visibilidade social e estudo da infância

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..............................................................................................................Coordenao: Dinael Marin Capa e Projeto Grfico: www.zerocriativa.com.br Reviso Gramatical: Maria Aparecida Boschi Ribeiro Impresso: Grfica Compacta

..............................................................................................................CIP-BRAS1L CATALOCAO-NA-FQNTE SINDICATO NACIONAL 005 EDITORES DE LIVROS, RJ 136 Infncia (in)vlslvel / vera Maria Ramos de Vasconcellos, Manuel Jacinto Sarmento, organizadores. Araraquara, SP.: Junqueira&Marin, 2007. il. Inclui bibliografia ISBN 978-S5-8S305-43-6

1.

. Infncia. 2. Educao de crianas. 3. Abordagem Interdisciplinar do conhecimento. I. Vasconcellos, Vera M. R. de (Vera Maria Ramos de). II. Sarmento, Manuel Jacinto. 07-1859 11.05.07 001835 18.05.07 CDD: 305.23 CDU: 316.34Z.32-053.2

DIREITOS RESERVADOS Junqueira&Marin Editores J.M. Editora e Comercial Ltda. Rua Voluntrios da Ptria, 3238 Fone/Fax: 16-3336-3671 CEP 14802-205 Araraquara SP www.junqueiraemarin.com.br

..............................................................................................................Proibida a reproduo total ou parcial desta edio, por qualquer meio ou forma, em lngua portuguesa ou qualquer outro idioma, sem a prvia e expressa autorizao da editora.

..............................................................................................................Impresso no Brasil Printed inBrazil

..............................................................................................................1 reimpresso - 2008

VISIBILIDADE SOCIAL E ESTUDO DA INFNCIAManuel Jacinto Sarmento

A conhecida histria contada por Watter Benjamn: um bbado procurava afanosamente sob um candeeiro uma moeda que perdera. Perguntado onde a tinha deixado cair, respondeu que havia sido algures sob a sombra; mas procurava-a ali, sob o candeeiro, no porque ela l estivesse, mas porque' s a havia luz e esta era condio para a achar. Demasiada luz encandeia; a possibilidade de encontrar a moeda sob uma luz que exclui para a sombra o espao que no atinge altamente remota. Nesta relao, entre uma iuz que aumenta a escurido do que no atinge e uma sombra que aumenta a sua inacessibilidade pela vizinhana de uma rea iluminada, encontramos um dos efeitos perversos do conhecimento constitudo. O que iluminado pela cincia torna duplamente desconhecido tudo aquilo que a cincia (ainda?) ro pde alcanar: desconhece-se o que est oculto e no susceptvel de ser procurado, porque no est previsto o seu achamento, mesmo que esteja ali ao lado, como a moeda, escondida pla escurido redobrada pela luz vizinha. A infncia tem sofrido um processo idntico de ocultao. Esse processo decorre das concepes historicamente construdas sobre as crianas e dos modos como elas foram inscritas em imagens sociais que tanto esclarecem sobre os seus produtores (o conjunto de sistemas estruturados de crenas, teorias e ideias, em diversas pocas histricas) quanto ocultam a realidade dos mundos sociais e culturais das criana, na complexidade da sua existncia social. Este processo de iuminao-ocultao exprime-se nos saberes constitudos sobre as crianas e a infncia: tanto delas sabemos quanto, numa cincia que tem sido predominantemente produzida a partir de uma perspectiva adultocentrada, as vivncias, culturas e representaes das crianas escapam-se ao conhecimento que delas temos. Uma ruptura epistemolgica no conhecimento sobre a infncia e sobre as crianas - que tem vindo a ser defendida no interior do

campo dos "estudos da infncia" em plena constituio - condio essencial para procurar a luz que nos permita ir tacteando as sombras. (In)visibilidade histrica i O interesse histrico pela infncia relativamente recente. A referncia histrica infncia aparece muito tardiamente, e essa , alis, uma das razes que levaram P. Aries a afirmar a inexistncia do "sentimento da infncia" at ao dealbar da modernidade. Apenas referncias autobiogrficas -onde a infncia aparece evocada pelo filtro, frequentemente crtico, do adulto que se conta - e registos dispersos em testamentos, dirios, documentos funerrios ou evocaes novelsticas assinalam a presena de crianas no passado. Acresce a essa ausncia a aproblematicidad.e do conceito de infncia na construo cientfica de uma ontologia social {ao contrrio do que aconteceu com a noo de "pessoa humana", ou, noutras dimenses, com a construo da ideia de gnero e a probiematicidade da condio de mulher, ou a criao das representaes sociais sobre classes sociais como a produo do "Povo", {Bourdieu, l 983) - a "arraia mida" j referenciada por Ferno Lopes no sculo XIV - ou do Proletrio, por exemplo). Infncia o "serem devir" e nesta transitoriedade se anulou por demasiado tempo a complexidade da realidade social das crianas. H uma marginalidade conceptual no que respeita ideia ou imagem de infncia no passado, que correlata da marginalidade scia! em que foi tida. invisvel no passado, em suma, e quando aparece ou como memria infie ou como legatria de uma tradio, de um poder ou de bens a prosseguir como herana familiar. Salvo na imagem sagrada de um menino-Deus frequentemente dotado de caractersticas adultas com que a escultura e a irpagstica medievais representaram a criana - o menino que mais sbio que os sbios, que detm sob a mo o livro do conhecimento, que olha fixamente em frente e no olhar se espelha um poder incomensurvel, que apesar de pr-pbere exibe no rosto a barba que dignifica a condio varonil, que apresenta uma cabea enorme num corpo frgil etc. -, a ausncia fsica da imagem infantil a expresso maior do que Aries (1973) designou como ausncia da conscincia da ideia da infncia durante a maior parte da Histria. Esta tese de Aries conotou at hoje umaenorme controvrsia, que incide quer nos aspectos metodolgicos do trabalho do historiador francs, quer na ausncia de uma filtragem terica que permitisse interpretares dados histricos recolhidos luz da sua natureza, dependente da cias se social e do tipo de relaes

