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1 O desafio da liberdade Argumentos e sentenças: confissões tormentosas por Luis Alberto Warat Tradução Jaqueline S. B. Sena I Texto em homenagem ao professor Tercio Sampaio Ferraz, meu primeiro parceiro e grande amigo que conheci no Brasil 1 1. Corpos mestiços e corpos sucessivos 1.1. - Se a linguagem e o amor são como fluidos únicos de um rio que passa sem nunca repetir-se, através de corpos sucessivos, este ensaio é, assim, um suceder cartográfico de alguns dos seus resíduos. Restos que tratam de se agarrar ao fundo. Homens em ruínas que mantêm um esconderijo secreto para os tesouros. Uma geografia de difícil acesso, que quando se consegue penetrar, permite ao forasteiro encontrar-se a si mesmo nos territórios desconhecidos da “outridade” e dele mesmo nela. Este ensaio é uma das possibilidades cartográficas que existem para se poder navegar dentro do que meu corpo esconde. Partirei, cartografias em mão, com uma tripulação de fantasmas: Barthes, Cortazar, Guatarri, Castoriadis, Foucault, Mafessoli. Marinheiros experientes que serão minha estrela-guia. Alguns chamam essa cartografia de iluminuras do espírito, eu prefiro chamar de deuses do dionisíaco. 1.2 - Alguns acordos para se aproximar ao sentido de alguns termos em aberto que usarei neste ensaio As convicções do espírito constituem o sangue ou a seiva dos corpos sucessivos. Nas ruínas dos homens, elas se instalam como sementes que podem fazer 1 Este texto reflete o estado atual das minhas investigações que, suspeito, diferem dos atuais interesses de Tercio. Sempre os caminhos dos intelectuais se bifurcam, o que é bom no trabalho teórico. Mas não existe melhor homenagem a um amigo do que participar de uma obra em sua homenagem com o melhor que se reputa como produção presente. De qualquer forma, creio que as diferenças com Tercio são de detalhes. Ao largo da nossa história em comum, divergimos em alguns pontos e, com o passar dos anos, reconhecíamos sempre a razão do outro. Esses reconhecimentos são as homenagens mais sutis.

WARAT, Luis Alberto. O desafio da liberdade - Argumentos e sentenças - confissões tormentosas

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O desafio da liberdade

Argumentos e sentenças: confissões tormentosas

por Luis Alberto Warat

Tradução Jaqueline S. B. Sena

I

Texto em homenagem ao professor Tercio Sampaio Ferraz, meu primeiro

parceiro e grande amigo que conheci no Brasil1

1. Corpos mestiços e corpos sucessivos

1.1. - Se a linguagem e o amor são como fluidos únicos de um rio que passa sem

nunca repetir-se, através de corpos sucessivos, este ensaio é, assim, um suceder

cartográfico de alguns dos seus resíduos. Restos que tratam de se agarrar ao fundo.

Homens em ruínas que mantêm um esconderijo secreto para os tesouros. Uma geografia

de difícil acesso, que quando se consegue penetrar, permite ao forasteiro encontrar-se a

si mesmo nos territórios desconhecidos da “outridade” e dele mesmo nela.

Este ensaio é uma das possibilidades cartográficas que existem para se poder

navegar dentro do que meu corpo esconde. Partirei, cartografias em mão, com uma

tripulação de fantasmas: Barthes, Cortazar, Guatarri, Castoriadis, Foucault, Mafessoli.

Marinheiros experientes que serão minha estrela-guia. Alguns chamam essa cartografia

de iluminuras do espírito, eu prefiro chamar de deuses do dionisíaco.

1.2 - Alguns acordos para se aproximar ao sentido de alguns termos em aberto

que usarei neste ensaio

As convicções do espírito constituem o sangue ou a seiva dos corpos

sucessivos. Nas ruínas dos homens, elas se instalam como sementes que podem fazer

1 Este texto reflete o estado atual das minhas investigações que, suspeito, diferem dos atuais interesses de

Tercio. Sempre os caminhos dos intelectuais se bifurcam, o que é bom no trabalho teórico. Mas não existe

melhor homenagem a um amigo do que participar de uma obra em sua homenagem com o melhor que se

reputa como produção presente. De qualquer forma, creio que as diferenças com Tercio são de detalhes.

Ao largo da nossa história em comum, divergimos em alguns pontos e, com o passar dos anos,

reconhecíamos sempre a razão do outro. Esses reconhecimentos são as homenagens mais sutis.

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germinar os fluxos do amor e da palavra poética. Isso, sempre que as convicções do

espírito que nutrem os corpos sucessivos não sejam tóxicas e impeçam o florescimento

das palavras do desejo. As convicções do espírito podem ser nutritivas ou tóxicas. Estas

últimas podem ser purificadas pela palavra e pelo amor do outro. A alteridade como um

filtro.

a) Corpos sucessivos é um conceito aberto que me proponho usar para mencionar a

existência de um lugar virtual na rede de intercâmbios simbólicos e vínculos que os

homens estabelecem para construir reciprocamente, nesse jogo de influências, suas

identidades, que são sempre estados relacionais. São todos os corpos que

sucessivamente passaram por mim, para constituir-me, deixando suas sementes entre as

minhas ruínas. São os corpos que configuram este corpo mulato, que é a minha

identidade. “Virtual”, o emprego aqui não como um estado ou tipo de realidade, mas

como um lugar indeterminado, uma rede de intercâmbios onde se armazenam

informações, sentimentos, dados de todos os tipos.

