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Volume 25 N. 2 2020

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Volume 25

N. 2

2020

Presidente Prudente/SP

ISSN 1516-8158

CENTRO UNIVERSITÁRIO ANTONIO EUFRÁSIO DE TOLEDO DE PRESIDENTE PRUDENTE

Reitora e Pró-Reitora Acadêmica: Zely Fernanda de Toledo Pennacchi Machado Pró-Reitora Financeira: Maria do Carmo de Toledo Pennacchi

Pró-Reitora Administrativa: Maria Inês de Toledo Pennacchi Amaral

REVISTA INTERTEMAS Linha editorial: Relações Sociais e Ambientais para uma Sociedade Inclusiva

Temática: Direitos Humanos, Meio Ambiente e Desenvolvimento Periodicidade semestral

EDITORES Ana Carolina Greco Paes (TOLEDO PRUDENTE)

Carla Roberta Ferreira Destro (TOLEDO PRUDENTE) Sérgio Tibiriçá Amaral (TOLEDO PRUDENTE)

COMISSÃO EDITORIAL André Simões Chacon Bruno (USP)

Alessandra Cristina Furlan (UEL) Alfonso Jaime Martínez Lazcano (SNI-CONACYT)

Dennys Garcia Xavier (UFU) Daniela Braga Paiano (UEL)

Felipe Rodolfo de Carvalho (UFMT) Haroldo de Araujo Lourenço da Silva (UFRJ)

Paulo Eduardo D´Arce Pinheiro (TOLEDO PRUDENTE) Rita de Cássia Resquetti Tarifa Espolador (UENP)

Wladimir Brega Filho (FUNDINOPI)

EQUIPE TÉCNICA Daniela Mutti (Secretária –TOLEDO PRUDENTE)

Versão eletrônica ISSN 2176-848X Disponível em: http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/INTERTEMAS Indexadores e Diretórios Latindex folio 14938 Sumários de Revistas Brasileiras código 006.064.819 Permuta/Exchange/Échange Biblioteca “Visconde de São Leopoldo” – TOLEDO PRUDENTE Praça Raul Furquim nº 9 – Vila Furquim CEP 19030-430 – Presidente Prudente / SP Contato Telefone: +55(18)3901-4004 E-mail: [email protected]

Intertemas: Revista da Toledo, v. 25, .n. 2– 2020 Presidente Prudente: Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo”. 2020. 21cm Revista do Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente (SP) 1.Direito – Periódicos CDD – 340.5 ISSN 1516-8158

Sumário/Contents

NOTA AO LEITOR ..................................................................................................................... 4

A LEI DE MIGRAÇÃO E SEU IMPACTO NA QUESTÃO DOS REFUGIADOS NA

REGIÃO DO VALE DO ARAGUAIA/MT ................................................................................ 6

SILVA, Camila Teodoro de Lima e ...................................................................................... 6

ANDREOTTI, Rosimeire Cristina ......................................................................................... 6

ESTATUTO DO REFUGIADO E LEI 13.445/17: UMA ANÁLISE SOBRE A

EFETIVIDADE DOS DIREITOS DOS REFUGIADOS NO BRASIL ................................ 27

YAROS, Maria Eduarda de Camargo ............................................................................... 27

BREGA FILHO, Vladimir ..................................................................................................... 27

SOBERANIA SUPRACONSTITUCIONAL DOS DIREITOS HUMANOS NA ORDEM:

UMA ANALISE CRITICA DO PARADIGMA DE CAPACIDADE DAS PESSOAS COM

DEFICIÊNCIA ........................................................................................................................... 45

PRAZERES, Paulo Joviano Alvares dos .......................................................................... 45

PRAZERES, Karla Luzia Alvares dos ............................................................................... 45

OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONALISTAS DO PENSAMENTO POLÍTICO DE

ALEXIS DE TOCQUEVILLE .................................................................................................. 57

LEITE, Leonardo Delatorre ................................................................................................. 57

JUNQUEIRA, Michelle Asato.............................................................................................. 57

A HORIZONTALIDADE DO PODER LEGISLATIVO E OS FREIOS E

CONTRAPESOS: UMA ANÁLISE DO CENÁRIO POLÍTICO ATUAL SOBRE O VIÉS

DA DEMOCRACIA E DOS ATOS DO CHEFE DO ESTADO .......................................... 79

MELO, Tatiane Donizete de Araujo ................................................................................... 79

PEGORARO, Luiz Nunes ................................................................................................... 79

A IMPORTÂNCIA DA APLICAÇÃO DAS TÉCNICAS DE CONFRONTO E

SUPERAÇÃO DO PRECEDENTE NO NOVO CPC: ENTRE A ESTABILIDADE DA

INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E A FOSSILIZAÇÃO DA VIDA INTERPRETADA ...... 98

LIMA, Lucas Correia de ....................................................................................................... 98

DA COOPERAÇÃO NO PROCESSO CIVIL: CONSIDERAÇÕES PARA QUE NÃO

SE TORNE (APENAS) UM IMPERATIVO CATEGÓRICO DA MORALIDADE .......... 119

JUNQUEIRA, Laura ........................................................................................................... 119

BRAMBILLA, Pedro Augusto de Souza .......................................................................... 119

LIGERO, Gilberto Notário.................................................................................................. 119

O AMOR NA MODERNIDADE E A EFICÁCIA DO CONTRATO DE NAMORO

ENQUANTO NEGÓCIO JURÍDICO .................................................................................... 136

SANTOS, Franciele Barbosa ............................................................................................ 136

PAIANO, Daniela Braga .................................................................................................... 136

ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E O SISTEMA PRISIONAL: O CÁRCERE COMO

PRINCIPAL INSTRUMENTO FORMADOR DE CRIMINOSOS ..................................... 156

CHIQUETTI, Lucas Mantovani ......................................................................................... 156

4

NOTA AO LEITOR

A 26º edição da Revista Intertemas nasce em um período muito difícil para o

Brasil e para o mundo, em um tempo de incertezas, turbulências e muitas informações.

E é neste contexto que pesquisadores mais uma vez se lançaram ao desafio

de pesquisar e produzir conhecimento, em um momento em que o conhecimento tem

sido cada vez mais necessário, principalmente, por conta do número de informações,

por vezes tão desconectadas da realidade que temos visto atualmente.

Sendo assim, convido cada leitor a se debruçar nos temas propostos pelos

pesquisadores. É com enorme satisfação que esta edição é publicada, tendo em vista

o momento que estamos vivendo.

Desejo uma ótima leitura.

Cordialmente,

Ana Carolina Greco Paes

Editora da revista Intertemas

6

A LEI DE MIGRAÇÃO E SEU IMPACTO NA QUESTÃO DOS REFUGIADOS NA

REGIÃO DO VALE DO ARAGUAIA/MT

SILVA, Camila Teodoro de Lima e1

ANDREOTTI, Rosimeire Cristina2

RESUMO: Esta pesquisa intenta compreender qual o impacto trazido pela Lei de Migração no tocante à questão dos Refugiados na região do Vale do Araguaia/MT. Para isso, o estudo pretende traçar, em breves palavras, um delineamento histórico acerca da questão migratória no mundo, bem como a imigração no Brasil, para em seguida, por meio de um estudo hermenêutico, estabelecer um comparativo entre a realidade anterior, no tocante à política migratória brasiliana, guiada pelo Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815/1980, frente ao atual cenário estruturado pela Lei de Migração, Lei nº 13.445/2017. Na sequência, resta entender a questão do refúgio, e como o referido diploma normativo dedicado à questão migratória, refletiu numa questão que já recebia, em território nacional, atenção graças ao Estatuto do Refugiado, Lei nº 9.474/1997. Desenvolver o exame ora proposto, exige uma investigação aplicada, exploratória, guiada pela abordagem quantitativa. Ademais, com referência ao procedimento técnico, não obstante às literaturas responsáveis pela fundamentação teórica do estudo, tais como Castro (2012), Ramos (2016) e Mazzuoli (2020), como forma de demonstrar a aplicabilidade da pesquisa, serão avaliadas as consequências práticas que envolvem o assunto, por meio da coleta de dados quantitativos acerca dos refugiados na região do Vale do Araguaia/MT.

PALAVRAS-CHAVE: Migração, Estrangeiro, Refugiado, Acolhida Humanitária.

ABSTRACT: This research intends to understand the impact brought by the Migration Law regarding the issue of Refugees in the region of Vale do Araguaia / MT. For this, the study intends to outline, in brief words, a historical outline about the migratory issue in the world, as well as immigration in Brazil, and then, through a hermeneutical study, to establish a comparison between the previous reality, with regard to Brazilian migration policy, guided by the Foreigner Statute, Law 6,815 / 1980, in view of the current scenario structured by the Migration Law, Law 13,445 / 2017. As a result, it remains to understand the issue of refuge, and how the aforementioned normative diploma dedicated to the migratory issue, reflected on an issue that was already receiving attention, thanks to the Refugee Statute, Law No. 9,474 / 1997. Developing the exam now proposed requires an applied, exploratory investigation, guided by the quantitative approach. Furthermore, with reference to the technical procedure, despite the literature responsible for the theoretical foundation of the study, such as Castro (2012), Ramos (2016) and Mazzuoli (2020), as a way to demonstrate the applicability of the

1 Graduanda do 6º semestre do Curso de Direito do Centro Universitário Unicathedral e Pesquisadora do Programa de Iniciação Cientifica do Centro Universitário UniCathedral. E-mail: [email protected] 2 Professora Especialista em Docência no Ensino Superior (lato sensu) pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas do Araguaia, e pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil (lato sensu) pelo Centro Universitário UniCathedral. Possui Bacharelado em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas do Araguaia (2012) e Licenciatura Plena em Letras - Português e Literaturas - pela Universidade Federal de Mato Grosso (2006). Integra o Corpo Docente no Curso de Direito do Centro Universitário UniCathedral. Orientadora do Programa de Iniciação Cientifica do Centro Universitário UniCathedral. Advogada (OAB/MT sob n. 24038). E-mail: [email protected].

7

research, the practical consequences will be evaluated involving the subject, through the collection of quantitative data about refugees in the region of Vale do Araguaia / MT. KEYWORDS: Migration, Foreign, Refugee, Humanitarian Reception. 1 INTRODUÇÃO

Migrar, desde os tempos mais remotos, sempre fez parte do comportamento

humano, que invariavelmente, estava motivado pela melhoria da qualidade de vida ou

sobrevivência. Contudo, com o passar do tempo e avanço tecnológico, os

deslocamentos humanos, que ocorriam em caravanas, embarcações, evoluíram para

trens, automóveis e aeronaves, tornando possível o acesso a qualquer parte do

planeta.

Não obstante a isso, se o deslocamento geográfico não representa mais um

empecilho, dada as facilidades de transporte, contemporaneamente, as dificuldades,

que deixam de ser físicas, mantêm-se no campo político. Isso porque, quando a pauta

é o acolhimento de imigrantes, em muitos países ainda reina a antepassada premissa

de que cada Estado deve ser responsável, unilateralmente, pelo seu povo e que o

ingresso de imigrantes causariam caos político, econômico e social.

Contudo, contrariando a postura de muitos, está o Brasil que, ao promulgar a

Lei nº 13.445/2017, conhecida como Lei de Migração, resgata sua identidade de país

de raça mista, que se formou graças aos diversos povos de etnias distintas que

imigraram para o território nacional. Trata-se de uma mudança de paradigma, visto

que a nova Lei de Migração, ao revogar absolutamente a Lei nº 6.815/1980, conhecida

como Estatuto do Estrangeiro, trouxe uma nova perspectiva para o acolhimento do

imigrante, considerando-o não como uma ameaça à segurança nacional, tal como

ocorria no diploma anterior, mas como alguém que irá contribuir para o

desenvolvimento nacional.

Apesar da nova Lei de Migração ter sido criada sob os princípios que regem

a Constituição Federal de 1988, não foi o primeiro diploma normativo a dispensar

tratamento humanitário àquele que, além de possuir nacionalidade distinta da

brasileira, era vítima da migração forçada. Isso porque, em 1997, o Brasil promulgou

a Lei nº 9.474, conhecida como Estatuto do Refugiado, que se destinava à definição

dos procedimentos para a efetivação da Convenção de Genebra de 1951. Trata-se de

uma lei que assumiu inestimável importância no catálogo normativo brasileiro, visto

8

que denuncia a propensão do Brasil em entrar em sintonia com documentos

internacionais voltados ao acolhimento humanitário.

Além disso, cabe destacar que o arcabouço legal brasiliano, oportunamente,

vai ao encontro da urgência da situação migratória que assola o mundo na atualidade.

Isso porque, de acordo com dados do relatório anual apresentado pela UNHCR

ACNUR Agência da ONU para Refugiados (2020, p. 1), até o final de 2019, mais de

79,5 milhões de pessoas eram vítimas da migração forçada no planeta.

Nesse diapasão, considerando a predisposição nacional ao acolhimento

humanitário, bem como a urgência da situação migratória, o Brasil, inevitavelmente,

acompanha a tendência mundial de receber cada vez mais migrantes, e dentre esses,

os que buscam pelo refúgio, em meio ao gigantesco deslocamento de pessoas que

ocorre no planeta.

Trata-se de um público que, ao chegar em território nacional, não fica, apenas,

em áreas de fronteira, pois acabam buscando a interiorização, como forma de

alcançar a integração sócio econômica. Nesse sentido, compreensível se torna

questionar qual foi o impacto da Lei de Migração em relação à questão dos refugiados

no Brasil, em especial na região do Vale do Araguaia, no Estado de Mato Grosso. A

coerência de tal problematização repousa no fato de que, como o Brasil tem se

tornado o destino de estrangeiros, inclusive rota para refugiados, uma vez em terras

brasileiras, não raras vezes, chegam à regiões centrais do país.

Logo, esse estudo, fudamentalmente, estará voltado a desvelar em que

medida a Lei de Migração alterou o cenário do país, fazendo do Brasil rota para

refugiados, vislumbrando como essa realidade se revela no interior do território, em

especial na região nordeste mato grossense. Para tanto, será necessário um breve

delineamento histórico das questões migratórias em território nacional, bem como na

região, que ora se investiga com maior afinco, estimando quantitativamente como isso

se revela com o passar dos anos, em especial após a promulgação do diploma

normativo dedicado às questões migratórias no Brasil. Em suma, o que se pretende

com a referida pesquisa é desvelar os impactos quantitativos da realidade migratória,

já que os aspectos qualitativos somente poderão ser mensurados no futuro.

O processo de produção da análise em comento, exige uma investigação

aplicada, exploratória, guiada pela abordagem quantitativa, já que envolve a geração

de conhecimentos voltados à aplicação prática. Com referência ao procedimento

técnico, não obstante às literaturas que darão amparo teórico ao estudo, a questão

9

dos refugiados na região do Vale do Araguaia/MT será exposta em números, como

forma de demonstrar o impacto da Lei de Migração. Ademais, o método de abordagem

da pesquisa será o dedutivo, já que a investigação partirá de dados e legislações

internacionais, analisando posteriormente o âmbito nacional, para em seguida,

vislumbrar a realidade regional.

Calha destacar, por oportuno, que dentre as fontes bibliográficas utilizadas,

como autores fundamentais, merece especial ênfase, Castro (2012), Ramos (2016) e

Mazzuoli (2020), dada inquestionável autoridade que possuem sobre o assunto ora

tratado.

Além disso, este artigo apresentará, inicialmente e em breves palavras, a

conceituação da migração, enquanto fenômeno sempre presente na humanidade,

tratando do movimento migratório no mundo, no decorrer da história e a imigração no

Brasil, do descobrimento ao Estatuto do Estrangeiro. Na sequência, será abordada a

questão do refúgio, seu histórico, documentos internacionais e a legislação nacional

a tratar do tema. Em seguida, é a Lei de Migração que toma o palco das discussões,

de modo a demonstrar a nova postura assumida pelo Brasil, frente à esse

deslocamento geográfico de pessoas pelo mundo, principalmente graças ao

arcabouço principiológico a embasar a referida legislação, merecendo especial

destaque a acolhida humanitária. E, por fim, após os devidos embasamentos, será

abordada a questão dos refugiados na região do Vale do Araguaia/MT.

Resta salientar, enfim, que a investigação ora desvelada tem o firme propósito

de servir ao enriquecimento do repositório científico acerca da matéria.

2 MIGRAÇÃO

Apesar da obscuridade que circunda a origem da humanidade, é certo que os

primeiros humanos eram nômades, pois tal como nos afirma Roberts (2001, p. 34), “ao se

tornar dependente de carne, o Homo erectus se transformou num parasita das manadas [...]

e precisava segui-las ou explorar novos territórios onde procurá-la”. E, mesmo após eventos

que alteraram profundamente o modo de vida do homem pré-histórico, como a agricultura ou

a domesticação e criação de animais, o desenvolvimento de um modo de vida sedentário não

impediu que, milhares de anos mais tarde, o ser humano ainda conservasse consigo o

ancestral instinto de migrar.

10

Derivado do latim migro, migração “significa ‘ir de um lugar para o outro’”

(DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO, 2020, p.1). Esse deslocamento geográfico, de instinto

ancestral passou a determinação divina, quando Deus disse a Abraão "Deixa tua terra, tua

família e a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrarei” (BÍBLIA, 2013, p. 58), fazendo

do grande patriarca bíblico o primeiro migrante mundialmente conhecido, que saiu de sua

terra em busca da “terra prometida”.

Mas, mesmo após os feitos de Abraão, muitos outros também se aventuraram pelo

mundo, através dos tempos. E, embora todos partilhassem do desejo comum de buscar uma

nova terra para viver, diferentes foram, ao longo da história humana, os motivos que levavam

às migrações em massa. Mesmo assim, é certo que o deslocamento das pessoas, que se

prolonga até os dias de hoje, sempre esteve impulsionado por insatisfação com o governo,

oportunidades de trabalho, catástrofes climáticas ou conflitos armados.

2.1 O Movimento Migratório no Mundo

Não obstante as migrações estarem presentes no mundo, desde sempre, sua

intensificação ocorreu entre os séculos XIV e XV, por obra das grandes navegações, que

levaram à descoberta de novas terras e seu consequente povoamento, que passou a ocorrer,

initerruptamente, séculos depois. Tudo isso com o propósito de promover a necessária e

urgente colonização do “novo mundo”.

A esse respeito, Roberts (2001, p. 512) destaca que por volta do ano de 1760, mais

de dois milhões de pessoas, entre ingleses, irlandeses e escoceses, holandeses e alemães,

povoavam as colônias britânicas da América do Norte. Além desses, que se espalharam

igualmente pela África e Ásia, em terras americanas havia também os negros que, ainda de

acordo o referido autor, representavam aproximadamente um sexto da população. Foram eles

que inauguraram em tempos modernos, a migração forçada, já que trazidos do continente

Africano, eram feitos escravos nas Américas.

Posteriormente, por volta da segunda metade do século XVIII e início do século XIX,

o advento da Revolução Industrial também potencializou o deslocamento humano, já que com

crescente avanço tecnológico a massa trabalhadora passou a padecer de ondas de

desemprego. Dessa forma, segundo Canêdo (1998, p. 82) por volta dos anos de 1850 a 1880,

além do deslocamento de pessoas dentro dos países, em busca de trabalho, cerca de 5

milhões de pessoas deixaram a Europa com intuito de se estabelecerem em outros

continentes.

Mas, foi a Segunda Guerra Mundial o evento que, incontestadamente, é reconhecido

como responsável por muitas migrações. Tanto é dessa maneira que, de acordo com Golgher

(2004, p. 23), antes mesmo do início do conflito, milhões de judeus e perseguidos políticos já

11

deixavam a Alemanha de Adolf Hitler, indo em busca de lugares mais seguros para viver. E,

mesmo após 1945, com o fim do conflito, mais de 20 milhões de pessoas deixaram seus

países, devido à problemas relacionados à guerra.

2.2 A Imigração no Brasil

Notadamente, ao chegarem à Terra de Santa Cruz, os portugueses não a

encontraram totalmente desabitada. Tanto é dessa maneira que de acordo com relatos de

Zamberlam (2004, p. 44), cerca de 5 milhões de nativos, divididos em 970 nações indígenas

diferentes habitavam a terra recém descoberta. Contudo, essa população logo afastou-se do

litoral, fugindo do homem branco e de todas as mazelas trazidas por ele, tais como doenças

e escravidão.

Dessa maneira, os colonizadores portugueses, substituíram a mão de obra escrava

que não encontraram nos índios, pelos africanos. Isso fez com que o Brasil entrasse na rota

das migrações forçadas, pois ainda segundo Jurandir Zamberlam (2004, p. 44), estima-se

que, entre os séculos XVI e XIX, aproximadamente 3,6 milhões de negros aportaram em terras

brasileiras e aqui foram feitos escravos, com o propósito de suprir a necessidade de mão de

obra advinda do sistema colonial.

Nesses tempos, ainda eram os portugueses que protagonizavam a primeira onda

migratória que assolou o país. Contudo, com o advento da Revolução Industrial, ocorrido no

continente europeu, assim como a abolição da escravatura que ocorreu no Brasil em 1888,

segundo Marinucci e Milesi (2002, p. 2), muitos italianos, espanhóis, alemães e poloneses

migraram para cá, com especial intuito de substituir a mão de obra do recém extinto sistema

escravagista.

Nesses tempos, tal como afirma Lucia Lippi Oliveira (2002, p.13), a intenção da

Sociedade Central de Imigração, sediada no Rio de Janeiro, entre os anos de 1883 e 1891,

era anunciar o Brasil em pequenas cidades europeias como um lugar promissor, com intuito

de atrair mão de obra para os grandes latifúndios cafeeiros ou para a formação de pequenas

propriedades que explorassem outras culturas. Por isso, ainda segundo a referida autora,

como o governo pretendia “povoar e colonizar os vazios demográficos, o que permitiria a

posse do território e a produção de riqueza [...] foi promulgada a lei que permitia aos

estrangeiros a propriedade de terras no Brasil” (OLIVEIRA, L., 2002, p. 16).

Entretanto, algumas décadas mais tarde, essa amistosidade brasileira em prol dos

imigrantes haveria de mudar. Isso porque, a mobilização que intentava trazer estrangeiros

para o país foi eficaz, atraindo muitos europeus que não só supririam a mão de obra nas áreas

rurais, como também na indústria nacional, que mesmo incipiente já carecia de operários.

12

Contudo, a falta de estrutura para o trabalho transformou o Brasil em palco para

movimentos anarquistas e, mais tarde, comunistas. Isso fez com que, segundo Lucia Lippi

Oliveira (2002, p. 19), o Brasil promulgasse a Lei Adolfo Gordo, cujo propósito era permitir a

expulsão de estrangeiros que estivessem envolvidos em movimentos considerados

subversivos e criminosos. Além disso, durante todo período entre a Primeira e a Segunda

Guerra Mundial, cada vez mais os imigrantes passaram a ser vistos como uma potencial

ameaça à nação brasileira.

Tanto é dessa maneira que, consoante aos relatos de Patarra e Fernandes (2011, p.

364), fruto da crise econômica mundial de 1929 e da consequente crise cafeeira que assolou

o país, em 1930 o Brasil passa a restringir legalmente a entrada de migrantes, fazendo

constar, inclusive, cotas para entrada de estrangeiros nos textos constitucionais de 19343 e

19374.

Mesmo mais tarde, essa situação não se alterou, pois com a eclosão e até mesmo

após o fim da Segunda Grande Guerra, o Brasil não se tornou a principal rota para europeus

que fugiam dos infortúnios desse conflito mundial que mais gerou migrações internacionais

na contemporaneidade. E, mesmo com o passar dos anos, essa situação permaneceu hostil,

já que a própria Constituição de 19465, adotou uma política que, tal como expõe Kenicke

(2016, p. 42), visava servir ao desenvolvimento econômico.

Foi exatamente essa mentalidade que, décadas mais tarde, guiaria a confecção da

Lei nº. 6.815/1980, conhecida como Estatuto do Estrangeiro, que de acordo com Kenicke

(2016, p. 51), era o resultado da compilação de “quase todas as normas relativas a imigrantes

desde 1938”. Essa lei, que foi promulgada sob a égide da ditadura militar, inaugurou uma

política migratória brasileira que se manteve voltada à preservação da segurança nacional, o

que, segundo Kenicke (2016, p. 20), significava lançar sob o imigrante um olhar de eminente

desconfiança, já que ele era potencialmente perigoso à manutenção da ordem e da segurança

interna do país.

Além disso, cabe destacar que essa política migratória adotada pelo Brasil reflete o

quanto o país estava sob o arbítrio do período ditatorial ainda dominante. Esse fato contribuiu,

3 Art. 121. [...] § 6º - A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinqüenta anos. § 7º - É vedada a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território da União, devendo a lei regular a seleção, localização e assimilação do alienígena. (BRASIL, 1934, p. 01). 4 Art 151 - A entrada, distribuição e fixação de imigrantes no território nacional estará sujeita às exigências e condições que a lei determinar, não podendo, porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinqüenta anos. (BRASIL, 1937, p. 01). 5 Art 162 - A seleção, entrada, distribuição e fixação de imigrantes ficarão sujeitas, na forma da lei, às exigências do interesse nacional. (BRASIL, 1946).

13

definitivamente, para que esse diploma normativo assumisse uma postura rígida para com o

público estrangeiro que desejasse ingressar em território nacional. Tanto é dessa maneira

que, conforme salienta Castro (2012, p. 15), a nova política migratória julgava adequada a

entrada apenas dos imigrantes que, de alguma forma, fossem úteis e estritamente

necessários ao desenvolvimento do país, o que visava, a todo custo, coibir a imigração

indiscriminada, buscando permitir que somente aqueles que tivessem utilidade, efetivamente

ingressasse em solo brasileiro.

Essa postura, herança do rigor extremado que reinava nos anos de chumbo, entrou

em descompasso com a redemocratização pela qual passou o país. Isso porque, com a

promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil adota um extenso rol de Direitos e

Garantias Fundamentais, o que, apesar de não ter alterado de imediato a política migratória

brasileira, contribuiu para o germinar da necessidade de se adotar uma lei que prezasse,

precipuamente, pela preservação e valorização da pessoa humana do imigrante, o que viria

a ocorrer, efetivamente, em 2017, com a promulgação da Lei nº 13.445/2017, conhecida como

Lei de Migração.

3 REFÚGIO

Notadamente, o deslocamento humano, continuamente presente na história, sempre

abarcou, dentre os que se aventuravam por novas terras, aqueles que, mesmo estando nessa

situação, não escolheram fazer isso. Dito de outro modo, tem-se que frente às diferentes

maneiras e motivações para a ocorrência do fenômeno migratório, existe a migração que

ocorrem em massa, em decorrência de demasiado temor a própria sobrevivência. Trata-se do

contingente populacional que é vítima da migração forçada, e em terras estranhas necessita

de refúgio.

Etimologicamente derivado do latim refugium, refúgio designa “lugar seguro para

onde alguém vai para não se expor à situação de perigo; abrigo, esconderijo” (MICHAELIS,

2020, p. 01). Definição que descreve uma necessidade que sempre acompanhou o ser

humano, principalmente nas situações em que é levado a migrar contra sua vontade. Trata-

se de uma gama de pessoas que compõe um grupo cada vez mais crescente no mundo.

Tal é dessa maneira que, de acordo com dados apresentados pela UNHCR ACNUR

Agência Nacional da ONU para refugiados cerca de “[...] 79,5 milhões de pessoas estavam

deslocadas até o final de 2019 por guerras, conflitos e perseguições [...]” (UNHCR ACNUR,

2020, p. 1). Essa massa populacional, de acordo com o Alto Comissariado da ONU para

Refugiados, atinge, na atualidade, um número sem precedentes, chegando a 1% da

população mundial.

14

Modernamente, segundo Ramos (2016, p. 88), a questão do refúgio chamou a

atenção da Europa, pela primeira vez, em 1917, quando vários russos deixaram seu país

fugindo da Revolução que se instaurou naquele território. Esse acontecimento fez surgir, em

1921 o Alto Comissariado para refugiados, mas que se dedicava, a oferecer acolhimento

apenas a russos e armênios.

Assim, a questão dos refugiados somente passou a ganhar atenção com a Segunda

Guerra Mundial, já que foi devido a esse conflito que a migração forçada definitivamente

sensibiliza a comunidade internacional, graças ao assustador número de pessoas que fugiram

da Europa para os outros lugares do mundo, em busca da sobrevivência. Tal é assim que, em

1948, esse amparo, asilo ou proteção foi consagrado a direito humano, quando a Declaração

Universal dos Direitos Humanos, em seu art. XIV proclamou que “Todo ser humano, vítima de

perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países” (NAÇÕES UNIDAS,

2009, p. 8).

Tamanha foi essa sensibilização que dois anos depois surge o Alto Comissariado

das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), órgão cujo funcionamento foi regido pela

Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, também conhecida como Convenção de

1951.

Mas, mesmo sendo tão valiosa, a Convenção limitou a definição de refúgio, tanto

temporal quanto geograficamente. Isso porque, tal como salienta Mazzuoli (2020, p. 695), a

Convenção só considerava sendo refugiados apenas aqueles que fossem provenientes da

Europa e até 1º de janeiro de 1951. Essa restrição, que destoou dos interesses da sociedade

internacional por fazer distinção entre pessoas, deixa de existir por obra do Protocolo sobre o

Estatuto dos Refugiados, de 1967, de modo que, a partir dele, passa a ser considerado

“refugiado” toda pessoa que

[...] temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (CONVENÇÃO RELATIVA AO ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951, p. 2)

Tal como conceitua a referida convenção, Marcelo D. Varella considera o refúgio

como uma “perseguição a um grupo de indivíduos, em função de sua raça, religião,

nacionalidade ou opção política. O refugiado deve ter fundado temor de perseguição em seu

país, onde não encontrará um julgamento justo, com o devido processo legal”. (VARELLA,

2019, p. 238)

15

Embora, acertada colocação, Varella aborda um conceito mais restrito, como

costumeiramente era tratado o refúgio. Diante disso, foi a Declaração de Nova York de 2016

que muito esperançou aqueles que nessa situação, de fato, se encontram. Isso porque, além

de definirem diversas diretrizes para dignamente atender essas pessoas, ainda trouxe uma

ampliação do conceito de refúgio, uma vez que abrangeu a condição para o refugiado.

Neste sentido, a Declaração de Nova York sobre migrantes e refugiados, aduz que

[...] desde os primeiros tempos, a humanidade está em movimento. Algumas pessoas se movem em busca de novas oportunidades e horizontes econômicos. Outros agem para escapar de conflitos armados, pobreza, insegurança alimentar, perseguição, terrorismo ou violações e abusos dos direitos humanos. Outros ainda o fazem em resposta aos efeitos adversos das mudanças climáticas, desastres naturais (alguns dos quais podem estar relacionados às mudanças climáticas) ou outros fatores ambientais. Muitos se mudam, de fato, por uma combinação dessas razões. (NEW YORK, 2016, p.3, tradução nossa)6

Graças à essa Declaração, para as Nações Unidas, “também são consideradas

refugiadas aquelas pessoas que foram obrigadas a deixar seus países devido a conflitos

armados, violência generalizada e graves violações dos direitos humanos”, (UNHCR ACNUR,

2018, p.2), de forma a ampliar o conceito de refugiados a todos aqueles que, de alguma

maneira, são obrigados a migrar por sofrerem eminente ameaça a seus direitos.

Considerada com elevado teor revolucionário no tocante a beneficiar o migrante, e

em especial aqueles que são forçados a se deslocar pelo mundo, devido aos conflitos

armados ou perseguições das quais são vítimas, sensatamente o diplomata italiano Filippo

Grandi, chefe do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), reconhece que a

Declaração de Nova York “[...] preenche o que tem sido uma lacuna constante no sistema

internacional de proteção dos refugiados [...]”, (UNHCR ACNUR, 2016, p. 1).

3.1 Os Refugiados no Brasil

No Brasil, o primeiro documento dedicado a tratar da questão dos refugiados foi o

Decreto nº 25.796, de 10 de novembro de 1948, que permitia a recepção dos refugiados de

guerra em solo brasileiro, determinando que seus tratamentos fossem equiparados aos

estrangeiros.

6 Since earliest times, humanity has been on the move. Some people move in search of new economic opportunities and horizons. Others move to escape armed conflict, poverty, food insecurity, persecution, terrorism, or human rights violations and abuses. Still others do so in response to the adverse effects of climate change, natural disasters (some of which may be linked to climate change) or other environmental factors. Many move, indeed, for a combination of these reasons. (NEW YORK. OUTCOME DOCUMENT FOR 19 SEPTEMBER 2016 HIGH-LEVEL MEETING TO ADDRESS LARGE MOVEMENTS OF REFUGEES AND MIGRANTS). (NEW YORK, 2016, p.3).

16

Anos após, mais precisamente no ano de 1964, o Brasil sofre um golpe militar e sob

forte autoritarismo foi conduzido por mais de 20 anos. Esse período contribuiu para a

instauração de uma política migratória severa, voltada essencialmente para atender o

interesse econômico do país, em detrimento do imigrante estrangeiro que aqui estivesse, já

que potencialmente ele representava uma ameaça à segurança nacional.

Em consequência disso, o extremado rigor dispensado à recepção de estrangeiros,

refletia também na população de refugiados a ingressar em solo pátrio. Tal é dessa forma

que, de acordo com Chade (2012, p. 1), o governo brasileiro, no auge do período ditatorial,

em cinco anos, chegou a expulsar mais de mil estrangeiros, entre argentinos, uruguaios e

chilenos. Ainda segundo Jamil Chade, para a ONU, tal recusa do Brasil, em aceitar a

permanência dessas pessoas em território nacional por serem considerados opositores,

demonstrava que na prática, o país não aplicava a lei de asilo. Salientou ainda que “pelo

direito internacional, devolver para regimes ditatoriais pessoas que estão sendo perseguidas

politicamente é considerado como um crime contra a humanidade” (CHADE, 2012, p. 1).

Ainda a esse respeito, Moreira (2010, p. 115) salienta que houve no Brasil, em

consequência da ditadura militar, acentuado retrocesso, já que ao invés de ser um país de

acolhimento, tornou-se um país de onde se originariam refugiados, de modo que não

concederia abrigo àqueles que fugiam de outros regimes ditatoriais.

Felizmente, com a redemocratização do Brasil, após o fim da ditadura militar, e sob

os auspícios da Constituição de 1988, o país volta-se à proteção dos Direitos Humanos.

Segundo Moreira (2010, p. 115), esse período marcou uma fase em que o Brasil retorna ao

engajamento em prol de questões humanitárias, a muito esquecidas durante a forte repressão

que se instaurou em todo Cone Sul.

Como consequência disso, o tratamento dado aos refugiados passa por profunda

alteração, principalmente após a criação da Lei nº 9.474 de 22 de julho de 1997, destinada a

implementar o Estatuto dos Refugiados de 1951. Essa lei, também intitulada de Estatuto dos

Refugiados, merece especial destaque por ter sido “[..] a primeira lei nacional a implementar

um tratado de direitos humanos no Brasil, sendo ainda a lei latino-americana mais ampla já

existente no tratamento da questão” (MAZZUOLI, 2020, p. 697). Outro grandioso mérito foi à

criação do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão nacional interministerial,

destinado a “orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência,

integração local e apoio jurídico aos refugiados; e aprovar instruções normativas que

possibilitem a execução da Lei nº 9.474/97”. (MAZZUOLI, 2020, p. 697).

Tão importante foi a Lei 9.474 de 1997 que, a partir dela, foi possível o

desenvolvimento de diversas políticas públicas voltadas àqueles que são vítimas da migração

forçada, uma vez que não bastava só a permissão do ingresso no território nacional, mas tão

importante quanto, a restruturação e a preparação da sociedade e das condições para esse

17

recebimento.

Acerca desse assunto, é certo que

Desde meados dos anos 2000, no entanto, o governo brasileiro tem dado atenção não apenas à proteção de refugiados — por meio da determinação do status — de refugiado —, mas, também, à integração de refugiados, passando a estabelecer políticas públicas voltadas a essas pessoas. O governo federal tem buscado, ainda que de maneira tímida, a inserção dos refugiados nas políticas públicas já existentes no Brasil. (RAMOS; RODRIGUES; ALMEIDA, 2011, p.140)

Entretanto, mesmo sendo incontestado símbolo de legislação humanitária, inovação

e eficiência, o Estatuto do Refugiado, por mais de duas décadas viveu às sombras da Lei nº

6.815/80, que muito o limitava para uma atuação plena. Tal eram as restrições legais impostas

àqueles que buscavam refúgio em território nacional, que por vezes impedia sua atuação.

Prova disso era o fato de o Estatuto do Estrangeiro incriminar a permanência no país de forma

ilegal, isto é, aqueles que estivessem indevidamente documentados, deveriam se retirar do

território brasileiro, ou nem entrar, e só seria possível o ingresso após resolvido as ressalvas.

Exigência que muito dificultava o ingresso dos refugiados em solo pátrio, uma vez que a

condição em que essas pessoas buscam abrigo, sempre são vulneráveis, sendo comum a

perca ou inexistência de documentos.

Dessa forma, mesmo com tamanho valor, o Estatuto dos Refugiados não conseguia

resolver milagrosamente as problemáticas daqueles que de fato estavam em situação de

refúgio no Brasil, mas que não podiam ser reconhecidos como tal, graças a entraves legais.

Essa situação perdurou até o ano de 2017, com a promulgação da Lei de Migração.

4 A LEI DE MIGRAÇÃO

Tamanha é a diversidade de motivos que leva a migração que, o ato de migrar foi

elevado à Direito Humano por ocasião da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de

1948, que na altura de seu art. XIII estabeleceu que

1.Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar. (NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. 8).

Indubitavelmente, trata-se de uma consagração oportuna, haja vista que o fenômeno

migratório moderno, de acordo com dados apresentados pela ONU (2020, p. 1), fizeram com

que a migração internacional chegasse à marca de 272 milhões de pessoas, o que representa

3,5% da população mundial.

18

Diante desse cenário, e contrariando a política migratória adotada até então pelo

Brasil, surge, em 2017, a Lei n. 13.445, também titulada de Lei de Migração que “dispõe sobre

os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e

estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante” (BRASIL, 2017,

p. 1). Ao ser promulgada, revogou a Lei nº 818/49, que regulava “a aquisição, a perda e a

reaquisição da nacionalidade, e a perda dos direitos políticos” (BRASIL, 1949, p.1) assim

como o Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815/1980, que orientava tais diretrizes.

Esse novo diploma legal, dedicado às questões migratórias, incontestavelmente,

estava mais voltada aos interesses humanos. Isso porque, mesmo ainda existindo a

preocupação com a proteção nacional, são os Direitos Humanos que assumem o

protagonismo no novo diploma normativo, de modo a contemplar diretrizes benéficas, tanto

aos imigrantes quanto aos emigrantes.

Tal é dessa maneira que, de acordo com Oliveira, com a Lei de Migração

[...] o país passa a ter uma das legislações mais modernas no trato das políticas migratórias, avançando no tratamento dos pilares que sustentam a integração plena do migrante à sociedade brasileira ao assegurar o pleno acesso aos serviços, garantindo a reunião familiar, reconhecendo a formação acadêmica obtida no exterior, permitindo a associação sindical e política, facilitando a inclusão laboral, repudiando práticas de discriminação e descriminalizando a migração e repudiando práticas de deportações coletivas. (OLIVEIRA, A., 2017, p.1)

Notadamente, tão grandiosa é a Lei nº 13.445/2017 que, mesmo sem tratar de forma

direta dos refugiados, essa legislação muito lhes favoreceu, dado seu caráter essencialmente

humanitário. Isso porque, já nos primeiros artigos vem numerado um extenso rol de princípios

e garantias explicitas que apoia os estrangeiros, em especial aqueles em situação vulnerável,

o que definitivamente abarca o público vitimado pelo deslocamento forçado.

Dentre os extraordinários direitos trazidos pelo novo diploma a regular as questões

migratórias em território nacional, merece especial destaque o teor do art. 3º, que trata dos

princípios e garantias que regem a política migratória brasileira, tais como a exigência de

igualdade de tratamento entre os estrangeiros e os nacionais, observado explicitamente no

inciso XI do referido artigo, de acordo com o qual a “acesso igualitário e livre do migrante a

serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica

integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social;” (BRASIL, 2017, p.1).

A Lei de Migração inovou também ao expor manifesta da marginalização da

xenofobia, principalmente por, expressamente abarcar o termo, quando em seu inciso II do

art. 3º estabeleceu o “repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de

discriminação;” (BRASIL, 2017, p.1). Igualmente, em benefício dos estrangeiros, e

definitivamente pondo o Brasil numa posição de vanguarda com relação à questão migratória,

19

está o princípio previsto no inciso III, que institui a “não criminalização da migração”, bem

como o inciso IV, que aborda a “não discriminação em razão dos critérios ou dos

procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional;” (BRASIL, 2017, p.1).

Mais uma diretriz que enriquece os direitos dos refugiados é a garantia da reunião

familiar prevista nos incisos VIII e IX do artigo 3º da referida lei, respectivamente, “garantia do

direito à reunião familiar;” (BRASIL, 2017, p.1) e “igualdade de tratamento e de oportunidade

ao migrante e a seus familiares;” (BRASIL, 2017, p.1), de maneira que permita que aquele

que esteja em situação vulnerável possa receber proteção, não somente própria, mas também

de seus familiares.

A mencionada lei traz ainda, a “acolhida humanitária”, princípio expresso no inciso

VI, do art. 3º da Lei de Migração, e que muito beneficia o ingresso daqueles que em situação

de fragilidade chegam às fronteiras do país. Dessa forma, mesmo ainda não possuindo status

de refugiado, esses que estão em franca situação de vulnerabilidade, serão recebidos em

território nacional e terão a proteção do Estado.

4.1 Acolhida Humanitária

A acolhida humanitária aparece como um princípio explicito no rol de princípios e

diretrizes do art. 3º da Lei 13.445/17, e “entra no campo da proteção complementar aos

migrantes forçados” (SALLES; RIGGO; SANTOS, 2019, p.141).

Nesse sentido, a acolhida humanitária permite que o imigrante se encaixe na

configuração de refugiado, mas ainda não tenha recebido esse reconhecimento, seja

recepcionado em território pátrio, mesmo que não tenha ainda seu status reconhecido

legalmente. Além disso, mesmo que o migrante, de fato, não alcance tal status, mas corra

riscos de sobrevivência, seja agraciado pela acolhida humanitária.

Notadamente, esse foi um fator recepcionado pela Lei de Migração que muito

influenciou o aumento do ingresso daqueles que, de fato, são refugiados em território

nacional, mas que ainda não possuem o reconhecimento oficial de tal situação, tampouco a

concessão desse status legal pelas autoridades brasileiras.

A vista disso, o princípio da acolhida humanitária é um grande protagonista nos

direitos que tange aos refugiados, trazido na Lei de Migração de 2017, isto porque através

dele, passou-se a permitir que essas pessoas ingressem no país, e livremente vivam suas

vidas com dignidade em território brasileiro, mesmo não tendo ainda sido reconhecidas como

refugiados.

Ademais, esse princípio permite que o migrante que dele se beneficia, acesse o visto

temporário, regulamentado pelo Decreto 9.199 de 20 de novembro de 2017, cujo art. 39

definem que

20

O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário. (BRASIL, 2017, p.1)

Nesse passo, é possível que aquele que ainda não detenha o status de refugiado

adquira o visto humanitário. Contudo, esse visto, ainda não detém uma regulamentação

universal, ficando pendente de portarias criadas diante das demandas que vão surgindo, o

que por vezes é motivo de crítica, como a manifesta por Rizza Rubins Rodrigues, segundo a

qual

[...] é necessário que haja a regulamentação geral do visto humanitário, distribuindo as competências dos órgãos que ficarão responsáveis por emiti-los, além de estabelecer os requisitos, prazos e moldes da concessão a fim de que a Lei 13.445/2017 e o instituto tão moderno que é o visto humanitário sejam realmente parte de uma política migratória efetiva – que além de ter como fonte uma legislação específica, seja imbuída de humanidade, desde a garantia a um processo que leve um tempo razoável para concessão até a inserção dos estrangeiros na sociedade brasileira. (RODRIGUES, 2018, p.22)

O que de fato seria importante passo para acelerar as análises processuais dos

pedidos dos vistos humanitários, mas é uma verdade que não desfoca a importância que a

narrativa traz para a vida dos refugiados, em território brasileiro.

5 A QUESTÃO DOS REFUGIADOS NA REGIAO DO VALE DO ARAGUAIA/MT

Segundo dados coletados anualmente pelo Ministério da Justiça e Segurança

Pública (2019, p.7), de acordo com seu último estudo, intitulado “Refúgio em Números 4ª

Edição”, até dezembro de 2018, o Brasil contava com 161.057 solicitações de reconhecimento

de refugiado em tramite, enquanto o número de pessoas já reconhecidas como refugiados

eram apenas 11.231. Contudo, dados mais atualizados, tais como os colhidos junto ao Projeto

de Cooperação para Análise das Decisões de Refúgio no Brasil, realizado graças à parceria

entre a Coordenação-Geral do Comitê Nacional para os Refugiados (CG-Conare) do

Ministério da Justiça e Segurança Pública – MJSP e a Agência da ONU para Refugiados

(ACNUR) (2020, p.1), até julho de 2020, o número de reconhecimentos de refúgio era de

39.546, dos quais 16.434 só em 2020, o que demonstra um vertiginoso aumento. Os dados

apresentados pelo referido projeto, apontam que os três principais Estados a receber tais

decisões são: Roraima, seguido de Amazonas e São Paulo, estando o Mato Grosso, 14º lugar.

Presente na região do nordeste mato grossense, o Vale do Araguaia abrange uma

21

circunscrição que compreende mais de 30 municípios do Estado do Mato Grosso, dentre os

quais, merece destaque: Água Boa, Alto Boa Vista, Araguaiana, Barra do Garças, Bom Jesus

Do Araguaia, Campinápolis, Canabrava do Norte, Canarana, Cocalinho, Confresa, General

Carneiro, Luciara, Nova Nazaré, Nova Xavantina, Novo Santo Antônio, Novo São Joaquim,

Pontal do Araguaia, Ponte Branca, Porto Alegre do Norte, Querência, Ribeirão Cascalheira,

Ribeirãozinho, Santa Cruz do Xingu, Santa Terezinha, Santo Antônio do Leste, São Félix do

Araguaia, São José do Xingu, Serra Nova Dourada, Torixoréu, Vila Rica.

Embora essa área situada no Nordeste mato-grossense seja extensa, os refugiados

presentes na região concentram-se, basicamente, em quatro cidades, estando em primeiro

lugar em quantidades de refugiados alojados a cidade de Barra do Garças, seguida de

Querência, Água Boa e Confresa.

Dentre as mais de 70 nacionalidades de refugiados ingressos no Brasil (UNHCR

ACNUR, 2016, p.1), três protagonizam a região do Vale do Araguaia, sendo elas, em ordem

de maior quantidade, Venezuelanos, Haitianos e depois os Sírios. Os três países vêm a

tempos passando por intensas crises, mas que embora distintas, comumente, causaram

grande evasão populacional para outros países, devido ao temor de seus nacionais pela

própria sobrevivência.

Os motivos que os tornaram refugiados divergem de acordo com cada país de

origem: a Venezuela vem sofrendo desde 2013 uma crise humanitária, que foi se agravando

com o passar dos anos, resultando em fuga de pessoas em massa para o Brasil, seu país

vizinho. Já o Haiti, que a tempos sofria com a vasta pobreza, em 2010, foi devastado por um

desastre ambiental, obrigando o deslocamento de milhares de pessoas para outras terras.

Por fim, a Síria, país que a anos é palco de uma violenta guerra civil, sofre com um regime

ditatorial.

Contudo, não obstante a todos esses transtornos correntes ao redor do mundo, é

possível perceber o impacto que a Lei de Migração trouxe no quantitativo de ingresso dos

refugiados no território brasileiro, quando comparados os números de pedidos de refúgio

antes e depois da promulgação da lei vigente, em 2017.

A prova disso está no fato de que, há cinco anos, os números de pedidos de refúgio

na Região do Vale do Araguaia eram cerca de 30, tendo esse número subido para cerca de

200. Outro fator a ser levado em conta, e que reforça a influência definitiva da Lei de Migração,

na questão dos refugiados na região do Vale do Araguaia, é que esses números estão

limitados aos pedidos de refúgio, mas caso sejam considerados os estrangeiros que se

beneficiam da acolhida humanitária, os números chegam a 500 invocações.

Demonstrado em percentuais, temos que a região do nordeste mato grossense teve

um vertiginoso aumento de mais de 500% em número de solicitação de refúgio, se comparado

com 5 anos atrás, quando a Lei do Migrante ainda não havia sido promulgada. Além disso, se

22

considerado o princípio da Acolhida Humanitária, trazido pela referida norma, o aumento do

número daqueles que se beneficiaram é ainda maior, chegando a ser estimado em mais de

1.500%, o que demonstra que a Lei de Migração exerceu um impacto direto no aumento do

número de imigrantes, em situação de refúgio, na região do Vale do Araguaia.

Ademais, não se pode perder de vista que, esse expressivo aumento, assim como

evidenciado na região do nordeste mato-grossense, igualmente se revela presente em outras

partes do país.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não obstante ao fato de que a migração sempre fez parte da história da humanidade,

o ato de migrar deve ser uma escolha, não uma necessidade. Contudo, ao se tornar uma

necessidade, indispensável se faz garantir que essas pessoas sejam reconhecidas enquanto

detentoras de direitos e recebam, por parte do Estado, a proteção necessária para lhes

resguardar a dignidade.

A vista disso, não obstante haja um crescente reconhecimento dos direitos humanos,

que largamente são exaltados em tempos modernos, tal perspectiva não reflete a diminuição

do trânsito obrigatório de pessoas no mundo, muito pelo contrário, uma vez que abrangem as

situações em que pessoas se locomovem por condições vulneráveis.

