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Aborda o movimento de reforma urbana sob a perspectiva da política de exclusão social brasileira, corroboradas pelas políticas de desenvolvimento socioeconômicas e a consequente interveniência capitalista e neoliberal, em detrimento de direitos historicamente conquistados como moradia, direito à saúde, educação universal, entre outros, observadas nas Constituições propostas após os regimes de exceção latino-americanos. Trata-se aqui de dar voz aos relatos das pessoas diretamente afetadas, permeada por produções audiovisuais autônomas e institucionais. Pretende-se discutir a construção do corte social sustentado na divisão racial do trabalho, definida como “estado democrático de direitos” e o conceito de “estado de exceção”, inter-relacionados aos direitos humanos basilares.
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GT 07 – COMPRENSIÓN CRÍTICA DE LOS DERECHOS HUMANOS DESDE
AMÉRICA LATINA
Viver e ousar: Estado de exceção, luta por moradia e construções estereotipantes na segregação sócio-racial do Brasil
Cauê Almeida Galvão1
Resumo: Aborda o movimento de reforma urbana sob a perspectiva da política de exclusão social brasileira, corroboradas pelas políticas de desenvolvimento socioeconômicas e a consequente interveniência capitalista e neoliberal, em detrimento de direitos historicamente conquistados como moradia, direito à saúde, educação universal, entre outros, observadas nas Constituições propostas após os regimes de exceção latino-americanos. Trata-se aqui de dar voz aos relatos das pessoas diretamente afetadas, permeada por produções audiovisuais autônomas e institucionais. Pretende-se discutir a construção do corte social sustentado na divisão racial do trabalho, definida como “estado democrático de direitos” e o conceito de “estado de exceção”, inter-relacionados aos direitos humanos basilares
Palavras-chave: Reformas urbanas brasileiras; Estado de exceção; Direitos humanos.
“Raciocina matar no navio do porto, a cocaína no táxi aéreo chegando no aeroporto, tem erro na
pintura da imagem do inimigo, perigo não põe camisa na cara no distrito, é o que tem estilista e usa seda, tem
curso superior pra matar criança indefesa, no outdoor publicitário deixou falha, não viu o ladrão de terno com
a glock engatilhada, sequestrador a mídia cobra um mês tá morto, diferente de quem rouba com a caneta de
ouro, se por milagre fica emocionalmente abalado é receitada prisão domiciliar pro arrombado. O ladrão de
seis galinhas tá no presídio, o banqueiro tá livre porque tem endereço fixo, sonhar que o congresso vai aprovar
leis mais severas é o mesmo que o deputado atirar na própria testa, com a justiça reformulada não sou eu que tô
fudido, é a madame que vai levar “jumbo” pro marido, o que me faz roubar minha pena branda é ver a lata de
arroz sem 1 (hum) grama, eu sou só a consequência que te dá fita amarela, efeito do prefeito com dólar em
Genebra, o sangue do morro é o combustível do jato, na seguradora até o manto sagrado.
(Facção Central – Hoje deus anda de blindado)
Introdução
As políticas de desenvolvimentismo praticadas pelo Brasil, desde o período de
exceção até a suposta redemocratização no século XX, carregam em seu interior o avanço
capitalista e neoliberal de desmonte do Estado, em prol da desestruturação de direitos
historicamente conquistados como moradia, direito à saúde, educação universal, dentre
outros.
1 Graduando em História – América Latina, Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). E-mail: [email protected]
Estes aspectos podem ser claramente observados em todas as Constituições propostas
após os regimes de exceção latino-americanos, garantindo a consolidação do estado-nação
parlamentar e capitalista em detrimento das conquistas históricas nos períodos de Assembleias
Constituintes.