b) O corpo mulato é a expressão que uso para referir-me ao homem maduro, que

conseguiu sua autonomia responsável sem renunciar às partículas do surrealismo que o

permitem manter-se como cronópio em um mundo saturado de famas. É o corpo que

consegue contagiar-se pelos sucessivos corpos que o atravessam sem ser contaminado

por toxinas, apropriando-se apenas de seus nutrientes, metabolizando-se nas diferenças,

mediando sangue e seivas de outros corpos. Em contraponto, uso a expressão corpo

minguante (tomando um pouco a idéia de Almodóvar em “Hable con Ella”) para

referir-me ao homem que, por paixões e dependências desmedidas, vê seu corpo

minguar até ficar reduzido a um tamanho tão pequeno que pode entrar na vagina de sua

paixão: o corpo da devoradora. Esse corpo que, fingindo proteger-lo, o conduz a um

estado de infantilismo ou de vitimização.

c) Corpos minguantes são os dos famas (os excluídos que não se dão conta de seu

estado e seguem ordenando suas vidas por suas agendas), dos discriminados,

abandonados e danificados pelas exclusões mais aberrantes; corpos minguantes são os

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dos devorados pela cultura, pelos objetos da moda, da ideologia de consumo e pelas

trivialidades fashion, são aqueles que preferem formar parte de uma espécie

infantilizada (a espécie dos infantes perpétuos, que, como as crianças, não conseguem

compreender o alcance da palavra alteridade), ou os que, passando-se por vítimas,

procuram responsabilizar os portadores de diferenças. O corpo minguante é o do

homem reduzido em suas possibilidades de pluralidades pelo modismo do pensamento

único.

d) O corpo da devoradora é principalmente uma referência à maioria dos

componentes do sistema educacional e da administração da justiça. Corpos deformados

pelas suas instituições, que conseguem produzir o melhor elixir para minguar os corpos

(principalmente dos mulatos potenciais) que logo introduzirão em suas páginas

poderosas para atingir o êxtase.

e) Convicções do espírito é um outro conceito aberto que proponho para me referir aos

conteúdos que informam e formam os corpos sucessivos. Esses conteúdos podem ser de

dois tipos: desejantes, ou delegados ou manipuladores. Os primeiros são eco-políticos,

já os segundos, bio-políticos ou de tratamento degradante. Os primeiros são credores do

próprio destino, os segundos, disciplinadores ou exterminadores. Ambos estão

configurativos do que tradicionalmente se convencionou chamar de mentalidade ou

consciência coletiva, duas expressões de que nunca gostei; prefiro falar de corpos

sucessivos portadores de convicções. Conforme as convicções que carregam os corpos

sucessivos que me atravessaram e que continuam a me perpassar, terei mais ou menos

chances de chegar a ter um corpo mulato ou minguante. Um humanismo da alteridade,

ou uma moral de escravos (humanismo reduzido da condição moderna). O corpo mulato

capaz de pensar e sentir por si mesmo, sem necessidade de delegar essa possibilidade a

alguém ou a um conjunto representacional.

Em algum lugar da rede de comunicação, entre os corpos e suas ruínas, estão

expectantes: as convicções do espírito que podem ser imagens, idéias já estabelecidas,

objetos de moda que marcaram sensibilidades e artifícios, somados aos códigos de

existência e modalidades estilísticas para a vida, marcada através de mensagens

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publicitárias ou pelo clima fashion. Crenças do senso comum cotidiano e teórico.

Formas unívocas de entendimento, manifestações melodramáticas sobre a pátria e a

família. Fetiches persuasivos, lugares-comuns, inversões humanas. Marcas de

quadrinhos da infância, matinês de westerns e filmes mexicanos cm telefones brancos.

A imprensa do coração e dos livros de auto-ajuda, sonhos fabricados para continuar

iludindo-nos com o consumo, com a vida e com o amor.

Acabo de enumerar exemplos escolhidos de uma lista interminável de

convicções contidas em corpos sucessivos. Lugares para responder artificialmente à

pergunta sobre o sentido da condição humana. A forma pré-histórica de uma Matrix.

Claro que, também, as convicções do espírito podem conter as chaves para

apostar nas buscas do que não se percebe com o logos, mas com a sensibilidade, com os

impulsos que podemos construir para ouvir a nossa criança interior insatisfeita. Estas

convicções do espírito acompanham os fluxos de amor e a palavra para poderem

alcançar a iluminação dos enigmas, algo como o que dizem os hinduístas. Respostas,

entre as ruínas, para os desafios da liberdade. A combinação: uma mistura explosiva,

um longo caminho de comunicações que não dispensam os conflitos. A liberdade como

resultado da mediação interior entre convicções enfrentadas.

Uma cartografia muito particular de convicções do espírito circula entre os

corpos mulatos de juristas. Aqui também pode-se notar a guerra, o embate entre

convicções conflitantes que acabam funcionando como condição de significação da lei.

Os sentidos da lei são ideologicamente dialógicos (nos meus tempos de estudante, os

lógicos chamavam “falácias não formais” a esses diálogos configurativos dos sentidos

da lei). Signos construídos não sobre o império da arbitrariedade, explicitada na

semiologia de Saussure, mas sob o comando do desejo e do poder.

