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GT 07 – COMPRENSIÓN CRÍTICA DE LOS DERECHOS HUMANOS DESDE AMÉRICA LATINA Viver e ousar: Estado de exceção, luta por moradia e construções estereotipantes na segregação sócio-racial do Brasil Cauê Almeida Galvão 1 Resumo: Aborda o movimento de reforma urbana sob a perspectiva da política de exclusão social brasileira, corroboradas pelas políticas de desenvolvimento socioeconômicas e a consequente interveniência capitalista e neoliberal, em detrimento de direitos historicamente conquistados como moradia, direito à saúde, educação universal, entre outros, observadas nas Constituições propostas após os regimes de exceção latino-americanos. Trata-se aqui de dar voz aos relatos das pessoas diretamente afetadas, permeada por produções audiovisuais autônomas e institucionais. Pretende-se discutir a construção do corte social sustentado na divisão racial do trabalho, definida como “estado democrático de direitos” e o conceito de “estado de exceção”, inter-relacionados aos direitos humanos basilares Palavras-chave: Reformas urbanas brasileiras; Estado de exceção; Direitos humanos. “Raciocina matar no navio do porto, a cocaína no táxi aéreo chegando no aeroporto, tem erro na pintura da imagem do inimigo, perigo não põe camisa na cara no distrito, é o que tem estilista e usa seda, tem curso superior pra matar criança indefesa, no outdoor publicitário deixou falha, não viu o ladrão de terno com a glock engatilhada, sequestrador a mídia cobra um mês tá morto, diferente de quem rouba com a caneta de ouro, se por milagre fica emocionalmente abalado é receitada prisão domiciliar pro arrombado. O ladrão de seis galinhas tá no presídio, o banqueiro tá livre porque tem endereço fixo, sonhar que o congresso vai aprovar leis mais severas é o mesmo que o deputado atirar na própria testa, com a justiça reformulada não sou eu que tô fudido, é a madame que vai levar “jumbo” pro marido, o que me faz roubar minha pena branda é ver a lata de arroz sem 1 (hum) grama, eu sou só a consequência que te dá fita amarela, efeito do prefeito com dólar em Genebra, o sangue do morro é o combustível do jato, na seguradora até o manto sagrado. 1 Graduando em História – América Latina, Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). E-mail: [email protected]

Viver e ousar: Estado de exceção, luta por moradia e construções estereotipantes na segregação sócio-racial do Brasil

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Aborda o movimento de reforma urbana sob a perspectiva da política de exclusão social brasileira, corroboradas pelas políticas de desenvolvimento socioeconômicas e a consequente interveniência capitalista e neoliberal, em detrimento de direitos historicamente conquistados como moradia, direito à saúde, educação universal, entre outros, observadas nas Constituições propostas após os regimes de exceção latino-americanos. Trata-se aqui de dar voz aos relatos das pessoas diretamente afetadas, permeada por produções audiovisuais autônomas e institucionais. Pretende-se discutir a construção do corte social sustentado na divisão racial do trabalho, definida como “estado democrático de direitos” e o conceito de “estado de exceção”, inter-relacionados aos direitos humanos basilares.

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GT 07 – COMPRENSIÓN CRÍTICA DE LOS DERECHOS HUMANOS DESDE

AMÉRICA LATINA

Viver e ousar: Estado de exceção, luta por moradia e construções estereotipantes na segregação sócio-racial do Brasil

Cauê Almeida Galvão1

Resumo: Aborda o movimento de reforma urbana sob a perspectiva da política de exclusão social brasileira, corroboradas pelas políticas de desenvolvimento socioeconômicas e a consequente interveniência capitalista e neoliberal, em detrimento de direitos historicamente conquistados como moradia, direito à saúde, educação universal, entre outros, observadas nas Constituições propostas após os regimes de exceção latino-americanos. Trata-se aqui de dar voz aos relatos das pessoas diretamente afetadas, permeada por produções audiovisuais autônomas e institucionais. Pretende-se discutir a construção do corte social sustentado na divisão racial do trabalho, definida como “estado democrático de direitos” e o conceito de “estado de exceção”, inter-relacionados aos direitos humanos basilares

Palavras-chave: Reformas urbanas brasileiras; Estado de exceção; Direitos humanos.