No que tange a Migração Forçada, o Brasil tem sido um aliado na proteção

humanitária desses indivíduos, de modo a se preocupar cada vez mais em receber esse

público, o que fica evidente com a observância do enriquecimento das questões legislativas

direcionadas a essas pessoas. Como reflexo disto, é possível identificar o aumento do número

de refugiados que ingresso em território brasileiro, graças à benevolência com que é

conduzida a política migratória na atualidade, por força da promulgação da Lei de Migração.

Dessa forma, mesmo o Estado de Mato Grosso não sendo um protagonista na rota

dos refugiados em território brasileiro, notadamente, a Região do Vale do Araguaia, localizada

no nordeste do Estado, teve um aumento de mais de 500% em solicitação de refúgio, se

comparado com 5 anos atrás, quando a Lei do Migrante ainda não havia sido promulgada, o

que revela que os números de solicitação de refúgio deram um salto imenso. Contudo,

definitivamente, foi o princípio da Acolhida Humanitária trazido pela Lei 13.445/17, que

sensivelmente contribuiu para um aumento ainda maior, haja vista que se forem levados em

consideração, o número daqueles que se beneficiaram desse referido princípio, chegando a

ser estimado em mais de 1.500%.

Além disso, das três nacionalidades que protagonizam os números de Refugiados na

Região do Vale do Araguaia: Venezuela, Haiti e Síria são países que sofrem desarmonia há

anos antes de 2017, o ano da promulgação da Lei do Migrante. Mas, foi somente depois da

23

dita norma que os números deram um extenso salto, mesmo levando em consideração que a

fuga dos venezuelanos se intensificou nos últimos anos, as diretrizes destinadas aos

refugiados, muito colaboraram para que escolhessem o Brasil como destino, em especial pelo

acolhimento humanitário.

Noutra volta, há algumas ressalvas para serem sanadas, como a criação de uma

regulamentação geral da concessão de vistos humanitários, de forma que abranja todos os

refugiados de qualquer lugar do mundo, para que possa deixar de ficar a mercê de portarias

específicas a cada origem de refugiados, como ocorre atualmente, por falta de padronização.

Mesmo assim, tal lacuna não ofusca a importância que a Lei de Migração de 2017

trouxe não só para o migrante, mas para o enriquecimento do arcabouço legislativo pátrio a

proteger os direitos humanos, de modo a tornar o Brasil um dos melhores lugares para se

procurar refúgio, impactando no número de ingresso de refugiados em todo o território

nacional, mesmo naqueles, que em comparado, são pouco procurados, como é o caso da

Região do Vale do Araguaia, localizada no nordeste mato-grossense.

REFERÊNCIAS

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ESTATUTO DO REFUGIADO E LEI 13.445/17: UMA ANÁLISE SOBRE A

EFETIVIDADE DOS DIREITOS DOS REFUGIADOS NO BRASIL

YAROS, Maria Eduarda de Camargo7 BREGA FILHO, Vladimir8

RESUMO: Em 2017, foi publicada a nova lei de migração – Lei 13.445 – a qual estabeleceu um novo panorama aos estrangeiros que vivem no Brasil. A lei agora convive com o Estatuto do Refugiado de 1997, o qual criou o Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE – órgão responsável por analisar as solicitações de refúgio no país. Atribui-se o termo “refugiado” às pessoas que por temores econômicos, sociais ou políticos tiveram que fugir em busca de segurança em outro território, vez que se encontravam em perigo em virtude dos conflitos armados, perseguições políticas, étnicas e religiosas ou desastres naturais, em suas nações. A vulnerabilidade é a característica marcante na vida dos expatriados, que encaram uma série de dificuldades para se estabelecerem em um novo país. Assim, o artigo traz a notícia dos primeiros refugiados e como se deu o desenvolvimento da legislação acerca do tema, a fim de compreender o tratamento dado a quem possui o status de refugiado. Como é sabido vivemos uma crise humanitária que afeta milhares de pessoas em fluxos migratórios pelo mundo que chegam até o Estado brasileiro. Com base nessa perspectiva, é imprescindível analisar a lei 9.474/97, bem como a nova lei de migração, e as mudanças trazidas por ela. Buscou-se, então, avaliar ambas as leis e aferir se há efetividade em sua aplicação. Objetivou-se também analisar se legislação recente se estende aos refugiados. Para isso, a pesquisa se ancorou no método dedutivo para seu desenvolvimento, partindo de premissas gerais a específicas, tendo como técnica de pesquisa a bibliográfica, investigando os fluxos migratórios para então analisar a situação dos refugiados no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Estatuto do Refugiado. Nova lei de migração. Avanços. Efetividade da legislação.

ABSTRACT: In 2017, the new migration law - Law 13445 - was published, which established a new panorama for foreigners living in Brazil. The law now coexists with the Refugee Statute of 1997, which created the National Committee for Refugees - CONARE - the body responsible for examining asylum applications in the country. The term “refugee” is attributed to people who, due to economic, social or political fears, had to flee in search of security in another territory, since they were in danger due to armed conflicts, political, ethnic and religious persecution or natural disasters, in their nations. Vulnerability is the hallmark of expatriates' lives, who face a series of difficulties in establishing themselves in a new country. Thus, the article brings the news of the first refugees and how the legislation on the topic was developed, in order to understand the treatment given to those who have refugee status. As known, we are experiencing a humanitarian crisis that affects thousands of people in migratory flows around the world that reach the Brazilian State. Based on this perspective, it is essential to analyze Law 9.474 / 97, as well as the new migration law, and the changes brought about by it. Then, it is sought to evaluate both laws and assess whether there is effectiveness in their application. It also aimed to analyze whether recent legislation extends to refugees. For this, the research was anchored in the deductive method for its development, starting from general

7 Discente do 3º ano curso de direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e Bolsista da Fundação Araucária/PIBIC (2019/2020). 8 Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Lisboa, Portugal. Professor Associado da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. E-mail: [email protected]

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to specific premises, having as bibliographic research technique, investigating the migratory flows to then analyze the situation of refugees in Brazil.

KEYWORDS: Refugee Status; New migration law; Refuge in Brazil; Fundamental rights; Advances and Effectiveness of legislation.

1 INTRODUÇÃO

A necessidade de buscar refúgio em um território estranho é uma prática recorrente

e acompanha a história da humanidade, sendo fruto da vulnerabilidade de diversos povos

acometidos pela instabilidade em seus territórios de origem.

Àqueles que por temores econômicos, políticos ou sociais tiveram que abandonar

seus países, em razão de estarem expostos ao perigo constante e a insegurança, se atribui

o status de refugiado. O Brasil é um país que recebeu expatriados desde sua colonização,

mantendo as fronteiras abertas a quem precisasse de refúgio, no entanto é imprescindível

trazer para o debate a forma como é realizada a recepção dessas pessoas e como se dá a

permanência no país, expondo as dificuldades e o não acesso aos direitos básicos.

Objetiva-se com esse artigo realizar um estudo acerca dos refugiados, apontando os

grandes fluxos migratórios, a fim de compreender os motivos que levaram milhares de

pessoas a adquirirem o status de refugiado e o surgimento de um sistema de proteção, que

trouxe um regramento mínimo sobre a forma de tratamento que deve ser dado aos

expatriados.

Analisaremos, então, alguns aspectos do Estatuto do Refugiado e feito isso, o artigo

pretende analisar a recente Lei nº 13.455/2017 – nova Lei de Migração – e verificar se a

mesma modifica a situação do refugiado no Brasil, em especial o cumprimento dos tratados

internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Note-se que desde 2015 vivemos o maior fluxo migratório de nossa história desde a

Segunda Guerra Mundial, em que houve um deslocamento massivo de pessoas. São milhares

de pessoas afetadas pela necessidade de refugiar-se e diante dessa realidade surgem

questões a respeito da legislação que regula a entrada e permanência de refugiados no Brasil

e sua aplicabilidade. É preciso discutir o assunto que envolve a dignidade de mais de 11 mil

pessoas já reconhecidas como refugiados em solo brasileiro.

Observa-se que a princípio o país adotou a Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos

Refugiados e do Protocolo de 1967, da qual se tornou signatário, para lidar com o tema. Em

cumprimento à convenção em 1987, foi editada a lei 9474. Em 1980 foi desenvolvida a Lei de

Estrangeiros, que somente em 2017 veio a ser substituída pela Lei de Migração, a qual

atualizou o tema e os institutos existentes. Faz-se necessário analisar a legislação e verificar

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os avanços ou retrocessos na recepção e integração dos refugiados, em especial após a

edição da Lei 13.445/17.

A pesquisa foi desenvolvida através do método dedutivo, partindo de premissas

gerais às especificas, ou seja, mediante o levantamento dos fluxos migratórios que ocorreram

durante a história até os deslocamentos que continuam a acontecer nos últimos anos e

chegam ao Brasil. Finalmente, para investigar a criação de órgãos e convenções criadas pela

necessidade de regular a situação dos refugiados até a efetividade da legislação desenvolvida

em 2017 no nosso país e como se dá o processo de recepção e os direitos para se viver aqui.

Utilizou-se de dados dos principais órgãos que cuidam do tema, especificamente, o ACNUR

e o CONARE, além de pesquisa bibliográfica sobre o tema.

É sabido que a questão em debate é complexa, que exige capilaridade dos entes

federados, União, Estados e Municípios, além da cooperação internacional no cumprimento

das obrigações assumidas em respeito aos refugiados pelo mundo. Sendo necessário um

conjunto de esforços e ações para que haja a concretização dos direitos estabelecidos

constitucionalmente, nos tratados e na legislação brasileira, partindo da máxima que o

acolhimento é a principal forma de materialização desses direitos.

2 DOS PRIMEIROS REFUGIADOS À CRISE MIGRATÓRIA ATUAL

O refúgio é um instituto existente há muito tempo. Segundo Barreto “o tema do refúgio

é tão antigo quanto à humanidade. Por razões políticas, religiosas, sociais, culturais ou de

gênero, milhões de pessoas já́ tiveram que deixar seus países e buscar proteção internacional

em outros”. (BARRETO, 2010, p. 12)

Sabe-se que desde a antiguidade há registros históricos a respeito de povos que

precisaram se refugiar, mais precisamente durante as Guerras Púnicas – 264 a.C – 146 a.C

– o conflito entre Roma e Cartago teve como consequência a fuga dos cartagineses para

regiões da África do Norte (WARMINGTON, 2010, p. 473-500). Entretanto, observa-se que os

cartaginenses não são intitulados como “refugiados”. A primeira menção ao termo remete aos

huguenotes, pertencentes à religião protestante, que deixaram a França no século XVII

quando o Edito de Nantes foi revogado, e a perseguição aos protestantes deixou de ser

proibida (MOULIN, 2013).

No início, o acolhimento aos refugiados era feito pelas igrejas e templos, o que

correspondia a um sentimento de solidariedade e hospitalidade, pregado pelo cristianismo.

Os autores Cyro Saadeh e Mônica Mayumi Eguchi, na “Convenção relativa ao Estatuto dos

Refugiados - Protocolo sobre o estatuto dos refugiados” (1998) ensinam que:

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O Primeiro Alto-Comissário conseguiu assegurar o fornecimento de assistência aos refugiados por parte de alguns governos e agências voluntárias, foi também idealizador do famoso Passaporte Nansen, documento que pôde ser utilizado, antes de tudo, como um Certificado de Identidade, e depois, como peça que permitia ao titular retornar ao país que o havia expedido. Pelo extraordinário trabalho realizado, concedeu-se a Nansen, em 1923, o Prêmio Nobel da Paz – a Fridtjof Nansen, representante da Noruega - Grifo nosso. (SAADEH e EGUCHI, 1998)

Na Alemanha nazista de 1933 um novo grupo de pessoas também precisam de

refúgio em razão de perseguição. São os judeus não-arianos e também os opositores ao

regime nazista. Foi necessário o reassentamento dessas pessoas que perderam o direito de

permanecer em seus países por sua raça ou posicionamento político. Surgiu então “A

Convenção de Genebra de 1933, que foi um dos primeiros instrumentos jurídicos

internacionais relativos a refugiados, dava às pessoas sob sua competência uma condição

similar a de estrangeiros privilegiados” (SAADEH e EGUCHI, 1998).

Também durante a Segunda Guerra Mundial muitas pessoas tiveram que deixar as

suas casas. Conforme aponta José Manuel Oliveira Antunes, “entre 1939 e 1948, durante e

no pós-guerra, o número de pessoas desenraizadas — devido às fugas, às evacuações, a

deslocalizações e aos trabalhos forçados — alcançou perto de 46 milhões, só no centro e

leste da Europa” (ANTUNES, 2005).

Mas não foi somente a Segunda Guerra Mundial que aumentou o número de

refugiados. Muitos outros conflitos ampliaram essa questão. Segundo o relatório do ACNUR,

o número de pessoas refugiadas e de deslocadas internas aumentou em todas as partes do

planeta. A razão para isso foram os diversos conflitos armados que se iniciaram ou antigos

conflitos que foram retomados. Sendo os principais na África9, no Oriente Médio10, na Europa11

e na Ásia12 (NAJM, SANTOS, SANTOS, SILVA, RADIEDDINE, PRIETO, 2015, p.5).

Isso mudou o perfil dos refugiados.

Até a década de 50, seguramente, a maioria dos refugiados era europeus, o que de certo modo justificava a reserva geográfica existente nos Instrumentos Internacionais. Atualmente, no entanto, a maioria é composta principalmente de africanos e asiáticos, dos quais 80% são mulheres e crianças. (SAADEH e EGUCHI, 1998)

Persistindo, inclusive, até os dias atuais, na medida em que os conflitos armados são

um dos fatores que acarretaram no aumento do índice de refugiados no mundo, conforme

mostra o relatório da ACNUR. A Guerra da Síria que se iniciou em 2011, é ainda hoje o

9 Conflitos ocorridos no Mali, na Costa do Marfim, na República Centro Africana, no nordeste da Nigéria, na Líbia, na República Democrática do Congo, no Sudão do Sul e no Burundi. 10 Conflitos na Síria, no Iraque e no Iêmen. 11 Conflito na Ucrânia. 12 Conflitos ocorridos no Quirguistão e em distintas áreas de Mianmar e do Paquistão.

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acontecimento que ocasionou o maior deslocamento da história. Somada aos outros eventos,

fez surgir uma das mais graves crises migratórios, aumentando os fluxos para a Europa. É

importante pontuar que os conflitos duram anos e a instabilidade que geram, além da

destruição, persistem por décadas na região, o que torna o asilo daqueles que fugiram um

estado permanente. Poucos refugiados conseguem retornar a suas origens.

Com a junção desses acontecimentos o resultado foi à chamada crise migratória que

teve inúmeros desdobramentos econômicos e sociais, e culminou na formação dos campos

de refugiados, onde há a concentração de milhares de pessoas que mesmo após anos

continuam locadas de forma provisória, sem ações mais duradouras e eficazes.

Para se ter uma ideia do número de refugiados, é importante registrar que:

Uma em cada cento e vinte e duas pessoas no mundo pode ser considerada refugiada, deslocada interna ou solicitante de refúgio. Caso essas pessoas fossem contadas como a população de um Estado, seria a vigésima quarta nação mais populosa do mundo. (NAJM, SANTOS, SANTOS, SILVA, RADIEDDINE, PRIETO, 2015, p.4)

Estamos aqui a falar de refugiados, o que não se confunde com os migrantes. Sobre

a definição do que venha a ser refugiado, Montal discorre da seguinte forma:

Migração de refugiados. São constituídos por pessoas que sofrem perseguição de ordem política, étnica, religiosa e por isso se veem obrigadas a deixar seus países de origem e refugiar-se em outros onde se sintam mais seguros. A ONU considera também como migrantes refugiados pessoas que se viram obrigadas a deixar seus países de origem em razão de problemas ambientais tais como: desertificação, erosão do solo, secas prolongadas, terremotos, maremotos etc., que determinam a saída da população desses locais, são os denominados migrantes ou refugiados ambientais. (MONTAL, 2012, p.139)

Essa história do refúgio a nível mundial acabou tendo reflexo no Brasil. Da mesma

forma que o país acolheu os imigrantes, inicialmente os portugueses e depois os espanhóis,

italianos, alemães e japoneses, entre outros, o Estado brasileiro também acolheu refugiados.

Muitos deles vieram para o Brasil após a primeira e a segunda guerra mundial. Sendo

um território receptivo aos refugiados europeus que tiveram que realizar deslocamentos

forçados, tendo em vista a situação da Europa após a guerra. O autor Marques relata como

foi à chegada dos refugiados ao Brasil:

Os refugiados, pela sua alta formação técnica e cultural, representariam importante incremento à Nação brasileira, desde que a atuação de seleção dos refugiados fosse dirigida pelos interesses nacionais, sem, é claro, esquecer o caráter humanitário. Tal característica do discurso de Guimarães nos evidencia a oportuna aliança entre o auxílio humanitário e as atividades políticas para atração de mão de obra especializada para o país. (MARQUES, p. 3, 2016).

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A descolonização da África também fez que alguns africanos buscassem refúgio em

solo brasileiro, gerando um novo fluxo migratório. “As guerras civis pela independência de

colônias africanas geraram grandes fluxos de refugiados na década de 1960, dentre as quais

se destacam as da Argélia e de Ruanda” (MOREIRA, p. 12).

O Brasil, contudo, nem sempre foi receptivo aos refugiados. Durante o ápice da

ditadura militar o país chegou a impedir a entrada de refugiados, negando pedidos de asilo

provenientes da ONU. Ainda expulsou mil argentinos, uruguaios e peruanos (FRAIA, 2016).

Com a Constituição Federal de 1988, esse posicionamento mudou e o país passou a aceitar

expatriados de todos os continentes.

Em 2001, foi desenvolvido um programa de reassentamento de refugiados e o país

recebeu angolanos, colombianos e afegãos nos anos seguintes. Nos últimos anos muitos

bolivianos, haitianos, venezuelanos e sírios deslocaram-se para o Brasil, devido à

instabilidade política e econômica de seus países de origem.

Esse grande fluxo de refugiados, faz-nos refletir sobre as políticas públicas existentes

para a recepção e acolhimentos dos mesmos, visto que normalmente tratam-se de pessoas

em situação de vulnerabilidade, suscetíveis à exploração e ao trabalho escravo.

Por conta disso, a seguir trataremos da evolução da legislação a respeito do tema.

3 DISCIPLINA LEGAL DO TEMA

A partir desse breve histórico a respeito da mobilidade forçada, percebe-se que a

partir do início do século XX, foi ficando evidente a necessidade da criação de algo que

amparasse os expatriados no mundo todo e por isso começa a surgir um sistema de proteção

humanitária internacional.

O primeiro Alto Comissariado para Refugiados surgiu em 1921, por meio do Conselho

da Sociedade das Nações. Sua finalidade era dar apoio humanitário aos refugiados russos

que foram expulsos de seus países em razão da queda do Império Omomano e da Revolução

Russa. Sua proteção jurídica foi estabelecida de fato somente no ano de 1951, a partir do

desenvolvimento do Estatuto dos Refugiados das Nações Unidas. O documento, em que pese

a sua relevância, não trazia a obrigatoriedade de aceitar refugiados de outros continentes,

ficando isso à escolha dos países.

Com o tempo a proteção aos refugiados foi se ampliando, passando a trazer uma

definição do tratamento que deveria ser dado aos refugiados, estabelecendo padrões e

direitos.

Como dito anteriormente, a Segunda Grande Guerra Mundial gerou diversos

movimentos de deslocamento forçado, que ocasionaram uma grave crise humanitária. Diante

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dessa situação, foi necessária a criação de um órgão que organizasse as novas formações

que se deram com a entrada de refugiados em outros países, daí surge a

UNRRA — Administração para a Assistência e a Reabilitação das Nações Unidas, em 1943.

Três anos depois, em 1946, foi criada a IRO — Organização Internacional dos

Refugiados — que atuava, principalmente, na Alemanha e Áustria. Foram constituídos

inúmeros campos de refugiados, sob a organização desses órgãos, nos quais milhões de

alemães, franceses, italianos, e cidadãos de outras nacionalidades foram alocados devido à

instabilidade gerada pela guerra.

Através Convenção Europeia dos Direitos Humanos, em 1951, a proteção aos

expatriados foi formalizada com a garantia de direitos, inclusive do regresso aos seus países

de origem. Ainda em 1951, em Genebra, a Assembleia Geral da ONU criou a Convenção das

Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, a qual estabelecia os princípios básicos para

o tratamento de refugiados.

O Brasil, acompanhando a evolução da legislação internacional, ratificou a

Convenção de 1951, sendo considerado um país de destaque ao ser o primeiro dentre os

países sul-americanos a fazer a ratificação. Posteriormente, regulamentou-se o Protocolo de

1967.

Em 1980, durante a ditatura militar, o país elaborou legislação específica com a

publicação da Lei 6.815, mas esta lei tinha um viés conservador e nacionalista. Em 1997, foi

elaborada a Lei 9474/97 que criou o estatuto dos refugiados, lei que está em vigor e será

objeto de análise mais adiante.

4 DO TRATAMENTO DADO AOS REFUGIADOS

Ao longo dos anos houve significativo avanço no sistema de proteção aos refugiados,

estabelecendo direitos básicos mínimos a serem garantidos. Os países signatários dos

Tratados e Convenções sobre o tema se obrigam a proporcionar aos refugiados os direitos

inerentes à pessoa humana, seguindo o processo de universalização dos direitos humanos

que tem como valor fundante a dignidade da pessoa humana.

Em que pese esse processo contínuo de universalização dos direitos humanos dos

refugiados, ainda hoje se tem notícia de atitudes xenofóbicas de pessoas e governantes. Em

razão disso, mostra-se necessário analisar como se tem ocorrido o refúgio nos tempos atuais.

Em recente relatório divulgado pela ACNUR em 2017 – “Tendências Globais”13 –

consta que os países que possuem renda média ou baixa, acolheram 84% do total de

refugiados, isto é, um em cada três refugiados (4,9 milhões de pessoas) foi recebido por um

13 Global Trends 2017. Disponível em: <https://www.unhcr.org/5b27be547>.

34

país menos desenvolvido, o qual possui menos condições de fornecer plataformas

assistencialistas.

Decorrência disso é a má distribuição de refugiados pelo mundo, havendo

concentração de milhares de pessoas em campos de refugiados totalmente precários. A crise

humanitária que eclodiu em 2015, fez com que alguns países fechassem suas fronteiras, não

permitindo que os refugiados buscassem outros lugares para se estabelecerem. Sob a

justificativa de segurança nacional, que tratava os expatriados como ameaça aos interesses

no país, e através de um discurso de preconceito e xenofobismo, muitas pessoas não tinham

para onde ir.

Esse posicionamento afronta à dignidade da pessoa humana e desrespeita tratados

internacionais, colocando pessoas em situação de vulnerabilidade, em um risco ainda maior.

Em síntese, há um déficit de proteção no tratamento aos refugiados, ainda que

tenham ocorrido conquistas significativas e um avanço no universalismo dos direitos

humanos. A realidade mostra a recusa de alguns países em receber os refugiados e,

consequentemente, o descumprimento das obrigações de fornecer asilo a quem teve um

deslocamento forçado.

Os direitos humanos devem ser considerados globalmente, independente de origem

ou raça, o que significa dizer que ao refugiado devem ser reconhecidos direitos básicos,

respeitando-se a sua dignidade. No entanto, o que se tem proporcionado é um tratamento de

subsistência, ainda que a legislação imponha que deve ser proporcional um mínimo

existencial para se viver.

Hannah Arendt já descreveu a mais há mais de três décadas o que acontece com o

refugiado em busca de asilo. Para a autora, “uma vez fora do país de origem, permaneciam

sem lar; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus

direitos humanos, perdiam todos os direitos, eram o refugo da terra” (1989, p. 300).

Pode se dizer que há três motivos principais para os deslocamentos dos refugiados,

sendo eles a violações dos direitos humanos, os conflitos armados e a repressão sofrida em

seus países de origem (ANDRADE, 2005. p. 1). Como complementa Marques (2016):

Os refugiados constituem um grupo de pessoas que são obrigadas a fugir de seus países de origem por temerem suas vidas, liberdades ou seguranças. Assim sendo, o deslocamento não se faz por livre e espontânea vontade, mas sim, por uma necessidade.

Ao falar do tratamento dado aos refugiados que chegam ao Brasil, a história nos

mostra uma colhida diferente aos europeus comparado aos refugiados não-europeus. Isso

porque a recepção europeia estava atrelada aos interesses nacionais em trazer mão de obra

especializada, junto à política de branqueamento do país.

35

Em contrapartida, os refugiados advindos de outros continentes eram vistos com

preconceito e tratados com discriminação. Durante a história, a abertura de portas aos

expatriados variou. A princípio, o Brasil foi um país receptivo – mas vale ressaltar que se

tratava de uma recepção seletiva – posteriormente passou por momentos mais conservadores

em que recusou receber alguns refugiados, como na Ditadura Militar.

Noberto Bobbio (2004) defende o pensamento que as pessoas de um país não

seriam apenas cidadãos dele, mas de todo o mundo, uma ideia que tem como base a

“cosmópolis”, o Direito Cosmopolita, advindo de Emmanuel Kant. Uma tese que argumenta

pelo Direito entre Estados, que diante da globalização mais do que nunca se faz atual e

necessária para o respeito às leis internacionais e amparo aos imigrantes e refugiados. É

preciso se ter em mente que as nações e sociedade são dinâmicas, refugiar-se é um direito

e quem o exerce o faz por necessidade.

Com a promulgação da Carta Republicana de 1988, o país adotou um

posicionamento de proteção e acolhimento a todos os refugiados, independente de sua

origem. Seguindo, portanto, a tendência da universalização dos direitos humanos e respeito

à dignidade da pessoa humana. Ao analisar a integração dos refugiados a sociedade observa-

se que ainda há defasagem nas políticas públicas e no sistema de regulamentações, o qual

sempre foi moroso.

A seguir vamos fazer uma análise da legislação vigente que trata do tema.

5 A LEI 9.474/97

A Lei 9.474, promulgada em 1997, regulamentou o Estatuto do Refugiado de 1951,

colocando o Brasil como um dos primeiros países a desenvolver uma legislação específica

que tutelasse o direito dos refugiados. O Art. 1º define o conceito de refugiado como:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

O Estatuto do Refugiado no Art. 11 estabelece a criação do CONARE – Comitê

Nacional para os Refugiados – órgão responsável pela deliberação coletiva, na esfera do

Ministério da Justiça. Incubido de tratar das solicitações de refúgio, cabe ao órgão analisar os

pedidos e reconhecer a condição de refugiado, assim como a cessação ou perda dessa

36

condição.

Sobre a forma como deve ser feita essa análise, o manual de procedimentos e

critérios a aplicar para determinar o Estatuto de Refugiado (parágrafo 28) assevera que: “A

determinação do estatuto de refugiado não tem como efeito atribuir-lhe a qualidade de

refugiado, mas sim constatar essa qualidade. Uma pessoa não se torna refugiado por que é

reconhecida como tal, mas é reconhecida como tal porque é um refugiado”.

Importante registrar que o art. 8º, do Estatuto do Refugiado deixa claro que o ingresso

irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às

autoridades competentes. Trata-se de importante prescrição diante da realidade vivida pelos

refugiados durante a fuga do país de origem, que, muitas vezes, se dão de maneira ilegal,

fruto do perigo iminente.

Também é garantido o respeito aos princípios basilares do instituto do refúgio, sendo

eles o non refoulement, ou seja, a não devolução do refugiado ao país de origem (Art. 7°, §1°),

a não discriminação e o direito de toda pessoa receber asilo, refugiar-se, respeitando,

portanto, o tratamento que deve ser dado a qualquer pessoa com o status de refugiado. A lei

ainda dispõe da repatriação e do reassentamento voluntário.

Importante registrar que o art. 5º estabelece que o refugiado gozará de direitos. No

entanto, observa-se que a lei não define as plataformas de assistência social, isto é, as

políticas públicas para tratar dos expatriados que aqui se encontram. Há uma referência

singela à integração social nos artigos 43 e 44, o que é claramente insuficiente.

Com 49 artigos o Estatuto do Refugiado, diz o direito de forma breve, regulando

principalmente o sistema de solicitações, o que continua a ser o maior problema em se

tratando desse tema. As solicitações passam de 100 mil processos pendentes de decisão

pelo CONARE.

É fundamental analisar o tema refúgio pela ótica dos asylum-aseekers, e não

somente pelos refugiados já reconhecidos. Visto que os solicitantes se encontram em situação

de maior instabilidade. O Art. 47, da Lei 9.474, atribui caráter urgente aos processos de

reconhecimento da condição de refugiado, mas o que se vê é o desrespeito a essa urgência.

O Estatuto do Refugiado, ainda em vigor, não é o único diploma que trata dos

refugiados. A Lei de imigração (13.445/17) em seu artigo 121 estabelece que as suas

disposições devem ser observadas, nas situações que envolvam refugiados e solicitantes de

refúgio.

6 A LEI 13.445/2017 (LEI DE IMIGRAÇÃO) E OS REFUGIADOS

Em 24 de maio de 2017 foi promulgada a Lei 13.445 que como visto deve ser aplicada

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aos refugiados, havendo mudança significativa no que diz a respeito aos princípios e garantias

conferidos aos estrangeiros. O objetivo desta seção é analisar as alterações ocorridas e o

isso representa para os expatriados.

Em primeiro plano, pode-se observar que a nova lei reconhece o imigrante como

sujeito de direitos. Em seu art. 3°, inciso II, discorre sobre o “repúdio e prevenção à xenofobia,

ao racismo e a quaisquer formas de discriminação”, como princípios e diretrizes da política

migratória, os quais asseguram a dignidade da pessoa humana e o respeito estrangeiro.

No art. 1º há a diferenciação do imigrante, emigrante, residente fronteiriço, visitante

e apátrida, revelando uma preocupação do legislador em ser pontual na definição.

Vale ressaltar que a imigração diz a respeito da pessoa nacional de outro país que

se estabelece temporariamente ou definitivo em outra nação, buscando melhores

oportunidades de vida. Nem todo imigrante é considerado refugiado, uma vez que esse último

deixa seu país através de um deslocamento forçado para fugir de guerras ou conflitos

armados, da perseguição, seja ela política, étnica ou religiosa, ou de um desastre natural. A

característica do refugiado é a de estar em perigo constante no local onde que vivia, sendo

necessário refugiar-se em outro lugar. Isso evidencia uma maior vulnerabilidade e lhes

permite o direito ao acolhimento através do asilo.

Conforme dados divulgados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) no

“Refúgio em Números” 14 em sua 4ª edição, o Brasil reconheceu em 2018 1.086 refugiados

de diversas nacionalidades. Com isso, o país atinge a marca de 11.231 pessoas reconhecidas

como refugiadas pelo Estado brasileiro. Desse total, os sírios representam 36% da população

refugiada com registro ativo no Brasil, seguidos dos congoleses, com 15%, e angolanos, com

9%.

Do total de pedidos de refúgio feitos ao Brasil em entre os anos de 2010 e 2015, 13,2% estão entre indivíduos de 0 e 12 anos; 4,8% entre 13 e 17 anos; 42,6% entre 18 e 29 anos; 36,2% entre 30 e 59 anos e 1,8% tem mais de 60 anos. Em se tratando de gênero, 28,2% são mulheres. O Senegal lidera a lista de pedidos de refúgio, com 24,5% das solicitações, segundo dados do Comitê Nacional de Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça. (BENIGNO NÚÑEZ NOVO, 2018)

Em 2018, o CONARE criou uma Plataforma Interativa de Decisões, onde publica os

“dados sobre casos deferidos, indeferidos, cessação e perda, além de casos de extinção e

excepcionalmente arquivamento” dos refugiados.

As informações são dispostas em gráficos e tabelas dinâmicas, possibilitando o cruzamento de dados específicos como faixa etária, gênero, motivos da

14 Refúgio em números 4ª edição. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/07/Refugio-em-nu%CC%81meros_versa%CC%83o-23-de-julho-002.pdf>.

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decisão, status da decisão, nacionalidade, entre outros parâmetros. É importante a divulgação dos dados para garantir a transparência das decisões sobre refúgio no Brasil. Trata-se de uma nova e importante ferramenta de pesquisa, que poderá finalmente ter uma plataforma que sistematiza sua jurisprudência. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA)

A lei em questão é reconhecida por ter um viés humanitário e trazer a promoção e

difusão de direitos, liberdades, garantias e acesso igualitário, o art. 3°, da Lei, elenca o rol de

princípios que regem a política migratória, sendo alguns deles a universalidade,

indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, o repúdio e prevenção à xenofobia,

ao racismo e a quaisquer formas de discriminação, a não criminalização da migração, a

igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares.

Pode-se observar que a lei de migração traz a acolhida humanitária, defendendo a

dignidade da pessoa humana e assegurando os direitos individuais, independente da origem,

raça ou etnia. O dispositivo legal possui uma enorme carga principiológica posta pelo

legislador, estando em consonância com a carta constitucional e os tratados internacionais,

dos quais o Brasil é signatário. Lessa e Obregon (2018) dizem que “é inegável que o nosso

dispositivo infraconstitucional demarca verdadeira vanguarda na legislação dos direitos

humanos dos imigrantes”.

Por se tratar de uma legislação nova sua implementação ainda está sendo posta em

prática, mas já pode se afirmar que se estende aos refugiados no país, dando maior

segurança jurídica a essas pessoas.

Mas isso não é suficiente. Além de seguir as tendências internacionais, é

imprescindível que haja efetividade na aplicação das normas, somente assim as garantias

constitucionais terão plena eficácia diante do desamparo dos expatriados. Facilitar a estadia

de quem chega ao país é possibilitar a integração dos refugiados a sociedade.

A revogação do Estatuto do Estrangeiro de 1980, o qual trazia ares discriminatórios

e uma visão negativa a respeito do refugiado, é um progresso ao tratamento dado a essas

pessoas. Camila Asano, diretora de Política Externa da ONG Conectas Direitos Humanos,

afirma que:

A proposta abandona a visão de que o imigrante é uma ameaça à segurança nacional e passa a tratar o tema sob a perspectiva dos direitos humanos. O Estatuto do Estrangeiro não é apenas anacrônico, mas também discriminatório. Sua substituição era urgente.

A lei que se trata esse artigo dispôs sobre a legalização dos refugiados no país, o

que culminou no aumento do número de regulamentações, o índice de registro de imigrantes

cresceu 50% em 2018, conforme dados do Ministério do Trabalho. Um avanço significativo

diante da burocratização e da morosidade do sistema de regulamentações enfrentado por

39

quem busca o Brasil como destino para o asilo (FONSECA, 2018).

Ainda traz o tratamento igualitário a todos que vivem no Brasil, estendendo o artigo

5º aos estrangeiros, o que lhes assegura as garantias fundamentais, de acordo, portanto, com

a égide do universalismo dos direitos humanos. Devem os refugiados gozar dos mesmos

direitos assegurados as brasileiros natos, sejam eles econômicos, sociais, culturais ou

previdenciários. As autoras Batista e Bonini, afirmam:

Garantir aos estrangeiros – em igualdade com os nacionais – o direito à vida, saúde, previdência e assistência social é uma medida de solidariedade (princípio insculpido no art. 3º, inciso I, da CF/88). Não se trata de tirar dos nacionais, nem de empobrecer os brasileiros. (BATISTA e BONINI)

Entre as inovações trazidas pela nova lei há a tipificação legal do art. 232-A inserido

no Código Penal Brasileiro que discorre sobre a promoção de migração ilegal, com a previsão

de pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Além do aumento da pena quando

o crime é cometido com violência; ou a vítima é submetida à condição desumana ou

degradante. A tipificação desse crime tende a coibir as imigrações ilegais, que submetem os

refugiados a condições degradantes, além da exploração sexual e os abusos a mulheres e

crianças, que sofrem a revitimização pela maior vulnerabilidade.

Já não se sustentam o monopólio estatal da titularidade de direitos nem os excessos de um positivismo jurídico degenerado, que excluíram do ordenamento jurídico internacional o destinatário final das normas jurídicas: o ser humano. Reconhece-se hoje a necessidade de restituir a este último a posição central – como sujeito do direito tanto interno como internacional – de onde foi indevidamente alijado [..]) Em nossos dias, o modelo westfaliano do ordenamento internacional afigura-se esgotado e superado. [...] A titularidade jurídica internacional do ser humano, tal como a anteviam os chamados fundadores do direito internacional (o direito das gentes), é hoje uma realidade. (A.A. CANÇADO TRINDADE IN A HUMANIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL, p. 26).

A lei 9.474/97 e a nova lei de imigração convivem, sendo essa última mais geral,

enquanto o Estatuto do Refugiado é lex especialis, a qual regulamenta o órgão responsável

pelas solicitações e os procedimentos para tal. A extensão dos direitos deve abarcar os

refugiados, assim como os princípios e garantias postulados pela lei de migração, aplicando

a lei mais benéfica aos expatriados no que couber.

Observa-se que o novo arcabouço legal traz mais garantias e políticas mais definidas

a cada grupo que chega ao país. Sua aplicabilidade aos refugiados assegura uma maior

proteção, uma vez que traz os direitos e princípios norteadores do assunto. Espera-se que

traga avanços a realidade dos refugiados e que continue a facilitar a concessão dos pedidos

de asilo, uma vez que é onde se encontra o maior problema – a morosidade do CONARE em

realizar as análises.

40

Vale dizer que a quantidade de refugiados que conseguem retornar aos seus países

é muito baixa, em média o asilo dura 25 anos, devido a instabilidade que perdura por anos

nos países em desordem política e econômica. Tendo em vista esta média é imprescindível

que haja a integração do refugiado a sociedade em que se encontra, para que tenha

estabilidade e segurança.

CONCLUSÃO

A história nos mostra que a mobilidade humana esteve presente durante os

acontecimentos e desastres naturais que atemorizaram a vida de povos que tiveram que se

deslocar pelo mundo. O desenvolvimento de leis foi imprescindível para a proteção a essas

pessoas e a constituição de um sistema internacional de proteção para garantir dignidade

humana aos refugiados.

Vivemos hoje um período em que o deslocamento de pessoas que cruzam as

fronteiras se acelerou, intensificando os fluxos migratórios nos últimos anos no território

brasileiro. Isso suscitou questionamento acerca da efetividade da legislação vigente no nosso

país e se há o devido cumprimento dos direitos e garantias previstos nas leis que regem o

tema.

Diante de uma sociedade mundial globalizada é fundamental entender os espaços

como sendo de todos. A mistura de povos em um local expressa nada mais que tendência

mundial em que a integração é um traço cada vez mais forte nas diferentes culturas. Não

cabem pensamentos xenofóbicos a uma nação que preza pelos direitos humanos em suas

Cartas Constitucionais.

É preciso que as ações governamentais sejam capazes de integrar o expatriado a

sociedade, e para isso é preciso dar acesso, principalmente, ao emprego e a educação.

O Estatuto do Refugiado estabelece que o CONARE é o órgão responsável por

cuidar das solicitações de refúgio, assim como sua estrutura e o procedimento. Entretanto

observa-se um acúmulo se solicitações sem resolução, que demoram anos para serem

analisadas e dar um retorno ao refugiado que aguarda a regulamentação do asilo.

Em síntese, não há uma efetividade do instituto criado em 1997, vez que ele não

funciona respeitando o princípio de uma duração razoável do processo. É preciso olhar a

situação de refúgio pela perspectiva de quem ainda não teve acesso à estabilidade do status

de refugiado, vez que são essas pessoas que mais estão indefesas, sem segurança e certeza.

Quando não possuem o documento de regulamentação as dificuldades para conseguir

trabalho ou matricularem-se em um curso aumentam.

Em relação à Lei 13.445/17, pode-se concluir que é uma legislação nova que pode

ser aplicada aos refugiados na extensão dos direitos e princípios estabelecidos aos

41

estrangeiros. A lei traz mecanismos avançados, dispõe a respeito das diretrizes para as

políticas públicas, além de regular a entrada e estadia do migrante. Ambas as leis

mencionadas convivem na legislação brasileira, sendo a lei 9.474/97 específica sobre os

refugidos, enquanto a lei de migração estende-se ao imigrante, emigrante, residente

fronteiriço, visitante e apátrida.

Versa sobre o respeito aos direitos humanos e o combate a toda forma de

preconceito, discriminação e xenofobia. Além de estender as garantias fundamentais, dando

um tratamento igualitário a todos que residem no país.

Mas ainda é preciso avançar com o desenvolvimento de políticas públicas não só

pelo Estado, mas também pelas instituições da sociedade para que possibilitem sua

concretização.

A abertura de programas em universidades que direcionem certa quantidade de

vagas aos refugiados, ou regras que facilitem o reconhecimento de diplomas de outros países

é extremamente importante. Assim como a reserva de vagas de postos de trabalho e cursos

profissionalizantes aos refugiados. Além disso, seria interessante o desenvolvimento de

campanhas que informassem e conscientizassem a população acerca da vulnerabilidade do

refugiado e da importância de integra-lo a sociedade como sujeito de direitos.

Em resumo, o que vemos hodiernamente é um fluxo muito grande de refugiados e

imigrantes que buscam uma vida melhor e segurança. A questão que paira nesse contexto é

se esta segurança está sendo resguardada junto aos outros direitos. A pessoa humana deve

ser o centro da política migratória brasileira, assim como o tratamento a ser dado, para que

se faça valer os diplomas legais que asseguram acima de tudo a salvaguarda dos direitos

humanos e da dignidade da pessoa humana.

Buscar refúgio é direito de todo ser humano. O Brasil conta com aparato legal

avançado quanto ao tema, o qual regula a entrada dos refugiados e estende os direitos

fundamentais igualmente. O que nos falta é uma aplicação mais eficaz da legislação, com a

análise de solicitações de refúgio e a melhoria no processo de integração local dos refugiados

inserindo-os nas instituições de ensino e trabalho para que consigam se estabelecer de forma

digna no país.

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SOBERANIA SUPRACONSTITUCIONAL DOS DIREITOS HUMANOS NA ORDEM:

UMA ANALISE CRITICA DO PARADIGMA DE CAPACIDADE DAS PESSOAS

COM DEFICIÊNCIA

PRAZERES, Paulo Joviano Alvares dos15 PRAZERES, Karla Luzia Alvares dos16

RESUMO: Ao longo da história, a deficiência foi percebida como coisa sobrenatural e tratada como ameaça social, tendo as pessoas deficientes sido excluídas da sociedade, a exemplo do que ocorria com os loucos, leprosos ou aqueles considerados delinquentes. Observa-se que a pessoa com deficiência fora segregada de uma sociedade capitalista por não fazer parte de um modelo de produção, estando, portanto, na mira de uma sociedade disciplinar. Para Foucault as sociedades disciplinares, seriam um desdobramento de uma necessidade do modelo capitalista de produção, o pensador francês desvela um sistema de segregação dos ditos incorrigíveis em nome e pela defesa da sociedade. Verifica-se uma mudança de paradigma na atenção e respeito à pessoa com deficiência, que passou de objeto de estudo num modelo médico para ser compreendida enquanto protagonista de um contexto social, bem como ambiental, de verdadeira exclusão. Atesta-se que a experiência da deficiência não

15 Doutorando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco UNICAP; Doutorando em Ciências da Educação pela Universidad Autonoma de Asuncion UAA; Doutorando em Direito e Ciências Sociais pela Universidad Nacional de Cordoba UNC; Mestre em Direito pela Faculdade Damas da Instrução Crista FADIC; Mestre em Ciências da Educação pela Universidad Del Sol UNADES; Mestre em Direito das Relações Internacionais pela Universidad de la Empresa UDE; Especialista em Direito Internacional pela Faculdade Católica Paulista FACAP; Especialista em Filosofia e Sociologia pela Faculdade Venda Nova do Imigrante FAVENI; Especialista em Direito Tributário pela Faculdade INESP; Especialista em Direito Publico pela Faculdade Mauricio de Nassau FMN; Graduado no curso de magistratura e demais carreiras jurídicas pela Escola de Magistratura de Pernambuco ESMAPE; Bacharel em Ciências Contábeis pela Faculdade UNIBF; Bacharel em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Internacional UNINTER; Licenciado em Pedagogia pela Faculdade FACESE; Licenciado em Filosofia pela Faculdade Entre Rios do Piauí FAERPI; Graduado em Teologia pela Faculdade de Teologia Integrada FATIN; Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco UNICAP; Pesquisador do grupo de estudos em Educação e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba UFPB; Membro Associado e Avaliador do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI; Presidente da Academia de Letras Jurídicas de Olinda; Advogado, Consultor Jurídico, Professor Universitário e de pós-graduações e cursos preparatórios, Presidente da Subsecção da OAB Olinda-PE. Centro Universitário Cidade Verde UNIFCV 16 Bacharela em Direito pelas Faculdades Integradas Barros Melo. Bacharela em Ciências Contábeis pela Faculdade UNIBF. Mestranda em Direito pela Faculdade Damas da Instrução Cristã. Mestranda em Direito Internacional pela Universidad Autónoma de Asunción. Pós-graduada em Direito Público pela Faculdade Maurício de Nassau; Estudos de Perícias Forenses, Criminologia e Medicina Legal; Direito Tributário; e Saúde Pública com Ênfase em PSF pela Faculdade INESP. Aperfeiçoamento Jurídico no Curso de Preparação à Magistratura e Carreiras Jurídicas pela Escola da Magistratura de Pernambuco ? ESMAPE. Presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de Olinda - AATO. Diretora Geral da Escola Municipal de Advocacia da OAB-OLINDA. Presidente da Comissão de Carreiras Jurídicas da Academia Brasileira de Ciências Criminais. Diretora Secretária Geral na OAB-PE Subeseção Olinda. Aprovada na seleção pública, exercendo a função de Juíza Leiga do TJPE (2008-2012). Foi presidente da Comissão da Mulher Advogada (2015-2016). Foi Vice-presidente da Comissão do Direito do Trabalho (2016-2018). Foi Representante da Caixa de Assistência dos Advogados de Pernambuco (CAAPE) na Subseccional de Olinda (2015-2018). Membro fundador da Academia Olindense de Letras Jurídicas. Membro da Academia Brasileira de Ciências Criminais. Membro da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica. Advogada, Consultora Jurídica, Professora Universitária e de Pós-graduações, Conciliadora e Mediadora inscrita no Cadastro Nacional de Conciliadores e Mediadores do Conselho Nacional de Justiça.

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é resultado de uma lesão, dado isento de valor, e sim, de um ambiente hostil à diversidade, sendo, portanto, o resultado da interação de corpo em uma sociedade planejada para segregar os desvios da norma.

PALAVRAS-CHAVE: deficiência; capacidade; direito fundamental; direitos humanos.

ABSTRACT: Throughout history, disability has been perceived as something supernatural and treated as a social threat, with disabled people being excluded from society, as was the case with the crazy, lepers or those considered delinquents. It is observed that the person with disabilities was segregated from a capitalist society for not being part of a production model, and is therefore in the crosshairs of a disciplinary society. For Foucault, disciplinary societies would be an unfolding of a need for the capitalist model of production, the French thinker unveils a system of segregation of the incorrigible sayings in the name and for the defense of society. There is a paradigm shift in the care and respect for people with disabilities, which has gone from being the object of study in a medical model to being understood as the protagonist of a social, as well as an environmental context, of true exclusion. It is attested that the disability experience is not the result of an injury, a value-free data, but of an environment hostile to diversity, being, therefore, the result of the interaction of the body in a society designed to segregate deviations from the norm .

KEYWORDS: disability; capacity; fundamental right; human rights.

1 INTRODUÇÃO

Ao longo da história, a deficiência foi percebida como coisa sobrenatural e tratada

como ameaça social e as pessoas deficientes foram excluídas da sociedade, a exemplo do

que ocorria com os loucos, leprosos ou aqueles considerados delinquentes.

Observa-se que a pessoa com deficiência fora segregada de uma sociedade

capitalista por não fazer parte de um modelo de produção, estando, portanto, na mira de uma

sociedade disciplinar.

A experiência da deficiência não é resultado unicamente de uma lesão, mas do

ambiente social hostil à diversidade física. A lesão é um dado isento de valor, ao passo que a

deficiência é o resultado da interação de um corpo com lesão em uma sociedade

discriminatória, planejada para segregar os “desvios” da norma. (DINIZ, 2007, p.17)

Verifica-se uma mudança de paradigma na atenção e respeito à pessoa com

deficiência, que passou de objeto de estudo num modelo médico para ser compreendida

enquanto protagonista de um contexto social, bem como ambiental de verdadeira exclusão.

O advento da Estatuto da Pessoa com Deficiência é marco na legislação pátria de

uma mudança juspositiva no respeito à dignidade da pessoa deficiente, alterando o Código

Civil de 2002 e descontruindo a teoria das (in)capacidades.

47

2 DIREITOS HUMANOS, ORIGEM E APLICABILIDADE

A afirmação de que todos os seres humanos possuem “direito a ter direitos” só é

possível pela existência dos direitos humanos. A nova visão atribuída aos direitos humanos é

fruto da internacionalização, que introduz a este núcleo de direitos características próprias. A

partir da Segunda Guerra Mundial, a tutela dos direitos humanos deixou de ser apenas uma

preocupação nacional, com mecanismos de proteção local, para passar a uma rede

internacional de proteção, constituindo um dos temas centrais do direito internacional

contemporâneo.