Convicções profundas, que, nada mais são do que a Matrix de interpretação das

leis. Os métodos de interpretação não são mais do que uma lista de esforços com os

quais se pretende esconder a sensibilidade que opera como condição renegada do

sentido das leis. Tais métodos podem esconder, inclusive, mais do que pretendiam

esconder, graças às imagens gerais que circulam configurando a imagem geral e difusa

que se tem sobre a linguagem e o pensamento (sabe-se tão pouco que, o que se sabe, se

está bem fundamentado retoricamente, parece muito).

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Parece que posso tentar mostrar que as convicções do espírito são o que

assegura o trânsito sucessivo do nosso corpo por entre as ruínas do inacessível. Elas

acabam impondo o regime de nossos “lloríqueos” (choromingo infantil, em português),

frente aos sentidos que se nos impõem, apesar de alguns de nós sabermos, em nosso

íntimo, da sua precariedade. Pensamentos e práticas progressistas que sempre acabam

por reconhecer sua impotência se comparada à virilidade fascista.

Passam os anos e continuo sentindo que sempre tenho a mesma ocupação

quando quero protestar contra a biopolítica que me impõem. Sempre estou questionando

as mesmas coisas, dando voltas, rodeios que me deixam um sabor agridoce.

Simultaneamente, sigo sentindo o fracasso e, ao mesmo tempo, uma certa esperança de

estar dando um passo adiante, ao menos para mim mesmo, para abordar, desembarcar

em terras desconhecidas, que sempre olhei de longe para conseguir penetrá-las. Sei que

não irei muito longe. Mas, dar um próximo passo é, para cada membro da espécie, um

dever político de esperança.

Meu pequeno passo não é “adânico”. Segue por uma trilha já iniciada pelo

pensamento dos tempos de 68 (principalmente Guattari, Foucault e Deleuze). Meu

pequeno passo vai mostrar o valor da multiplicidade, que vai além de distinções como

consciente e inconsciente, natureza e história, corpo e espírito, animalidade e

racionalidade. Multiplicidades são o real concreto, que não supõe nem suporta nenhuma

unidade, não comporta nenhuma totalidade. Expandem-se rizomaticamente. Os

elementos de uma multiplicidade são singularidades. Suas relações, devires e seus

acontecimentos são individuações sem sujeito. Além de afirmar que seus planos de

realização são metas, quer dizer, intensidades contínuas (atravessadas por vetores que

constituem territórios e graus de desterritorialização). Um passo que mude o olhar e

rompe, simultaneamente, com ambos os tipos de convicções. Uma morte da ontologia.

Apenas devires que vão se expandindo, devires perdidos, bloqueados, abortados.

A concepção do multívoco, concordo com Deleuze e Guattari, inaugura uma

outra semiologia, uma nova perspectiva sobre a semiótica que altera todas as áreas de

produção dos saberes consagrados, desde a psicanálise até o Direito. É uma crítica forte

e uma proposta de abandono da representação e do significado (eles se produzem no

acontecimento, não se representam). A rejeição total da interpretação, que os autores

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que me servem de apoio consideram a maneira moderna de crer e ser piedosos. O que

acaba por aparecer como possibilidade é a produção de acontecimentos singulares e os

mecanismos para poder fugir deles.

Ao reler o que estou escrevendo, sinto que vou desaparecendo deste ensaio.

Estou apagando principalmente as marcas da memória daquilo que fui, principalmente

como escravo erudito da instituição universitária, ou um escriba metido dentro de uma

batina laica. O que produzi no passado, se teve valor datado, se foi útil para seu

momento, agora não serve mais. Preciso construir, com suas ruínas, algo diferente,

transitório. Me desterritorializei de muitas coisas. Eu não sou, mas sou. Os sentidos que

meu corpo emitiu ou emite não tem órgãos. Um ensaio, como este, só existe enquanto

espaço de metamorfose.

A sensibilidade não é representativa. Em geral, a pragmática, em todas as suas

manifestações, não é representativa, também não é conceituável. As conotações são

marcas d'água que expressam algo mais além da representação, revelam o silente, o

inaudível da linguagem. O não dito que diz mais que o dito. Para a sensibilidade, a

semiologia é inútil. É um absurdo pretender traduzir a uma metalinguagem

representativa qualquer reflexão sobre os acontecimentos sensíveis. O sensível se sente

e se desfruta sem comentários. Em certo sentido, trato de dizer, ainda que só o consiga

por fagulhas, que o mais importante de uma linguagem não passa pela representação,

que é sempre um esquema reducionista. Preciso escutar o outro no silêncio de seus

ditos. Para isso, preciso saber escutar e entender a mensagem dos corpos. A linguagem

que me dá vida, que me torna vivo, está depositada em meus corpos sucessivos, nos

vínculos rizomáticos dos corpos.

Em geral, a linguagem é uma comunicação de standards, com uma carga

interpretativa que se pretende afirmar desde uma neutralidade sem surpresas. Isso, há

muito tempo, deixou de me interessar. Prefiro surpreender a fala, a um texto, a uma

comunicação discursiva, sempre além do estandardizado. Estabelecer o que Barthes

chamo o puntum, algo que muda o sentido introduzindo uma novidade no

deslocamento2. Nós escutamos a fala desde momentos e incidências de angústia, alegria,

2 Nota do tradutor: no original, o termo utilizado pelo autor foi “desplazamiento” e deve ser

compreendido a partir do seu significado para a psicanálise.

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tristeza, desde o desamparamento, querendo que o que escutamos sirva de útero. Essas

sensações significativas são instantes fugazes de sentido, que nos atravessam, deixando

em nosso corpo animal apenas ruínas de seus significantes invisíveis, agenciados pelas

emoções, pelo desejo, pelo traumático em nós instalado pelo fato de vivermos.