“Raciocina matar no navio do porto, a cocaína no táxi aéreo chegando no aeroporto, tem erro na

pintura da imagem do inimigo, perigo não põe camisa na cara no distrito, é o que tem estilista e usa seda, tem

curso superior pra matar criança indefesa, no outdoor publicitário deixou falha, não viu o ladrão de terno com

a glock engatilhada, sequestrador a mídia cobra um mês tá morto, diferente de quem rouba com a caneta de

ouro, se por milagre fica emocionalmente abalado é receitada prisão domiciliar pro arrombado. O ladrão de

seis galinhas tá no presídio, o banqueiro tá livre porque tem endereço fixo, sonhar que o congresso vai aprovar

leis mais severas é o mesmo que o deputado atirar na própria testa, com a justiça reformulada não sou eu que tô

fudido, é a madame que vai levar “jumbo” pro marido, o que me faz roubar minha pena branda é ver a lata de

arroz sem 1 (hum) grama, eu sou só a consequência que te dá fita amarela, efeito do prefeito com dólar em

Genebra, o sangue do morro é o combustível do jato, na seguradora até o manto sagrado.

(Facção Central – Hoje deus anda de blindado)

Introdução

As políticas de desenvolvimentismo praticadas pelo Brasil, desde o período de

exceção até a suposta redemocratização no século XX, carregam em seu interior o avanço

capitalista e neoliberal de desmonte do Estado, em prol da desestruturação de direitos

historicamente conquistados como moradia, direito à saúde, educação universal, dentre

outros.

1 Graduando em História – América Latina, Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). E-mail: [email protected]

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Estes aspectos podem ser claramente observados em todas as Constituições propostas

após os regimes de exceção latino-americanos, garantindo a consolidação do estado-nação

parlamentar e capitalista em detrimento das conquistas históricas nos períodos de Assembleias

Constituintes.

A Constituição Federal brasileira, datada de 05 de outubro de 1988, regulamenta e

define estes direitos, principalmente no Artigo 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a

alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à

maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. ”

(BRASIL, 1988, NÃO PAGINADO)

Entretanto, a realidade nacional evidencia outra trajetória, marcada pelo silenciamento

das instituições do Estado, o aparato militarizado e o consequente extermínio legal praticado

pelo “poder público” a uma parcela social, vulnerabilizadas pelo jogo do capital e, sobretudo,

a partir da construção de um corte social sustentado na divisão racial do trabalho que define o

pressuposto “estado democrático de direitos”2, delimitando os sujeitos que podem e irão

acessar os direitos basilares e, em contrapartida, aqueles que não terão sequer o direito de ter

direitos,

Este estado de exceção torna a vida destas pessoas, por conseguinte, indignas de serem

vividas:

A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é o caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora da relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação àquela na forma de suspensão. A norma aplica-se a exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída. (AGAMBEN, 2004b apud D’ELIA FILHO, 2015, p.88)

Este trabalho tem como temática as reformas urbanas, tendo em vista, através da

disciplina Fundamentos de América Latina III, na Universidade Federal da Integração Latino-

Americana (UNILA), o debate iniciado através da pesquisa e apresentação da temática

abordada, bem como pela indignação construída através dos relatos das pessoas afetadas por

essa política de exclusão social institucionalizada. Por isso, neste trabalho se valorizará as

vozes das pessoas afetadas através de produções audiovisuais autônomas e também

institucionais, garantindo assim voz em um ambiente que tem por obrigação debater essa

2 Grifo nosso.

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política de higienização social praticada pelo Estado corrompido com o jogo do capital

financeiro.

Direito à moradia e o dever estatal de repressão e silenciamento

As ocupações urbanas nas grandes cidades ocorrem, primordialmente, devido a

desigualdade social instalada pelo capitalismo e suas nuances, que obrigam o isolamento e a

falta de acesso aos direitos básicos e fundantes de um Estado democrático de direito.

A prática usual das instâncias governamentais brasileiras é ancorada pelo discurso

controverso de coação de pessoas e seus direitos, em nome da consolidação da paz e do

Estado de direito.

Evidencia-se que os governantes não contemplam os ocupantes de um prédio urbano

ou área extensa sem função social como sujeitos de direitos, tendo em vista não serem

consumidores potenciais em uma sociedade factual.