A Constituição Federal brasileira, datada de 05 de outubro de 1988, regulamenta e
define estes direitos, principalmente no Artigo 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. ”
(BRASIL, 1988, NÃO PAGINADO)
Entretanto, a realidade nacional evidencia outra trajetória, marcada pelo silenciamento
das instituições do Estado, o aparato militarizado e o consequente extermínio legal praticado
pelo “poder público” a uma parcela social, vulnerabilizadas pelo jogo do capital e, sobretudo,
a partir da construção de um corte social sustentado na divisão racial do trabalho que define o
pressuposto “estado democrático de direitos”2, delimitando os sujeitos que podem e irão
acessar os direitos basilares e, em contrapartida, aqueles que não terão sequer o direito de ter
direitos,
Este estado de exceção torna a vida destas pessoas, por conseguinte, indignas de serem
vividas:
A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é o caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora da relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação àquela na forma de suspensão. A norma aplica-se a exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída. (AGAMBEN, 2004b apud D’ELIA FILHO, 2015, p.88)
Este trabalho tem como temática as reformas urbanas, tendo em vista, através da
disciplina Fundamentos de América Latina III, na Universidade Federal da Integração Latino-
Americana (UNILA), o debate iniciado através da pesquisa e apresentação da temática
abordada, bem como pela indignação construída através dos relatos das pessoas afetadas por
essa política de exclusão social institucionalizada. Por isso, neste trabalho se valorizará as
vozes das pessoas afetadas através de produções audiovisuais autônomas e também
institucionais, garantindo assim voz em um ambiente que tem por obrigação debater essa
2 Grifo nosso.
política de higienização social praticada pelo Estado corrompido com o jogo do capital
financeiro.
Direito à moradia e o dever estatal de repressão e silenciamento
As ocupações urbanas nas grandes cidades ocorrem, primordialmente, devido a
desigualdade social instalada pelo capitalismo e suas nuances, que obrigam o isolamento e a
falta de acesso aos direitos básicos e fundantes de um Estado democrático de direito.
A prática usual das instâncias governamentais brasileiras é ancorada pelo discurso
controverso de coação de pessoas e seus direitos, em nome da consolidação da paz e do
Estado de direito.
Evidencia-se que os governantes não contemplam os ocupantes de um prédio urbano
ou área extensa sem função social como sujeitos de direitos, tendo em vista não serem
consumidores potenciais em uma sociedade factual.
Todavia, para que o Estado democrático de direito possa estabelecer-se, torna-se
necessário que haja uma parcela dessa sociedade em Estado de exceção, garantindo a
supressão dos direitos e possibilidades sociais de resolução da problemática, sendo quase
sempre resolvido com violência e acosso social. (AGAMBEN,2004; D’ELIA FILHO,2015)
Assim, a luta por moradia intensifica a construção de debates por direitos básicos
negados a uma extensa parcela populacional, gerando assim discursos sociais de violência,
tráfico de drogas e pobreza vinculados ao padrão desses sujeitos.
A construção política a favor de um direito básico apresenta uma realidade divergente
da visão estereotipada desses discursos, obstando o fator determinante da luta por espaço em
um país dominado por latifúndios e capitais especulativos.
O relato a seguir pertence ao Sr. Joel de Carvalho, morador da comunidade “Sonho
Real”, na cidade de Goiânia/GO, centro-oeste brasileiro, despejada de forma genocida no ano
de 2005, gravada no “Documentário Sonho Real– Uma história de luta por moradia”:
O que se passa aqui essa noite é uma demonstração clara e clássica do Estado burguês, que está aí a serviço do que está colocado pela sociedade. Na visão deles nós somos bandidos, nós somos marginais, nós somos invasores. E tem que nos reprimir a ferro e fogo, com bomba, com arma... O que acontece aqui no parque oeste industrial, em Goiânia, Goiás que está no centro-oeste do Brasil - que é praticamente um país continental que é o nosso – que tem uma diversidade muito grande de etnias e que tem uma desigualdade social muito grande, onde muito poucos tem muito e muitos dos muitos não têm absolutamente nada. O que acontece é que nós temos um déficit habitacional monstruoso no Brasil que bate a casa de quase 7 milhões de moradias, e aqui no centro oeste do Brasil em Goiânia não é diferente.
