis, conclui pela existência
de três formas básicas de quilombos, diferenciadas em razão de sua independência
econômica em relação aos núcleos de povoamento rural ou urbano: os pequenos
quilombos (próximos das fazendas), os quilombos de economia de subsistência
relativamente desenvolvida (com eventual comercialização de excedentes) afas-
tados dos núcleos de povoamento rural ou urbano, e o grande quilombo de base
agrícola e minerador, também afastado dos núcleos de povoamento rural ou
urbano. Em contraposição aos autores acima, Mata (2005) cria uma classificação
dos quilombos marcada pelo critério morfológico e não aritmético 3.
As definições acima pouco conceituam o quilombo como unidade viva e, de
certa forma, se aproximam das definições arqueológicas de quilombo. Veja a
definição arqueológica de quilombo encontrada em Arruti:
quilombos são os sítios historicamente ocupados por negros que tenham
resíduos arqueológicos de sua presença, inclusive as áreas ocupadas ain-
da hoje por seus descendentes, com conteúdos etnográficos e culturais
(Revista Isto É, 20/06/90: 34 apud Arruti 2003: 14).
Apesar de se diferenciarem nas opções teóricas, as correntes político-marxista
e tecnicista bem como a arqueologia, adotam uma definição histórica e passa-
dista de quilombo, entendendo-o como um lugar que encerra uma tradição, um
patrimônio histórico. Para Almeida (2002), as definições arqueológicas, as quais
acrescento a que classifiquei de tecnicistas, têm como características a presença
de cinco elementos marcantes: 1) a fuga; 2) uma quantidade mínima de fugidos;
3) o isolamento geográfico, em locais de difícil acesso e mais próximos de uma
natureza selvagem do que da chamada civilização; 4) moradia habitual, referi-
da no termo rancho; 5) consumo e capacidade de reprodução, simbolizados na
imagem do pilão de arroz.
3 Nas palavras do próprio autor: “O que está em questão não é simplesmente o numero de quilom-
bolas, mas as ordens de grandeza a partir das quais se podem identificar tipos sociais distintos.
Uma classificação adequada dessas formas de resistência coletiva deve obedecer a um critério
morfológico, e não puramente aritmético” (Mata 2005: 83). O autor em análise desenvolve um
interessante trabalho, em que a questão quilombola é referenciada, como ele próprio denomina,
a partir da chamada sociologia compreensiva (p.73). Contudo, entende-se que o autor, a despeito
de uma sofisticação no trato com a tipificação, também pertence, tal como os demais autores que
analisamos, à corrente tecnicista, uma vez que o acento principal se encontra ainda em uma
tipologia e não no direito soberano a auto-classificação e no conceito de etnicidade.
181VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
Para Almeida (2002) essa visão é insatisfatória por dois motivos: primeiro,
é possível encontrar várias exemplificações que contrariam tais características,
como é o caso das comunidades estudadas por ele no Maranhão; e segundo, prin-
cipalmente porque nesta visão:
[...] o quilombo já surge como sobrevivência, como ‘remanescente’. Re-
conhece-se o que sobrou, o que é visto como residual, aquilo que restou,
ou seja, aceita-se o que já foi. Julgo que, ao contrário, se deveria trabalhar
com o conceito de quilombo considerando o que ele é no presente. Em
outras palavras, tem que haver um deslocamento. Não é discutir o que
foi, e sim discutir o que é e como essa autonomia foi sendo construída
historicamente. Aqui haveria um corte nos instrumentos conceituais
necessários para se pensar a questão do quilombo, porquanto não se
pode continuar a trabalhar com uma categoria histórica acrítica nem
com a definição de 1740. (Almeida 2002: 53-54)
Em seu lugar, o autor defende a adoção da observação etnográfica, método
através do qual seria possível romper com a visão que ele denomina frigorificada,
de quilombo, isto é, composta dos mesmos elementos descritivos contidos na
resposta do Conselho Ultramarino ao Rei de Portugal, em 17404. Ainda conforme
o autor:
[...] é necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da defini-
ção histórica strictu sensu e das outras definições que estão frigorificadas
e funcionam como uma camisa-de-força, ou seja, da definição jurídica dos
períodos colonial e imperial e até daquela que a legislação republicana
não produziu, por achar que tinha encerrado o problema com a abolição
da escravatura, e que ficou no desvão das entrelinhas dos textos jurídicos.
(Almeida 2002: 62-63).
Como se verifica na passagem acima, o que caracterizaria um quilombo é a
produção autônoma, livre da ingerência de um senhor e não o seu isolamento,
consumo, capacidade de reprodução, moradia, etc5. Price (1973) por sua vez fala
4 O Conselho Ultramarino assim definiu Quilombo: toda habitação de negros fugidos que
passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se
achem pilões neles. Definição contida em Almeida (1996: 12).5 A este respeito ver os estudos de Lúcia M. M de Andrade (1995) “Os Quilombos da Bacia do
Rio Trombetas: Breve Histórico”; Siglia Z. Dória (1995) “O Quilombo do Rio das Rãs”; Rosa
Elizabeth A. Marin (1995) “Terras e Afirmação Política de Grupos Rurais Negros na Amazônia”
e o próprio Alfredo Wagner Almeida (2002) “Os quilombos e as novas etnias”, entre outros.
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E182
de “rebel slave communities”, o que permite sair da visão sem sujeitos e parado-
xalmente supra-histórica. Quilombo, a partir dessa nova re-significação, não é
apenas uma tipologia de dimensões, atividades econômicas, localização geográfica,
quantidade de membros e sítio de artefatos de importância histórica. Ele é uma
comunidade e enquanto tal passa a ser uma unidade viva, um lócus de produção
material e simbólica. Institui-se como um sistema político, econômico, de pa-
rentesco e religioso que margeia ou pode ser alternativo à sociedade abrangente.
No mesmo sentido, Carvalho (2006) afirma que não é possível reduzir a idéia de
quilombo às definições históricas, às idéias de isolamento, fuga ou mesmo a uma
suposta unicidade entre os quilombos, mas que eles devem ser considerados em
suas especificidades, cada grupo com suas características próprias:
É preciso considerar a diversidade histórica e a especificidade de cada
grupo e, ao mesmo tempo, o papel político desempenhado pelos grupos
que reivindicam o reconhecimento como “remanescente de quilombo”.