Todavia, para que o Estado democrático de direito possa estabelecer-se, torna-se

necessário que haja uma parcela dessa sociedade em Estado de exceção, garantindo a

supressão dos direitos e possibilidades sociais de resolução da problemática, sendo quase

sempre resolvido com violência e acosso social. (AGAMBEN,2004; D’ELIA FILHO,2015)

Assim, a luta por moradia intensifica a construção de debates por direitos básicos

negados a uma extensa parcela populacional, gerando assim discursos sociais de violência,

tráfico de drogas e pobreza vinculados ao padrão desses sujeitos.

A construção política a favor de um direito básico apresenta uma realidade divergente

da visão estereotipada desses discursos, obstando o fator determinante da luta por espaço em

um país dominado por latifúndios e capitais especulativos.

O relato a seguir pertence ao Sr. Joel de Carvalho, morador da comunidade “Sonho

Real”, na cidade de Goiânia/GO, centro-oeste brasileiro, despejada de forma genocida no ano

de 2005, gravada no “Documentário Sonho Real– Uma história de luta por moradia”:

O que se passa aqui essa noite é uma demonstração clara e clássica do Estado burguês, que está aí a serviço do que está colocado pela sociedade. Na visão deles nós somos bandidos, nós somos marginais, nós somos invasores. E tem que nos reprimir a ferro e fogo, com bomba, com arma... O que acontece aqui no parque oeste industrial, em Goiânia, Goiás que está no centro-oeste do Brasil - que é praticamente um país continental que é o nosso – que tem uma diversidade muito grande de etnias e que tem uma desigualdade social muito grande, onde muito poucos tem muito e muitos dos muitos não têm absolutamente nada. O que acontece é que nós temos um déficit habitacional monstruoso no Brasil que bate a casa de quase 7 milhões de moradias, e aqui no centro oeste do Brasil em Goiânia não é diferente.

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Isso é uma área muito grande de famílias, de latifúndios, de burgueses aqui de Goiás. Por 40 ou mais anos, esse pessoal nunca pagou um centavo de imposto ou de tributo e está garantido na Constituição que a terra tem que cumprir sua função social. Porque o que nós queremos, a gente não quer piedade, muito menos dó, nós queremos respeito porque o brasileiro trabalha, o brasileiro paga tributos para o governo, paga tributos a esfera de município, de estado e de governo federal. Até porque a riqueza dessa nação, o de melhor que esse país sempre teve - que sempre foi explorado e foi colônia de exploração – foi sempre mandado pra fora, o que nós precisamos é de dignidade, de respeito; é acima de tudo de termos as nossas casas, de termos paz nas nossas vidas, de podermos passear com nossos filhos e poder dizer olha meu filho eu tenho onde morar, a nossa luta foi grande e que não foi em vão pois hoje temos casa e relativa dignidade e vamos continuar lutando porque as grandes transformações que aconteceu na terra começou de um número pequeno de pessoas.3

Nesse sentido, cabe refletir a construção e categorização binária das palavras no

discurso social de criminalização dos movimentos de luta por moradia:

militantes/ocupação/invasão, ativista/infrator, luta por direitos/estereotipo do

desocupado/vagabundo, divergindo de acordo com os meios de informação e as múltiplas

correntes de discurso social impositivo.

As discrepâncias no processo de difusão das informações consolidam o estado de

exceção, ao suprimirem as possibilidades de que as reivindicações desses sujeitos sejam

verdadeiramente reconhecidas, em detrimento dos interesses econômicos que cooptam os

governos e partidos políticos, influindo significativamente na especulação imobiliária e no

favorecimento de massas falidas – débitos e créditos de uma empresa falida -. Aponta-se,

como exemplo, o caso “Pinheirinho”, ocorrido no ano de 2012, na cidade de São José dos

Campos/SP.

Protagonizando, a empresa Selecta Comércio e Industria (declarada falida),

pertencente a Naji Nahas, empresário libanês atuante na area de investimentos e especulação

imobiliária, radicado no Brasil desde 1969, mesmo com a desistência da reintegração de

posse4, desocupou de forma violenta e arbitrária milhares de famílias. Tais fatos foram

narrados na introdução do Documentário “O Massacre de Pinheirinho: A verdade não mora ao

lado. ”

Em 2004, com mais de 1 milhão de metros quadrados, Pinheirinho era um terreno abandonado. Começou a ser ocupado por famílias pobres da região

3 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=i1h28d-niU4> Acesso em: IDEM NOTA ANTERIOR4 Disponível em: < http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/pinheirinho-massa-falida-havia-desistido-de-reintegracao> Acesso em 25/06/2015.