sociais donde emanam -por exemplo, criticado frequentemente o facto de Aries teorizar sobre toda a categoria social infncia, tendo utilizado registos documentais provenientes do clero e da nobreza, havendo, por consequncia, uma ausncia de referncia s crianas das classes populares -, quer, ainda, finalmente, na generalizao interpretativa que produz sobre a alegada ausncia de conscincia da infncia no passado, especialmente na Idade Mdia {cf. Heywood, 2002). Independentemente da crtica historiogrfica a que a obra de Aries tem sido submetida, h, no entanto, um conjunto de aspectos plos quais ela considerada como uma referncia incontornvel, a ponto de, de alguma maneira, no apenas a Histria da infncia, mas os estudos da infncia, em geral, terem sofrido, a partir dela, uma mudana de rumo significativa. Desde logo, a chamada da infncia Histria, quer como objecto de conhecimento historiogrfico, quer como problemtica de interesse mais geral no conhecimento da condio humana: que concepes, que imagens, que prescries, que prticas sociais foram historicamente produzidas sobre/com as crianas? De que modo a emergncia ou as mudanas na concepo de infncia alteraram as condies sociais de existncia na sociedade? De que forma tudo isso modificou as formas de vida da sociedade, no seu conjunto? Se as concepes de infncia podem existir, modificar-se e diversificar-se, se elas so uma construo histrica, e no decorrem de uma natureza auto-evidente, o que que est na origem dessas concepes? Que peso tm essas concepes, quais so os seus vectores de transformao e de mudana? Essas questes tornaram-se possveis, depois de Aries. Alis, ele mesmo se apropriou do conhecimento que de algum modo inaugurou para se interrogar sobre a relao mais vasta entre infncia e sociedade, num texto que publicou anos aps a sua obra seminal num artigo para publicao inicial na Enciclopdia Eunaudi (Aries, 1986). A historiografia mais recente sobre a infncia (e.g., Pollock, 1983; Hendrick, 1994; Becchi e Julia, 1998; Heywood, 2002) tem considerado que, mais do que ausncia da conscincia da infncia, na Idade Mdia e na pr-modernidade existiam concepes que foram profundamente alteradas pela emergncia ao capitalismo, pela criao da escola pblica e pela vasta renovao das ideias com a crise do pensamento teocntrico e o advento do racionalismo. Os sculos XVII e XVII, que assistem a essas mudanas profundas na sociedade, constituem o perodo histrico em ;que a moderna idia da infncia se cristaliza definitivamente, assumindo um carcter distintivo e constituindo-se como referenciadora de uriLctrupo humano que no

se caracteriza pela imperfeio, incompjetude ou miniaturizao do adulto, mas por uma fase prpria do desenvolvimento humano. Acontece que a distino da infncia da adultez, que a modernidade ocidental produziu, no corresponde a uma s ideia da infncia, nem origina uma nica norma da infncia. No apenas vrios autores tm chamado a ateno para a diversidade das formas e modos de desenvolvimento das crianas, em funo da sua pertena cultural - isto , sustentam que a cultura molda a infncia, por contraponto . ideia de uma natureza universal da infncia, suposta a partir de estudos centrados no Ocidente (e.g. Rogoff, 2003) -, como a norma da infncia ocidental e a evoluo das concepes da infncia no equivalem ao que ocorre noutras partes do mundo ou nas culturas no ocidentais (e.g. Mead, 1970). Porm, mesmo no interior do mesmo espao cultural, a variao das concepes da infncia fundada em variveis como a classe social, o grupo de pertena tnica ou nacional, a religio predominante, o nvel de instruo da populao etc. O estudo das concepes da infncia deve, por isso, ter em conta os factores de heterogeneidade que as geram, ainda que nem todas se equivalham, havendo sempre, num contexto espaotemporal dado, uma (ou, por vezes, mais do que uma} que se torna dominante. O estudo dessas concepes, sob a forma de imagens sociais da infncia, torna-se indispensvel para construir uma reflexividade fundante de um olhar no ofuscado pela luz que emana das concepes implcitas e tcitas sobre a infncia. Imagens sociais da infncia Uma panormica da construo histrica das imagens sociais da infncia, desde o dealbar da modernidade ocidental, proposta por James, jenks e Proutd 998, p. 3-34). A sua abrangncia e compreensividade facilita o entendimento da tese que temos vindo a expor - a criao de sucessivas representaes das crianas ao longo da Histria produziu um efeito de invisibilizao da realidade scia! da infncia. Esse trabalho de "imaginao"1 da infncia estruturou-se segundo princpios de reduo da complexidade, de abstracizao das realidades e de interpretao para fins normativos da criana "ideal". Os autores distinguem dois perodos fundamentais: o das imagens da "criana pr-sociolgica" e o das imagens da . "criana sociolgica". A distino decorre do facto de, no primeiro perodo-, o trabalho de "imaginao" social da criana considerar o sujeito infantil como uma entidade singular abstracta, analisada no apenas sem recurso ideia da infncia como categoria social de pertena mas com excluso do prprio contexto social enquanto produtor de