Isso é uma área muito grande de famílias, de latifúndios, de burgueses aqui de Goiás. Por 40 ou mais anos, esse pessoal nunca pagou um centavo de imposto ou de tributo e está garantido na Constituição que a terra tem que cumprir sua função social. Porque o que nós queremos, a gente não quer piedade, muito menos dó, nós queremos respeito porque o brasileiro trabalha, o brasileiro paga tributos para o governo, paga tributos a esfera de município, de estado e de governo federal. Até porque a riqueza dessa nação, o de melhor que esse país sempre teve - que sempre foi explorado e foi colônia de exploração – foi sempre mandado pra fora, o que nós precisamos é de dignidade, de respeito; é acima de tudo de termos as nossas casas, de termos paz nas nossas vidas, de podermos passear com nossos filhos e poder dizer olha meu filho eu tenho onde morar, a nossa luta foi grande e que não foi em vão pois hoje temos casa e relativa dignidade e vamos continuar lutando porque as grandes transformações que aconteceu na terra começou de um número pequeno de pessoas.3
Nesse sentido, cabe refletir a construção e categorização binária das palavras no
discurso social de criminalização dos movimentos de luta por moradia:
militantes/ocupação/invasão, ativista/infrator, luta por direitos/estereotipo do
desocupado/vagabundo, divergindo de acordo com os meios de informação e as múltiplas
correntes de discurso social impositivo.
As discrepâncias no processo de difusão das informações consolidam o estado de
exceção, ao suprimirem as possibilidades de que as reivindicações desses sujeitos sejam
verdadeiramente reconhecidas, em detrimento dos interesses econômicos que cooptam os
governos e partidos políticos, influindo significativamente na especulação imobiliária e no
favorecimento de massas falidas – débitos e créditos de uma empresa falida -. Aponta-se,
como exemplo, o caso “Pinheirinho”, ocorrido no ano de 2012, na cidade de São José dos
Campos/SP.
Protagonizando, a empresa Selecta Comércio e Industria (declarada falida),
pertencente a Naji Nahas, empresário libanês atuante na area de investimentos e especulação
imobiliária, radicado no Brasil desde 1969, mesmo com a desistência da reintegração de
posse4, desocupou de forma violenta e arbitrária milhares de famílias. Tais fatos foram
narrados na introdução do Documentário “O Massacre de Pinheirinho: A verdade não mora ao
lado. ”
Em 2004, com mais de 1 milhão de metros quadrados, Pinheirinho era um terreno abandonado. Começou a ser ocupado por famílias pobres da região
3 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=i1h28d-niU4> Acesso em: IDEM NOTA ANTERIOR4 Disponível em: < http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/pinheirinho-massa-falida-havia-desistido-de-reintegracao> Acesso em 25/06/2015.
do Vale do Paraíba entre São Paulo e Rio de Janeiro. Já em 2012, quando as tropas chegaram, 6000 pessoas moravam no Pinheirinho. 5
A demonstração peremptória a esses indivíduos da própria representatividade social
decorre da repressão violenta pelos aparatos policiais e jurídicos, avalizada pelo último quanto
a reintegração de posse.
Neste aspecto, anulam-se os direitos, tanto pela suposta ocupação de uma área privada
da empresa insolvente, quanto pelo fato destes sujeitos serem considerados desprovidos de
direitos pelo Estado e suas instituições.
No documentário supracitado, esta incongruência se torna mais evidente quando
ocorre um ataque, por parte dos policiais e guarda civis municipais, aos abrigos para os quais
os moradores foram direcionados, sob a garantia de direitos, demonstrando a contradição e
intensificando a percepção da segregação social por raça e condição social.
A partir do relato de uma ex-moradora não identificada do “Pinheirinho”, observa-se
que a busca de direitos por parte do Estado exacerba, algumas vezes, o preconceito social,
bem como a intenção verdadeira da desocupação de um bairro estabilizado dentro da área da
empresa Selecta Comércio e Indústria.
