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69 FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO _____________________________ 69.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO CRIME O crime está assim definido no art. 297 do Código Penal: “falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro”. A pena é reclusão, de dois a seis anos, e multa. O bem jurídico protegido é a fé pública, a confiança que as pessoas depositam nos documentos públicos. Sujeito ativo é qualquer pessoa que realizar o tipo. Sujeito passivo é o Estado e a pessoa que sofrer prejuízo em virtude da falsidade. 69.2 TIPICIDADE O caput descreve o tipo penal. O § 1º contém causa de aumento de pena. O § 2º apresenta norma explicativa. Os §§ 3º e 4º, acrescentados pela Lei nº 9.983/00, definem condutas relativas a documentos de interesse da previdência social. 69.2.1 Conduta e elementos objetivos São duas as condutas incriminadas: falsificar e alterar documento público. Falsificar é imitar, criando ou formando um documento como se fosse o verdadeiro. A norma alcança a falsificação total e a parcial. Falsifica totalmente quem cria o documento integralmente. Falsificar em parte é adicionar, ao documento verdadeiro, partes novas falsas. São chamadas contrafações, total e parcial.

VOLUME 03 - 69

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69.2.1 Conduta e elementos objetivos integralmente. Falsificar em parte é adicionar, ao documento verdadeiro, partes novas O caput descreve o tipo penal. O § 1º contém causa de aumento de pena. O § 2º Falsificar é imitar, criando ou formando um documento como se fosse o verdadeiro. documentos públicos. parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro”. A pena é reclusão, apresenta norma explicativa. Os §§ 3º e 4º, acrescentados pela Lei nº 9.983/00, definem

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FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO

PÚBLICO

_____________________________

69.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO

CRIME

O crime está assim definido no art. 297 do Código Penal: “falsificar, no todo ou em

parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro”. A pena é reclusão,

de dois a seis anos, e multa.

O bem jurídico protegido é a fé pública, a confiança que as pessoas depositam nos

documentos públicos.

Sujeito ativo é qualquer pessoa que realizar o tipo. Sujeito passivo é o Estado e a

pessoa que sofrer prejuízo em virtude da falsidade.

69.2 TIPICIDADE

O caput descreve o tipo penal. O § 1º contém causa de aumento de pena. O § 2º

apresenta norma explicativa. Os §§ 3º e 4º, acrescentados pela Lei nº 9.983/00, definem

condutas relativas a documentos de interesse da previdência social.

69.2.1 Conduta e elementos objetivos

São duas as condutas incriminadas: falsificar e alterar documento público.

Falsificar é imitar, criando ou formando um documento como se fosse o verdadeiro.

A norma alcança a falsificação total e a parcial. Falsifica totalmente quem cria o documento

integralmente. Falsificar em parte é adicionar, ao documento verdadeiro, partes novas

falsas. São chamadas contrafações, total e parcial.

2 – Direito Penal III – Ney Moura Teles

Alterar documento público verdadeiro é a segunda conduta típica. Nessa

modalidade, o agente modifica o documento público verdadeiro, dando-lhe novo conteúdo,

inverídico. A diferença entre a contrafação parcial e a alteração de documento verdadeiro é

sutil. Na primeira, o agente cria uma nova idéia, um novo pensamento que passa a integrar

o documento, ao passo que na segunda ele altera uma idéia ou pensamento preexistente.

Na falsificação parcial – contrafação – o agente acrescenta um dado novo ao

documento verdadeiro. Na alteração, o agente modifica um dado já contido no documento,

alterando seu sentido.

Há contrafação parcial quando o agente adiciona, na escritura pública de compra e

venda verdadeira, a certificação falsa de seu registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Há alteração quando, na escritura pública de compra e venda verdadeira, o agente

modifica o conteúdo da certificação verdadeira do registro imobiliário nele contida,

alterando, por exemplo, o número da matrícula ou da averbação ali aposta. Se, porém, na

mesma escritura registrada, o agente suprime a certidão do registro, cometerá o crime do

art. 305, adiante analisado.

A falsificação e a alteração devem ser aptas, idôneas, capazes de enganar as pessoas

que tiverem contato físico com o documento. Tratando-se de falsificação ou alteração

grosseira, que possa ser percebida com facilidade por qualquer um, o fato será atípico,

porquanto não será apto a causar qualquer lesão de qualquer bem jurídico.

Demais disso, deve o falso ter potencialidade para causar algum dano. Ainda que

eficiente a falsificação, pode ocorrer que seja inócua, não podendo derivar, da idéia por ela

criada, qualquer prejuízo econômico ou moral para outrem.

69.2.2 Elemento normativo

O objeto material do crime é o documento público.

