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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE NUTRIÇÃO JOSUÉ DE CASTRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM NUTRIÇÃO VIVIANE DOS ANJOS MARESI A RELAÇÃO ENTRE A TITULARIDADE DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS PRÁTICAS ALIMENTARES DE FAMÍLIAS BENEFICIÁRIAS RESIDENTES NO MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS - RJ RIO DE JANEIRO 2017

VIVIANE DOS ANJOS MARESI - ppgn.ufrj.br · VIVIANE DOS ANJOS MARESI ... Aos homens e mulheres, titulares do PBF, ... presença da mulher na família eram elas quem administravam

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    CENTRO DE CINCIAS DA SADE

    INSTITUTO DE NUTRIO JOSU DE CASTRO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM NUTRIO

    VIVIANE DOS ANJOS MARESI

    A RELAO ENTRE A TITULARIDADE DO PROGRAMA BOLSA FAMLIA E AS

    PRTICAS ALIMENTARES DE FAMLIAS BENEFICIRIAS RESIDENTES NO

    MUNICPIO DE DUQUE DE CAXIAS - RJ

    RIO DE JANEIRO

    2017

  • Viviane dos Anjos Maresi

    A RELAO ENTRE A TITULARIDADE DO PROGRAMA BOLSA FAMLIA E AS

    PRTICAS ALIMENTARES DE FAMLIAS BENEFICIRIAS RESIDENTES NO

    MUNICPIO DE DUQUE DE CAXIAS - RJ

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Nutrio Humana, do Instituto de

    Nutrio Josu de Castro, da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, como requisito parcial obteno do ttulo

    de Mestre em Nutrio Humana.

    Orientadora: Dr. Rosana Salles da Costa

    Co-Orientadora: Dr. Mirian Ribeiro Baio

    RIO DE JANEIRO

    2017

  • Dedico este trabalho, a uma mulher guerreira, minha

    me, Maria dos Anjos, que apesar de seu sonho de

    estudar ter sido barrado devido condio social e de

    gnero, lutou bravamente para que o mesmo no

    acontecesse comigo e com minha irm.

    Me guiou nas Comunidades Eclesiais de Base, em

    movimentos sociais, me levou ainda criana nas

    Conferncias de Sade, me ensinou a lutar pelos

    direitos humanos e a no se calar perante as injustias.

    Seus ensinamentos auxiliaram a formar meu

    pensamento crtico e a guiar meu caminho profissional.

  • MEUS AGRADECIMENTOS

    Aos homens e mulheres, titulares do PBF, que me acolheram em suas casas, compartilharam

    parte de suas vidas e me fizeram crescer academicamente e como pessoa.

    Agradeo a f espiritual em Deus, que me fez ter esperanas nos momentos difceis,

    principalmente quando vi uma pobreza que entristece o corao, nos momentos das entrevistas.

    Agradeo as oraes dos familiares e amigos, a f em Nossa Senhora Aparecida, pelo

    fortalecimento.

    Aos meus pais, Maria e Joo Batista, por todo amor, ensinamento e cuidado. A minha irm

    Sandra, por ser meu exemplo, por sua presena e apoio dirio mesmo distncia. Agradeo

    tambm, ao meu cunhado Miguel, por ser o irmo que Deus me deu, sempre presente em todos

    os momentos. Aos meus sobrinhos Vincius e Maria Alice, por me darem a certeza que devo

    continuar a lutar por um mundo melhor.

    Ao meu amor, Eduardo, por ter seu apoio sem limites este mestrado foi possvel. Obrigada por

    ouvir minhas angustias, dar o suporte que eu precisava, compreender minhas ausncias, por

    construirmos juntos uma relao mais prxima da igualdade de gnero.

    A minha nova famlia, em especial a minha sogra Sidria, cunhados Leonardo e Luciana, por

    serem incentivadores nesta caminhada.

    As minhas queridas orientadoras Rosana Salles da Costa e Mirian Ribeiro Baio, minha

    gratido eterna aos seus ensinamentos. Obrigada por me acolherem, por confiarem em meu

    trabalho e por me iluminarem com suas sabedorias.

    s amigas do grupo de pesquisa SANDUC, presentes de Deus, por compartilhar esses dois anos

    de intenso estudo e de muita amizade. Obrigada Ana Alice Taborda, Ana Lcia, Camilla Cherol,

    Juliana de Bem Lignani, Marina Antunes, Mariana Gavazza, Poliana Palmeira, com vocs esses

    anos foram mais leves.

    s amigas que me acompanharam na caminhada da pesquisa de campo em Duque de Caxias:

    Ana Carolina Menezes, Camilla Cherol, Juliana de Bem Lignani, Nathlia Masiero e Natlia

  • Freire.

    Aos amigos e amigas, de perto e de longe, pelas oraes, torcida e apoio.

    Ao professor Ruben Mattos, pela acolhida nas disciplinas, pelas orientaes e reflexes sobre

    a pesquisa de campo.

    professora Gilza Sandre-Pereira, por sua grandiosa contribuio na reviso desta dissertao

    e as demais professoras membros da banca, Marta Maria Antonieta de Souza Santos, Denise

    Cavalcante de Barros, pelo aceite do convite e disponibilidade em compartilhar seus

    conhecimentos.

  • Vivendo, se aprende; mas o que se aprende,

    mais, s a fazer outras maiores perguntas.

    Guimares Rosa - Grande Serto: Veredas

  • APRESENTAO

    Este estudo integra um projeto de pesquisa maior, intitulado Pobreza Extrema,

    Insegurana Alimentar e Polticas Pblicas: Estudo Longitudinal de Famlias Atendidas pelo

    Programa Bolsa Famlia no Municpio de Duque de Caxias. Esta pesquisa desenvolvida

    pelo Grupo de Pesquisas Segurana Alimentar e Nutricional em Duque de Caxias SANDUC,

    do Instituto de Nutrio Josu de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

    em parceria com o Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    (UERJ), a Faculdade de Nutrio da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Departamento

    de Cincias Sociais da Escola Nacional de Sade Pblica (ENSP - FIOCRUZ). Recebe o

    financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPQ)

    por meio do edital 24/2013 MCTI-CNPQ/MDS-SAGI, processo 456847/2013-8. Foi submetido

    ao Comit de tica em Pesquisa do Hospital Universitrio Clementino Fraga Filho da UFRJ,

    aprovado em maio de 2014, sob o nmero de parecer 651339.

    A autora desta dissertao participou do projeto supracitado, no trabalho de campo da

    etapa quantitativa como entrevistadora, na aplicao de questionrios aos beneficirios do

    Programa Bolsa Famlia, no Distrito de Campos Elseos, Duque de Caxias RJ. A participao

    nesta etapa teve como intuito a aproximao com o espao social em que os sujeitos do estudo

    vivem, servindo como um momento de preparao para o trabalho de campo do estudo

    qualitativo. No que se refere ao componente qualitativo do projeto citado, a autora foi

    responsvel pela realizao de todas as entrevistas, bem como pela transcrio, organizao e

    anlise das mesmas, e redao dessa dissertao. O presente trabalho est organizado da

    seguinte forma: 1) introduo, onde se apresenta a relevncia do estudo; 2) referencial terico

    sobre os Programas de Transferncia de Renda, a Titularidade do Programa Bolsa Famlia e

    papis de gnero, e Prticas Alimentares; 3) justificativa; objeto de estudo e as questes que

    nortearam a pesquisa; 4) objetivos do estudo; 5) metodologia 6) resultados e discusso, no qual

    so apresentados a anlise contextual; caminhos at o PBF e os sentidos da titularidade;

    necessidades e prioridades das famlias e o uso do benefcio do PBF e o manuscrito; 7)

    consideraes finais; 8) anexos.

  • RESUMO

    Maresi, Viviane dos Anjos. A relao entre a titularidade do Programa Bolsa Famlia e as

    prticas alimentares de famlias beneficirias residentes no Municpio de Duque de

    Caxias-RJ. Rio de Janeiro, 2017. Dissertao (Mestrado em Nutrio Humana) - Instituto de

    Nutrio Josu de Castro - Ps-Graduao em Nutrio, Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

    A presente dissertao intitulada A relao entre a titularidade do Programa Bolsa

    Famlia (PBF) e as prticas alimentares de famlias beneficirias residentes no Municpio de

    Duque de Caxias-RJ um estudo qualitativo, do tipo descritivo. Integra um projeto de pesquisa

    maior, intitulado Pobreza Extrema, Insegurana Alimentar e Polticas Pblicas: Estudo

    Longitudinal de Famlias Atendidas pelo Programa Bolsa Famlia no Municpio de Duque de

    Caxias. O estudo teve como principal objetivo compreender a relao entre a titularidade

    (homem/mulher) do PBF e as prticas alimentares de famlias beneficirias. Alm disso, teve o

    propsito de analisar os sentidos atribudos ao PBF e titularidade e conhecer as prticas

    alimentares de famlias beneficirias do PBF e os elementos que contribuem para sua

    construo. Foi utilizado como referencial metodolgico a Hermenutica de Profundidade

    (HP), conforme descrito por Thompson (2002), e como referencial analtico a anlise de

    contedo temtica, conforme proposto por Bardin (2011) e adaptado por Minayo et al (2012).

    A construo dos dados foi atravs da realizao de entrevistas semiestruturadas, com a

    utilizao de um roteiro norteador, e observao. Foram entrevistados 5 homens e 5 mulheres,

    titulares do PBF, residentes no Distrito de Campos Elseos, Municpio de Duque de Caxias,

    entre novembro de 2015 e abril de 2016. Os homens entrevistados expressaram a necessidade

    em justificar sua titularidade, por terem filhos ou por motivo de doena, demonstrando

    desconhecimento de terem direito do PBF. Para as mulheres a titularidade simbolizava

    segurana, autonomia e liberdade, principalmente para aquelas que anteriormente ao

    recebimento do PBF dependiam da renda do marido ou ex-marido. O recurso do PBF era

    geralmente administrado por mulheres, mesmo nos casos da titularidade masculina havendo a

    presena da mulher na famlia eram elas quem administravam. Expressando um entendimento

    de que o benefcio um dinheiro feminino, pois era destinado principalmente s necessidades

    da casa e das crianas, como: comida, medicamentos, roupas, consulta mdica, internet,

    material escolar. O recurso do PBF era uma das fontes para o pagamento das compras da

    alimentao da famlia. Neste sentido, conclui-se que o PBF influencia as prticas alimentares

    das famlias beneficirias no que diz respeito a aquisio de alimentos. No entanto, a relao

    dos sujeitos do estudo com as prticas alimentares no foi alterada a partir da titularidade do

  • PBF, ou seja, homens e mulheres tm papis diferentes, porm complementares no que se refere

    as prticas alimentares, os papis de gnero so construdos socialmente e no ambiente familiar.