O direito internacional surgiu como proposta de linguagem universal, principalmente

para possibilitar a salvaguarda desses direitos em todo o globo, o que culminou na

flexibilização da soberania dos Estados. Foram criados sistemas de proteção, dentre os quais

se encontra o Sistema Regional Interamericano de Direitos Humanos, composto pela

Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Indaga-se de onde provém o embasamento para que alguém (desprovido de

constituição de Estado e desprovido de domínio sobre um território e um povo, ou seja,

desprovido de soberania) possa decidir conflitos em última instância pretendendo impor as

suas decisões a todas as pessoas envolvidas, inclusive Estados nacionais soberanos. O

embasamento só poderia repousar na manifestação de vontade anterior de quem ostenta

esses atributos de soberania.

3 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E A RELATIVIZAÇÃO DA

SOBERANIA DO ESTADO

O direito internacional tem como característica basilar a inexistência de uma

instituição responsável pela criação de leis que possa ser considerada hierarquicamente

superior aos outros Estados para imposição de suas normas, ou seja, não há no direito

internacional uma organização legislativa soberana supranacional. Essa característica é a

principal diferença com relação ao Direito Interno, onde o Estado monopoliza o uso da força

física, aliada aos poderes de soberania e determinação de normas, controlando o seu

cumprimento através dos poderes que lhe são outorgados.

O Direito Internacional funciona como proposta de linguagem universal, pois reflete

a sociedade que ele regula, avançando conforme as relações entre os membros dessa

sociedade e, por isso, traz a possibilidade de suas normas serem consideradas válidas para

todo o globo. Destarte, difere-se do Direito Interno, tanto no aspecto formal, quanto material.

Com relação ao primeiro aspecto “[...] a diferença da sociedade internacional para o

Direito Interno baseia-se na sua estrutura, pelo fato de ali não existir um território determinado,

dentro do qual vive certa população, coordenada por um poder soberano” (MAZZUOLI, 2011,

48

p. 49). Quanto ao segundo, a sociedade internacional difere-se da sociedade de pessoas sob

a tutela do direito interno, pois “[...] as matérias que disciplina provém de um conjunto de

Estados com poderes soberanos limitados (em razão da própria ideia de descentralização), e

não de uma vontade única eleita pelos seus sujeitos para reger-lhes a conduta [...]”

(MAZZUOLI, 2011, p. 50). Em relação a essa comparação, as diferenças entre o Direito

Internacional e o Direito Interno residem, sobretudo, em torno da soberania, que está

intrinsecamente ligada à condição de Estado.

A soberania é um dos elementos caracterizados do Estado, assim como o território

e o povo (DALLARI, 2010). Pela concepção clássica a soberania caracteriza-se como o poder

absoluto e perpétuo da República (BOBIO, 2000, p. 96). O conceito de soberania acabou se

adaptando conforme os interesses e desenvolvimento do Estado ao passar dos séculos.

Atualmente, a soberania já não é mais entendida no seu sentido absoluto, pelo contrário, é

tomada como dependente da ordem jurídica internacional.

A partir da Segunda Guerra Mundial, a tutela de alguns direitos deixou de ser apenas

uma preocupação nacional, com mecanismos de proteção local, para passar a uma rede

internacional de proteção. O direito internacional dos direitos humanos, historicamente, é

reflexo de um processo de violações verificado após os conflitos mundiais. Os inúmeros

abusos ocorridos naquele período contribuíram para a preocupação global em proteger esses

direitos enquanto marco jurídico-institucional de uma teoria geral dos direitos humanos.

A Declaração Universal de 1948 gerou uma modificação sintética no conceito de

soberania do Estado e na própria atribuição de direitos ao indivíduo, que passou a ser

conhecido na comunidade internacional como sujeito de direitos (LAMARÃO NETO, 2012).

Concebeu-se no âmbito da comunidade nacional a ideia de que somente com a garantia,

observância e respeito dos direitos humanos além dos limites territoriais de uma nação

(observado seu universalismo) é que a tutela de direitos catalogados na Declaração e

condensados sob o mesmo valor de proteção somente alcançaria o grau de efetividade

desejável.

A partir da internacionalização fez-se necessária a proteção dos direitos humanos

em escala mundial. Assim, com o objetivo de salvaguardá-los surgem os sistemas de proteção

de ordem global e regional, a fim de estabelecer aos Estados Parte determinações para sua

garantia e efetivação. Dentre eles, destacar-se-á o Sistema Interamericano de Direitos

Humanos (Regional Americano), sobre o qual cinge-se o estudo.

49

4 SEGREGAÇÃO CONSCIENTE (POR QUE NÃO, INCONSEQUENTE)

Para Foucault as sociedades disciplinares seriam um desdobramento de uma

necessidade do modelo capitalista de produção. O pensador francês desvela um sistema de

segregação dos ditos incorrigíveis em nome e pela defesa da sociedade.

Foucault elenca em Os anormais, os elementos constitutivos desse grupo, tal como,

“o monstro humano”, “o indivíduo a corrigir” e “o onanista”. “O indivíduo anormal”, que, desde

o fim do século XIX, tantas instituições, discursos e saberes levam em conta, deriva, ao

mesmo tempo, da exceção jurídico-natural do monstro, da multidão de incorrigíveis presos

nos aparelhos de recuperação e do universal segredo das sexualidades infantis.”

(FOUCAULT, 2014, p. 270)

O autor ainda destaca a teoria da degenerescência, como justificação social e moral,

a todas as técnicas de identificação, de classificação e de intervenção sobre os anormais: a

organização de uma rede institucional complexa que, nos confins da medicina e da justiça,

serve, ao mesmo tempo, como estrutura de “acolhimento” para os anormais e como

instrumento para a “defesa” da sociedade; [...]. (FOUCAULT, 2014, p. 270)

Em A loucura e a sociedade, Foucault descreve uma historiografia da loucura onde

aponta o século XVII como marco do confinamento do louco, todavia ressalva o autor: “Mas é

interessante observar que não é o louco, como louco, que foi excluído: o que foi excluído é

toda uma massa de indivíduos irredutíveis à norma do trabalho (2014, p. 331-332). A

segregação, exclusão, confinamento e internamento dessa massa, não diz respeito ao

confinamento como doentes e sim, como incapazes de integrar-se à sociedade” (FOUCAULT,

2014, p. 332).

Daí porque as instituições hospitalares antes do século XVIII eram, essencialmente,

instituições assistenciais, ou mesmo asilares, de assistência aos pobres, como também de

separação e exclusão. Ou seja, o objetivo não era a “cura” de doentes e sim mantê-los longe

do convívio social.

5 O MODELO MÉDICO VERSUS O MODELO SOCIAL DE DEFICIÊNCIA

O modelo médico considera a deficiência como um problema a ser resolvido através

de tratamento individual prestado por profissionais com vistas a se obter a cura ou a

adaptação da pessoa ao ambiente. Em outras palavras, pelo modelo médico, cabe à pessoa,

e somente a ela, a tarefa de tornar-se apta a participar da sociedade. Para tanto, seu corpo

precisa ser “consertado”, “adaptado” ou pior, “normalizado” para poder funcionar

adequadamente em um ambiente social tal qual existe. O modelo social da deficiência

começou na década de 1960, no Reino Unido, em contraponto às abordagens biomédicas. O

50

modelo social sustenta que a deficiência não deve ser entendida como um problema

individual, mas como uma questão eminentemente social e transfere para a sociedade a

responsabilidade pelas desvantagens enfrentadas pelos indivíduos deficientes. (DINIZ, 2007,

p. 15).

O modelo social da deficiência atribui novos significados às palavras como lesão e

deficiência, entendendo-se lesão como a ausência parcial ou total de um membro, de um

órgão ou a existência de um defeito num mecanismo corporal, já deficiência, seria a

desvantagem ou restrição para exercer uma atividade causada pelo meio ambiente social

hostil a todos os que têm lesões e os exclui da sociedade. De acordo com esse conceito, uma

pessoa pode ter lesões e não experimentar a deficiência, se a sociedade estiver ajustada para

incorporar a diversidade. Para o modelo médico a lesão levava à deficiência, para o modelo

social, são os sistemas sociais excludentes que levam as pessoas com lesões à experiência

da deficiência. (DINIZ, 2007, p. 17)

Conforme afirma Romeu Sassaki (1997, p. 28), o modelo médico recebia atenção até

mesmo daqueles que pretendiam defender os direitos das pessoas com deficiência, para tanto

aponta o artigo 7º da Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, da Organização das

Nações Unidas (ONU), de 1975:

As pessoas deficientes têm direito a tratamentos médico, psicológico e funcional, inclusive aparelhos protéticos e ortóticos, à reabilitação física, à reabilitação social, à educação, ao treinamento e reabilitação profissionais, à assistência ao aconselhamento, ao serviço de colocação e a outros serviços que lhes possibilitarão desenvolver suas capacidades e habilidades ao máximo e acelerarão o processo de sua integração ou reintegração social.

Para o autor, o modelo médico da deficiência corroborou na relutância da sociedade

em reconhecer que é necessário “mudar suas estruturas e atitudes para incluir em seu seio

as pessoas portadoras de deficiência” porque esse modelo defende que “bastaria prover-lhe

[à pessoa com deficiência] algum tipo de serviço” para solucionar seu “problema”. (SASSAKI,

1997, p. 29)

O modelo social, por outro lado, esclarece que a sociedade também tem

responsabilidades na eliminação das barreiras que impedem a participação da pessoa com

deficiência, sendo, portanto, a deficiência não um atributo do indivíduo, mas um complexo de

condições que constituem um ambiente social segregador.

Pelo modelo social, não é a deficiência que determina o grau de participação de uma

pessoa na sociedade. O grau de participação vai, isto sim, depender da capacidade

(habilidade de acordo com o ambiente) e do desempenho possível da pessoa, num

determinado contexto social. De tal modo, a deficiência sempre teve significados construídos

histórica, ideológica e simbolicamente. Como resultado desses significados sempre

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carregados de preconceitos, às pessoas com deficiência sempre foi atribuído um baixo valor

social, acarretando sua marginalização e exclusão social. (CRESPO, 2011, p. 17)

6 A CONVENÇÃO DA ONU E O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Homologada pela Organizações das Nações Unidas em 2006, a Convenção

Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência representa uma conquista em

prol da concretização de direitos e garantias relativos às pessoas com deficiência. A

Convenção consolida o dever da sociedade de eliminar as barreias que dificultam, ou mesmo

que impeçam, a participação social da pessoa com deficiência.

O vetor da referida Convenção é a vida digna da pessoa deficiente. Nesse sentindo,

são colocadas regras para promoção da autonomia e independência individual do cidadão,

comprometendo os Estado a implementar medidas necessárias a integração das pessoas

com deficiência à comunidade.

O Brasil tornou-se signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das

Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo em março de 2007. A promulgação

dos termos da Convenção e do referido Protocolo ocorreu por meio do Decreto nº 6.949/2009,

conforme rito qualificado, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Por consequência, alcançou assim, status de norma constitucional. Desde então,

diversos projetos de lei foram objeto de discussão no âmbito das casas legislativas do país,

culminando, na esfera federal, na elaboração da Lei nº 13.146/2015, conhecida como Lei

Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa com Deficiência.

A entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência traz avanços na proteção

da dignidade da pessoa com deficiência, tendo essa nova legislação alterado, principalmente,

o Direito Civil quando trata da Teoria das incapacidade, o que também repercute em outros

institutos, como o casamento, a interdição e a curatela, que contudo, não são objetos do

presente trabalho.4

52

7 DAS MUDANÇAS NO SISTEMA DAS (IN)CAPACIDADES

A personalidade tem sua medida na capacidade, que é reconhecida através do art.

1º do Código Civil de forma universal, “toda pessoa é capaz de direitos e deveres”, não se

fazendo qualquer distinção, em consonância com os postulados constitucionais.

Todo ser humano, desde o seu nascimento até a sua morte, tem capacidade para

ser titular de direitos e obrigações na ordem civil, não significando, todavia, que todos possam

exercer pessoalmente tais direitos. Para aqueles considerados incapazes, embora a lei confira

a prerrogativa de serem titulares de direitos, nega a possibilidade de pessoalmente exercê-

los. Para Silvio Rodrigues (2003, p. 39), “incapacidade é o reconhecimento da inexistência,

numa pessoa, daqueles requisitos que a lei acha indispensáveis para que ela exerça seus

direitos”.

Importante notar que a doutrina, a exemplo do civilista citado, asseverava um sentido

protetivo na teoria das incapacidades a ponto de destacar: “O legislador, ao arrolar entre os

incapazes referidas pessoas, procura protegê-las” (RODRIGUES, 2003, p. 39). Sem nenhum

demérito ao doutrinador, sua postura não mais pode ser tolerada, não se busca proteger a

pessoa dita vulnerável e sim tutelar seus direitos.

Na explicação de Menezes (2014, p. 68):

Toda restrição à capacidade de agir pode trazer prejuízos graves aos direitos de personalidade e à dignidade da pessoa, na medida que afeta a liberdade para a condução da vida e as escolhas de cunho existencial.

O Estatuto da Pessoa com deficiência consagrou o giro conceitual relativo à

deficiência, que se dissocia da noção de incapacidade e, em uma perspectiva constitucional

isonômica, compreende a pessoa com deficiência como sujeito com plena capacidade legal.

Nesse sentido, “A pessoa e não mais aquele sujeito de direito neutro, anônimo e

titular de patrimônio, constitui o valor central do ordenamento jurídico.” (MENEZES, 2014, p.

58).

O artigo 3º do Código Civil Brasileiro, que anteriormente instituía que a incapacidade

absoluta era atribuída aos menores de dezesseis anos de idade, aos que careciam de

discernimento para a prática de atos da vida civil, em razão de enfermidade ou deficiência

mental, e aos que não pudessem exprimir sua vontade, mesmo que por causa transitória, hoje

apenas conta com a primeira dessas hipóteses. Em outras palavras, o texto atual do art. 3°

do Código Civil com redação dada pelo Estatuto, considera absolutamente incapazes apenas

os menores de dezesseis anos.

Redação anterior do artigo do CC:

53

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Redação atual do artigo do CC: Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015).

Assim, no Direito Brasileiro, com a entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015 – Estatuto

da Pessoa com Deficiência, o único critério para incapacidade absoluta passa a ser o etário

(menores de 16 anos), não havendo mais qualquer fundamento legal que autorize o

reconhecimento da incapacidade absoluta por qualquer deficiência. Todas as pessoas com

deficiência, das quais tratava o comando anterior, passam a ser, em regra, plenamente

capazes para o Direito Civil, o que visa a sua plena inclusão social, em prol de sua dignidade.

Já o artigo 4º do Código Civil, ao fixar as hipóteses de incapacidade relativa, retira a

previsão de incapacidade pelo discernimento reduzido, proveniente de deficiência mental ou

desenvolvimento mental incompleto. Por outro lado, a hipótese de impossibilidade de exprimir

a vontade, por causa transitória ou não, é incluída no rol de incapacidades relativas.

Redação anterior do artigo do CC: Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV – os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial. Redação atual do artigo do CC: Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência) I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência) III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência). IV – os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)

O inciso II do supracitado dispositivo foi modificado de forma considerável não

fazendo mais referência às pessoas com discernimento reduzido, que não são mais

consideradas relativamente incapazes, como antes estava disposto. Estando mantidas no

diploma as menções aos ébrios habituais (entendidos como os alcoólatras) e aos viciados em

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tóxicos, que continuam dependendo de um processo de interdição relativa, com sentença

judicial, para que sua incapacidade seja reconhecida.

Também foi alterado o inciso III do art. 4º do Código Civil, sem mencionar mais os

excepcionais sem desenvolvimento completo. A nova redação dessa norma passa a enunciar

as pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir vontade, o que

antes estava previsto no inciso III do art. 3º como situação típica de incapacidade absoluta.

Agora a hipótese é de incapacidade relativa.

Isto posto, com a readequação do sistema de incapacidades, o Estatuto assegura à

pessoa com deficiência o exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com

as demais pessoas. Este é o conteúdo dos artigos 84 e seguintes do Estatuto, os quais fixam

importantes diretivas para o panorama atual, in verbis:

Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. § 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei. § 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada. § 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. § 4o Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano. Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. § 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. § 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. § 3º No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.

Através da análise do Código Civil de 2002 com as alterações sofridas a partir da

edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, observa-se que a o sistema de incapacidades

engessado em um modelo rígido de enquadramento da pessoa como capaz, relativamente

incapaz e absolutamente incapaz, passa a ser pelo menos mais humano, refletindo a partir

das circunstâncias do caso concreto e no propósito maior, qual seja, a inclusão social da

pessoa com deficiência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que, a tutela de direitos voltada para a pessoa com deficiência no

ordenamento pátrio é exemplo do fenômeno da jusfundamentalidade, ou seja, atrair a uma

situação jurídica existencial o caráter de fundamentalidade (DIAS, 2014, p. 33). A pessoa com

deficiência passa a ter atenção especial do Estado e seus direitos situam-se como posições

jurídicas jusfundamentais.

A noção de fundamentalidade constitui uma categoria ligada à atribuição de uma

especial dignidade na proteção de um direito, o objeto de estudo do presente trabalho é

exemplo desse fenômeno. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência, ao integrar o ordenamento com status de norma constitucional, passa a ser

indiscutivelmente direito fundamental mesmo estando fora do catálogo, como dispõe do art.

5º, § 2º da Constituição Federal. A fundamentalidade desse direito resta configurada para

além do âmbito formal, sendo materialmente fundamental, pelo escopo de proteção a

dignidade e autonomia da pessoa com deficiência.

A dissociação entre capacidade e deficiência já aponta como o reconhecimento dos

direitos de personalidade devidos a todas as pessoas. De toda sorte, a mudança de

paradigma não pode ser apenas legal, mas sim, deve ser moral, sendo necessário um giro na

organização social e ambiental que prime pelo respeito às diferenças e promoção do exercício

da cidadania.

REFERÊNCIAS

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56

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SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1999.

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OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONALISTAS DO PENSAMENTO POLÍTICO DE

ALEXIS DE TOCQUEVILLE

LEITE, Leonardo Delatorre17 JUNQUEIRA, Michelle Asato18

RESUMO: O pensamento político do filósofo francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) é imprescindível para uma compreensão holística do regime democrático e do Estado de Direito, cujas dimensões axiológicas e jurídicas encontram-se pautadas no constitucionalismo, compreendido enquanto uma cosmovisão de defesa categórica da limitação do poder político do Estado em face dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Não obstante o ânimo popular pelos preceitos da democracia, os estudos das obras de Tocqueville ainda são limitados e não muito conhecidos. A importância desses estudos demonstra-se necessária, sobretudo para a população brasileira, pois a conjuntura política do Brasil encontra-se marcada por profundas crises da democracia e do regime representativo. Sendo assim, os escritos de Tocqueville servem de grande apoio para compreensão das fragilidades democráticas e dos métodos para superá-las. Portanto, o respectivo trabalho acadêmico objetiva promover uma análise sintética dos fundamentos constitucionalistas presentes nos escritos do filósofo francês, através de uma releitura e sistematização do pensamento nuclear do autor político em questão, tendo em mente o intuito de reforçar os preceitos do constitucionalismo e do Estado democrático de Direito por meio da solução do seguinte problema “O que Tocqueville entende por democracia?”.

PALAVRAS CHAVE: Tocqueville; constitucionalismo; democracia; regime representativo.

ABSTRACT: The political thought of the French philosopher Alexis de Tocqueville (1805-1859) is essential for a holistic understanding of the democratic regime and the rule of law whose axiological and legal dimensions are based on constitutionalism, understood as a worldview that categorically defends the limitation of political power of the state when it concerns rights and fundamental guarantees of citizens. Despite the popular spirit of the precepts of democracy, the studies of the works of Tocqueville are still limited and not as well known as it should be. The importance of these studies is necessary, especially for the Brazilian population, because the political conjuncture of Brazil is marked by deep crises of democracy and representative regime. Thus, the writings of Tocqueville serve as a great support for understanding democratic weaknesses and methods to overcome them. Therefore, the respective academic work aims to promote a synthetic analysis of the constitutionalist foundations present in the writings of the French philosopher through a re-reading and systematization of the nuclear thought of the political author in question, with the intention of strengthening the precepts of constitutionalism and the democratic rule of law by solving the following question: "What does Tocqueville mean by democracy?”.

KEYWORDS: Tocqueville; constitutionalism; democracy; representative regime.

17 Graduando em Direito e história pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bolsista PIBIC- CNPq (2018-2020). Autor e organizador do livro "Cosmovisão Cristã Aplicada", publicado pela Editora CRV. Pesquisador no programa institucional de iniciação à pesquisa científica- PIVIC. 18 Doutorado em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestrado em Direito Político e Econômico pela UPM. Especialização em Direito Constitucional. Atualmente é professora do curso de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e Coordenadora de Pesquisa da Faculdade de Direito e Vice-Coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa com Humanos.

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1 INTRODUÇÃO

Alexis de Tocqueville (1805-1858), cujos escritos apresentam constantes diálogos e

intercessões com o conservadorismo de Edmundo Burke (1729-1797), foi um importante

expoente do liberalismo, enquanto uma corrente de pensamento de defesa holística da

liberdade. No contexto conturbado da Europa do século XIX, Tocqueville realiza uma viagem

aos Estados Unidos da América. Em seus estudos nesse país, o autor desenvolve seus

argumentos acerca do regime democrático. Primeiro, começa a entender a democracia

enquanto uma tendência inevitável, cuja amplitude sempre deve servir de estímulo ao estudo

minucioso da essência do próprio regime democrático, com o intuito de compreender suas

características, tendências e possíveis contradições.

Estando profundamente convicto de que a revolução democrática que somos testemunhas é um fato irresistível, contra o qual não seria desejável, nem sensato, lutar, talvez cause espanto o fato de eu dirigir tantas vezes neste livro palavras tão severas às sociedades democráticas criadas por esta revolução. Responderei simplesmente que foi por não ser um adversário da democracia que quis ser sincero a seu respeito. (TOCQUEVILLE, 2001, p.484)

Sendo assim, pode-se concluir que Tocqueville procura realizar um estudo profundo

e estrutural da democracia, bem como de seus impactos na natureza humana, na cosmovisão

social e, principalmente, suas implicações na esfera de organização política. Conforme

disposto na citação supramencionada, o autor francês reconhece que o regime democrático

apresenta boas e más tendências, cabendo ao cidadão desenvolver as potencialidades

positivas da liberdade civil. Destarte, a liberdade encontra-se indissociável da

responsabilidade.

(...) Tocqueville reserva ao homem democrático um papel crucial: não podendo inverter a marcha do tempo e impedir que a condição social seja cada vez mais a igualdade democrática, ele deve todavia saber aproveitar as potencialidades positivas da nova condição democrática e moderar as negativas, de forma a poder ser, simultaneamente, igual e livre como os seus concidadãos. (FRANCO, 2014, p.22)

Alexis de Tocqueville realiza uma abordagem crítica e honesta da democracia, pois

ele mesmo se coloca como um “defensor e amante da liberdade” e, por este motivo, preocupa-

se com a preservação de um ambiente político centrado nos preceitos da autonomia da

vontade e dos direitos fundamentais. “O que nos permite afirmar sem rodeios que estudar

Tocqueville é estudar a democracia. Que entender o seu pensamento é entender as

implicações de viver em democracia (...)” (FRANCO, 2014, p.22). Portanto, é imprescindível

reconhecer que o pensador francês demonstra um grande zelo para com a historicidade dos

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direitos fundamentais e impõe ao homem moderno o dever de proteger e a obrigação de

aperfeiçoar os valores da liberdade civil, para que o regime representativo e a própria

democracia não se transformem em empecilhos para a dignidade humana, mas sim para que

se tornem instrumentos de promoção dos princípios da igualdade jurídica e do liberalismo

político.

Tocqueville tinha clara ciência das possíveis mazelas da democracia e isso torna sua obra ainda mais importante. Para o pensador francês, o governo democrático não representa a maravilha política absoluta prostrada aos olhos da humanidade- como muitos pregavam e pregam- e não pode ter como pretensão, jamais, avocar-se da perfeição. Sua pretensão real e salutar é possibilitar o convívio civilizado e harmônico com as imperfeições existentes dentro da própria sociedade, direcionando-a paulatinamente para a correção desses desvios. (BIANCHINI, 2014, p.11)

Tocqueville enxergava que o gosto e a afeição pela liberdade não são automáticos,

mas que nascem de uma luta dos cidadãos em circunstâncias particulares de um respectivo

momento histórico. Sendo assim, os empecilhos para consolidação da liberdade em uma

democracia não são impossíveis de serem superados, pois o espírito humano e a firmeza

moral de muitos indivíduos são capazes de prevalecer sobre esses obstáculos. O autor não

é fatalista e sempre procura nutrir uma esperança em relação aos preceitos do bem comum

na convivência democrática e na coexistência das vontades individuais.

Após uma breve ponderação acerca dos valores centrais na obra do autor francês,

uma análise de suas concepções sobre a política se faz necessária.

2 POLÍTICA E DEMOCRACIA EM TOCQUEVILLE

A viagem de Tocqueville para os Estados Unidos possibilitou-lhe uma ampla análise

acerca da democracia. Naquela época, no início do século XIX, a França passava por um

período de instabilidade política. Mesmo com a queda dos valores da Restauração

Absolutista, do Congresso de Viena e, por conseguinte, da ascensão de um governo mais

próximo dos princípios constitucionalistas, o processo de democratização francês era muito

frágil e precário. Sendo assim, era quase que natural que o sucesso do republicanismo federal

americano suscitasse curiosidades nos cientistas políticos da época. Tocqueville estava entre

esses pensadores políticos entusiasmados com a análise da sociedade estadunidense.

Em suas primeiras observações acerca da vida quotidiana, o autor irá afirmar que a

sociedade americana, desde os primórdios de sua fundação, caracterizou-se por ser

eminentemente democrática, já que não apresentava a formalização de uma aristocracia e

demonstrava uma afeição muito grande pela igualdade, aqui compreendida enquanto

igualização de condições e isonomia.

60

À medida que estudava a sociedade americana via cada vez mais na igualdade das condições o elemento gerador que parecia estar na origem de todos os fatos particulares, e reencontrava-o continuamente no meu caminho como um ponto central para onde convergiam todas as minhas observações. (TOCQUEVILLE, 2001, p.39)

Basicamente, a igualdade de condições era o princípio fundante do qual emanava a

estrutura de organização social, configurando ,até mesmo, as instituições políticas e a própria

ordem jurídica. A partir da noção de igualdade de condições, Tocqueville define a essência

do regime democrático. Para o pensador, é democrática a sociedade em que não se verifica

a existência de distinções de ordens, onde não há a ocorrência de diferenças de condições

hereditárias. Portanto, a democracia sempre vem acompanhada por um certo dinamismo, cujo

caráter principal reside no afastamento da imobilidade social, típica de sociedades

estratificadas e dominadas por estamentos ou classes. Não obstante a notável igualdade de

condições nos Estados Unidos, Tocqueville denuncia a escravatura e as desigualdades

econômicas notáveis ainda presentes naquele país, pois representariam empecilhos para a

consolidação dos preceitos da liberdade.

Importante ressaltar que a igualização de condições não significa igualdade absoluta,

pois esta última é uma mera quimera, uma meta utópica, já que as desigualdades são

naturais, conforme atestado nos talentos naturais e nas capacidades, dons e vocações

particulares.

Por outras palavras, ao pressupor que os homens são iguais, quando na realidade não o são literalmente, a democracia está a afirmar que nenhum homem é por direito superior aos outros e que as desigualdades naturais não podem resultar na submissão dos mais fracos aos mais dotados. O que Tocqueville vê de fundamental no caso da sociedade democrática americana é precisamente esta noção de que, pelo menos em princípio, mas sobretudo numa grande dose na prática quotidiana, cada homem conta de igual forma. (FRANCO, 2014, p. 30)

Na concepção de Tocqueville, a igualização de condições parece uma tendência

generalizada e ao mesmo tempo irresistível. Daí sua afirmação fundante sobre a democracia

representar uma espécie de “revolução” inevitável no Ocidente. A liberdade, enquanto uma

experiência histórico-política concreta, deve ser analisada sob o aspecto das condições

históricas particulares, dentro das contingências de cada época. O autor francês quer se

afastar das concepções puramente teóricas e abstratas tão presentes na ciência política

daquela época. Na realidade, a obra de Tocqueville é uma verdadeira oposição aos

pressupostos do positivismo.

De fato, ele se opõe de forma indiscutível às teorias fatalistas que proclamam que o homem está condenado a ver as suas escolhas livres tornarem-se acontecimentos predeterminados e independentes da sua vontade em

61

consequência do devir histórico. Por essa razão critica fortemente os historiadores modernos que proclamam com insistência a sujeição dos povos a um desígnio histórico inflexível (...). (FRANCO, 2014, p.30)

Sendo assim, a ciência política desenvolvida pelo pensador em questão não constitui

um sistema fechado, puramente teórico e sistematizado, mas envolve um amplo grau de

pluralidade e diversidade. Tocqueville frisava constantemente que cada país apresentava um

desenvolvimento democrático próprio, específico. Portanto, cabe ao cidadão de cada país

atentar-se às contingências particulares de sua nação e lutar para que a democracia se

consolide conforme os preceitos axiológicos da liberdade. Destarte, fica nítido na obra do

pensador francês um certo afastamento em relação aos dois tipos de teorias históricas

vigentes na época: a ideia segundo a qual a ação humana constitui o único elemento do

desenvolvimento histórico e , por outro, o erro trágico de reduzir as ações individuais a um

destino histórico inflexível ou a uma força impessoal. De qualquer forma, pode-se dizer que

Tocqueville despreza os “reducionismos”, no intuito honesto de estabelecer uma nova ciência

política que teria por aspecto teleológico:

instruir a democracia, rejuvenescer, se possível, as suas crenças, purificar os seus costumes, orientar as suas movimentações, substituir pouco a pouco a sua inexperiência por uma verdadeira ciência de governar e os seus instintos cegos pelo conhecimento dos seus verdadeiros interesses; adaptar a sua governação aos tempos e aos lugares; modifica-la consoante as circunstâncias e os homens. (TOCQUEVILLE, 2001, p.43)

O pensador francês desenvolve seus estudos valendo-se, primeiramente, de um

método profundamente indutivo e interpretativo, com o intuito de elaborar e, por conseguinte,

avaliar os diversos modelos de sociedades. Portanto, Tocqueville pretende desvendar o

ethos, o espírito, a orientação primordial de cada modelo (seja ele democrático, aristocrático

ou revolucionário). É nítida a influência de Montesquieu nesse quesito, pois ambos utilizaram

as mesmas categorias para o estudo das sociedades e de suas organizações políticas

estruturais. As leis, os costumes, a educação, os hábitos, as causas acidentais e a religião

representam algumas dessas categorias. Portanto, o método, em última instância, acaba por

se tornar comparativo. As comparações não são reducionistas ou puramente abstratas, mas

englobam uma visão holística, cujo objetivo consistia no conhecimento profundo das

condições e tendências políticas de cada sociedade.

Importante ressaltar a preocupação do pensador com os perigos advindos de um

método puramente comparativo, a saber: as simplificações extremamente abstratas e

constantes e, por outro lado, o exagero absurdo das diferenças. Nenhum modelo é puro.

Mesmo que a democracia americana, em comparação com os outros regimes políticos,

62

estivesse mais próxima da democracia ideal, as sociedades são mistas e englobam elementos

de vários modelos (aristocráticos e democráticos). Nenhum regime é puramente uniforme em

sua dimensão estrutural. O fenômeno democrático é pluralista e cada sociedade o desenvolve

de formas particulares. Tocqueville até ressalta que não seria aconselhável realizar uma cópia

exata da organização do regime americano, pois cada nação apresenta suas peculiaridades.

Não olhemos para a América para dela copiar servilmente as instituições que criou, mas para melhor compreender aquelas que nos convêm, para retirar mais lições do que exemplos e mais para adotar os princípios do que para esmiuçar os pormenores de suas leis. (TOCQUEVILLE, 2001, p.36)

O relevante é compreender a aversão de Tocqueville para com metodologias

puramente teóricas, abstratas e reducionistas. O uso excessivo de ideias gerais e abstratas

acaba sendo prejudicial para o desenvolvimento saudável de uma ciência política. Os

sistemas teóricos absolutos seriam uma perversão do racionalismo legítimo. Tocqueville se

autodenomina como um “racionalista de base empírica O saber verdadeiro e necessário não

provém exclusivamente do raciocínio abstrato, mas sim da experiência, sobretudo no campo

político. A razão, com toda sua importância e glória, demonstrou-se impotente na

conceituação da liberdade política. Ademais, a falta de uma experiência política sólida acaba

por aumentar a fé da população em teorias abstratas e utópicas, aumentando, cada vez mais,

a distância entre os problemas reais e as soluções políticas plausíveis.

Seguindo essa perspectiva, Tocqueville estabelece um diálogo nítido com o

pensamento de Edmund Burke, pois ambos denunciavam essa pretensão teórica de

desprezar toda a tradição, ignorando as conquistas do passado. Outra grande obstinação das

teorias abstratas consistia em defender que seria possível o desenvolvimento social partindo

do zero, por meio da destruição das antigas e complexas instituições. Na cosmovisão do

pensador francês, os vícios da Revolução Francesa originaram-se dessa nefasta

“obstinação”.

Quando estudamos a história da nossa revolução, vemos que foi dirigida precisamente pelo mesmo espírito que fez com que se escrevessem tantos livros abstratos sobre o governo. A mesma atração pelas teorias gerais, os sistemas completos de legislação e a exata simetria das leis; o mesmo desprezo pelos fatos existentes; a mesma confiança na teoria; o mesmo gosto pelo original, o engenhoso e o novo nas instituições; a mesma vontade de refazer ao mesmo tempo toda a constituição de acordo com as regras da lógica e segundo um único plano, em vez da tentativa de a emendar nas suas partes. Espetáculo assustador! Porque o que é qualidade no escritor é por vezes vício no homem de Estado, e as mesmas coisas que muitas vezes fazem pelos livros podem levar a grandes revoluções. (TOCQUEVILLE, 1986, p.1040)

Enfim, a verdadeira ciência política reside no racionalismo de base empírica, ou seja,

no desenvolvimento e análise da experiência de cada povo, de seus hábitos, convenções,

costumes e religião. Compreender o quotidiano de cada nação é de extrema valia para avaliar

63

suas condições políticas e tendências jurídicas. A perpetuação do constitucionalismo e a

preservação da democracia dependem da cosmovisão prática da sociedade e não meramente

na qualidade do ordenamento jurídico.

(...) Discutimos Tocqueville antes de discutir os debates constitucionais por razões que o próprio Tocqueville definiu: se você quiser entender uma nação, você deve primeiro compreender os “preconceitos, hábitos, paixões dominantes, tudo o que compõe o que é chamado de característica nacional”, tudo o que é encontrado nas primeiras experiências de um povo. Devemos compreender de que material a nação foi constituída antes de poder entender a sua Constituição escrita- a duplicação é intencional e instrutiva (...) O significado e eficácia da nossa constituição dependem dos pontos fortes do nosso caráter. Se os pontos fortes falharem, as fraquezas irão fazer da Constituição um pedaço de pergaminho ineficaz e sem sentido. (WIKER, 2016, p. 109-111)

Delimitado o aspecto sintético da democracia no pensamento de Tocqueville e

analisada sua perspectiva metodológica da ciência política, se faz necessário adentrar nas

nuances do homem democrático, sua natureza, seus vícios e os perigos mais claros para

consolidação dos preceitos do Estado democrático de Direito. Somente conhecendo os vícios,

afirmaria Tocqueville, é possível defender categoricamente a democracia participativa e os

princípios constitucionalistas.

3 OS PERIGOS QUE AMEAÇAM A DEMOCRACIA

Se saírem em busca da liberdade, aprende, antes de tudo, disciplina dos sentidos e de tua alma, para que os desejos e teus membros não te levem ora para cá, ora para lá. Casto seja teu corpo e teu espírito, plenamente sob teu domínio e obediente na procura do alvo que lhe foi colocado. Ninguém experimenta o mistério da liberdade a não ser pela disciplina" (Dietrich Bonhoeffer)

Pelas análises aqui já estabelecidas e abordadas, Tocqueville enxerga na

igualização de condições uma das características primordiais da evolução do regime

democrático. Contudo, infelizmente, o processo de promoção da igualdade de condições não

é necessariamente associada a consolidação dos princípios axiológicos da liberdade. Esse

processo, a depender de sua evolução, pode acabar na tirania e na supressão dos direitos e

garantias fundamentais. O grande desafio a ser abordado na obra do pensador francês

consiste no grande questionamento, aparentemente paradoxal, a saber: por que a igualdade

de condições é compatível quer com a liberdade, quer com o regime tirânico? O pensador

deixa claro que os processos de igualização de condições englobam perigos que podem

destruir sistematicamente os princípios elementares da liberdade civil.

Sendo assim, o que Tocqueville pretende é avaliar esses perigos para que a

igualdade de condições possa se desenvolver em harmonia com os direitos e garantias

64

fundamentais. “Procurar entender a natureza do homem democrático e o seu relacionamento

com a liberdade e com a igualdade é o caminho que escolheu para realizar essa tarefa”

(FRANCO, 2014, p.45). O pensador francês atesta que o homem democrático tem uma

espécie de gosto natural pela liberdade e, por conseguinte, de seus benefícios nas mais

diversas esferas da sociedade. Contudo, o cidadão se vê constantemente numa batalha

centrada num dualismo, a saber: o gosto pela liberdade ou a paixão pela igualdade. Numa

democracia, essas duas paixões se confrontam inexoravelmente.

Entretanto, nesta batalha implacável, a igualdade, a curto prazo, recebe maior

consideração pela população, pois a liberdade é uma conquista árdua, um direito cujos

benefícios demoram para ser usufruídos. A igualdade, por outro lado, apresenta benesses

cujos efeitos são imediatos. Não se trata da mera igualização de condições, mas da paixão

pela igualdade absoluta, já definida por Tocqueville como uma idea abstrata, impossível de

ser coloca na prática. Dessa paixão igualitária surge um ódio por qualquer desigualdade. A

partir de então, os vícios só crescem. Rancor, disputas, discórdia, inveja, detração e

maledicência passam a ocupar o quotidiano da vida em sociedade.

Vale ressaltar que existe sim uma boa inclinação do homem para a igualdade. Trata-

se da paixão que estimula o cidadão a melhorar suas condições de vida por meio do

aperfeiçoamento de suas potencialidades e de seu caráter. “Existe efetivamente uma paixão

viril e legítima pela igualdade que anima os homens, levando-os a desejarem ser todos fortes

e respeitados. Esta paixão tende a elevar os pequenos ao nível dos

grandes.”(TOCQUEVILLE, 2001, p.92). Contudo, a manifestação negativa da igualdade

encontra-se na inveja, que corrompe a integridade moral do cidadão e o leva a lutar contra os

princípios elementares das instituições democráticas.

Revisando, Tocqueville viu nos americanos uma “paixão pelo bem estar material” tão intensa que o “cuidado de satisfazer as necessidades mínimas do corpo e de prover os menores confortos da vida preocupa as mentes universalmente”. Já que a América é uma sociedade com fluência econômica, ninguém está definido em uma classe econômica específica. Mas precisamente esta fluidez provoca uma ansiedade profunda: a inveja ao que os outros acima de nós possuem, e medo perpétuo de perder o que temos. A partir desta ansiedade, inveja e medo surge um outro desejo, o desejo intenso da estabilidade que ainda nos permite satisfazer a nossa paixão pelo bem-estar material. Esse desejo, por sua vez, convida “o despotismo brando” de um governo central forte a tirar toda a ansiedade do nosso desejo apaixonado tanto pela satisfação física como pela segurança. Nossa preocupação com o conforto material leva-nos ao longo de um caminho para a servidão, em que nós voluntariamente abraçaremos um estado servil: segurança e conforto à custa de nossa liberdade. (WIKER, 2016, p. 163-164)

Na cosmovisão política de Tocqueville, o igualitarismo substitui o valor imprescindível

da liberdade, pois, quando a igualdade material se torna o fim derradeiro de uma nação, as

violações aos direitos de autonomia dos cidadãos acabam sendo violados quase que de forma

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automática. Esse discurso seria posteriormente retomado por Friedrich Hayek, clássico

pensador da Escola Austríaca de Economia. A paixão pelo bem estar material provoca a ânsia

generalizada pela estabilidade perpétua. Trata-se da clássica oposição entre liberdade e

segurança. Muitas vezes, os indivíduos procuram no Poder Público uma espécie de

consolação para os problemas quotidianos decorrentes da prática da liberdade. Somente o

Estado, por meio do monopólio da força, é capaz de promover uma espécie de violação a

ordem natural econômica. Na realidade, o que Tocqueville denuncia é a dependência material

que muitos procuram às custas do aparato burocrático estatal.

Já que a América é uma sociedade com fluência econômica, ninguém está definido em uma classe econômica específica. Mas precisamente esta fluidez provoca uma ansiedade profunda: a inveja ao que os outros acima de nós possuem, e medo perpétuo de perder o que temos. A partir desta ansiedade, inveja e medo surge um outro desejo, o desejo da estabilidade de que ainda nos permite satisfazer a nossa paixão pelo bem estar material. Esse desejo, por sua vez, convida o "despotismo brando" de um governo central forte a tirar toda a ansiedade do nosso desejo apaixonado tanto pela satisfação física como pela segurança. Nossa preocupação com o conforto material nos leva ao longo de um caminho para a servidão, em que nós voluntariamente abraçaremos um estado servil: segurança e conforto à custa de nossa liberdade. A ironia é que, enquanto um mercado livre gera riqueza material, essa mesma riqueza material, ou mais precisamente a busca pela gratificação física que essa riqueza material pode financiar pode também criar uma população destemperada que põe em perigo as virtudes do mercado livre, da liberdade moral e da autossuficiência.(WIKER, 2016, p. 163-164)

O autor procura evidenciar que o igualitarismo é símbolo de uma degradação moral

sem precedentes. O abandono da liberdade em prol da igualdade material é um déficit de

caráter e de firmeza moral, pois evidencia os vícios de seus cidadãos. Conforme já destacado,

para Tocqueville, o bem comum de um povo depende da consciência ética de seus cidadãos

bem como de seus valores predominantes, logo, os principais perigos para a liberdade civil

encontram-se na propensão dos indivíduos aos anseios de um Estado intervencionista e ao

desprezo dos princípios elementares éticos e jurídicos de responsabilidade pessoal, dignidade

humana e constitucionalismo.

Tocqueville ressalta muito bem que o caminho para o totalitarismo é um caminho de

ignorância dos valores éticos imprescindíveis para a estabilidade e perpetuidade do regime

democrático. Destarte, o grande mal reside na servidão voluntária na qual os cidadãos se

dispõem a se tornarem “escravos” de um poder centralizado em troca de conforto, segurança

e estabilidade. “Toda obra de Tocqueville pontua-se, basicamente, pela preocupação de

compreender como a liberdade política dos cidadãos deve ser resguardada, que não seja

ameaçada pela igualdade total de condições” (CLETO, 2006, p. 69)

Dentre todas as tiranias, uma tirania exercida pelo bem de suas vítimas pode ser a mais opressiva. Talvez seja melhor viver sob um ditador desonesto do que sob onipotentes cruzadores da moralidade. A crueldade do ditador

66

desonesto às vezes pode se acomodar, em algum ponto sua cobiça pode ser saciada; mas aqueles que nos atormentam para o nosso próprio bem irão nos atormentar indefinidamente, pois eles assim o fazem com a aprovação de suas próprias consciências. (LEWIS, 1978, p.304)

Os cidadãos devem nutrir uma concepção da liberdade enquanto uma conquista, ou

seja, enquanto um dever moral que exige sacrifícios, abnegação e prática constante das

virtudes. A liberdade verdadeira, mais do que um direito, encontra-se na responsabilidade

pessoal, no autogoverno, na moderação e na temperança. Tocqueville frisava a ideia contida

num trecho de um discurso do advogado John Winthrop:

Também eu não teria de te confundir no ponto de sua própria liberdade. Há uma liberdade de natureza corrupta, que é afetada tanto por homens e animais, para fazer o que eles desejam; e essa liberdade é inconsistente com a autoridade, impaciente com qualquer restrição; por essa liberdade, Sumus Omnes Deteriores (somos todos inferiores); ela é a grande inimiga da verdade e da paz, e todas as ordenanças de Deus se curvam contra ela. Mas há uma liberdade civil, moral, federal, que é fim e a finalidade da autoridade; é uma liberdade para o que é apenas justo e bom; é por essa liberdade que você deve se posicionar mesmo com os riscos para sua vida. 19

Tocqueville afirma que a preservação da liberdade é um dever deontológico, segundo

o qual a estabelece e confirma como um valor derradeiro a ser preservado pelo ordenamento

jurídico e pelo esforço moral dos cidadãos. Até mesmo quando a busca pela igualdade

material aparentar ser uma solução efetiva para problemas complexos, não se deve

subestimar a capacidade da autonomia da vontade e do voluntarismo nas relações humanas.

Interessante ressaltar que João Calvino (1509-1564) já defendia algo semelhante:

Calvino (...) nos lembra de que a caridade não dispensa a justiça. Seu propósito é condenar juízes que querem “afastar-se da equidade em favor dos pobres”, em nome do evangelho, e “seguir uma ideia tola de misericórdia” favorecendo os pobres. Em nome da justiça, não deve haver qualquer questão sobre prover as necessidades dos destituídos causando danos aos ricos. O reformador concorda com Paulo: enquanto os ricos têm o dever de dar esmolas, não se deve obrigá-lo a compartilhar suas posses. Qualquer que seja o mérito da caridade e preocupação de libertar os pobres da tirania, ninguém deve se desviar da justiça, nem um fio de cabelo sequer.20

Prosseguindo com suas reflexões acerca dos vícios e dos perigos para um regime

democrático, Tocqueville afirma que do igualitarismo surge uma outra perversão moral, a

saber: o individualismo. Preocupados apenas com a autossuficiência própria, os cidadãos

19 Discurso de John Winthrop In: TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracy in America, traduzido e editado, com uma introdução por Harvey Mansfield e Delba Winthrop (Chicago, IL: University of Chicago Press, 2000), p.42. Tocqueville era um profundo admirador do trabalho jurídico de Winthrop, sobretudo no que concerne aos pensamentos e reflexões relacionadas a liberdade civil e constitucionalismo. 20 Dermange, François. “Calvin’s View of Property: A Duty Rather Than a Right.” John Calvin Rediscovered: The Impact of His Social and Economic Thought. Eds. Edward Dommen, and James D. Bratt. Louisville: Westminster John Knox Press, p. 43. Dermange ressalta que Calvino não apresenta uma “dogmática econômica”, fixa e teoricamente definida. A teologia política de Calvino influencia o campo econômico através de valores, princípios e preceitos fundamentados na cosmovisão bíblica.

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tendem a ocupar-se com questões relativas a interesses meramente particulares. Sendo

assim, zelam somente pela total independência pessoal, da qual emana o individualismo

radical, em que os homens tornam-se estranhos uns aos outros. Do individualismo surge a

ambição de alguns de buscarem no Estado a autopromoção, pois querem no poder central

um apoio para sua “fraqueza individual”, um meio para superar sua aparente “irrelevância” e

insignificância. Doravante, a burocracia do poder público ganha forças e ameaça a

espontaneidade do regime democrático.

O problema central do individualismo reside no fato de que provoca um desinteresse

dos cidadãos pelos assuntos públicos concernentes ao bem comum. Matérias de ordem social

acabam por se tornar desnecessárias para a população que vive num ambiente dominado

pelo sentimento radical de autossuficiência.

Essencialmente preocupados com o seu enriquecimento contínuo, os cidadãos podem perder de vista a ligação fundamental que naquelas sociedades existe entre a fortuna de cada um e a prosperidade geral. Concentrados nos seus negócios pessoais, sem tempo para pensar no bem público, os cidadãos começam a encarar o exercício dos deveres políticos como uma distração incômoda e perturbadora do seu fito principal: ganhar sempre mais. (FRANCO, 2014, p. 65)

Primordialmente, o individualismo deve ser compreendido enquanto um defeito

político, pois “ leva cada cidadão isolar-se da massa de seus semelhantes e manter-se

afastado dela na companhia da família e dos amigos (...)” (TOCQUEVILLE, 2001,p.591). O

individualismo radical destrói os próprios preceitos da cidadania, já que acarreta o isolamento

do indivíduo e a consequente destruição dos laços naturais entre os concidadãos. O perigo é

acentuado quando do individualismo surge o egoísmo. Ao passo que o primeiro é um defeito

de aspecto cívico, o segundo reflete no caráter moral. Contudo, há uma espécie de

interdependência entre as virtudes cívicas e a integridade moral do caráter pessoal, pois o

espírito público fomenta a prática das virtudes pessoais. Destarte, “os indivíduos, ao deixarem

de exercitar o seu espírito cívico, não só estão a ser maus cidadãos como, a prazo, estão a

comprometer a sua integridade moral (...)” (FRANCO, 2014,p.49).

O individualismo é o principal responsável pela chamada “atomização” das

sociedades democráticas, pois corrói o espírito público e abala as bases das virtudes cívicas.

Ademais, o individualismo radical fomenta o crescimento do intervencionismo estatal sobre as

esferas voluntárias da comunidade.

Vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descaso se voltam sobre si mesmos, à procura de pequenos e vulgares prazeres, com as quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros (...) está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os sente, existe apenas em si e para si mesmo. (TOCQUEVILLE, 1987, p.530)

68

O caminho que o individualismo radical favorece para o surgimento de uma

“democracia totalitária” é o seguinte: preocupados totalmente com assuntos pessoais, os

indivíduos renunciam a prerrogativas que possuíam enquanto cidadãos, sobretudo na direção

das associações voluntárias da sociedade. Sem ninguém para a realização de atividades

imprescindíveis da sociedade, quase que automaticamente o Estado assume a

responsabilidade por essas funções.