A semiologia que se ocupe dos vazios da linguagem e o que eles comunicam

está, porém, em vias de construção. Falta. Proponho-me chamá-la, na ausência de um

nome melhor, de semiótica das incógnitas. Seria um agenciamento expressivo que

funcionaria fora da órbita suspeita de uma semiologia que se pensa científica sabe-se lá

porque (exceto para o desejo do neutro). Uma quimera. Trata-se de uma fala das

linguagens, se resolvo essas incógnitas, não preciso falar sobre elas. Daí se depreende a

inutilidade da semiótica.

Como Barthes e muitos outros companheiros surrealistas, sou um

semioanarquista que me deleito com o azar de minhas escolhas bibliográficas que

fundamentam as minhas idéias. De Cortazar a Nietzsche. Nunca as instituições me

convocaram com suas recomendações bibliográficas. Prefiro detestar-las. Não tenho

mais consciência paradigmática, só tenho má consciência semiótica. A relação de

qualquer ser humano, se se sente mais intelectual ou apenas mais um membro da

espécie, é amorosa e passional. O destino da linguagem, que é sempre passional, é por

essa mesma razão ingovernável, sendo assim, se inutiliza a semiologia e eu a semiótica,

em todas as suas dimensões. Nos movemos dentro de agenciamentos de puras

sensações. Se aceitamos isto, a história dos esforços da razão fica reduzida a um sorriso

burlador, sarcástico, uma ironia. A partir desta nova perspectiva, o neutro não é mais do

que uma ausência de supostos valorativos diante do abismo que angustiará para sempre.

Para mim, e eu discordo de Barthes neste ponto, o neutro é o que preocupa por

desbaratar os signos em relação ao seu sentido.

A linguagem é sempre delicada. Por isso se ofende diante das repetições inúteis.

A filosofia, a representação, a ciência, não são mais do que ofensas à linguagem.

A linguagem é, para o homem, um ambiente biológico, aquilo pelo qual e no

qual ele vive. Mas como um homem vive gregariamente, vai produzindo agenciamentos

de linguagem que transcendem o contorno biológico e se manifestam, diríamos, como

natureza. Quer dizer, ao invés de responder à necessidade de vida, respondem a

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necessidades de uma expropriação política da vida. É a biopolítica de que falava

Foucault manifestando-se como linguagem. Nesse caso, devemos falar de “ideosferas”.

Elas são linguagens que internalizamos fantasmagoricamente. Seguindo abaixo,

poderíamos dizer que a linguagem como ideologia são fantasmas significativos.

Significantes que não veiculizam sentidos, mas convicções.

As ideosferas, os significantes convictos (que veiculam convicções) têm a

tendência de converterem-se em doxa, quer dizer, num sistema particular de linguagem

que é vivido pelos usuários como um discurso universal, natural, evidente. Um

aniquilamento dos dogmas individuais, substituídos pelos dogmas nacionais, patrióticos.

O paradigma moderno viveu seu desenvolvimento alimentado pelo desejo de diferenciar

a doxa da episteme. O que foi um profundo fracasso. Uma embriaguez que facilita a

fuga do sensível.

1.3. - A economia de consumo e de produção a alta velocidade de todos os tipos

de artigos de moda, enquanto fabricam, por meio da educação, uma Matrix, um sono

simulado, servem para que as mentes ou a subjetividade em ruínas possam seguir

iludidas com a vida, com o consumo e com o sol. Para o ser humano, livrar-se da Matrix

adquire a dimensão de um desafio religioso até a busca do si-mesmo perdido. Uma

busca desafiante que começa pelo questionamento da concepção educacional que

governou durante toda a condição moderna, com algumas linhas de fuga, que marcaram

a tendência de um certo desvio da opressão imposta pelo modo em que se

institucionalizaram os saberes.

Estou juntando escola e meios de comunicação de massa considerados protótipo

para marcar uma tendência privilegiada, que faz da educação uma maneira de

discriminação e exclusão social. Com distintas estratégias e apelando a diferentes tipos

de elementos e objetos de moda, a educação foi se encarregando, reservou a si a tarefa

de ir criando uma rede sólida de convicções fetichizadas e atitudes idolátricas,

principalmente em torno de uma razão abstrata vangloriada como a melhor conquista do

ocidente. Os muros da razão. Uma razão que foi consolidando uma determinada forma

de nos enganarmos sobre o mundo, criando a virtualidade da razão abstrata. Uma razão

comunicada por meio de signos que ao mesmo tempo que veiculavam os conceitos

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virtuais se impunham como fetiches, lugares comuns a idolatrar. Democracia, Estado de

Direito, Direitos Humanos, para dar apenas alguns exemplos.

Dissemos que a televisão nos distancia até dela própria, porque nos faz diminuir

a nossa sensibilidade a ponto de nos fazer desaprender a olhar o mundo, só conseguimos

olhá-lo através de uma forma mediática que aniquila os conteúdos e os contrastes. Em

oposição, diz Lyotard, a obra pictórica nos desafia a revelá-la. É como se eu lhe dissesse

que demorarás para compreendê-la. O que Lyotard disse sobre a pintura, podemos

generalizar para todos os produtos estéticos.