Documento – de documentum, do verbo doceo, ensinar, mostrar – é o escrito ou o

gráfico, impresso por meio manual ou mecânico, sobre papel ou outra superfície de coisa

material assemelhada, que representa e presta-se para reproduzir manifestação do

pensamento e que tem como finalidade servir como meio de prova de fato juridicamente

relevante. É o documento, assim, uma coisa que representa um fato. Também é documento

a impressão direta do fato sobre a superfície da coisa que o contém, como a fotografia,

fonografia e cinematografia etc., desde que emanada de funcionário público em razão de

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suas funções, na forma legal, com relevância jurídica, estando identificada como tal.

Documento público é aquele criado por funcionário público no exercício da função

pública, com observância das formalidades legais. É o formado por funcionário público

competente em razão da matéria e do lugar, que esteja no pleno exercício de sua função, na

forma estabelecida em lei.

O documento deve conter a identificação de seu autor, através da sua assinatura ou

chancela, a não ser quando a lei permita sua identificação por outro meio que não a

assinatura ou rubrica.

A norma alcança também o documento público estrangeiro, desde que cumpridas

as formalidades legais brasileiras exigidas para sua validade.

O § 1º do art. 297 considera público o documento produzido por entidades

paraestatais, que são as pessoas jurídicas de direito privado criadas por lei, com

patrimônio público misto ou exclusivamente público, para realizar atividades, obras ou

serviços de interesse público, sob direção ou controle do Estado. São as empresas públicas

e as sociedades de economia mista e também as fundações instituídas pelo poder público.

Também são considerados, para os efeitos penais, documentos públicos os títulos

ao portador ou transmissíveis por endosso. O cheque, a letra de câmbio, a nota

promissória, o warrant, o conhecimento de depósito, a duplicata.

As ações de sociedade anônima e de sociedade em comandita por ações,

igualmente, são consideradas documentos públicos por equiparação feita pelo mesmo § 1º.

Os livros mercantis, nos quais o comerciante elabora a escrituração contábil dos

fatos da vida do estabelecimento, do mesmo modo, são considerados documentos públicos.

E, por último, o testamento particular.

69.2.3 Elemento subjetivo

A falsificação de documento público é crime doloso. A consciência do agente deve

alcançar a conduta que realiza – criar um documento com a aparência de público,

adicionar parte a documento público verdadeiro ou modificar o conteúdo de documento

verdadeiro –, a natureza pública do documento que falsifica e sua potencialidade lesiva.

Age com vontade livre de realizar a conduta, realizando o tipo, sem qualquer outra

finalidade especial.

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69.2.4 Consumação e tentativa

A consumação acontece no exato momento em que o documento falso é criado,

elaborado, formado pelo agente ou quando é concluída modificação fraudulenta, o

acréscimo de dados ao documento verdadeiro ou, ainda, quando se completa a alteração do

conteúdo de documento autêntico.

Não há necessidade de que o documento falsificado ou alterado seja utilizado por

alguém, nem que venha a causar qualquer dano.

A tentativa é possível quando o agente, por circunstâncias alheias a sua vontade,

não consegue concluir o processo de falsificação ou alteração.

69.2.5 Aumento de pena

Quando a falsificação ou alteração é realizada por funcionário público,

prevalecendo-se do exercício do cargo que ocupa, a pena será aumentada de um sexto. O

aumento não incidirá apenas quando o agente é funcionário público, mas somente quando

ele atua aproveitando-se da situação decorrente do exercício de cargo público.

69.2.6 Falsificação de documento previdenciário

Os §§ 3º e 4º foram acrescentados pela Lei nº 9.983/00. Andou mal o legislador.

As condutas neles descritas não se harmonizam com o preceito do caput, porque

constituem, na verdade, espécies do crime de falsidade ideológica, definido no art. 299,

onde melhor teria sido que tivessem sido incluídos.

No § 3º está tipificada a conduta de quem “insere ou faz inserir” em determinados

documentos, descritos nos incisos I a III, declarações falsas ou diversas das que deveriam

ali constar. Inserir é introduzir, é colocar, é apor, no documento, uma informação. Fazer

inserir é obter a inserção através da conduta de outra pessoa, que é induzida, instigada ou

determinada a inserir, introduzir ou apor a informação.

Na primeira conduta, o próprio agente adiciona ao documento o dado ou a

informação. Na segunda, o agente consegue, por qualquer maneira, que outra pessoa o

faça. O resultado é que o documento passa a conter a informação ou o dado novo, que dele

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não deveria constar.

A primeira hipótese, contemplada no inciso I, diz respeito à inserção de pessoa que

não seja segurado obrigatório na folha de pagamento ou em documento de informações

que seja destinado a fazer prova perante a Previdência Social. O agente insere ou faz

inserir, num desses documentos, o nome de pessoa que não é segurado obrigatório.