    De modo geral o homem tinha a responsabilidade do provimento da renda para a aquisio dos

    alimentos e a mulher as responsabilidades da compra, preparo e distribuio dos alimentos.

    Palavras-chaves: Alimentao, Cultura, Pesquisa Qualitativa, Programas Governamentais,

    Programa Bolsa Famlia.

  • ABSTRACT

    Maresi, Viviane dos Anjos. The relationship between the Programa Bolsa Famlia

    ownership and the feeding practices of the resident families at the municipality of Duque

    de Caxias RJ. Rio de Janeiro, 2017. Dissertao (Mestrado em Nutrio Humana) - Instituto

    de Nutrio Josu de Castro - Ps-Graduao em Nutrio, Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

    The present dissertation entitled A relao entre a titularidade do Programa Bolsa

    Famlia (PBF) e as prticas alimentares de famlias beneficirias residentes no Municpio de

    Duque de Caxias-RJ is a qualitative study of the descriptive kind. This study is part of a larger

    research Project entitled Pobreza Extrema, Insegurana Alimentar e Polticas Pblicas:

    Estudo Longitudinal de Famlias Atendidas pelo Programa Bolsa Famlia no Municpio de

    Duque de Caxias. The aim of the present study was to understand the relationship between

    the PBF ownership (men/woman) and the feeding practices of beneficiary families. Besides, it

    had as a purpose to analyze the perceptions on the PBF and ownership and to know the PBF

    beneficiary families feeding practices and the elements which contribute to its construction. It

    was utilized the Depth Hermeneutics described by Thompson (2002) as the methodological

    reference, and the Content Analysis Thematic as the analytical reference, proposed by Bardin

    (2011) and modified by Minayo et al. (2012). Data construction was made through

    semistructured interviews with the use of a guiding protocol and observations. Five men and

    five women PBF ownerships resident at Campos Elseos district, municipality of Duque de

    Caxias, were interviewed from November 2015 and April 2016. The interviewed men expressed

    the necessity to justify their ownership rights for having children of their own or sickness

    demonstrating a lack of knowledge for having their rights to PBF. For woman the ownership

    meant security, autonomy and freedom, mainly for those who depended on their husband or ex-

    husbands incomes before. The PBF income was usually administrated by women, even in the

    cases in which the ownership were the men. In the presence of a woman in the family it was

    her who administrated it. Woman expressed the understanding that the benefit should be

    addressed to her because it would be utilized mainly to attend to their children needs and other

    related basic maintenances, as the acquisition of food chiefly, in addition to clothes, medical

    consulting, internet and school material. It is concluded in this sense that the PBF influenced

    the feeding practices of the beneficiary families in what regard to the acquisition of food.

    However, the subject relationship with the feeding practices were not modified, in other words,

  • men and woman had different but complementary roles in what regard to the feeding practices,

    gender role models are constructed socially and in the family environment. Generally speaking,

    the men had the responsibility to provide incomes to the acquisition of food, and the woman

    had the responsibility to buy, prepare and distribute food.

    Key-word: Feeding, Culture, Qualitative Research, Government Programs, Programa Bolsa

    Famlia.

  • LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    BPC - Benefcio de Prestao Continuada

    Cadnico - Cadastro nico para Programas Sociais do Governo Federal

    CEP - Comit de tica em Pesquisa

    CEPAL - Comisso Econmica para Amrica Latina e Caribe

    CONSEA - Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional

    CRAS - Centro de Referncia de Assistncia Social

    CREAS - Centro Especializa de Assistncia Social

    FAO - Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a Agricultura

    HP - Hermenutica de Profundidade

    HUCFF - Hospital Universitrio Clementino Fraga Filho

    IBASE - Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IPEA - Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    LOSAN - Lei Orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional

    MAPS - Ministrio da Assistncia Social e Promoo Social

    MDS - Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate a Fome

    MESA - Ministrio Extraordinrio de Segurana Alimentar e Combate Fome

    ONG - Organizaes No Governamentais

    PBF - Programa Bolsa Famlia

    PETI - Programa de Erradicao do Trabalho Infantil

    PIB - Produto Interno Bruto

    PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios

    PNAS - Poltica Nacional de Assistncia Social

    PTCR - Programa de Transferncia Condicionada de Renda

    PTR - Programas de Transferncia de Renda

    REDUC - Refinaria de Duque de Caxias

    SAN - Segurana Alimentar e Nutricional

    TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

  • SUMRIO

    1. INTRODUO..................................................................................................... 13

    2. REFERENCIAL TERICO................................................................................ 15

    2.1 Programas de Transferncia de Renda.............................................................. 15

    O Programa Bolsa Famlia............................................................................... 20

    2.2 Reflexes sobre gnero..................................................................................... 24

    2.3 Titularidade do Programa Bolsa Famlia.......................................................... 31

    2.4 Prticas Alimentares......................................................................................... 35

    3. JUSTIFICATIVA.................................................................................................. 38

    4. OBJETIVOS.......................................................................................................... 39

    5. METODOLOGIA.................................................................................................. 40

    5.1 Tipo de Estudo.................................................................................................. 40

    5.2 Local de Estudo................................................................................................ 40

    5.3 Sujeitos do Estudo............................................................................................ 41

    5.4 Tcnicas de Construo de dados..................................................................... 41

    5.5 Anlise.............................................................................................................. 43

    5.6 Questes ticas.................................................................................................. 44

    6. RESULTADOS E DISCUSSO .......................................................................... 45

    6.1 Anlise Contextual ........................................................................................... 47

    6.2 Caminhos at o Programa Bolsa Famlia e os sentidos da titularidade ........... 54

    6.3 Necessidades e prioridades das famlias e o uso do benefcio do PBF............. 61

    6.4 Manuscrito 1..................................................................................................... 66

    7. CONSIDERAES FINAIS................................................................................ 92

    8. REFERNCIAS..................................................................................................... 95

    9. ANEXOS................................................................................................................. 104

  • 13

    1. INTRODUO

    Constitui-se objeto deste estudo, a titularidade (masculina/feminina) do Programa Bolsa

    Famlia (PBF) e a sua relao com as prticas alimentares de famlias beneficirias, residentes

    no Municpio de Duque de Caxias. Busca-se compreender essa relao a partir das falas dos

    titulares homens e mulheres, por meio da abordagem qualitativa, na perspectiva da

    Hermenutica de Profundidade, proposta por John B. Thompson (2002).

    O PBF foi criado em 2003 com o propsito de combater a fome e a pobreza no Brasil.

    Associa-se ao recebimento do benefcio o cumprimento de condicionalidades nas reas da sade

    e educao. Caracteriza-se como o maior programa de transferncia de renda do pas. Sua

    implantao se d a partir da unificao de outros programas de transferncia de renda, como

    bolsa escola, bolsa alimentao, auxilio gs, carto alimentao (Medida Provisria n 132, de

    2003, convertida na da Lei 10.836, de 09/01/04).

    O programa prioriza as mulheres para a titularidade do benefcio, por considera-las as

    principais responsveis pelo cuidado e bem-estar dos membros das famlias (IBASE, 2008).

    Dados do Ministrio do Desenvolvimento Social (MDS) revelam que 93% dos titulares do

    benefcio so mulheres (BRASIL, 2014a).

    Alguns estudos discutem o papel da mulher como foco da titularidade das polticas

    sociais e o reflexo na vida das titulares. De acordo com as autoras Mariano e Carloto (2009) e

    Duque-Arrazola (2010), a indicao da titularidade feminina das polticas sociais refora papis

    tradicionais de gnero, j construdos socialmente, da mulher com a maternidade, com as tarefas

    voltadas para o ambiente domstico e de cuidado da famlia, e minimizam assim a

    responsabilidade do homem com os cuidados da casa e da famlia. Por outro lado, de acordo

    com Duque-Arrazola (2010), para algumas mulheres, a titularidade de um programa social

    proporcionou a primeira oportunidade de gerenciar renda, aumento do seu poder de compra e

    reconhecimento perante a famlia e a sociedade por ser a responsvel pelo benefcio.

    A pesquisa realizada pelo IBASE (2008) com amostragem representativa de

    beneficirios do PBF de todo o territrio nacional demonstrou que as mulheres titulares do

    benefcio tinham maior poder de deciso sobre o uso do benefcio e, em geral, elas empregavam

    o recurso na alimentao da famlia. De acordo com o estudo, as principais mudanas na

    alimentao das famlias beneficiadas pelo PBF foram o aumento da quantidade de alimentos

    consumidos, a variedade e a compra de produtos para crianas (IBASE, 2008). Com base nesse

    estudo, possvel pressupor modificaes nas prticas alimentares das famlias beneficiadas

    pelo Programa.

  • 14

    Cabe aqui destacar que as prticas alimentares so influenciadas pelos valores sociais e

    culturais, pelos contextos das polticas econmicas e sociais, apresentando reflexos das

    desigualdades sociais e das relaes de gnero, como pontuado por Canesqui (2005). A autora

    ressaltava ainda que as prticas alimentares so recriadas e reelaboradas constantemente por

    quem as vivencia, por esta razo, elas no so homogneas; elas so mediadas pelo consumo

    coletivo, que muitas vezes feito em famlia.

    Melo (2005) revelou a importncia dos estudos sobre gnero e pobreza, frente sua

    relevncia e escassa literatura que trabalha com estes temas em conjunto. Ao incluir nesta

    discusso a alimentao e as prticas alimentares de beneficirios do PBF so ainda mais

    escassos os trabalhos disponveis na literatura.

    No foram encontrados at o momento da elaborao desta dissertao trabalhos

    cientficos onde homens e mulheres titulares do PBF foram ouvidos igualmente, sendo a

    maioria dos trabalhos publicados realizados apenas com mulheres titulares. Assim, parece haver

    uma lacuna de conhecimento sobre as prticas alimentares de famlias beneficirias do PBF e

    sua relao com a titularidade.

  • 15

    2. REFERENCIAL TERICO

    2.1 Programas de transferncia de renda

    De modo geral, as polticas de proteo social na Amrica Latina, at meados da dcada

    de 1990, estavam voltadas ao sistema de seguridade social e ao mercado de trabalho.

    Dificuldades econmicas ocorridas nesta poca trouxeram grandes impactos no aumento da

    desigualdade social e consequentemente da pobreza, emergindo assim a necessidade de aes

    focalizadas a partir de programas sociais (MAGRO; REIS, 2011).

    Neste contexto surgem os Programas de Transferncia Condicionada de Renda (PTCR)

    na Amrica Latina e Caribe na dcada de 1990, sendo apresentados como uma inovao por

    realizarem transferncia monetria e romperem com a tradio de apenas doao de alimentos

    em forma de cestas bsicas (FONSECA; VIANA, 2007).