condies de existncia e de formao simblica. As imagens da "criana sociolgica"' so produes contemporneas e resultam de um juzo interpretativo das crianas a partir das propostas tericas das cincias sociais. Constituem, de facto, processos de reinterpretao das representaes anteriormente formuladas, com reviso do seu fundamento pela compreenso da categoria geracional. Entre as imagens da "criana pr-sociolgca" e as imagens da "criana sociolgica", a imagem da "criana" socialmente desenvolvida" referente concepo da infncia objecto do processo de socializao - corresponde a uma "teorizao transaccionai" (id., ib., p. 22), entre representaes tradicionais da infncia e a concepo das crianas como seres sociais que integram uma categoria geraciona distinta. Interessa-nos sobretudo tomar em considerao aqui as imagens "pr-sociolgicas", porque elas correspondem a tipos ideais de simbolizaes histricas da criana, a partir do incio da modernidade ocidental, com expresso conceptual na obra de filsofos ou outros homens do pensamento e da cincia, mas que se disseminaram no quotidiano, foram apropriados pelo senso comum e impregnam as relaes entre adultos e crianas nos mundos de vida comuns. As imagens da "criana sociolgica" correspondem, de facto, a diferentes teorias sociolgicas e no tm nem a mesma espessura histrica nem a influncia social que as imagens da "criana pr-. sociolgica* possuem, como constructos nterpretativos que so dos diferentes modos modernos de "perceber" as crianas e de, em consequncia dessa percepo, administrar a sua existncia no quotidiano.2 Antes de sumarizarmos, com alguma liberdade interpretativa, as imagens da "criana pr-sociolgica" propostas por James, Jenks e Prout, convm tambm reter que elas no correspondem a etapas ou estgios histricos, ultrapassados ou em trnsito, de construo simblica de imagens sociais das crianas. 'Essas imagens, porventura dominantes num ou n.outro momento histrico considerado, coexistem e sobrepem-se, por vezes de forma tensa, outras vezes de modosincrtico. As imagens sociais das crianas, por estranhas ou arcaicas que possam parecer (pelo menos algumas delas), continuam, como dizem os socilogos britnicos, a "moldar aces quotidianas e prticas" (id., i b., p. 21), no sendo, por isso, negligenciveis os seus efeitos na configurao das condies de existncia concreta das crianas. So as seguintes as imagens propostas como "imagens da criana pr-socofgica":

- A criana m (the evil cn//cf) - baseada na ideia do "pecado original"a imagem da criana m est associada a toda uma conceptualizao do corpo e da natureza como realidades que necessitam de ser controladas; prxima da natureza, no "domesticada" pela razo mas dominada pelo instinto, a criana concebida como uma expresso de foras indomadas, dionisacas, com potencialidade permanente para o mal. A referncia filosfica a teoria de Hobbes sobre a e'xigncia de controlo dos "excessos", pelo poder absoluto do Estado sobre os cidados e dos pais sobre as crianas, como meio de evitar a anarquia social ou o transbordamento individual. Contemporaneamente, a criana me vislumbrada nas imagens produzidas sobre as crianas das classes populares, em particular quando mobilizada uma ideologia tremendista e securitria que refere as "famlias disfuncionais", evoca aces de vitimizao perpetradas por crianas ou convoca os "perigos" da sociedade moderna para propor o reforo das intervenes paternalistas e mesmo a adopo de medidas de represso infantil (descida da idade penal, reforo dos regulamentos disciplinares etc.). - A criana inocente-,contrapondo-se criana m, a criana inocente funda-se no mito romntico da infncia como a idade da inocncia, da pureza, da beleza e da bondade. Com expresso vasta na pintura romntica, bem como em muitos romances, encontra no Emlio de Rousseau o seu paradigma filosfico. A tese aqui dominante a de que a. natureza genuinamente boa e s a sociedade a perverte, o que se contrape concepo oposta da necessidade da razo e da norma social para controlar as foras "monstruosas" da natureza indomada. As concepes rousseaunianas tm uma ampla expresso contempornea nos modelos pedaggicos centrados nas crianas e, no por acaso, concitam ainda hoje um importante debate poltico e pedaggico;3 do mesmo modo, a ideia das crianas como o "futuro do rnundo" est frequentemente associada a uma concepo salvfica que entronca n urna crena romntica da bondade infantil. - A criana imanente - a ideia de um potencial de desenvolvimento da criana, no a partir de uma natureza intrinsecamente boa, mas da possibilidade de.aquisio da razo e da experincia, aparece na formulao filosfica da teoria da sociedade de John Locke. Para o filsofo ingls do sculo XVII a criana uma tabula rasa na qual podem ser inscritos quer o vcio quer a virtude, a razo ou a desrazo, sendo misso da sociedade promover o.crescimento com vista a uma ordem social coesa. A imanncia da criana torna cada ser humano um projecto de futuro, mas que depende sempre da "moldagem" a que seja submetido na infncia. A concepo lockiana prope uma