Os assistentes sociais da prefeitura estavam oferecendo passagens para gente ir embora pro norte. No meu caso, eu não tenho família no norte, minha vida eu fiz aqui, eu vim pra cá com 1 ano de idade, minhas crianças são todas paulistas e todos estão na escola que vai começar agora em fevereiro as aula deles. Para que a gente vai embora pro norte se nossa vida está aqui, não tem condições eles quererem que a gente saia daqui pra tirar o problema deles? O problema deles é a gente?6 ”
O Estado, que deveria garantir os direitos básicos a essa população, os coloca em
situação ainda mais vulnerável, além das táticas da psicologia do medo e da desestruturação
familiar, informando aos pais [...] que o pessoal estava indo pro alojamento e separando os
filhos dos pais e mandando pro conselho tutelar porque nós não temos mais casa. 7
O caso do Pinheirinho foi sintetizado de forma acurada pelo Deputado Estadual
paulista Carlos Giannazi, pertencente ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que
acompanhou o processo de acordo para desapropriação (e não desocupação e reintegração de
posse), presente em outros movimentos de luta por moradia e fuga da vulnerabilidade social:
5 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=NBjjtc9BXXY> Acesso em: IDEM NOTAS6 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=NBjjtc9BXXY> Acesso em: IDEM NOTAS7 Idem.
Houve aqui uma afronta aos direitos humanos, uma afronta à cidadania, uma afronta ao direito à moradia. A juíza que determinou essa desapropriação está agindo em causa própria. Porque nós conseguimos nessa semana ainda um acordo com a massa falida suspendendo o processo da própria massa falida para dar prazo para que os governos federal, estadual e municipal pudessem fazer um acordo para que a área fosse desapropriada e entregue aos moradores mas a juíza não acatou essa orientação do Tribunal de Justiça e por conta própria, sem legitimidade, ordenou a desocupação.8
Destarte, observa-se que os movimentos sociais buscam intensificar, junto à população
de ocupações “irregulares” e acampamentos, a politização dos processos que constituem seus
direitos, sua condição de sem direitos ou de habitante de uma zona de exclusão da cidade.
Durante a Copa do Mundo de Futebol, realizada em 2014 no Brasil, a integrante do
Comitê Popular da Copa em São Paulo, Priscila Cavalieri, manifestou-se sobre as
intervenções na “Favela do Moinho”, no centro da capital paulista, durante o jogo Brasil
versus Croácia, inserida no vídeo “A Copa que São Paulo viu”, disponibilizado pelo Jornal
Folha de São Paulo no site de compartilhamentos YouTube®:
Hoje a gente tá aqui no Moinho - que apesar de estar fora da zona de exclusão da FIFA é uma zona de exclusão da cidade – fazendo diversas intervenções de crítica à copa do mundo. A gente teve a malhação do Ronaldo [...] a gente teve a brincadeira do cala-boca Galvão, que era um palhaço grande que você acerta a bola dentro da boca dele, tomba cartolas da FIFA, a gente teve o tiro ao alvo nas empreiteiras que dependendo de onde você acertar você poderia acertar a Camargo Correia, Odebrecht...9
Pedagogia da luta e a ressignificação do sujeito estereotipado
A construção do imaginário social sobre as problemáticas reais que engendram a luta
por dignidade e conquista de direitos como o acesso a moradia, embota a sociedade e colabora
para o processo de controle social de um Estado que, naturalmente, tende ao clientelismo e a
cooptação.
Todavia, a luta por direitos basilares é, desde a construção do ideal de Estado-nação
moderno, a luta por espaço no poder de decisão da elite ou do dominador, que inicia com o
estabelecimento de estruturas morais de ser, viver, fazer e compreender e aportam nas
8 Ibidem.9 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6x00PngjEdU> Acesso em: IDEM NOTAS
sociedades utópicas e possíveis como a obra Leviatã de Hobbes (2008) e o contrato social de
Rousseau (2013).