Aos poucos, os serviços e funções privadas estariam monopolizadas pelo poder

público. Eis o “despotismo sem precedentes”, em que cada esfera da vida em sociedade

estaria sob o comando da burocracia central. Empresas, Igrejas, educação, imprensa e

associações civis estariam sendo direcionadas pelo governo através de leis claramente

intervencionistas e centralizadoras. “Nos capítulos finais Da Democracia na América,

Tocqueville quer mostrar aos seus compatriotas que, ao abdicarem das suas prerrogativas de

cidadania a favor do próprio Estado, estão a permitir que a democracia se degenere em

despotismo” (FRANCO, 2014, p.58).

Por isso, nossos cidadãos optam, muitas vezes, pela iniciativa do Estado quanto aos assuntos de interesse da comunidade e se acomodam paulatinamente quando o poder político governamental desempenha suas funções de modo a abarcar seus interesses, poupando-lhe o trabalho da discussão e da decisão (...) Essa acomodação, para Tocqueville, é um grande perigo e talvez o fator de maior importância para derrocada do regime democrático (...) (BIANCHINI, 2014, p. 6)

Apesar das duras críticas de Tocqueville ao igualitarismo e aos preceitos do

individualismo, o autor francês aponta como o maior vício e, sobretudo, a maior ameaça para

o regime democrático uma cosmovisão pautada nos preceitos do naturalismo, do hedonismo

puro e da dialética marxista, a saber: o materialismo. O perigo dessa cosmovisão reside no

fato de que ela é extremamente reducionista, já que se demonstra incapaz e impotente de

adquirir uma visão holística da realidade, pois fundamenta-se na errônea ideia segundo a qual

tudo o que existe, incluindo os valores morais e os sentimentos humanos, não passa de

matéria. Sendo assim, os materialistas apresentam uma tendência nefasta a teorias e

afirmações simplistas, tais como: os sentimentos e emoções humanas não passam de

aspectos físico-químicos (cientificismo mecanicista- Fisicalismo), a realidade social não passa

de uma mera luta de classes (Materialismo dialético) , a realidade do ser humano é tão

somente a dimensão econômica (Marxismo), dentre outras, incluindo a macabra ideia do

darwinismo social.

Tocqueville afirma que o materialismo sufoca o espírito cívico e abala as bases da

dimensão axiológica da cidadania. O materialismo é incapaz de oferecer ao homem um

69

arcabouço moral firmado na busca pelo Bem comum e pela vida virtuosa, digna e justa21. Esta

cosmovisão simplista apenas favorece o crescimento potencializado de vícios, incluindo as

perversões morais do egoísmo, inveja, orgulho, arrogância e obstinação.

A democracia favorece o gosto pelos prazeres materiais. Quando esse gosto se torna excessivo, leva rapidamente os homens a acreditarem que tudo não passa de matéria; e é o materialismo que, por sua vez, acaba por arrastá-los com um entusiasmo insensato para esses mesmos prazeres. Este é o círculo infernal para onde são impelidas as nações democráticas. É bom que elas se apercebam deste perigo e se contenham. (TOCQUEVILLE, 2001, p. 645)

Igualitarismo, individualismo e materialismo. Eis a tríade responsável pela perversão

da democracia e, por conseguinte, de um “despotismo democrático”, pautado na tirania da

maioria e na “manipulação das massas”.

3.1 A “democracia totalitária” e a tirania da maioria

“Liberdade que ignora a diferença transcendental entre o bem e o mal acaba por negar a própria liberdade” (Venerável Fulton Sheen)

"Mais disparatado ainda é o teorema de que o Estado é condição da liberdade em sentido moral e, com isso, da moralidade. Em verdade, a liberdade se encontra além do fenômeno, para não dizer além das instituições humanas." (Arthur Schopenhauer)

Alexis de Tocqueville, conforme já destacado, temia que o regime democrático se

tornasse numa forma de governo em que o Estado monopolizasse toda a esfera voluntária da

sociedade, desde questões educacionais até assuntos concernentes a organização das

empresas e estruturação de associações civis. O pensador francês denominava essa

manifestação perversa da democracia como um “despotismo sem precedentes”, uma espécie

de “democracia totalitária”. “E o que mais preocupa Tocqueville é a vontade que o poder social

mostra de se introduzir nos domínios que sempre estiveram reservados à independência

individual, como os direitos particulares, a caridade, a educação e a religião” (FRANCO, 2014,

p. 60)

21 “O homem é, em virtude de sua autotranscendência, um ser em busca de sentido. No fundo, é dominado por uma vontade de sentido. No entanto, hoje em dia essa vontade de sentido encontra-se em larga escala frustrada (...) Quando me perguntam como explicar o advento desse vazio existencial, cuido então de oferecer a seguinte fórmula abreviada: em contraposição ao animal, os instintos não dizem ao homem o que ele tem de fazer e, diferentemente do homem do passado, o homem de hoje não tem mais a tradição que lhe diga o que deve fazer. Não sabendo o que tem e tampouco o que deve fazer, muitas vezes já não sabe mais o que, no fundo, quer. Assim, só quer o que os outros fazem- conformismo! Ou só faz o que os outros querem que faça- totalitarismo” (FRANKL, Viktor. O Sofrimento de uma vida sem sentido: Caminhos para encontrar a razão de viver. Tradução de Karleno Bocarro- 1.ed. São Paulo: É realizações, 2015. Sinopse da obra)

70

A “democracia totalitária” seria uma “tirania da maioria”, em que a política se

restringiria a uma mera questão de aritmética, ou seja, o grupo vencedor das eleições seria

capaz de impor sua cosmovisão na vida privada e na esfera voluntária da sociedade, valendo-

se de instrumentos públicos e da coercitividade dos mecanismo legais22. Sendo assim, a

democracia seria convertida em um instrumento de “vilipêndio” da existência humana, cujo

traço distintivo seria a intromissão opressiva de uma massa social nas esferas de atuação

individual, tais como: família, escola, igreja, economia. “O problema dessa intromissão é que

a democracia, longe de ser uma panaceia para problemas como o abuso de poder, o

autoritarismo e a corrupção, acaba causando a intrusão opressiva de uma massa social”

(KOYZIS, 2014, p.172)

Destarte, quando a democracia manifesta a pretensão de se intrometer

continuamente nas comunidades não estatais, ou seja, para além dos limites estruturais do

corpo político, acaba por ocasionar a degradação paulatina do valor holístico da liberdade.

As constantes pretensões de “democratizar” as empresas, as famílias e as escolas acabam por promover uma “intrusão opressiva de uma massa social” nas associações voluntárias da sociedade civil. Por este motivo, para que possamos usufruir da verdadeira e legítima democracia, o anseio dos cidadãos dever recair primordialmente sobre liberdade em sua concepção holística (econômica, civil e política), e não sobre pautas como igualdade material, justiça social, coletivismo e corporativismo. 23

O pensador francês demonstrava uma preocupação explícita quanto a

possibilidade de a evolução da democracia culminar em um empecilho para o

autogerenciamento da vida e para o exercício primordial da autonomia da vontade. Ademais,

importante frisar que Tocqueville era categórico na afirmação segundo a qual a liberdade não

se restringe ao regime democrático, pois a liberdade manifestou-se aos homens em diferentes

épocas e em diferentes regimes políticos. É possível viver numa democracia e sofrer

continuamente com o caos social, com o intervencionismo estatal e com a intromissão

opressiva do poder público.

Direitos do homem e democracia não coincidem (necessariamente) e, por isso mesmo, tampouco se podem explicar historicamente os primeiros com os segundos ou vice-versa. Os primeiros são possíveis sem democracia alguma, com um poder estatal que os reconheça e proteja, como, por outro lado, se pode ter uma democracia terrorista e fanática da igualdade ou vinculada a um dogma, sem nenhuma liberdade de consciência. (TROELTSCH, 1967, p. 65)

22 Cf LEWIS, C.S. A abolição do homem. Traduzido por Gabriele Greggersen. 1.ed. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2017. 23 Cf LEITE, Leonardo Delatorre. Ponderações sobre a “Democracia Totalitária”. Disponível em: https://falauniversidades.com.br/ponderacoes-sobre-a-democracia-totalitaria/.

71

Tocqueville alerta também sobre os perigos da redução da democracia aos preceitos

da aritmética, ou seja, aos resultados das eleições. A democracia deve se preocupar com a

perpetuação e defesa sólida do caráter complexo da liberdade e não com a promoção da

cosmovisão majoritária da elite política. Portanto, a liberdade deve ser o princípio fundante do

regime democrático, pois, somente assim, os direitos e garantias fundamentais serão capazes

de constituir uma barreira para ascensão de novos despotismos e para possíveis “tiranias da

maioria”.

4 Tocqueville e a apologia do constitucionalismo

Apesar de suas críticas aos perigos da evolução democrática, Tocqueville

demonstrava profunda esperança quanto aos elementos da democracia participativa. O

remédio para os vícios da democracia encontram-se no fortalecimento da dimensão axiológica

e dos princípios do constitucionalismo, tais como: a descentralização administrativa, a

autonomia municipal, a importância do espírito comunal, o associativismo, espírito público de

cidadania, liberdade de imprensa e separação dos poderes.

Quanto a descentralização administrativa, o pensador francês a define enquanto uma

condição sine qua non para o exercício da cidadania. Por centralização no âmbito

administrativo, entende-se a concentração do poder de solucionar problemas locais e

quotidianos numa única instância do governo, geralmente no ente federativo da União.

Contudo, Tocqueville estabelece que a centralização administrativa sufoca o espírito público

e o exercício da cidadania, pois retira dos indivíduos socialmente ativos a possibilidade de

participarem da vida política de suas cidades e localidades. Se tudo é resolvido pelo governo

central e pela União, a cidadania é um mero engano, uma quimera ou uma espécie de

“autoengano”. O preceito da participação política consiste justamente na atividade constante

dos indivíduos, reunidos em assembleias e associações civis, com o intuito de solucionar

problemas pontuais e locais.

Quanto a mim, não consigo conceber que uma nação possa viver (...) sem uma centralização governamental. Mas penso também que a centralização administrativa só serve para irritar os povos a ela submetidos, porque tende continuamente a diminuir-lhes o espírito de cidadania” (TOCQUEVILLE, 2001, p.127)

A descentralização administrativa encontra-se intimamente relacionada com o

conceito de “autonomia municipal”. Tocqueville ressaltava um ditado essencial para defesa

do “espírito comunal”, a saber: “É no município que a força de povos livres reside”. O

município, enquanto unidade de governo mais natural, é o berço das relações sociais

humanas. Sendo assim, o autor francês é categórico na asserção segundo a qual a

72

participação política dos cidadãos exige a liberdade comunal, compreendida enquanto a

valorização dos localismos. “É na comunidade local, no centro das relações corriqueiras da

vida, que se vão concentrar o desejo de ser respeitado, a necessidade de interesses reais, o

gosto pelo poder e pelas ações” (TOCQUEVILLE, 2001, p.108).

(...) Por um lado, localizando-se a administração das leis, estas têm a tendência a corresponder ao interesse da comunidade particular onde vão vigorar e, como tal, a adquirir um caráter mais pragmático e a respeitar a diversidade regional e local. Por outro lado, essas leis vão também reconhecer e incentivar a ligação de cada cidadão à sua localidade, incentivando-o a participar na vida local, isto é, a interessar-se por aquilo que lhe diz respeito e que é seu. Desta maneira, ao participarem nos assuntos correntes das comunidades onde vivem, os cidadãos americanos veem e apreciam a democracia fazendo a própria democracia. É também deste modo que os cidadãos conseguem estabelecer uma relação de proximidade entre os seus interesses pessoais e o bem-estar da comunidade em geral. (FRANCO, 2014, p.97)

Destarte, o cidadão sente-se ativo quando suas decisões políticas influenciam sua

vida quotidiana. Na realidade, quando Tocqueville afirma incisivamente a importância da

participação ativa dos indivíduos na esfera pública, ele quer destacar a eminência do cidadão

nas questões locais e corriqueiras da vida orgânica da sociedade. Lutar pela justiça no

município, praticar atos de caridade para com pessoas mais próximas, fomentar a busca pelo

comum em associações nas quais participa ativamente, afirmar a centralidade do amor ao

próximo na estabilidade da vida quotidiana; eis os traços característicos do “espírito comunal”.

“A descentralização permite a prática da liberdade comunal” (FRANCO, 2014, p. 97).

A crise do “espírito comunal” é um dos fatores que explicam a ascensão dos

autoritarismos. Sem a liberdade comunal, os cidadãos perdem o interesse pela coisa pública

e pelos pequenos gestos de amor, caridade e compaixão. É nesse contexto que o Estado

ascende como uma soberania absoluta sobre as esferas civis e monopoliza o exercício das

atividades espontâneas da sociedade através da centralização governamental e da

centralização administrativa.

Tocqueville também afirma a eminência do associativismo como manifestação da

soberania popular. Na realidade, o associativismo é um verdadeiro remédio contra a ascensão

da arbitrariedade do poder estatal e de suas possíveis posturas centralizadoras. Quanto maior

a tendência dos cidadãos a formarem associações intermediárias entre o indivíduo e o Poder

Público, maior é o grau de proteção aos preceitos da liberdade civil. Ademais, uma perspectiva

de fomento ao associativismo limita o individualismo, pois a liberdade de associação frisa o

“agir em comum”, ao mesmo tempo em que repudia o coletivismo involuntário.

Se os homens que vivem nos países democráticos não possuíssem nem o gosto nem o direito de se unir para fins políticos, a sua independência correria grandes riscos, mas poderiam manter durante muito tempo as suas riquezas

73

e os seus conhecimentos; se, por outro lado, não adquirissem o hábito de se associar na vida quotidiana, seria a própria civilização a ficar em perigo. Um povo em que os particulares perdessem o poder de fazer isoladamente grandes coisas sem adquirirem a faculdade de as produzir em comum regressaria rapidamente ao estado da barbárie. (TOCQUEVILLE, 2001, p.602)

Sendo assim, conforme supramencionado, o associativismo não é apenas um direito

imprescindível para o exercício da liberdade, mas também representa uma condição essencial

para o progresso da civilização. O espírito humano só engrandece pela ação recíproca dos

homens. Daí Tocqueville desenvolver uma concepção orgânica da sociedade, cuja evolução

depende de uma espécie de “mutualismo simbiótico”. Trata-se de uma visão muito próxima

da “teologia política” defendida por Johannes Althusius24. A liberdade de associação é a base

para o crescimento saudável da vida em sociedade.

É pela ação do espírito de associação que, neste país onde as leis e os costumes são absolutamente democráticos, é possível impedir a concentração da riqueza nas mãos de um punhado de cidadãos e executar iniciativas e concluir empreendimentos que os reis mais absolutos e os aristocratas mais opulentos não conseguiriam levar avante, nem terminar no mesmo prazo. (TOCQUEVILLE, 1991, p.270-271)

É nítida a defesa de Tocqueville por um federalismo original, fundamentado na

dimensão axiológica da liberdade comunal e da autonomia municipal. Outro aspecto na

filosofia política do autor reside na sua apologética categórica da cidadania participativa, cujo

conteúdo deveria embarcar até mesmo questões concernentes ao poder judiciário. Sendo

assim, é quase que automático que suas obras defendessem os pressupostos do tribunal do

júri. “Quanto ao sistema de júri americano, Tocqueville considera-o uma instituição que não é

apenas judicial, mas também política e eminentemente republicana “ (FRANCO, 2014, p. 117).

Para o pensador francês, o Júri representaria a expressão elementar da soberania popular.

Uma outra questão levantada pelo pensador francês reside na natureza dos serviços

e funções públicas. Tocqueville observa que, na América, o serviço público não é

compreendido enquanto um privilégio, mas sim como um direito acessível a todos, limitado

apenas por questões relacionadas ao mérito, vocação e disponibilidade. Segundo o pensador,

os funcionários públicos “confundiam-se” com o próprio povo, pois os cargos públicos não

eram providos de regalias, benesses, privilégios e salários exagerados. Sendo assim, os

cidadãos que pretendiam ocupar uma posição pública realmente a desejavam por vocação,

24 Cf ALTHUSIUS, Johannes. Política: Uma tradução reduzida de Política metodicamente Apresentada e Ilustrada com Exemplos Sagrados e Profanos. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. Rio de Janeiro, RJ: Liberty Fund, Topbooks.

74

por um desejo fervoroso de justiça. Para Tocqueville, essa perspectiva sobre o funcionalismo

público permitia uma maior representatividade da população e um sentimento de patriotismo.

Essa questão concernente aos cargos públicos é a origem de reflexões acerca da

conjuntura brasileira, em que promotores, procuradores e juízes apresentam uma infinita

quantidade de vantagens e benefícios em relação a população em geral. No Brasil, o salário

de um procurador da República, em média, encontra-se no valor de R$35.462,22, ao passo

que o salário mínimo situa-se na faixa de R$ 1.150,00 a R$ 1.200,00. Portanto, é nítida a

diferença entre a condição de vida de alguns funcionários públicos, sobretudo ligados ao

poder judiciário, e a conjuntura da maioria dos trabalhadores. Para Tocqueville, esse cenário

é preocupante, pois sufoca a confiança da população no governo e, por conseguinte, mina o

espírito público. “Nos EUA, os funcionários públicos confundem-se com o resto dos cidadãos,

não usam sinais exteriores que os distinguem e mostram que o seu poder não os torna

superiores” (FRANCO, 2014, p. 169).

A junção nefasta da centralização administrativa, do intervencionismo estatal e de

um funcionalismo público centrado meramente nos privilégios explicaria as raízes funestas do

crescimento da corrupção na esfera da organização do Estado. O remédio para conter a

degradação moral e política ocasionada pela corrupção encontra-se em quatro elementos

centrais, a saber: o espírito público, a responsabilização política- jurídica dos governantes e

dos funcionários públicos, a penalização judicial e a censura eleitoral (negação de votos

àqueles que encontram-se marcados pela ilegalidade jurídica). Tocqueville frisa que o cidadão

tem um papel nuclear na preservação dos bons rumos e das boas condutas na esfera

estrutural do poder político.

Os cidadãos democráticos têm responsabilidades na garantia da liberdade e da prosperidade da comunidade, o que implica que compreendam que a democracia não significa só a afirmação de direitos, mas também a confirmação de deveres (...) O entendimento e a aceitação desses deveres não equivalem a uma obrigação moral superior a todas as outras, não correspondem à virtude coletiva das repúblicas antigas, mas assentam antes na virtude individual e prática do interesse bem entendido e na sua associação à liberdade. (FRANCO, 2014, p.177)

Sobre o papel das virtudes individuais na estabilidade do regime democrático,

Tocqueville afirma a utilidade da cosmovisão cristã. Para o autor, o papel da religião seria

crucial na formação de uma “imaginação moral” e de uma moral pública, cujos preceitos

favoreceriam a prática da liberdade e a preservação dos direitos e garantias fundamentais.

Ademais, a humildade, generosidade, piedade e magnanimidade são virtudes

intrinsecamente ligadas ao cristianismo e que apresentam uma extrema utilidade para ordem

pública. “No homem democrático, a religião é principalmente capaz de regular a obsessão

com o bem estar material. Ela é capaz de desviar sua atenção para fins menos terrenos e (...)

75

persuadi-lo a seguir caminhos honestos” (FRANCO, 2014, p. 77). Nesse quesito, Tocqueville

se aproxima muito da filosofia de Edmund Burke e das reflexões de Blaise Pascal.

Quanto a liberdade, Tocqueville afirma ser ela um valor indispensável para a

democracia, pois permite qua cada cidadão tenha autonomia no campo de sua esfera privada.

Sendo assim, o indivíduo apresenta soberania para dirigir suas ações e definir sua

personalidade, vocação e caráter. Trata-se da liberdade em seu sentido positivo, ou seja,

liberdade para determinar o seu destino. Ademais, o regime democrático frisa a liberdade em

sentido negativo, ou seja, liberdade do constrangimento e da arbitrariedade do poder público

e da “tirania da maioria”. É a liberdade de se ser deixado em paz, sem interferências

constantes e obstinadas do poder político e da cosmovisão majoritária. Tocqueville já antecipa

Isaiah Berlin em suas reflexões sobre a liberdade e suas dimensões.

Ainda sobre autonomia individual, o pensador francês aborda a liberdade enquanto

um dom, uma disposição da alma que atribui dignidade e grandeza ao ser humano. Contudo,

o autor não se preocupa em definir sinteticamente a liberdade democrática, pois demonstra

maior preocupação com o exercício da autonomia da vontade no contexto da práxis política.

Para Alexis de Tocqueville, a liberdade política radica num gosto que nasce da própria vivência do indivíduo livre na cidade e não num amor intelectual professado pelo conceito de liberdade. Ser livre em democracia é acima de tudo uma experiência de cidadania, e não uma noção filosófica. (FRANCO, 2014, p. 222)

Destarte, Tocqueville frisa uma visão nitidamente axiológica da cidadania, cujos

preceitos não se resumem a afirmação dos direitos, mas englobam uma confirmação dos

deveres, sobretudo os deveres de ordem moral. Os cidadãos de um regime democrático

apresentam uma grande responsabilidade na preservação da liberdade e da prosperidade na

comunidade. Portanto, o espírito público tem um aspecto deontológico, cujas determinações

estabelecem que soberania popular não deve ser entendida fora de um processo holístico de

paixão pelo constitucionalismo e pela práxis política.

Para o autor francês, portanto, o segredo para o sucesso democrático representativo é o estímulo contínuo, por todos os meios que se possa imaginar, de participação popular nos negócios públicos e a liberdade irrestrita de iniciativa e associação do indivíduo, sem prejuízo da liberdade de imprensa, amplitude dos direitos, participação efetiva da população (...) na formação do governo pelas eleições periódicas, além do amplo controle da governabilidade. (BIANCHINI, 2014, p.06)

Concluindo, para Tocqueville, os remédios para os perigos e males da democracia

encontram-se na apologia do próprio regime democrático participativo amalgamado com os

princípios elementares da liberdade civil.

76

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As obras de Alexis de Tocqueville representam um verdadeiro trabalho de

apologética do regime democrático participativo e constitucional. Como um profundo amante

da liberdade civil, o autor francês demonstra uma grande preocupação e zelo para com a

evolução da democracia, apontando para tal, os vícios e perigos que a ameaçam. A partir de

uma análise sistemática dos escritos de Tocqueville, verifica-se a presença de uma espécie

de “instrução pedagógica”, com o intuito de orientar política e moralmente os cidadãos de um

Estado democrático a firmarem paulatinamente os preceitos e valores da liberdade na esfera

pública.

O pensador francês entendia perfeitamente que a evolução da democracia não

implicava necessariamente na concretização da dimensão holística da liberdade, mas estava

profundamente convicto de que os remédios para essa situação não se encontravam na

destruição ou no abandono dos preceitos democráticos. A verdadeira solução, mesmo que

árdua, consistia na orientação da democracia sob a óptica dos preceitos da liberdade, pois

assim seria viável moderar a igualização de condições e frear as tendências nefastas do

igualitarismo. Ademais, Tocqueville frisa que a paixão pelos valores democráticos exige um

compromisso maior dos cidadãos com uma ética centrada na prática das virtudes e no

exercício da responsabilidade pessoal. A cidadania não existe efetivamente sem um conteúdo

moral objetivo que favoreça os preceitos do espírito comunal, do associativismo, da dignidade

humana e do agir em comum.

Analisar os preceitos da cidadania sob a óptica de um arcabouço axiológico e

valorativo era uma das peculiaridades de Tocqueville. Tamanha importância que o autor

atribuía aos valores morais para preservação da democracia que, sem uma ética deontológica

amalgamada com o estímulo das virtudes, o regime democrático sucumbiria e seus vícios

(igualitarismo, individualismo e materialismo) assolariam o espírito comunal, favorecendo a

ascensão de despotismos.

Ademais, o pensador francês afirmava que a defesa dos preceitos

constitucionalistas era nevrálgica na preservação da liberdade civil. Descentralização

administrativa, soberania popular em assuntos políticos, liberdade de imprensa, liberdade de

associação, tribunal do júri, liberdade comunal, autonomia municipal e o federalismo puro

representam alguns pontos centrais dos fundamentos constitucionalistas da obra do autor.

Por fim, a lição derradeira de Tocqueville consistia na reafirmação dos preceitos

da democracia participativa em comunhão com a dimensão holística da liberdade como

remédios para os próprios perigos, ameaças e vícios do regime democrático. Aperfeiçoar o

Estado democrático de Direito, lutar pelo Bem comum na esfera pública e consolidar os

77

preceitos da dignidade humana; eis as tarefas primordiais que Tocqueville define e

estabelece para os cidadãos de uma nação comprometida com a liberdade civil.

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79

A HORIZONTALIDADE DO PODER LEGISLATIVO E OS FREIOS E

CONTRAPESOS: UMA ANÁLISE DO CENÁRIO POLÍTICO ATUAL SOBRE O

VIÉS DA DEMOCRACIA E DOS ATOS DO CHEFE DO ESTADO

MELO, Tatiane Donizete de Araujo25 PEGORARO, Luiz Nunes26

RESUMO: Este trabalho procurou demonstrar as teorias predominantes acerca do surgimento

do Estado, sua organização e as consequências no âmbito da atuação do poder público. No

Federalismo como forma de estado, a Administração pública pode atuar de forma direta ou

indireta, mas sempre respeitando a separação dos poderes, ou seja, Poder Legislativo,

Executivo e Judiciário. Contudo, a discussão envolve invasão de competências territoriais, e

sobretudo, entre os Poderes do Estado, situação essa que contraria a Constituição Federal

de 1988 ao estabelecer harmonia e independência entre os Poderes. No mais, o viés da

democracia deve ser a base de qualquer atuação político-administrativa, com senso de

responsabilidade e equilíbrio.

PALAVRAS-CHAVE: Descentralização. Freios e Contrapesos. Harmonia. Independência.

Democracia.

ABSTRACT: This work sought to demonstrate the prevailing theories about the emergence of

the State, its organization and the consequences in the scope of the performance of the public

power. In Federalism as a form of state, the Public Administration can act directly or indirectly,

but always respecting the separation of powers, that is, Legislative, Executive and Judiciary.

However, the discussion involves the invasion of territorial competences, and above all,

between the State Powers, a situation that contradicts the Federal Constitution of 1988 when

establishing harmony and independence between the Powers. Furthermore, the bias of

democracy must be the basis of any political-administrative action, with a sense of

responsibility and balance.

KEYWORDS: State. Decentralization. Separation of Powers. Brakes and Counterweights.

Harmony. Independence. Democracy. Provisional Measure.

25 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Bauru. E-mail: [email protected]. 26 Pós-doutorado pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra; Doutor em Ciências da Reabilitação pela USP; Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino (ITE) e Especialista em Direito Público pela ITE; Professor na Faculdade Iteana de Botucatu; Integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito do Centro Universitário de Bauru. Coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário de Bauru, onde leciona de Direito Administrativo e Constitucional. Advogado. E-mail: [email protected].

80

1 INTRODUÇÃO

O surgimento do Estado é um estudo complexo e que demandas de grandes

revoluções, sobretudo, quanto ao exercício do poder. Um Estado Soberano possui

independência perante outros, atuando de forma pacífica e proporcional frente aos ditames

constitucionais e legais.

O Brasil tem como forma de Estado o Federalismo, que permite uma

descentralização da Administração Pública, possibilitando uma atuação mais eficaz, e nesse

contexto, a separação de poderes também permite a atuação direta, típica e atípica de cada

um dos três Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.

A Constituição Federal de 1988 preconiza a ideia de que entre os poderes deve haver

uma relação harmônica e independentes, entretanto, muitas são as situações de excesso

cometida por representantes, e por essa razão foi necessário criar um sistema que garanta

proporcionalidade nos atos praticados pelo chefe de estado, é o chamado checks and

balances, conhecido popularmente como sistema de freios e contrapesos.

Assim, o artigo busca analisar a atuação do Poder Executivo Federal frente ao Poder

Legislativo, notadamente quanto as questões de excesso por conta das disposições

colocadas ao chefe de estado no texto constitucional, como os Decretos e Medidas

Provisórias, e como esses excessos cometidos podem causar prejuízos não apenas ao

sistema organizacional do Estado, mas também a insegurança jurídica ao Poder Judiciário e

a sociedade.

Desta forma, a observância aos princípios constitucionais deve ser colocada em

pauta no cenário político atual, tendo em vista que em ocasiões oportunas não se verifica a

proporcionalidade nos atos executivos-administrativos, e que serão verificados

oportunamente.

2 O SURGIMENTO DO ESTADO E A SEPARAÇÃO DE PODERES

A Idade Média foi um período em que o Estado passou por vastas transformações, e

um dos fatores principais refere-se à situação patrimonial dos indivíduos, que determinava a

organização e o sistema administrativo; isto porque, após as invasões e guerras internas, o

comércio tornou-se dificultoso, o que gerou uma necessidade de subsistência por meio da

posse de terras. Este acontecimento diz respeito ao Feudalismo, que compreende porções

de terras de domínio dos senhores feudais ou de proprietários menos poderosos que se

colocavam a disposição deste. Neste contexto, o poder passou a centralizar-se perante o Rei

e todos os proprietários dos feudos. Entretanto, entre os séculos XV e XVIII o Rei passou a

ter legitimidade exclusiva em relação ao poder e ainda, possuir diversos privilégios, instituindo

81

os chamados Estados Absolutistas em que a vontade do rei, era a vontade de todos, ou até

mesmo a própria vontade do Estado. Todavia, em oposição a este despotismo, muitos

revolucionários foram adeptos a teorias e correntes de pensamento que possibilitariam a

oportunidade de atuação do povo, uma vez que os atos praticados pelo soberano eram

impugnáveis por aqueles pelos quais se dirigiam. Neste cenário, o jurista brasileiro Paulo

Bonavides cita em uma de suas obras o escritor, político e filósofo francês Montesquieu (1689-

1755) no qual era adepto à Teoria do Liberalismo (BONAVIDES, 1996, p. 70), propalando o

objetivo de afastar o poder concentrado nas mãos do rei, porém, sem entregá-lo ao povo; o

princípio liberal defendido por Montesquieu chegou ao limite do princípio democrático com o

advento de movimentos e revoluções, uma vez que foi pela introdução do princípio

democrático ao conteúdo do poder, que o povo passou a participar das relações políticas e a

serem detentos de seus direitos fundamentais. Nesta enseada, com a criação de

Constituições e ordenamentos jurídicos por parte dos países europeus, surgiu o Estado de

Direito, com o desígnio de que o poder surge do povo, fundando-se no direito de eleger os

representantes de governo. Além do mais, nesta época, a burguesia que era composta pelo

proletariado se tornou vitoriosa em face da concentração advinda do Estado Absolutista,

oportunidade em que passaram a ditar os pensamentos em nome de todos os cidadãos e,

como forma de defesa da liberdade que fora conquistada, surgiu à preconização da divisão

de poderes.

Nada obstante, Montesquieu, de forma elementar, apresentou a situação de

que o Estado seria constituído de poderes que se distinguiam um do outro, preconizando o

brocardo francês “le pouvoir arrête le povoir” (BONAVIDES, 1996, p. 44-46) com a tradução

“o poder detém o poder”; a elementar dada pelo filósofo deu ensejo ao parágrafo único do

artigo primeiro da Constituição Federal da República Federativa do Brasil 1988, com o advento

de que todo poder emana do povo. Ademais, com a obra O Príncipe, Maquiavel além de

apresentar pela primeira vez a palavra “estado” o qual referiu-se como um ente político,

apresentou também a presença de três poderes distintos da França no século XVI, que

consistiam no parlamento, no rei e um judiciário independente. Assim, para o surgimento do

Estado de Direito foi necessária à criação de um ordenamento jurídico, para que o poder

efetivamente emanasse do povo, precedida de determinações constitucionais. Além disso, a

separação de poderes apresentava uma técnica de organização estatal e foi vista por

Montesquieu como uma necessidade de divisão orgânica e funcional do Estado em três

distintas funções, uma vez que desde que o Estado teve seu surgimento, de fato realiza cada

uma dessas funções e, ainda, a inevitabilidade de buscar por uma uniformidade no tratamento

para com o povo em face dos atos praticados pelo Estado; esta situação deu a origem a Teoria

dos Freios e Contrapesos, onde os atos praticados pelo Estado podem ser atos gerais ou atos

82

especiais, porém, todos buscando uma uniformidade no tratamento para com a sociedade,

isto é, uma atuação de maneira proporcional e equivalente.

A propósito, o político e jurista Michel Miguel Elias Temer Lulia (TEMER, 2003,

p. 118) entende que na verdade o poder é uno e indivisível, mas que o Estado é atribuído de

funções, dividindo-se da seguinte forma: “uma, produtora do ato geral; outra produtora do ato

especial e uma terceira solucionadora de controvérsias”. Logo, ao interpretar os pareceres do

jurista, evidencia-se a existência de funções típicas, conferidas a cada um dos poderes, isto

é, funções independentes que são atribuídas aos órgãos e indelegáveis, que, porém, por

previsão constitucional, podem ser exercidas de forma atípica, relacionando-se entre si.

Assim, houve a divisão dos poderes em Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário.

O Poder Legislativo possui como função própria e típica a normativa, levando

em consideração que possui a reprimenda de elaborar normas, que consistem em preceito

obrigatório, geral e abstrato; entretanto, como função harmônica com o Poder Judiciário, pode

atuar judicialmente, como no caso do Senado Federal julgar o Presidente da República nos

crimes de responsabilidade, segundo o artigo 52, inciso I da Constituição Federal de 1988 e,

atua harmonicamente com o Poder Executivo ao dispor sua organização administrativa, como

por exemplo, provendo cargos e concedendo férias. Por outro lado, o Poder Judiciário possui

como função típica, a jurisdicional, uma vez que tem por objetivo aplicar a lei diante de um

conflito intersubjetivo de interesses com definitividade; ademais, atua de forma atípica e

harmônica com o Poder Legislativo, podendo a título de exemplo, elaborar portarias e

regimentos internos dos Tribunais e, de forma harmônica com o Poder Executivo, poderá, por

exemplo, organizar-se, prover cargos e dentre outros atos administrativos. Por fim, a função

administrativa é a função exclusiva do Poder Executivo, uma vez que possui o escopo de

administrar e aplicar a lei para atender o interesse público.

Logo, verifica-se que no Brasil não há uma divisão de poderes de forma rígida e

definitiva, uma vez que há funções realizadas harmonicamente e atipicamente por todos os

poderes (ALEXANDRINO; PAULO, 2004, p. 11), entretanto, o desempenho das funções

administrativas, por parte de qualquer um dos poderes, tem a responsabilidade de atentar-se

às normas e princípios atinentes ao Direito Administrativo.

Em suma, a criação do ordenamento jurídico possibilitou a abertura ao ato

administrativo, que por meio da lei movimenta a atuação do poder público, e esta atuação por

vezes se vincula ao texto de lei, e, por vezes, é possível situações em que a lei dê abertura

para que o administrador descida a melhor maneira de agir, por meio de critérios de

oportunidade e conveniência. Entretanto, há de se verificar quem são os responsáveis por

realizar os atos administrativos e a forma como são delegados.

83

2.1. O Poder do Estado

Superadas as considerações básicas quanto ao surgimento do Estado, há de se

considerar os elementos que compõem o Estado, quais sejam o povo, território e o poder.

Povo é um dos elementos mais complexos de conceituar, uma vez que possui classificações

que devem ser estudadas de forma isolada para não acarretar em confusões. Dentre diversos

doutrinadores, é unânime a aceitação de que povo é um elemento pessoal, tendo em vista

que sem este não haveria a formação do Estado (DALLARI, 1995, p. 81). Não obstante, o

conceito de povo foi ampliado durante a ascensão da política da burguesia em meados do

século XVIII, tendo em vista o surgimento de revoluções que procuravam defender os direitos

dos cidadãos, o que refletiu na própria cidadania; a cidadania corresponde ao direito dos

cidadãos de participarem das organizações políticas, ou seja, são titulares de direitos

públicos.

Dalmo de Abreu Dallari entende que a aquisição da cidadania por parte do cidadão,

depende das condições e pressupostos fixados pelo próprio Estado.

Ora, se o Estado fixa uma determinada lei, o cidadão que se submete ao

ordenamento jurídico deste, será titular do direito e do dever ali fixado. Em contrapartida,

Kelsen estabelece que o direito público compreende a situação de que o Estado é também

uma das partes interessadas, isto é, os direitos e deveres dizem respeito tanto ao próprio

Estado, quanto aos cidadãos componentes deste.

Assim, a aparição da cidadania como um ponto marcante do direito público ampliou

o significado de povo, que não tão somente compreende aos indivíduos que vivem e habitam

em um determinado local (o próprio elemento pessoal), mas que também exercem direitos e

deveres provenientes do ordenamento jurídico criado pelo Estado. Nesta enseada, há uma

classificação sucinta de povo, sendo: população e nação. A primeira é vista como mera

expressão numérica, demográfica ou econômica, onde os indivíduos reúnem-se em um

determinado local submetendo-se a um poder central doravante do Estado Moderno. Já no

que tange à nação, há uma evolução quanto ao seu conceito jurídico.

Como segundo elemento há o Território, que teve seu surgimento apenas no

Estado Moderno. Inicialmente, a organização territorial se dava por meio de cidades-estados,

que eram limitadas a um centro urbano e a um centro rural vizinho, e, como não havia ensejo

para conflitos entre estas fronteiras, não houve a necessidade de se delimitar a extensão

territorial. Na Idade Média, com o surgimento de conflitos entre as sociedades principalmente

durante a época do Feudalismo, mostrou-se necessária a delimitação territorial, bem como a

delimitação da soberania. Pois bem, o espaço o qual compreende a validade da ordem jurídica

estatal é visto como o território; inclusive Hans Kelsen compreende que o território é uma

84

necessidade do Estado, uma vez que com a delimitação territorial é possível à vigência

simultânea de ordens estatais.

Por fim, falemos do Poder do Estado. Na ideologia de diversos doutrinadores,

é nítida a característica primordial do Estado, como sendo o poder. Kelsen apresentou o

seguinte parecer “Pensa-se no Estado como um agregado de indivíduos, um povo, que vive

dentro de certa parte delimitada da superfície da Terra e que está sujeita a certo poder: um

Estado, um território, um povo, um poder”. Pois bem, ao estudarmos o elemento território,

Kelsen definiu que a delimitação territorial é primordial para um poder ser aplicado; afinal, o

ordenamento jurídico criado pelo Estado como um poder típico ou até mesmo atípico deve ser

visto como a validade do poder (KELSEN, 2000, p. 364).

O jurista vai além ao entender que o poder é visto como a função do Estado, e que a

soberania deve ser vista de forma isolada, uma vez que é vista como uma autoridade

proveniente de direitos e obrigações poder (KELSEN, 2000, p. 364-365).

Por outro lado, Miguel Reale entende que o Estado é detentor do poder de decidir

em última instância; por meio de seu parecer, o conteúdo jurídico que é atribuído à sociedade,

configura também um poder-dever do Estado de ligar-se ao ordenamento jurídico a ele

atribuído, com a competência de pronunciar a última palavra. No entanto, o Estado não pode

dispor deste poder a ele atribuído e decidir da forma como bem entender, visto que existem

regras constitucionais e infraconstitucionais que devem ser seguidas, podendo-se fazer uma

relação com um dos princípios que norteia o Direito Administrativo, qual seja o Princípio da

Legalidade.

Entretanto, não é possível determinar um poder como sendo estritamente

político ou estritamente jurídico, uma vez que mesmo que o poder se encontre meramente na

esfera política, acaba mesmo que implicitamente por participar da natureza jurídica. Assim,

com o surgimento do poder, que dá ensejo à soberania do estado de criar o seu ordenamento

jurídico, outorga a capacidade de independência estatal e a possibilidade de uma organização

administrativa, tendo em vista que o Estado não é detento somente de um poder, como será

mostrado a seguir.

2.2. O Federalismo como forma de Estado e a descentralização do poder

Em sede de preliminar, há duas formas de estado: o Unitário e o Federal; o primeiro

representa a existência de um poder central, que consiste no próprio núcleo do poder político,

já o segundo representa uma autonomia, conforme competências elencadas em uma

Constituição. Outrossim, o Estado Unitário se difere do Estado Federal em razão da

85

descentralização27. A palavra federação advém do latim foedus, que significa aliança. A

Federação teve origem com no nascimento dos Estados Unidos, quando as antigas Treze

Colônias Inglesas se desvincularam da dominação inglesa no ano de 1776 e constituíram

ordens jurídicas independentes, qual seja o Estado soberano, no ano de 1787.

Alguns anos depois, foi celebrado um tratado que tinha como escopo proteger a

independência ora conquistada, não havendo mais a presença de colônias, mas sim de

Estados, oportunidade que recebeu o nome de Estados Unidos da América, tendo em vista

que seu surgimento deu-se de fato por uma união de Estados. Neste cenário, os constituintes

americanos, influenciados pelo Princípio da Separação de Poderes advindas do filósofo,

político e escritor Montesquieu (1689-1755), elaboraram o Sistema de Freios e Contrapesos

com a presença dos três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Assim, a Federação

como forma de governo consiste na aliança ou união de Estados.

No Brasil, houve uma evolução no que tange a Federação, surgindo inicialmente e

de forma provisória por meio do Decreto 1, de 15 de novembro de 1889, que estabeleceu “as

normas pelas quais se devem reger os Estados Federais”, no entanto, somente com a

Constituição Brasileira de 1891 que houve os preceitos básicos quanto à Federação como

forma de estado. Segundo o jurista e político Michel Temer, “quando o Estado busca pela

satisfação do interesse público, poderá este prestar serviços de forma direta, sem que haja

qualquer deslocação do desempenho dessas funções para outro centro, ou, ao contrário,

permitindo o seu desenvolvimento por outros núcleos”. Temer apresenta tanto um conceito

de descentralização administrativa quanto de descentralização política e em ambos, advém

do Estado Federal (TEMER, 2003, p. 57).

Descentralização Política corresponde à possibilidade de estabelecer

comandos normativos, que são provenientes da função legislativa do Estado. Nos termos no

artigo 18 da Constituição Federal de 1988 da República Federativa do Brasil, há a seguinte

redação: “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil

compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos

termos desta Constituição.”.

Neste cenário, a Constituição Federal descentralizou três esferas políticas,

correspondendo à União, Estados-Membros e Distrito Federal e os Municípios; estas

possuem autonomia para criar seu próprio ordenamento jurídico de acordo com as suas

próprias atribuições. Destarte, o Princípio da Supremacia da Constituição Federal deve ser

levado sempre em consideração tanto em relação à descentralização administrativa, quanto

27 Modernamente, alguns autores sustentam o Estado Regional como terceira espécie de forma de Estado, no qual é menos centralizado do que o Unitário, porém, não chega ao extremo da descentralização do Federalismo. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria Geral do Estado. 190. Ed. São Paulo: Saraiva. 1995. Página 215.

86

à política, uma vez que a Constituição é um documento supremo que apresenta os direitos,

deveres e preceitos da sociedade, devendo ser respeitada pelos três poderes.

No âmbito do Direito Administrativo, a Descentralização Administrativa tem

como objetivo a criação de pessoas jurídicas por parte das três esferas políticas, com o

objetivo de que a pessoa jurídica a ser criada (ALEXANDRINO; PAULO; 2004, p. 17), possua

eficiência quanto ao serviço público que lhe for atribuída. Inclusive, a doutrina apresenta duas

formas para a descentralização administrativa: a outorga que corresponde ao fato do Estado

criar uma entidade por meio de lei e lhe transferir um serviço, de ocorrência em Autarquia, no

qual apenas estas são criadas por lei específica, as outras como uma fundação pública, serão

autorizadas em lei específica, contudo o surgimento destas depende de uma formalização do

poder público, nos termos do artigo 37, inciso XIX da Constituição Federal de 1988; também

poderá ser feita por meio de delegação, no qual o Estado transfere por meio de contrato ou

ato unilateral, unicamente a execução do serviço, onde o ente delegado prestará o serviço em

seu próprio nome e por sua conta e risco, no entanto, sob a fiscalização do Estado.

Logo, a Descentralização Administrativa dá ensejo à Administração Pública Indireta,

que se compõe de autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de

economia mista. Em ordem prática, citaremos o exemplo do Departamento de Água e Esgoto

– DAE, da cidade de Bauru, interior do Estado de São Paulo; o município de Bauru não

possuía competência para suprir o interesse público quanto ao serviço do tratamento de água

e esgoto de forma eficiente, oportunidade que se tornou indispensável à criação de uma

pessoa jurídica que conseguisse atuar de forma a atender o interesse social, portanto, com o

advento da Lei n0 1.006 de 24 de dezembro de 1962, a autarquia passou a ser responsável

por gerir, administrar e desenvolver os serviços públicos de água e esgoto da cidade

(ALEXANDRINO; PAULO; 2004, p. 17-18).

Não obstante, a Descentralização Política e a Descentralização Administrativa não

devem ser confundidas com a Desconcentração, tendo em vista que nesta há uma divisão de

competências no âmbito da própria estrutura da entidade integrante da Administração Pública

Direta ou Indireta, com o escopo de tornar mais eficiente à execução do serviço. Em ordem

prática, o exemplo utilizado será no âmbito da Administração Direta Federal em que, quando

a União realiza uma distribuição de competências dentro de sua própria estrutura, como

ocorre com o Ministério do Transporte, Ministério da Educação, dentre outros. Ainda assim, a

Desconcentração dá origem aos chamados Órgãos Públicos, que por sua vez, são centros de

competência e não possuem personalidade, tendo em vista que não se trata de uma nova

pessoa jurídica, mas sim uma divisão de atribuições dentro de uma mesma entidade

administrativa. Ao lado da estrutura apresentada, o direito brasileiro também analisa

determinados entes privados que colaboram com o desempenho dos serviços públicos

estatais, mas que não possuem fins lucrativos, que são as Entidades Paraestatais. Em ordem

87

prática, o Serviço Social da Indústria (SESI) é uma entidade paraestatal, que possui a

finalidade de promover o bem-estar social e a melhoria da qualidade de vida do trabalhador

que atua nas indústrias.

Em síntese, a forma de estado adotada pela República Federativa do Brasil

possibilitou a descentralização administrativa e política, bem como a instituição de órgãos

públicos que tem a capacidade de gerenciar de maneira mais eficiente os interesses públicos.

3 O PODER LEGISLATIVO E A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO

BRASIL DE 1988

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabeleceu como forma

de organização de Estado o federalismo, o que consequentemente trouxe aos entes

federativos a autonomia administrativa, política, tributária e financeira, se for necessário.

Mas o viés do texto maior é a perspectiva da separação de poderes, que conforme

mencionado, Montesquieu trouxe uma revolução no que tange a separação dos poderes, de

modo que cada Poder (Legislativo, Executivo e Judiciário) exercia uma função típica, inerente

à sua natureza, atuando independentemente e autonomamente (LENZA, 2008, p. 291).

Contudo, a teoria de Montesquieu foi objeto de um abrandamento, de modo que além

das funções típicas que cada poder viria a exercer, também haveria funções atípicas, mas

sempre a observar o artigo 2º da Constituição Federal que determina a harmonia e

independência dos poderes e é claro, a questão do bicameralismo federativo do Poder

Legislativo no Brasil, isto é, composto por duas casas: Câmara dos Deputados e Senado

Federal (previsto no artigo 44 da Constituição Federal de 1988), com funções importantes

para a organização e funcionamento do país, uma vez que tende a representar o povo e os

Estados-membros e Distrito Federal.

Neste viés o Poder Legislativo teve uma função precípua, tendo como função típica

a de legislar e como função atípica a de promover a fiscalização contábil, financeira,

orçamentária e patrimonial do Executivo, inclusive uma função de natureza executiva que é

de dispor sua organização, provendo cargos, concedendo férias, licenças a servidores, etc.,

bem como de natureza jurisdicional, em que o Senado Federal julga o Presidente da

República nos crimes de responsabilidade, previsto no artigo 52, I, do texto maior (LENZA,

2008, p. 293).

As funções de cada Poder é estritamente definido pela Constituição Federal, de modo

que o artigo 49 busca aprimorar e definir as atribuições do Poder Legislativo, e ao observar o

dispositivo muitos são os momentos em que se verifica a neutralidade e independência a que

o poder é submetido, e ainda a forma de fiscalização e controle nos atos exercidos pelo Poder

Executivo Federal, notadamente ao inciso V, que prevê “Art. 49. É da competência exclusiva

88

do Congresso Nacional: ... V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem

do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;”, e neste ponto é onde se

verifica a limitação dos atos do Poder Executivo, uma vez que a atuação deve se pautar na

Constituição Federal e no respeito às diretrizes legais e democráticas, que foram construídas

com o decorrer dos anos.

Mas outros são os incisos que mostram a eficácia do Legislativo, como no inciso I,

pelo qual este deve referendar Tratados, Acordos ou Atos Internacionais que acarretem

encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, o que perfaz em um ato

complexo, conjugando-se a vontade do chefe do poder executivo e a do poder legislativo, ou

então, a previsão do inciso X, que compete ao poder bicameral a fiscalização e controle dos

atos do Poder Executivo Federal.

A cooperação entre os poderes é notadamente expressa pela Constituição

Federal de 1988, que representa o texto mais importante do meio jurídico e que deve ser

respeito e seguido por todos; o agir com sabedoria não corresponde a atuar sem observar os

princípios e preceitos legais, mas sim a harmonia pacífica e realizada com excelência que faz

um Governo centralizado e respeitoso, de modo a garantir a pacificação social e uma atuação

pautada a observar os pressupostos constitucionais e jurisdicionais.

Muitas são as medidas que podem ser tomadas pelo Chefe do Poder Executivo

Federal, que é o chefe de estado e chefe de governo, ou seja, representa o Estado Brasileiro

em âmbito internacional, bem como nas diretrizes internas, entretanto, não há liberdade de

atuação, tendo em vista ser um país democrático e federativo, existindo, oportunamente,

limites no âmbito de atuação.