(Carvalho 2006: 01)
A RESSEMANTIZAÇÃO DA CATEGORIA DE “REMANESCENTES DE QUILOMBOS”
Como dito a categoria remanescentes de comunidades de quilombos confunde-
se no senso comum com a definição histórica e passadista de Quilombo tão bem
definida por Almeida (2002) como frigorificada, e por isso mesmo, trata-se de
uma concepção a ser superada, ou melhor, ressemantizada.
Tal ressemantização nos interessa, pois permite aos grupos que se auto-
identificam como remanescentes de quilombo ou quilombola uma efetiva parti-
cipação na vida política e pública, como sujeitos de direito. Além disso, a referida
re-significação afirma a diversidade histórica e a especificidade de cada grupo.
A ressemantização deste termo percorreu um longo caminho seja ele temporal ou
discursivo. A seguir de forma resumida explicaremos esse processo.
Como eixo para desenvolvimento do tema propõe-se o seguinte questio-
namento: De que se trata, portanto, os chamados remanescentes de quilombo,
ou Quilombolas? Pode-se responder que se trata de um fenômeno sociológico
Em comum estes estudos mostram que, ao contrário do que pensa certo senso comum e aca-
dêmico sobre a temática, os quilombos mantiveram grandes redes de informações e comércio
agrícola, minerador, extrativista com a sociedade envolvente, mas de maneira independente,
que funcionavam paralelamente a outras redes de perseguição. As populações negras que
viviam nos quilombos estudados estiveram inseridas tanto na economia regional quanto no
mercado mais amplo, com produção agrícola destinada a outras províncias.
183VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
caracterizado, segundo Almeida (2002) por: 1) identidade e território são indis-
sociáveis; 2) processos sociais e políticos específicos, que permitiram aos grupos
uma autonomia; 3) territorialidade específica, cortada pelo vetor étnico no qual
grupos sociais específicos buscam em face de sua trajetória, portanto, passado e
presente, uma afirmação étnica e política.
Tais grupos não precisam apresentar (e muitas vezes não apresentam) ne-
nhuma relação com o que a historiografia convencional trata como quilombos.
Os remanescentes de quilombos são grupos sociais que se mobilizam ou são mo-
bilizados por organizações sociais, políticas, religiosas, sindicais, etc., em torno
do auto-reconhecimento como um outro específico. Consequentemente ocorrem
buscas pela manutenção ou reconquista da posse definitiva de sua territorialidade.
Tais grupos podem apresentar todas ou algumas das seguintes características:
definição de um etnônimo, rituais ou religiosidades compartilhadas, origem ou
ancestrais em comum, vínculo territorial longo, relações de parentesco generali-
zado, laços de simpatia, relações com a escravidão, e principalmente uma ligação
umbilical com seu território, etc.
A idéia de quilombo, como afirmado, constitui-se em um campo conceitual
com uma longa história. No entanto, a definição histórica deve ser colocada “em
dúvida e classificado como arbitrária para que possa alcançar as novas dimensões
do significado atual de Quilombo” (Almeida 1996: 11). O significado atual é fruto das
“redefinições de seus instrumentos interpretativos”. O quilombo ressemantizado é
um rompimento com as idéias passadistas (frigorificadas) e com definições “jurí-
dico-formais historicamente cristalizadas”, tendo como ponto de partida situações
sociais e seus agentes que, por intermédio de instrumentos político-organizativos
(tais como os próprios grupos interessados, associações quilombolas, Ong’s, movi-
mentos negros organizados, movimentos sociais e acadêmicos), buscam assegurar
os seus direitos constitucionais.
Ocorre que, para tanto, os agentes quilombolas e seus parceiros precisam
“viabilizar o reconhecimento de suas formas próprias de apropriação dos recursos
naturais e de sua territorialidade” (idem: 12). Em outras palavras, precisam se
impor enquanto um coletivo étnico e, para tanto, não mais importa o arcabouço
“jurídico-formal historicamente cristalizado” a despeito dos quilombos, que existira
na estrutura jurídica colonial e imperial (sempre com características restritivas
e punitivas) e que se encontrava ausente do campo jurídico republicano até a
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988.6 Im-
6 Faz-se necessário reconhecer que para além dos citados José Maurício Arruti e Alfredo Wagner
Almeida foram e são figuras importantes nestes debates: José Augusto Laranjeiras, Ilka Leite,
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E184
porta aqui o direito adquirido no art. 68 dos Atos Dispositivos Constitucionais
Transitórios (ADCT).
O conceito anteriormente utilizado pela Fundação Cultural Palmares (FCP),7
que compreendia o quilombo por qualidades culturais substantivas e por sua
história de lutas pretéritas, bem como uma unidade guerreira e auto-suficien-
te, não era mais suficiente para responder aos anseios criados pelo dispositivo
constitucional.
Com a redefinição do termo quilombo, a nova sematologia retira o acento
da atribuição formal e das pré-concepções e passa a considerar a categoria
remanescentes de quilombo, como um auto-reconhecimento por parte dos atores
sociais envolvidos.
Aqui começa o exercício de redefinir a sematologia, de repor o significado,
frigorificado no senso comum. O estigma do pensamento jurídico (desor-
dem, indisciplina no trabalho, autoconsumo, cultura marginal, periférica)
tem que ser reinterpretado e assimilado pela mobilização política para ser
positivado. A reivindicação pública do estigma “somos quilombolas” fun-
ciona como alavanca para institucionalizar o grupo produzido pelos efeitos
de uma legislação colonialista e escravocrata. A identidade se fundamenta
aí. No inverso, no que desdiz o que foi assentado em bases violentas. Neste
sentido, pode-se dizer que: o art.68 resulta por abolir realmente o estigma
(e não magicamente); trata-se de uma inversão simbólica dos sinais que
conduz a uma redefinição do significado, a uma reconceituação, que tem
como ponto de partida a autodefinição e as práticas dos próprios inte-
ressados ou daqueles que potencialmente podem ser contemplados pela
aplicação da lei reparadora de danos históricos. (Almeida 1996: 17)
A lei exige a auto-proclamação como “remanescente”, entretanto o processo
de afirmação étnica historicamente não passa pelo resíduo, pela sobra ou “pelo
Eliana Cantarino O’Dwyer, Cíntia Beatriz Miller, Ricardo Cid Fernandes, Maristela Andrade,
João Pacheco de Oliveira, dentre tanto outros. O autor conhece e dialoga com a obra e com
todos estes autores através dos diversos encontros em que essa temática se faz presente bem
como através do GT Quilombos da Associação Brasileira de Antropologia. O autor reconhece
que sua opção por privilegiar dois autores pode ter esvaziado a diversidade do debate; a es-
colha se deu por uma questão de espaço. Agradeço mais uma vez a (ao) perecerista anônimo
que me chamou a atenção para este fato. 7 A Fundação Cultural Palmares – FCP é uma fundação do governo federal, cuja criação foi
autorizada pela Lei nº 7.668/88 e materializada pelo Decreto nº 148/92, com a finalidade de
promover a cultura negra e suas várias expressões no seio da sociedade brasileira.
185VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
que foi e não é mais”, senão pelo que de fato é, pelo que efetivamente é e é vivido
como tal. A antiga sematologia (mais preocupada com o que foi) era a balizadora
da definição da FCP, que poderia ser resumida na expressão pedra e plástico.
De fato, as primeiras iniciativas da FCP em responder às demandas que sur-
giam pela aplicação do artigo constitucional se deram por meio da constituição
de uma Subcomissão de Estudos e Pesquisas (formada por técnicos da FCP e do
Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural – IBPC) e por uma Comissão Inter-
ministerial, que tinha a tarefa de
identificar, inventariar e propor o tombamento daqueles sítios e popu-
lações que descendem da cultura Afro-brasileira, que deverão, após o
laudo antropológico, ser reconhecidos como remanescentes de quilombos
através da FCP, tão logo se regularize o Art. 68.8
Assim para os órgãos governamentais o que prevalecia era a noção histori-
cista, arqueológica e objetificadora de preservação cultural, particularmente no
tocante ao patrimônio de característica material (um lugar definido externamente,
geograficamente determinado, historicamente construído e, talvez documentado
ou um achado arqueológico). Ocorre que essa visão não poderia ser aplicada aos
quilombolas, eles próprios exemplo de patrimônio tangível e intangível 9.
As práticas de preservação histórica são vistas como uma forma de se preservar
qualquer objeto cultural que se encontre em um processo inexorável de destruição,
em que valores, instituições e objetos associados a uma cultura, tradição, identi-
dade ou memória, que pode ser de um grupo, de um local ou nacional, tendem a
se perder. O fato é que, como sugere Handler (1984; 1988 apud Gonçalves 1996),
os processos de invenção de culturas e tradições são fruto de uma objetificação
cultural. O que para Whorf (1978 apud Gonçalves 1996), “refere-se à tendência
da lógica cultural ocidental a imaginar fenômenos não materiais (como o tempo)
como se fosse algo concreto, objetos físicos existentes”. A este respeito Wagner
(1975) lembra que:
8 Essa passagem se encontram no texto de Arruti (2003) com as seguintes referências bi-
bliográficas: Ofício do diretor de Estudos, Pesquisas e Projetos ao Subprocurador Geral da
República. 9 Na nova realidade legal brasileira, após a Constituição Federal de 1988, o patrimônio cultural
passa a ser formado tanto por seus bens de natureza material, quanto de natureza imaterial.
Na nova legislação a diversidade se consolida como força central no discurso através das
metodologias e nas práticas. Como uma estratégia de ação em oposição a um conceito de
cultura como civilização, erudição.
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E186
[...] a antropologia nos ensina a objetificar aquilo a que estamos tentando
nos ajustar (durante o trabalho de campo) como ‘cultura’, assim como o
psicanalista ou o xamã exorciza as ansiedades do paciente objetificando
suas fontes. (Wagner 1975: 08)
Assim, com os instrumentos e as concepções reinantes no chamado mundo
ocidental moderno, não é possível, sem um rompimento acadêmico com as teorias
dicotomizadoras que separam o material e o espiritual, avançar na realização de
trabalhos a respeito da promoção da cultura, no sentido adotado por Geertz (1978:
58): “A cultura acumulada de padrões não é apenas um ornamento da existência
humana, mas uma condição essencial para ela - a principal base de sua especificida-
de.” Portanto, a própria concepção de divisão material/imaterial deveria ser revista,
na busca por fazer reconhecer a voz da cidadania autônoma e auto-consciente dos
bens culturais, e não transformá-los em objetos do desejo, que, conforme Stewart
(1984), considera os objetos apenas em termos de uma presença/ ausência:
enquanto significantes, esses objetos são usados para significar uma
realidade que jamais poderá ser trazida por eles, uma realidade que será,
como todo objeto de desejo, para sempre ausente. As práticas de apro-
priação, restauração e preservação desses objetos são estruturalmente
articuladas por um desejo ‘permanente e insaciável’ pela autenticidade,
uma autenticidade que é efeito da sua própria perda. (Stewart 1984 apud
Gonçalves 1996: 25)
Em resumo, ao se essencializar esses patrimônios, perde-se a sua principal
característica, a vivacidade, um bem em movimento constante, dinâmico e vivo,
o que ele é, e o transforma em um objeto de desejo insaciável, a ser rememorado
a partir de uma definição externa a despeito de suas especificidades. Na versão
re-significada o termo remanescentes de quilombo exprime um direito a ser re-
conhecido em suas especificidades e não apenas um passado a ser rememorado.
Ele é a voz da cidadania autônoma destas comunidades.
A este respeito Sahlins (1990), já orientava o caminho a seguir: o abandono
do essencialismo, através da estrutura de conjuntura, que funciona como um
terceiro termo entre a estrutura e o evento, uma síntese situacional dos dois.
A cultura enquanto uma síntese entre estabilidade e mudança, passado e presente,
diacronia e sincronia, permite perceber a mudança como uma reprodução cultural,
como um diálogo simbólico da história.
Diálogo entre as categorias recebidas e os contextos percebidos, entre o sentido
cultural e a referência prática. Cada esquema cultural particular cria as possibi-
187VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
lidades de referências materiais para as pessoas de uma sociedade e, enquanto
esquema, ele é constituído sobre distinções de princípios, que, em relação aos
objetos, nunca são as únicas distinções possíveis.