    Os PTCR atuam como eixo central das polticas de combate pobreza na Amrica

    Latina e Caribe com expressivo crescimento, tanto em cobertura populacional como em gasto

    monetrio. Conforme informaes da Comisso Econmica para Amrica Latina e Caribe

    (CEPAL, 2011), nos anos 2000 havia seis programas na regio, cobrindo cerca de 6% da

    populao, com uma despesa aproximada a 0,19% do Produto Interno Bruto (PIB). Nos cinco

    anos posteriores houve uma significativa extenso destes programas, sendo que no ano de 2005

    os PTCR estavam presentes em 17 pases, com uma cobertura estimada em 14% da populao

    e uma despesa equivalente a 0,24% do PIB. Ainda de acordo com o a CEPAL, em 2010, a

    cobertura destes alcanava aproximadamente 20% da populao total da Amrica Latina e

    Caribe, o que corresponde a 113 milhes de pessoas beneficiadas (CEPAL, 2011).

    importante destacar que os PTCR apresentam particularidades conforme cada pas.

    No entanto eles trazem como objetivo a melhoria nas condies de vida de famlias pobres em

    curto prazo e, em longo prazo, a superao do ciclo de pobreza com a transferncia de renda

    (CEPAL, 2013). Em geral, os programas trazem em comum a focalizao das aes para as

    populaes mais pobres e a recomendao de sua titularidade para as mulheres, ou seja, so as

    mulheres quem recebem o benefcio monetrio na maioria das famlias beneficiadas.

    Outra especificidade destes programas a associao do benefcio com o cumprimento

    de condicionalidades nas reas da sade e de educao por parte dos beneficirios, conforme

    as especificaes de cada Programa. Cabe ressaltar que o no cumprimento das

    condicionalidades por parte do beneficirio pode implicar na suspenso e at mesmo a excluso

    do benefcio (FONSECA; VIANA, 2007).

  • 16

    O primeiro pas a implantar um programa de transferncia de renda com

    condicionalidade foi Honduras, em 1990. O programa denominado Programa de

    Asignacin Familiares (PRAF)era composto por trs componentes: (i) o bnus materno-

    infantil, (ii) o bnus escolar e (iii) o bnus para a terceira idade. (CEPAL, 2013). Este programa

    passou por reformulao em 1998, devido a problemas na sua implantao, dando origem ao

    PRAF II (STEIN, 2008).

    Desde ento surgiram outros programas nos pases da regio, no entanto trs programas

    se destacam por sua magnitude e histria programas no Mxico, Argentina e Brasil, estes

    programas foram tidos como modelos para organizao de algumas iniciativas posteriores em

    vrios pases da Amrica Latina (CEPAL, 2013).

    O Mxico apresenta uma das principais experincias exitosas da regio. Seu programa

    foi considerado um exemplo no enfrentamento pobreza, influenciando a elaborao de outros

    programas nos pases da Amrica Latina e Caribe (STEIN, 2008). Em 1997, o Mxico

    implantou o Programa de Educacion, Salud y Alimentacion (Progresa) que depois passou a

    ser denominado Programa de Desarrollo Humano Oportunidades (Oportunidades). Este

    programa central na poltica social do Mxico e de maior trajetria na Amrica Latina

    (CEPAL, 2013). Tem como objetivo atender famlias em situao de extrema pobreza. A estas

    famlias so repassados transferncia monetria e suplementos alimentcios, sob o cumprimento

    de condicionalidades, como frequncia escolar das crianas e adolescentes e o acesso dos

    membros da famlia aos servios de sade (FONSECA; VIANA, 2007; CEPAL, 2013). Outra

    experincia que merece destaque o Programa Asignacin Universal por Hijo (AUH) da

    Argentina. Implantado em 2010, como uma extenso do Programa de Benefcios Familiares,

    na forma de um seguro social, atende famlias com crianas e/ou adolescentes abaixo de 18

    anos, cuja renda inferior ao teto estipulado pelo programa (CEPAL, 2013). J no Brasil, em

    2003, a unificao de vrios programas de mbito federal existentes culminou no Programa

    Bolsa Famlia (PBF), que se destaca entre os demais programas da Amrica Latina por ser o de

    maior cobertura (CEPAL, 2013).

    Cabe neste momento detalhar um pouco mais o caso brasileiro, sua trajetria histrica

    e avanos. Para isso, importante olhar para o incio da dcada de 1990, perodo em que

    surgiram as principais aes de combate pobreza no Brasil.

    Silva et al (2007) descrevem a trajetria histrica dos Programas de Transferncia de

    Renda (PTR) do Brasil, destacando cinco principais momentos, sendo eles: (i) Programas de

    Renda Mnima (1991); (ii) articulao do debate sobre renda mnima e educao (1991); (iii)

    nascimento dos primeiros PTCR em municpios brasileiros (1995); (iv) desenvolvimento de

  • 17

    programas de transferncia de renda em nvel federal (1996-2001); (v) ampliao quantitativa

    e qualitativa dos PTCR a partir do ano de 2003, perodo do Governo Lula.

    O primeiro momento citado por Silva et al (2007) refere-se aprovao no senado

    federal do Projeto de Lei n 80/1991 de autoria do Senador Eduardo Suplicy, sobre a instituio

    de um Programa de Garantia de Renda Mnima para o Brasil. Sua proposta era complementao

    de renda a todos cidados brasileiros com idade igual ou maior de 25 anos de idade, com intuito

    da garantia de uma renda mnima ao que correspondesse a aproximadamente a 2,25 salrios

    mnimos (SILVA, 2006). Este projeto de lei, apesar de no ter sido aprovado na cmara pelos

    deputados federais, foi um marco importante, pois desencadeou debate acadmico e poltico

    sobre a implantao de PTR no Brasil. Alm disso, impulsionou discusses regionais que deram

    origem a inmeros projetos de lei estaduais e municipais, propondo aes na mesma linha,

    vrios deles sendo aprovados (SILVA et al, 2007; OLIVEIRA; SOARES, 2007; SILVA, 2006;

    LAVINAS; VARSANO, 1997).

    O segundo momento histrico, tambm no ano de 1991, foi considerado um perodo

    qualificador do debate sobre renda mnima, pois inclui na discusso a articulao entre renda

    mnima familiar e educao (SILVA et al, 2007). Este debate trouxe dois marcos que so

    reconhecidos no modelo dos programas brasileiros atuais. O primeiro, diz respeito introduo

    da famlia como unidade bsica de ateno dos PTR e no mais o indivduo. O segundo marco

    se refere vinculao da transferncia monetria permanncia de crianas e adolescentes de

    famlias pobres nas escolas (SILVA, 2006).

    Neste mesmo perodo, incio dos anos de 1990, ocorreram alguns fatos que merecem

    destaque. Em 1992 aps o impeachment do Presidente da Repblica Fernando Collor, o ento

    vice-presidente Itamar Franco toma posse como presidente da Repblica (1992-1995). No

    perodo do governo de Itamar se iniciaram algumas aes para o combate fome e a pobreza

    no Brasil. Ocorreu tambm uma ampla mobilizao da sociedade com objetivo de arrecadao

    de alimentos, conhecida como Campanha da Fome, articulada pela Ao da Cidadania contra

    a Fome, a Misria e pela Vida, coordenada pelo socilogo Hebert de Souza (SILVA et al, 2007).

    No ano de 1993 o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) lanou o Mapa da

    Fome, que revelou que aproximadamente 32 milhes de brasileiros viviam em situao de

    indigncia. Estas informaes estimularam uma parceria entre a Ao da Cidadania contra a

    Fome, a Misria e pela Vida, e o governo federal, dando origem em maio de 1993 ao Conselho

    Nacional de Segurana Alimentar (CONSEA) (PASQUIM; SANTOS, 2007).

    Em 1995, iniciou-se o terceiro momento histrico, com a implantao das primeiras

    experincias de PTR nos Municpios de Campinas, Ribeiro Preto e Braslia, que em seguida

  • 18

    se estenderam por outras cidades e estados (SILVA et al, 2007). J em 1996, foram iniciadas

    as primeiras experincias do governo federal, com o Programa de Erradicao do Trabalho

    Infantil (PETI) e o Benefcio de Prestao Continuada (BPC) (SILVA, 2006). O BPC consiste

    no repasse de um salrio mnimo mensal destinado pessoa portadora de deficincia e ao idoso,

    que comprovem no possuir renda suficiente para o seu sustento. Este benefcio j estava

    previsto na constituio Federal de 1988, no entanto o seu repasse s iniciou no ano de 1996

    (SILVA et al, 2007).

    A instituio do PETI vem como resposta s constantes denncias de trabalho escravo

    infantil em vrios estados brasileiros. Sua proposta central era possibilitar a retirada das crianas

    e adolescentes do trabalho e inclu-las na escola por meio do repasse de renda para as famlias.

    As primeiras experincias deste programa ocorreram por meio de parceria entre o governo

    federal e os estados com maior incidncia de trabalho infantil, sendo Mato Grosso do Sul

    (1996), Pernambuco e Bahia no ano de 1997, Sergipe e Rio de Janeiro em 1998, alcanando

    maior expanso nos anos 2001 e 2002 (SILVA et al, 2007).

    Ainda em 1995, com o incio do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso,

    tivemos outras implementaes polticas sistematizadas para o cenrio de combate fome no

    Brasil, por meio da extino de aes j existente e da implementao de outras. Nesse cenrio,

    o Plano de Combate Fome e Misria e o CONSEA, institudos no governo de Itamar Franco

    foram extintos, sendo substitudos pelo Programa Comunidade Solidria e o Conselho da

    Comunidade Solidria, presidido pela primeira Dama Ruth Cardoso. As aes do Programa

    Comunidade Solidria eram focalizadas apenas nos municpios brasileiros que concentravam

    maiores ndices de pobreza extrema (SILVA et al, 2007; PASQUIM; SANTOS, 2007).

    O quarto momento histrico dos programas de transferncia de renda no Brasil, iniciou-

    se em 2001, penltimo ano do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso

    (1995-2002). Neste ano o governo federal implantou diversos programas de transferncia de

    renda no pas, entre eles: (i) o Bolsa Escola no Ministrio da Educao, (ii) o Bolsa

    Alimentao no Ministrio da Sade, (iii) o Auxlio Gs, no Ministrio de Minas e energia,

    o (iv) Agente Jovem, no Ministrio da Previdncia e Assistncia Social e no Ministrio da

    Integrao Nacional e o (v) Bolsa Renda para as situaes de emergncia (secas e inundaes)

    nas reas rurais. Alm disso, ocorreu a expanso dos programas j institudos em 1996 o

    Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (PETI) e o Benefcio de Prestao

    Continuada (SILVA et al, 2007; FONSECA; VIANA, 2007; SILVA, 2006).