Assim, o intuito legalista e regulador do direito define quem tem e quem não tem
direitos, pautado na estruturação de regramentos sociais e pressupondo uma força soberana
que regerá comportamentos e o próprio modus vivendi.
Postula-se, portanto, que a concepção de um Estado capitalista moderno e neoliberal
detém esta força soberana, que engendra diversas instituições e abarca a lógica biopolítica de
controle dos corpos e instituições.
Depreende-se, a partir dessas premissas, a concepção da seletividade social, ou seja,
quem vive e possui direitos, ainda que mínimos, para estar vivo e, por outro ângulo, quem não
tem condições de almejar o mínimo de direitos.
A este último, torna-se legítimo ao Estado e aos seus aparatos, principalmente o
policial, perseguir, torturar e assassinar indivíduos e famílias oriundas de camadas
socioeconômicas menos favorecidas sob a tutela do Ministério Público, que garante o
arquivamento dos processos de homicídios como meros autos de resistência.
Segundo afirma D’Elia Filho (2015, p.140) [...] se a polícia mata quem joga a “pá de
cal” é o poder jurídico.
Esta sociedade dividida aprovisiona a construção midiática de um Estado inseguro,
que requer mais policiamento, repressão e poder bélico, em detrimento de uma população que
clama por direitos básicos.
A cidade partida revela assim diferentes sentidos nos binômios ordem/desordem; lei/fora da lei; pureza/impureza; limpeza/sujeira; a produzir políticas higienistas voltadas para eliminação e o extermínio dos bárbaros, que colocam em perigo a ordem social a partir das favelas e guetos, entendidos como “viveiro de monstros”. (BATISTA, 2003 apud D’ELIA FILHO, 2015, p.139)
A sociedade bipolarizada gera contrastes como a Copa do Mundo no Brasil/2014, em
que três mil pessoas participantes do “Movimento dos trabalhadores sem-teto” acamparam
próximo ao “Estádio Itaquerão”, localizado na zona leste de São Paulo, construído para o
evento futebolístico em uma área de periferia, com recursos públicos e sem acesso as
condições básicas de qualidade de vida.
Esse acampamento foi chamado de “Acampamento Copa do Povo”, divulgado no
vídeo “A copa que São Paulo viu”: Eu sou sem-teto, copa do mundo no Brasil me
revolta...Não quero copa, copa, copa no Brasil eu quero teto! Não quero copa, copa, copa no
Brasil, eu quero teto! ”10
Ressalta-se que, independentemente do tempo de ocupação nos espaços, a ação de
reintegração é constante nessas zonas periféricas de exclusão e invisibilidade social e poucos
casos consolidam suas ocupações devido ao favorecimento dos instrumentos jurídicos aos
proprietários de imóveis ou terras inutilizadas.
Toma-se como exemplo a ocupação “Saraí”, em Porto Alegre/RS, através do relato de
Gilberto Aguiar, militante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), inserido
no Documentário “Por um sonho urbano”, disponibilizado no site de compartilhamentos
YouTube®, no ano de 2014, quando afirma [...] esse prédio era público, ele era da Caixa
Econômica e foi vendido para um empresário que pediu dinheiro emprestado pra Caixa pra
pagar o próprio prédio e quatro meses depois vendeu para o submundo do crime. (CENTRO
UNIVERSITÁRIO METODISTA IPA,2014, NÃO PAGINADO).
O prédio em questão foi construído com recursos públicos para utilização como
moradia social, porém não se destinou a este fim.
Inicialmente, o edifício foi repassado a Caixa Econômica Federal (CEF) para
funcionar como escritório e, posteriormente, permaneceu durante 20 anos abandonado.
Na década de 2000, a Caixa vendeu por 600 mil reais o prédio para a Risa
Empreendimentos Imobiliários Ltda, que o repassou em 2006 ao Primeiro Comando da
Capital (PCC).
Este repasse foi comprovado por investigação policial, através da descoberta de um
túnel de oitenta metros no interior do prédio que serviria para assalto a um banco.