ateno s disposies e motivaes infantis e nesse sentido-precede conceies desenvolvimentistas que s vo florescer sculos mais tarde. - A criana naturalmente desenvolvida - a psiojpgja do desenvolvimento, a partir especialmente dos trabalhos de. Piaget, constitui-se como o principal referencia! de entendimento e interpretao da criana no sculo XX, com profunda influncia na pedagogia, nos cuidados.mdicos e sociais, nas polticas pblicas e na relao quotidiana dos adultos com as crianas. Os autores sinalizam essa imagem em torno de duas ideias centrais: as crianas so seres naturais, antes de serem seres sociais, e a natureza infantil sofre dm processo de maturao que se desenvolve por estdios (id., ib., p. l 7-1 9). A psicologia do desenvolvimento no apenas responsvel pela constituio de uma reflexividade institucional sobre a infncia, mas tambm pela proposta de uma norma de constituio do conhecimento cientfico sobre as crianas, atravs do recurso a um conjunto sofisticado de escalas e testes de "medio" do "desenvolvimento natural" da criana. A crtica - interna prpria psicologiado desenvolvimento, nomeadamente por efeito da influncia do construtivismo social de Vygotsky -sobre as caractersticas naturalistas, biologistas, universalistas, a-sociolgicas, teleolgicas e positivistas da corrente hegemnica da psicologia do desenvolvimento no obsta a que esta imagem da infncia seja muito provavelmente a que mais poderosa contemporaneamente. - A criana inconsciente- assente na psicanlise, e tendo por Freud a sua figura de referncia, esta imagem social imputa ao inconsciente o desenvolvimento do comportamento humano, com incidncia no conflito relacional na idade infantil, especialmente na relao com as figuras materna e paterna. A criana vista como um preditor do adulto, mais do que como um ser humano completo e um actor social com a sua especificidade, de modo que a psicanlise introduz um vis interpretativo que impede a anlise da criana a partir do seu prprio campo. Acresce ainda o determinismo que leva; frequentemente a imputar comportamentos desviantes a vivncias infantis, o que no deixa de ser uma inesperada deriva da imagem da "criana m", que se revela quando adulta... As diversas imagens sociais da infncia frequentemente se sobrepem e confundem no mesmo plano de interpretao prtica dos mundos das crianas e na prescrio de comportamentos e de normas de actuao. No so compartmentos.simblicos estanques, mas dispositivos de interpretao que se revelam, finalmente, no

plano da justificao da aco dos adultos com as crianas. A busca de um conhecimento que se desgarre das imagens constitudas e historicamente sedimentadas no pode deixar de ser operada seno a partir de um trabalho de desconstruo dos seus fundamentos, essa perscrutao da sombra que um conhecimento empenhado no resgate da infncia chamado a fazer. Definio da Infanda e negatividade Em correspondncia, por vezes indirecta, com as imagens sociais da infncia, em distintas pocas histricas e no interior das vrias formaes sociais, possvel encontrar modos diferenciados de distribuir os papeis geracionais, de definir o estatuto das crianas e de conceber as relaes entre crianas e adultos. O que no pode deixar de ser anotado seno como um paradoxo, com expressivo significado social, que as distintas representaes da infncia se caracterizam especialmente plos traos de negatividade, mais do que pela definio de contedos (biolgicos ou simblicos) especficos. A criana considerada como o no-adulto e este olhar adultocntrico sobre a infncia regista especialmente a ausncia, a incompletude ou a negao das caractersticas de um ser humano "completo". A infncia como a idade do no est inscrita desde o timo da palavra latina que designa esta gerao: n-fans- o que no fala. Da notao simblica da infinda como idade da ausncia da linguagem, a modernidade, numa das suas mais importantes f triunfantes) tradies - a do esprito racionalista que emergiu e se desenvolveu na segunda metade do milnio anterior, consagrou a infncia como a idade da no-razo (patente na teoria hobbesiana referida e ainda em mltiplos escritos de iluministas como Montaigne e Montesquieu, entre outros, cf. Narodowsk, 2001), em torno da qual Ce para garantir a "formao de uma s razo") se institucionalizou a escola e se "inventou o aluno" (Cimeno-Sacristn, 2003). A revoluo industrial, por seu turno, trouxe consigo a mobilizao activa das crianas para a produo industriai, subordinando crianas e adultos a uma racionaidade econmica capitalista, que frequentemente se exprimiu na mobilizao de legies de crianas inseridas, de sol a sol, em oficinas e fbricas ou exploradas em outras mltiplas actividades produtivas. A regulao fordsta da economia, e, em especial, o controlo da mo-de-obra excedentriaque se seguiu ao crasi.da bolsa de Nova York no perodo entre ambas as guerras, retirou as crianas ds fbricas (mas, curiosamente, no as retirou logo dos campos), sobretudo nos pases centrais da Europa e da Amrica do Norte, o que teve por

efeito promover uma nova excluso simblica da infncia: a da economia. Nesta conformidade, as crianas foram consideradas como seres afastados da produo e do consumo e a infncia investida da natureza da idade do no-trabalho. importante considerar tambm o papel de movimentos sociais e ONCs que se mobilizaram contra o trabalho infantil e lograram, em consequncia, alcanar, sobretudo nos pases centrais, uma efectiva condenao social e jurdica da explorao de crianas. Porm, as formas especficas de trabalho das crianas - a aprendizagem escolar, a ajuda familiar, algumas actividades sazonais, por exemplo - tornaram-se ocultas na anlise da diviso social de trabalho e produziram essa ideia comum, afinal ilusria, de que as crianas no trabalham. Na segunda modernidade, o desenvolvimento activo de uma indstria cultural para as crianas, frequentemente dominada pela comunicao da violncia, pela erotzao induzida pela comunicao de modelos de referncia via media, e, de uma forma geral, pela complexificao crescente das condies de vida das crianas, com estruturao dos seus quotidianos segundo dinmicas indutoras de comportamentos agressivos, competitivos e agonsticos, tem produzido, como que num encerramento do crculo da negatividade, a ideia de que as crianas actuais vivem, definitivamente, um processo de adultizao precoce e irreversvel, e, por consequncia, habitam a idade da no-infncia. Esta ideia expressa na metfora da "morte da infncia", proposta por Neil Postman (1983), mas difundida por vrios outros autores. Para alm do conservadorismo inerente caracterizao da contemporaneidade como poca da "crise de valores", por contraponto a uma putativa idade passada de harmonia e consenso moral, esta concepo da morte da infncia escamoteia a natureza activa das crianas - como sujeitos sociais que so, e no meros receptores passivos da cultura de massas - e obscurece o facto de que as crianas, nas complexas e adversas condies sociais da sua vida actual, vivem-na na especificidade da sua gerao. Por isso, incorrecto falarem morte da infncia, ainda que, efectivamente, a infncia contempornea sofra constrangimentos poderosos e se apresente especialmente vulnervel colonizao dos seus mundos cie vida plos adultos. Para uma critica tese da "morte da infncia", veja-se Buckingham (2000). Aqui chegados, importa sublinhar que todos os processos de qualificao da infncia por negao constituem, efectivamente, um acto simblico de expresso de adultocentrismo e a projeco ideolgica sobre a infncia de .concepes ideolgicas essencialistas sobre a condio humana. Com efeito, a infncia deve a sua diferena no ausncia de caractersticas (presumidamnte) prprias do ser humano adulto, mas presena de outras caractersticas distintivas