    Ainda em 2001, se destaca a criao do Cadastro nico dos Programas Sociais do

    Governo federal (Cadnico), com o objetivo de reduzir custos, ampliar o controle das

  • 19

    concesses e reunir em nico banco de dados as informaes sobre as famlias beneficiadas

    pelos programas sociais (SILVA et al, 2007). Foi institudo pelo decreto de lei n 3.877/2001,

    sendo posteriormente revogado pelo Decreto de lei n 6135/2007 (BRASIL, 2001; BRASIL,

    2007). No entanto, na primeira fase do Cadnico ocorreram vrias irregularidades no processo

    de cadastramento e atualizao dos dados que dificultaram o alcance de seus objetivos,

    principalmente pelo fato de que software desenvolvido era programado para municpios de

    pequeno porte, o que causava problemas no cadastramento (SILVA et al, 2007).

    No ano de 2003, com a posse do Presidente Luiz Incio Lula da Silva, inicia-se o quinto

    e ltimo momento do desenvolvimento histrico dos programas de transferncia de renda no

    Brasil. A poltica Social de enfrentamento fome e a pobreza foi a prioridade deste governo,

    marcado por mudanas direcionadas para a construo de uma Poltica Nacional de

    transferncia de renda (SILVA et al, 2007; SILVA, 2006).

    J no primeiro dia do ms de janeiro de 2003 foi publicada a Medida Provisria n 103,

    posteriormente convertida em Lei n 10.683/2003, que dispe sobre a nova estrutura da

    Presidncia da Repblica. Estabeleceu a criao de novos ministrios, entre eles o Ministrio

    Extraordinrio de Segurana Alimentar e Combate Fome (MESA) e o Ministrio da

    Assistncia Social e Promoo Social (MAPS). Incluiu como um dos rgos de assessoramento

    imediato ao Presidente da Repblica, o Conselho Nacional de Segurana Alimentar e

    Nutricional (CONSEA) (BRASIL, 2003a; BRASIL, 2003b).

    No incio do mandato do Presidente Lula, em 2003, foi implantado o Programa Fome

    Zero. O projeto Fome Zero foi elaborado em 2001 pelo Instituto de Cidadania, com a

    participao de diversos atores e pesquisadores de Segurana Alimentar e Nutricional (SAN)

    do pas, alm de movimentos sociais e Organizaes No Governamentais (ONG). Teve como

    objetivo propor uma poltica nacional participativa de SAN e combate fome (BRASIL, 2010a;

    SILVA et al, 2007). Apresentava trs eixos centrais: a construo participativa da Poltica de

    SAN, a implantao de polticas pblicas e o mutiro contra a fome.

    Uma das iniciativas do novo governo foi instituir o Carto Alimentao, por meio da

    Medida Provisria n 108 de 27 de fevereiro de 2003, que posteriormente foi revogada na lei n

    10.689 de 13 de junho de 2003, que criou o Programa Nacional de Acesso Alimentao

    (BRASIL, 2003c; BRASIL, 2003d). O carto Alimentao integrou uma das aes especificas

    do Programa Fome Zero, teve como objetivo combater a fome e promover a Segurana

    Alimentar e Nutricional, com o repasse de recurso financeiro, sendo destinado a famlias com

    renda per capita inferior a meio salrio mnimo (SILVA et al, 2007).

    Este governo deu continuidade e ampliou as discusses sobre polticas sociais do Brasil,

  • 20

    sendo um marco importante a criao do Programa Bolsa Famlia. Este programa representou

    importante marco na histria das polticas sociais do Brasil.

    O Programa Bolsa Famlia

    Durante a transio de governo de Fernando Henrique Cardoso para o governo Lula,

    indcios sobre a necessidade de unificao dos programas de transferncia de renda foram

    lanados pela equipe de transio de governo, que realizou um diagnstico sobre os programas

    sociais existentes. Em outubro de 2003, criou-se o Programa Bolsa Famlia (PBF) pela Medida

    Provisria n 132/2003, convertida na Lei n 10.836/2004. Este novo programa teve como

    finalidade a unificao dos processos de gesto e execuo por parte do governo federal das

    aes de transferncia de renda, como o Cadastramento nico para programas sociais do

    Governo Federal (Cadnico) e a integrao dos seguintes programas: Bolsa Escola, Bolsa

    Alimentao, auxlio gs e o Programa Nacional de Acesso Alimentao (Carto alimentao)

    (BRASIL, 2004a; BRASIL, 2003e).

    O PBF trouxe como caractersticas singulares o foco na proteo da famlia como um

    todo, e no somente a grupos especficos (crianas, adolescentes), o aumento do valor

    monetrio do benefcio e o alto investimento pblico em uma poltica de transferncia de renda

    (SILVA, et al 2007; SILVA, 2006).

    O programa teve o objetivo de colaborar para a incluso social de milhares de famlias

    brasileiras que estavam em situao de fome e pobreza (BRASIL, 2013; SILVA, 2006).

    Pretendia-se contribuir para a quebra do ciclo intergeracional da pobreza, por meio da

    transferncia de renda, da melhoria do acompanhamento da sade e do estmulo educao

    (BRASIL, 2013). Conforme o artigo 4 do Decreto N 5.209/2004, os objetivos bsicos do PBF

    so:

    I - Promover o acesso rede de servios pblicos, em especial, de sade, educao e

    assistncia social;

    II - Combater a fome e promover a segurana alimentar e nutricional;

    III - Estimular a emancipao sustentada das famlias que vivem em situao de

    pobreza e extrema pobreza;

    IV - Combater a pobreza;

    V - Promover a intersetorialidade, a complementaridade e a sinergia das aes sociais

    do Poder Pblico (BRASIL, 2004b).

    A gesto e execuo do PBF so descentralizadas e realizadas de modo compartilhado

    entre as trs esferas de governo: Federal, Estadual e Municipal (BRASIL, 2004b; BRASIL,

    2003e). A gesto das condicionalidades exigidas pelo programa realizada pelos trs nveis de

    governo, no entanto, os municpios tm maior responsabilidade na oferta dos servios de

  • 21

    educao e de sade e monitoramento das condicionalidades.

    Conforme a Portaria GM/MDS N 251, de 12 de dezembro de 2012, as

    condicionalidades do PBF:

    Visam a ampliar o acesso das famlias s polticas de sade, educao e assistncia

    social, promovendo a melhoria das condies de vida da populao beneficiria, assim

    como a fortalecer a capacidade de o Poder Pblico oferecer tais servios (BRASIL,

    2012).

    No caso da sade, as condicionalidades previstas so: assistncia ao pr-natal e ao

    puerprio; acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil, e da vacinao;

    vigilncia alimentar e nutricional de crianas menores de sete anos; e participao em atividades

    educativas promovidas pelo servio de sade. No que se refere educao, as

    condicionalidades so frequncia escolar de 85% das crianas e adolescentes de 6 a 15 anos e

    75% de frequncia escolar no caso de jovens de 16 a 17 anos. O no cumprimento das

    condicionalidades por parte das famlias implica na suspenso do benefcio, conforme consta

    na legislao do PBF (Portaria GM/MDS N 251, de 12 de dezembro de 2012).

    Em janeiro de 2004 foi criado o Ministrio do Desenvolvimento Social e combate

    fome (MDS), substituindo o Ministrio da Assistncia Social e o Ministrio Extraordinrio de

    Segurana Alimentar e Combate Fome (SILVA, 2006). Conforme o artigo 2 do Decreto n

    7.332/2010, o MDS tem entre as suas atribuies coordenar, gerir e operacionalizar o

    Programa Bolsa Famlia (BRASIL, 2010b).

    Em meados dos anos de 2011 foi institudo o Plano Brasil Sem Misria, pela Presidente

    Dilma Rousseff com o Decreto de Lei N 7.492/2011. O artigo 4 do referido Decreto, apresenta

    os seguintes objetivos do Plano Brasil Sem Misria:

    I - Elevar a renda familiar per capita da populao em situao de extrema pobreza;

    II - Ampliar o acesso da populao em situao de extrema pobreza aos servios

    pblicos;

    III - Propiciar o acesso da populao em situao de extrema pobreza a oportunidades

    de ocupao e renda, por meio de aes de incluso produtiva (BRASIL, 2011).

    No mbito do PBF, o Plano Brasil Sem Misria ampliou o olhar do Programa para as

    famlias em situao de pobreza extrema, que viviam em alto grau de excluso social, a ponto

    de no conseguirem acessar as polticas sociais. Uma das estratgias do Plano Brasil Sem

    Misria era a Busca Ativa, na qual o Estado, por meio das trs esferas de governo (Federal,

    Municipal, Estadual), assumia a responsabilidade de encontrar as famlias mais pobres, dando

    a elas o direito de serem assistidas pelos programas sociais. No que se refere garantia de renda,

    incluiu dois novos benefcios do PBF, o benefcio para gestante e nutriz e o benefcio para a

    superao da extrema pobreza (BRASIL, 2014a).

  • 22

    Conforme o Decreto n 8.794, de 29 de junho de 2016, o PBF destina-se a famlias em

    situao de extrema pobreza e pobreza, sendo caracterizada respectivamente pela renda familiar

    mensal per capita de at R$ 85,00 e de at R$ 170,00. O benefcio bsico, no valor mensal de

    R$ 85,00, destinado s famlias que esto em situao de extrema pobreza. Os benefcios

    variveis so destinados tanto a famlias em extrema pobreza, como as em situao de pobreza.

    Existem dois benefcios variveis, sendo o primeiro destinado s famlias com gestantes,

    nutrizes, crianas entre zero a quinze anos, o valor mensal deste benefcio de R$ 39,00 por

    beneficirio, no podendo exceder cinco benefcios por famlia, o que equivale ao limite de

    R$195,00 por famlia. Para famlias com adolescentes entre dezesseis e dezessete anos,

    regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino, o valor do benefcio varivel de

    R$ 46,00, no podendo exceder a dois benefcios por famlia, conforme demonstra o quadro 1

    (BRASIL, 2016).

    Caso a famlia contemplada pelo PBF permanea em situao de extrema pobreza,

    mesmo recebendo os benefcios bsico e variveis, ela ter direito ainda ao benefcio para

    superao da extrema pobreza. Este benefcio passou a compor o PBF em 2012, por meio do

    Plano Brasil Sem Misria, com o objetivo de erradicar a extrema pobreza (BRASIL, 2014a).

    Trouxe como objetivo garantir a renda mnima de R$85,00 por pessoa da famlia beneficiria

    do PBF. Neste sentido, o valor total deste benefcio ser o necessrio para que a renda por

    pessoa da famlia seja superior a R$85,00, no limite de um benefcio por famlia, o valor deste

    benefcio calculado caso a caso (BRASIL, 2016).

    Quadro 1: Repasse monetrio concedido s famlias cadastradas no Programa Bolsa Famlia.