Na investigação, descobriu-se que a Risa Empreendimentos repassou o prédio ao PCC
pelo valor de 1 milhão e 200 mil reais, sendo que após a descoberta do túnel, o prédio foi
devolvido a Risa.
O favorecimento do instrumento jurídico a favor da classe dominante e detentora do
capital especulativo dos espaços, determina cada vez mais quais são as práticas que devem ser
produzidas em um Estado de direitos, transpassada pelo controle social e as representações
políticas de poderes, excluindo a possibilidade de participação social e inclusão das pessoas
em vulnerabilidade social, creditando a segregação social como um fator de lógica econômica
e mercadológica.
10 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6x00PngjEdU> Acesso em: IDEM NOTAS
Afinal, se construíram mais casas no programa do governo federal “Minha casa,
Minha vida”, do que pessoas que não tem casas, e nem por isso, resolveu-se o problema de
moradia no Brasil. Essa denotação clarifica que o interesse privado dominante dentro do
interesse público na figura do Estado, desestrutura e destrói qualquer construção de políticas
de combate a desigualdade no país.
Tais assertivas coadunam com o relato de Eduardo Solari, militante e morador da
ocupação autônoma ” no centro da cidade de Porto Alegre, participante do “Movimento
Autônomo Utopia e Luta”, disponibilizado no site de compartilhamentos YouTube®, em
novembro de 2014.
“Depois em outra área nós temos una parte crítica com respeito a isso, que nós não voltaremos a transferir massa da periferia para o centro da cidade. Isso já para nós em nossa experiênica ficou definido, está confirmado por companheiros e companheiras através de análises de todo tipo. Nós construímos essas outra áreas, a área de integração social e reorganização social. Nós colaboramos em outra área paralelamente, uma que avança e outra que retrocede, que é o assunto da perda de identidade pessoal dos que vieram dos bairros para o centro. O que aconteceu? Acontece que você transfere uma massa que vem da periferia para o centro, melhora o trabalho, porque melhora endereço e melhora vestuário e entra no consumismo, e depois começa a se sentir classe média e começa a discriminar seus próprios bairros e já não se identifica com seus próprios bairros mas as pessoas da classe média histórica do centro também não o aceitam e assim ficam em um nível social sem identidade.”11
Observa-se que o conceito de autonomia incide na edificação de espaços pensados
como “cidade” na lógica capitalista em que elas se estruturam e, ainda, a compreensão que o
processo de luta de classes é incontestável, tornando a periferização dos sujeitos um
instrumento de reflexão e transformação de espaços em ambientes autônomos, tendo em vista
continuarem invisíveis.
Embora a ocupação tenha conseguido fixar-se no centro da cidade de Porto Alegre, o
militante visualiza as estruturas de segregação, através dos discursos de classe e das
contradições sobre não ter identidade, a partir da não aceitação social.
Nesse contexto, urge a conscientização da sociedade sobre os processos de construção
de direitos, os movimentos sociais e as possibilidades de conhecimento e difusão da Internet e
seus meios.
11 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=nxmLmJlGSBg> Acesso em:
A zona trinacional e a fronteira do direito à moradia em Foz do Iguaçu/PR
Por se tratar de um trabalho apresentado no âmbito da UNILA, localizada em Foz do
Iguaçu, Paraná, região trinacional entre Brasil, Argentina e Paraguai, considera-se de suma
importância trazer ao debate o entendimento do sentido de fronteira.
De fato, a fronteira afeta muito mais que a divisão limítrofe entre países, estendendo-
se à construção de privilégios no Estado democrático de direitos, muito mais sólidas e seguras
entre as classes sociais de um mesmo país.
Assim, compreende-se que se as fronteiras nacionais de segregação social se
transformam através da luta e controle social dos direitos, torna-se desnecessária uma
fronteira entre países.
Na cidade de Foz do Iguaçu, região do Porto Meira, bairro localizado no extremo sul
da cidade, próximo a ponte que liga o Brasil à Argentina, constituiu-se em 18 de janeiro de
2013 a ocupação denominada “Bubas”, em uma área de 36 hectares, pleiteando a moradia
popular.