A introdução do livro Ilhas de História deixa claro esta característica:
Mas como já disse em certo momento “o problema agora é de fazer
explodir o conceito de história pela experiência antropológica da
cultura”. As conseqüências, mais uma vez, não são unilaterais; certa-
mente uma experiência histórica fará explodir o conceito antropológico
de cultura – incluído a estrutura. (Sahlins 1990: 09) Ou então: “é a
realização prática das categorias culturais em um contexto histórico
específico, assim como se expressa nas ações motivadas dos agentes
históricos” (Sahlins 1990: 15).
Para Sahlins, a oposição entre evento e estrutura é uma ilusão. Do ponto de
vista do nativo, todo evento é exemplo concreto de uma estrutura ideológica e esta
reprodução estereotipada jamais poderá reproduzir perfeitamente a estrutura
mítica originária, sendo, na verdade, uma apropriação desta pelos indivíduos
pertencentes à estrutura e que sofre influências imprevisíveis de estranhos e de
forças naturais. A partir desta máxima, o autor elabora duas grandes proposições:
1- a transformação de uma cultura também é um modo de sua reprodução; e
2- no mundo ou na ação em atos de referência, as categorias culturais adquirem
novos valores funcionais. Os significados culturais, sobrecarregados pelo mun-
do, são assim alterados, e as relações entre as categorias mudam. A estrutura é
transformada.
O que Sahlins pretende ao propor sua teoria da história é fazer uma crítica
às distinções ocidentais que pensam a cultura como uma oposição entre história
e estrutura, ou ainda, entre estabilidade e mudança. Para o autor, esta dicotomia
que tem seu auge no apogeu do funcionalismo, não consegue explicar a cultura
das sociedades não ocidentais, pois, ao opor a estrutura à história, esse tipo de
pensamento não consegue demonstrar que a cultura funciona como uma síntese
de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia.
A maneira correta de se entender uma cultura seria pelo diálogo simbólico da
história, diálogo este realizado entre as categorias recebidas e os contextos per-
cebidos, entre o sentido cultural e a referência prática. As categorias pela qual a
experiência é constituída não surgem diretamente do mundo, mas de suas relações
diferenciais no interior de um esquema simbólico. Segundo Sahlins (1990: 188),
“em um certo estruturalismo, estrutura e história são antinomias; supõe-se que
uma negue a outra”. Entretanto:
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E188
[...] a ação simbólica é um composto duplo, constituído por um passado
inescapável e por um presente irredutível [...] a diferença reside na irredu-
tibilidade dos atores específicos e de seus conceitos empíricos que nunca
são precisamente iguais a outros atores ou a outras situações - nunca é
possível entrar no mesmo rio duas vezes (Sahlins 1990: 189).
A estrutura de conjuntura é uma ação simbólica comunicativa e conceitual
“uma prática antropológica total, contrastando com qualquer redução fenomeno-
lógica, não pode omitir que a síntese exata do passado e do presente é relativa
à ordem cultural, do modo como se manifesta em uma estrutura da conjuntura
específica” (Idem: 190). Em outras palavras a estrutura (as relações simbólicas
de ordem cultural) é um objeto histórico. A estrutura é a práxis, a mitopráxis.
Estrutura e evento são inseparáveis.
A estrutura não é o permanente, a diacronia não pode ser secundária ou su-
bordinada à sincronia. Não se pode separar sincronia e diacronia e nem mesmo
subordinar a segunda à primeira. No estruturalismo sahlinsiano o acento se dá
na semântica, ou seja, na busca pelo significado do simbólico, e não na sintaxe.
Pensar a ressemantização como uma definição pragmática das categorias e
das transformações entre elas, como pensou Sahlins ao analisar a estrutura social
havaiana e as mudanças provocadas pela chegada estrangeira, significa perceber
que o alcance lógico (a práxis) precede as transformações funcionais. Daí a repro-
dução da estrutura implicar sua própria modificação. Esse mesmo pensamento
pode ser aplicado à categoria remanescentes de quilombo que é fruto de uma
história na qual tanto seu significado semântico quanto sua operacionalidade
política são igualmente importantes.
Dito de outra forma, remanescentes de quilombo pode ser entendido como
aquilo “que os antropólogos chamam de ‘estrutura’” ou seja, “as relações simbólicas
de ordem cultural”. Nessa ressemantização funcional da categoria e dos processos
históricos, é que a mesma passa de uma convenção prescritiva, ou frigorificada,
que fala do passado, para uma invenção performativa, que fala para o presente.
É justamente essa reprodução da estrutura que implica em sua transformação.10
O que não é bem aceito pelo senso comum e por setores dogmáticos do campo
jurídico.
10 Agradeço aqui de forma especial a Profa. Dra. Deborah Lima, por sua crítica e comentário a
respeito dessa passagem quando do exame da dissertação. Tais críticas me permitiram re-
elaborar essa passagem de forma a tornar mais claro a construção, dito de outro modo me
permitiu explicitar do que se trata a convenção prescritiva e a invenção performativa.
189VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
ANTROPOLOGIA E DIREITO: DIÁLOGOS NECESSÁRIOS
A ciência jurídica tal qual conhecemos hoje é herdeira do iluminismo e de seu
racionalismo. Trata-se de uma aquisição da modernidade e especificamente do
liberalismo. A idéia de universalidade e do individualismo moderno, o que Dumont
(1985) chama de “individuo no mundo”, são claramente datadas e localizadas na
Europa em sua passagem entre a Idade Média e a Idade Moderna, época em que
também se organizam as primeiras escolas superiores.
É no contexto de sucessivas movimentações e revoluções no campo político,
filosófico, jurídico, científico, teológico, ideológico, etc. visando à derrubada do
ancient regime que se torna possível à universalização do indivíduo humano
como pertencente a um mesmo gênero portador de direitos. E neste quadro de
enorme dinamicidade e desencaixe entre tempo-espaço, nos termos de Giddens
(1991) que a idéia de justiça, temporal e espacialmente localizada, é apropriada
pelos jus naturalistas como um Direito Natural e transformada em um dogma
universal. A teoria dos direitos naturais baseia-se em um tripé: individualismo,
contrato social e Estado-Nação.