    Perfil da famlia Benefcio bsico Benefcio varivel

    (Criana entre 0 a 15 anos,

    gestantes e nutriz)

    Benefcio varivel

    (Adolescente entre 16 e

    17 anos)

    Famlia com renda per

    capita de at R$ 85,00 por

    ms

    R$ 85,00

    R$39,00

    (Mximo de 5 benefcios

    por famlia)

    R$ 46,00

    (Mximo de 2

    adolescentes por famlia)

    Famlia com renda per

    capita entre R$ 85,01 at

    R$ 170,00 por ms

    -

    R$39,00

    (Mximo de 5 benefcios

    por famlia)

    R$ 46,00

    (Mximo de 2

    adolescentes por famlia) *Valores atualizados conforme o Decreto n 8.794, de 29 de junho de 2016.1

    1 Os valores vigentes no perodo do estudo, eram conforme o Decreto n 8.232, de 30 de abril de 2014. No qual

    eram consideradas famlias em situao de pobreza e extrema pobreza, caracterizada respectivamente pela renda

    familiar mensal per capita de at R$ 154,00 e de R$ 77,00. O benefcio bsico era corresponde ao valor de R$

    77,00 reais, destinado a famlias em situao de extrema pobreza. O benefcio varivel era no valor de R$ 35,00

    reais para famlias com gestantes, nutrizes, crianas entre zero a quinze anos, no podendo exceder a cinco

    benefcios por famlia. O benefcio varivel era no valor de R$ 42,00 reais destinados s famlias com adolescentes

    entre dezesseis e dezessete anos, no podendo exceder a dois benefcios por famlia. O benefcio para superao

    da extrema pobreza tinha como objetivo garantir a renda mnima de R$77,00 por pessoa da famlia beneficiria do

    PBF, sendo o valor calculado caso a caso.

  • 23

    O PBF consolidou-se como o maior programa de proteo social do Brasil. Dados do

    MDS revelam que no ms de novembro de 2016, mais de 13 milhes de famlias foram

    beneficiadas, o valor mdio do benefcio foi de R$ 183,78 por famlia, o que correspondeu a

    uma transferncia do governo federal no valor de mais de 2 bilhes de reais no ms, revertido

    em benefcios a famlias do PBF (BRASIL, 2016).

    Diversos estudos apontam que as famlias atendidas pelo PBF utilizam grande parte do

    benefcio para a compra de alimentos, priorizando os alimentos destinados s crianas. Segundo

    estudo realizado em 2007 pelo Instituto Brasileiro de Anlise Sociais e Econmicas (IBASE),

    as famlias mais pobres destinam maior percentual da sua renda para aquisio de alimentos.

    Este mesmo estudo demonstra que o benefcio do PBF trouxe impacto na alimentao das

    famlias, com aumento da quantidade e variedade dos alimentos consumidos, sendo ainda mais

    expressivo para as famlias que vivem em reas rurais. A transferncia de renda contnua

    possibilitou s famlias maior planejamento dos gastos, refletindo em modificaes no consumo

    alimentar (IBASE, 2008).

    Para Segall-Corra e Salles-Costa (2008), o aumento de poder de compra de alimentos

    pode no refletir necessariamente no aumento da qualidade da alimentao das famlias

    beneficiadas pelo PBF. As autoras reforam que o PBF possibilitou s famlias o aumento do

    consumo de alimentos fontes de protenas (leite e derivados, carnes), cereais e de feijes, mas

    tambm de alimentos ricos em gorduras e acares. Isto pode estar relacionado ao fato de que

    as escolhas alimentares so influenciadas por fatores econmicos, pela disponibilidade de

    compra (oferta e preo), mas tambm pelos valores simblicos que envolvem a deciso de

    compra, especialmente os produtos destinados s crianas.

    No entanto, de acordo com Burlandy (2007), os PTCR podem auxiliar as famlias pobres

    e extremamente pobres a alcanarem Segurana Alimentar e Nutricional (SAN), uma vez que

    possibilitam a escolha daqueles alimentos que fazem parte da sua cultura, contemplando o

    conceito de SAN no que tange ao respeito diversidade cultural. Conforme a Lei Orgnica de

    Segurana Alimentar e Nutricional (LOSAN, 2006), SAN pode ser compreendida como:

    (...) realizao do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de

    qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades

    essenciais, tendo como base prticas alimentares promotoras de sade que respeitem

    a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econmica e socialmente

    sustentveis (BRASIL, 2006).

    Segundo Burlandy (2007), o repasse mensal de renda possibilita s famlias a segurana,

    o planejamento das compras, evita situaes de constrangimento, propicia a compra de bens

    que no so alimentos, mas que muitas vezes auxiliam no alcance da SAN, como

  • 24

    eletrodomsticos utilizados para o armazenamento e preparo dos alimentos, investimentos em

    equipamentos para a gerao de renda, entre outros. A autora destaca ainda que o PBF se

    aproxima da concretizao de um dos seus objetivos, o de Promover Segurana Alimentar e

    Nutricional por meio dos possveis impactos da transferncia de renda na alimentao das

    famlias e pelo acesso aos servios de sade e de educao que integram as condicionalidades

    do programa (BURLANDY, 2007).

    As aes do PBF trouxeram expressivas conquistas na luta para a reduo da pobreza e

    da pobreza extrema, que puderam ser confirmadas em relatrios internacionais. Conforme

    aponta o relatrio recente da Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a

    Agricultura (FAO) sobre "O Estado da Insegurana Alimentar no Mundo 2015", o Brasil teve

    queda de 82,1% da fome entre os anos 2002 e 2014 (FAO, 2015). Assim, a FAO destaca que o

    Brasil no est mais presente no mapa da fome e que alcanou o objetivo do Desenvolvimento

    do Milnio referente a reduzir pela metade a fome.

    Dados de um estudo do MDS realizado no ano de 2013 revelou que 50,2% das famlias

    beneficiadas pelo PBF residiam no nordeste do Brasil, seguido de 25,4 % na regio Sudeste,

    11,4% no Norte, 7,5% no Sul e 5,4% no Centro Oeste do pas. Quanto ao perfil de renda das

    famlias beneficiadas pelo PBF, a maioria destas famlias, antes de receber o benefcio, estava

    em situao de extrema pobreza (72,4%). Observou-se diferenas expressivas entre as regies

    brasileiras. Nas regies norte, 78,1%, e nordeste 82,2% dos beneficirios eram extremamente

    pobres, j na regio Sul do Brasil, 54% dos beneficirios encontravam-se nesta situao

    (BRASIL, 2013).

    Este estudo tambm revelou que 93,1% dos titulares do benefcio do PBF so mulheres

    (BRASIL, 2013). Conforme j foi dito anteriormente, o PBF prioriza a mulher como titular do

    benefcio, por considerar que elas, em geral, so as responsveis pelo cuidado e bem-estar dos

    membros das famlias. Dada a relevncia deste tema, cabe discutir a construo social de gnero

    e a titularidade do PBF.

    2.2 Reflexes sobre Gnero

    Entender a construo social dos gneros fundamental para compreenso dos papis

    familiares atribudos a homens e mulheres. No entanto, este trabalho no traz como propsito

    realizar uma discusso aprofundada sobre relaes de gnero, mas sim refletir a luz de alguns

    autores sobre a construo social dos papis de gnero para que se possa compreender os

    reflexos nas polticas pblicas, como no caso do PBF, bem como, nas prticas alimentares no

  • 25

    mbito familiar.

    O estudo de Joan Scott (1995) foi um dos primeiros a definir gnero como uma categoria

    de anlise. A autora apresenta uma contextualizao histrica sobre a construo do conceito

    de gnero:

    Minha definio de gnero tem duas partes e diversos subconjuntos, que esto inter-

    relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O ncleo da definio

    repousa numa conexo integral entre duas proposies: (1) o gnero um elemento

    constitutivo de relaes sociais baseadas nas diferenas percebidas entre os sexos e

    (2) o gnero uma forma primria de dar significado as relaes de poder (SCOTT,

    1995, p.86).

    Segundo Bourdieu (2010), a construo social dos sexos, das identidades sexuais e de

    gnero ocorreu histrica e culturalmente apoiado na perspectiva da natureza, baseada nas

    diferenas biolgicas dos corpos. Sendo assim, a subordinao das mulheres aos homens era

    tida como natural. A produo de diferenas entre o masculino e feminino foi justificada pelas

    diferenas biolgicas, levando a divises socialmente construdas entre os sexos, das quais

    remetem oposio e determinaram espaos e atribuies distintas a homens e a mulheres

    (BOURDIEU, 2010). Conforme o autor:

    As divises constitutivas da ordem social e, mais precisamente, as relaes sociais de

    dominao entre os gneros se inscrevem, assim, progressivamente em duas classes

    de habitus diferentes, sob forma de hexis corporais opostos e complementares e de

    princpios de viso e de diviso, que levam a classificar todas as coisas do mundo e

    todas as prticas segundo distines redutveis oposio entre o masculino e

    feminino (BOURDIEU, 2010, p.41).

    Segundo Abreu e Silva (2016), o movimento feminista questiona as razes culturais da

    desigualdade entre os sexos, ressaltando que a diferenciao de papis esta pautada em uma

    relao de poder entre os sexos, em critrios sociais e no somente biolgicos.

    Sobre a construo social de gnero, Simone de Beauvoir (1967), em um clssico para

    os estudos feministas, o livro "O segundo sexo", consagrou a expresso de que ningum nasce

    mulher: torna-se mulher, no sentido de que, desde o nascimento, h uma interveno social na

    vida das crianas, no qual as diferenciam. A vocao maternidade e a passividade no so,

    portanto, instintos naturais quelas do sexo feminino, mas sim, imposies. A autora refora

    que, para as meninas, os sentimentos, as angustias da infncia so mais acolhidos do que

    acontece com os meninos. Desde pequeno espera-se que o menino se comporte como pequenos

    homens; o choro, o pedido de carinho , em geral, permitido somente nos primeiros anos,

    diferentemente das meninas. Ou seja, desde o nascimento meninos e meninas so preparados

    para exercerem os papis destinados ao gnero, construdos socialmente como distintos. E esses

    ensinamentos esto presentes em todos os espaos, quer seja no mbito familiar, na escola, na

    religio, no convvio com a sociedade e ou por influncia da mdia (LYRA et al, 2003). Ao

  • 26

    menino so atribudos brinquedos e brincadeiras que rementem ao ambiente externo, de

    trabalho e fora, como os carros, os jogos de lutas e os super-heris. J s meninas so

    oferecidas brincadeiras que remetem ao ambiente domstico, de cuidado aos filhos e a casa,

    como exemplo, as bonecas, os brinquedos que imitam utenslios de cozinha entre outros. Deste

    modo, de um lado homens provedores e, de outro, mulheres cuidadoras e as crianas

    reproduzem nas brincadeiras aquilo que se espera de um pai e de uma me (LYRA et al,

    2003).