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do Vale do Paraíba entre São Paulo e Rio de Janeiro. Já em 2012, quando as tropas chegaram, 6000 pessoas moravam no Pinheirinho. 5

A demonstração peremptória a esses indivíduos da própria representatividade social

decorre da repressão violenta pelos aparatos policiais e jurídicos, avalizada pelo último quanto

a reintegração de posse.

Neste aspecto, anulam-se os direitos, tanto pela suposta ocupação de uma área privada

da empresa insolvente, quanto pelo fato destes sujeitos serem considerados desprovidos de

direitos pelo Estado e suas instituições.

No documentário supracitado, esta incongruência se torna mais evidente quando

ocorre um ataque, por parte dos policiais e guarda civis municipais, aos abrigos para os quais

os moradores foram direcionados, sob a garantia de direitos, demonstrando a contradição e

intensificando a percepção da segregação social por raça e condição social.

A partir do relato de uma ex-moradora não identificada do “Pinheirinho”, observa-se

que a busca de direitos por parte do Estado exacerba, algumas vezes, o preconceito social,

bem como a intenção verdadeira da desocupação de um bairro estabilizado dentro da área da

empresa Selecta Comércio e Indústria.

Os assistentes sociais da prefeitura estavam oferecendo passagens para gente ir embora pro norte. No meu caso, eu não tenho família no norte, minha vida eu fiz aqui, eu vim pra cá com 1 ano de idade, minhas crianças são todas paulistas e todos estão na escola que vai começar agora em fevereiro as aula deles. Para que a gente vai embora pro norte se nossa vida está aqui, não tem condições eles quererem que a gente saia daqui pra tirar o problema deles? O problema deles é a gente?6 ”

O Estado, que deveria garantir os direitos básicos a essa população, os coloca em

situação ainda mais vulnerável, além das táticas da psicologia do medo e da desestruturação

familiar, informando aos pais [...] que o pessoal estava indo pro alojamento e separando os

filhos dos pais e mandando pro conselho tutelar porque nós não temos mais casa. 7

O caso do Pinheirinho foi sintetizado de forma acurada pelo Deputado Estadual

paulista Carlos Giannazi, pertencente ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que

acompanhou o processo de acordo para desapropriação (e não desocupação e reintegração de

posse), presente em outros movimentos de luta por moradia e fuga da vulnerabilidade social:

5 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=NBjjtc9BXXY> Acesso em: IDEM NOTAS6 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=NBjjtc9BXXY> Acesso em: IDEM NOTAS7 Idem.

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Houve aqui uma afronta aos direitos humanos, uma afronta à cidadania, uma afronta ao direito à moradia. A juíza que determinou essa desapropriação está agindo em causa própria. Porque nós conseguimos nessa semana ainda um acordo com a massa falida suspendendo o processo da própria massa falida para dar prazo para que os governos federal, estadual e municipal pudessem fazer um acordo para que a área fosse desapropriada e entregue aos moradores mas a juíza não acatou essa orientação do Tribunal de Justiça e por conta própria, sem legitimidade, ordenou a desocupação.8

Destarte, observa-se que os movimentos sociais buscam intensificar, junto à população

de ocupações “irregulares” e acampamentos, a politização dos processos que constituem seus

direitos, sua condição de sem direitos ou de habitante de uma zona de exclusão da cidade.

Durante a Copa do Mundo de Futebol, realizada em 2014 no Brasil, a integrante do

Comitê Popular da Copa em São Paulo, Priscila Cavalieri, manifestou-se sobre as

intervenções na “Favela do Moinho”, no centro da capital paulista, durante o jogo Brasil

versus Croácia, inserida no vídeo “A Copa que São Paulo viu”, disponibilizado pelo Jornal

Folha de São Paulo no site de compartilhamentos YouTube®:

Hoje a gente tá aqui no Moinho - que apesar de estar fora da zona de exclusão da FIFA é uma zona de exclusão da cidade – fazendo diversas intervenções de crítica à copa do mundo. A gente teve a malhação do Ronaldo [...] a gente teve a brincadeira do cala-boca Galvão, que era um palhaço grande que você acerta a bola dentro da boca dele, tomba cartolas da FIFA, a gente teve o tiro ao alvo nas empreiteiras que dependendo de onde você acertar você poderia acertar a Camargo Correia, Odebrecht...9

Pedagogia da luta e a ressignificação do sujeito estereotipado

A construção do imaginário social sobre as problemáticas reais que engendram a luta

por dignidade e conquista de direitos como o acesso a moradia, embota a sociedade e colabora

para o processo de controle social de um Estado que, naturalmente, tende ao clientelismo e a

cooptação.