Pode surpreender que se esteja chamado de virtual à razão abstrata da condição

moderna. Mas, se repararmos que podemos atribuir ao termo virtual o sentido de ser um

lugar inefável, não-localizável, onde as palavras se encontram em estado de nirvana à

espera de renascer em qualquer sequencia de corpos sucessivos, não cabem dúvidas

sobre a possibilidade de se aplicar esse conceito de virtualidade para todas as

manifestações da razão cartesiana. A metafísica é a primeira virtualidade criada pelos

modos grego para compreender o mundo. Podemos continuar conosco e o Direito,

então, em uma nova grande referência para a virtualidade. Não podemos negar que as

ilusões criadas pelo universo conceitual dos juristas tem muito mais de virtualidade do

que de realidade. O virtual é um fazer de contas simbólico, do qual a razão abstrata não

escapa, ao contrário, o reafirma. A concepção educacional sustentada pela ideologia da

escolaridade não faz mais do que consagrá-la fabricando as bases internas para que

essas ilusões possam fazer pé no escorregadio terreno da alma humana. É nesse fazer de

contas simbólico que se assentam e se fundamentam as argumentações, as falácias não-

formais.

Em seguida, vem o declínio da condição moderna, a sociedade disciplinar, o

consumismo, a triviologia fashion que vai tomando conta do paradigma moderno para

reduzi-lo a esse momento crítico. Dobradiças do mundo, o ponto crítico de um

raciocínio falho, que terminou em ceticismo e na falta de sentido da vida da espécie.

2 - Quando falo de consumismo, quero dizer uma forma de fetichismo e de

ideologia, uma ideologia transformada trivialogia, uma lógica canibal que está tomando

conta de tudo que toca para reduzi-lo, para colocá-lo sobre os contornos que controla ou

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territórios que habita. Já faz tempo que o consumismo transcendeu o espaço de

supermercados para começar a adquirir o lugar de mundo de uma visão substitutiva e

imbecilizante. Uma lógica que, no momento, está instalada no centro da produção de

sentido da sociedade mediatizada, quer dizer, no campo comunicacional da tecno-

cultura. Abrindo um parêntese, direi que se entende por mediatização os processos de

articulação das instituições sociais com os meios de pós-comunicação de massas, como

instância de produção de bens simbólicos culturais e educacionais, mas também de

contaminação e escolarização da realidade. Um mix de realidades virtuais que vão se

integrando a nossas convicções de espírito.

Em seguida, vem o declínio da condição moderna, a sociedade disciplinar, o

consumismo, triviologia fashion que vai tomando conta do paradigma moderno até

reduzi-lo a esse momento crítico, ponto crítico de uma racionalidade viciada, que

terminou em ceticismo e na falta de sentido da vida espécie.

Quando falo de consumismo, refiro-me a uma forma de fetichismo e de

ideologia, a uma ideologia transformada em trivialogia, a uma lógica canibal que vai se

apoderando de tudo aquilo que toca para reduzi-lo, para colocá-lo sobre os contornos

que controla ou territórios que habita. Já há muito que o consumismo transcendeu o

espaço de supermercados para começar a adquirir o site de uma visão de mundo

substitutiva e imbecilizante. Uma lógica que, nesse momento, está instalada no centro

da produção de sentidos da sociedade mediatizada. Quer dizer, do campo

comunicacional de tecno-cultura. Abrindo um parêntese, direi que se entende por

“mediatização” os processo que articulam as instâncias sociais com os meios de pós-

comunicação de massas, como instância de produção de bens simbólicos culturais e

educacionais, mas também para a contaminação e culturalização e escolarização da

realidade. Um mix de realidades reais virtuais que se vão integrando a nossas

convicções do espírito.

O consumismo impõe o fashion como triviologia. Signos fetichizados sem

conteúdos persuasivos, unicamente configurativo de uma cultura de frenesi envolvente

para que ninguém pense. Um manto de banalidades que nos protege com uma suavidade

que acaba confundindo sabedoria com o embrutecimento que produz. Compro, logo

existo. Corpos minguantes que adquirem a ilusão de identidade reconhecendo-se como

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marcas. Encontrei-me comigo mesmo fumando um Malboro. Meu desejo de

identidade confundido com as marcas que consumo. Um consumo que, até mesmo, nos

consola da exclusão, apagando os vestígios daquilo que é verdadeiramente a causa da

exclusão. “Isto usam os sul-americanos”, dizem em alguns países da União Européia;

“isso é o que compram os ‘bolitas’”, dizem os incas de Boca, em Buenos Aires. O

consumismo exclui qualquer experiência anterior, qualquer diálogo com o outro,

qualquer circuito de corpos sucessivos, uma vez que nos propõe esperar tudo da compra

de um objeto, um espetáculo de rock, ou da troca de um automóvel. O consumismo

somente nos forma para nos alienar de nós mesmos, seu valor existencial ou pedagógico

é nulo. Seu valor como suporte persuasivo, de manipulação e de aceitação cega de

argumentos, contudo, é altíssimo.

A grande armadilha do consumismo está no fato de que todos nós estamos tão

envolvidos nele que não nos damos conta dos seus efeitos destrutivos. Suaviza também

aos críticos. Impõe a sua presença em todas as áreas, inunda os processos pedagógicos.