Segundo os jus naturalistas, o individualismo se explica a partir da consciên-
cia de que os indivíduos são anteriores a criação do Estado gozando, portanto, de
direitos naturais como à vida, à propriedade, à liberdade e à segurança. O Estado
é o resultante de um pacto hipotético ou não, denominado contrato social, através
do qual indivíduos livres em busca da superação do Estado de natureza (não im-
portando se o paraíso de Rosseau ou a guerra de todos contra todos de Hobbes)
fundam a sociedade civil. O contrato social, se por um lado exige a renuncia de
parte da liberdade inerente ao indivíduo, de outro funda um novo ente, o cidadão
ao qual se está garantindo direitos e deveres assegurados pelo Estado-Nação.
Por essa rápida descrição percebe-se que se trata de um projeto associado a
um tempo e lugar específicos, direcionado à classe revolucionaria vitoriosa desses
mesmos tempo e lugar (a Europa do século XVII e XVIII no período de ascensão
da classe burguesa ao poder) e, portanto, nada mais natural que a ênfase fosse
colocada no direito à liberdade, principalmente em uma liberdade de caracte-
rística negativa, ou seja, aquela que se qualifica e caracteriza pela imposição de
uma série de proibições, principalmente ao Estado no que se refere a esfera dos
direitos individuais.
Devido a essas características torna-se compreensível a opção, no plano do
discurso, do Direito pelo individuo homogêneo e abstrato:
[...] o Direito, nesse contexto, é entendido como uma qualidade moral
que compete à pessoa (qualitas moralis personae competens, segundo a
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E190
conhecida definição de Grocio), onde, portanto, o indivíduo ocupa o lugar
primeiro e central. Esse sujeito de direito, no cadinho de homogeneidade
e de unidade que lhe é correlato, é um ser abstrato, intercambiável, sem
qualidades. (Duprat 2007: 11)
Essa mesma autora esclarece, no entanto que o Direito em sua efetividade não
é cego às qualidades e as competências das pessoas. E na realidade brasileira “[...]
o sujeito de direito, aparentemente abstrato e intercambiável, tinha, na verdade,
cara: era masculino, adulto, branco, proprietário e são.” (idem: 13)
Se o Direito em sua efetividade não é cego, as melhorias para as minorias
políticas (que não raras vezes são maiorias demográficas) não são dádivas e
sim conquistas. Para Hannah Arendt (1989), estas conquistas, que se podem
denominar como direitos humanos não são um dado e sim um construído, e por
isso sujeito a um constante processo de construção e reconstrução, devendo ser
entendido como um espaço de luta e ação social seja no passado ou no presente
em busca da dignidade humana. Segundo Piovesan (2006: 07) “É neste cenário
que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma
e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea.”
Como nos lembra Sousa Santos (1997) uma efetiva justiça tem caráter bidimen-
sional: redistribuição e reconhecimento11
. Em outras palavras, é insuficiente tratar
o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata, tornando-se imperioso vê-lo em
suas especificidades12
. As efetivas proteção e promoção de direitos necessitam da
diversidade e, para tanto, da aplicação de políticas específicas ou diferencialistas,
endereçadas a grupos socialmente vulneráveis ou alvos preferenciais da exclusão.
11 Entende-se assim sua já hoje clássica afirmação: “As pessoas têm direito a ser iguais sempre
que a diferença as tornar inferiores; contudo, têm também direito a ser diferentes sempre
que a igualdade colocar em risco suas identidades.”12
A este respeito, décadas antes de Sousa Santos, Erhlich, em seu estudo do Direito Vivo (1999),
já chamava a atenção para este fato: “ainda menos, a ciência do direito e a teoria podem limitar-
se a esclarecer o que está na lei; elas devem investigar as formas reais de cada classe social e
lugar diferentes, mas que são uniforme e típicas em sua essência.” (p. 111). Desta forma Erhlich
chamava a atenção para o fato de que os códigos e as legislações serão sempre antiquados
em relação à vida ordinária, são sempre visões de uma parte da sociedade, intenção de um
legislador que nem sempre atinge os objetivos na prática. Para ele o “Direito Vivo não está
nas proposições jurídicas do direito positivo, mas é o que, porém, domina a vida. As fontes de
seu conhecimento são, antes de tudo, os modernos documentos; são também, a observação
direta da vida, do comércio e da conduta, dos costumes e dos usos e de todos os grupos, não
somente os reconhecidos juridicamente, mas também aqueles que passaram despercebidos
e que não foram considerados e, até mesmo, aqueles que a lei desaprovou” (p.112)
191VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
Se o direito à igualdade é fundamental, o direito à diferença também deve ser, uma
vez que estes se colocam ombreados em um mesmo nível. Para uma justiça efeti-
va, portanto, é necessário que se adote uma postura de soma e não de subtração.
Na equação, política universalista X política diferencialista deve-se privilegiar o
“e” em detrimento do “ou”: ou seja, a aplicação concomitante de políticas univer-
salistas e diferencialistas.
A conquista do Direito como um meio eficaz para a dignidade humana trata-
se de um processo:
Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualda-
de: a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante
a lei” (que, ao seu tempo, foi crucial para abolição de privilégios); b) a
igualdade material,correspondente ao ideal de justiça social e distributiva
(igualdade orientada pelo critério sócio-econômico); e c) a igualdade
material, correspondente ao ideal de justiça enquanto reconhecimento
de identidades (igualdade orientada pelos critérios gênero, orientação
sexual, idade, raça, etnia e demais critérios). (Piovesan 2006: 22-23)
É diante desta realidade que se promulga a Constituição Federal de 1988, na
qual o Estado Brasileiro é definido como multicultural e pluriétnico. Defronte ao
pluralismo da Constituição é necessário que a aplicação destas normas seja acom-
panhada de uma pluralidade jurídica hermenêutica e trans-disciplinar. Duprat
(2007: 16) aponta corretamente que para uma efetiva aplicação do direito aos
remanescentes de quilombos devem ser consideradas suas especificidades, pois do
contrário ao invés de uma conquista constitucional ter-se-á uma perpetuação do
quadro de exclusão social e racial.