Assim, uma análise deve ser realizada no tocante ao Governo atual de nosso

país e a forma como os meios colocados à disposição do Presidente da República,

notadamente às Medidas Provisórias e Decretos estão sendo administrados e a forma como

o Congresso Nacional têm se posicionado a respeito.

3.1 Finalidade e campo de atuação das Medidas Provisórias e dos Decretos por parte do

chefe do Poder Executivo Federal

As medidas provisórias e os decretos são medidas colocadas à disposição do

Presidente da República em casos específicos e que merecem atenção.

As medidas provisórias, muito embora tenha força de lei, não é verdadeira espécie

normativa, uma vez que não há de se falar em processo legislativo para a sua formação, o

que encontra previsão no artigo 62 da Constituição Federal, e em termos históricos, substituiu

o decreto-lei que tinha previsão no artigo 74, “b”, c/c artigos 12 e 13 da Constituição de 1937;

89

artigos 49, V, e 58 da Constituição de 1967 e artigos 46, V, e 55 da Constituição de 1967, na

redação dada pela emenda constitucional nº 1/69 (LENZA, 2008, p. 370-371).

A medida provisória é utilizada pelo Presidente da República em casos de relevância

e urgência, sendo um ato monocrático e unipessoal, não havendo a participação do

Legislativo quando da formação, chamado a participação após a sua edição, mas que produz

efeitos imediatos, pelo qual o processo de criação foi estabelecido pela Emenda

Constitucional nº 32/2001, conforme será explanado a seguir.

A tramitação é especificada no Site da Câmara dos Deputados (CÂMARA DOS

DEPUTADOS, 2020), pelo qual uma vez editada pelo Presidente, o prazo de vigência é de

sessenta dias, prorrogáveis uma única vez por igual período, conforme parágrafo 7º do artigo

62, contudo, se findo o prazo e não havendo o encerramento das votações nas Casas, o prazo

inicial de sessenta dias, será prorrogado por mais sessenta dias, o que totaliza o prazo de

120 dias, o qual se não for convertida em lei, a Medida Provisória perderá sua eficácia

(LENZA, 2008, p. 374). .

No caso de não ser aprovada no prazo de 45 dias, contados da sua publicação, a

Medida Provisória tranca a pauta de votações da Casa em que se encontra, seja a Câmara

dos Deputados, seja o Senado Federal até sua votação. Quando esta chega ao Congresso

Nacional, cria-se uma comissão mista, conforme o dispositivo constitucional, formada por

deputados e senadores para aprovar um parecer, após, o texto segue para o Plenário da

Câmara e após, ao Plenário do Senado, assim, se a Câmara ou o Senado rejeitar a medida

ou ela perder a eficácia, os parlamentarem devem editar um Decreto Legislativo para

disciplinar os efeitos jurídicos gerados durante a vigência, o que mostra uma grande

insegurança jurídica.

Se a Medida for aprovada será enviada ao Presidente para sanção, podendo vetar o

texto parcial ou integralmente, de acordo com suas diretrizes, e, conforme o parágrafo 10 do

artigo 62 da Constituição Federal, veda-se a reedição, na mesma sessão legislativa, de

medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia pelo decurso do

prazo. Também há a hipótese de Decretos a serem editados pelo Presidente da República,

pelo qual o Presidente da República tem uma competência exclusiva, conforme artigo 84,

inciso IV, da Constituição Federal de 1988, pelo qual pode sancionar, promulgar e fazer

publicar leis, bem como pode expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução,

tratando-se de um poder regulamentar, de forma a materializar as competências privativas no

artigo 84 do diploma através de Decretos (LENZA, 2019, n.p).

O conteúdo dos decretos, devem sempre estar definidos em lei, subordinando-se aos

preceitos nela previstos, tendo em vista ser uma fonte secundário do direito, e, no caso de

extrapolar os limites da lei, haverá uma afronta ao princípio da legalidade, com previsão no

artigo 5º, II, da Constituição Federal de 1988 e também ao princípio da separação de Poderes,

90

artigo 2º e elevado à categoria de cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4º, III, da Constituição),

isto porque a expedição de normas gerais e abstratas é função típica do Poder Legislativo, e

além de afrontar preceitos constitucionais, o Congresso Nacional possui a prerrogativa de

sustar os atos do normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar,

conforme previsão no artigo 49, inciso V.

Neste ínterim, o Informativo n° 515 do ano de 2008 do Supremo Tribunal Federal,

referente a ADI nº 3.983 e ADI n° 3.990, entendeu pelo passibilidade de controle concentrado

de constitucionalidade sob Decretos Autônomos por parte do Presidente da República,

revestido de indiscutível conteúdo normativo, e assim, vislumbra-se que, em pese a

Constituição Federal de 1988 tenha atribuído uma função atípica de legislar através de

Medidas Provisórias ao chefe do Poder Executivo Federal e também de regulamentar uma lei

a fim de dar fiel cumprimento a mesma, há limites a serem seguidos, limites estes que levam

em consideração direitos e garantias fundamentais, sob pena de sustação por parte do

Congresso Nacional, o que será delimitado a seguir.

3.2 O Decreto da flexibilização do porte de armas no Brasil e a sustação pelo Congresso

Nacional

No dia 07 de maio de 2019, o Presidente da República editou o Decreto nº 9.785 pelo

qual, em tese, flexibilizou o porte de armas no Brasil, dispondo sobre a aquisição, o cadastro,

o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas de fogo e de munição,

regulamentado a Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).

Contudo, antes deste Decreto, outros Decretos (sobre o mesmo teor) já haviam sido

publicados, mas que, pela complexidade do caso referente à posse e aquisição de armas de

forma flexível, alguns Deputados acabaram por repudiar os atos em redes sociais, o que

acabaram fazendo com o que o Presidente da República revogasse os Decretos anteriores e

então, editasse esse, que será objeto de análise (GAZETA DO POVO, 2019).

O Decreto regulava a possibilidade de porte e aquisição de Armas de Fogos por

alguns profissionais, dentre eles, Advogados, contudo, desde já uma observação deve ser

feita: um tema de grande complexibilidade e com base em níveis de criminalidade com o uso

de Armas de Fogo, não deveria ser apresentado ao Congresso Nacional uma possibilidade

de flexibilização em adquirir e ter posso através de um Projeto de Lei?

Senão vejamos, um dos pontos centrais é a possibilidade de aquisição de armas de

fogo de uso permitido ou de uso restrito de forma automática por todo e qualquer membro das

Forças Armadas ou da Política, sem a comprovação de antecedentes criminais, um fato que

é exigido pelo Estatuto do Desarmamento; contudo, um risco para a periculosidade social, ou

seja, policiais são investigados por envolvimento em Milícias Privadas ou Organização

91

Criminosa, assim, dispensar a comprovação de antecedentes criminais poderia aumentar a

criminalidade em tais situações e é claro, uma confusão para a Administração Pública em

pautar quanto à fiscalização e permissão.

Ainda, o Decreto permite a aquisição de rifles e fuzis semiautomáticos, espingardas

e carabinas, por qualquer pessoa da população, de grande porte destrutivo e a venda de

armas de fogo, munições e acessórios por estabelecimento comercial credencial pelo

Comando do Exército, conforme disposto no artigo 16, o que nos permite a reflexão de riscos

à segurança pública, algo que é pautado no Preâmbulo e no artigo 5º, caput, portanto, um

direito fundamental (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2019).

Outrossim, vale a ressalva de que em Janeiro de 2019 foi editado o Decreto nº

9.685/2019, mas que por questões de ilegalidades e inconstitucionalidades, o chefe do Poder

Executivo Federal editou mais dois Decretos (9.785 e 9.797, ambos no ano de 2019), que,

conforme o entendimento do Ministério Público Federal: “A regulamentação dada à Lei

10.826/2003 – a partir da edição do Decreto 9.685/19, de janeiro de 2019, e ampliada com os

Decretos 9.785 e 9.797, de maio de 2019 – usurpa a competência constitucional do Poder

Legislativo, pois veicula normas manifestamente contrárias à política pública instituída pelo

Congresso Nacional” (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2019).

Do mesmo modo, o Ministério Público Federal continua o relato de que os três

Decretos referentes à flexibilização no Porte de Armas foi editado sem qualquer diálogo com

entidades e organizações da área da segurança pública e, pior, à margem do Sistema Único

de Segurança Pública, aprovado pela Lei nº 13.675/2018.

As violações são tamanhas, de modo que ensejou ao Projeto de Lei nº 233/2019, de

autoria do Senador Randolfe Rodrigues que sustasse o Decretos das Armas, passando então

o texto pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado no dia 12 de Junho de 2019, o

que rejeitou, por 15 a 9 votos, parecer contrário ao projeto de autoria do Senador Marcos do

Val, que é favorável ao Decreto.

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado adotou o parecer dado pelo

Senador Vital do Rêgo no sentido de que o Presidente da República havia extrapolado a poder

regulamentar ao editar a norma, e isto nos leva à conclusão de que a regulamentação

realizada ao Estatuto do Desarmamento, Lei nº 10.826/2003, apresentou diversas violações,

e, no mais o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/1990, também foi alvo de

regulamentação (MIGALHAS, 2019).

O artigo 242 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que é crime a venda,

fornecimento, gratuito ou entrega, de qualquer forma, a criança ou adolescente arma, munição

ou explosivo, com pena de reclusão de três a seis anos, e este crime, inclusive, é previsto no

artigo 16, inciso V, do Estatuto do Desarmamento; ocorre que, o Decreto nº 9.785/2019, no

artigo 36 § 6º, prevê a possibilidade de prática de tiro desportivo por menores de dezoito

92

anos de idade dentro de locais autorizados e com prévia autorização do responsável, o que

notavelmente encontra uma ruptura com o artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente

e com o artigo 227 do diploma constitucional ao prever o princípio da proteção integral da

criança e adolescente, pois este visa a educação e o ensino em escolas em primeiro lugar

e não o incentivo à utilização de armas.

O Decreto necessariamente rompe com a separação dos poderes, preconizada na

Constituição Federal no artigo 2º, uma vez que dispõe em sentido contrário a duas leis

federais em pleno vigor no ordenamento jurídico brasileiro, e, no mais os Decretos foram

utilizados de forma indevida, extrapolando a previsão constitucional, revogados pelo

Presidente da República, editados novamente com, em tese, o mesmo texto.

Desta forma, um princípio constitucional, que inclusive é uma cláusula pétrea,

conforme o artigo 60, § 4º, III, da Constituição Federal de 1988, que consiste na separação

dos poderes, acabou sendo violado, vez que as Medidas Provisórias não tem como finalidade

a criação de normas ou inovações legislativas, mas sim, são regulamentações postas à

disposição do chefe do poder executivo federal em casos de extrema urgência e necessidade,

o que não foi visto.

4 A DEMOCRACIA NO CENÁRIO ATUAL BRASILEIRO DE CRISE NA POLÍTICA E NA

SAÚDE E A BASE CONSTITUCIONAL DE PERMANÊNCIA DA HARMONIA E

INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES

A Constituição Federal de 1988 apresenta uma sistemática do Estado Democrático

de Direito, que é evidenciado logo no artigo 1º: “todo poder emana do povo, que o exerce por

meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Desta forma, verificamos a existência de certa limitação do poder autoritários, com

prevalência dos direitos fundamentais, e assim, verificar a existência da chamada soberania

popular (LENZA, 2008, p. 9).

Neste cenário, poderíamos ressaltar que o Brasil já passou por diversos movimentos

com finalidades democráticas, e que, com luta de toda a sociedade em 1988 a Constituição

Federal foi promulgada com a finalidade de trazer para o centro do poder o povo, com

possibilidades de eleições democráticas, com o exercício do sufrágio, e também a

independência dos poderes legislativo, executivo e judiciário, estabelecendo funções típicas

e atípicas de cada um destes.

Em termos de evolução histórica, hoje estamos em uma era completamente

tecnológica, em que campanhas eleitorais em redes e mídias sociais acabaram ganhando

força na última eleição federal, o que perfaz em alienação do eleitor, sobretudo, quando os

usuários de redes sociais compartilham rotineiramente matérias políticas.

93

Ora, em um mundo tecnológico e com todo acesso possível à informação, não

podemos negar que o cenário atual da política brasileira, acaba contrariando determinadas

regras constitucionais, sobretudo, ao da separação dos poderes e da forma federativa do

Estado.

A função típica do poder legislativo é a de legislar, enquanto que a função típica do

poder executivo é administrar, logo, será que a disposição das Medidas Provisórias e dos

Decretos ao chefe do poder executivo federal não estão colocando em risco os princípios

constitucionais e também a democracia?

É um questionamento que dificilmente terá uma resposta concreta, vez que após

tantos anos de corrupção advinda de chefes dos poderes, sendo necessária a aplicação da

Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), talvez sejam consequências retiradas

de governos corruptos.

Com o cenário mundial decorrente da pandemia no novo coronavírus, a Organização

Mundial da Saúde têm feito, desde o início da pandemia, pronunciamentos e orientações no

sentido de que a sociedade deve realizar o distanciamento social e aplicar regras de higiene,

com uso de álcool gel e máscaras.

Entretanto, o atual chefe de estado, sem partido político, em todo ínterim da

pandemia, realizou situações controversas, como passeatas com apoiadores em prol do

governo (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020), manifestações em prol do retorno do AI-5 e contra

a atividade do Congresso Nacional (PODER 360, 2020), não utilizar a máscara de proteção

em público, o que levou a Justiça do Distrito Federal deferir uma liminar que obriga o

Presidente a utilizar o equipamento de proteção (CONJUR, 2020).

Em vários momentos verificamos atos de irresponsabilidade em relação aos deveres

como Presidente com a toda a nação brasileira, sobretudo no que tange à saúde pública,

mesmo com números exorbitantes de contaminados e de óbitos, que até o presente momento

superam a marca de cento e vinte mil (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020), a ausência de

distanciamento social em tempos de pandemia e também atitudes contrárias à função do

Poder Legislativo.

Conforme explanado, o Poder Legislativo tem como função típica a de legislar, o que

significa que é necessário todo um procedimento desde a elaboração de um Projeto de Lei

(ou então uma Proposta de Emenda à Constituição) até sua promulgação, o que reflete a

Constituição Federal ser rígida e ao mesmo tempo ser específica ao determinar a

independência entre os poderes.

Outrossim, recentemente o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de

Morais entendeu que não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as

decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas

competências constitucionais e no âmbito de seus territórios, adotaram ou venham a adotar

94

importantes medidas restritivas que são reconhecidamente eficazes para a redução do

número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da Organização

Mundial de Saúde (OMS) e vários estudos técnicos científicos (SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL, 2020).

Logo, verificamos que a democracia é um gênero que abrange diversos princípios

advindos do texto constitucional, e, a partir do momento em que verificamos a invasão de

competências territoriais ou a evasão entre os três poderes, é um risco de estarmos colocando

em risco o nosso direito de poder.

Assim, para que a separação dos poderes possa funcionar de forma harmônica e

independente entre si, conforme prevê o artigo 2º, da Constituição Federal, existe o sistema

de freios e contrapesos, que foi idealizado por Montesquieu, de modo que o pensador

entende, em resumo, que aquele que formula as leis não pode ser responsável por sua

execução, e o mesmo raciocínio ao contrário.

Montesquieu entende (MONTESQUIEU, 2000, p. 167) em sua obra que quando, na

mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao

Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou mesmo o

Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se

o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com

o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria

o Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor.

Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou

do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções

públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.

A forma clássica checks and balances, ou seja, o sistema de freios e contrapesos

tem como escopo evitar que os poderes cometam excessos, devendo sempre haver uma

harmonia entre o Poder Legislativo, Executivo e Judiciário.

Assim, quando verificamos a previsão do artigo 49, V, da Constituição Federal, o

Chefe do Poder Executivo Federal não pode exceder quando da elaboração de atos que estão

a sua disposição, sob pena do Congresso Nacional sustar estes atos.

Neste cenário, verificamos que o checks and balances tem por fim evitar excessos

por qualquer um dos três poderes e que em havendo completa harmonia entre os poderes,

as garantias constitucionais previstas a toda sociedade, estarão protegidas.

Posto isso, identificamos a importância de se ter um Estado Democrático de Direito

que tenha em uma base, poderes totalmente independentes e harmônicos entre si, com

escopo de aliar uma nação livre de qualquer excesso governamental com a preservação de

direitos e garantias fundamentais.

95

CONCLUSÃO

Com base em todo o exposto no presente artigo se reverifica que o Estado Brasileiro

já passou por diversas revoluções até chegar no ápice da democracia e no sistema

organizacional que a Constituição Federal de 1988 preconiza. Contudo, os princípios, regras,

diretrizes e apontamentos que são colocados no texto constitucional nem sempre são

verificados por representantes dos poderes.

Notamos que as Medidas Provisórias e Decretos que são disposições colocadas ao

Chefe do Poder Executivo Federal, deixaram de ser aplicadas apenas em casos de urgência

e grande relevância ou então para regulamentar, conferir cumprimento efetivo a leis, mas

analisamos que passaram a ser utilizadas como um meio de legislar.

Claro que cada um dos poderes possui funções típicas, que são inerentes do

respectivo poder, mas também funções atípicas, que são complementares, no entanto, a partir

do momento em que deixa se observar a separação dos poderes (princípio constitucional),

podemos concluir que a democracia é colocada em risco.

Isso porque a democracia é um direito e uma garantia fundamental, e no viés do

cenário político atual verifica-se certa desproporcionalidade na atuação dos poderes, sem

observar o sistema de freios e contrapesos, o que foi visto, por exemplo, no Decreto para

flexibilização do porte de arma, em que o Congresso Nacional sustou o ato de forma eficaz,

tendo em vista que o aludido Decreto contrariava alguns preceitos legais, como regras

previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, e também constitucionais.

O Brasil atualmente passa por crises, sobretudo, no setor da saúde, em decorrência

da pandemia do novo coronavírus, o que precisa de uma harmonia entre os Poderes, para

que leis, decisões judiciais e regulamentações sejam feitas de forma eficaz a controlar o vírus

e também a garantir o direito social previsto no artigo 6º, da Constituição Federal de 1988,

que é a saúde.

Desta forma, se houve harmonia e independência entre os poderes, conforme o

artigo 2º, da Constituição Federal de 1988 estabelece, a democracia estará garantida frente

à toda sociedade, até porque o poder emana do povo e ao irem às urnas nas eleições, espera-

se do representante eleito a proporcionalidade, harmonia e observância ao interesse público

em todo e qualquer ato praticado, sobretudo, aos atos do representante interno e externo do

Brasil, respeitando, assim, a Constituição Federal.

REFERÊNCIAS

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96

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98

A IMPORTÂNCIA DA APLICAÇÃO DAS TÉCNICAS DE CONFRONTO E

SUPERAÇÃO DO PRECEDENTE NO NOVO CPC: ENTRE A ESTABILIDADE DA

INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E A FOSSILIZAÇÃO DA VIDA INTERPRETADA

LIMA, Lucas Correia de28

RESUMO: O presente trabalho tem como tema as técnicas de distinção e superação dos precedentes à luz do novo ordenamento jurídico processual civil inaugurado pela Lei n.º 13.105/2014. Tal panorama convida a uma análise da controvérsia entre a segurança jurídica e a interpretação do caso concreto, a partir das consequências do uso daquelas técnicas tanto como exceções que confirmam a regra dos precedentes, quanto em mecanismos que desvirtuam a estabilidade dos julgados. Pensando nisso, compreende-se a necessidade de discutir como e porque os provimentos judiciais não podem se constituir em reprografias dos repositórios da Jurisprudência, e o uso adequado de técnicas que considerem no julgamento as peculiaridades fáticas de cada caso. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de caráter exploratório, onde o método hipotético-dedutivo permeia o desenvolvimento do trabalho, com levantamento dos critérios a serem satisfeitos para a aplicação dos institutos. Discorre-se sobre as técnicas de distinção e superação dos precedentes e como o bom uso de tais técnicas podem assegurar a justiça do julgamento visando não fossilizar seus entendimentos judiciais em face da dinamicidade da realidade. PALAVRAS-CHAVE: Segurança jurídica. Precedentes. Distinção. Superação.

ABSTRACT: The present paper has as its theme the techniques of distinction and overcoming of precedents in the light of the new civil procedural legal system inaugurated by Law No. 13,105/2014. This panorama invites an analysis of the controversy between legal certainty and the interpretation of the concrete case, based on the consequences of the use of those techniques both as exceptions that confirm the rule of precedents, as well as in mechanisms that distort the stability of judges. Thinking about it, we understand the need to discuss how and why judicial provisions cannot constitute reprographics of the repositories of jurisprudence, and the appropriate use of techniques that consider in the trial the factual peculiarities of each case. This is a bibliographical research of exploratory character, where the hypothetical-deductive method permeates the development of the work, with a survey of the criteria to be satisfied for the application of the institutes. It discusses the techniques of distinction and overcoming of precedents and how the proper use of such techniques can ensure the justice of the trial in order not to fossilize their judicial understandings in the face of the dynamics of reality. KEYWORDS: Legal certainty. Precedent. Distinguish. Overruling.

28 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Especialista em Direito Processual Civil. Mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Servidor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Advogado.

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1 INTRODUÇÃO

O Novo Código de Processo Civil trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro

inovações diversas em prol da efetividade de valores constitucionais positivados na Carta

Magna de 1988, alguns, inclusive, de natureza principiológica e mandamental à legislação

infraconstitucional. Entre eles, destaquem-se os luminares da segurança jurídica e da duração

razoável do processo, dois princípios caros ao sistema judiciário em razão de sua imbricação

com o atual assoberbamento em que se encontraram os foros de justiça do país.

Do aprimoramento dos recursos de mediação a inovações como ordem cronológica

de julgamento de processos e atos ordinatórios mais amplos pelos auxiliares da justiça, a

nova Lei Adjetiva Civil realça ainda a jurisprudência como fonte normativa e, nos casos

expressamente especificados, como precedentes cuja observação dos juízos se impõe,

assegurando, desta forma, uniformidade nas decisões judiciais para casos semelhantes os

quais se avolumam nas barras dos órgãos judicantes.

A atual pretensão de garantir uma jurisprudência segura, coesa e uniforme tem suas

vantagens de trazer segurança jurídica sobre temas debatidos amiúde nas lides forenses,

mas também guarda preocupantes consequências quando mal manejadas por operadores

negligentes na aferição da distinção fática entre o precedente e o caso concreto.

Tal se dá porque o uso indiscriminado de uma súmula ou julgamento de caso

repetitivo pode ocasionar a desconsideração de questões simples, mas que, se bem

percebidas, podem redirecionar o final de um litígio.

Técnicas de confronto e superação dos precedentes precisam ser cada vez mais

estudadas sob pena de derrubarmos os julgamentos ao limbo de repetição cega e sistemática

da aplicação de entendimentos jurídicos das instâncias superiores, esquecendo-se que são

as instâncias originárias, ou, até o máximo suas instâncias revisoras de segundo grau,

aquelas que apreciam os fatos que circundam a lide.

Torna-se premente garantir que a jurisprudência seja manejada conforme as

peculiaridades fáticas que a ensejaram o precedente o qual se deve seguir. O problema se

mostra quando a desconsideração da origem do precedente é atropelado pelo uso dele

próprio, e a tentativa de celeridade e segurança jurídica subtraem do jurisdicionado a

apreciação real sobre o problema peculiar de sua vida, tornando-o mais a um diante de uma

série de casos já decididos.

O presente trabalho se dispõe a analisar as técnicas de confronto e superação do

precedente, com suas devidas diferenciações, em cotejo com os ditames do Novo Código de

Processo Civil, a fim de ressaltar a relevância assumida por tais técnicas diante da iminência

de uma fossilização do pensamento jurídico pretextado sob a rubrica de uma inconsequente

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segurança jurídica que pode, ao avesso da uniformização da jurisprudência, resvalar em

julgamentos abstratos alheios às peculiaridades fáticas de cada caso concreto.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de caráter exploratório, baseada em obras,

artigos publicados em periódicos, ementários de jurisprudência e revistas especializadas. O

método hipotético-dedutivo permeia o desenvolvimento da pesquisa, que se desenvolve

inicialmente de modo investigativo com levantamento dos critérios a serem satisfeitos para a

aplicação dos institutos.

Neste trabalho, ingressa-se na seara aludida pela doutrina como commonlização do

sistema brasileiro erigido sob os pilares do civil law. Argumenta-se a necessária compreensão

de uma Teoria dos Precedentes capaz de compreender a relevância de conceitos primordiais

para a aplicação de uma jurisprudência forte e segura, como ratio decidendi, obiter dictum,

além dos mecanismos previstos para a superação e afastamento dos precedentes nas

hipóteses em que seus fundamentos não se adequem ao caso concreto. Neste ponto,

especifica-se a argumentação sobre as técnicas de distinção (distinguishing) e superação

(overruling), tecendo considerações sobre a forma de uso de tais técnicas e seus tipos. Ao

final, sublinha-se acerca dos vícios comuns no uso dessas técnicas e os riscos afeitos aos

ordenamentos normativos em que a força dos precedentes ganha importância na resolução

dos litígios.

Por fim, a conclusão esboça como tais técnicas não prejudicam a segurança jurídica

e podem assegurar a justiça do julgamento, indo de encontro a uma fossilização do

pensamento jurídico, em favor de uma necessária segurança jurídica.

2 O SISTEMA “COMMON LAW” À BRASILEIRA

O sistema jurídico jurisprudencial brasileiro difere do norte-americano, apesar das

inovações vigentes decorrentes do novel código processual. Isso porque, diferente do sistema

civil law que predomina no Brasil, “a jurisprudência na common law ultrapassa os limites da

lide entre as partes, constituindo fonte básica de criação do Direito” (STRECK, 1995, p. 60).

Antes da vigência do novo código, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade

de se manifestar sobre essa diferença, afirmando, na ocasião, que nem todo pronunciamento

das cortes superiores são de observância obrigatórias, e, por mais que sejam recomendáveis

tal adoção pelos juízos inferiores em respeito à segurança jurídica (SANTOS, 2007), a

compreensão de determinado fato posto a julgamento não necessariamente se converterá,

diferente do sistema do common law, numa decisão de eficácia vinculativa aos órgãos

judicantes:

No atual estado da arte, as decisões do Supremo Tribunal Federal não possuem, sempre e em todos os casos, caráter vinculante. Não se aplica, no

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Brasil, o modelo de stare decisis em vigor nos países do common law, no qual as razões de decidir adotadas pelos tribunais superiores vinculam os órgãos inferiores. [...] Vale dizer: tendo a Corte enunciado a sua compreensão acerca da matéria, a partir da interpretação do sistema constitucional, é apenas natural que esse pronunciamento sirva de diretriz relevante para as autoridades estatais – não apenas do Poder Judiciário – que venham a enfrentar novamente as mesmas questões (Embargos de declaração na Petição 3388, Relator Ministro Roberto Barroso, julgado em 23/10/2013).

Por sua vez, a súmula vinculante exarada pelo Supremo Tribunal brasileiro também

guarda suas peculiaridades próprias, referentes ao caráter geral e abstrato do enunciado

normativo, as quais a fazem diferir dos precedentes do sistema do common law, não estando

os enunciados brasileiros tão vinculados aos fundamentos do caso concreto julgado, e mais

a uma generalidade do comando normativo que exprime em seu texto. Nas palavras de

Georges Abboud:

A súmula vinculante, ao contrário dos precedentes norte-americano, vale pelo seu enunciado genérico e não pelos fundamentos que embasaram determinada decisão de algum Tribunal. [...] A súmula vinculante, por sua vez, da mesma forma que o assento português, se desvincula do(s) caso(s) que a originaram, ela se impõe como um texto normativa de vinculação geral e abstrata para casos futuros tal qual a lei, possui dimensão atemporal, logo, duração indefinida, passando a ter validade após sua publicação da imprensa oficial. (ABBOUD, 2011, p. 361)

Ainda no âmbito das distinções, enquanto no sistema civil law, o precedente só

mostra relevância quando em consonância com um conjunto de outros precedentes. Nos

dizeres de Maximiliano, para esse sistema “uma decisão isolada não constitui jurisprudência;

é mister que se repita, e sem variações de fundo. O precedente, para constituir jurisprudência,

deve ser uniforme e constante”. (MAXIMILIANO, 2003, p. 151).

Assim, um único precedente se trata de apenas mais um julgado que, por si só, não

gera caráter de observância - seria como a primeira trilha que se abre numa selva ainda a se

desbravar, esta sim, a jurisprudência, na metáfora das palavras do jurista Nelson Sampaio

(1985):

Um primeiro julgado assemelha-se à trilha aberta em selva inexplorada. É a única clareira que convida à passagem. Se os que por ela seguirem chegarem à meta procurada, o caminho se tornará frequentado e se converterá, com o tempo, em segura estrada real (SAMPAIO, 1985, p. 32).

Já no sistema common law, constitui-se a “regra geral a de considerar-se um

precedente como relevante para o sistema” (WAMBIER, 2012, p. 16), pois este julgado, ainda

que único, guarda fundamentos os quais devem subsidiar decisões sobre casos similares e

reforçar a uniformidade da justiça.

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É justamente esse fundamento constituído pelo novo paradigma que irrompe do

precedente (também denominado holding) que irradia a força vinculativa do sistema common

law (WAMBIER, 2012), assentado no adágio stare decisis et non quieta movere - que significa

aproximadamente a expressão: “continuar as coisas decididas e não mover as coisas quietas”

(TUCCI, 2004, p. 160).

Logo, nesse sistema, a aplicação de um precedente não se dá de forma automática,

mas a partir de uma análise sobre a extração dos fundamentos da decisão (ratio decidendi)

do precedente paradigmático (precedent case) em relação ao caso apreciado (instant case)

(STRECK, 2008).

Tais fundamentos da decisão (ratio decidendi) que solidificam a força do precedente

se tratam das premissas necessárias à conclusão do caso julgado.

Um fundamento ou motivo, embora não necessário, pode ser suficiente para se alcançar a decisão. O motivo suficiente, porém, torna-se determinante apenas quando, individualizado na fundamentação, mostra-se como premissa sem a qual não se chegaria à específica decisão. Motivo determinante, assim, é o motivo que, considerado na fundamentação, mostra-se imprescindível à decisão que foi tomada. Este motivo, por imprescindível, é essencial, ou melhor, é determinante da decisão. Constitui a ratio decidendi

A positivação da ratio decidendi encontra guarida no artigo 926, §2º do NCPC:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. § 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. § 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

Em contrapartida, toda a explanação decisória que não se adeque à acepção da

razão de decidir do caso concreto versará uma mera opinião dissociada da motivação principal

conhecido como obiter dictum, oriunda do latim (dito para morrer) e que faz referência àquilo

que não tem relevância vinculativa e deve se restringir àquele caso em específico, por sentido

meramente persuasivo (WAMBIER, 2012).

Diferente da ratio decidendi que deve viver além do caso julgado, aplicando-se a

casos futuros, o dictum é aquilo que é dito para ficar e morrer naquele julgamento (idem,

ibidem).

A concepção do dictum está necessariamente atrelada à concepção da ratio

decidendi:

O conceito de obiter dicta, dictum está ligado ao conceito de holding, que é a regra ou princípio enunciado pelo juiz em um determinado caso que era necessário para a resolução da questão. Assim, toda e qualquer regra elaborada pela Corte que não era necessária para a solução da questão é considerada dicta, dictum. Considerando que as Cortes podem criar regras

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de direito, mas com a limitação de que elas devem estar relacionadas com os fatos postos sob adjudicação, esse poder está confinado pelas necessidades das controvérsias que lhe são submetidas para decisão. Os obiter dictum, portanto, são aquelas considerações jurídicas elaboradas pelo Tribunal não relacionadas com o caso, embora as considerem desnecessárias para justificar a decisão proferida. São pronunciamentos que se afastam do princípio justificador daquela decisão. A partir do momento que dele se afastam, o Tribunal passa a falar extrajudicialmente e nenhuma opinião que possa expressar é considerada vinculante. (SILVA, 2005, p. 303)

A distinção e compreensão de um e outro instituto (ratio decidendi e obiter dictum)

perpassa pela necessidade de se compreender o que irradia vinculação num determinado

julgamento e, por consequência, influencia na compreensão de uma teoria dos precedentes

no ordenamento jurídico brasileiro (MACEDO, 2015), sob pena de se gerar um imbróglio

irreparável na aplicação das normas processuais cíveis, como alerta Lucas Macedo (2015):

Nos sistemas jurídicos obrigatórios de civil law, justamente por tradicionalmente não se atribuir eficácia obrigatória aos precedentes, não houve preocupação doutrinária de definir ratio decidendi ou obiter dictum. Isso ocorre no direito brasileiro. Todavia, a partir do momento que se opera com precedentes, especialmente com CPC/2015, a problematização do que é efetivamente vinculante no precedente passa a fazer sentido e, assim, a discussão sobre a ratio decidendi torna-se uma das mais relevantes. (MACEDO, 2015, p.216)

Ignorar a relevância da distinção de ambos os institutos acarreta o risco de produzir

uma infinidade de precedentes paradigmáticos irrelevantes à observância de futuros casos

concretos.

Todavia, vale ressaltar que o obiter dictum de hoje, pode, no futuro, vir a ser a

fundamentação imprescindível para a resolução de determinada controvérsia, evoluindo,

portanto, para uma ratio decidendi. O voto vencido de dado julgamento, hoje, pode amanhã

ganhar maioria de entendimento no mesmo Plenário, mesmo porque, “além da possibilidade

de alteração de posicionamento de alguns ministros, pode haver também a mudança na

composição da Corte, com reflexões no resultado do julgamento” (SARMENTO; SOUZA

NETO, 2012, p. 405).

Como anteviu também Maximiliano:

Quantas vezes se observa achar-se no voto vencido, de alto juiz, ou na sentença reformada, do pequeno, do novo, estudioso e brilhante, a boa doutrina, tímida, isolada, incipiente hoje, triunfantes, generalizada, amanhã! (MAXIMILIANO, 2003, p. 183).

Destarte, mesmo no sistema de aplicação jurisprudencial algo-saxônico do common

law, em que a premissa do stare decisis é fundamental para a garantia da uniformidade das

decisões, a segurança jurídica encontra institutos excepcionais que permitem a revisão,

superação ou, até mesmo, a não aplicação de determinada ratio decidendi. Tais técnicas

constituem mecanismos assecuratórios da preservação da própria segurança jurídica, visto

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que não a ofendem, mas garantem o respeito ao exame jurídico da facticidade do caso

concreto posto a exame. Exemplos desses institutos são: a) o Distinguishing; b) Overruling;

c) Reversal e d) overriding.

Referidos institutos foram recepcionados expressamente no NCPC, como se pode

aferir dos §§2º, 3º e 4º do artigo 927 e do artigo 489, §1º, inciso VI:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. § 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo. § 2o A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese. § 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. § 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia. – grifos nossos. Art. 489. São elementos essenciais da sentença: [...] VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. – grifos aditados.

É sobre a aplicação dessas técnicas, inéditas de previsão normativa expressa, que

agora se discorrerá.

3 TÉCNICAS DE AFASTAMENTO E SUPERAÇÃO DA APLICAÇÃO DO PRECEDENTE

3.1 Distinção

Não existe fórmula pronta para que se decida pela aplicação ou não do entendimento

firmado pela jurisprudência, cabendo somente a analise acurada do caso concreto será capaz

de aferir a similitude fática entre o paradigma e o caso posto a exame.

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Há casos, porém, que apesar da aparente semelhança, peculiaridades fáticas

autorizam afastar a aplicação da ratio decidendi do precedente paradigmático. Nesses casos,

onde os fatos do caso julgado não coincidem em sua totalidade com os fatos que ensejaram

os fundamentos da jurisprudência consolidada, a atividade judicante deve realizar a devida

análise distintiva. Dissertando sobre o tema, Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael

Oliveira bem elucidam:

Nos casos em que o magistrado está vinculado a precedentes judiciais, a sua primeira atitude é verificar se o caso em julgamento guarda alguma semelhança com o (s) precedente (s). Para tanto, deve valer-se de um método de comparação: à luz de um caso concreto, o magistrado deve analisar os elementos objetivos da demanda, confrontando-os com os elementos caracterizadores de demandas anteriores. Se houver aproximação, deve então dar um segundo passo, analisando a ratio decidendi (tese jurídica) firmada nas decisões proferidas nessas demandas anteriores. Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, algumas peculiaridades no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente. (DIDIER JR; BRAGA, 2009, pp. 392).

A aplicação da técnica da distinção é própria dos sistemas jurídicos pautados no

stare decisis e não viola a segurança jurídica almejada, haja vista que, ao contrário disso,

trata-se de autêntica técnica que tem por objetivo primaz reconhecer a autoridade dos

tribunais no firmamento do precedente e a compreensão de que a utilização deles deve estar

restrita aos casos que efetivamente comportem a mesma análise, pois do contrário, estar-se-

ia desvirtuando a aplicação da jurisprudência consolidada sobre determinado contexto fático

para aplica-lo indiscriminadamente a qualquer contexto desprovido de similitude, em

desrespeito, ainda, à percuciente análise do caso concreto (DIDIER JR.; BRAGA, 2009).

A técnica da distinção respeita o direito enquanto produto de um julgamento

individualizado que reconhece os fatos de cada caso concreto, distante de uma automação

de conclusões em que o magistrado, de maneira robótica, passaria a aplicar precedentes das

cortes superiores sem se atentar para cada contexto fático, afinal, se “mesmo uma lei muito

cuidadosamente pensada não pode conter uma solução para cada caso” (LARENZ, 2009, p.

519), a conclusão jurisprudencial dos tribunais também estaria atrelada à constatação da

identidade de fatos para lograr à uma identidade de julgamento.

(...) deve-se, sempre, levar em consideração que cada caso específico colocado sob apreciação do Judiciário dificilmente ser completamente novo, e certamente não será o último, o que induz ao questionamento sobre a pertinência de se tentar resolver todos os casos trabalhando por atacado ou por amostragem e com a pretensão de que o texto do enunciado, da ementa ou das teses formadas consiga, de antemão, abarcar todas as situações da vida possíveis (...). (NUNES, HORTA, 2015, p. 10).

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Assim, somente pode-se tratar da mesma forma, os casos que sejam realmente

iguais, consolidando-se o brocardo treat like cases alike. Trata-se de “a capacidade de a

exceção confirmar a regra” (NUNES, HORTA, 2015, p. 13), havendo uma ruptura expressa e

casuística com o precedente, onde a decisão de não segui-lo faz constar a razão de assim o

fazer.

No novo Código de Processo Civil, tanto o magistrado, quanto a parte devem

apresentar a técnica de distinção de forma fundamentada a fim de demonstrar o cotejo

analítico fático distinto entre o caso atual e o precedente que, ou, em tese, vincula o juiz, ou,

na prática, prejudica a parte, respectivamente.

No que tange ao ônus da parte, há previsão no CPC de 2015, conforme se verifica

do artigo 1037, §9º, o qual estabelece incumbir à parte o ônus de demonstrar a distinção entre

a questão a ser decidida no processo em que litiga e aquela a ser julgada no recurso especial

ou extraordinário afetado, para que possa lograr o prosseguimento do seu processo que tiver

sido sobrestado por força daqueles recursos.

A necessidade de fundamentação judicial na aplicação da técnica da distinção pode

ser demonstrada, por exemplo, no artigo 489, §1º, inciso VI, que alçou a reportada

fundamentação como elemento essencial da decisão, sob pena de nulidade:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença: [...] § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: [...] VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

No que toca ao magistrado, contudo, impende destacar que “quanto maior for sua

autoridade, maior será o ônus argumentativo” (NUNES, HORTA, 2015, p. 14), pois reforça a

legitimidade e credibilidade da técnica que o tribunal responsável pela construção do

precedente ora afastado, justifique as razões do afastamento, estabelecendo em sua decisão

que não se trata de julgar conforme “o sabor do vento”, mas de apresentar consistente

fundamento apto a não aplicar o precedente outrora firmado e, desta forma, consolidar a regra

através da exceção.

Como se conclui, a utilização desta técnica pode ser feita em toda a verticalidade da

estrutura judiciária, do magistrado de primeiro grau à mais alta corte. Nesse ponto, o

Enunciado nº 174 do Fórum Permanente de Processualistas Civis assegurou que “a

realização da distinção compete a qualquer órgão jurisdicional, independentemente da origem

do precedente invocado”.

Algumas consequências podem advir da utilização desta técnica, como salienta

Bustamente sobre duas delas:

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(1) ou se estabelece uma exceção anteriormente não reconhecida – na hipótese de se concluir que o fato sub judice pode ser subsumido na moldura do precedente judicial citado; ou (2) se utiliza o argumento a contrario para fixar uma interpretação restritiva da ratio decidendi do precedente invocado, na hipótese de se concluir que o fato sub judice não pode ser subsumido no precedente. No primeiro caso (redução teleológica) opera-se a exclusão de determinado universo de casos antes compreendidos no âmbito de incidência da norma apontada como paradigma; no segundo caso (argumento a contrario) a norma jurisprudencial permanece intacta, mas se concluiu que suas consequências não podem ser aplicadas aos fatos que não estejam compreendidos em sua hipótese de incidência. (2012, p. 473).

Assim, a técnica da distinção pode tanto trazer uma exceção à aplicação de

determinando precedente judicial paradigmático, apontando um contexto fático onde aquele

paradigma não se adequa, como também interpretar restritivamente a ratio decidendi do

precedente paradigma concluindo que este não será aplicável aos fatos examinados porque

não se encontram no raio dos fundamentos que o originou (DIDIER JR.; BRAGA, 2009).

Por fim, para fins de compreensão acerca do método de aplicação da referida técnica,

convém trazer à baila os ensinamentos de Dierle Nunes e André Horta (2015), os quais

comentam que o processo de aplicação orbita em torno de duas fases.

A primeira, denominada de distinguishing within a case (distinguindo no caso

precedente) consistiria em distinguir, no próprio precedente paradigma, os fatos que são

materialmente relevantes e formam a base do raciocínio jurídico (a ratio decidendi do

precedente) e aqueles fatos que foram irrelevantes para a construção do precedente

paradigma (obiter dictum) (NUNES; HORTA, 2015).

A segunda fase, chamada de distinguishing between cases (distinguindo entre casos)

consiste em, de fato, cotejar o precedente paradigmático (precedent case) em relação ao caso

apreciado (instant case) (STRECK, 2016), a qual pode ser realizada em maior ou menor grau,

haja vista que nenhum caso será geminiamente igual ao outro (NUNES, HORTA, 2015).

Nesse ponto, a distinção consistirá numa discussão valorativa sobre os fatos de cada

caso cotejado, fixando-se ao final ou uma distinção normativa, em que a aplicação da norma

jurisprudencial não abrange os fatos do caso examinado (instante case), reduzindo-se o

universo de casos aplicáveis ao precedente redução teleológica (NUNES; HORTA, 2015); ou

distinção fática, em que os fatos constantes no julgamento são absolutamente diferentes

(contrários) dos fatos do precedente e, por isso, as consequências desse não podem ser

aplicadas – argumento a contrario (NUNES, HORTA, 2015).

A consequência de ambos os tipos de distinção, todavia, é a mesma: o afastamento

do precedente.

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3.2 Superação

Assim como não se pode aguardar a exatidão da lei a todos os instantes, tampouco

a perpetuidade de sua interpretação pode reinar, fazendo com que determinado pensamento

vigore para infinitos contextos em múltiplos espaços sociais distintos na cronologia do

pensamento, sob pena de engessamento do estudo e, consequentemente, do aprimoramento

da aplicação do direito (CARDOZO, 2004).

Para evitar essa fossilização jurisprudencial, incumbe ao tribunal estar atento às

mudanças de uma geração que repercutem no entendimento das leis e, por vezes, superam

o modo de aplicação da norma. Não é só o legislativo que deve evoluir com o tempo, mas

também o Judiciário. Nesse sentido:

O tribunal que melhor atende ao Direito é aquele que reconhece que as normas jurídicas criadas numa geração distante podem, depois de uma longa experiência, mostrar-se insuficientes para outra geração; é aquele que descarta a antiga norma quando encontra outra norma jurídica que representa o que estaria de acordo com o juízo estabelecido e assente da sociedade e não concede qualquer direito de propriedade adquirido à antiga norma por conta da confiança nela depositada. Foi assim que os grandes autores que escreveram sobre a common law descobriram a fonte e o método de seu desenvolvimento e, em seu desenvolvimento, encontraram a saúde e a vitalidade de tal Direito. Ele não é nem deve ser estacionário. A mudança desse atributo não deve ficar a cargo da legislatura. (CARDOZO, 2004, p. 112).

Os institutos responsáveis por essa superação de precedentes outrora consolidados

é famoso por diferentes nomenclaturas a depender dos efeitos desta superação (MITIDIERO,

2013): overturning, overriding e overruling.

A priori, cumpre consignar antes de adentrar na seara da superação do precedente,

a diferença entre eles e o reversal, que se trata apenas da reforma do julgamento em grau de

recurso.

Portanto, não configura “uma técnica de superação, mas apenas urna técnica de

controle.” (SILVA, 2005, p. 153), exercida ordinariamente no gozo das atribuições das cortes

pela faculdade de reforma das decisões de juízos inferiores no Poder Judiciário.

Estremadas essas premissas, e ingressando na área nas técnicas de superação dos

precedentes, temos o overturning, consistente na alteração parcial do precedente, a qual pode

se dar por duas maneiras: o primeiro, quando o tribunal, diante do precedente e “sem admitir

desgaste ou equívoco da antiga solução, reconfigura-o parcialmente, tomando em

consideração aspectos fático-jurídicos não tidos por relevantes na decisão anterior”

(MITIDIERO, 2013, p. 106). Nesta hipótese, o tribunal apenas reconhece aspectos que não

levou em consideração anteriormente, isto é, que houve erro na argumentação, mas não na

conclusão, e, assim, readéqua o precedente para abarcar esses novos aspectos

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argumentativos, transformando-o numa nova compreensão normativa jurisprudencial – daí se

dizer transformation (MITIDIERO, 2013).

Sobre o tema:

A transformation pode se dar pela consideração de fatos e circunstâncias que não teriam sido consideradas como relevantes pelo julgador do precedente formado. Pode, ainda, considerar razões diversas para a formação da decisão do que aquelas obtidas no precedente. Transformation e overruling se aproximam pelo afastamento e não aplicação de um precedente, em tese aplicável, contextualmente, mas divergem didaticamente por quatro razões, vejamos: a uma, na transformation a Corte não se esmera em identificar e apontar qualquer erro no julgamento ou inadequação do precedente, apenas apresenta-se uma fórmula diversa para o julgamento de questões assimiladas face a uma nova perspectiva de julgamento; enquanto no overruling o erro ou a inadequação do precedente deve ser motivadamente apontados e, ainda, demonstrada a conveniência de sua revogação; a duas, por não haver erro no julgamento precedente, tal entendimento não é alterado frente ao sistema, passando a coexistir com a decisão transformada; já com o overruling, o precedente revogado é extirpado do ordenamento, perdendo validade e aplicabilidade; a três, como não há revogação do precedente transformado, a utilização da técnica da tranformation não tem o condão de provocar grandes rupturas no sistema, sendo muitas vezes realizada de forma implícita e quase despercebida aos olhos dos demais julgadores, ao contrário do que ocorre com a revogação, que deve sempre ocorrer de forma clara e explícita, anunciando claramente a mudança no ordenamento; a quatro, dada a discrição inerente à utilização da transformation, sua aplicação é capaz de gerar alguma confusão na aplicação futura da regra [...] A transformation não visa artificialmente à estabilidade do sistema como forma de evitar ou de ocultar a revogação de um precedente. Antagonicamente, como se viu, além do overruling de fato não comprometer a estabilidade do sistema, não se justificando a invocação para o seu afastamento, a transfomartion pode servir tanto ao aprimoramento do sistema como forma de amadurecimento de um entendimento, como, também, de certa forma, pode servir a corroborar para o enfraquecimento da confiança de um precedente, preparando ou legitimando uma futura revogação. (POLICHUK, 2011, p.83-86).

A segunda maneira de aplicação dessa técnica é através do overriding, em que a

redefinição da incidência do precedente é feita de forma mais expressa através de sua

reescrita redacional, e não, como no caso anterior, apenas pela reformulação do seu

entendimento (MITIDIERO, 2013). Também ocorre pela superveniência de fatores não

compreendidos na formulação da redação anterior do precedente.

Não escapa à observação que essa limitação do precedente se assemelha à

distinção (MARINONI, 2011), contudo, a diferença reside no fato de que, se na distinção a

limitação do precedente se dá por dessemelhança fática entre o precedente e o caso cotejado,

no overriding a limitação ocorre porque parte do precedente resta superado, ou seja,

inaplicável em qualquer hipótese por força da incidência de fatores supervenientes

(MITIDIERO, 2013).

Ademais, no overriding, os casos podem ser “material e substancialmente idênticos,

não admitindo qualquer distinção de fato, porém, o que há é uma nova situação e um novo

110

entendimento no plano dos tribunais e da academia permitindo o tratamento diferenciado".

(POLICHUK, 2011, p. 86-87).