Aqueles que procuram aprender não se subtraem às embalagens consumistas. Aqueles

que tentam ensinar, menos ainda. Todos contaminados por um sagrado fashion, que

impossibilita o encontro com a alteridade, com o desejo, com os valores, enfim, com

qualquer via de espiritualidade. Quantos são os que conseguem desligar a televisão ou

deixar de passear pelo shopping? O consumismo é uma forma miserável de privar-nos a

nós mesmos que agrava as conseqüências do modelo de ensino que predominou ao

longo do Estado Moderno. Quantos são os que vão a uma sala de aula com o “discman”

ligado? Como se pode, nestas condições, estabelecer o diálogo? Não podem estabelecer

diálogo os que não se despojam de seus objetos de fetiche. Com essa ideologia em

mente, é ainda mais difícil encontrar os caminhos para o si-mesmo. Trata-se de um

recurso fantástico para a ideologia da escolarização. Somos nós a maioria dos homens

presos a um devir infanto-consumista. Nessa prisão, ninguém escuta a um Mestre.

Devemos esvaziar, primeiro, a casa carregada de objetos com energia consumista, senão

ela nunca se tornará hospitaleira. Sem desfazer o malefício consumista, não poderemos

tentar nenhuma pedagogia do amor, da alteridade, do diálogo. Os muros da

Universidade foram fortalecidos.

Quando se fala de muros, temos que tomar em conta que não estamos nos

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referindo a uma divisória que demarca o “dentro” e o “fora”. É óbvio que a educação

está comprometida com o processo de coesão social e suas distorções. Estamos nos

valendo da força da expressão de um muro onde o exterior penetra para dentro das

quatro paredes da Universidade. Mas, não se trata de um exterior condicionado por

convicções libertárias; aquilo que entra, vindo de fora, são as convicções alienantes, o

consumismo, os primeiros esboços de uma Matrix que se instala como ilusão que torna

o outro e o mundo virtual. A alienação não está a extramuros das Universidades, mas no

modo de ser daqueles que nelas irão se formar e dos professores que nelas ministram

suas aulas magistrais. Hoje, na Universidade, os estudantes sequer têm a cabeça vazia

para ser carregada de informações e, além disso, consomem realimentados pelos

companheiros e pelos professores, que cada dia podem saber menos, ser iletrados,

menos criativos e mais burocratizados. Mas em uma coisa são competentes: em

retransmitir a ideologia de consumo que têm impregnada em seu corpo. Presenciei isso

no Direito que, creio, antecipou o consumismo através das formas de dogmatismo. Com

o consumismo sucede o mesmo que com a ideologia jurídica e seus fetiches: todos

sabem do que se trata, mas não se consegue dela escapar.

2.1 - Não tenho mais nenhuma dúvida que me impeça de afirmar que o destino

da educação não passa por nenhum tipo de saber erudito, senão pela ajuda na construção

das identidades. Aí está o grande ponto crítico, já que o modelo educacional foi

construído em contraposição a esse destino. Ao invés de contribuir para a formação de

identidades, colabora ou influi para torná-las minguantes.

Tampouco tenho dúvida para sustentar que o processo educacional tem que ser

visto, antes de tudo, como um fenômeno comunicacional, um espaço de comunicação,

sem ruídos, sem muros.

O sentido da comunicação sempre foi oscilante entre a retórica e a dialética,

entre o monológico e o dialógico. A especificidade do seu poder, a subjetividade que

condiciona sua fixação, as vinculações entre mídia e arte, a narrativa telenovelesca

como matriz melodramática da informação às ficções virtuais que veicula a televisão,

assim como as mutações de identidade pessoal que os chamados “meios de

comunicação de massa” produzem. Discutiram-se suas dimensões normativas e

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políticas, seu caráter democrático ou totalitário. Mas quase não se acentuou a questão do

valor educacional da comunicação. Por quais modos a comunicação deve ser usada para

educar e não apenas para criar a sensação de estar educando, quando na realidade se está

desinformando (no sentido desestruturador ao que se pretende comunicar para

aprender). A comunicação não é um espaço onde se aprende. Para que esse espaço

possa cumprir essa finalidade requer-se certas condições que, honestamente, creio que

não são dadas dentro do modelo educacional dominante. Penso que o espaço

comunicacional para ajudar a aprender tem que ser carnavalizado, dialógico e

antropofágico, não sustentado por argumentos que simulam ser verdades e falácias não-

formais que nos convencem de que a ilusão é realidade objetiva.

Face o enfraquecimento das relações comunicativas entre os indivíduos, que

reprimem a ética em favor de uma forma organizacional baseada na tecnociência e no

mercado, Habermas pensa sobre a possibilidade de um racionalismo substancial da

ação comunicativa (por meio de avaliações discursivas, que levariam os sujeitos a

orientar suas ações sociais baseando-se num sentido comunitariamente compartilhado).

Penso mais ou menos o mesmo. Eu falaria de denominadores comuns, produto de

diálogos; falaria de mediação como instrumento ou modo de realização das avaliações

discursivas. Uso outra terminologia para apontar a mesma alternativa. No fundo, trata-se

da mesma denúncia. Habermas fala de retração da ética. Heidegger dos modos de

decadência, da existência inautêntica (fuga de si mesmo, curiosidades artificiais,

verbosidade). Eu falo sobre a ideologia da moda, o consumismo, a banalização do

simbólico.