que permitem que, para alm de todas as distines operadas pelo facto de pertencerem a diferentes classes sociais, ao gnero masculino ou feminino, a seja qual for o espao geogrfico onde residem, cultura de origem e etnia, todas as crianas do mundotenham algo em comum. Assim sendo, a infncia no a idade da no-fala: todas as crianas, desde bebs, tm mltiplas Jinguagens (gestuais, corporais, plsticas e verbais) porque se expressam. A infncia no a idade da no-razo: para alm da racionaidade tcnico-instrumenta!, hegemnica na sociedade industrial, outras nacionalidades se constrem, designadamente nas interaces de crianas, com a incorporao de afectos, da fantasia e da vin.culao ao real. A infncia no a idade do no-trabalho: todas as crianas trabalham, nas mltiplas tarefas que preenchem os seus quotidianos, na escola, no espao domstico e, para muitas, tambm nos campos, nas oficinas ou na rua. A infncia no vive a idade da no-infncia: est a, presente nas mltiplas dimenses que a vida das crianas (na sua heterogeneidade) continuamente preenche. A infncia , simultaneamente, uma categoria social, do tipo geracional, e um grupo social de sujeitos activos, que interpretam e agem no mundo. Nessa aco estruturam e estabelecem padres culturais. As culturas infantis constituem, com efeito, o mais importante aspecto na diferenciao da infncia. Na medida em que as culturas infantis so interpelantes das vises do mundo dos adultos, questionando muito dos seus adquiridos e interrogando muitas das suas evidncias (aspecto este que se torna especialmente relevante se considerarmos o "princpio do mercado" na configurao ideolgica do mundo contemporneo, promovendo a imbricao do interesse na viso do mundo adulto, ao contrrio do que sucede com as crianas, menos impregnveis por esse princpio), poderemos falar aqui de um outro sentido de negatividade. Uma negatividade positiva, aquela pela qual o mundo social interpretado e descohstrudo em muitos dos seus pressupostos pelas culturas infantis. (In)visibilidade cvica De acordo com aja referida prolixa, abrangente, por vezes contrastante historiografia da infncia, um elemento entre vrios tem vindo a produzir uma realidade social caracterizadora da situao da infncia, a partir do dealbar da modernidade: o afastamento do mundo da infncia do mundo dos adultos, a separao de reas de actividade, reservadas para a aco exclusiva dos adultos e interditas, por consequncia, aco das crianas, e a colocao, sob forma

directa (especialmente no espao familiar) ou sob forma institucional (especialmente no caso da escola), das crianas sob proteco adulta. O confinamento da infncia a um espao social condicionado e controlado plos adultos produziu, como consequncia, o entendimento generalizado de que as crianas esto "naturalmente" privadas do exerccio de direitos polticos. As crianas permanecem sendo o nico grupo social verdadeiramente excludo de direitos polticos expressos. Sobretudo a partir do incio do sculo XX,'com-uma sinuosa histria de lutas, avanos e recuos, movimentos cvicos de grande dimenso, graves conflitos e enfrentamentos, o direito de participao poltica, especialmente sob a forma de escolha representativa dos dirigentes polticos, foi sendo sucessivamente atribudo, especialmente na Europa e na Amrica do Norte, aos responsveis plos agregados familiares, atodos os homens brancos, aos analfabetos, s mulheres, aos negros e s minorias tnicas, aos imigrantes, aos jovens de mais de 8 anos (em alguns poucos casos, aos maiores de 16). A restrio de direitos polticos infncia, caracterstica da modernidade ocidental, no tem, todavia, um carcter universal. Sociedades e comunidades radicadas no Oriente e no hemisfrio .sul, ou mesmo grupos tnicos minoritrios na Europa, no se caracterizam pela excluso das crianas da vida colectiva e, inclusive, integram as crianas nas assembleias e espaos de deciso colectiva, com efectiva participao cvica (e.g. Silva, Macedo e Nunes, 2001). No entanto, a participao poltica no se restringe ao poder de voto. O que importa aqui acentuar o facto de que as crianas privadas de direitos polticos directos tendem a ser, em consequncia da sua ausncia forada da cena poltica representativa (governo, parlamento, cmaras municipais etc.), invisibilizadas enquanto actores polticos concretos. Na verdade, privao de direitos polticos no sinnima de ausncia-de participao poltica. A histria de todos os grupos sociais que sucessivamente foram inseridos no grupo dos cidados dotados de direitos polticos - nomeadamente as mulheres e 0*5 cidados privados de direitos cvicos que construram os grandes movimentos poltico-sociais das primeiras dcadas e da dcada de 1960, nos EUA e na Europa contm provas evidentes de uma participao sem reconhecimento legtimo. A participao, individual e colectiva, est para alm do enquadramento jurdico das democracias : ocidentais representativas. Por conseguinte, no de ausncia de aco poltica que se trata, mas de invisibilizao na cena pblica. A invisibilidade tem uma extenso correspondente na ausncia da considerao dos impactos das decises polticas sobre as diferentes geraes, especialmente a infantil. No votando nem sendo eleitas, as crianas so tematizadas fora do quadro do