O inciso II cuida da Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado, e

também de qualquer documento que seja elaborado para produzir efeito perante a

Previdência Social, punindo a inserção de declaração falsa ou diversa da que deveria deles

constar.

No inciso III a norma refere-se à inclusão, em documento contábil ou relacionado

com as obrigações da empresa perante a Previdência Social, de declaração falsa ou diversa

da que deveria constar.

O § 4º incrimina a omissão, em qualquer dos documentos mencionados no § 3º, I,

II e III, do nome de segurado e seus dados pessoais, de sua remuneração e da vigência do

contrato de trabalho ou de prestação de serviços com ele celebrado.

Como se observa, as normas tratam de documentos elaborados pelo empregador,

portanto são todos documentos de natureza particular, daí também a razão da inadequada

colocação desses tipos no âmbito do crime do art. 297.

São, é verdade, documentos destinados a fazer prova junto a órgão público, o da

Previdência Social, mas essa finalidade não lhes confere a natureza pública. Constituem,

por sua vez, adulteração da verdade sobre fato juridicamente relevante. Há, portanto,

falsidade. No § 2º, através da inserção de informações falsas ou inverídicas, e no § 3º por

meio da omissão de informação verdadeira e que deveria constar do documento.

São todos tipos dolosos. O agente deve inserir ou fazer inserir a informação ou

omitir-se do dever de inseri-la, com consciência e vontade.

Consuma-se o crime quando, no documento, é inserida a informação que dele não

deveria constar ou quando é elaborado sem a informação que nele deveria estar. A

tentativa é possível.

69.2.7 Falsificação de documento público e estelionato

Doutrina e jurisprudência divergem sobre a solução que se deve dar quando a

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falsificação é realizada como meio para o cometimento de outro crime, como, por exemplo,

o estelionato. O agente falsifica o documento público e o utiliza na prática de um

estelionato, induzindo ou mantendo alguém em erro, obtendo vantagem ilícita em prejuízo

alheio.

O estelionato, crime fim, absorve o falso e seu uso? Ou, ao contrário, o uso e o

estelionato são post factum impuníveis da falsificação, que os absorve? O uso é post

factum impunível apenas do falso e por isso o agente cometeria dois crimes: o de

falsificação e o estelionato? Em concurso material ou formal?

Dúvidas não pode haver de que entre a falsificação e seu uso o que existe é absorção

pelo primeiro. O uso é post factum impunível, quando feito pelo próprio agente da

falsificação. Resta saber, então, como tratar o estelionato praticado por meio do uso de

documento falso.

As quatro soluções apresentadas pela Doutrina e Jurisprudência assentam-se,

todas, em argumentos sólidos e lógicos, por isso respeitáveis.

Uma entende que o falso, por sua maior danosidade e por constituir lesão a bem

jurídico mais importante, que é a fé pública, absorve o estelionato que é apenas o seu

exaurimento.

Outra entende que se trata de um concurso material entre os dois delitos, seja

porque são ações distintas – a falsificação, num momento, e o estelionato, depois –, seja

porque o agente viola objetividades jurídicas distintas, a fé pública e o patrimônio.

Uma terceira defende a existência de um concurso formal entre o uso do

documento falso – que já absorvera a falsificação – e o estelionato. Mediante uma só ação,

o agente viola dois bens jurídicos distintos, cometendo, pois, dois crimes.

A última posição, retratada na Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça, é a de

que, “quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este

absorvida”.

Parece-me a mais correta e adequada, além de ser a mais justa. Se o agente

falsificou o documento para usá-lo na prática de um único estelionato, ou seja, com a

finalidade de enganar a vítima, obtendo a vantagem em prejuízo dela, o falso foi apenas o

meio utilizado para alcançar o fim de lesar o patrimônio alheio.

Se a falsidade não permite a causação de outra lesão, à terceira pessoa, tendo se

esgotado em sua tarefa de servir como meio fraudulento para o estelionato, não pode ser

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punida por si mesma. Remanescendo, porém, potencialidade para outras lesões, como a de

servir a outras ações típicas, a falsificação será punida autonomamente.

Assim, se o sujeito falsifica a cédula de identidade de uma pessoa, proprietária de

um único bem imóvel, e com ela consegue vendê-lo como próprio (art. 171, § 2º, I),

responderá pelo estelionato que terá absorvido o falso.

Se, porém, falsifica a cédula de identidade de quem é proprietário de vários

imóveis, vendendo um deles como seu, subsistindo, portanto, a possibilidade de novos

estelionatos, responderá pelo estelionato consumado, e pela falsificação, em concurso

material.

69.3 AÇÃO PENAL

A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.

A competência é da Justiça Federal quando houver lesão de interesse da União, ou

seja, quando se tratar de falsificação de documento público formado por funcionário

público federal ou atingir, de qualquer modo, bens ou interesses da União.