No ano de 2015, essa luta que inicialmente era para a construção de um conjunto
habitacional para a retirada das famílias, agora é a legalidade do bairro e a consolidação do
terreno como parte integrante da cidade, já que esse pode ser percebido claramente como em
estado de exceção, pois é nítido a suspensão de direitos por conta da construção social
estereotipante e a burocracia de privilégios do Estado inoperante.
A moradora e comerciante Ester Meireles apresentou um breve retrato, na entrevista
concedida ao Jornal Gazeta[...] Eu faço pé e mão das mulheres que também vivem aqui. Com
esse dinheiro dá para contribuir com o orçamento da casa. O mais difícil é garantir acesso à
creche aos meus filhos pequenos.12
A dificuldade de acesso à educação é uma representação do estereótipo social em que
as pessoas menos favorecidas economicamente findam por serem taxadas como
usuários/traficantes de drogas, criminosos e incapacitados intelectualmente, incorporando
discursos segregadores que legitimam a punição e o isolamento, negando o acesso aos direitos
básicos pelo simples fator do local de moradia desses atores sociais.
Estes discursos apresentam-se, comumente, na forma de criminalização dos
movimentos sociais, auxiliada pela difusão midiática das redes televisivas e jornais de
circulação local e regional.
12 Disponível em: <http://www.gazeta.inf.br/index.php/foz-do-iguacu/53-geral/8482-familias-persistem-na-luta-por-moradia> Acesso em: 24/08/2015
Uma das moradoras do “Bubas”, Júlia, define este estranhamento e o sensacionalismo
desses meios de comunicação, em entrevista concedida ao Centro de Mídia Independente
(CMI), rede anticapitalista de produtores de mídia autônomos e voluntários. [...] Olha, depois
que a gente resolveu parar, nóis não dá mais reportagem, parou, porque tudo que a gente
falava eles mudavam, eles colocavam na mídia o que eles queriam, não mostravam a
realidade. ”13
O acesso aos direitos básicos é extremamente dificultado pela Prefeitura, devido aos
impedimentos impostos aos moradores que residem na ocupação, como a não aceitação nas
escolas de crianças habitantes do “Bubas” e o acesso à saúde, por morarem em região
irregular.
Ademais, por se tratar de uma fronteira, a xenofobia imposta às famílias paraguaias
que fazem parte do movimento e residem no “Bubas”, intensifica o processo de
deslegitimação da luta e descriminalização dos pobres, através do estado de exceção
institucional e a consequente repressão social, não somente pela violência, mas sobretudo nos
discursos e formas de segmentação por nacionalidade.
Torna-se premente o entendimento que o espaço trinacional não pode ser determinado
através de uma identidade nacional ou questões raciais. Neste espaço, os paraguaios tornaram-
se alvo de desqualificações quanto a pobreza e a falta de oportunidade.
Devido aos seus traços indígenas da cultura guarani, os ocupantes paraguaios são
pejorativamente denominados “xirus”, cultura essa que é predominante, porém silenciosa, na
comunidade de Ciudad del Este e arredores, que circunvizinha Foz do Iguaçu/PR.
Conclusão
As manifestações que vem ocorrendo no Brasil desde o Fórum Social Mundial em
2001, passando aí por revoltas pelo transporte digno e público de fato em 2003 com a
organização do Movimento Passe Livre (MPL) como espaço autônomo e horizontal dentro
dos movimentos sociais historicamente vinculado a partidos e sindicatos, em 2008 com as
ocupações forçadas da polícia militar do Rio de Janeiro como suposta pacificação dos morros
cariocas da zona sul, em 2013 contra a repressão policial, em 2014 pela Copa do Mundo e por
aí continuamos, pois, a luta, em um contexto recente pautado nos anos 2000 como visto
13 Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/eo/blue/2013/12/527421.shtml?comment=on> Acesso em: 24/08/2015
acima, refere-se a um fortalecimento do processo de construção política, sobretudo vinculado
a bandeiras autonomistas e horizontalistas.