referencial de destinatrios polticos, designem-se eles como "cidados", "contribuintes", "patrcios" ou mesmo "povo". E, no entanto, qualquer medida de poltica afecta diferenciadamente asvrias geraes (Qvortrup, 1 994). A invisbilidade , no caso, homloga da excluso: as crianas so o grupo geracional mais afectado pela pobreza, pelas desigualdades sociais e pelas carncias das polticas pblicas (e.g. Annan, 2001; Unicef, 2005). No , por isso, sem consequncia, que a excluso das crianas da aco poltica directa caminha a par do efeito simblico da sua invisibiiizao poltica. Para a recusa da compreenso das crianas como actores sociais com competncias polticas concorre um conjunto de factores, que se articulam e conjugam no mesmo efeito, embora tenham provenincia em momentos histricos distintos e correspondam a situaes verdadeiramente diferenciadas. Em primeiro lugar, a noo moderna de cidadania. A partir da filosofia das Luzes e da configurao poltica que as .revolues democrticas do sculo XVIII atriburam aos Estados modernos, a cidadania foi sendo entendida como o estatuto legal da "identidade oficial" dos membros de uma comunidade com capacidade soberana de autogovernao. A cidadania corresponde, por definio, a um estatuto poltico, confinado ao espao nacional, embora o cidado veja reconhecida a sua pertena comunidade no apenas pelo vinculo que com ela estabelece e que lhe permite o usufruto de direito-s cvicos e polticos, mas tambm em consequncia da sua prpria condio individual, que lhe atribui direitos individuais de natureza social (proteco, alimentao, educao, sade etc.). O estatuto de membro da com unidade impe, ao ms mo tempo, obrigaes e deveres do cidado para com a comunidade. Dentro desta tradio liberal, a cidadania tradicionalmente classificada, a partir de T. Marshall (l 967), como cidadania civil (direitos de liberdade individual, de expresso, de pensamento, de crena, de propriedade individual e de acesso justia), cidadania poltica (direito de eleger e serelito e de participar em organizaes e partidos polticos) e cidadania social {acesso individual a bens sociais bsicos). Marshall tem umconcepo evolucionista destes trs tipos de cidadania, considerando, na verdade, cada um deles como uma fase sequencial que amplia e alarga o mbito do que anteriormente estava concedido aos cidados. essa sequencialidade evolucionista que tem sido objecto de maior controvrsia no debate contemporneo (e.g. Wexler, 1990), bem como a restrio da cidadania a um mbito meramente nacional (Beck, 2003). Por outro lado, no claro que a sociedade tenha evoludo numa lgica de ampliao de direitos; to pouco certo que eles se tenham alargado indiferenciadamente a

todos. Para o que nos interessa, a concepo liberal de cidadania, de que Marshall um dos mais reputados intrpretes e difusores, assenta no pressuposto do vnculo do indivduo para com a comunidade (nacional), vnculo esse forjado em princpios civilizatrios comummente aceites, pressupondo da parte dele uma vontade livre, pensamento racional e sentido de solidariedade. Ora, a inexistncia de consenso social acerca destes trs pressupostos na infncia (na verdade, como adiante referiremos, a dominao paternalista, expressa na construo de imagens sociais contemporneas da infncia normativamente orientadas, afirma precisamente as crianas como desprovidas de vontade ou racionalidade prprias e como portadoras de imaturidade social) legitima a recusa da cidadania da infncia, pelo menos da totalidade da cidadania poltica e, parcialmente, da cidadania civil. Em suma, uma concepo clssica de cidadania recusa o estatuto poltico s crianas. Na verdade, no apenas esse estatuto que recusado. proposta, a partir da concepo de menoridade da infncia (no apenas etria, mas cvica, alm de "racional", como vimos), uma condio de acesso futuro cidadania plena que no assenta apenas pela simples passagem dos anos, mas decorre da compulsividade da frequncia da escola. Espao institucional onde cabem todas as utopias igualitrias, tanto quanto os processos mais refinados de dominao, a escola foi sendo historicamente tematizada pela modernidade como o lugar da formao de jovens cidados, plenos de direitos, capacidade e competncia, para competirem e/ou se solidarizarem numa sociedade com igualdade de oportunidades. No necessrio recordar aqui o modo como a linearidade do raciocnio que suporta o projecto escolar enquanto "fbrica de cidados" originou tantos equvocos e fez desperdiar tantas energias efectivamente mobilizadas na construo de uma cidadania plena. A referncia ao "declnio do programa institucional" da escola (Dubet, 2002) suficiente para revelar como a "formao de cidados" na realidade um frgil substituto cidadania efectiva. Em contrapartida, a escola corresponde institucionalizao histrica de processos de disciplinao da infncia (Foucault, 1993), que so inerentes criao da ordem social dominante. No obstante, a escola permanece como um palco conflitual de projectos polticos e pedaggicos; que podem tanto orientar-se para uma efectiva ampliao dos direitos das crianas quanto sustentar-se em lgicas de aco que perpetuam a inscrio histrica da dominao (cf. Sarmento, 2000). Ao mesmo tempo que a modernidade introduziu a escola como condio de acesso cidadania, realizou um trabalho de separao das crianas do espao pblico. As crianas so vistas