Um exemplo no Brasil, citado por Ataíde Jr. (2012) ocorreu com o enunciado sumular

n.º 343 do Supremo Tribunal Federal, que estabelece que não cabe ação rescisória por ofensa

a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de

interpretação controvertida nos tribunais”, cuja restrição do alcance foi realizada pelo próprio

tribunal ao entender que não seria aplicável o enunciado quando a alegada violação fosse em

face de norma da Constituição

Em remate, a mais complexa técnica de superação envolve o overruling. Nele, há

superação total do precedente. Nas palavras de Daniel Mitidiero, trata-se da “resposta judicial

ao desgaste da sua dupla coerência (congruência social e consistência sistêmica) ou a um

evidente equívoco na sua solução” (MITIDIERO, 2013, p. 106). Essa perda da dupla coerência

é elucidada por Marinoni:

Um precedente deixa de corresponder aos padrões de congruência social quando passa a negar proposições morais, políticas e de experiência. [...] As proposições morais determinam uma conduta como certa ou errada a partir do consenso moral geral da comunidade, as proposições políticas caracterizam uma situação como boa ou má em face do bem-estar geral e as proposições de experiência dizem respeito ao modo como o mundo funciona, sendo que a maior classe dessas últimas proposições descreve as tendências de condutas seguidas por subgrupos sociais. [...] De outra parte, o precedente não tem consistência sistêmica quando deixa de guardar coerência com outras decisões. (MARINONI, 2011, p. 392)

O cuidado com a técnica do overruling vem demonstrado no novo código, em seu

artigo 927, §2º, ao sugerir que a conclusão pela superação do entendimento “poderá ser

precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que

possam contribuir para a rediscussão da tese”.

A doutrina argumenta ainda dois tipos de overruling: o prospective e o antecipatory.

No primeiro, a técnica do overrruling ganha modulação temporal prospectiva, de

modo que a superação do precedente passa a ser aplicada aos casos vindouros, sem prejuízo

aos casos pretéritos, em homenagem ao princípio da confiança jurídica.

Assim, os efeitos da decisão que supera o precedente marcam data para surtir

eficácia, de modo a não surpreender os jurisdicionados com a aplicação imediata do novo

entendimento. Nas palavras de Marinoni:

Quando nada indica provável revogação de um precedente e, assim, os jurisdicionados nele depositam confiança justificada para pautar suas condutas, entende-se que, em nome da proteção da confiança, é possível revogar o precedente com efeitos puramente prospectivos (a partir do trânsito em julgado) ou mesmo com efeitos prospectivos a partir de certa data ou evento. Isso ocorre para que as situações que se formaram com base no precedente não sejam atingidas pela nova regra. (2016, p. 794).

111

Os efeitos prospectivos podem encontrar ainda subdivisões, como o prospective

prospective overruling e o pure prospective overruling, com tênue diferença, como explica

Marinoni:

Quando se posterga a produção de efeitos da nova regra, fala-se em prospective prospective overruling. Alude-se a prospective overruling para anunciar a mera irretroatividade da nova regra às situações anteriores à data da decisão e a pure prospective overruling para demonstrar o que ocorre quando a Corte não aceita que a nova regra regule o próprio caso sob julgamento (2016, p. 786).

Por fim, mas não menos importante acerca desta mesma técnica, é a polêmica sobre

o seu segundo tipo: o antecipatory, versando de alteração que supera o precedente das cortes

superiores pelo julgamento das cortes inferiores ao concluírem que o citado precedente já não

guarda a dupla coerência necessária à sua manutenção (MITIDIERO, 2013).

A polêmica existe pelo fato de que a superação não ocorre pela corte que produziu

o precedente, mas por um tribunal inferior que se antecipa no entendimento de superar aquele

precedente em vez de observá-lo. Daí se dizer que há uma superação por antecipação, pois

quem se manifesta é a corte inferior ao não observar o precedente.

Mister salientar que a iniciativa não parte das cortes inferiores, uma vez que a técnica

de antecipatorý overruling decorre de um exercício de previsibilidade pelas cortes inferiores,

induzida através de julgamentos das cortes superiores as quais já sinalizaram que aquele

precedente estava em vias de superação (MARINONI, 2011). Não se trata, aqui, de uma

superação propriamente dita, nem de permissão para a inobservância de precedentes

vinculantes, mas de antecipar um entendimento iminente e já apontado pela corte competente

de superar seu precedente.

Para aplicação de sua técnica, aduz Marinoni que são exigidos os seguintes

requisitos: "i) o desgaste do precedente; ii) as novas tendências das decisões da Suprema

Corte; e iii) a consciência de que a Suprema Corte está aguardando um caso apropriado para

a revogação do precedente." (2011, pp. 405-406).

Portanto, para seu uso, o estudo da movimentação da jurisprudência das cortes

superiores é indispensável, estando-se atento ao modo como vem sendo decidida

determinada questão e sua tendência de alteração, a fim de que se possa calcular, com

elevado grau de previsibilidade, a futura superação definitiva no momento oportuno a

futuramente ser apreciado pela corte superior. A falha nesta calculabilidade implica no

desacerto da técnica. Seu acerto, doutro lado, preserva a integração do sistema.

Por paradoxal que possa parecer, a legitimidade do antecipatory overruling advém do dever de a Corte de Apelação se comportar de acordo com a Suprema Corte. Em outros termos, a Corte de Apelação não deve só seguir

112

os passos, mas também poder proclamar, quando já iniciados os trabalhos de pavimentação do caminho, o rumo que será seguido pela Suprema Corte. (MARINONI, 2011, p. 410)

A previsibilidade da superação do precedente, entretanto, não é tão subjetiva quanto

parece. É possível antever quando determinado entendimento jurisprudencial não encontra

mais eco nos tribunais, seja através da discussão da doutrina, das inconsistências ou

incoerências com o meio social, etc.

Teme-se que a revogação do precedente possa gerar insegurança ou perda de confiança em outros precedentes. No entanto, quando os precedentes são revogados com base em critérios que também são reafirmados e respeitados, torna-se possível vislumbrar quando um precedente está em vias de ser revogado. E isso ocorre exatamente quando o precedente deixa de ter sustentáculo nas proposições sociais e se torna inconsistente, e, além disso, não há justificativa para a sua preservação em face dos fundamentos de estabilidade. Um precedente controverso costuma ser retratado nos trabalhos doutrinários e as distinções inconsistentes evidenciam a sua fragilidade. Tanto a crítica doutrinária, quando a judicial, são critérios de identificação dos precedentes que devem ser revogados, de modo que o overruling, nessas condições, certamente não elimina confiança nos precedentes judiciais. (MARINONI, 2011, pp. 400-401)

4 A APLICAÇÃO IRRACIONAL DOS PRECEDENTES E A CAUTELA DAS TÉCNICAS DE

AFASTAMENTO E SUPERAÇÃO DO PRECEDENTE

Como se pode observar na explanação deste trabalho, as súmulas vinculantes foram

criadas com o objetivo de dinamizar as demandas do Judiciário e trazer segurança jurídica

mediante um tratamento isonômico de resolução igual para casos similares. Longe de

hipótese de servilismo judicial, contemplam aspectos predominantes do sistema do common

law no ordenamento jurídico brasileiro em prol da celeridade processual e da confiança na

estabilidade das decisões judiciais pelos jurisdicionados (TUCCI, 2004).

Todavia, o uso das súmulas, vinculantes ou persuasivas, aliadas às decisões

tomadas em sede da sistemática do julgamento de recursos repetitivos, merece cautela ainda

para não incorrerem em decisões indiscriminadas das circunstâncias fáticas de cada caso. O

aprimoramento do Judiciário não surge para tornar o “juiz boca-fria-da-lei” em um “juiz-boca-

da-súmula” ou ainda “juiz-boca-de-qualquer-provimento-vinculante-dos-tribunais-superiores”,

conforme critica Lênio Streck e Georges Abboud (2016, p. 1).

Daí a relevância de se compreender a ratio decidendi dos enunciados da

jurisprudência, com o objetivo de sempre sobrelevar os fundamentos fáticos que ensejaram a

conclusão do precedente, atendendo ao contexto gerador do entendimento e buscando, a

partir daí, a similitude com os demais casos em apreço.

113

O afastamento da aplicação dos precedentes reside em examinar a adequação

desses. Para tanto, técnicas de distinção e superação foram previstas no novo código,

acompanhadas do renovada força jurisprudencial dada pela Lei Adjetiva Civil.

Todavia, mesmo tais técnicas podem ser utilizadas para desvirtuar seus objetivos

reais de aplicação, constituindo-se em caminhos de proposital inobservância do precedente.

Exemplo disso ocorre com a técnica de distinção, por vezes, manuseada como meio

de fugir da aplicação de precedentes mediante criação de artifícios fantasiosos que simulam

a dessemelhança fática. Nesse diapasão:

(...) nos países de common law não é incomum (o que não isenta de reprovação) os magistrados forçarem o distinguishing para afastarem de determinado precedente reconhecidamente ruim (bad law) mas que, pela autoridade e hierarquia que ostenta, não pode ser overruled (revogado) ou afastado de outra forma. (NUNES; HORTA, 2015, p. 313)

Observa-se nessas hipóteses evidente caso de desobediência ao comando da

segurança jurídica com criação de motivos ficcionais para o uso da distinção, apenas porque

o precedente não parece subjetivamente adequado ao juízo. Vícios, assim, obviamente,

malogram o sistema judiciário e corrompem a segurança jurídica esperada.

Não apenas o mau uso da técnica para afastar a aplicação dos precedentes é

verificada como vício numa nova teoria dos precedentes. Há também hipóteses em que as

próprias cortes são responsáveis pela criação dos vícios na utilização dos precedentes,

mediante artifícios que visam manter a todo custo precedentes, seja mediante a negação do

óbvio e criação de aberrações teóricas, seja pela criação de condicionantes inesperadas

atreladas ao entendimento.

Dois exemplos de vícios assim são aduzidos por Maurício Ramires (2009) como: a)

a “exclusão do monstro” e b) a “exclusão da exceção”.

O primeiro vício, da “exclusão do monstro”, ocorre “quando o intérprete se recusa a

reconhecer um determinado caso como uma hipótese da regra, criando uma distinção-sem-

diferença (distinction without a difference)” (RAMIRES, 2009, p. 106).

Em síntese, no vício da “exclusão do monstro”, limita-se o alcance do precedente de

forma arbitrária e desmotivada, negando o padrão que ele de fato possui com outro julgamento

em comparação, de modo que, embora o precedente se identifique com outro caso, inventa-

se qualquer razão para alegar dessemelhança e inaplicabilidade do precedente (NUNES;

HORTA, 2015). Assim, tal vício “significa negar a existência de um padrão de identificação

entre casos sem verdadeira razão para isso” (RAMIRES, 2009, p. 106).

O exemplo de Maurício Ramires é esclarecedor:

A proposta é a de que a soma dos ângulos de qualquer triângulo é 180º. Trata-se de uma “verdade” bem estabelecida e provada. Contudo, alguém alega que descobriu um triângulo cuja soma dos ângulos é maior do que 180º:

114

trata-se de um triângulo desenhado sobre a superfície de uma esfera. Esse triângulo tem um dos vértices no polo norte da esfera e os outros dois no equador. Cada um dos ângulos é um ângulo reto, de modo que a sua soma total ultrapassa 180º. Como se pode lidar com essa regra e com essa suposta exceção? Lakatos identifica e critica duas abordagens típicas dos matemáticos quando confrontados com um contraexemplo (counter-example, ou o que os clássicos chamavam de instancia in contrarium) de uma regra: (a) a “exclusão do monstro” (tradução livre para monster-barring) e (b) a “exclusão da exceção” (também tradução livre de exception-barring). A abordagem da “exclusão do monstro” é a que sustenta que o triângulo traçado na superfície de uma esfera simplesmente não é um contraexemplo da regra, porque não é um triângulo. O monster-barrer vai sustentar que a palavra triângulo não inclui em seu significado o desenho de três ângulos retos na superfície de uma esfera e, portanto, não se trata de uma refutação, mas de uma monstruosidade. A regra, pois, ainda seria válida. Tribe e Dorf dizem que se trata de um argumento de força bruta, no qual se preserva a verdade do teorema desconsiderando tudo que o desafia (...) (RAMIRES, 2009, p. 105-106).

O segundo vício da “exclusão da exceção” ocorre “quando o intérprete ajusta uma

proposição jurídica sem o exame dos pressupostos principiológicos que a inspiraram”

(RAMIRES, 2009, p. 111). Dessa forma, a corte cria uma exceção antes não prevista na

compreensão da ratio decidendi do precedente e, justamente por causa dessa imprevisão,

termina por surpreender o jurisdicionado com uma condição abrupta para a aplicação do

precedente ao seu caso.

Referida exceção, todavia, trata-se nada mais do que uma providência repentina

criada com o exclusivo objetivo de manter o precedente íntegro e, ao mesmo tempo, não

aplicá-lo a determinado concreto, não porque não se adeque, mas porque se convencionou

que não se deveria utilizá-lo. Cria-se, assim, “uma versão mais extensa da descrição da regra,

que simplesmente não havia sido aventada quando da sua instituição original, e que

contemplava uma exceção ad hoc” (RAMIRES, 2009, 111).

Essa abordagem leva a exclusões e inclusões ad hoc e fragmentárias de hipóteses no campo gravitacional de precedentes. Mas é exatamente isso que o positivismo tenta fazer, com suas compilações exaustivas de julgados e verbetes. Na prática vulgar, a coisa funciona assim. Toma-se uma regra geral (como a de que matar alguém é crime) e outras que parecem excepcioná-la (como a de que matar em legítima defesa não é ilícito). Os “casos concretos” são tomados por exemplos de subsunções perfeitas do caso à regra (vale recordar: “Não se configura a legítima defesa se a agressão do ofendido foi a mãos limpas etc.”) ou à exceção (“Age em legítima defesa da honra o agente que, ao surpreender sua mulher em adultério com o amante etc.”). Essas subsunções e exceções têm por característica serem realizadas ad hoc e, a partir daí, passarem a integrar um catálogo de aplicações e exceções prontas (e também de balanceamentos, ponderações etc.). Sem preocupação alguma com a integridade ou com a coerência, a catalogação de conceitos (sob a forma de verbetes e ementas) invariavelmente contempla enunciados desconexos e autoexcludentes.

.

115

Tanto um quanto outro vício traz à tona o risco da má aplicação dos precedentes a

partir de uma ausência da compreensão dos fundamentos que ensejam a construção da

jurisprudência a ser observada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São os homens e não as leis que precisam mudar. Quando os homens forem

bons, melhores serão as leis. Quando os homens forem sábios, as leis por

desnecessárias, deixarão de existir. Mas isto, será possível somente quando

as leis estiverem escritas e atuantes no coração de cada um de nós.

(HERMÓGENES)

O sistema jurídico brasileiro já não é mais o mesmo depois da promulgação da Lei

n.º 13.105/2015 – novo Código de Processo Civil. Erigido sob os pilares da primazia da

positivação das leis, cujo aspecto é pertinente aos sistemas de civil law, o modo de

interpretação dos precedentes foi reinventado pelo novo diploma que outorgou relativa

importância à jurisprudência.

Não se pode dizer que o sistema foi transmutado por inteiro ao perfil do common law,

mas teorias basilares desse modelo anglo-saxônico foram incorporadas e fundidas com o

sistema brasileiro, formando algo misto e totalmente inédito.

Essa ruptura com as delimitações legais e avanço da eficácia jurisprudencial foram

visto anteriormente com a Emenda Constitucional n.º 45 de 2014, ao criar as súmulas

vinculantes. O novo código, porém, inova ao trazer não um instituto, mas todo um complexo

sistema de formação dos precedentes, determinação de sua observância, métodos para sua

aplicação, estabelecimento da fundamentação da ratio decidendi e, ainda, estipulação dos

mecanismos aptos a afastar a aplicação desses mesmos julgados.

Para tanto, a observância da ratio decidendi dos precedentes se subjaz num

processo muito mais simplificado do que a construção de um enunciado vinculativo da mais

alta corte do país, assim como menos demorado à medida que não precisa advir daquela

corte para ser válido, eficaz e observável. Basta, para o novo código, que o competente órgão

colegiado pela uniformização exare seu pronunciamento sobre a aplicação da norma para que

os demais juízos inferiores sigam o referido posicionamento.

Tal ampliação não torna as autoridades judicantes mais servis. Assim como quando

se deparavam com um enunciado vinculante, diante do novo leque de precedentes, a

liberdade judicial reside na interpretação da ratio decidendi, na extração dos elementos

relevantes que construíram a resolução de determinada lide e em sua percepção sobre a

adequação dos fundamentos que geraram o precedente ao caso posto ao seu exame. Mesmo

diante de uma súmula vinculante, não se amoldando o contexto fático aos fundamentos que

ensejaram o enunciado da Suprema Corte, não se pode falar em dever de vinculação, pois a

116

observância ao precedente não implica numa incidência irracional de julgamentos pretéritos

a casos presentes, mas num processo de cognoscibilidade judicial sobre os fundamentos do

precedente e seu cotejo com os elementos fáticos da lide que julga.

A grande celeuma de se criar uma fossilização do pensamento jurídico pelas cortes

superiores a subordinar os magistrados de graus menores cai por terra pelas soluções

trazidas expressamente pelo novo código, consistentes em mecanismos de afastamento e

superação do precedente, afinal, assim como ocorrem com as leis, a velocidade das relações

sociais impõe às interpretações normativas rápidas necessidades de adaptações que não

podem permanecer engessadas sob argumento de que as cortes geradoras dos precedentes

não tiveram a oportunidade de se manifestar pela alteração de suas conclusões

paradigmáticas, fazendo dos juízos locais reféns da oportunidade incerta dos tribunais.

Sendo o direito expressão da vida, seus intérpretes estão além do trabalho

robotizado. Se os precedentes não têm o famigerado condão de castrar a independência e

livre convencimento dos julgadores, não podem se prestar também como meio de julgamento

às cegas, sem que se examine de forma percuciente a adequação do precedente utilizável

em sua correspondência materialmente fática ao caso concreto.

Podem, e devem, portanto, os juízes de qualquer grau, guardar atenção aos

elementos dos precedentes que lhe estão à mão para que, na hipótese de perceberem tanto

sua inadequação quanto sua superação em face das mudanças sociais provenientes da

realidade que o rodeia ou sistemáticas decorrentes das alterações estruturais do sistema

normativo que não se harmoniza mais com a conclusão jurisprudencial, rejeitar a aplicação

do precedente. Há, agora, previsão expressa das técnicas de distinção e superação,

mecanismos aptos a conduzir o magistrado à decisão mais justa do caso concreto, que, nem

sempre, equivalerá a aplicar o precedente. É nessa análise que se incrusta a liberdade judicial,

respaldada em idôneos e técnicos subsídios de natureza normativa e social sobre o

precedente.

O ordenamento processual brasileiro ainda tem muito a ser compreendido em face

de todas essas mudanças. Como todo trajeto desconhecido, o caminhar exige cautela. Assim

como a ampliação dos precedentes a serem observados pelos juízes e tribunais não se tornou

a petrificação da interpretação da norma, a relevância do uso das técnicas que afastam a

incidência dos precedentes necessitam de uma motivação objetiva, que se afaste do

casuísmo, do subjetivismo em manter o precedente intacto, da vaidade de não admitir a

deficiência das conclusões firmadas dos julgados e da mutabilidade leviana em criar novas

condições ou restrições de hipóteses de incidência sem justa motivação ou análise

pormenorizada da semelhança entre os fatos materialmente relevantes. Se as técnicas aqui

discorridas de distinção e superação do precedente asseguram a justiça no caso concreto e

estribam a liberdade judicial, a sua aplicação desmedida ou desmotivada torna a liberdade o

117

reino do arbítrio, esfacelando a segurança jurídica, ultima ratio da lógica da teoria dos

precedentes.

O presente trabalho visou demonstrar a relevância dessas técnicas, exceções que

auxiliar na estabilidade da interpretação jurídica e afastam a fossilização da vida quando

interpretada. Porque direito é vida, e, assim como o tempo, a interpretação da conduta

humana, plúrima por sua natureza, não para.

Como nos recorda Roberto Lyra Filho (1985), no direito nada é, mas tudo é, sendo.

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119

DA COOPERAÇÃO NO PROCESSO CIVIL: CONSIDERAÇÕES PARA QUE NÃO

SE TORNE (APENAS) UM IMPERATIVO CATEGÓRICO DA MORALIDADE

JUNQUEIRA, Laura29

BRAMBILLA, Pedro Augusto de Souza30

LIGERO, Gilberto Notário31

RESUMO: O Código de Processo Civil de 2015 foi o resultado de uma trajetória evolutiva do

Direito Processual Civil, destacando-se, aqui, desde a fase instrumentalista, passando pela

constitucionalização do direito, pelo pós positivismo e culminando, por fim, no

neoprocessualismo (ou formalismo valorativo), que preza pela adequada, efetiva e célere

prestação jurisdicional. Para tanto, considera-se necessária a participação efetiva dos sujeitos

processuais que, mediante o diálogo e a colaboração, devem construir uma decisão legítima.

Nesse sentido, o novo Codex, seguindo o modelo participativo implementado, positivou em

seu capítulo sobre as normas fundamentais do processo os deveres da boa-fé e da

cooperação processual. Assim, através da metodologia dedutiva e considerando os

ensinamentos de Immanuel Kant sobre o que seria direito, moral, bem como, levando em

consideração suas principais características, analisa-se os mecanismos sancionadores

relacionados ao descumprimento dos deveres de boa-fé e cooperação processual

implementados pelo Código de Processo Civil de 2015 sob a ótica kantiana, objetivando

analisar a presença (ou não) da coercibilidade que, segundo Kant, caracteriza o direito.

PALAVRAS-CHAVE: Neoprocessualismo. Boa-fé. Cooperação. Direito e Moral. Kant.

Coercibilidade.

ABSTRACT: The Code of Civil Procedure 2015 was the result of an evolutionary trajectory of

Civil Procedure Law, standing out here from the instrumentalist stage, through the

constitutionalization of law, post-positivism and finally culminating in neoprocessualism (or

formalism valuing), which values the adequate, effective and expeditious judicial rendering.

Therefore, it’s considered necessary the effective participation of the procedural subjects, who,

through dialogue and collaboration, must build a legitimate decision. In this sense, the new

Codex, following the participatory model implemented, made the duties of good faith and

procedural cooperation in its chapter on the fundamental norms of the process. Thus,

considering the teachings of Immanuel Kant about what would be right, moral, as well as,

taking into account its main characteristics, we analyze the sanctioning mechanisms related

29 Discente do Curso de Direito da Toledo Prudente Centro Universitário. Pesquisadora bolsista no Grupo de Iniciação Científica “Novo Processo Civil Brasileiro: Garantias Fundamentais e Inclusão Social” do Programa de Iniciação Científica Toledo (Edital PROAC nº 02 de 04 de fevereiro de 2020). Pesquisadora no Grupo Transformações nas Estruturas Fundamentais do Processo (UERJ). Participante do Projeto Jovens Processualistas. Presidente Prudente, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]. 30 Graduado em Direito pela Toledo Prudente Centro Universitário, Pós-Graduado e professor na mesma instituição. Mestre em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá (UNICESUMAR). Coordenador do Grupo de Iniciação Científica “Novo Processo Civil Brasileiro: Garantias Fundamentais e Inclusão Social” do Programa de Iniciação Científica da Toledo Prudente Centro Universitário. Presidente Prudente, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]. 31 Doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP e Mestre em Direito Processual Civil pela UEL/PR. Professor de Direito Processual Civil e Direito Civil da Toledo Prudente Centro Universitário. E-mail: [email protected].

120

to the breach of the duties of good faith and procedural cooperation implemented by the Code

of Civil Procedure. 2015 from the Kantian perspective, aiming to analyze the presence (or not)

of coercibility that, according to Kant, characterizes the law.

KEYWORDS: Neoprocessualism. Good faith. Cooperation. Right and Moral. Kant. Coercibility.

1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Inicialmente, fez-se necessária uma breve análise histórica do Direito Processual

Civil, com destaque ao chamado instrumentalismo, com o intuito de justificar a relevância do

tema colocado como objeto desta pesquisa. Assim, foi feita uma recapitulação, de forma

simplificada e resumida, da fase instrumentalista do processo civil, destacando os aspectos

positivos em relação às fases antecessoras.

Em continuação, foram realizados estudos a respeito da onda de

constitucionalização do Direito e seus reflexos no Direito Processual Civil. A partir da

constitucionalização, parte-se à análise de sua chamada “consequência filosófica”, ou seja, o

advento do pós positivismo que, no processo civil, impulsionou a nova fase metodológica

processual, denominada neoprocessualismo ou, para alguns, formalismo valorativo. Tal

mudança de paradigma culminou na alteração na estrutura processual, no que diz respeito à

atuação dos sujeitos processuais.

Nesse sentido, tem-se que, no atual momento processual, os sujeitos parciais

assumem seus papeis de protagonistas do processo, assumindo o juiz, agora, a função de

“administrador”, deixando a posição de destaque em que antes se encontrava. Assim, os

sujeitos parciais devem construir o processo mediante diálogo e participação, os quais são

essenciais para a construção de uma decisão judicial legítima, eis que é a participação das

partes, aliada ao contraditório e à fundamentação das decisões que legitimam

democraticamente a sentença.

No entanto, como sujeitos processuais parciais que são, as partes possuem

interesses diretos e opostos na lide, o que pode culminar na prática de condutas ímprobas

com o objetivo de ter seu direito tutelado. Por isso, a participação dos sujeitos parciais deve

estar norteada por determinados mandamentos, de forma a evitar que o processo seja

maculado por irregularidades. Dentre esses mandamentos, destacam-se os deveres de

observância da boa-fé objetiva e de cooperação, os quais, inclusive, possuem previsão

expressa no Código de Processo Civil de 2015.

121

Não obstante o protagonismo processual ser exercido pelas partes, o processo está

eivado de interesse estatal, já que, como é sabido, o processo é um instrumento de

pacificação social. Nesse sentido, possuindo interesse no regular andamento do processo, o

Estado impõe ao juiz a fiscalização da atuação das partes, de forma a preservar seu interesse.

Com isso em mente, foi realizado um breve estudo sobre os ensinamentos de

Immanuel Kant, em especial no que se refere ao conceito de imperativo, às distinções entre

o imperativo hipotético e o imperativo categórico e, com isso, compreender o que se tem por

moralidade e por direito. Buscou-se, pois, diferenciar os referidos institutos, mediante análise

de suas características determinantes. Feito isso, retorna-se à discussão sobre boa-fé e

cooperação, relacionando os deveres processuais às lições de Kant, em especial no que toca

à coercibilidade imposta (ou não) pelo Código de Processo Civil de 2015 quanto ao

cumprimento dos deveres processuais.

Objetivando impor coercibilidade aos deveres processuais, a nova Lei Processual

estabeleceu uma sanção patrimonial àquele litigante que age, no processo, em desobediência

à boa-fé. No entanto, quanto à punição pela falta de colaboração que, assim como a boa-fé,

é um dever processual, não está claro se o legislador positivou sanções pelo seu

descumprimento.

Dessa forma, o objetivo do trabalho foi analisar a boa-fé e a colaboração processual,

buscando conceituá-las, compreender sua importância para o regular andamento do processo

e analisar aspectos práticos, realizando, para isso, um paralelo com os ensinamentos de

Immanuel Kant, em especial, quanto aos mecanismos existentes no Código de Processo Civil

(e sua aplicação) para coibir condutas em desacordo com os deveres de boa-fé e colaboração

estampados nos artigos 5º e 6º da Lei Processual.

Para tanto, foi utilizada a metodologia dedutiva, com base especialmente em doutrina

especializada e artigos publicados em revistas científicas, além de estudos e reflexões sobre

a temática.

2 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO CIVIL, NEOPROCESSUALISMO E

MODELO PROCESSUAL PARTICIPATIVO

O Direito Processual Civil, após a superação das fases sincretista e autônoma,

adentrou a chamada fase instrumentalista, a qual, além de reconhecer a autonomia do

processo em relação ao direito material, deu atenção especial à sua finalidade de pacificação

social:

122

É preciso agora deslocar o ponto de vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos. Como tem sido dito, já não basta encarar o sistema do ponto de vista dos produtores do serviço processual (juízes, advogados, promotores de justiça): é preciso levar em conta o modo como os seus resultados chegam aos consumidores desse serviço, ou seja, à população destinatária. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2013, p. 52)

Dessa forma, ao reconhecer o processo como instrumento de pacificação social, o

instrumentalismo se atentou ao reconhecimento da importância de o processo estar alinhado

à Constituição Federal, de forma a garantir a efetividade dos direitos e garantias fundamentais

positivados no texto constitucional.

A necessidade de leitura do processo civil em conformidade com o Direito

Constitucional é pacífica na sociedade contemporânea, em especial, em razão da indiscutível

força normativa da Constituição. Porém, há que se destacar que a Constituição já foi

considerada um mero “pedaço de papel”, numa época em que se valorizava em demasia a

“Constituição real”, consubstanciada no resultado das relações fáticas decorrentes da

conjugação dos poderes militar, social, econômico e intelectual, que impactava diretamente

as leis e instituições socias, em detrimento da chamada “Constituição jurídica”, a qual era

incapaz de prevalecer face ao considerado verdadeiro poder dominante (HESSE, 1991, p. 9).

Contudo, esse entendimento foi superado e sobreveio uma mudança de paradigma.

Após a Segunda Grande Guerra, na segunda metade do século XX, findos os regimes

totalitários que vigeram durante o período bélico, países europeus como Alemanha e Itália

reconstruíram seu ordenamento jurídico, dando especial atenção justamente às suas

Constituições, instituindo normas com os fundamentos democráticos que tinha sido

suprimidos durante a Guerra (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 2).

Portanto, vislumbrou-se, neste período, a “progressiva superação do positivismo, que

implica no (i) reconhecimento de força normativa à Constituição, na (ii) expansão da jurisdição

constitucional e no (iii) desenvolvimento da interpretação constitucional” (FARIA, 2014, p. 1).

Portanto, as normas infraconstitucionais passaram a ser, obrigatoriamente, interpretadas

conforme os mandamentos estampados na Constituição Federal. Este fenômeno foi

denominado “neoconstitucionalismo”.

Como consequência filosófica da constitucionalização, houve o advento do chamado

pós positivismo, em que a norma deixa de ser meramente descrição legal ou constitucional,

passando a ser resultado da interpretação, ou seja, somente possui normatividade quando se

torna em “normas de decisão aplicável ao caso concreto” (CAMBI, 2010, p. 108). Ainda nesse

sentido:

Com efeito, a segunda metade do século XX representa para o direito uma revolução nos níveis teórico e prático. No nível teórico, a necessidade do reconhecimento de uma especificidade do direito frente à política – em face dos movimentos que levaram aos totalitarismos da primeira metade do século – desloca o foco metodológico em direção à decisão judicial que garante uma

123

autonomia maior que a velha postura formal decorrente de uma pura teoria da legislação, recorrente no imaginário jurídico desde os movimentos que sucederam a revolução francesa e o posterior período codificador. No nível prático, tendo em vista o espaço de reflexão colocado no âmbito da decisão judicial, as questões sobre interpretação passaram a ocupar o centro das atenções. (ABBOUD, CARNIO, OLIVEIRA, 2015, p. 78-79)

Sobre o pós positivismo, veja-se ensinamentos de Luis Roberto Barroso (2001, p.

33):

O pós-positivismo é uma superação do legalismo, não com recurso a ideias metafísicas ou abstratas, mas pelo reconhecimento de valores compartilhados por toda a comunidade. Estes valores integram o sistema jurídico, mesmo que não positivados em um texto normativo específico. Os princípios expressam os valores fundamentais do sistema, dando-lhe unidade e condicionando a atividade do intérprete. Em um ordenamento jurídico pluralista e dialético, princípios podem entrar em rota de colisão. Em tais situações, o intérprete, à luz dos elementos do caso concreto, da proporcionalidade e da preservação do núcleo fundamental de cada princípio e dos direitos fundamentais, procede a uma ponderação de interesses. Sua decisão deverá levar em conta a norma e os fatos, em uma interação não formalista, apta a produzir a solução justa para o caso concreto, por fundamentos acolhidos pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral.

Recorde-se, porém, que mesmo após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil

permaneceu submetido a um regime ditatorial até 1984. Nesse sentido, o

neoconstitucionalismo brasileiro deu-se de forma tardia, assim como a democratização, sendo

consolidado apenas em 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa

do Brasil.

Com o advento da nova Constituição Federal, de caráter democrático e garantista, o

Brasil, enfim, iniciou o processo de constitucionalização do Direito, interpretando todos os

seus diplomas legais conforme os mandamentos constitucionais. Via de consequência, o

Direito Processual Civil, à época positivado no Código de Processo Civil de 1973, passou a

ser interpretado e aplicado sob a luz da Carta Magna, tendo em vista, em especial, que o

“processo existe para implementar os direitos fundamentais e, nesse mister, não pode,

obviamente, deixar de atender às garantias indispensáveis a um processo justo” (FARIA,

2014, p.1), conforme ensina Fredie Didier Jr. (2016, p. 49):

[...] qualquer norma jurídica brasileira somente pode ser construída e interpretada de acordo com a Constituição Federal. A ausência de dispositivo semelhante no CPC não significaria, obviamente, que o CPC pudesse ser interpretado em desconformidade com a Constituição.

Denominou-se este fenômeno “neoprocessualismo”, o qual foi considerado

uma quarta fase metodológica, denominada “formalismo-valorativo”, “em que há o

aprimoramento das relações entre processo e Constituição, deixando-se, aquele, de atender

aos ditames frios das leis para ceder espaço às exigências do devido processo constitucional”

(FARIA, 2014, p. 1).

124

Nesse sentido, conforme ensinamentos de Eduardo Cambi e Eluane Corrales (2018,

p. 93):

O Neoprocessualismo, conforme asseverado, é um método pelo qual o processo deve ser concebido, interpretado e aplicado a partir dos valores, diretrizes, princípios e garantias constitucionais. Com isso, o acesso à justiça, a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal e sua duração razoável passam a ter grande influência para o desenvolvimento de formas alternativas de resolução de conflitos. É necessário romper com o formalismo processual, apostando na desformalização para a mais rápida solução aos litígios, bem como na delegalização, marcada pela concessão de maior liberdade para as soluções não-jurisdicionais (juízos de equidade).

Assim, ainda de acordo com Eduardo Cambi (2006, p. 115), o neoprocessualismo

busca a construção de um processo que efetivamente promova o direito fundamental à

“adequada, efetiva e célere tutela jurisdicional”. Para tanto, considera ser imprescindível o

desapego irracional ao formalismo, valorizando, no processo, a cidadania ativa e solidária.

Assim, o neoprocessualismo teria por característica a democratização do processo,

seu caráter publicista e a implementação do princípio da colaboração processual, as quais

foram destacadas na Lei Processual.

Nesse sentido, tem-se que o Código de Processo Civil de 2015 tratou de positivar as

tendências neoprocessualistas. Dentre essas tendências, é de suma relevância, no contexto

deste trabalho, compreender o estabelecimento do modelo democrático e participativo do

processo, o qual preza pela efetiva participação dos sujeitos processuais parciais, por seu

protagonismo e, por consequência, pela colaboração entre as partes.

Entende-se por democratização processual a ampla participação de todos os sujeitos

processuais, com destaque às partes que, mediante estabelecimento do diálogo, tem o dever

de colaborar na construção de uma decisão justa e legítima mediante observância do devido

processo legal e do contraditório, tendo em vista que, quanto maior for a participação dos

sujeitos parciais, maiores as chances de resignação destes com a decisão jurisdicional

(OLIVEIRA, MITIDIERO, 2017, p. 17).

Nesse sentido, veja-se ensinamento de Roberto Basilone Leite (2008, p. 122):

Quando diz que todos os cidadãos devem participar do processo hermenêutico, Habermas não pensa num tipo de participação periférico. A legitimidade desse processo só se aperfeiçoa quando os cidadãos deixam a platéia e vão para o palco, deixam a periferia do acontecer histórico e passam a influir em seu núcleo, onde se situam os poderes parlamentar, administrativo e judiciário.

Dessa forma, a construção do processo deve observar a finalidade de que ele seja

um meio eficaz e democrático de resolução de conflitos sociais, com a possibilidade de todos

os sujeitos processuais “serem reconhecidos como sujeitos em suas peculiaridades,

diferenças, não tornados ‘coisas’ ou ‘números’ no sistema ‘pasteurizado’ de produção de

decisões judiciais” (SANTIAGO, COITINHO, 2016, p. 10).

125

O Código de Processo Civil de 2015 materializou este modelo em diversos

dispositivo, podendo-se citar o artigo 10º, que preceitua que “o juiz não pode decidir, em grau

algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes

oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de

ofício”, o que evidencia a imprescindível participação dos sujeitos processuais parciais.

Via de consequência, os direitos e deveres dos sujeitos processuais foram

modificados para adaptarem-se ao novo modelo. Dá-se especial atenção ao protagonismo

processual, assumido pelas partes, pelos sujeitos parciais, e não mais pelo juiz. Isso não

significa, entretanto, que o magistrado assume agora a função de “mero expectador do

processo”. Na verdade, impõe-se ao juiz, assim como às partes, o dever da colaboração, o

qual é materializado, na vertente do julgador, pelos deveres de informação, esclarecimento,

prevenção e auxílio, devendo, pois, conduzir a dialética processual e prezar pela observância

ao contraditório antes da tomada de qualquer decisão no processo (CAMBI, 2010, p. 116).

Quanto aos sujeitos parciais, considerando-se o modelo participativo do processo, é

imprescindível o dever da colaboração, essencial ao prosseguimento regular da marcha

processual. No modelo participativo, “a solução do litígio deixa sua função duelística (produto

do modelo adversarial) ou autoritária (ligada ao modelo inquisitorial)”, passando a ser “um

problema a resolver graças à colaboração dos interessados e do magistrado” (SANTIAGO,

COITINHO, 2016, p. 4).

Portanto, ao conceber a dialética processual e distribuir entre todos os sujeitos

processuais o dever de zelar pela efetiva e célere tramitação do processo, tirando este dever

apenas do magistrado, faz-se necessário o exímio comprometimento das partes com o

processo, pois assumem, como já dito, papel de protagonismo (CAMBI, HAAS, SCHMITZ,

2017, p. 17). Nesse sentido, torna-se indispensável, pois, a rigorosa obediência aos deveres

processuais disciplinados no capítulo das normas fundamentais do processo civil, sendo que,

neste trabalho, destacamos aqueles positivados nos artigos 5º e 6º do Código de Processo

Civil: os deveres de boa-fé e cooperação.

3 PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E COOPERAÇÃO PROCESSUAL: APORTES TEÓRICOS

FUNDAMENTAIS

Conforme já analisado, quanto mais democrático é o processo, ou seja, quanto mais

os sujeitos processuais parciais participam do processo de forma ampla, mais importante se

torna a observância dos mandamentos processuais de boa-fé e colaboração, previstos nos

artigos 5º e 6º do Código de Processo Civil de 2015.

126

Dessa forma, passa-se à análise dos mencionados deveres processuais, buscando-

se sua conceituação, a demonstração de sua importância e alguns breves apontamentos

pertinentes. Trata-se de dois deveres distintos, no entanto, entendemos que são

complementares e, portanto, no que couber, serão analisados em conjunto.

Os deveres de boa-fé e cooperação possuem previsão expressa no Codex

Processual, no capítulo que dispõe sobre as normas fundamentais do processo civil. Prevê o

artigo 5º que “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de

acordo com a boa-fé”. Por sua vez, o artigo 6º dispõe que “todos os sujeitos do processo

devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e

efetiva”. Assim, sua disposição no código, em sequência, reforça o entendimento de que são

deveres complementares.

Entende Antonio do Passo Cabral (2005, p. 76) que a boa-fé é uma “cláusula-geral

constitucional, diretamente decorrente do contraditório” Por sua vez, Carlos Álvaro Alberto de

Oliveira (2009, p. 167-168) preceitua que a boa-fé processual é decorrente do dever de

colaboração, “na medida em que tanto as partes quanto o órgão judicial, como igualmente

todos aqueles que participam do processo, devem nele intervir desde a sua instauração até o

último ato, agindo e interagindo entre si com boa-fé e lealdade”.

Nesse sentido, o dever de colaboração possui fundamento no artigo 5º, inciso LV, da

Constituição Federal, que garante aos litigantes os direitos do contraditório e da ampla defesa.

Brunela de Vincenzi (2003, p. 162-163), sobre a boa-fé processual, vai além, afirmando que:

[...] Quando o constituinte estabeleceu que são princípios fundamentais do

Estado Democrático de Direito os valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa (art. 1.º, IV) e que constitui objetivo fundamental da República, entre

outros, construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I), está

elevando a um grau máximo o dever de cooperação e lealdade no trato social,

no desenvolvimento da economia por todos os seus meios.

Portanto, é evidente que a boa-fé a e colaboração processual são interligadas e

complementares, de forma que devem ser estritamente observadas pelos sujeitos

processuais, haja vista que, não obstante os polos opostos em que os litigantes se encontram

no processo, é imprescindível que seu comportamento esteja adequado aos deveres

processuais, de forma a aprimorar a decisão proferida pelo juiz, possibilitando, pois, o deslinde

da causa de forma célere e efetiva (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 2).

Quanto a isso, mister se faz afastar a equivocada ideia que teima em surgir quando se

trata de colaboração entre as partes. Como é sabido, os sujeitos parciais possuem interesses

distintos quanto à decisão de mérito que será prolatada ao final do procedimento. Assim, por

óbvio, os litigantes não fornecerão informações e documentos que possibilitem o êxito da

parte contrária. No entanto, não é disso que se trata a colaboração.

127

O Código de Processo Civil, apesar de instituir a cooperação como uma norma

fundamental do processo civil, não a conceituou, apenas estabeleceu alguns objetivos a

serem alcançados mediante o comportamento colaborativo entre os litigantes. Intenta-se,

pois, que seja prolatada uma decisão de mérito justa e efetiva em tempo razoável. Nesse

sentido, Alexandre Freitas Câmara (2017, p. 27) conceitua a colaboração processual como o

dever que implica aos litigantes o trabalho em conjunto, de forma a construírem um processo

justo, que terá o resultado legitimado em decorrência de sua participação.

Esse trabalho em conjunto pode ser traduzido como a vedação da utilização da má-fé,

de meios inidôneos ou de artimanhas com o objetivo de ver tutelado seu direito, em detrimento

do direito da outra parte. A colaboração pode ser entendida, portanto, como a ausência de

condutas que possam prejudicar o regular andamento do processo, ou mesmo deliberada e

indevidamente, prejudicar o outro litigante.

Noutro giro, destaque-se que a boa-fé aqui tratada é objetiva, não se trata de boa-fé

subjetiva. Ensina Alexandre Freitas Câmara (2017, p. 24) que a boa-fé constante no artigo 5º

do Código de Processo Civil não pode ser conceituada como pura e simplesmente ausência

de má-fé, e sim como um norte que deve guiar o comportamento de todos os sujeitos

processuais. Ensina, ainda, que a boa-fé pode ser materializada na vedação de

comportamentos contraditórios e na segurança decorrente de comportamentos duradouros.

A boa-fé processual, então, deve orientar a atuação dos sujeitos processuais desde o

ajuizamento da ação até o trânsito em julgado da decisão (CÂMARA, 2017, p. 24).

Nesse sentido, o modelo participativo impõe que os litigantes atuem observando a boa-

fé objetiva em todos os atos processuais, de forma a obstar a prática de condutas meramente

protelatórias, abusivas ou antiéticas, que lesam os interesses da outra parte (CAMBI, HAAS,

SCHMITZ, 2017, p. 15). Tem-se, pois, que “a boa-fé objetiva é a condição funcional do modelo

processual do Estado Constitucional, na medida em que constitui o vetor pelo qual devem ser

analisados todos os atos praticados no processo” (SANTIAGO, COITINHO, 2016, p. 10).

O legislador do Código de Processo Civil de 2015, então, atentou-se ao alinhamento

das normas estampadas no novo diploma legal aos deveres acima mencionados. Assim,

vislumbra-se no novo Codex diversos dispositivos que têm por fundamento a boa-fé e a

colaboração processual.

Traz-se como exemplo o artigo 10 da lei processual, que enfatiza a necessidade de

participação dos sujeitos parciais ao determinar que “o juiz não pode decidir, em grau algum

de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes

oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de

ofício”.

Quanto às normas aplicáveis aos sujeitos parciais, tem-se, por exemplo, a

possibilidade de realização do saneamento compartilhado, previsto no artigo 357, §§ 1º a 3º,

128

assim como, a possibilidade de realização de negócios jurídicos processuais, conforme o

artigo 190, o que, por óbvio, pressupõe a atuação ética dos litigantes, de modo a evitar

eventual anulação do negócio ao ser realizado o controle de validade pelo juiz (parágrafo

único).

No entanto, apesar de todas as previsões legais supracitadas, há dúvidas quanto a

quais são as consequências para o litigante que viola os deveres de boa-fé e colaboração,

bem como, se o Código de Processo Civil criou mecanismos efetivos aptos a coibir tais

comportamentos.

Para melhor elucidação destas questões, imprescindível fazer alguns apontamentos a

respeito da diferenciação entre o direito e a moral sob a ótica de Immanuel Kant.

4 APONTAMENTOS SOBRE DIREITO E MORAL NA ÓTICA KANTIANA:

CONSIDERAÇÕES PARA QUE OS DEVERES PROCESSUAIS DA BOA-FÉ E

COOPERAÇÃO NÃO SE TORNEM IMPERATIVOS CATEGÓRICOS

Os ensinamentos de Immanuel Kant, sobretudo no que diz respeito à moralidade,

têm como pressuposto o que o autor denomina “imperativo categórico”. Para Kant, o

imperativo categórico é uma espécie de mandamento inflexível da razão, o qual, por sua vez,

é considerado a representação de um princípio de determinação da vontade conforme leis

objetivas. Ainda, “os imperativos são apenas fórmulas para exprimir a relação entre leis

objectivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser racional” (KANT,

2005, p. 48-49).

Nesse sentido, Kant apresenta os chamados imperativo em hipotético e categórico,

sendo o imperativo hipotético vislumbrado quando uma ação é dirigida no sentido de alcançar

algum fim diverso do simples bem agir, ou seja, o agente elenca meios para atingir fins

determinados. Por sua vez, quando a ação é boa em si mesma, é regida pelo imperativo

categórico, o qual pode também ser denominado imperativo da moralidade (KANT, 2005, p.

50-51).

Assim, a moralidade Kantiana é estruturada em deveres inflexíveis da racionalidade

que devem (ou deveriam) conduzir o ser racional ao bem agir. Leia-se o que dispõe o autor

(2007, p. 59):

O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.

(...) age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da razão.

129

Segue o autor (2007, p. 69): “(...) age de tal maneira que uses a humanidade, tanto

na sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e

nunca simplesmente como meio”.

Logo, vislumbra-se a moralidade estruturada em comandos da razão pura, aferidos

formal e procedimentalmente. Assim, a moral, seguindo ensinamentos de Kant, é subjetiva,

interna, individual, incondicionada à coerção. É, pois, representada pela autonomia da

vontade, ou seja, as regras morais possuem uma adesão baseada na consciência e na

concordância, a depender da vontade do agente. A moral, portanto, em hipótese alguma será

impositiva.

Em sentido oposto, o direito é objetivo, independe de adesão ou concordância, é

imposto pelo Estado, através da legislação. O agente não é impelido a aderir aos motivos do

direito, devendo, tão somente, cumprir o dever por ele imposto. O direito limita a autonomia

da vontade do indivíduo, impondo sanções àqueles que agem em desacordo com seus

mandamentos. A moral se ocupa com o motivo da ação, enquanto que, para o direito, em

regra, não importa o motivo que levou à conduta do agente, sendo relevante, apenas, o plano

exterior de sua ação (NADER, 2019, p. 175). Nesse sentido, veja-se ensinamentos de

Eduardo Bittar e Guilherme Almeida (2015, p. 366):

De fato, o agir ético tem um único móvel, a saber: o cumprimento do dever

pelo dever. Somente a ação que é, além de conforme ao dever (exteriormente

conforme ao dever), inclusive, cumprida, porque se trata do dever (interior

mente deontológica), pode ser qualificada de ação moral

O agir jurídico pressupõe outros fins, outras metas, outras necessidades

interiores e exteriores para que se realize; não se realiza uma ação conforme

à lei positiva somente porque se trata de uma lei positiva. Podem-se encontrar

ações conforme à lei positiva que tenham inúmeros móveis: temor da sanção,

desejo de manter-se afastado de repreensões, prevenção de desgastes

inúteis, e da penalização das autoridades públicas, medo de escândalo etc.

Apesar disso, não se pode estabelecer a equivocada ideia de que apenas o direito

estabelece deveres. Tanto o direito quanto a moral impõem deveres aos indivíduos, no

entanto, a moral “não outorga poder de exigir determinadas condutas”. Depreende-se desta

afirmativa, portanto, apenas o direito é dotado de coercibilidade, ou seja, apenas ele autoriza

“constranger alguém para o cumprimento de seu dever” (NADER, 2019, p. 264).

No mesmo sentido, ao interpretar os ensinamentos de Kant, Eros Grau (2008, p. 97-

98) preceitua a independência do direito em relação à moral, ao considerar que a moralidade

é fundamentada por uma “liberdade interna da vontade”, que independe de qualquer lei,

enquanto que o direito, por outro lado, “respeita à liberdade externa da vontade, submetida

ao império da lei”. Conclui esta afirmativa pontuando que, justamente, a coercibilidade é

elemento essencial do direito.

130

A coercibilidade é materializada pelas sanções, em regra, impostas pelo Estado em

relação ao particular, dentre as quais destacamos, por exemplo, as sanções penais e as

sanções civis. A sanção penal mais extrema é a privação da liberdade do indivíduo que atenta

contra um bem jurídico protegido pela lei penal. Assim, aquele que viola a lei penal estará

sujeito a uma pena corporal. Por outro lado, aquele que viola um dever civil, muito

provavelmente, ver-se-á diante de uma sanção patrimonial, devendo, por exemplo, indenizar

aquele que foi prejudicado.