Todavia, a luta por direitos basilares é, desde a construção do ideal de Estado-nação

moderno, a luta por espaço no poder de decisão da elite ou do dominador, que inicia com o

estabelecimento de estruturas morais de ser, viver, fazer e compreender e aportam nas

8 Ibidem.9 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6x00PngjEdU> Acesso em: IDEM NOTAS

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sociedades utópicas e possíveis como a obra Leviatã de Hobbes (2008) e o contrato social de

Rousseau (2013).

Assim, o intuito legalista e regulador do direito define quem tem e quem não tem

direitos, pautado na estruturação de regramentos sociais e pressupondo uma força soberana

que regerá comportamentos e o próprio modus vivendi.

Postula-se, portanto, que a concepção de um Estado capitalista moderno e neoliberal

detém esta força soberana, que engendra diversas instituições e abarca a lógica biopolítica de

controle dos corpos e instituições.

Depreende-se, a partir dessas premissas, a concepção da seletividade social, ou seja,

quem vive e possui direitos, ainda que mínimos, para estar vivo e, por outro ângulo, quem não

tem condições de almejar o mínimo de direitos.

A este último, torna-se legítimo ao Estado e aos seus aparatos, principalmente o

policial, perseguir, torturar e assassinar indivíduos e famílias oriundas de camadas

socioeconômicas menos favorecidas sob a tutela do Ministério Público, que garante o

arquivamento dos processos de homicídios como meros autos de resistência.

Segundo afirma D’Elia Filho (2015, p.140) [...] se a polícia mata quem joga a “pá de

cal” é o poder jurídico.

Esta sociedade dividida aprovisiona a construção midiática de um Estado inseguro,

que requer mais policiamento, repressão e poder bélico, em detrimento de uma população que

clama por direitos básicos.

A cidade partida revela assim diferentes sentidos nos binômios ordem/desordem; lei/fora da lei; pureza/impureza; limpeza/sujeira; a produzir políticas higienistas voltadas para eliminação e o extermínio dos bárbaros, que colocam em perigo a ordem social a partir das favelas e guetos, entendidos como “viveiro de monstros”. (BATISTA, 2003 apud D’ELIA FILHO, 2015, p.139)

A sociedade bipolarizada gera contrastes como a Copa do Mundo no Brasil/2014, em

que três mil pessoas participantes do “Movimento dos trabalhadores sem-teto” acamparam

próximo ao “Estádio Itaquerão”, localizado na zona leste de São Paulo, construído para o

evento futebolístico em uma área de periferia, com recursos públicos e sem acesso as

condições básicas de qualidade de vida.

Esse acampamento foi chamado de “Acampamento Copa do Povo”, divulgado no

vídeo “A copa que São Paulo viu”: Eu sou sem-teto, copa do mundo no Brasil me

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revolta...Não quero copa, copa, copa no Brasil eu quero teto! Não quero copa, copa, copa no

Brasil, eu quero teto! ”10

Ressalta-se que, independentemente do tempo de ocupação nos espaços, a ação de

reintegração é constante nessas zonas periféricas de exclusão e invisibilidade social e poucos

casos consolidam suas ocupações devido ao favorecimento dos instrumentos jurídicos aos

proprietários de imóveis ou terras inutilizadas.

Toma-se como exemplo a ocupação “Saraí”, em Porto Alegre/RS, através do relato de

Gilberto Aguiar, militante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), inserido

no Documentário “Por um sonho urbano”, disponibilizado no site de compartilhamentos

YouTube®, no ano de 2014, quando afirma [...] esse prédio era público, ele era da Caixa

Econômica e foi vendido para um empresário que pediu dinheiro emprestado pra Caixa pra

pagar o próprio prédio e quatro meses depois vendeu para o submundo do crime. (CENTRO

UNIVERSITÁRIO METODISTA IPA,2014, NÃO PAGINADO).