como os cidados do futuro; no presente, encontram-se afastadas do convvio colectivo, salvo no contexto escolar, e resguardadas pelas famlias da presena plena na vida em sociedade. A "privatizao" da infncia (Wyness, Harrison e Buchanan, 2004) corresponde a um dispositivo de proteco das crianas, tanto quanto de subordinao a um regime de autoridade paternalista. A imagem da criana com um quotidiano superpreenchido, deslocando-se da famlia para a escola e daqui para as inmeras actividades de fermao complementar, das aulas de lngua estrangeira ao ba/fete do clube de informtica s actividades desportivas, ilustra bem uma actividade, dependente e vigiada sob controlo adulto, numa extenso custodional do poder familiar, agora alargado s mltiplas agncias de ocupao infantil (Scraton, l 997). certo que a proteco das crianas, a par dos progressos inegveis da modernidade, tem garantido uma melhoria muito substancial, ainda que parcial, das condies de vida da maioria das crianas, e so incomensurveis os avanos verificados em indicadores como as taxas de mortalidade infantil, a libertao de formas opressivas e ignominiosas de trabalho, o usufruto da informao e da cultura escrita, e o acesso a bens de primeira necessidade (educao, sade, habitao). Importa, no entanto, frisar bem que esses progressos no.so . universais, nem comuns a todas as crianas do mundo. A informao disponvel permite-nos verificar que as desigualdades sociais, que se verificam escala global, repercutem em mais crianas (e mais gravosamente) afectadas por situaes de privao e pobreza nas regies do globo, nos pases e nos grupos sociais (neste caso, mesmo nos pases mais desenvolvidos) com maiores carncias socioeconmicas (Unicef, 2005). Porm, um dos preos a pagar foi precisamente o do desinvestimento do estatuto moral das crianas (Mayail, 2002). A infncia pode ser considerada como um "grupo social minoritrio" (id., ib.) por estar desapossada de condies de j m vnculo social pleno com o resto da sociedade. A nvisibilizao poltica da infncia uma extenso deste processo, pra o qual concorreram formas de administrao simblica.da infncia socialmente geradas e construdas (Popkewitz, 2000; Sarmento, 2004), bem como saberes periciais indutores de uma reflexividade institucional, indutora de uma ocultao das crianas como actores sociais dotados de autonomia e competncia (James, Jenks e Prout, 1998), A redefinio da cidadania da infncia o efeito conjugado da mudana paradigmtica na concepo de infncia, da construo de uma concepo jurdica renovada, expressa sobretudo na Conveno dos Direitos da Criana, de 1 989, e do processo societal de

ampliao das formas de cidadania, a partir de uma aco assertiva e contra-hegemnica, em que tm lugar nomeadamente agentes e ONCs centradas na infncia.Tal redefinio constitui, por consequncia, um espao tenso, no isento de ambiguidades e em processo de construo. No obstante, exprime-se como uma das mais prometedoras possibilidades de interpretao dos vnculos sociais das crianas. A cidadania da infncia, neste contexto, assume um significado que ultrapassa as concepes tradicionais, na medida em que implica o exerccio de direitos nos mundos de vida, sem obrigatoriamente estar subordinada aos dispositivos da democracia representativa (ainda que estes no sejam, por esse facto, menos importantes). To pouco, o reconhecimento dos direitos de cidadania em que a dimenso da participao das crianas assume um relevo crescente - implica, por esse facto, uma restrio nas exigncias de proteco das crianas plos adultos, nomeadamente pelas famlias e pelo Estado. no balano entre estas duas posies_- a proteco e a participao ' -que se exprime o melhor interesse das crianas (Archard, 2003). (In)visibilidade cientfica A (in)visibildade histrica e a (in)vsibilidade cvica tm como suporte, conforme temos vindo a dizer, uma invisibilidade cientfica que, mais do que produzida por ausncia de investigao sobre as crianas e a infncia, produzida pelo tipo dominante de produo de conhecimento. O predomnio de concepes epistemolgicas que rasuram as interpretaes das crianas na aco social, e o facto de os mundos da infncia terem permanecido durante dcadas relativamente afastados do debate epistemolgico antipositivsta que se prope interpretar a aco humana a partir de uma "dupla hermenutica" (Ciddens, 1988), resulta da influncia de uma orientao mainstream, nos estudos da criana, com base, em larga medida, nas teorias piagetianas (ou, pelo menos, em muitas das suas interpretaes dominantes) e em alguns sucedneos, que perspectivam as crianas como seres dotados de uma epistemologia "em trnsito", percorrendo sucessivas etapas de desenvolvimento, numa lgica cumulativa, linear e progressiva, at atingirem os estdios cognitivos e morais adultos. O construtivismo psicolgico coloca sob suspeita o pensamento infantil, porque pressupe a sua Incompletude e imperfeio: mais de uma falha do que de uma realizao que se trata, sempre que se escuta o significado que as crianas do aos seus gestos ou experincias.

Num certo sentido, o que inevitvel encontrar nesse discurso infantil o frame no qual ele previamente foi situado - o estdio de desenvolvimento previamente definido e caracterizado. "Escutar a voz das crianas" consiste, em ltima anlise, em escutar a voz do adulto que se revela num discurso previamente interpretado. Desenvolve-se assim um pensamento circular e uma cincia de "certezas" que continuamente se objectiva nos seus resultados. Mas tambm as cincias sociais, e a sociologia em particular, convergiram fortemente nesta orientao dominante, ao pensarem as crianas prioritariamente como objectos ou destinatrios de processos de socializao primria e secundria, plos quais as geraes mais novas adquirem as normas, valores, crenas e ideias do seu grupo social de pertena, sendo induzidas reproduo social. As cincias sociais nas suas abordagens dominantes, de algum modo, adquiriram como vlida e actualizaram a teoria lockiana da tabula rasa, segundo a qual a infncia a idade da inscrio directa e aproblemtica da norma social. Num certo sentido, muito do labor da sociologia, durante dcadas, no constituiu noutra coisa seno investigar este trabalho de inculcao, pelo qual se reproduz a sociedade. , no entanto, importante matizar ,e relativizar as afirmaes precedentes. Se as abordagens dominantes se caracterizam, em traos largos, pelo que foi dito, importa ressalvar que em algumas obras de Piaget se enuncia um esforo de induo, que, no sendo suficiente para permitir interpretar o pensamento infantil como um sistema reflexivo que importa estudar a partir de si prprio, no deixa de recusar uma orientao apriorstica na interpretao plos adultos das produes cognitivas das crianas e, sobretudo, se ope a formas autoritrias e paternalistas na relao de comunicao entre adultos e crianas. De modo semelhante, se as teorias dominantes da socializao rasuraram a aco interpretativa das crianas, no deixaram de criticamente enunciar pertinentemente muitos dos processos mais ou menos ostensivos ou mais ou menos subtis de dominao, de inculcao normativa e comportamenta! e de exerccio da violncia simblica. O que .pretendemos destacar, sobretudo, so os aspectos epist'emolgicos que se encontram em jogo na investigao dos mundos sociais da infncia e contrapor: ao entendimento das crianas como objectos de conhecimento social, a perspectiva das crianas como sujeitos do conhecimento; aos procedimentos analticos e interpretafivos que rasuram ou esvaziam de contedo as interpretaes das crianas sobre os seus mundos de vida, procedimentos que permitam uma efectiva escuta da voz das crianas, no quadro de uma reflexividade metodolgica que recusa o etnocentrismo aduitocntrico; s metodologias que assumem