A manifestação popular, assim, torna-se importante instrumento de sobrevivência,
oportunizando o empoderamento social, a fim de garantir que o controle social se estabeleça
não de forma consultiva como tem sido desde a redemocratização, mas que a participação
popular realmente se faça presente, como na ocupação “Utopia e Luta” em Porto Alegre/RS,
ou nos processos da referida ocupação nas políticas participativas do governo Tarso Genro de
1989-1992.
Estas participações populares apontam para a falência do sistema representativo,
marginalmente representadas como violentas, vândalas, arruaceiras, anarquistas e Black
Bocs14, tanto por partidos políticos de esquerda e lideranças sindicais quanto por pensadores,
políticos e ideólogos de direita, explicitando os pensamentos solidificados oriundos de várias
correntes do pensamento, além de expor a disputa pelo poder centralizador e de tomada de
decisões.
Percebe-se que a maioria destes movimentos populares não visa os interesses de los de
abajo, não exprime a autogestão e participação de cada indivíduo e não significa o
empoderamento das camadas sociais presentes nas ocupações urbanas.
Usualmente, o papel do direito aos indivíduos, nestas ocupações, apenas legitima o
constante e consequente estado de exceção.
A expulsão destes sujeitos dos espaços majoritariamente abandonados beneficia
apenas a especulação financeira e imobiliária das grandes e pequenas cidades em diversas
localidades brasileiras, gerando um ciclo de desmobilização dos movimentos, bem como a
vulnerabilidade de seus atores.
Na maioria das vezes, esta vulnerabilidade é causada pela consolidação das leis que
esse mesmo Estado democrático de direitos legitima para excluir parcelas populacionais,
negando direitos básicos, humanitários, jurídicos e políticos.
A compreensão basilar e premente que a luta por moradia constitui a luta pela vida
requer, do Estado e da sociedade como um todo, a constatação que os direitos foram
fundamentados historicamente para consolidação da paz social.
Entretanto, o conceito de paz social ancora-se no direito ocidental punitivo, a partir da
consolidação do capitalismo liberal, que se baseia na lógica darwinista da seleção natural: os
mais fortes se adaptam e os mais fracos perecem.
14 Tática de ação direta anarquista empreendida por grupos de afinidades.
A condição humana apresenta múltiplas facetas, inclusive a diversidade de origem
econômica, social e cultural, que a lógica neoliberal de meritocracia atribui arbitrariamente, a
partir dos anos 2000, medrando as discrepâncias sociais pela implantação de julgamento
sistemático, que não reconhece o direito à vida e a dignidade implícita.
Avigorar o empoderamento torna-se essencial na luta por todos os direitos básicos
garantidos pelo Estado democrático de direito, inclusive a dissolução da estrutura de
segregação sócio racial e os efeitos da estereotipização dos sujeitos em condições de
vulnerabilidades, viabilizados pelo Estado de direitos neoliberais e sustentados pelos governos
democráticos representativos.
Por conseguinte, espera-se a continuidade nos questionamentos ora propostos,
estendendo-se às esferas de atuação em que a possibilidade de construção da luta coletiva e
autônoma garanta a defesa dos direitos legais para todos, principalmente aos que são
representados como inimigos públicos por fatores culturais, políticos, religiosos e
econômicos, justamente por serem silenciados pelo Estado democrático de direito.
Aqueles que ousam sonhar, como todos nós.
REFERÊNCIAS
Facção Central – Hoje deus anda de blindado. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=90nzxX3L56M
CENTRO UNIVERSITÁRIO METODISTA IPA. Canal do YouTube. Documentário “Por um sonho urbano”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3AVSjJ6l3T8>Acesso em: VER ORIENTAÇÕES NO TEXTO
D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de
extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan. 2015
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado eclesiástico e civil. 2.ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.636p. Coleção Obra-prima de cada autor- série ouro.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2013. 154p. Coleção Obra-prima de cada autor- série ouro.