    Assim sendo, as construes sociais determinam a diviso entre atividades destinadas a

    homens e mulheres, no sendo, portanto, uma determinao biolgica. Na dcada de 1970

    impulsionado por diversos estudos feministas, principalmente franceses, se consolidou o

    conceito de diviso sexual do trabalho. Que segundo Kergoat (2009, p.67)

    A diviso sexual do trabalho a forma de diviso do trabalho social decorrente das

    relaes sociais de sexo; essa forma historicamente adaptada a cada sociedade. Tem

    por caractersticas a destinao prioritria dos homens esfera produtiva e das

    mulheres esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupao pelos homens das

    funes de forte valor social agregado (poltica, religiosas, militares etc.).

    Esta forma de diviso social do trabalho, em todas as sociedades, se organiza em dois

    princpios: hierarquia (trabalho masculino tem mais valor do que o feminino) e separao

    (diviso de trabalhos considerados de homens e de mulheres) (HIRATA; KERGOAT, 2007;

    KERGOAT, 2009). Estes princpios foram legitimados pela ideologia naturalista, na qual

    segundo Hirata e Kergoat (2007, p.599), rebaixa o gnero a sexo biolgico, reduz as prticas

    sociais a papis sociais sexuados que remetem ao destino natural da espcie. As autoras

    reforam que a diviso sexual do trabalho varivel ao longo do tempo e da sociedade, no

    entanto, o que permanece estvel no so as situaes, mas sim a distncia entre o masculino e

    feminino. Exemplificam o caso francs, onde as condies das mulheres tiveram significativa

    melhora como no acesso ao trabalho remunerado, no entanto, permanecendo a distncia entre

    homens e mulheres.

    O estudo de Sarti (2003) com famlias pobres de So Paulo, demonstra que no mbito

    das famlias os dois exercem papis complementares, porm hierrquicos. O homem

    compreendido como chefe da famlia (provedor do sustento) e a mulher como chefe da casa

    (cuidadora da famlia e do lar). A autoridade masculina (autoridade moral) compete a mediao

    da famlia com o ambiente externo, j a autoridade feminina diz respeito a manter a unidade do

    grupo familiar. Ainda segundo a autora, quando a mulher assume a responsabilidade econmica

    do lar ocorrem modificaes importantes nas relaes de autoridade no mbito familiar. A

    autoridade masculina abalada, caso o homem no garanta moradia e sustento da famlia,

  • 27

    atribuies estas do papel de provedor. A autora refora que as mulheres pobres, j acostumadas

    ao trabalho duro, no identificam como problema serem a chefe da famlia, mas sim a

    manuteno da dimenso do respeito que fica abalada na falta do homem. Nestes casos, so

    destinados a outros homens da famlia (filho mais velho, pai ou irmo) a responsabilidade da

    autoridade moral, mesmo quando elas assumem o papel de provedora. Portanto, a autoridade

    do homem no se fundamenta necessariamente no controle de recursos financeiros, mas sim no

    seu papel de intermediador entre a famlia e o mundo externo, de garantir o respeito da famlia,

    seu papel social de gnero representa a autoridade moral da famlia. Em contraposio, na

    impossibilidade dos papis femininos serem assumidos pela me-esposa-dona de casa, estas

    atribuies so transferidas para outras mulheres, de dentro ou fora do lar (como me, tia, irm,

    filhas). Deste modo, a centralidade da famlia no est em um dos gneros, mas sim na

    complementariedade masculino/feminino (SARTI, 2003).

    Lyra et al (2003) apresentam em seu estudo uma contextualizao histrica sobre a

    construo social da associao feminina ao cuidado. Os autores relatam que, em diferentes

    tempos histricos e sociedades, o cuidado das crianas era geralmente atribudo figura

    feminina, visto que os homens estavam mais envolvidos com atividades externas, levando ao

    distanciamento do convvio e do cuidado dos filhos. Como foi dito anteriormente, so impostas

    s crianas brincadeiras que rementem a diferenciao dos papis de gnero, neste sentido,

    ensinado para as meninas o papel do cuidado, nas brincadeiras com as bonecas elas reproduzem

    o cuidado do filho, no entanto, os meninos no recebem o ensinamento de como um pai deve

    cuidar de seus filhos. Repercutindo em pais muitas vezes distantes do cuidado dos filhos, pois

    nunca lhe foi ensinado como cuidar, dar banho, ninar, alimentar uma criana. Deste modo, para

    alguns homens o ato de cuidar e demonstrar carinho pode ser difcil, visto que, quando crianas,

    esses podem ter sido repreendidos at com punies fsicas, ao tentar demonstrar afeto e afeio

    ao cuidado de uma boneca por exemplo. Neste sentido, Lyra et al (2003) questionam como a

    sociedade pode esperar que estes meninos sejam pais presentes no futuro, se na infncia no

    lhe foi ensinado o cuidado. Os autores reforam que, desde que cuidado foi associado

    maternidade, foi naturalizado como instinto feminino ou instinto materno, no entanto, o

    cuidado um aprendizado social. Porm, ainda que de modo discreto, novas geraes de pais

    tentam reverter o papel que a sociedade tentou lhes impor, se mostram mais participativos no

    cuidado com os filhos, contudo muitos enfrentam dificuldades, visto que no foi ensinado este

    papel de pai cuidador (LYRA et al, 2003).

    Alm da dimenso do cuidado com outro, o cuidado da sua prpria sade no foi

    ensinado aos homens. A imagem do homem, construda socialmente e culturalmente, de uma

  • 28

    pessoa forte, smbolo de virilidade e racionalidade. At mesmo os servios de sade podem no

    estar preparados para receberem os homens, as atividades em sade geralmente no so voltadas

    para o pblico masculino, e ocorrem em horrios imprprios para aqueles inseridos no trabalho

    formal (LYRA et al, 2003). Estas dificuldades ainda permanecem, no entanto, no Sistema

    nico de Sade, em 2009, foi instituda a Poltica Nacional de Ateno Integral da Sade do

    Homem2, com objetivo de promover melhorias nas condies de sade da populao masculina

    adulta.

    A naturalizao do cuidado como atribuio feminina traz tambm reflexos nas escolhas

    das profisses. Nota-se como expressiva a presena de mulheres nas profisses relacionadas

    ao cuidado, como nas reas de sade e de educao. Do mesmo modo, por ser visto como um

    trabalho feminino, estas profisses em geral no so to valorizadas, principalmente no aspecto

    da remunerao, quando comparadas as reas profissionais mais relacionadas ao trabalho

    masculino (LYRA et al, 2003). O estudo de Lyra et al (2003, p.87) enfatiza: Percebendo a

    hierarquizao dos papis masculinos e femininos como uma construo social, cultural e

    histrica, acreditamos que somente pela anlise das relaes de gnero possvel compreender

    as desigualdades sociais no exerccio do cuidado.

    Como outro ponto importante nas distines de gnero, deve-se ressaltar que, durante

    muitos anos, as mulheres vm sofrendo consequncias nas suas vidas por conta da construo

    social de gnero, por serem consideradas inferiores em relao aos homens. Para exemplificar,

    sabe-se que o acesso a direitos civis, polticos e de educao pelas mulheres somente so

    conquistados a partir de muitas lutas dos movimentos de mulheres e feministas (ABREU;

    SILVA, 2016). Sarti (2003) relata que ao longo da histria acontecimentos contriburam para

    algumas alteraes das atribuies de homens e mulheres na sociedade. A partir da dcada de

    1960, um importante marco para a vida cotidiana das mulheres foi a difuso da plula

    anticoncepcional, quando a sexualidade feminina se dissociou da reproduo. Alm disso, no

    mesmo perodo houve maior presena das mulheres no mercado de trabalho remunerado. Esses

    dois fatos repercutiram em uma mudana importante do papel das mulheres perante famlia.

    Para algumas mulheres possibilitou a ruptura do ambiente domstico e avano para o espao

    pblico do trabalho (SARTI, 2003). J no final dos anos 1980, os testes de DNA, onde a

    paternidade pode ser comprovada, trouxeram segundo Fonseca (2001, p.2) o potencial de uma

    nova mudana profunda em nossa maneira de pensar a famlia, relaes de gnero e

    parentesco. Os testes de paternidade acarretaram aos homens maior responsabilidade por seus

    2 Poltica Nacional de Ateno Integral da Sade do Homem, instituda pela Portaria n 1.944/GM, do Ministrio da Sade, de 27 de agosto de 2009.

  • 29

    filhos, principalmente do ponto de vista jurdico e financeiro (FONSECA, 2001).

    Apesar das mudanas ocorridas ao longo das ltimas dcadas, os indicadores

    apresentados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD) de 2011 e de 2014

    reafirmam a presena da desigualdade de gnero no Brasil (IBGE, 2015; IBGE, 2012). Sobre

    desigualdades de rendimentos, essas pesquisas apontam que as mulheres ainda recebem menos

    que homens. Ao comparar os rendimentos de homens e mulheres, a PNAD 2014 demonstra que

    os salrios das mulheres correspondem em mdia a 73,3% do salrio dos homens. Outro

    indicador que expressa esta desigualdade a proporo de pessoas que recebem at um salrio

    mnimo. Foi observado que 21,5% dos homens ocupados recebem at um salrio mnimo,

    enquanto 30,6% das mulheres ocupadas (IBGE, 2015).

    Melo (2005) enfatiza que pobreza e excluso social atingem homens e mulheres de

    modo diferente. De acordo com o estudo, as mulheres podem vivenciar a pobreza mais grave,

    pois o recebimento pelo seu trabalho ainda inferior ao dos homens, mesmo quando exercem

    a mesma funo. Sendo assim, as famlias que dependem exclusivamente da renda feminina

    tendem a sofrer maiores restries financeiras. Ainda de acordo com Melo (2005), as mulheres

    realizam mais atividades no remuneradas no mbito familiar do que os homens, como o

    cuidado a pessoas doentes e a crianas, tarefas domsticas, o que as tornam, em algumas

    situaes, dependentes da proviso de renda masculina.

    No que se refere ao trabalho domstico, a PNAD de 2011 mostra que esta continua

    sendo uma atividade predominantemente feminina. A jornada mdia semanal nessas atividades

    2,5 vezes maior do que a dos homens. Arajo e Scalon (2005) enfatizam que apesar da

    participao conjunta no mercado de trabalho com carga horria semelhante, a diviso sexual

    do trabalho domstico continua sendo desigual, sendo a participao dos homens ainda pouco

    expressiva. As autoras tambm demonstram que o cuidado dos filhos, em geral, permanece o

    padro tradicional, no qual as mulheres tm maior responsabilidade do que os homens.

    O papel social das mulheres tem mudado ao longo dos anos. Melo (2005) destaca que,

    no incio do sculo passado, grande parte das mulheres era analfabeta. Atualmente elas

    apresentam maior escolaridade do que os homens, refletindo na progresso de carreira e ampla

    presena no mercado de trabalho, proporcionando mudana nos papis femininos na sociedade

    em todas as classes sociais.