instrumentalmente as crianas como informantes desqualificados, metodologias participativas que assumam as crianas corno parceiras na investigao (cf. Alderson, 2005). nesse sentido que, finalmente, se pode extrair da sombra a luz indecisa e trmula (porque incompatvel com certezas positivistas) que aclare a infncia e os seus mundos de vida. Concluso Durante demasiado tempo a fixao de imagens sociais das'crianas contribuiu para que se regulassem os mundos de vida das crianas, se fixassem pontos de referncia para a interpretao dos mundos de vida das crianas, se padronizassem as relaes entre crianas e adultos, se definissem os programas institucionais e os procedimentos, prescries e interdies face aco das crianas. Mesmo que, em cada momento histrico concreto, se contrapusessem imagens de sinal aparentemente contrrio (por exemplo, a imagem da criana m e a imagem romntica da criana inocente, ou a imagem da criana socialmente desenvolvida e a imagem da criana naturalmente desenvolvida), o inerente conflito interpretativo no ofusca(va) o poder das imagens: o de construir os quadros interpretativos das relaes sociais, especialmente das relaes das crianas com os adultos. A cincia, na era da "modernidade reflexiva" (Beck, Giddens e Lash, l 997), contribuiu poderosamente para a instalao e difuso das imagens sociais das crianas, e, por vezes de forma inatendida, para o controlo e a regulao das suas vidas. A realidade contempornea, porm, prope continuamente desafios pre-gnnciadas imagens sociais das crianas, como se o processo de "imaginao" tivesse entrado em deriva, e, como num caleidoscpio, alguns fragmentos de imagens pr-estruturadas refractassem sobre as outras, num movimento contnuo produtor de novos arranjos, insusceptveis de serem paralisados e fixados. A complexidade dos mundos de vida das crianas -das favelas brasileiras aos bairros sociais europeus, em trnsito pelas ruas da cidade ou fixadas em assentamentos, nas casas da classe mdia, nas escolas e jardins de infncia, nas instituies totais, nos centros de acolhimento e nos hospitais, nas aldeias ou nas reservas territoriais desafia uma cincia que parta ou que se fixe em imagens. Uma cincia outra, atenta complexidade das condies de existncia das crianas, capaz de combinar os vectores da socializao [horizontal e vertical, realizada entre pares e com os adultos) com os da subjectivao, o grupo geracional na sua existncia histrica concreta com a criana actor e autor da sua histria singular de vida, o que

comum infncia com a diversidade das possibilidades sociais de existncia, uma cincia, em suma, que resgate a voz das crianas no pode deixar de ser desconstrucionista das imagens estabelecidas e suficientemente atenta para impedir a cristalizao em novas imagens redutoras. Uma cincia assim - na verdade, um campo cientfico interdisciplinar: os estudos da infncia - no pode abdicar da "imaginao metodolgica" que faa da voz das crianas no o outro da voz do.s adultos (no j silenciada, mas reduzida e filtrada pelo processo analtico empregue), mas a expresso de uma alteridade que se conjuga na sua diferena face aos adultos. Uma cincia, em suma, que no ignora a sombra, nem a procura reduzir, mas que nela permita caminhar. Notas1

O conceito usado plos autores a que nos reportamos "imagining", o que, traduzido letra, daria qualquer coisa como imaginizao. O que est em causa no conceito a ideia de ^construo social de "imagens" simblicas da infncia, com influncia na produo de normas e prescries para as crianas. No se trata, portanto, de uma produo fantasista, ainda que as "imagens" sejam invenes do real que pretendem representar. Preferimos, no entanto, utilizar a expresso "imaginao", entre aspas, com o sentido de construo simblica de imagens sociais das crianas.2

Os autores propem as seguintes "imagens sociolgicas": a "criana socialmente construda", deduzida da teoria do construtivismo sociolgico; a "criana tribal", interpretada em termos antropolgicos e etnogrficos pela sua diferena cultural; a "criana membro de grupo minoritrio", que se exprime na teoria da condio social oprimida da criana, tal como a da mulher, e patente sobretudo nos estudos feministas da sociologia da infncia; a "criana socioestrutural", patente no trabalho terico da sociologia estruturai da infncia. 3 Ainda recentemente esse debate teve uma expressiva manifestao em Portugal com a publicao das teses de Filomena Mnca (1997) sobre os educadores e pedagogos como "filhos de Rousseau" e a notvel defesa da legitimidade de os educadores se proclamarem como "orgulhosamente filhos de Rousseau" por Antnio M. Magalhes e Stephen Stoer (l 998). Subscrevo a filiao rousseauniana, tambm "orgulhosamente", sem, contudo, subscrever a concepo romntica da infncia.

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