A categoria remanescentes de quilombos é um construto que só atinge sua ple-
nitude na interface entre os múltiplos discursos, sejam estes antropológico, jurídico,
dos quilombolas (nativo) e dos movimentos envolvidos com a temática. Como já dito,
o marco legal para a re-significação da idéia de quilombo é a Constituição Federal
de 1988, que reconhece pelos novos instrumentos e termos jurídicos do art. 68 do
ADCT a categoria jurídica de remanescentes das comunidades de quilombo e, através
desta, o direito à “propriedade definitiva” das terras “que estejam ocupando”, assim
como a obrigação do Estado em “emitir-lhes os títulos respectivos”.
Na Constituição Federal,13
a categoria se encontra ordenada da seguinte maneira:
13 Chamada de a Constituição Cidadã por seu amplo caráter democrático, inclusivo, fruto da
mobilização e participação dos movimentos sociais, políticos, religiosos, ecológicos, etc.
reunidos sob a rubrica de “progressistas” e organizados em grande parte nos fins dos
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E192
Art 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
O texto constitucional pode ser considerado ambíguo e permitir várias leituras.
Uma interpretação, mais dogmática, entenderia que aos “sobreviventes” (os que
remanesceram) é dado o direito à propriedade definitiva. A interpretação dogmáti-
ca incorre em uma cilada para os coletivos étnicos quilombolas, uma vez que toda
a lei anterior à Constituição de 1988, quando se referiu à categoria quilombo, o
fez de forma negativa, considerando os quilombos uma chaga, uma organização
criminosa, algo que deveria ser combatido (período colonial e imperial, uma vez
que essa categoria desaparece nas constituições republicanas até a Constituição
de 1988). Portanto, se o texto desse dispositivo for tomado em sua interpretação
literal, não é possível nem mesmo falar-se em “remanescentes de quilombo”. Como
lembra Almeida (1996):
Admitir que era quilombola equivalia ao risco de ser posto à margem.
Daí as narrativas míticas: terras de herança, terras de santo, terras de
índio, doações, concessões e aquisições de terras. Cada grupo tem sua
estória e construiu sua identidade a partir dela. Existe, pois, uma atua-
chamados anos de chumbo da Ditadura Militar. A feição cidadã de nossa Constituição,
por influência desses movimentos, permite sermos, ainda que somente na teoria e não na
prática, uma das sociedades mais avançadas em termos constitucionais, quer no campo
dos direitos humanos, dos direitos de minorias, dos direitos sociais e previdenciários,
quer em relação a temáticas específicas, tais como o direito das crianças e dos adolescen-
tes, dos portadores de necessidades especiais, ou o que nos apetece em particular neste
estudo, os direitos de grupos étnicos específicos, tais como indígenas e quilombolas.
É necessário reafirmar que tais direitos não são uma dádiva do poder legislativo reunido
na Constituinte, e sim, uma conquista árdua e tensa dos movimentos sociais, em torno
de cada um dos artigos constitucionais. Torna-se necessário também afirmar que essas
conquistas não são definitivas, estando em constante disputa com outras forças ativas da
sociedade, que vêem esses direitos como nocivos. Podemos afirmar sem dúvidas - para
nosso lamentar, diga-se de passagem - que esses direitos de cidadania encontram-se atu-
almente bastante ameaçados tanto pela política de Estado Mínimo, quanto, no discurso
das forças “conservadoras”, dominante nos meios ideológicos e burocrático-administra-
tivos do poder público. Ainda a respeito da Constituição de 1988, o jurista José Afonso
da Silva (1991:723) assim a descreve: “dentro e à vista dessas circunstâncias, fez-se uma
obra, certamente imperfeita, mas digna e preocupada com os destinos do povo sofredor.
Oxalá se cumpra, porque é nisso que está o drama das Constituições voltadas para o povo:
cumprir-se e realizar-se, na prática como se propõe nas normas, porque uma coisa têm
sido as promessas, outra a realidade.”
193VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
lidade dos quilombos deslocada de seu campo de significação “original”,
isto é, da matriz colonial. Quilombo se mescla com conflito direto, com
confronto, com emergência de identidade para quem enquanto escravo
é “coisa” e não tem identidade, “não é”. O quilombo como possibilidade
de ser, constitui numa forma mais que simbólica de negar o sistema
escravocrata. É um ritual de passagem para a cidadania, para que se
possa usufruir das liberdades civis. Aqui começa o exercício de redefinir
a sematologia, de repor o significado, frigorificado no senso comum.
(Almeida 1996: 17)
Diante da definição constitucional, Arruti (2003) deduz que foi necessária uma
inovação tanto no plano do direito fundiário como no plano do imaginário social,
da historiografia, dos estudos antropológicos e sociológicos sobre populações
camponesas com características étnicas, ao que acrescento sobre as populações
urbanas com as mesmas características étnicas e no plano das políticas locais,
estaduais e federais que envolvem tais populações.
Da forma como se encontra escrito, o art. 68 cria um direito (propriedade
definitiva das terras ocupadas) e a categoria política e sociológica detentora deste
direito (remanescente de quilombos). O problema nesse caso é que os grupos
étnicos beneficiados pela legislação existiam anteriormente a ela sem, no entanto,
fazer uso dessa denominação legal, pois tal figura jurídica que se transmutou em
uma categoria não existia. Como já dito, é possível considerar-se remanescente
de algo que durante todo o período colonial e imperial sempre foi carregado de
negatividade, considerado uma atividade criminosa e que desapareceu do léxico
constitucional por cem anos no período republicano. O que viria a ser um rema-
nescente de quilombo? Que categoria era esta? Percebe-se na redação do artigo
a insuficiência conceitual, prática, histórica e política do legislador, uma vez que
este se manteve ligado a uma visão objetificadora e passadista de quilombo. O
dispositivo não reconhece a questão quilombola em seu viés étnico, como resposta
ante uma situação de conflito e confronto com outros grupos sociais, econômicos
e com agências governamentais. Para a ABA tratar-se-iam
da situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e
contextos e é utilizado para designar um legado, uma herança cultural
e material que lhe confere uma referencia presencial no sentimento de
ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico.