    Outra mudana do papel feminino na sociedade pode ser vista nos dados sobre a pessoa

    de referncia das famlias. De acordo com o IBGE (2012), entre famlias formadas por casais

    sem filhos a proporo de mulheres declarante como responsvel pela famlia passou de 4,5%

    (2001) para 18,3% (2011); naquelas formadas por casais com filhos os dados foram

  • 30

    semelhantes, de 3,4% passou para 18,4% no mesmo perodo.

    Ao olhar para os arranjos familiares a PNAD (2011) mostrou que 16,4% so

    constitudos por arranjos monoparentais femininos, compreendidos como aqueles compostos

    por mulher sem cnjuge e com filhos. Um dado preocupante deste estudo revela que em 27%

    dos domiclios com rendimento per capita de at do salrio mnimo, os arranjos familiares

    so monoparentais femininos com filhos menores de 14 anos de idade. As famlias com este

    arranjo apresentam indicadores de escolaridade, saneamento bsico e renda abaixo da mdia

    nacional, reafirmando a situao de vulnerabilidade vivenciada por estas famlias.

    Farah (2004) traz em seu estudo uma reflexo sobre a incorporao de gnero nas

    polticas pblicas no Brasil. A autora pontua, que desde os anos de 1970, momento de luta

    contra o regime militar, movimentos sociais com mulheres e de mulheres, juntamente com o

    movimento feminista, levantaram a pauta das desigualdades de gnero como uma questo a ser

    includa na agenda pblica e a serem superadas por um regime democrtico. Estes movimentos

    refletiram na implantao, na dcada de 1980, das primeiras polticas pblicas com recorte de

    gnero, ou seja, que reconheceram as desigualdades de gnero e com aes diferenciadas para

    mulheres. As primeiras aes ocorreram no ano de 1983 com a criao do Conselho Estadual

    da Condio Feminina (primeiramente em So Paulo e posteriormente expandiu para todo o

    pas) e do Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher, e em 1985, a instituio da

    Delegacia de Polcia de Defesa da Mulher e do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres.

    A mobilizao das mulheres repercutiu tambm na Constituio de 1988. Na Carta das

    Mulheres Brasileiras foram apresentadas propostas relativas sade, trabalho, famlia,

    discriminao, violncia, cultura e propriedades de terra, que foram includas na Constituio.

    Ainda segundo Farah (2004), a mobilizao das mulheres levou a reflexo para as polticas de

    combate pobreza. Reivindicava-se que as mulheres fossem as beneficirias preferenciais, e

    que participassem na formulao, implantao e controle das polticas pblicas. A focalizao

    das polticas de combate pobreza foi defendida por diversos movimentos, por entender que as

    mulheres, em geral, tm menor renda que os homens e por isso podem sofrer uma pobreza mais

    grave, principalmente nas famlias monoparentais femininas (FARAH, 2004).

    Conforme exposto, as construes sociais de papis de gnero, bem como os

    movimentos de mulheres e feministas repercutiram na formulao das polticas pblicas

    focalizadas, deste modo, cabe discutir a preferncia da titularidade feminina no Programa Bolsa

    Famlia.

  • 31

    2.3 Titularidade do Programa Bolsa Famlia

    Conforme a Lei 10.836, que cria o PBF, artigo segundo, pargrafo 14: o pagamento

    dos benefcios previstos nesta Lei ser feito preferencialmente mulher, na forma do

    regulamento, sendo destinado a unidades familiares que se encontrem em situao de extrema

    pobreza e pobreza (BRASIL, 2004a).

    Observa-se a famlia como foco de diversas polticas brasileiras, como nas reas da

    sade, educao e da assistncia social. Carloto e Mariano (2010) enfatizam que h uma

    associao famlia-mulher, levando a um direcionamento destas polticas para a mulher. A

    relao da mulher como cuidadora da famlia compreendida como algo natural, tanto pela

    sociedade como pelas polticas sociais, apesar de vrias crticas a esse respeito j terem sido

    levantadas. Esta compreenso refora como espao feminino a famlia e o espao masculino o

    trabalho, embora homens e mulheres atuem em ambos os espaos. Conforme estudo de Lavinas

    et al (2012) com beneficirias do PBF, para as mulheres pobres, o papel de cuidadora recai

    de modo mais intenso, visto que, a ausncia de servios pblicos de creches faz com que elas

    se ausentem do trabalho remunerado para o cuidado dos filhos.

    A incorporao pelas polticas sociais da construo cultural da mulher como

    cuidadora da famlia, identificando-a como a figura representativa da famlia, repercutiu no

    desenho destas polticas, favorecendo na indicao desse segmento como as responsveis,

    preferencialmente, pelo recebimento do benefcio dos programas de transferncia de renda,

    como no caso do PBF (MARIANO; CARLOTO, 2013; CARLOTO; MARIANO, 2010).

    O estudo de Carloto e Mariano (2010) revela que homens e mulheres podem vivenciar

    de maneira diferente os sentimentos de vergonha e humilhao ao buscar servios de assistncia

    social. De acordo com as autoras, quando a famlia vivencia situao de pobreza, o peso do

    fracasso recai mais sobre o homem, por no poder prover o necessrio para a famlia,

    despertando sentimento de vergonha ao necessitar acessar os servios de assistncia social. As

    autoras ressaltam ainda que, como a mulher, em muitas situaes, exerce a funo de

    cuidadora da famlia, ao buscar ajuda nos servios de assistncia social, o sentimento de

    vergonha e constrangimento menor, o que pode refletir na grande participao das mesmas

    nos programas sociais.

    Neste sentido, Barbosa e Freitas (2013) trazem a reflexo sobre a invisibilidade dos

    homens pobres perante as polticas e programas sociais de combate pobreza. As autoras

    enfatizam que normalmente os servios de assistncia social, tem a expectativa de que a mulher

    seja a representante da famlia. Portanto, as fragilidades masculinas, de acesso a renda e a

  • 32

    trabalho, podem passar despercebidas perante o servio. At mesmo os Centros de Referncia

    em Assistncia Social (CRAS), que representam a rede de proteo social primria, conforme

    o estudo de Muniz (2011), so normalmente destinados a acolher as mulheres como

    representantes da famlia, com decoraes voltadas para o pblico feminino, e atividades

    relacionadas casa e artesanato, atividades estas no atrativas para os homens e nem mesmo

    para mulheres que buscam insero no mercado de trabalho e no esto disponveis apenas para

    atividades de cuidado. Sendo assim, os homens sentem mais dificuldades para acessar os

    servios de assistncia social, que, por outro lado, reforam a responsabilidade da mulher em

    buscar o apoio nesses servios. J aqueles homens que vivem s podem viver em situao de

    pobreza ainda mais grave devido dificuldade no acesso assistncia social (BARBOSA;

    FREITAS, 2013).

    Vrias pesquisas apresentam crticas indicao da mulher como titular do benefcio do

    PBF, visto que a sua incluso nas polticas de assistncia social no possibilitou, efetivamente,

    a conquista de direitos nesse segmento (CARLOTO; MARIANO, 2010; LAVINAS et al, 2012;

    MARIANO; CARLOTO, 2013). Esses trabalhos revelam que a titularidade feminina tende a

    reforar os papis tradicionais de gnero dado que, sendo mulher a responsvel pelo cuidado

    da casa e dos filhos, a titularidade feminina acaba por atribuir a elas maior responsabilidade,

    bem como, refora a funo de coadjuvantes do enfrentamento da pobreza.

    Por outro lado, alguns estudos demonstraram, a partir da percepo de mulheres titulares

    do benefcio, que o recebimento do PBF trouxe melhoria nas relaes sociais, principalmente

    devido garantia de renda contnua, o que permite planejamento e compromisso com os gastos

    financeiros (SANTOS et al, 2015; LAVINAS et al, 2012). Ou seja, para algumas mulheres, ser

    a titular de uma poltica de assistncia social proporcionou a primeira oportunidade de gerenciar

    uma renda, repercutindo no maior reconhecimento perante a famlia e a sociedade por ser a

    responsvel pelo benefcio (DUQUE-ARRAZOLA, 2010). Para exemplificar essa questo, no

    estudo realizado pelo IBASE (2008) as mulheres titulares do PBF relataram como principais

    repercusses do PBF, o aumento de poder de deciso sobre o dinheiro da famlia e maior

    independncia financeira; ou seja, estes resultados podem indicar o aumento da autonomia

    feminina. Outra percepo positiva da titularidade feminina dada em programas sociais foi

    relatada pelas mulheres titulares no estudo de Suarez et al (2006). De acordo com os autores,

    as mulheres referiam o reconhecimento delas como cidads a partir da titularidade feminina,

    pois muitas destas mulheres no tinham documentos de identificao pessoal e para poder se

    cadastrar no PBF buscaram tirar a certido de nascimento e carteira de identidade.

    Sobre a administrao e titularidade do benefcio, estudos apontam resultados

  • 33

    semelhantes (IBASE, 2008; MARIANO, 2008; LAVINAS et al, 2012; PIRES, 2012;

    MARIANO; CARLOTO, 2013; LAGO et al, 2014). Na grande maioria dos casos, a

    administrao do benefcio realizada pela mulher titular do PBF. J sobre a titularidade do

    PBF, as mulheres se reconhecem como sendo as mais indicadas para receberem o benefcio,

    por terem maior responsabilidade sobre o uso do dinheiro e com o cuidado com a famlia do

    que os homens (REGO; PINZANI, 2013).

    Mariano e Carloto (2013) avaliam este posicionamento das mulheres em duas

    perspectivas, por um lado as mulheres reconhecem uma valorizao das atividades do cuidado

    famlia, mas por outro lado, as atividades domsticas e com a famlia ainda esto fortemente

    associadas responsabilidade feminina, no emergindo a reflexo e a discusso sobre a diviso

    de trabalhos domsticos entre homens e mulheres. Desse modo, para muitas mulheres, a

    titularidade do PBF no alterou seu cotidiano, pois acreditam que estas atividades so

    femininas. Com isso, pode-se dizer que o PBF, nestes casos, no transforma as relaes de

    gnero j existentes, mas por outro lado refora uma postura conservadora de papis de gnero

    (MARIANO, 2008).

    Na verdade, a titularidade do PBF no garantiu s mulheres a conquista da cidadania e

    direitos como pontuado por Mariano (2008). Para isso, a autora destaca a necessidade da

    incluso da perspectiva de gnero nas polticas pblicas, com aes especficas que amenizem

    as desigualdades de gnero, visto a histrica relao desigual entre homens e mulheres na

    sociedade, especialmente para aquelas que vivem em situao de pobreza.