Do mesmo modo, aquele que viola um dever processual deve ser penalizado pelo

Estado. Isso porque o processo civil é ramo do direito público, sendo, pois, eivado de interesse

estatal. Apesar de serem discutidos no processo, em sua maioria, direitos disponíveis, não se

pode olvidar que ele é o instrumento estatal de pacificação social. Dessa forma, em havendo

interesse estatal, impõe-se às partes a observância de certos mandamentos legais que, caso

descumpridos, resultam na imposição de sanção ao litigante.

No entanto, conforme já dito, a sanção apenas se impõe àqueles deveres jurídicos,

ao direito, e não aos deveres morais. Nesse sentido, ao positivarem os princípios da boa-fé e

da cooperação, os artigos 5º e 6º do Código de Processo Civil fizeram de tais princípios parte

do direito. Assim, via de consequência, pressupõe-se que, em caso de violação de tais

deveres, será imposta uma sanção ao litigante de má-fé e ao litigante que não coopera.

Com isso em mente, façamos uma análise de eventuais sanções impostas aos

litigantes que descumpre os deveres de boa-fé e colaboração processual.

O Código de Processo Civil de 1973 elencava as hipóteses de incidência de sanção

pela inobservância do dever de boa-fé em seu artigo 17, que possuía a seguinte redação:

Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato

incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

Vl - provocar incidentes manifestamente infundados.

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Por sua vez, o Código de Processo Civil de 2015 tipificou as condutas

passíveis de sanção em seu artigo 80, que dispõe:

Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II - alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - provocar incidente manifestamente infundado;

131

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Pela análise dos dispositivos legais supratranscritos, resta evidente que houve

tão somente duas sensíveis alterações no dispositivo: a palavra “reputa-se” foi

substituída por “considera-se” e o inciso VI foi transposto para o singular.

Portanto, a nova legislação, apesar de ter implementado normas e deveres

processuais, acabou por não criar os mecanismos sancionadores que coibiriam a

prática de atos contrários a tais deveres.

Nesse sentido, ainda mais grave é a total ausência de dispositivos legais

prescrevam sanções ao litigante que não coopera. Ora, o Código de Processo Civil

de 2015, conforme já dito, inovou ao positivar em seus artigos 5º e 6º as normas

fundamentais e deveres impostos aos sujeitos processuais. Assim, causa espanto o

fato de que, apesar de ter feito de normas morais, normas legais, o legislador não

cuidou impor sanções àqueles que agem em desconformidade com os deveres

positivados no novo Codex. Quanto ao dever de boa-fé, ao menos, há previsão legal

expressa (ainda que insuficiente). No entanto, sequer há previsão legal expressa e

específica de sanção para o litigante que viola o dever de cooperação.

Márcio Carvalho Faria (2014, p. 4), em artigo publicado antes da promulgação

da Lei 13.105/2015, já tecia críticas ao então projeto de lei, afirmando que a ausência

de sanção àquele que descumpre o dever da colaboração faria com que este se

tornasse tão somente um dever moral que, caso desobedecido, não imporia prejuízos

consideráveis ao litigante.

O mesmo autor ainda afirmou que:

[...] afigura-se necessária – e porque não dizer indispensável – que a

comunidade jurídico-processual se debruce acerca dessa omissão,

integrando-a a fim de evitar que a norma fundamental da colaboração – e,

consequentemente, a da boa-fé processual – seja verdadeiramente

observada. (2014, p. 4)

No entanto, conforme exposto, o legislador não supriu tal omissão, não

havendo, no Código de Processo Civil de 2015, nenhuma previsão que garanta a

coercibilidade do dever de cooperação. Pois bem. Fora dito que os deveres de boa-fé

e cooperação, além de deveres morais, são também deveres jurídicos, fazem parte

do direito e, portanto, como consequência, em caso de violação, o resultado seria a

imposição de uma sanção.

132

Ao não positivar os mecanismos sancionadores que poderiam ser impostos

ao litigante que não coopera, o Código de Processo Civil acaba por dar a impressão

de que, apesar de estar positivado, o dever de cooperação continua sendo um dever

“meramente” moral, ou seja, na visão de Kant, tratar-se-ia de um imperativo

categórico.

Dessa forma, diante da inércia do legislador, parece-nos razoável, por hora,

tendo em vista a imbricação dos deveres de boa-fé e da cooperação (como acima

exposto), a aplicação das sanções impostas ao litigante de má-fé também ao litigante

que não coopera, conferindo, assim, a devida coercibilidade ao dever de colaborar

com o processo, de forma a coibir sensações de impunidade e desincentivar o litigante

da prática de condutas que maculam o processo.

Contudo, registra-se que tal solução gera incômodos e relutâncias. Para que

seja aplicada uma sanção não expressa em lei, o magistrado fica obrigado a justificar

sua imposição, fundamentando detalhadamente e de forma exauriente a sua decisão

de forma a resignar o que será punido. A realidade da Justiça brasileira, porém, parece

não comportar a designação de mais trabalho ao magistrado.

Frise-se, também, que a aplicação, por analogia, das sanções por litigância

de má-fé ao litigante que não coopera, claramente, não é o meio mais adequado para

conferir coercibilidade ao dever de cooperação, principalmente porque se trata quase

de uma “gambiarra” jurídica. O adequado – e é o que se espera – é que o legislador

crie mecanismos específicos que efetivamente imponham sanções específicas ao

litigante que não coopera, prestigiando, pois, o tão importante dever positivado pela

Lei Processual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho, para analisar as consequências do descumprimento dos

deveres de boa-fé e colaboração processual, debruçou-se sobre a evolução do Direito

Processual Civil, com ênfase no fenômeno da constitucionalização do direito, no pós

positivismo e na consequente vertente neoprocessualista, uma nova fase

metodológica que instituiu um novo modelo processual, cuja característica principal é

a participação efetiva dos sujeitos parciais.

133

Diante da efetiva necessidade de participação dos sujeitos processuais,

impôs-se às partes os deveres de boa-fé e colaboração processual, objetivando a

preservação do processo já que este também de interesse estatal, o que justifica a

imposição de sanções àqueles que violam os deveres processuais estabelecidos no

Código de Processo Civil.

A partir da análise dos ensinamentos de Immanuel Kant quanto aos

imperativos hipotético e categórico, desenvolveu-se a diferenciação de moralidade e

direito, concluindo-se, pois, que uma das principais diferenças entre direito e moral é

justamente o caráter coercitivo daquele.

Assim, sendo os deveres de boa-fé e cooperação deveres jurídicos,

compondo o direito, positivados no Código de Processo Civil, esperava-se que fossem

impostos mecanismos sancionadores àqueles que agem em discordâncias a tais

deveres. No entanto, contrariando esta expectativa, o Código de Processo Civil de

2015 restringiu as sanções por litigância de má-fé ao artigo 80 da Lei Processual,

enquanto que, no que se refere às sanções por ausência de colaboração da parte, há

um vácuo legislativo, total ausência de previsão legal que objetive coibir a violação do

dever de colaboração processual.

Dessa forma, como não há mecanismos sancionadores específicos para o

descumprimento do dever de cooperação, por hora, parece-nos adequada a aplicação

da sanção por litigância de má-fé também ao litigante que não coopera. No entanto,

para que a cooperação seja efetivada, não havendo dúvidas quanto à sua natureza

de dever jurídico – e não apenas moral –, imprescindível que o legislador imponha

sanções específicas para falta de cooperação, conferindo, pois, coercibilidade a este

dever processual.

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136

O AMOR NA MODERNIDADE E A EFICÁCIA DO CONTRATO DE NAMORO

ENQUANTO NEGÓCIO JURÍDICO

SANTOS, Franciele Barbosa32

PAIANO, Daniela Braga33

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a eficácia do contrato de namoro

e a importância de seu reconhecimento pelo ordenamento pátrio, considerando que

atualmente não tem sido tão simples diferenciar, em determinadas situações, namoro de

união estável, principalmente diante de transformações nas relações entre namorados que

cada vez mais se aproximam de uma união estável. Para tanto, partiu-se da análise das

mudanças trazidas pela modernidade, especialmente nos relacionamentos, passando pelo

direito de família mínimo e o princípio da boa-fé objetiva nas relações familiares, aliada à

autonomia privada das partes. No decorrer do trabalho, constatou-se que o contrato de

namoro pode sim ser considerado existente, válido e eficaz, desde que esta seja realmente a

situação vivenciada pelo casal, sendo uma forma de trazer mais segurança aos indivíduos e

um instrumento de manifestação de autonomia privada. Sua utilização tem o condão de

regular uma situação fática existente, não sendo o suficiente para afastar a união estável

quando essa se demonstrar presente. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo com

pesquisas bibliográficas e estudo da legislação pátria vigente.

PALAVRAS-CHAVE: Autonomia privada. Direito de família. Negócio Jurídico.

ABSTRACT: This paper aims to analyze the effectiveness of the dating contract and the

importance of its recognition by the Brazilian law, since it is no longer easy to distinguish dating

from a stable union, especially if one bears in mind the changes in relationships between

romantic companions, which are increasingly closer and closer to what is seen as a stable

union – even if the affectio maritalis is absent. Hence, it started from the analysis of the

changes in romantic relationships in modern times, going through the minimum family law and

the principle of objective good faith in family relationships, combined with the parties' private

autonomy. During the study, it was found that the dating contract exists, it is valid and effective,

and there is no hindrance to its recognition, since it brings more security to individuals and it is

a manifestation of their private autonomy. Its use is able to regulate an existing situation,

although it does not exclude stable union when it is present. Therefore, the deductive method

was used with bibliographic research and study of the current national legislation.

32 Advogada. Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal Econômico pela Pontifícia

Universidade Católica do Paraná; Pós-graduanda em Direito Empresarial pela Faculdade Legale;

Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail:

[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6255-5907. Vinculado ao projeto de

pesquisa “Contratualização das relações familiares e das relações sucessórias”. 33 Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), professora

adjunta no departamento de Direito Privado e do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito na

Universidade Estadual de Londrina (UEL). Coordenadora do projeto de pesquisa “Contratualização das

relações familiares e sucessórias”, cadastrado sob n. 12475 na PROPPG da UEL.

137

KEYWORDS: Private autonomy. Family right. Juridic business.

1 INTRODUÇÃO

A modernidade trouxe consigo mudanças nas mais diversas esferas: seja no

consumo, na produção, no trabalho ou nas relações interpessoais. As relações afetivas ou

amorosas contemporâneas têm mudado e adquirido formato diferente no meio social quando

comparado com os modelos de décadas anteriores. Os relacionamentos têm demonstrado

maior fragilidade e efemeridade em relação aos compromissos duradouros de anos

anteriores, fenômeno este chamado por Zigmunt Bauman de “liquidez”.

O modo pelo qual as pessoas se relacionam também se modificou, o namoro já não

possui mais o modelo engessado que era comum anos atrás. Atualmente, os casais coabitam,

convivem, viajam juntos, sem que se tenha intenção de ser ou se tornar uma família. Diante

da tênue diferença entre o namoro atual e a união estável é que muitos casais têm buscado

o contrato de namoro como forma de assegurar mais segurança, principalmente quanto à

comunicação patrimonial indesejada.

Assim, o presente trabalho tem como intuito demonstrar a eficácia do contrato de

namoro e a importância do seu reconhecimento, partindo da premissa de que as relações se

modificaram e que cabe ao direito regulá-las, como forma, também, de garantir aos indivíduos

a manifestação da sua autonomia privada e consequente efetivação de sua dignidade

humana.

Para tanto, a metodologia utilizada é a do método dedutivo, pautada em pesquisas

em obras de sociólogos, e pesquisa bibliográfica reunindo várias obras correlacionadas ao

tema, com ênfase na literatura jurídica referente às relações no Direito de Família, além da

boa-fé e obras atinentes aos negócios jurídicos, bem como na legislação pátria vigente.

Nesse contexto, para atingir o objetivo almejado, o presente trabalho perpassará pela

análise do amor e dos relacionamentos na modernidade na visão de Zygmunt Bauman e

Byung-Chul Han. Após, pelo princípio do direito de família mínimo e da boa-fé objetiva

aplicada ao direito de família, como forma de proporcionar melhor relacionamento familiar e

autonomia privada das partes. Por fim, trará o contrato de namoro em espécie e a importância

de seu reconhecimento diante da tênue diferença entre namoro e união estável, além da

justificativa da sua eficácia.

138

2 O AMOR NA MODERNIDADE

A modernidade34 trouxe consigo diversas mudanças nas relações, sejam elas na

esfera do trabalho, do consumo, no seio familiar ou nas relações interpessoais. Sobre o

consumo de bens e serviços, cria-se uma falsa ilusão de pertencimento a determinados

grupos, gera-se uma espécie de estilo de vida o qual não admite o diferente. Explica Bauman

(2008, p. 41): “A ‘sociedade de consumidores’, em outras palavras, representa o tipo de

sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia

existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas”. O consumismo é

enfatizado pelo descartável, já não se busca mais o durável, e assim “[...] a síndrome

consumista degradou a duração e elevou a efemeridade” (BAUMAN, 2008, p. 64).

A mudança no consumo, pautada no imediatismo e na satisfação de um desejo

momentâneo, refletiu em outras esferas e passou a nortear os comportamentos em

sociedade. Essas transformações sociais são trazidas por Zygmunt Bauman como “liquidez”,

explica Citlali Rovirosa-Madrazo (BAUMAN, 2010, p. 8): “O inovador conceito de liquidez

proposto por Zygmunt Bauman é uma metáfora para descrever as notáveis transformações

sociais e políticas que ocorreram entre o meio e o fim do século XX, representadas pela

desintegração, ou “liquefação”, das instituições da modernidade.”

O termo liquidez usado pelo autor representa o fim de tudo aquilo que era sólido e

consolidado. Se contrapõe ao durável e é caracterizado pela fluidez, já não há mais

definitividade nas relações ou fixação por muito tempo. Instala-se a cultura da troca, em que,

caso o produto não sirva mais, efetua-se a troca, adquire-se um novo. Essa instantaneidade

se torna natural e é consequência do consumismo característico da contemporaneidade.

Tal estilo de vida não deixa de influir nos relacionamentos interpessoais e amorosos,

os quais, em especial pelo surgimento das redes sociais, se tornaram supérfluos, instantâneos

e passageiros. A modernidade junto com a tecnologia trouxe consigo uma série de facilidades,

destacando-se, entre elas, a facilitação da comunicação pelas pessoas. Contudo, tal estilo de

vida tem afastado as relações do modo ‘presencial’ para o modo online.

A vida na modernidade é baseada em incertezas constantes, medo de ficar obsoleto,

é uma vida marcada por reinícios sucessivos e finais rápidos e indolores. Não há tempo para

se concretizar uma realização ou uma relação, pois rapidamente serão consideradas

obsoletas ou atrasadas (BAUMAN, 2007, p.7-8). Assim, relacionar-se na modernidade

significa esperar um fim para essa relação.

34 O termo “modernidade” será mantido, pois foi o conceito e contexto utilizado pelo autor Zygmunt Bauman, contudo toda conjuntura se aplica também, inclusive de forma intensificada, na pós-modernidade e na contemporaneidade.

139

Os relacionamentos passam a ser regidos por uma ambivalência inconciliável, pois

ao mesmo tempo em que se deseja algo duradouro e estável, renunciando, mesmo que de

forma parcial, à independência, deseja-se também que os fins desses relacionamentos se

deem de forma indolor, e é nesse sentido que muitos sujeitos buscam “cláusulas” de saída

fácil (BAUMAN, 2005, p. 152-153). Nesse viés, escreve Bauman (2004, p. 21-22):

E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a ‘experiência amorosa’ à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço.

Nesse ínterim, esperar, batalhar, enfrentar desafios juntos não faz parte dos

relacionamentos líquidos modernos, assim como, no consumo, se espera satisfação rápida e

momentânea, além da sua garantia e, em caso de defeitos, a sua troca. Nesse sentido, o

descontentamento faz parte do dia a dia das pessoas, na ânsia do novo, e, nesse caso, o seu

par acaba sempre obsoleto e assim, surge a necessidade de se realizar upgrades.

Espera-se do amor o mesmo que se tem com as mercadorias, que haja

garantias, trocas e devoluções sem quaisquer tipos de transtornos ou justificativas. Almeja-se

seguir os impulsos e desejos sexuais sem que se forme vínculo com o outro indivíduo,

instrumentaliza-se o outro para suprir o desejo próprio e descarta-se quando se torna inútil. E

assim, deseja-se usufruir de um amor intenso por meio de uma relação superficial.

Seguir os impulsos, satisfazer os desejos de forma imediata baseado na

filosofia de vida carpe diem, contrasta com a busca incessante do amor e da segurança. Em

uma sociedade pautada no consumo momentâneo e por impulso, não se pode esperar que

os relacionamentos se deem de forma distinta. Nesse sentido:

Consideradas defeituosas ou não ‘plenamente satisfatórias’, as mercadorias podem ser trocadas por outras, as quais se espera que agradem mais [...]. [...] automóveis, computadores ou telefones celulares perfeitamente usáveis, em bom estado e em condições de funcionamento satisfatórias são considerados, sem remorso, como um monte de lixo no instante em que ‘novas e aperfeiçoadas versões’ aparecem nas lojas e se tornam o assunto do momento. Alguma razão para que as parcerias sejam consideradas uma exceção à regra? (BAUMAN, 2004, p. 28).

Assim, numa sociedade líquida busca-se encontrar o amor de forma sólida, e que ao

mesmo tempo ofereça garantias da eternidade sem estarem preparados para as adversidades

que possam suceder. Aceitar que “o amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e

140

inescrutável” (BAUMAN, 2004, p. 23), acarreta tensões, ansiedades e medo de

comprometimento.

Nesse sentido é que os relacionamentos taxados como “ficada” ganharam espaço.

Nelas os desejos são supridos, mas sem que haja comprometimento ou a tensão do término,

uma vez que não se iniciou sequer um relacionamento, não há compromisso e a troca pelo

novo é feita de maneira muito mais rápida e indolor.

Vislumbra-se que essa espécie de relacionamento tenha como característica o medo,

a tensão de se relacionar amorosamente com o outro. Marília Pedroso Xavier (2020, p. 55)

observa que esse sentimento de desconfiança é característico dos tempos líquidos, nos quais

os indivíduos buscam isolamento e evitam se envolver em experiências que possuam riscos.

Um envolvimento em longo prazo com riscos, chances de decepções e sacrifícios é evitado

ao máximo na modernidade e, dessa forma, o “para sempre” perde espaço para o “enquanto

for conveniente”.

Zigmunt Bauman (2004, p. 79-82) ainda afirma que as redes sociais possuem um

papel importante na liquefação do amor, pois com elas há uma falsa noção de pertencimento,

mas também há uma lista interminável de opções de conexões a serem feitas, podendo

sempre ir para o próximo número da lista. Assim, o autor afirma que “a proximidade não exige

mais a contiguidade física; e contiguidade física não determina mais a proximidade”

(BAUMAN, 2004, p. 83). Contudo, essas facilidades nem sempre são benéficas, uma vez que

tais relações possuem tendência a serem banais e não se estreitarem em laços.

Sob outro olhar, Byung-Chul Han (2017, p. 6-7) afirma que ao amor é necessário que

haja diferenças, o atópico, que é eliminado em prol de diferenças consumíveis, assim tudo se

torna nivelado e igual. Além disso, aponta que na sociedade atual os seres estão cada vez

mais preocupados com o seu próprio sucesso e desempenho, mergulhando cada vez mais

em si mesmos e, dessa forma, não vivem a experiência do outro.

O supracitado autor aponta outro problema da sociedade atual que acaba por influir

nas relações interpessoais. Além da instantaneidade, superficialidade e gama de opções, a

sociedade atual é pautada na produção e na autocobrança. Isso faz com que os sujeitos se

tornem algozes de si mesmos, não aceitam fracassar, e o amor – o eros – seria exatamente

o fracasso. Além disso, sobre o amor não é possível exercer poder (HAN, 2017, p. 13-14).

Dessa forma, se tudo é pautado no desempenho, acaba que se objetifica o outro, e ao invés

de amá-lo, o consumimos.

Nesse sentido narra Han (2017, p. 15) “A sociedade do desempenho, dominada pelo

poder, onde tudo é possível, onde tudo é iniciativa e projeto, não tem acesso ao amor

enquanto vulneração e paixão”. Amar significa, para o autor, morrer no outro e retornar a si

mesmo, significa renunciar à consciência de si mesmo e esquecer-se num outro (HAN, 2017,

p. 22-23).

141

Assim, o mundo contemporâneo constrói o inferno do igual, onde ocorre a erosão do

outro e narcisização de si mesmo (HAN, 2017, p. 6), e exterioriza-se na não aceitação do

outro, na eliminação da subjetividade do outro, ou seja, tudo aquilo que é muito diferente do

“eu” já não é aceito, nivela-se o outro. Dessa forma, nas relações interpessoais não se aceita

o diferente, não se lida com os infortúnios ou com as contrariedades, apenas se aceita o outro

naquilo que se aceita e assemelha a si próprio.

A individualidade atual é exacerbada e exterioriza-se nas relações de modo egoísta,

ou seja, somente se relaciona com o outro naquilo que ele o amplia e o satisfaz. E o amor,

dessa forma, agoniza, uma vez que somente sobrevive com o diferente, com esforços e com

a entrega. Conforme traz Han (2017, p. 9) “A atopia do outro mostra ser a utopia do eros”.

É nesse viés que, na atualidade, cada vez mais os relacionamentos tornam-se

superficiais, não há vontade de adentrar no mundo do outro e aceitá-lo como diferente e,

assim, os laços afrouxam-se e se tornam fáceis de desfazer. Amor envolve sacrifícios, é fruto

de dedicação, tolerância e respeito ao próximo, “[...] pressupõe a vontade de partilhar as

nuances da vida, criando aos poucos algo quase que transcendental” (XAVIER, 2020, p. 56).

Para Zygmunt Bauman (2004, p. 240) o amor consiste em se doar ao outro, em contribuir com

o mundo com esse amor, é impulso de se expandir, de ir além, e tudo isso por meio daquele

que se ama. É sobreviver através da alteridade, além de envolver renúncia e

responsabilidade.

Dessa forma, pode-se afirmar que o amor precisa da solidez, materializada pelo

compromisso duradouro, na vontade e nas renúncias ao conviver com o diferente. Contudo,

na sociedade líquido-moderna cada vez mais o ideal de amor encontra-se longe de ser

alcançado ou de ser querido, uma vez que se exige muito do sujeito que, na maioria das

vezes, entende como mais benéficas as relações superficiais, já que não envolve as tensões

de vir, um dia, a sofrer por amor.

3 DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA, DIREITO DE FAMÍLIA MÍNIMO E

BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES FAMILIALRES

O objetivo da formação de família sofreu grandes modificações com o passar do

tempo. A promulgação da Constituição Federal de 1988 proporcionou uma repersonalização

das relações familiares, que deixaram de ter como foco a instituição da família como

proveniente do instituto do casamento, e passaram a ter como ênfase principal o indivíduo

considerado em si mesmo. Nesse sentido, a constituição de família passou a se voltar para a

felicidade do ser humano, buscando sua plena realização como a família eudemonista, a qual

almeja a emancipação e realização dos membros integrantes da entidade familiar.

142

Conforme se depreende do artigo 226 da Constituição Federal, principalmente em

seu parágrafo sétimo e oitavo, cabe aos indivíduos o livre planejamento familiar, e ao ente

público assegurar tal direito e criar mecanismos para a sua proteção. Assim, vislumbra-se que

o Estado existe em prol dos indivíduos e, dessa forma, em prol das famílias e não o oposto.

Além disso, tem-se que a família não é uma instituição criada pelo Estado, ao contrário,

antecede a ele e, assim, “[...] cabe ao ordenamento jurídico estar a serviço dos enlaces

espontaneamente formados, não o contrário” (XAVIER, 2020, p. 56).

É nesse ínterim que se tem o princípio do direito de família mínimo, o qual preceitua

a mínima intervenção do Poder Público na vida dos indivíduos, observando a autonomia

privada das partes nas relações familiares. Tal princípio é consagrado pelo artigo 1.513 do

Código Civil o qual dispõe que é defeso a qualquer pessoa, ente de direito público ou privado,

interferir na comunhão de vida instituída pela família. Dessa forma, consagra-se o princípio

da não intervenção nas decisões dos indivíduos no âmbito familiar.

Isso implica em afirmar que a intervenção estatal somente será utilizada para

proteger a parte hipossuficiente ou quando realmente necessária e como última opção, sendo

que qualquer ingerência do ente público na vida privada das famílias deve ser para garantir a

realização pessoal dos indivíduos que a compõem ou para a proteção do hipossuficiente.

Nesse sentido, afirmam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2015, p. 124-125):

Forçoso reconhecer, portanto, a suplantação definitiva da (indevida e excessiva) participação estatal nas relações familiares, deixando de ingerir sobre aspectos personalíssimos da vida privada, que, seguramente, dizem respeito somente à vontade e à liberdade de autodeterminação do próprio titular, como expressão mais pura de sua dignidade. O Estado vai se retirando de um espaço que sempre lhe foi estranho, afastando-se de uma ambientação que não lhe diz respeito (esperando-se, inclusive, que venha, em futuro próximo, a cuidar, com mais vigor e competência, das atividades que realmente precisam de sua direta e efetiva atuação).

Nas relações de família, a regra geral é a autonomia privada, com a liberdade de atuação do titular. A intervenção estatal somente será justificável quando for necessária para garantir os direitos (em especial, os direitos fundamentais reconhecidos em sede constitucional) de cada titular, que estejam ericlitando.

Assim, tal princípio busca garantir a autonomia dos indivíduos e a autodeterminação

das famílias, considerando o ser humano como ser racional e responsável por suas próprias

escolhas e, dessa forma, capaz de tomar as melhores decisões para si e para a sua vida,

razão pela qual detém o direito de decidir livremente acerca da sua constituição de família ou

não. Dessa forma, não cabe ao Estado impor aos indivíduos a união familiar por meio de

legislação, pois o fio norteador das famílias é a autonomia privada das partes.

Nesse viés, salienta Marília Pedroso Xavier (2020, p. 79) que a intervenção do Estado

na vida privada das partes pode tornar-se danosa por constranger os cidadãos, por prejudicar

143

o desenvolvimento de suas personalidades. Além do mais, litígios na esfera do direito de

família sempre acabam por serem custosos, tanto financeira quanto emocionalmente, pois

muitas vezes acarretam mal-estar entre os indivíduos e em nada contribuem para a melhoria

das relações.

Salienta-se que as relações familiares fáticas sofreram alterações, e assim as

relações jurídicas se modificaram, e o direito, que possui como finalidade atender os anseios

sociais, se transmudou para atender às novas necessidades. É neste viés que aponta o

conceito de autonomia privada das partes, definido como “[...] em geral, o poder, reconhecido

ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar

vicissitudes jurídicas como consequência de comportamentos – em qualquer medida –

livremente assumidos” (PERLINGIERI, 2002, p. 17).

Dessa forma, a autonomia privada rege o direito de família principalmente no que se

relaciona com a liberdade e livre manifestação de vontade do sujeito de direitos frente a todos

os atos da vida civil, sejam eles existenciais ou patrimoniais.

Judith Martins-Costa (2018, p. 248-249) traz que autonomia privada “[...] denota o

poder de autorregulamentação de interesses privados. Em termos muito sintéticos, a

autonomia privada: (i) constitui o fundamento da ação jurídico-privada e (ii) traduz uma fonte

de poder normativo, pelo qual se formam e são criados os negócios jurídicos”. Ou seja, às

partes é possibilitado regular os seus interesses pautados na autonomia privada,

estabelecendo os efeitos para os negócios que pactuam.

Imperioso reconhecer que a promulgação da Constituição Federal de 1988 acarretou

a constitucionalização do direito privado. Nesse ínterim, deixa-se o paradigma clássico no

qual a vontade dos indivíduos permanece acima de tudo, e passa-se para uma concepção

social do direito privado. Assim, pode-se afirmar que os institutos e princípios consagrados na

Constituição Federal devem estar presentes no Direito Privado, trazendo aos negócios

jurídicos e a qualquer relação de direito privado o dever de exteriorizar os princípios e objetivos

traçados na lei maior.

Um dos princípios basilares trazidos pela Constituição Federal de 1988 é o princípio

da dignidade da pessoa humana que busca, acima de tudo, a realização plena do ser humano,

que deve ser vista como um fim em si mesmo, sendo as instituições um meio para viabilizar

a realização do homem e de seus objetivos.

Tem-se como desdobramento do supracitado princípio o direito de família mínimo

que, como já explanado alhures, está altamente relacionado com o livre planejamento familiar

dos indivíduos e, dessa forma, é uma exteriorização da autonomia privada das partes que

visa assegurar aos indivíduos a liberdade para que possam alcançar a sua realização plena

e a sua felicidade.

144

Outro princípio importante a ser aplicado ao direito de família, aos contratos ou

negócios jurídicos é o princípio da boa-fé objetiva. Referido princípio deriva do princípio da

dignidade da pessoa humana e é entendido como um instituto ou modelo jurídico, um modelo

comportamental e um princípio jurídico, de forma concomitante (MARTINS-COSTA, 2018, p.

281). Assim, tem como objetivo direcionar o comportamento das partes nos negócios

jurídicos, as quais devem agir com lealdade, honestidade e probidade.

Afirma Eduardo Tomasevicius Filho (2020, p. 85-86) que o conceito de boa-fé

correlaciona-se com o conceito de dignidade da pessoa humana, ao passo que se baseia na

reciprocidade, significando que cada parte deve respeitar a personalidade do outro como se

fosse a sua, uma vez que ambos são dotados de dignidade. Conclui que boa-fé significa agir

da melhor forma e, assim, “[...] a boa-fé impõe um bom andamento das relações jurídicas,

mediante a inserção de deveres de coerência, informação e de cooperação, os quais, se

respeitados, dificultam o comportamento oportunista, protegendo-se a confiança que

naturalmente se desperta no contrato social”.

Conforme lecionam Marquesi e Ledo (2017, p. 251), “A boa-fé objetiva é um princípio

do direito privado fundado na ideia da eticidade, porque representa um ideal de conduta a ser

praticado nas relações interpessoais, notadamente nos negócios jurídicos”. Por ser um

princípio norteador do comportamento das partes, deve estar presente em todas as fases, ou

seja, é aplicado na fase pré-contratual ou negocial, durante e após, garantindo às partes que

o outro não irá agir de maneira contraditória, com abuso de direito ou má-fé.

Os referidos autores salientam que o princípio da boa-fé objetiva será utilizado como

baliza ao intérprete, que deverá ater-se aos ditames da boa-fé, devendo levar em

consideração a real intenção das partes na realização do contrato ou negócio jurídico, trata-

se da sua função interpretativa. Além disso, irá impor delimitações nas ações desejadas pelas

partes, além de criar deveres a elas. É nesse ínterim que o contrato ou negócio deixa de

possuir apenas a obrigação aventada como central, e seu objeto passa a abarcar a boa-fé

(LEDO; MARQUESI, 2017, p. 264-268).

Nesse mesmo sentido, destaca Anderson Schreiber (2016, p. 58) a função tríplice da

boa-fé objetiva: “[...] (i) a função de cânone interpretativo dos negócios jurídicos; (ii) a função

criadora de deveres anexos ou acessórios à prestação principal; e (iii) a função restritiva do

exercício de direitos”. Ressalta o autor que a terceira função veda comportamentos que,

mesmo legal ou contratualmente permitidos, vão de encontro à boa-fé e, dessa forma, são

vedados (SCHREIBER, 2016, p. 58).

Salienta Flávio Tartuce (2005, p. 3) que, pelo princípio da boa-fé objetiva estar

relacionado com os deveres anexos, não há sequer a necessidade de que se tenha previsão

no instrumento negocial. Dessa forma, a boa-fé é presumida e deverá ser observada pelas

145

partes, seja no contrato, no negócio jurídico ou em qualquer relação, e seu descumprimento

poderá acarretar a responsabilização da parte transgressora.

Assim, por representar um ideal de conduta, a aplicação do referido princípio ao

direito de família poderá se dar tanto nas relações negociais quanto nas relações existenciais.

Por ser um modelo jurídico complexo e prescritivo, conforme explica Judith Martins-Costa

(2018, p. 285), pode impor ações, condutas, vedações e sanções, não sendo apenas uma

indicação de comportamento a ser adotado.

A boa-fé objetiva, então, se relaciona principalmente com o tratamento a ser dado ao

outro, à confiança depositada na situação e nos negócios jurídicos ou contratuais, ou seja,

implica em afirmar que é um postulado ético que visa resguardar as relações jurídicas,

garantindo que sejam saudáveis e que atinjam seu objetivo de forma adequada a ambas as

partes, sem que uma cause prejuízo a outra. É por isso que referido princípio deve estar

presente em todos os âmbitos das relações familiares, pois visa, acima de tudo, proporcionar

segurança para as partes e consequente aumento de confiança, o que é fundamental em

qualquer relacionamento.

É nesse ínterim que a boa-fé objetiva aplica-se ao contrato de namoro, pois se espera

das partes que a sua manifestação seja honesta, leal e pautada na autonomia, além do que,

tal instituto visa melhorar e dar segurança aos envolvidos na relação. Por ser um negócio

jurídico que ocorre entre pessoas que possuem afeto mútuo, a boa-fé é ainda mais importante

para regular a segurança e a confiança que depositam um no outro. Além do mais, no

ordenamento pátrio, a boa-fé se presume, uma vez que é o que se espera das relações e dos

negócios, não podendo ser diferente no caso do contrato de namoro.

Os negócios jurídicos devem ser realizados com o intuito, além de seu objeto, de

realizar as diretivas traçadas pela Constituição Federal de 1988, efetivando suas garantias e

respeitando as suas balizas. É nesse sentido, também, que cabe a mínima intervenção estatal

nas relações privadas, pois se busca garantir às partes o direito de determinar o rumo ou o

seu próprio modo de vida, escolhendo a melhor forma ou pela não formação de um vínculo

familiar, cabendo ao Poder Público garantir que os indivíduos tenham acesso às políticas

necessárias para a efetivação da sua vontade.

4 DO CONTRATO DE NAMORO EM ESPÉCIE

4.1 DA MODIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES FAMILIARES E A DIFÍCIL DIFERENCIAÇÃO

ENTRE NAMORO E UNIÃO ESTÁVEL

Com a constante transmutação da sociedade e modificação pela forma que as

pessoas se relacionam, novas configurações de família começaram a ser aceitas pelo

146

ordenamento jurídico, que tenta regulamentá-las. No direito brasileiro, por muito tempo, as

relações familiares permaneceram restritas ao rigor formal do casamento, sendo a autonomia

privada das partes limitada ao pacto antenupcial. Assim, não se admitia qualquer configuração

de família que não fossem aquelas já previstas em lei.

Desde o advento da Constituição Federal de 1988, o conceito de família foi

estendido, passando a ser considerado em seu aspecto amplo ao trazer, em seu artigo 226,

o termo “entidade familiar”. Assim, família deixou de ser somente aquela entidade formada

pelo instituto do casamento dos pares e passou a ser considerada como aquela formada pelo

vínculo afetivo, independentemente do casamento, bem como reconheceu-se a família

monoparental, ou seja, aquela formada por qualquer um dos pais e seus descendentes.

Com o regulamento dado pela Magna Carta, o Código Civil trouxe em seu artigo

1.723 o reconhecimento da união estável como entidade familiar, traçando como requisitos

para a sua configuração a convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo de

constituição de família. Dessa forma, a união estável passou a produzir os mesmos efeitos

que o casamento, tendo reflexos na seara patrimonial.

Álvaro Villaça Azevedo (2019, p. 148) entende como união estável “[...] a

convivência não adulterina nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de um homem e

de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo como se casados, sob o mesmo teto ou

não, constituindo, assim, sua família de fato”. Ressalta referido autor, que os sujeitos vivem e

se apresentam socialmente como se casados fossem, faltando somente o “papel passado”,

pois participam um da vida do outro, sem tempo marcado para que se separem (2019, p. 163).

Diferentemente do casamento, que tem seu marco inicial com o ato formal e

consequente chancela estatal, a união estável não possui um início temporal certo e

delimitado, ela nasce da convivência entre as partes, ou seja, decorre de uma situação fática.

Segundo Maria Berenice Dias (2016, p. 243) “Nasce da consolidação do vínculo de

convivência, do comprometimento mútuo, do entrelaçamento de vidas e do embaralhar de

patrimônios”.

Para seu reconhecimento, faz-se necessário o cumprimento dos requisitos

exigidos pelo artigo 1.723 do Código Civil conforme citado alhures. A dificuldade é na

demonstração do ânimo subjetivo, ou seja, o objetivo de constituir família. Trata-se de um

requisito de difícil constatação diante da tênue diferença entre os namoros atuais e a

convivência em união estável. Ressalta-se que atualmente não se exige mais a convivência

por cinco anos para a configuração da união estável exigida anteriormente na lei n. 8.971 de

1994, ademais sequer se exige coabitação, o que acarreta maior dificuldade na configuração

do instituto.

O namoro, assim como as outras relações, também sofreu modificações.

Atualmente nota-se que os casais possuem maior proximidade, não ficando restrito ao namoro

147

que deveria se dar na frente dos pais, sem relações sexuais, além de não ser,

obrigatoriamente, um preparo para o casamento. Euclides de Oliveira (2005, p. 13-14)

observa as modificações trazidas no namoro:

O namoro à moda antiga se fazia cauteloso e era até difícil chegar aos beijos e abraços, o que só acontecia depois de certo tempo de espera e da aprovação familiar (era comum o namoro incipiente no sofá da sala dos pais da moça, sob olhares críticos e vigilantes dos donos da casa). Hoje é sabidamente mais aberta a relação, que logo se alteia para os carinhos mais ardentes e com boa margem de liberalidade (fim de semana a sós, viagens, sexo quase declarado).

O namoro de antigamente já não corresponde mais com as relações atuais,

que possuem uma gama maior de liberdade. Atualmente, os casais dormem na casa um do

outro, dividem despesas, muitas vezes coabitam, mas sem desejar que a relação seja

considerada uma entidade familiar, ou seja, optam por manterem a sua própria

individualidade. É comum e necessário que os casais desejem se conhecer e conviver antes

de assumir o compromisso de constituir família.

A legislação brasileira não faz nenhuma menção ao namoro. Cabe à doutrina

diferenciar namoro qualificado como uma relação pública, duradoura, podendo existir até

coabitação, ser visto pela sociedade como um casal, mas sem que se tenha o objetivo que

esse relacionamento seja considerado uma família. Tal conceito foi empregado no Recurso

Especial n. 1454643-RJ (BRASIL, 2015), onde foi constatado que, em que pese a coabitação

e relacionamento estável, não restou configurado o affectio maritalis.

Assim, vislumbra-se que o fio norteador da diferenciação do namoro para a

união estável reside tão somente no aspecto subjetivo de constituir família, de difícil

constatação, uma vez que cada sujeito da relação pode acreditar que o relacionamento se

encontra em um nível diferente, sendo imprescindível para a constituição de família o desejo

comum dos indivíduos.

Diferentemente da união estável, o namoro (por mais duradouro que seja e que

a relação se estreite) não possui qualquer consequência jurídica ou patrimonial, pois não é

reconhecido como entidade familiar. É visto como um estágio preparatório de afeição e

conhecimento pelos pares para então decidirem constituir ou não uma família. Contudo,

muitas vezes esses laços são tão estreitos que se torna complexo definir a relação existente

e diferenciá-la de uma união estável.

Dessa forma, demonstram-se as incertezas que as relações atuais podem

trazer, uma vez que já não se tem um liame conciso entre namoro e união estável. Como,

então, proteger pessoas (e seus patrimônios) nos relacionamentos, quando estas não

desejam formar uma família? É por isso que muitos casais têm optado pelo contrato de

namoro, como um meio de regulamentar a relação existente entre eles e evitar tensões e

confusões futuras.

148

4.2 DA EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

O contrato de namoro é um negócio jurídico no qual as partes acordam sobre a sua

situação fática existente, manifestando a sua vontade no sentido de que entre elas não há

intenção de constituir família e, dessa forma, que a relação em que estão não acarreta

qualquer efeito jurídico. Salienta-se que o ordenamento jurídico não traz qualquer vedação à

sua realização, já que as partes se encontram abarcadas pelas mais diferentes formas de

negócio jurídico.

Negócio jurídico pode ser conceituado como “[...] a declaração de vontade privada

destinada a produzir efeitos que o agente pretende e o direito reconhece [...]o negócio jurídico

é o meio de realização da autonomia privada, e o contrato, o seu símbolo” (AMARAL, 2018,

p. 465-466). Assim, o negócio jurídico é meio para que se exteriorize a vontade das partes e

os efeitos por elas queridos, contudo, salienta Junqueira de Azevedo (2002, p. 16) para que

produzam tais efeitos, os negócios jurídicos devem respeitar os pressupostos de existência,

validade e eficácia impostos pela norma jurídica.

No plano da existência, Junqueira de Azevedo (2002, p. 34) elenca como elementos

essenciais a forma, o objeto e as circunstâncias negociais (intrínsecos), o agente, lugar e

tempo no negócio (extrínsecos). Sem os referidos elementos não há que se falar em

existência do negócio jurídico e acarreta consequente inexistência da validade ou eficácia,

uma vez que para que possa produzir os efeitos queridos se faz necessário que o negócio

perpasse por todas as esferas (existência, validade e eficácia).

Quanto à validade, é elencado pelo artigo 104 do Código Civil que é necessário:

agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, forma prescrita ou não

defesa em lei. Ainda que o negócio jurídico seja existente e válido, não é certo que irá possuir

eficácia. Junqueira de Azevedo (2002, p. 61-62) ressalta que um negócio jurídico pode

naturalmente produzir efeitos, mas que por causa superveniente, torna-se ineficaz, ou seja, o

advento de um evento futuro pode afastar a eficácia do negócio jurídico ou pode estar adstrito

a uma condição futura de eficácia.

Ressalta-se que o papel da manifestação da vontade é de suma importância para o

negócio jurídico, devendo ser livre e não viciada. Assevera o autor que (AZEVEDO, 2002, p.

43) “[...] a declaração de vontade, tomada primeiramente como um todo, deverá ser: a)

resultante de um processo volitivo; b) querida com plena consciência da realidade; c)

escolhida com liberdade; d) deliberada sem má-fé”.

Quanto ao plano da eficácia Junqueira de Azevedo (2002, p. 57-61) elenca três

espécies de fatores de eficácia, quais sejam os fatores de atribuição de eficácia em geral, os

fatores de atribuição da eficácia diretamente visada e os fatores de eficácia mais extensa.

Nesse último, o campo de eficácia se dilata e possui efeitos, inclusive, oponíveis contra

149

terceiros e erga omnes. Assim, passado pela existência e validade, cumpridos seus requisitos,

o negócio jurídico está apto a ter eficácia e produzir os seus efeitos, contudo, é possível que

o negócio passe a ser ineficaz, podendo a causa estar ligada ou não com o negócio em si.

Aplicando ao contrato de namoro, tem-se que a legislação pátria não veda a sua

ocorrência, sendo permitida às partes a celebração dos mais diversos negócios jurídicos que

são contratos atípicos, desde que respeitadas as regras estipuladas no diploma legal (art. 425

do Código Civil) e corresponder a manifestação genuína da vontade das partes. Para tanto,

faz-se necessário que o negócio jurídico perpasse por todas as fases do negócio jurídico

elencadas acima, ou seja, que cumpra os requisitos de existência, validade e eficácia,

conforme será exposto a seguir.

4.3 DA NECESSIDADE DO RECONHECIMENTO DA EFICÁCIA DO CONTRATO DE

NAMORO

Quando se fala em contrato de namoro, tem-se que os casais o buscam, acima de

tudo, diante da nebulosidade que é a diferenciação entre namoro e união estável. Essa

diferenciação acarreta insegurança aos casais que não tem como intuito constituir família,

pois ficam à mercê, em um término, da interpretação do outro sujeito que pode não estar de

boa-fé.

Dessa forma, procuram as partes evitar o reconhecimento de uma união inexistente

por meio do contrato de namoro. Tal modalidade visa à regulamentação de uma situação

fática existente entre os pares que não é a união estável. Ressalta-se que o contrato de

namoro consiste em um negócio jurídico exteriorizado por meio de um contrato para o qual

não se exige forma determinada (art. 107 do Código Civil).

Uma das grandes críticas que o contrato de namoro sofre é quanto à sua validade,

para autores como Maria Berenice Dias (2016, p. 258) o contrato de namoro não possui

qualquer tipo de valor, uma vez que somente visa monetarizar singela relação afetiva.

Coaduna pela invalidade Rolf Madaleno (2020, p. 477) que afirma que o contrato não pode

afastar os efeitos decorrentes de uma situação fática.

Contudo, tem-se que referido contrato perpassa pelos planos de existência, validade

e eficácia do negócio jurídico. No plano da existência o contrato passa por todos os requisitos

trazidos como necessários já que não possui imposição legal de uma forma determinada,

podendo se dar de forma escrita ou não. Possui objeto, qual seja, declarar a vontade das

partes de que a união atual que possuem é de namoro, além de que as circunstâncias são

negociáveis diante da autonomia privada das partes e mínima intervenção do Poder Público

nas relações familiares, além de possuir agentes, lugar e tempo.

150

Quanto ao plano da validade, insta salientar que seu objeto é lícito, uma vez que não

tem como intuito afastar o reconhecimento da união estável quando presente, e sim regular

que a união não consiste em uma união estável, ou seja, que as partes, naquele momento,

não são uma família. Ainda, a sua forma não é vedada por lei, além do mais, sendo realizado

por agentes capazes não há que se falar na invalidade do contrato de namoro celebrado.

Dessa forma, respeitados os requisitos elencados pelo artigo 104 do Código Civil, o

contrato de namoro será válido e eficaz, desde que represente a genuína disposição da

vontade dos celebrantes. Tal vontade deve ser livre de qualquer vício e corresponder à

situação fática do casal, bem como observar a função social do contrato (artigo 421 e

seguintes do Código Civil).

Ressalta-se que o ordenamento pátrio veda o enriquecimento sem causa, artigo 884

do Código Civil, que obriga a parte que enriqueceu à custa de outrem a restituir o montante

devido. Dessa forma, o referido contrato não pode ser utilizado com o condão de resguardar

o enriquecimento de um sujeito sobre o outro quando da convivência surgiu o esforço mútuo

na conquista de patrimônio, ou seja, não tem como intuito resguardar a parte que deseja

aumentar seu patrimônio à custa do outro.

Nesse ínterim, importante ressaltar o papel da boa-fé, que deve estar presente e

reger todas as relações. Assim, caso seja constatado que uma parte agiu de má-fé – sua

vontade encontra-se viciada, uma vez que não é genuína – o contrato de namoro será

considerado nulo, posto que teve com intuito afastar lei imperativa (art. 166, VI do Código

Civil), ou seja, o reconhecimento da união estável e consequente comunicação patrimonial.

Salienta-se que somente referido argumento de que o contrato de namoro tem como intuito

afastar lei imperativa não é suficiente para o seu não reconhecimento, uma vez que a boa-fé

é presumida, de maneira que não será reconhecido o contrato eivado de má-fé (devendo ser

esta comprovada).

Implica em afirmar que o contrato de namoro tem por objetivo regular uma situação

fática existente naquele momento, não gerando efeitos quando da evolução do

relacionamento, e não é suficiente para afastar a ocorrência da união estável quando esta se

demonstrar presente pelo cunho probatório. Dessa forma, a eficácia do contrato de namoro

está adstrita à manutenção da relação de namoro.

Assim, sobre o contrato de namoro, “[...] sozinho ele não possui força probante. [...]

apenas a posse de um contrato de namoro não é eficaz para comprovar a inexistência de uma

união estável” (PAVIANI; KEMPFER, 2019, p. 137). Ou seja, evoluindo a situação fática do

casal, o contrato de namoro não pode configurar como óbice para afastar o reconhecimento

da união estável.

Dessa forma, o contrato de namoro possui o condão de resguardar os casais que

genuinamente estão em um relacionamento de namoro e que, diante da nebulosidade do

151

requisito subjetivo exigido para o reconhecimento da união estável, desejam obter maior

segurança e evitar desconfianças e incertezas no relacionamento. Nos dizeres de Marília

Pedroso Xavier (2011, p. 95):

Diante de uma possível confusão, nada melhor que facultar às próprias partes a regulamentação jurídica de um assunto tão íntimo. O exercício dessa pactuação garantiria, em última instância, um relacionamento mais sadio, tendo em vista que possíveis desconfianças restariam afastadas. Não há fundamento idôneo que justifique o ato autoritário de impedir que o casal se autoregre.

Além do mais, sendo o contrato exercício da autonomia privada das partes, não

cabe ao Poder Público fazer qualquer ingerência sobre a vontade dos indivíduos, posto que

vige no ordenamento pátrio o direito de família mínimo, sendo garantindo às partes a livre

formação de família ou não. Não se pode obrigar que as partes “se casem”, como acontece

muitas vezes com o reconhecimento forçado de uma união estável inexistente, assim o

contrato de namoro atua como uma prevenção e medida de segurança aos casais de que seu

namoro não será entendido como união estável pelo judiciário. Nesse viés, esclarece Marília

Pedroso Xavier (2020, p. 102):

Com a imposição da união estável aos variados relacionamentos, o indivíduo perde uma de suas únicas faculdades no âmbito do direito de família existencial: escolher a forma de realização de seu projeto afetivo, inclusive com quem ele será desenvolvido.

A ingerência estatal, neste nível, nada mais faz do que retirar do indivíduo a sua liberdade afetiva.

É possível, conforme destaca Miranda Soares Catan (apud DIAS, 2016, p. 260), que

as partes pactuem uma cláusula “darwiniana”, ou seja, quando da evolução de fato do

relacionamento, as partes optam pelo regime da separação de bens. Contudo, salienta

Junqueira de Azevedo (2002, p. 60-61) que a eficácia do negócio jurídico pode estar atrelada

a uma situação futura que pode vir tanto para que o negócio jurídico passe a ter eficácia,

quanto para acarretar a sua ineficácia. É nesse viés que, caso a relação fática entre o casal

evolua para uma união estável, acarrete ineficácia do contrato de namoro, pois já não

corresponde mais com a realidade vivida entre as partes.