O prédio em questão foi construído com recursos públicos para utilização como

moradia social, porém não se destinou a este fim.

Inicialmente, o edifício foi repassado a Caixa Econômica Federal (CEF) para

funcionar como escritório e, posteriormente, permaneceu durante 20 anos abandonado.

Na década de 2000, a Caixa vendeu por 600 mil reais o prédio para a Risa

Empreendimentos Imobiliários Ltda, que o repassou em 2006 ao Primeiro Comando da

Capital (PCC).

Este repasse foi comprovado por investigação policial, através da descoberta de um

túnel de oitenta metros no interior do prédio que serviria para assalto a um banco.

Na investigação, descobriu-se que a Risa Empreendimentos repassou o prédio ao PCC

pelo valor de 1 milhão e 200 mil reais, sendo que após a descoberta do túnel, o prédio foi

devolvido a Risa.

O favorecimento do instrumento jurídico a favor da classe dominante e detentora do

capital especulativo dos espaços, determina cada vez mais quais são as práticas que devem ser

produzidas em um Estado de direitos, transpassada pelo controle social e as representações

políticas de poderes, excluindo a possibilidade de participação social e inclusão das pessoas

em vulnerabilidade social, creditando a segregação social como um fator de lógica econômica

e mercadológica.

10 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6x00PngjEdU> Acesso em: IDEM NOTAS

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Afinal, se construíram mais casas no programa do governo federal “Minha casa,

Minha vida”, do que pessoas que não tem casas, e nem por isso, resolveu-se o problema de

moradia no Brasil. Essa denotação clarifica que o interesse privado dominante dentro do

interesse público na figura do Estado, desestrutura e destrói qualquer construção de políticas

de combate a desigualdade no país.

Tais assertivas coadunam com o relato de Eduardo Solari, militante e morador da

ocupação autônoma ” no centro da cidade de Porto Alegre, participante do “Movimento

Autônomo Utopia e Luta”, disponibilizado no site de compartilhamentos YouTube®, em

novembro de 2014.

“Depois em outra área nós temos una parte crítica com respeito a isso, que nós não voltaremos a transferir massa da periferia para o centro da cidade. Isso já para nós em nossa experiênica ficou definido, está confirmado por companheiros e companheiras através de análises de todo tipo. Nós construímos essas outra áreas, a área de integração social e reorganização social. Nós colaboramos em outra área paralelamente, uma que avança e outra que retrocede, que é o assunto da perda de identidade pessoal dos que vieram dos bairros para o centro. O que aconteceu? Acontece que você transfere uma massa que vem da periferia para o centro, melhora o trabalho, porque melhora endereço e melhora vestuário e entra no consumismo, e depois começa a se sentir classe média e começa a discriminar seus próprios bairros e já não se identifica com seus próprios bairros mas as pessoas da classe média histórica do centro também não o aceitam e assim ficam em um nível social sem identidade.”11

Observa-se que o conceito de autonomia incide na edificação de espaços pensados

como “cidade” na lógica capitalista em que elas se estruturam e, ainda, a compreensão que o

processo de luta de classes é incontestável, tornando a periferização dos sujeitos um

instrumento de reflexão e transformação de espaços em ambientes autônomos, tendo em vista

continuarem invisíveis.

Embora a ocupação tenha conseguido fixar-se no centro da cidade de Porto Alegre, o

militante visualiza as estruturas de segregação, através dos discursos de classe e das

contradições sobre não ter identidade, a partir da não aceitação social.

Nesse contexto, urge a conscientização da sociedade sobre os processos de construção

de direitos, os movimentos sociais e as possibilidades de conhecimento e difusão da Internet e

seus meios.

11 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=nxmLmJlGSBg> Acesso em:

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A zona trinacional e a fronteira do direito à moradia em Foz do Iguaçu/PR

Por se tratar de um trabalho apresentado no âmbito da UNILA, localizada em Foz do

Iguaçu, Paraná, região trinacional entre Brasil, Argentina e Paraguai, considera-se de suma

importância trazer ao debate o entendimento do sentido de fronteira.

De fato, a fronteira afeta muito mais que a divisão limítrofe entre países, estendendo-

se à construção de privilégios no Estado democrático de direitos, muito mais sólidas e seguras

entre as classes sociais de um mesmo país.