Aqui precisamente tem-se o exemplo de um caso em que se torna necessária
uma leitura hermenêutica e trans-disciplinar da legislação. Uma leitura apenas
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E194
normativo-dogmática14
deveria ser favorável aos quilombolas, pois segundo Silva
(1995) a aplicabilidade do art. 68 é imediata, não necessitando de lei ordinária.
Para a procuradora federal Duprat (2002), embora o art. 68 esteja no ADCT, ele
deve ser interpretado de acordo com a Constituição e, assim feito, percebe-se
que a Constituição Federal em seu corpo permanente reconhece e denomina a
expressão quilombo no § 5° do art. 216; sua seção II, capítulo III, título VIII, que
trata da cultura em suas formas permanentes. No entanto, essas leituras não têm
sido suficientes no embate político15
.
Segundo Arruti (2006: 66-70), a separação entre o art. 68 do ADCT e os arts.
215 e 216 do corpo permanente da Constituição ocorreram por razões políticas.
Por pressão de parlamentares conservadores, a parte referente ao tombamento
dos documentos relativo à história dos quilombos ficou no corpo permanente
da Constituição (no capítulo relativo à cultura), mas a parte relativa à questão
fundiária foi exilada no corpo transitório. Para um mesmo sujeito jurídico trata-
mentos diferentes. Tal fato, para este autor, pode ser interpretado pelo menos de
duas maneiras: por um lado, tal separação pode ser entendida como uma reação
14 Miranda Rosa nos fala em três modos de encarar o fenômeno jurídico e sua inter-relação.
Seriam esses a Teoria normativo-dogmática, ou seja, ligada à atividade profissional dos
juristas como analistas de um conjunto sistemático de normas que se apresentam quase
como dogmas, ter-se-ia aqui o tradicional jurista; a Filosofia do Direito, mais preocupada
com a natureza do Direito e de sua significação essencial e, por fim, a Sociologia do Direito,
aquela que percebe o Direito como um fato social em relação com outros fatos sociais e que
busca captar a realidade jurídica em afinidade com as causas e princípios verificáveis. Ou
seja, estar-se-ia aqui diante do ser, da vida como ela é e não mais do Direito em sua con-
cepção tradicional do dever ser. Pra maiores detalhes, ler: Miranda Rosa (1999), Posição e
Autonomia da Sociologia do Direito.15
Aqui se busca demonstrar o que alguns teóricos da sociologia jurídica vêm apontando como
limites entre a Ciência do Direito e a Sociologia Jurídica, precisamente Weber (1999) nos
afirma que a ciência do direito ocupa-se das normas e do sentido logicamente correto que
deve ser atribuído as suas expressões lingüísticas. Já o estudo sociológico do direito tem,
pelo contrário, por objetivo os comportamentos, isto é, o agir dos homens com relação
às normas e representações das mesmas que estes fazem. Ou seja, o eminente constitu-
cionalista José Afonso Silva, a procuradora federal Déborah Duprat bem como o MPF
e a AGU em seus pareceres na Ação Direta de Inconstitucionalidade N.º 3.239-9/600 –
DF argumentam na mesma direção: o art. 68 do ADCT é norma constitucional de eficácia
plena e, por isso, não depende de edição de lei para ter plena aplicabilidade; ocorre que o
agir em relação às normas e as representações das mesmas exigiram na questão quilombola,
entendida como um fato social em relação com outros fatos sociais, toda uma legislação
especifica. Mas mesmo essa é colocada constantemente em dúvida, pois se encontra diante
de uma realidade jurídica em afinidade com causas e princípios verificáveis.
195VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
de parlamentares conservadores a um futuro uso dos direitos relativos à questão
fundiária (esse fato poderia ser reforçado pela constatação de que, nos anos 80
do século passado, grupos camponeses do Pará e, posteriormente, do Maranhão
se organizavam em mobilizações em torno da terra. Segundo o autor, foram as
bancadas desses Estados as mais resistentes ao art. 68, como se, diante de suas
realidades locais, já antevissem as possíveis conseqüências desta lei em termos
de redistribuição fundiária) e, por outro, a evidência de que a questão do negro
se confunde em nosso país com a questão cultural, o que, para os antropólogos,
se constitui em um belo objeto de reflexão.
Destarte ao combinar a aplicação do art. 68 do ADCT e os arts 215 e 216 do
corpo permanente pode-se extrair algumas conclusões: 1) a Constituição brasileira
reconhece que a formação nacional é “pluriétnica” ou “multiétnica”; 2) é obriga-
ção de Estado proteger as diferentes manifestações, historiografias e tradições;
3) é obrigação estatal a promoção da diferenciação e da diversidade cultural.
A produção de novos sujeitos políticos etnicamente diferenciados foi fruto
da tomada de conhecimento do art. 68 do ADCT pelos principais interessados
nessa legislação.
Mas o mais desconcertante do ponto de vista político e interessante do
ponto de vista sociológico é que toda essa produtividade não resulta de
uma ação consciente, de um projeto, mas antes é o efeito da inesperada
captura da lei pelo movimento social, que a transformou em ferramenta
afiada na abertura de novos caminhos para a luta social, ao contrário do
que sua formulação inicial pretendia. (Arruti 2003: 01)
Assim sendo, para um efetivo entendimento da questão, torna-se necessária
e indispensável uma leitura tal qual se defende neste artigo trans-disciplinar e
hermenêutica. Um belo exemplo deste tipo de entendimento é o voto proferido
pela Des. Federal Maria Lúcia Luz Leiria do Tribunal Regional Federal (TRF),
relatora do agravo de instrumento contra a decisão que, em ação ordinária pro-
posta pela Cooperativa Agrária Agroindustrial e outros 19 litisconsortes, em face
do INCRA havia considerado parcialmente inconstitucional o Decreto 4887/2003.