O contrato de namoro poderá ser utilizado como meio de prova que, aliado a outras

provas presentes no caso, afaste o reconhecimento da união estável pelo julgador. Contudo,

ele por si só não tem como intuito afastar uma relação futura, mas regular uma situação

presente.

Assim, o contrato de namoro pode ser visto como um instrumento de materialização

da autonomia privada das partes, as quais estão resguardadas pelas mais diversas formas

de realização de negócios jurídicos e pelo livre planejamento familiar garantido

constitucionalmente. A realização do referido negócio jurídico, respeitando os limites impostos

152

pelo ordenamento pátrio, nada mais é do que garantir aos indivíduos que exerçam a sua

liberdade de não constituir família e consequentemente, que tenham a sua dignidade

respeitada ao exteriorizarem a vontade manifestada.

5 CONCLUSÃO

Diante do modelo dos relacionamentos atuais, o amor genuíno e a vontade de viver

juntos e constituir família tem se afastado cada vez mais, além de ter se tornado incomum.

Aliado a tal circunstância, reconhece-se que o modelo de namoro vigente na sociedade atual

já não coaduna com a de décadas anteriores, uma vez que, em sua maioria, não se tem

sequer o intuito de ser uma fase anterior ao casamento, já que tal instituição não interessa

mais a muitos indivíduos.

A superficialidade é tamanha que muitas vezes os casais sequer discutem seu futuro,

embasa-se no hoje, carpe diem. Pautado nessa modificação atual na maneira de se relacionar

é que se salienta a importância do reconhecimento do contrato de namoro como um negócio

jurídico que tem por objetivo regular a situação fática do casal e consequente afastamento de

comunicação patrimonial. Não se pode exigir que um relacionamento que não consiste em

uma família seja reconhecido e tenha os mesmos efeitos que decorrem do reconhecimento

da entidade familiar.

Ainda, tem-se que a diferenciação entre o namoro e a união estável baseia-se apenas

em um aspecto subjetivo que implica em auferir a vontade dos indivíduos. Assim, o contrato

de namoro atua como um aliado às partes que desejam proteger seu patrimônio.

Tal reconhecimento pauta-se na autonomia privada do casal, o qual possui a garantia

de auto regular sua vida e seu planejamento familiar, não cabendo ao Estado interferir na

decisão de como cada indivíduo tomará suas decisões pessoais. Na verdade, a interferência

deve ser no sentido de assegurar às pessoas o acesso às políticas que vislumbrem a

concretização de seus direitos e, entre eles, o livre planejamento familiar. Além do mais, o

reconhecimento de tal contrato consiste, também, em uma das formas de efetivação da

dignidade humana, princípio basilar da República Federativa do Brasil, pois visa assegurar

aos indivíduos uma vida digna e a liberdade de se autodeterminar.

Referido contrato pressupõe a boa-fé objetiva das partes que manifestam, por meio

deste negócio jurídico, a sua vontade genuína de que o relacionamento que mantém não

consiste em uma família. Ressalta-se que a boa-fé é um princípio e um dever jurídico derivado

de um princípio constitucional que visa um padrão de comportamento ético e honesto. Dessa

forma, é aplicada a todas as relações jurídicas e possui ainda mais importância quando se

refere aos negócios jurídicos no âmbito familiar, uma vez que, nessa esfera, além de regular

153

um modelo de conduta, atua como meio de dar maior segurança e consequente melhora nos

relacionamentos entre as partes.

Assim, não cabe ao Poder Público vedar o reconhecimento do referido instrumento

negocial, já que se trata da mais livre manifestação da autonomia privada das partes, da qual

se presume a boa-fé. Além do mais, tem-se que o contrato cumpre todos os requisitos exigidos

por lei e perpassa pelos requisitos de existência, validade e eficácia do negócio jurídico, não

possuindo óbices ao seu reconhecimento.

Tem-se que o reconhecimento de referido instrumento negocial é uma forma do

direito tutelar as necessidades das relações atuais, que já não são mais como as de décadas

atrás. Além disso, restou demonstrado que o contrato de namoro não tem como condão

prejudicar a outra parte ou fraudar lei imperativa, já que nesses casos será nulo e caberá

indenização. Assim, o seu reconhecimento só tem benefícios às partes, que poderão confiar

que seu relacionamento com o outro não irá acarretar consequências indesejadas por ambos,

evitando, também, esse tipo de tensão.

Constatou-se que o contrato de namoro tem por escopo regular uma situação fática

existente, não possuindo o intuito de afastar o reconhecimento de uma união estável quando

esta se demonstrar presente, mas trata-se de um contrato adstrito ao namoro existente e à

vontade atual das partes. Nesse ínterim, havendo evolução na relação, que deixa de ser um

namoro qualificado com vontade futura de constituir família, e constatada que a situação fática

não se coaduna com a conjuntura de quando foi firmado o contrato, tal já não terá mais

eficácia.

Diante disso, o contrato realizado como instrumento de manifestação de vontade

genuína, livre de vícios e de boa-fé, além de corresponder à relação que os sujeitos mantêm,

deve ser reconhecido como instrumento de exteriorização da autonomia das partes,

ressaltando que diante da mudança da conjuntura fática, o contrato torna-se ineficaz. E, caso

ele seja firmado com intuito simulado, será inválido.

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156

ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E O SISTEMA PRISIONAL: O CÁRCERE COMO

PRINCIPAL INSTRUMENTO FORMADOR DE CRIMINOSOS

CHIQUETTI, Lucas Mantovani35

RESUMO: O presente artigo possui por fito constatar que o atual sistema prisional pátrio é um mecanismo de expansão da criminalidade organizada. Para tanto, aborda os problemas efetivos vislumbrados no sistema carcerário, tanto no âmbito nacional e internacional, além de externar a temática do crime organizado. A pesquisa é essencialmente exploratória, utilizando o método de abordagem dedutivo aliado ao procedimento monográfico e histórico, de caráter bibliográfico. Conclui-se o trabalho demonstrando as conclusões alcançadas pela pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE: Crime Organizado. Direitos Fundamentais. Facção Criminosa. Penas Privativas. Sistema Penitenciário.

ABSTRACT: This article aims to verify that the current national prison system is a mechanism for the expansion of organized crime. To this end, it addresses the actual problems envisaged in these, at the national and international levels, in addition to externalizing the theme of organized crime. The research is essentially exploratory, using the deductive approach method combined with the monographic and historical procedure, of bibliographic character. The work is concluded by demonstrating the conclusions reached by the research.

KEYWORDS: Organized crime. Fundamental rights. Criminal Faction. Private Feathers. Penitentiary system.

1 INTRODUÇÃO

É cediço o caos instalado na República Federativa do Brasil, em que se vislumbra

uma verdadeira desordem estabelecida em todos os setores do país, muito em decorrência

da corrupção sistêmica que assola o território nacional, prejudicando a ordem e o progresso

da nação, assolando frontalmente toda a população e todos os setores da administração

35 Pós-graduando em Direito penal e processo penal econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Pós-graduado em Compliance pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI). Licenciado em Letras - Português e Espanhol pela Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Acadêmico do quinto ano de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) - Campus Londrina. Aluno Monitor pela PUCPR de Direito Processual Civil - Recursos. Pesquisador de Iniciação Científica (PIBIC) na área de Direitos Humanos e Direito Global Processual. Participante do grupo de pesquisa Novos Paradigmas do Direito Processual Civil e o Estado Democrático de Direito. Participante do grupo de pesquisa “Arbitragem e outras soluções” pela PUCPR. Possui vários artigos científicos publicados em Congressos e eventos por todo o país. Autor colaborador da obra coletiva Direito e Democracia - ensaios jurídicos sob a perspectiva dos direitos humanos e fundamentais e da obra coletiva Perspectivas de Direito Contemporâneo. Foi palestrante idiomático convidado pela escola All Idiomas durante o ano de 2018. Sócio Fundador da empresa Academico´s Londrina. Professor e corretor de Língua Portuguesa na mesma empresa estudantil.

157

pública, o que se revela algo completamente inaceitável de estar ocorrendo, de modo que é

imprescindível que haja ações enérgicas que combatam tal problemática, tanto por parte dos

órgãos governamentais, como pela própria população.

Diante deste cenário fático desolador, é patente que o sistema prisional pátrio sofre

abalo direto em sua estrutura, visto que o mesmo é administrado pelo poder executivo, na

esfera federal e estadual, e como é justamente este poder estatal o centro da corruptela,

vislumbra-se inegável que as verbas necessárias para a construção de novos centros de

detenção, para a contratação de agentes penitenciários, para a aquisição de equipamentos

indispensáveis para a administração penitenciária e para a compra de materiais e

mantimentos acabam não chegando por conta da defasagem existente no erário público,

tornando o cárcere brasileiro um grande barril de pólvora.

Assim sendo, ante a ineficiência explícita da máquina governamental em prover

aquilo que a Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional preconizam para

aqueles que estão encarcerados cumprindo pena privativa de liberdade, isolados da

sociedade, é certo que é nesta lacuna que adentra as organizações criminosas no afã de

dominar o espaço deixado pelo Estado e cooptar novos integrantes para que desta feita seja

possível atingir seus objetivos escusos, angariando numerosas quantias monetárias ilícitas.

Neste prisma, buscando proteção interna contra desavenças entre os próprios

detidos e contra abusos de poder por parte de agentes públicos e melhores condições de

sobrevivência nos presídios pátrios, a única alternativa vislumbrada pelos milhares de

detentos brasileiros é mesmo integrar uma facção delituosa, o que por consequência torna o

ergástulo coletivo um mecanismo de expansão do crime organizado.

A pesquisa utiliza o método de abordagem dedutivo aliado ao procedimento

monográfico e histórico, de caráter bibliográfico.

Ao final, apresenta-se as conclusões alcançadas pela pesquisa.

2 SISTEMAS PRISIONAIS E SUAS CARACTERÍSTICAS

No que diz respeito ao sistema prisional, tem-se que este é o local destinado aos

condenados pelo cometimento de crimes, no qual o Estado da efetividade as penalidades

impostas, fazendo com que os culpados criminalmente permaneçam reclusos e isolados da

vida social por terem transgredido os preceitos de convivência harmônica em sociedade,

promovendo deste modo a tão almejada segurança pública, além de prelecionar

implicitamente aos sentenciados e demais cidadãos aquilo que não se deve fazer (BARBOSA,

2007).

158

Dito isso, surge a necessidade de, inicialmente, analisar os sistemas prisionais

espalhados pelo mundo.

2.1 Sistema Pensilvânico

O sistema pensilvânico - filadélfico, sem sombra de dúvidas, é o sistema mais antigo,

originado no ano de 1790 por autoridades norte- americanas no estabelecimento prisional de

Walnut Street Jail na cidade da Filadélfia no estado norte-americano da Pensilvânia nos

Estados Unidos da América do Norte, com implementação posterior na cidade de Pittsburgh

e Cherry Hill, municípios estes igualmente localizados neste supracitado país da América do

Norte, tendo este sistema em comento como precursores, o diplomata e jornalista

estadunidense Benjamin Franklin e o separatista de origem inglesa William Bradford

(BAPTISTA, 2015).

Nesta modalidade de sistema prisional em voga, a pessoa encarcerada era recolhida

em uma cela sem cobertores, colchões ou produtos de higiene pessoal, em regime de

completo isolamento durante todo o lapso temporal necessário para o cumprimento da

reprimenda que lhe fora imposta, sem nenhum tipo de contato com o mundo exterior, bem

como sem nenhuma possibilidade de comunicação com os demais detentos integrantes da

massa carcerária, sem possibilidade de visitas ou de trabalho, sendo obrigatória a submissão

do detento ao total silêncio e também a leitura da bíblia como forma de estimular o

arrependimento pelo delito praticado e alcançar a misericórdia diante do Estado e do núcleo

social (BAPTISTA, 2015).

Neste diapasão, Cezar Roberto Bittencourt (2000, p. 94) preleciona que: “Já não se

trataria de um sistema penitenciário criado para melhorar as prisões e conseguir a

recuperação do delinquente, mas de um eficiente instrumento de dominação servindo, por

sua vez, como modelo para outro tipo de relações sociais”.

Não obstante, revela-se tempestivo ressaltar que neste sistema em tela não era

permitido que o encarcerado recebesse qualquer tipo de visita, tampouco era autorizado o

desempenho de qualquer modalidade laboral, tendo em vista que o regime era de isolamento

absoluto, o que acabou tornando este sistema um verdadeiro fracasso, posto que dificultava

a ressocialização da pessoa humana sentenciada e provocava elevados graus de insanidade

mental nos custodiados, além de inúmeros suicídios em decorrência da tortura cerebral

sofrida, algo completamente desumano e intolerável de ocorrer no transcurso da execução

penal.

159

2.2 Sistema Auburiano

O sistema auburiano ou itálico, conhecido também como silent system, possui origem

no ano de 1818, após intenso período de estudos realizados no sistema filadélfico, que se

iniciaram ainda no ano de 1796, sendo constatado o fracasso do sistema prisional celular,

resultando então na Penitenciária de Auburn, construída na cidade de mesmo nome, no

estado norte-americano dos Estados Unidos da América do Norte, como medida necessária

tomada pelo governo para superar os inúmeros vícios existentes e a severidade contida no

ergástulo público da Pensilvânia, surgiu então este modelo carcerário que aboliu o isolamento

absoluto, menos autoritário, no qual a massa carcerária permanecia isolada somente no

período noturno, podendo laborar no lapso temporal diurno, mas sob silêncio, disciplina e sem

possibilidade de comunicação.

Nesta linha de raciocínio, mostra-se tempestivo exteriorizar a lição de João José Leal

(2004, p. 393) in verbis: “O sistema Auburniano era semelhante ao anterior, com a única

diferença de permitir o trabalho em conjunto dos presidiários, durante o dia, mas sempre em

silêncio. À noite deveria ser observado o isolamento celular. ”

Sem sombra de dúvidas que tanto o sistema pensilvânico quanto este sistema itálico,

ora em comento, eram violadores dos Direitos Humanos Fundamentais de forma direta, tendo

em vista o tratamento desumano, degradante e torturador que era dispensado para os seus

prisioneiros, o que acabou gerando uma onda avassaladora de críticas, de modo que a única

distinção vislumbrada entre ambos os sistemas prisionais em questão, reside na possibilidade

dos condenados deixarem suas celas durante o dia para desempenharem trabalho em grupo,

regressando para a soledade no período da noite, sendo que a ordem de silêncio e proibição

de comunicação continuava vigorando nas duas modalidades encarceradoras, fazendo com

que poucas mudanças fossem observadas efetivamente, gerando um completo

enlouquecimento nos apenados, considerando a mudez integral imposta e a vedação a

visitação (BAPTISTA, 2015).

Desta feita, embora este sistema auburiano tenha sido instituído com o fito de

extinguir as falhas contidas no sistema originado no estado da Pensilvânia, o que se

vislumbrou neste, fora o mesmo desastre vislumbrado no sistema penitenciário anterior, haja

vista que os iguais infortúnios contidos no primeiro ergástulo público, prosseguiram,

excetuando-se a viabilidade laboral, o que se constitui um ponto positivo mínimo, dentre tantos

problemas que definitivamente não foram verdadeiramente extintos.

160

2.3 Sistema Progressivo

O sistema progressivo, inglês ou irlandês, originou-se na Inglaterra, país integrante

do Reino Unido, no século XIX, com origem atribuída ao Capitão da Marinha Real Inglesa,

denominado de Alexander Maconochie, sendo este sistema em tela somente utilizado com

maior regularidade após findar-se a primeira guerra de estirpe mundial, conflito armado que

perdurou entre 28 de julho de 1914 até 11 de novembro de 1918 entre as grandes potências

mundiais, de modo que mesmo que este sistema prisional tenha sido suscitado na época

passada, revela-se inconteste que o mesmo possui atribuição indispensável na era moderna,

notadamente imprescindível para o Estado Democrático de Direito, visto que contribui

significativamente para a rigorosa observância dos Direitos Humanos Universais, bem como

para a efetiva ressocialização dos condenados por práticas criminosas, tornando possível a

aplicação da lei penal, sem afrontar os Direitos e Garantias Individuais (SUXBERGER, 2006).

Isto porque, ainda que neste sistema persiste o predomínio da pena privativa de

liberdade, posto que tal modalidade de penalidade constitui-se na essência do sistema

repressor criminal moderno, é certo que este modelo em comento de cumprimento de

reprimenda, encontra-se em consonância com os objetivos da execução penal, haja vista que

o mesmo divide em etapas a forma com que o condenado cumpre sua sanção que lhe fora

imposta pelo Estado-Juiz, sendo que o primeiro ciclo consiste no isolamento celular integral

diuturnamente, também denominado de período de provas, impondo-se ao apenado lapso

temporal de reflexão no tocante ao delito praticado; no segundo estágio permite-se que o

reeducando labore durante o dia em conjunto com outros encarcerados, mantendo-se o

silêncio e regressando ao calabouço a noite, nos moldes do sistema prisional de Auburn;

restando a terceira e última etapa constituída na liberdade condicional do sentenciado

(SUXBERGER, 2006).

Sem embargo, mostra-se imperioso destacar que este sistema em voga, denomina-

se de progressivo, tendo em vista que o mesmo tem por escopo reduzir o rigor do martírio

aplicado pelo Poder Judiciário, consoante o lapso temporal transcorrido (requisito objetivo),

bem como, considerando o comportamento carcerário do apenado, atestado pela direção do

estabelecimento prisional (requisito subjetivo), originando-se o Mark System, no qual a

conduta do detento reflete diretamente na reprimenda que está sendo executada em seu

desfavor, de modo que quanto pior seja o proceder do indivíduo recluso, maior será a

dificuldade para que este alcance efetivamente a progressão de regime prisional, por isso,

deve o mesmo cumprir sua pena com comportamento adequado, com respeito aos servidores

estatais da instituição carcerária e com seus colegas de cárcere, submetendo-se ainda à

disciplina estabelecida pelo sistema penitenciário (BITENCOURT, 2000).

161

3 CRIME ORGANIZADO

No Brasil e no mundo existem inúmeras organizações criminosas de pequeno, médio

e grande porte, dedicadas a inúmeras atividades ilícitas com abrangências territoriais

diversas, sendo que no território brasileiro estas organizações possuem também a

denominação de facções criminosas com atuação dentro e fora do sistema prisional, impondo

aos seus membros e não integrantes reclusos ou em plena liberdade, mas com algum tipo de

envolvimento na seara criminal, uma doutrina a ser seguida, sob pena de serem julgados pelo

tribunal do crime.

3.1 Conceito de crime organizado

Inicialmente, antes de alcançar propriamente a conceituação de crime organizado,

revela-se indispensável exteriorizar o conceito de crime e de organização, respectivamente,

para, que, deste modo reste facilitado a compreensão dos exatos termos de organização

criminosa ou de crime organizacional, sendo que a nomenclatura crime, significa

transgressão, delito, infração, violação e contravenção, consistindo este como toda ação ou

omissão de natureza dolosa ou culposa que acarrete violação a um preceito primário

insculpido em uma determinada norma penal incriminadora, ofendendo através de dano ou

perigo um bem jurídico coletivo ou individual tutelado pela legislação vigente brasileira

(ESTELLITA; GRECO, 2011).

Neste diapasão, Romeu Falconi (2002, p. 152) preleciona que:

Crime é um fato (injusto punível) provocado por uma CONDUTA HUMANA que, juridicamente relevante, é tipificada e tem como componente o agente e, como conteúdo, a figura da ilicitude, tornando passível de apuração da culpabilidade, derivando daí uma punibilidade, uma vez provada àquela culpa (culpa lata).

Nada obstante, Nelson Hungria (1958, p. 9) corroborando com o mesmo

entendimento supracitado, ensina que o crime é uma:

Sub specie juris, em sentido amplo, crime é o ilícito penal. Mais precisamente

é o fato (humano) típico (isto é correspondente ao descrito in abstrato pela

162

lei) contrário ao direito, imputável a título de dolo ou culpa e a que a lei

contrapõe a pena (em sentido estrito) como sanção específica.

Desta feita, superada a definição de crime, passa-se a noção de organização, de

modo que tal terminologia possui exórdio no vocábulo grego organon, refletindo a acepção de

instrumento, ferramenta, apetrecho, mecanismo, utensílio ou dispositivo, que, por conseguinte

reflete a ideia de que uma organização é uma associação de indivíduos que ajustam forças

individuais com o fito de atingir desígnios de natureza coletiva, no qual os membros desta,

estão lotados em um todo estruturado, dividido e subdividido organizadamente com

distribuição de tarefas, com interação na baliza de uma estrutura formada sistemicamente e

de maneira integralmente coordenada para obstar qualquer tipo de transtorno de índole

pessoal ou material (BECK, 2004).

Assim sendo, insta adentrar efetivamente na necessária compreensão de crime

organizado ou organização criminosa, ainda que seja uma tarefa árdua e complexa de ser

realizada, possuindo divergência crônica entre os doutrinadores brasileiros e até mesmo

estrangeiros no tocante ao modo exato de se compreender a criminalidade organizada, suas

características, suas diretrizes e sua maneira precisa de atuação, haja vista que tal temática

ainda não é objeto de estudos efetivos e aprofundados por parte dos estudiosos das ciências

sociais e afins, o que acaba dificultando, além de que cada corpo criminoso organizado possui

sua singularidade e que não se confunde em hipótese alguma com qualquer particularidade

que o outro corpo sistêmico delituoso tenha (ESTELLITA; GRECO, 2011).

Nesta linha de raciocínio, tem-se que crime organizado é um agrupamento de tipos

penais incriminadores praticados por uma organização criminosa, sendo esta integrada por

quatro ou mais pessoas, estruturada sistemicamente, identificada pela divisão de encargos,

ainda que informais, com o escopo de obtenção de vantagem indevida de natureza econômica

ou material, por meio direto ou indireto, através do cometimento de atos considerados como

ilícitos penais pela legislação vigente pátria, cujos preceitos secundários das normas de

estirpe penal incriminadora determine a reprimenda cabível em patamar superior a 4 (quatro

anos) ou que estes sejam praticados de maneira multinacional (BORGES, 2002).

Neste sentido, Marcelo Batlouni Mendroni apud Guaracy Mingardi (2015, p. 18)

conceituam brilhantemente o crime organizado, in verbis:

Grupo de pessoas voltadas para atividades ilícitas e clandestinas que possui uma hierarquia própria e capaz de planejamento empresarial, que compreende a divisão do trabalho e o planejamento de lucros. Suas atividades se baseiam no uso da violência e da intimidação, tendo como fonte de lucros a venda de mercadorias ou serviços ilícitos, no que é protegido por setores do Estado. Tem como características distintas de qualquer outro grupo criminoso um sistema de clientela, a imposição da Lei do silêncio aos membros ou pessoas próximas e o controle pela força de determinada porção de território.

163

Destarte, cumpre enfatizar que atualmente o organismo criminoso encontra- se

devida e expressamente conceituado por intercessão da Lei Federal nº 12.850, de 2 de agosto

de 2013, legislação esta conhecida popularmente como Lei de Organização Criminosa, que,

contribuiu de forma significativa reputando tal variante delituosa, dispondo os métodos para

proceder com a investigação e o procedimento criminal, para lograr elementos probatórios

que irão fundamentar a pretensão acusatória que será deduzida pelo órgão ministerial perante

o Poder Judiciário, quais as transgressões penais relacionadas e o principal, dispõe

claramente sobre a penalidade cabível para os delitos inerentes.

3.2 Características do Crime Organizado

Ab initio, cumpre exteriorizar a existência de embaraço não somente para conceituar

claramente o termo crime organizado ou organização criminosa, como também as

características da criminalidade organizada presente no território nacional desta República

Federativa do Brasil, tendo em vista que cada qual possui suas peculiaridades, sendo estas,

originadas à luz de vertentes territoriais, econômicas, sociais e até mesmo políticas,

entretanto, é plenamente possível apontar algumas características essenciais de um

organismo destinado à práticas ilegais com o escopo de auferirem vantagens escusas de

distintas estirpes, tais como: estrutura hierarquicamente organizada; elevado poder de

constrangimento por intermédio de dano efetivo ou perigo; prática de crimes para o alcance

de benesses financeiras e materiais; alto poderio para corromper agentes públicos; exercício

do delito de lavagem de capitais com o fito de legalização de montantes financeiros oriundos

de ilícitos penais; divisão funcional de tarefas; método organizativo semelhante ao de uma

empresa legalmente constituída; utilização de mecanismos tecnológicos inovadores e

conexões com indivíduos criminosos de outras áreas territoriais (ESTELLITA; GRECO, 2011).

Nesta senda, Renato Brasileiro de Lima (2017, p. 671) preleciona que tais

organizações em comento se caracterizam comumente:

Pela hierarquia estrutural, planejamento empresarial, uso de meios tecnológicos avançados, recrutamento de pessoas, divisão funcional das atividades, conexão estrutural ou funcional com o poder público ou com agente do poder público, oferta de prestações sociais, divisão territorial das atividades ilícitas, alto poder de intimidação, alta capacitação para a prática de fraude, conexão local, regional, nacional ou internacional com outras organizações.

Isto posto, saliente-se que em que pese diversas organizações desta natureza

possua idênticos aspectos, vislumbra-se indispensável ressaltar que cada qual detém traços

164

próprios, o que por muitas vezes acaba obstando o labor do sistema de justiça criminal.

3.3 Estrutura e Modus Operandi do Crime Organizado

Relativamente a estrutura do crime organizado, exterioriza-se que diversos são os

meios de organização estrutural de um organismo delituoso, sendo que no que diz respeito

ao modo de atuação, tem-se que uma organização criminosa atua nos mesmos moldes em

que uma companhia empresarial desempenha seu mister, de modo que uma particularidade

que distingue uma da outra, é o fato de que uma empreende criminosamente para o alcance

de seus objetivos e a outra opera legalmente, consoante os comandos normativos insculpidos

na legislação vigente pátria (TOURINHO, 2006).

Compreender exatamente a distinção existente entre associação criminosa e

organização criminosa é imprescindível, tendo em vista que embora ambas detenham a

aparência de que possuem objetos e infraestruturas idênticas ou parecidas, em realidade não

é isso, posto que há efetivamente atributos axiomáticos que tornam distintas de forma

indiscutível, características estas fixadas pela legislação brasileira em vigor, isto porque, para

que reste caracterizada a associação criminosa se faz necessário o número mínimo de 3

(três) indivíduos com o intuito exclusivo de cometer delitos penais que não tenham reprimenda

em patamar superior a 4 (quatro) anos, de modo que para a caracterização de uma

organização criminosa é indispensável que esta seja integrada por no mínimo 4 (quatro)

pessoas e que a penalidade cabível para os crimes cometidos sejam obrigatoriamente

superior a 4 (quatro anos ou que estes sejam praticados de modo transnacional.

4 PROBLEMAS DO SISTEMA CARCERÁRIO: SUPERLOTAÇÃO

A superlotação existente no sistema prisional brasileiro sem sombra de dúvidas é um

transtorno de grande monta existente em decorrência da péssima administração penitenciária

gerida pela máquina estatal da União, dos Estados e do Distrito Federal, bem como da

ausência de investimentos financeiros para a construção emergencial de novas unidades

penais no território nacional com o fito de cobrir o déficit presente no que diz respeito ao

número de vagas nestas para o cumprimento das reprimendas impostas pelo Poder Judiciário,

que, infelizmente acaba propiciando diversos outros pandemônios no ergástulo público

brasileiro, como: rebeliões em massa; expansão de organizações criminosas; homicídios

165

cometidos entre os próprios detentos; surtos psicóticos entre os condenados e a

impossibilidade de uma higienização correta, ferindo frontalmente a dignidade da pessoa

humana.

4.1 Instalações físicas precárias

A precariedade das instalações físicas dos estabelecimentos prisionais nativos

também é um grande infortúnio, tanto para os indivíduos que cumprem pena privativa de

liberdade, quanto para os servidores das instituições penais brasileiras, haja vista que para

os sentenciados, cumprir pena em locais dotados de condições insalubres viola diretamente

os Direitos e Garantias Individuais previstos de forma expressa na Lei Maior de 1988 desta

República Federativa do Brasil, sendo que nos funcionários públicos, este tipo de

precariedade em comento pode tornar o trabalho desenvolvido por estes muito mais perigoso,

haja vista que tais condições podem facilitar fugas ou tentativas, além de diminuir

drasticamente a segurança do estabelecimento penal em todos os sentidos.

4.2 Violência física e psíquica cometida por agentes prisionais e policiais

No que diz respeito ao problema da violência física e psíquica cometida por agentes

de custódia e policiais, tem-se que esta modalidade de problemática é algo que necessita ser

urgentemente combatida com todo o rigor da legislação vigente pátria, tendo em vista que é

uma extrema crueldade existente dentro do sistema prisional brasileiro, no qual milhares de

detentos são torturados de maneira psíquica e física diariamente por agentes penitenciários

ou de cadeia, bem como por policiais civis e militares, sendo que estes últimos servidores

realizam tal prática escusa durante inspeções realizadas nas instituições penais e também

durante motins, como forma de promover castigo aos sentenciados por atos de indisciplina,

de modo que isto não deve prosseguir, posto que viola a dignidade humana e os Direitos

Humanos Universais previstos em diversos tratados internacionais desta estirpe.

5 CRIME ORGANIZADO NO MUNDO

Expostos o conceito a classificação doutrinária a respeito do crime organizado, surge

a necessidade de se destacar as mais importantes organizações criminosas tanto no âmbito

internacional como nacional.

166

5.1 Yakuza (Japão)

A máfia Yakuza, também conhecida e denominada por Gokudo e intitulada pela

imprensa e polícia japonesa como grupo de violência, é a maior e mais temida organização

criminosa com atuação transnacional surgida no Japão no século XVII, dotada de código de

conduta extremamente rígido e altamente organizada de forma piramidal hierárquica,

possuindo um número presumido de 105.000 (cento e cinco mil) integrantes, chefiados pelas

famílias Inagawa; Yamaguchi; Sumiyoshi e Toua Yuai Kumiai, sendo que estes evidenciam

suas conexões com este organismo criminoso por intermédio de inúmeras tatuagens de

dragões, montanhas, samurais e emblemas, fixadas em seus corpos, além de ser oportuno

destacar que tal conglomerado delituoso destaca-se por adotar a prática de mutilar o dedo

mínimo do indivíduo que ousar embaraçar de algum modo esta corporação criminosa em

comento, de modo que este corte em tela reflete o enfraquecimento do membro (CORKILL,

2011).

Neste sentido, vislumbra-se tempestivo exteriorizar a lição de Eduardo Araújo da

Silva (2003, p, 20), in verbis:

A organização criminosa Yakuza remonta aos tempos do Japão feudal do século XVIII e se desenvolveu nas sombras do Estado para a exploração de diversas atividades ilícitas (cassinos, prostíbulos, turismo pornográfico, tráfico de mulheres, drogas e armas, lavagem de dinheiro e usura) e também legalizadas (casas noturnas, agências de teatros, cinemas e publicidade, eventos esportivos), com a finalidade de dar publicidade às suas iniciativas. Com o desenvolvimento industrial do Japão durante o século XX, seus membros também passaram a dedicar-se à pratica das chamadas ‘chantagens corporativas’, pela atuação dos sokaya (chantagistas profissionais) que, após adquirirem ações de empresas, exigem lucros exorbitantes, sob pena de revelarem os segredos aos concorrentes.

Assim sendo, no tocante as atividades ilícitas executadas pela Yakuza, tem-se que

a mesma é a responsável direta pela grande maioria dos crimes praticados no território

nacional japonês, como o tráfico ilícito de substância entorpecente; tráfico ilegal de armas de

fogo e munições; exploração ilícita da prostituição; jogos de azar; extorsão; agiotagem;

comercialização de materiais de natureza pornográfica e espionagem ilegítima (CORKILL,

2011).

5.2 Camorra (Itália)

A máfia Camorra, também conhecida popularmente como máfia napolitana, é uma

organização criminosa de estirpe transnacional, originada urbanamente no século XIX na

região italiana de Mezzogiorno, localizada na cidade de Nápoles, município este, fixado no sul

da Itália, possuindo estreitos vínculos com causas de natureza social, com conexões com a

167

classe pobre trabalhadora, com o evidente intuito de conquistar legitimidade, respeito e

influência entre estes, com vistas a evitar qualquer tipo de embaraço, sendo que este grupo

criminoso em questão possui aproximadamente 7.000 (sete mil) membros, distribuídos em

mais de 100 (cem) famílias, com atuação direta nos mais diversos tipos de delitos, como o

tráfico de drogas; contrabando de cigarros; jogatina clandestina de azar; fraudação na

importação de carnes; licitação ilícita de obras de estirpe pública e extorsão, com atuação

brutal contra os seus desafetos (FERRO, 2009).

Nesse diapasão, Daiana da Silva Toledo (2014) preleciona que:

(...) a Camorra cresceu significativamente e tornou-se uma potência através do tráfico de entorpecentes, pois pela estrutura e excelente localização geográfica tornou-se fácil a entrada de drogas não só na Itália, mas como também na Europa. Ainda há estreita relação com a máfia siciliana, Cosa Nostra, que começou a desfrutar livremente a vinda da cocaína da Colômbia, já que ela traficava apenas heroína, mas entre 1980 e 1983, Cutolo começou a cobrar pizzo (propina), inclusive dos integrantes da Cosa Nostra que andavam pelo seu território, causando um grande desconforto entre as famílias e gerando uma sangrenta luta entre as máfias.

Desta feita, revela-se apropriado exteriorizar que este organismo delituoso em voga

se constitui em um dos mais importantes desta natureza existente no território italiano e com

presença em outros países do globo terrestre.

5.3 Cosa Nostra (Estados Unidos)

A Cosa Nostra Americana, conhecida também popularmente como La Cosa Nostra,

é uma organização criminosa dos Estados Unidos da América do Norte suscitada no exórdio

do século XX com a colocação de diversos mafiosos italianos no território desta América do

Norte, possuidora de idêntica estrutura organizacional hierárquica da máfia da Sicília,

originada na Itália de nomenclatura homônima e ramificada neste país norte-americano, ora

em comento, na qual seus membros encontram-se distribuídos em aproximadamente 25

famílias, com um número aproximado de 1.300 associados e mais de três mil indivíduos

responsáveis de forma direta e indireta pelo cometimento de incontáveis atos considerados

pela legislação como ilícitos penais (FERRO, 2009).

Neste prisma, Angiolo Pellegrini e Paulo José da Costa Júnior (1999, p. 75)

prelecionam que:

A família americana apresenta a mesma estrutura da família mafiosa siciliana: um boss, o vice, o grupo dos conselheiros, os chefes, o exército. Cada homem de honra dispõe de um grupo de associados, não filiados, não iniciados à maneira siciliana, mas que desempenham um papel específico na organização. Acima das famílias acha-se a comissão criada em 1931 por Lucky Luciano, que reúne 24 das 25 famílias e serve para resolver pacificamente as controvérsias territoriais e para defender os interesses

168

coletivos. É ela que comanda as relações com demais organizações, mesmo a nível internacional.

A Cosa Nostra acha-se solidamente instalada nas principais cidades americanas:

Nova York, onde operam cinco famílias: Gambino, Colombo, Bonanno, Genovese, Luchese;

Filadélfia, Chicago, Detroit, Boston, Tampa, New Orleand, Las Vegas, Los Angeles, San

Francisco. Também Cleveland, Denver, Kansas City, Milwaukee, Pittston, Rochester, Saint

Louis, Buffalo, San José, Tucson, Newark (FERRO, 2009).

Algumas famílias estabeleceram-se nas zonas de maior tráfico de estupefacientes,

nas proximidades da América Central.

Além disto, no que diz respeito as atividades ilegais praticadas pela Cosa Nostra

Americana, revela-se apropriado exteriorizar que a mesma executa os mais variados tipos de

crimes no território norte-americano.

5.4 Cartel de Sinaloa (México)

O Cartel de Sinaloa, conhecido também por CDS ou Aliança de Sangue, é uma

organização criminosa dos Estados Unidos Mexicanos, fundada na década de 1980 por

Joaquín Archivaldo Guzmán Loera, vulgo El Chapo, e com base central em Culiacán, capital

do estado mexicano de Sinaloa, mas com atuações nos estados de Durango; Sonora;

Chihuahua e Baja Califórnia, dedicada ao comércio ilícito transnacional de substância

entorpecente, em desacordo com determinação legal ou regulamentar (FERRO, 2009).

Nesta seara, cumpre trazer à colação, a lição de Roberto Saviano (2014, p, 46):

Hoje o cartel de Sinaloa é o que comanda, o que parece ter desarticulado todos os concorrentes, pelo menos até a próxima reviravolta. Sinaloa é hegemônica. No seu território a droga oferece pleno emprego. Gerações inteiras mataram a fome graças à droga. Dos camponeses aos políticos, dos jovens aos velhos, dos policiais aos desempregados. É preciso produzir, escoltar, transportar, proteger. Todos capacitados e alistados, em Sinaloa. O cartel age no triângulo de ouro e, com 650 mil quilômetros quadrados sob seu controle, é o maior cartel mexicano. Sob sua gestão se desenvolve uma fatia importante do tráfico e da distribuição de cocaína nos Estados Unidos. Os narcos de Sinaloa estão presentes em mais de oitenta cidades americanas, com células principalmente no Arizona, Califórnia, Texas, Chicago e Nova York.

Este grupo criminoso, ora em comento, possui operações em mais de 20 estados

mexicanos e 50 países do globo terrestre, sendo considerada a maior organização criminosa

das Américas, ocupando a quinta posição entre os maiores organismos dedicados ao crime

do planeta, operando em conjunto com o Cartel do Golfo em atuações criminosas e também

com o escopo de combater organizações rivais como Cartel de Juárez e Los Zetas, sendo

169

indispensável exteriorizar que esta Organização Criminosa, também de denominada de

Organização Guzmán Loera utiliza como estratagema para o prosseguimento de suas

atividades escusas, a realização de trabalhos em prol da população de baixa renda e a prática

de corrupção ativa em desfavor de agentes públicos dos mais notáveis cargos estatais

(FERRO, 2009).

5.5 Crime Organizado no Brasil

5.5.1 Primeiro Comando da Capital.

O Primeiro Comando da Capital, conhecido também pelas iniciais P.C.C e pelos

números “ 15.3.3”, (tendo em vista a ordem alfabética das letras “P” e “C”) é uma organização

criminosa brasileira, originada em 31 de agosto de 1993 por oito detentos insatisfeitos com as

condições do cárcere, durante uma partida de futebol no Anexo da Casa de Custódia de

Taubaté, município este distante 130 (cento e trinta quilômetros) da cidade de São Paulo,

capital do Estado de nome homônimo, estabelecimento prisional vulgarmente denominado de

“Piranhão”, devido ao criminoso costume dos presos beberem o sangue de seus desafetos,

sendo que esta facção criminosa em tela, denominava-se inicialmente como “Partido do

Crime”, com a afirmativa de que sua fundação tinha por fito “combater a opressão dentro do

sistema carcerário” (FERRO, 2009).

No entanto, após sua criação, este organismo delituoso em comento organizou-se

de maneira rápida com o escopo de executar atividades ilícitas, como roubos; sequestros;

tráfico de entorpecentes e outros, no afã de angariar montantes financeiros, para além de seu

objeto inicial que era de supostamente coibir supostos atos arbitrários praticados por agentes

públicos em desfavor dos apenados, de modo que sua expansão ocorreu vultuosamente em

pouco lapso temporal, ultrapassando os muros do sistema prisional paulista e os limites

territoriais do Estado de São Paulo, fixando tentáculos nas mais diversas localidades,

principalmente em áreas carentes desprovidas de condições básicas e onde muitas vezes o

Poder Público não se faz presente, estando presente em todas as unidades da Federação e

em ao menos 03 (três) países da América do Sul (FERRO, 2009).

Derradeiramente, destaca-se que a maior ação demonstrativa de poder desta facção

delituosa em voga ocorreu no mês de maio do ano de 2006, considerada a maior onda de

ataques criminosos contra o patrimônio público e as forças de segurança pública, originada

no território estadual paulistano em 12 de maio deste mesmo citado ano e iniciada em outros

estados do país dois dias após, revelando-se indispensável exteriorizar que como resultado

desta profusão de delitos, houve 298 (duzentas e noventa e oito) óbitos e 59 (cinquenta e

nove) pessoas feridas, além disso, houve dezenas de rebeliões nos presídios paulistas, sendo

que estes e os ataques nas ruas desencadearam-se em decorrência da transferência de 765

170

(setecentos e sessenta e cinco) encarcerados de diversas unidades prisionais para uma única

penitenciária de segurança máxima, localizada na urbe de Presidente Venceslau-SP,

remoção determinada pelo governo estadual com o desígnio de promover a desarticulação

desta organização (FERRO, 2009).

5.5.2 Amigos dos Amigos.

A Amigos dos Amigos, conhecida também pelas iniciais A.D.A, é uma organização

criminosa, originada nos presídios do Estado do Rio de Janeiro no ano de 1994 pelo

narcotraficante Ernaldo Pinto de Medeiros, conhecido à época vulgarmente por Uê, morto

carbonizado durante rebelião no ano de 2002 no Complexo Prisional de Bangu, facção

destinada ao cometimento de diversos ilícitos penais, tais como assassinatos; roubos; furtos;

tráfico de substância entorpecente; sequestros; extorsões e rebeliões, com o fito arrecadar

quantias monetárias destinadas a subsistência do próprio grupo criminoso, sendo que este

organismo delituoso em voga possui como principal e atual líder o criminoso Antônio Francisco

Bonfim Lopes, vulgo Nem da Rocinha, além disso, seus integrantes encontram-se em

diversos municípios e unidades prisionais cariocas (MACIEL FILHO, 2014).

5.5.3 Guardiões do Estado.

A Guardiões do Estado, também identificada pelas iniciais G.D.E e pelos números “

7.4.5. ”, (tendo em vista a ordem alfabética das letras “G”, “D” e “E”), é uma facção criminosa

originada no Estado do Ceará no ano de 2008, especificamente nas periferias da capital

Fortaleza, após dissidência de membros de determinada torcida organizada de futebol que

migraram para a órbita criminal, tendo sido detectada pelas autoridades policiais no ano de

2012 no bairro cearense conjunto palmeiras, sendo integrada principalmente por jovens, além

de ser considerada como a segunda maior organização delituosa existente dentro dos

presídios cearenses em número de integrantes e a maior nas ruas daquele território

geográfico estadual, estando presente para além deste estado em questão, no Amazonas;

Rio Grande do Norte; Acre; Pará e Rondônia (MACIEL FILHO, 2014).

171

6 LEGISLAÇÕES RELATIVAS À CRIME ORGANIZADO

A Lei Federal nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, revogou integralmente a Lei nº

9.034/1995, sem sombra de dúvidas é uma legislação inovadora e de suma importância para

o Estado Democrático de Direito desta República Federativa do Brasil, considerando que até

o ano de 2012 inexistia qualquer terminologia legal apta a definir uma organização desta

estirpe, de modo que a Convenção de Palermo era utilizada corriqueiramente para tanto e

tendo em vista ainda que definiu claramente o conceito de organização criminosa, dispôs

sobre a investigação criminal, quais os meios adequados para a obtenção de elementos

probatórios, além de ter definido o procedimento criminal e quais as infrações penais

correlatas, sendo que sua relevância e indispensabilidade está intimamente conectada ao fato

da necessidade de se combater a existência de diversos grupos criminosos no território

nacional (PRADO, 2006).

No tocante a Lei Federal nº 9.613, de 3 de março de 1998, tem-se que a esta norma

legislativa produzida pelo Congresso Nacional Brasileiro, detém altíssima importância, haja

vista que sua edição decorreu da necessidade vislumbrada pelo legislador ordinário pátrio de

instituir mecanismos legais para o combate ao delito de lavagem de capitais, de modo que

houve por bem dispor expressamente sobre os delitos de “lavagem” ou ocultação de bens,

direitos e valores, bem como sobre a prevenção da utilização do sistema financeiro para os

ilícitos penais previstos nesta mesma lei, além de instituir no âmbito do território geográfico

nativo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, também conhecido pelas siglas

COAF, órgão este com incumbência de receber, examinar e identificar operações financeiras

suspeitas, estando vinculado atualmente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública

(ESTELLITA, 2009).

Derradeiramente, relativamente a Lei Federal nº 11.343/2006, cumpre externar ab

initio que, tal legislação em comento constitui-se em um marco histórico e eficaz no combate

ao tráfico ilícito de substância entorpecente, ainda que seja alvo de inúmeras controvérsias e

ações declaratórias de inconstitucionalidade, tendo em vista que instituiu o Sistema Nacional

de Políticas sobre Drogas, prescreveu medidas para prevenir o uso indevido, proporcionando

atenção devida aos usuários e dependentes, além de ter estabelecido de modo expresso,

normas para reprimir a produção e o comércio ilegal de drogas, definindo tipos penais

correlatos e dando outras providências cabíveis (ESTELLITA, 2009).

172

CONCLUSÃO

A pena, ou ainda a sanção penal é a forma deveras ruim, mas muito necessária em

que o Estado utilizando-se das regras previstas no direito penal anteriormente ao fato

delituoso, pune o autor de um delito, após a formação de sua culpabilidade através do devido

processo legal, de modo que infelizmente somente através dela em sua essência coercitiva

que é possível fazer com que ocorra a tão almejada paz social, fazendo com que as regras

de convivência harmônica em sociedade sejam devidamente observadas pelas pessoas.

Assim, resta patente que o Estado como ente dotado de soberania dentro de seu

território, detém de modo exclusivo o direito de aplicar a punição cabível ao agente delituoso,

fazendo com que está além de retribuir dentro da lei o mal praticado, tenha em seu bojo uma

força pedagógica.

No que diz respeito ao sistema prisional, tem-se que este é o local destinado aos

condenados pelo cometimento de crimes, no qual o Estado da efetividade as penalidades

impostas, fazendo com que os culpados criminalmente permaneçam reclusos e isolados da

vida social por terem transgredido os preceitos de convivência harmônica em sociedade,

promovendo deste modo a tão almejada paz pública, além de prelecionar implicitamente aos

sentenciados e demais cidadãos aquilo que não se deve fazer.

Não obstante, em que pese ser necessário punir indivíduos criminosos por terem

cometido ilícitos penais, é preciso que a execução das medidas sancionadoras seja realizada

em consonância com os direitos e garantias fundamentais insculpidos na Constituição Federal

de 1988, sob pena de grave retrocesso, além de ser intolerável que a máquina estatal reprima

o crime violando direitos previstos constitucionalmente, posto que no país vige um Estado

Democrático de Direito e não o autoritarismo.

Tal ressalva se mostra necessária na medida em que se vislumbra no sistema

prisional brasileiro um caos generalizado, com ausência de milhares de vagas em

consequência da superlotação e da inércia governamental nesta seara, inexistência de

condições mínimas de higiene pessoal e coletiva, inúmeras violações de direitos humanos,

fazendo com que a dignidade humana seja afrontada diretamente.

É neste cenário caótico acima exteriorizado gerado a partir das condições

desagradáveis que surge às organizações criminosas, com alcance transnacional, nacional,

regional ou local, lideradas e compostas por criminosos de alta periculosidade, organizadas

de forma hierárquica, com divisão de tarefas, destinadas a práticas de ilícitos penais, com o

fito de angariar lucros financeiros de grande monta, além disso, muitas destas surgiram nos

sistemas prisionais com o suposto escopo de coibir arbitrariedades e opressões cometidas

por agentes estatais em desfavor dos indivíduos que se encontram no ergástulo público.

173

No Brasil e no mundo existem inúmeras organizações criminosas de pequeno, médio

e grande porte, dedicadas a inúmeras atividades ilícitas com abrangências territoriais

diversas, sendo que no território brasileiro estas organizações possuem também a

denominação de facções criminosas com atuação dentro e fora do sistema prisional, impondo

aos seus membros e não integrantes reclusos ou em plena liberdade, mas com algum tipo de

envolvimento na seara criminal, uma doutrina a ser seguida, sob pena de serem julgados pelo

tribunal do crime.

Neste prisma, considerando o aumento do número de organizações desta estirpe

existente no país e o elevado potencial ofensivo das mesmas em desfavor da sociedade em

decorrência do cometimento de delitos de diversos tipos por seus membros e simpatizantes,

o Estado vislumbrou a necessidade de endurecer a reprimenda para infrações relacionadas

ao tema em voga, bem como de criar mecanismos efetivos para combatê-las, de modo que

fora criada a Lei Federal nº 12.850/2013.

Ex positis, resta exposta de maneira ampla a magnitude deste estudo em comento

para a senda acadêmica, para o sistema de política e Justiça Criminal, para a coletividade

brasileira e até mesmo para graduando, haja vista que a temática tratada é de inteiro proveito

de todos, sendo forçoso enfatizar que se logrou pleno êxito em responder as indagações e

problemáticas propostas, destacando-se ainda que os objetivos ofertados foram alcançados

adequadamente, porquanto restou indubitável que infelizmente o sistema prisional brasileiro

se tornou um mecanismo efetivo de expansão da criminalidade organizada, tanto no aspecto

de aumento de contingente das organizações criminosas, quanto na perspectiva de

planejamento e execução das mais diversas ações delituosas destinadas a angariar elevados

montantes financeiros para tais organismos afincados à margem do império da Lei.

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Para mais informações ou eventuais dúvidas, solicita-se contatar os Editores da Revista INTERTEMAS via e-mail [email protected] ou pelo telefone (18) 3901-4004.