    O relatrio do Observatrio da Igualdade de Gnero da Amrica Latina e Caribe

    (CEPAL, 2013) enfatiza que os Programas de Transferncia de Renda (PTR), ao indicar as

    mulheres como principais responsveis, naturalizam o tradicional papel social da mulher como

    cuidadora. Embora o relatrio reconhea que no o objetivo desses programas modificar os

    papis tradicionais de gnero, prope que os PTR no devam refor-los, mas sim contribuir

    para a corresponsabilizao do cuidado entre homens e mulheres. Desperta, assim, a reflexo

    sobre o papel do PBF, visto que o programa deve responder a outros objetivos que no esto

    relacionados ao enfretamento das desigualdades de gnero. Para isso, conforme Mariano e

    Carloto (2009), seria necessrio estimular uma maior participao dos homens no cuidado das

    crianas e das famlias, como exemplo no acompanhamento das condicionalidades do PBF. De

    modo geral, o titular do programa dedica tempo para o acompanhamento das condicionalidades

    de sade, de educao e na participao de atividades educativas oferecidas pela assistncia

    social. E, sendo a mulher a titular do PBF, sugere-se que a titularidade refora que elas devam

    priorizar seu tempo a estas atividades e famlia, desvinculando o homem desse cuidado. Sendo

  • 34

    assim, os homens podem dedicar mais tempo s atividades remuneradas, ao contrrio das

    mulheres, dificultando a construo de uma igualdade de gnero (MARIANO; CARLOTO,

    2009).

    Nessa mesma perspectiva, a pesquisa do IBASE (2008) aponta que as mulheres

    beneficirias do PBF possuam sobrecarga de trabalho domstico, principalmente aquelas com

    filhos pequenos, que associado a outros fatores como baixa escolaridade, refletiam na

    dificuldade da insero dessa mulher em atividades remuneradas.

    J sobre arranjos familiares dos beneficirios do PBF, pesquisa do MDS do ano 2013,

    indicou que 42,2% das famlias beneficiadas so monoparentais feminino, seguido de 37,6%

    de famlias formadas por casais com filhos, enquanto monoparentais masculino esteve presente

    em 1,6% dos arranjos familiares dos beneficiados (BRASIL, 2013).

    O estudo realizado pelo IBASE (2008), com amostragem de beneficirios do PBF do

    pas, indicou que os homens possuem escolaridade menor do que as mulheres. Entres os homens

    titulares do PBF 30,2% no sabiam ler ou escrever, enquanto 17,7% das mulheres titulares eram

    analfabetas. A pesquisa indicou que os homens pertencentes s famlias beneficirias do PBF

    estavam mais inseridos no mercado de trabalho do que as mulheres, 77,4% e 41,4%

    respectivamente. No entanto, nos domiclios em que o homem era o titular 33,9% apresentaram

    renda per capita inferior R$ 60,00 reais, enquanto 28,9% das titulares mulheres. Deste modo, o

    estudo concluiu que os titulares do Bolsa Famlia do sexo masculino so to ou mais

    vulnerveis que as mulheres titulares, ao menos no que diz respeito renda e a escolaridade

    (IBASE, 2008, p. 137).

    Na pesquisa realizada pelo IBASE (2008) foi perguntado aos titulares do PBF quem

    ganhava mais dinheiro na famlia, 52,1% das famlias era o homem, 40,9% a mulher e 7%

    ambos. Quanto aos dados sobre o responsvel pelo domicilio, 44,2% so homens, 36,4% so

    mulheres e 19,4% ambos. Observa-se que, por mais que as mulheres apresentaram percentual

    menor de renda e de responsvel pela famlia do que os homens, os resultados so reveladores

    e expressivos da situao da mulher enquanto provedora e do seu papel dentro da famlia.

    No foram encontrados at o momento da elaborao desta dissertao estudos que

    relacionem a utilizao do recurso do PBF com a titularidade (homem/mulher) do benefcio.

    Os estudos encontrados expressaram como as mulheres titulares utilizam o recurso do PBF e,

    em alguns estudos, no era explicitado quem tem o poder de deciso sobre o uso do recurso, se

    era o homem ou a mulher. No entanto, o estudo do IBASE (2008) apresenta que as mulheres

    titulares do PBF so as principais responsveis pela deciso do uso do benefcio do PBF, e

    costumam us-lo na alimentao da famlia. Este fato desperta a reflexo sobre papis de gnero

  • 35

    e as prticas alimentares, visto que a deciso da utilizao dos recursos do PBF na compra de

    alimentos pode trazer alguns reflexos nas prticas alimentares das famlias beneficiadas.

    2.4 Prticas Alimentares

    A alimentao uma atitude essencial para a vida, no entanto, os homens e as mulheres

    criam e recriam prticas alimentares e atribuem significados ao alimento, que vo alm da sua

    funo biolgica (MACIEL, 2001). Neste estudo, optou-se pela compreenso de prtica

    alimentar de Canesqui (2005, p.169):

    A anlise da prtica alimentar cotidiana no se restringe aos alimentos apropriados

    em si mesmos, mas aos seus usos e modos de consumo, que envolvem seleo e

    escolhas, quem consome, como so adquiridos e preparados, quando e por quem so

    consumidos, ocasies e adequaes de consumo, juntamente com regras, valores,

    normas, crenas e significados que acompanham o consumo alimentar e a prpria

    alimentao, sempre carregados culturalmente.

    Importantes estudos etnogrficos do campo da antropologia sobre a dimenso cultural

    das prticas alimentares no Brasil iniciaram a partir da dcada de 1950. Estes estudos buscaram

    olhar para os valores simblicos atribudos alimentao por meio da descrio das escolhas e

    hbitos alimentares, do modo de aquisio e de preparo do alimento, bem como os tabus e

    crenas, contribuindo assim para a compreenso da alimentao sob a perspectiva da cultura

    alimentar (CANESQUI, 1988).

    De acordo com Maciel (2001), a alimentao totalmente influenciada pela sociedade

    em que se vive. Para todos grupos populacionais, certos alimentos so considerados comida, e

    outros no. Essa denominao do que comida e do que no , determinada pela cultura

    e no pelo valor biolgico do alimento. Alm disso, a cultura indica o que deve ser ingerido,

    quando, com quem, por que e como, e o que deve ser proibido.

    As prticas alimentares so mediadas pelo consumo coletivo, que muitas vezes

    realizado em famlia. So constantemente influenciadas pela cultura, religio, economia,

    relaes sociais, memria afetiva e familiar e, por estas razes, as prticas alimentares no so

    homogneas (CANESQUI, 2005; DIEZ-GARCIA, 1997).

    Comer todas as refeies em casa com a famlia j no mais acessvel para a maioria

    das pessoas que vivem nas grandes cidades. Devido distncia entre a moradia e o local de

    trabalho, as pessoas se alimentam em restaurantes comerciais ou nos prprios locais de trabalho.

    Mesmo longe do ambiente familiar, as pessoas procuram locais que se aproximem da sua

    memria afetiva do comer em famlia. Geralmente buscam comer na companhia de colegas de

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    trabalho que tm maior aproximao afetiva, em locais que remetem ao ambiente familiar e

    com comida caseira. Nesse sentido, a transferncia do local da refeio do ambiente domstico

    para outros espaos associa valores alimentao (DIEZ-GARCIA, 1997).

    Conforme Gracia-Arnaiz (2005) a vida nos grandes centros, baseada em longas jornadas

    de trabalho e de deslocamento entre casa e trabalho e/ou estudo, trouxeram outras

    preocupaes, como o tempo para alimentao. Atrelado a isso, a indstria de alimentos e os

    restaurantes fast food trazem opes de comidas que no demandam tempo e trabalho no

    preparo. O novo modo de vida influencia a reestruturao das prticas alimentares, pois

    interfere no modo de preparo dos alimentos, nos horrios das refeies em casa, no menor

    compartilhamento da refeio coletiva em famlia, refletindo no consumo coletivo e individual.

    Desse modo, novos valores so atribudos aos alimentos industrializados, comida pronta,

    comensalidade e ao ato culinrio (GRAVIA-ARNAIZ, 2005; CANESQUI, 2005).

    Para Woortman (1985) as prticas alimentares tambm expressam as relaes familiares

    e sociais. Dentro da famlia a refeio no representa apenas o ato de comer, mas sim, um ritual

    social, que reproduz simbolicamente a hierarquia familiar, observada na distribuio da comida,

    quem come primeiro, como feita a diviso do prato principal (geralmente a carne), o lugar

    ocupado na mesa. Segundo o autor, as refeies tambm podem expressar as relaes de gnero

    vivenciadas pela famlia e a distribuio da comida, priorizando um dos gneros, pode

    demonstrar a submisso do outro.

    Em relao construo social entre gnero e prticas alimentares, apesar das

    conquistas para igualdade de gnero terem se acentuado nas ltimas dcadas, no que se refere

    ao trabalho domstico, a diviso continua desigual, sendo esta uma atividade

    predominantemente feminina (CANESQUI, 2005; MELO,2005; PNAD, 2011). Nesse sentido,

    a culinria geralmente atribuda mulher-me, ou a outras mulheres da famlia, na ausncia

    da me, mesmo quando elas, assim como os homens da famlia, tambm trabalham fora de casa.

    Frequentemente atribuda ao homem a responsabilidade do provimento financeiro para

    aquisio dos alimentos. Comumente eles realizam preparaes culinrias de final de semana

    ou festividades, em especial, as preparaes assadas, como exemplo, o churrasco. Sendo assim,

    a mulher ainda exerce maior autoridade e controle sobre a refeio da famlia, pois pertence a

    ela a deciso de composio de cardpio, da adaptao do oramento s necessidades de compra

    de alimentos e a deciso de como ser a distribuio da comida entre os membros da famlia

    (CANESQUI, 2005; DIEZ- GARCIA, 1997; WOORTMAN, 1985).

    Canesqui (2005) realizou estudo sobre as prticas alimentares de famlias trabalhadoras

    de So Paulo em dois momentos, sendo o primeiro em 1970 e o segundo em 2002. A autora

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    destaca que passados quase 30 anos da primeira pesquisa, as mulheres participavam mais

    fortemente do mercado de trabalho do que no primeiro momento, mas apesar disso,

    permaneceram as ideologias dos papis tradicionais de gnero, onde o homem-pai o provedor

    do alimento e a mulher-me a responsvel pelo saber culinrio, organizao e gerenciamento

    do consumo domstico, reforando, a alimentao da famlia imbricada nas teias das obrigaes

    e deveres da mulher na relao conjugal.

    As prticas alimentares so recriadas e reelaboradas constantemente por quem as

    vivencia, pelo fato de serem influenciadas pelos valores sociais e culturais, pelos contextos das

    polticas econmicos e sociais, e nelas tambm se refletem as desigualdades sociais

    (CANESQUI, 2005). Nesse sentido, se desperta a necessidade de olhar para as prticas

    alimentares de famlias pobres, beneficirias pelo maior Programa de Transferncia de renda

    do pas, o Programa Bolsa Famlia, bem como para as relaes de gnero que envolvem tanto

    a titularidade do PBF, como as prticas alimentares das famlias beneficirias.

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    3. JUSTIFIC