A desembargadora, ao reverter a decisão, mostra em seu voto a necessidade de
uma leitura nos marcos do pluralismo jurídico.16
16 Considera-se este voto tão rico em argumentações que prefere-se não analisá-lo aqui por
absoluta falta de espaço e recomenda-se sua leitura: http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/
visualizar_documento_gedpro.php?local=trf4&documento=2199249&hash=76d6fcd61ca
bb3e9568d12a3af2fa043 Consultado em setembro de 2008. Bem como o artigo de Daniel
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E196
Outro exemplo positivo de uma leitura nesses termos é o parecer AGU 1/2006
do então Consultor-Geral da União, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, ex-inte-
grante do Tribunal Regional Federal,
[...] o que a disposição constitucional está a contemplar é uma territo-
rialidade específica cujo propósito não é limitar-se à definição de um
espaço material de ocupação, mas de garantir condições de preservação e
proteção da identidade e características dos remanescentes destas comu-
nidades assim compreendidas que devem ser levadas em linha de conta
na apuração do espaço de reconhecimento da propriedade definitiva. [...] a
noção de quilombo que o texto refere tem de ser compreendida com certa
largueza metodológica para abranger não só a ocupação efetiva senão
também o universo de características culturais, ideológicas e axiológicas
dessas comunidades em que os remanescentes dos quilombos (no sentido
lato) se reproduziram e se apresentam modernamente como titulares das
prerrogativas que a Constituição lhes garante. É impróprio [...] lidar nesse
processo como ‘sobrevivência’ ou ‘remanescentes’ como sobra ou resíduo,
quando pelo contrário o que o texto sugere é justamente o contrário.
(Castilho 2006: 9-11).
CONCLUSÃO: UMA CONSIDERAÇÃO CRÍTICA À
CATEGORIA “REMANESCENTES DE QUILOMBOS”
O que se objetivou demonstrar neste artigo é o fato que a luta das “comunidades
remanescentes de quilombo” tem na Constituição de 1988 um marco histórico
e de visibilidade pública, mas não seu marco fundante, já que a luta é anterior à
Constituição, tendo sido essa em seu corpo legal a resultante desse processo.17
Sarmento, denominado: a garantia do direito à posse dos remanescentes de quilombos antes
da desapropriação. Disponível em: http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-epublicacoes/
docs_artigos/Dr_Daniel_Sarmento.pdf Consultado em 05 de setembro de 2008.17
Nas palavras de Almeida “Entendo que o processo social de afirmação étnica, referido aos
chamados quilombolas, não se desencadeia necessariamente a partir da Constituição de 1988
uma vez que ela própria é resultante de intensas mobilizações, acirrados conflitos e lutas
sociais que impuseram as denominadas terras de preto, mocambos, lugar de preto e outras
designações que consolidaram de certo modo as diferentes modalidades de territorialização
das comunidades remanescentes de quilombos”.
197VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
No entanto é necessário chamar a atenção para a importância da nominação18
.
A constituição fala em comunidades remanescentes de quilombos. Como se mostra
acima, tal nominação traz consigo uma historia política, legal, sociológica e econô-
mica que atualmente, na arena da luta jurídica, tem sido utilizada para desqualificar
o pleito dos grupos auto-identificados como quilombolas. Portanto, cabe também
aos operadores do direito compreenderem o percurso descrito de forma resumida
acima, para que uma determinada forma de nomear esta luta, - remanescentes
de quilombo - não possa ser um empecilho à efetivação do direito de diversas
comunidades negras, com suas diversas auto-identificações, sejam estas terras de
preto, mocambos, lugar de preto, terra de santo, ou outras designações próprias
e que vivem em suas localidades de modo tradicional, mas que não conhecem ou
mesmo se opõe ao uso do termo remanescente de quilombo devido à carga negativa
que a palavra quilombo carrega consigo. Neste sentido Arruti (2003) nos lembra
a respeito do reconhecimento identitário estatal, que:
Da parte do Estado, o “reconhecimento” de um grupo como indígena
ou como quilombola – ato de nomeação oficial que fixa uma identidade
política, administrativa e legal – ainda que reivindique ser apenas um ato
de consagração de uma realidade – material ou discursiva – é também
um ato de criação, na medida em que vem instituir, junto a uma série
mais extensa e complexa de atos e enunciações, um novo sujeito social.
Mas, como condição de realização prática daquela recontextualização, tal
“reconhecimento” é também uma ameaça permanente a ela, ao instituir
um novo sistema de identificação modelizante, pronto a recapturar e
englobar aquelas subversões classificatórias. (Arruti 2003: 01)
Portanto cabem a nós antropólogos, cientistas sociais em geral e aos operado-
res do direito, estarmos sempre vigilantes de modo que não permitamos que um
novo sistema de identificação: ato de consagração de uma realidade, meio para o
avanço da democracia no processo de emancipação social que responde às questões
de uma cidadania que requer o reconhecimento da diferença e, ao mesmo tempo,
a redução das desigualdades bem como a inclusão através da redistribuição de
recursos acabe por funcionar como um limitador dessa emancipação social e de
uma cidadania que requer o reconhecimento e o respeito à diferença.
18 Para uma leitura mais aprofundada sobre as novas classificações e conseqüentemente as no-
vas formas de nominações, recomenda-se Arruti (2006) principalmente parte 1, bem como
Focault (1990) e Bourdieu (1989 e 1998).
TEORIA SOCIEDADE nº 17.1 – janeiro-junho de 2009E198
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201VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA... – Carlos Eduardo Marques
ABSTRACT
This present article aims, through a brief reviewer
discussion, to demonstrate that despite the need to
know the historical definition of quilombo, the same
does not apply properly to the category of remnants of
quilombo or quilombolas. This category of quilombos
is a construct, which only reaches its fullness in the
interface between the anthropological, legal and qui-
lombola (native) speeches as well as movements that
are involved with the theme. The author concentrates
the analysis on 1988 Federal Constitution through the
necessary dialogue between the anthropological and
legal knowledge. In the end, it is recommended that
the practice of law in this theme should be always
guided by a hermeneutic vision.
KEY WORDS
remnants of quilombos
anthropology
law
democratic State
RECEBIDO EM
setembro de 2008
APROVADO EM
setembro de 2009
CARLOS EDUARDO MARQUES
Professor na Faculdade de Ciências Jurídicas da FEVALE/UEMG. Bacharel em Ciências Sociais com
Mestrado em Antropologia, ambos pela UFMG. Desenvolve pesquisa na temática Quilombola e na in-
terface Direito e Antropologia. Membro-fundador do Núcleo de Estudos em Populações Quilombolas e
Tradicionais da UFMG (NuQ/UFMG). E-mail: [email protected]