Assim, compreende-se que se as fronteiras nacionais de segregação social se

transformam através da luta e controle social dos direitos, torna-se desnecessária uma

fronteira entre países.

Na cidade de Foz do Iguaçu, região do Porto Meira, bairro localizado no extremo sul

da cidade, próximo a ponte que liga o Brasil à Argentina, constituiu-se em 18 de janeiro de

2013 a ocupação denominada “Bubas”, em uma área de 36 hectares, pleiteando a moradia

popular.

No ano de 2015, essa luta que inicialmente era para a construção de um conjunto

habitacional para a retirada das famílias, agora é a legalidade do bairro e a consolidação do

terreno como parte integrante da cidade, já que esse pode ser percebido claramente como em

estado de exceção, pois é nítido a suspensão de direitos por conta da construção social

estereotipante e a burocracia de privilégios do Estado inoperante.

A moradora e comerciante Ester Meireles apresentou um breve retrato, na entrevista

concedida ao Jornal Gazeta[...] Eu faço pé e mão das mulheres que também vivem aqui. Com

esse dinheiro dá para contribuir com o orçamento da casa. O mais difícil é garantir acesso à

creche aos meus filhos pequenos.12

A dificuldade de acesso à educação é uma representação do estereótipo social em que

as pessoas menos favorecidas economicamente findam por serem taxadas como

usuários/traficantes de drogas, criminosos e incapacitados intelectualmente, incorporando

discursos segregadores que legitimam a punição e o isolamento, negando o acesso aos direitos

básicos pelo simples fator do local de moradia desses atores sociais.

Estes discursos apresentam-se, comumente, na forma de criminalização dos

movimentos sociais, auxiliada pela difusão midiática das redes televisivas e jornais de

circulação local e regional.

12 Disponível em: <http://www.gazeta.inf.br/index.php/foz-do-iguacu/53-geral/8482-familias-persistem-na-luta-por-moradia> Acesso em: 24/08/2015

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Uma das moradoras do “Bubas”, Júlia, define este estranhamento e o sensacionalismo

desses meios de comunicação, em entrevista concedida ao Centro de Mídia Independente

(CMI), rede anticapitalista de produtores de mídia autônomos e voluntários. [...] Olha, depois

que a gente resolveu parar, nóis não dá mais reportagem, parou, porque tudo que a gente

falava eles mudavam, eles colocavam na mídia o que eles queriam, não mostravam a

realidade. ”13

O acesso aos direitos básicos é extremamente dificultado pela Prefeitura, devido aos

impedimentos impostos aos moradores que residem na ocupação, como a não aceitação nas

escolas de crianças habitantes do “Bubas” e o acesso à saúde, por morarem em região

irregular.

Ademais, por se tratar de uma fronteira, a xenofobia imposta às famílias paraguaias

que fazem parte do movimento e residem no “Bubas”, intensifica o processo de

deslegitimação da luta e descriminalização dos pobres, através do estado de exceção

institucional e a consequente repressão social, não somente pela violência, mas sobretudo nos

discursos e formas de segmentação por nacionalidade.

Torna-se premente o entendimento que o espaço trinacional não pode ser determinado

através de uma identidade nacional ou questões raciais. Neste espaço, os paraguaios tornaram-

se alvo de desqualificações quanto a pobreza e a falta de oportunidade.

Devido aos seus traços indígenas da cultura guarani, os ocupantes paraguaios são

pejorativamente denominados “xirus”, cultura essa que é predominante, porém silenciosa, na

comunidade de Ciudad del Este e arredores, que circunvizinha Foz do Iguaçu/PR.

Conclusão

As manifestações que vem ocorrendo no Brasil desde o Fórum Social Mundial em

2001, passando aí por revoltas pelo transporte digno e público de fato em 2003 com a

organização do Movimento Passe Livre (MPL) como espaço autônomo e horizontal dentro

dos movimentos sociais historicamente vinculado a partidos e sindicatos, em 2008 com as

ocupações forçadas da polícia militar do Rio de Janeiro como suposta pacificação dos morros

cariocas da zona sul, em 2013 contra a repressão policial, em 2014 pela Copa do Mundo e por

aí continuamos, pois, a luta, em um contexto recente pautado nos anos 2000 como visto

13 Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/eo/blue/2013/12/527421.shtml?comment=on> Acesso em: 24/08/2015

Page 12: Viver e ousar: Estado de exceção, luta por moradia e construções estereotipantes na segregação sócio-racial do Brasil

acima, refere-se a um fortalecimento do processo de construção política, sobretudo vinculado

a bandeiras autonomistas e horizontalistas.