Com base na psicanálise, poderíamos dizer que quando se trata de

enfraquecimento da ética, pode-se estar fazendo referência a um enfraquecimento do

inconsciente como uma dimensão do sentido que está ao cuidado de um outro, e o qual

não podemos acessar sem interpretar esse lugar do outro. O inconsciente como lugar de

uma ética debilitada é paulatinamente substituído pela matriz ideológica do

consumismo, que põe uma Matrix de indiferenciações virtuais que distancia ainda mais

os emissores comunicacionais do domínio das mensagens que produzem. São ainda

menos donos e senhores daquilo que dizem do que nos momentos de maior liberdade do

inconsciente. O fenômeno do consumismo nos fazer perder para o inconsciente a nossa

14

liberdade de influir, sem sermos advertidos na comunicação entre os indivíduos. O

homem disposto à comunicar-se nunca pode ter controle total sobre o que diz, porque

não domina sua causalidade interna, muito menos nos momentos em que se pretende

instalar uma Matrix de controle das ilusões.

A proposta de uma teoria psicanalítica da comunicação humana é a de ajudar o

homem a comunicar-se consigo mesmo. Esta reorientação é essencial para os processos

de comunicação educacional. O processo de educar começa por ajudar o outro a

comunicar-se consigo mesmo. E isso é o que menos sabemos; é o com o que menos se

importa a educação tradicional. No modelo tradicional, reforça-se a necessidade de

aprender a ouvir o professor. Ensina-se a aprender a escutar uma mensagem estruturada

como se fosse possível uma comunicação monológica. A comunicação só pode ser

dialógica. O monológico é imposição de mensagens. É um modo de manipulação, não

de comunicação. A transmissão impositiva ou persuasiva de fetiches não pode ser

comunicativa. Nesta questão estou marcando diferenças com outros pontos de vista. A

transmissão monológica não seria, conforme o que estou afirmando aqui, comunicativa.

Nessa perspectiva, os meios de comunicação de massas e os de pós-comunicação de

massas não comunicam. Esta é uma problemática central das atuais teorias da

comunicação, preocupadas por debater as novas formas de discursividade engendradas

pela tecnologia avançada da informação. Poderia afirmar aqui que sem uma dimensão

estética, amorosa, poética, essas formas de discursividade não comunicam. Nem toda

discursividade é comunicativa.

Estamos começando a falar sobre o impacto de uma nova cultura burguesa pós-

massa. Neste momento, temos a cultura das relações capitalistas globalizadas. A

educação não está fora dessa cultura? Depende da concepção de educação. O problema,

no fundo, passa em saber se permitimos que nossas ilusões sejam controladas por uma

Matrix ou por nossa reserva selvagem. No segundo caso, mais do que ilusões, devemos

falar em sonhos comandados pelo desejo.

Em suma, se o nosso compromisso é com uma universidade responsável, e essa

responsabilidade está embasada na ética, esta última tem que ser adjetivada pela

alteridade. Não se trata de qualquer ética, muito menos que funcione como fetiche

disciplinador e excludente. Não nos esqueçamos que também podem existir processos

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de exclusão efetuados em nome da ética e de sentidos de ética, que, apesar de sua

aparente boa intenção, terminam produzindo efeitos de barbárie e exclusão social.

Falar da educação como uma concepção baseada na necessidade de contar com

um docente que sirva de facilitador para que as pessoas possam reencontrar-se com a

possibilidade de comunicar-se consigo mesmas, implica propiciar uma concepção de

educação sustentada por uma prática de docência terapêutica ou uma pedagogia

“terápica” (prefiro propor esse nome como substitutivo de terapêutica). A diferença

substancial entre esta concepção e a pedagógica dominante está em que esta última

pretende informar, rechear nossa cabeça e nosso coração de informação e de razões para

fundamentar o mundo. A docência terápica, ou a pedagogia do amor, como sempre a

chamei, teria como principal aspiração ajudar a trocar. Chaves psicológicas para um

homem e um mundo melhor em termos de eco-política. Um retorno ao sentido

originário da filosofia, seis séculos antes da era cristã. Ali a filosofia não era a busca

pelos fundamentos da realidade ou da verdade, senão uma arte para viver melhor. A

filosofia como arte da vida, como caminho para viver em harmonia e alcançar o

autodesenvolvimento pleno. Uma filosofia que nos ensine que tudo que se pode dizer

sobre a verdade não é verdade. E que tudo que se diga sobre o amor como busca de seu

sentido carece de sentido, porque como sentimento, o amor só pode ser sentido. É

necessário aprender a sentir-lo e não aprender a pensar sobre ele. A pergunta não é “o

que é o amor”, senão “como posso senti-lo”.

A filosofia da Grécia antiga era consciente de que as divisões entre teoria e

prática, conhecimento e transformação, não tinham nenhuma razão de ser. Apontavam a

uma mente bem formada, clara, lúcida, que em si mesma nos ajudaria, que seria uma

fonte de libertação interior e de transformação profunda. Uma filosofia que deveria

realimentar-se com o compromisso cotidiano, com o próprio conhecimento. Uma mente

clara serve para liberar-nos das intoxicações externas, das convicções solidificadas por

contaminação. Uma mente libertada para os contágios. Uma educação que nos ajude a

encontrar-nos com a sabedoria e não com o saber de informações e domínios. Uma

educação que trate de liberar-nos dos saberes de busca da sabedoria. Que nos ajude a

esvaziar a casa dos objetos do consumismo, a infantilização e vitimização do homem. A

educação para a sabedoria, para o amor. A firme convicção de que sabedoria, amor e

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vida são um tripé em que se apóia nossa liberação interior. Esse tripé nos remete a outra

concepção de filosofia, de uma filosofia que se faz terapêutica por excelência e se

brinda como remédio liberador e capaz de curar as enfermidades da alma, infantilismo,

vitimização (autodeterminação de um “eu” como “culpado”).