A manifestação popular, assim, torna-se importante instrumento de sobrevivência,

oportunizando o empoderamento social, a fim de garantir que o controle social se estabeleça

não de forma consultiva como tem sido desde a redemocratização, mas que a participação

popular realmente se faça presente, como na ocupação “Utopia e Luta” em Porto Alegre/RS,

ou nos processos da referida ocupação nas políticas participativas do governo Tarso Genro de

1989-1992.

Estas participações populares apontam para a falência do sistema representativo,

marginalmente representadas como violentas, vândalas, arruaceiras, anarquistas e Black

Bocs14, tanto por partidos políticos de esquerda e lideranças sindicais quanto por pensadores,

políticos e ideólogos de direita, explicitando os pensamentos solidificados oriundos de várias

correntes do pensamento, além de expor a disputa pelo poder centralizador e de tomada de

decisões.

Percebe-se que a maioria destes movimentos populares não visa os interesses de los de

abajo, não exprime a autogestão e participação de cada indivíduo e não significa o

empoderamento das camadas sociais presentes nas ocupações urbanas.

Usualmente, o papel do direito aos indivíduos, nestas ocupações, apenas legitima o

constante e consequente estado de exceção.

A expulsão destes sujeitos dos espaços majoritariamente abandonados beneficia

apenas a especulação financeira e imobiliária das grandes e pequenas cidades em diversas

localidades brasileiras, gerando um ciclo de desmobilização dos movimentos, bem como a

vulnerabilidade de seus atores.

Na maioria das vezes, esta vulnerabilidade é causada pela consolidação das leis que

esse mesmo Estado democrático de direitos legitima para excluir parcelas populacionais,

negando direitos básicos, humanitários, jurídicos e políticos.

A compreensão basilar e premente que a luta por moradia constitui a luta pela vida

requer, do Estado e da sociedade como um todo, a constatação que os direitos foram

fundamentados historicamente para consolidação da paz social.

Entretanto, o conceito de paz social ancora-se no direito ocidental punitivo, a partir da

consolidação do capitalismo liberal, que se baseia na lógica darwinista da seleção natural: os

mais fortes se adaptam e os mais fracos perecem.

14 Tática de ação direta anarquista empreendida por grupos de afinidades.

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A condição humana apresenta múltiplas facetas, inclusive a diversidade de origem

econômica, social e cultural, que a lógica neoliberal de meritocracia atribui arbitrariamente, a

partir dos anos 2000, medrando as discrepâncias sociais pela implantação de julgamento

sistemático, que não reconhece o direito à vida e a dignidade implícita.

Avigorar o empoderamento torna-se essencial na luta por todos os direitos básicos

garantidos pelo Estado democrático de direito, inclusive a dissolução da estrutura de

segregação sócio racial e os efeitos da estereotipização dos sujeitos em condições de

vulnerabilidades, viabilizados pelo Estado de direitos neoliberais e sustentados pelos governos

democráticos representativos.

Por conseguinte, espera-se a continuidade nos questionamentos ora propostos,

estendendo-se às esferas de atuação em que a possibilidade de construção da luta coletiva e

autônoma garanta a defesa dos direitos legais para todos, principalmente aos que são

representados como inimigos públicos por fatores culturais, políticos, religiosos e

econômicos, justamente por serem silenciados pelo Estado democrático de direito.

Aqueles que ousam sonhar, como todos nós.

REFERÊNCIAS

Facção Central – Hoje deus anda de blindado. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=90nzxX3L56M

Page 14: Viver e ousar: Estado de exceção, luta por moradia e construções estereotipantes na segregação sócio-racial do Brasil

CENTRO UNIVERSITÁRIO METODISTA IPA. Canal do YouTube. Documentário “Por um sonho urbano”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3AVSjJ6l3T8>Acesso em: VER ORIENTAÇÕES NO TEXTO

D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de

extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan. 2015

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado eclesiástico e civil. 2.ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.636p. Coleção Obra-prima de cada autor- série ouro.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2013. 154p. Coleção Obra-prima de cada autor- série ouro.