Quando falo de sabedoria como objeto educacional, como meta da pedagogia

ajudar o outro a aprender a ser sábio, estou me referindo: primeiro, à necessidade de

desaprender o aprendido como informação, erudição e modelos de verdade,

esquecendo-se da informação científica como lugar de idolatria: a sabedoria como o que

se recorda e depois se esquece; segundo, como expressão do potencial humano,

principalmente do potencial amoroso; terceiro, como meus entendimentos inseparáveis

da experiência cotidiana mais vivencial do que racional, mais inspiradora do que

explicativa, mais antropofágica do que descritiva, algo que precisa ser mais entendido

do que explicado demonstrativa ou dialeticamente.

A sabedoria como a chave para derrubar muros. A universidade constrói seus

muros baseada nos seus saberes. São muros que, por outro lado, podemos dizer, são

construídos para preservar ou aprisionar seus saberes. Derrubar os muros é liberar nosso

entendimento para que possa ir ao encontro da sabedoria. Portanto, para falarmos de

uma nova concepção educacional é necessário que paremos de nos referir às maneiras

para obter e comunicar conhecimentos, saberes, e passar a falar das formas de conferir à

experiência um novo estado: o de se tornar a cada dia mais sábio. E tornamo-nos cada

dia mais sábios quando conseguimos escutar a nós mesmos, conhecer a nós mesmos e

ao lugar que ocupamos na comunidade e no mundo. Essa sabedoria que consiste em

entender que entender-se a si mesmo é a única forma de felicidade e de transformações

possíveis.

Somente os sábios conseguem não ser manipulados pelos argumentos e pelas

virtualidades.

A universidade com muros nos transmitia uma idéia de filosofia confundida com

epistemologia, e cada vez mais como um reduto, um gesto reduzido para especialistas

muito inteligentes, um clube privado para inteligências VIP. Um lugar sagrado,

reservado para deuses laicos e dos quais somos proibidos até mesmo de ver o rosto.

Como Deus proibiu aos judeus de ver seu rosto. Aos deuses da filosofia só podemos

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acessar pela interpretação, mas os leigos nem o rosto deles consegue ver. A filosofia é

preciso ler e interpretar. Não podemos conviver com eles. A condição do poder de seu

saber é não ter consistência cotidiana nem um convívio afetivo. Assim, a filosofia está

longe da Didática terápica. O amor da filosofia é ao saber e não ao outro. E tudo isso

porque, no modelo dominante de filosofia e de educação, a verdade é um lugar

inacessível aos leigos. Unicamente tem acesso a esse lugar sagrado os sacerdotes, que se

comunicam oracularmente. Com o passar do tempo, muitos deles foram se convertendo

em mafiosos com territórios demarcados.

2.2. - A didática terápica baseia-se na busca da sabedoria, na logoterapia - ou

terceira via ou terceira escola vienense de psicoterapia, como o seu criador (Victor

Frank) propôs chamá-la. Trata-se de uma concepção da psicanálise que aparece como

uma alternativa à visão positivista ortodoxa da psicanálise. Um ressurgimento da

filosofia da Grécia antiga, somada a algumas experiências em campos de concentração

nazistas (Frank sobreviveu a quatro campos de concentração). É uma terapia didática

baseada em um humanismo da alteridade. Frank vê a logoterapia como algo que se

desloca do método psicoterapêutico para promover uma oferta para que pessoas de

qualquer condição, considerando a sua condição de vida, sua estilística, seu próprio

estilo de vida, dirijam-se da melhor forma possível até aquilo que para elas faça sentido,

para o que é razoável e ético. A busca da felicidade como sentido. A busca da

serenidade que se pode obter quando temos a convicção de que estamos seguindo pelo

caminho que escolhemos. O logoterapeuta, o mediador, o professor que aderiu a essa

corrente, considera o outro a quem oferece sua ajuda como um indivíduo que porta

dificuldades no seu projeto de auto-realização. Pessoas que ainda não se deram conta do

seu próprio desejo de lugar, do lugar no mundo que desejam para si. Pessoas que não

aprenderam a escutar a si mesmas para saber qual caminho seguir para desenvolver suas

potencialidades, e que sequer compreendem que potencialidades possuem. Ajudar a

compreender a partir da experiência e não de bibliotecas infinitas e sem saída, ajudar a

entender o vínculo entre experiência e o modo próprio e irrepetível de sentir-la desde e a

partir da própria sensibilidade. Uma ajuda a experiências pessoais e irrepetíveis que não

devem ser contaminadas por seitas, dogmas ou grupos que fazem da espiritualidade um

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produto de consumo. A liberdade interior, a autonomia individual, é algo que nunca

pode ser convertido em fetiche, em mercadoria. A sabedoria renega intermediários.

Confundimos os facilitadores com intermediários. Mediar não é intermediar.

O sentido da vida são as múltiplas formas com que tratamos de nos aproximar

interpretativamente do mistério do amor. Um mistério é sempre um lugar vazio proibido

de ser acessado, a que nos referimos por interpretações aproximadas, que são os

sentidos do mistério. As normas jurídicas e as verdades também são lugares de mistério,

fazem parte do leque mistérios da condição humana. Mas pensar que a vida é algo que

não possui sentimento é coisa da depressão. Os deprimidos pensam que a vida não tem

sentido.

A logoterapia aborda e denuncia um tipo particular de depressão, a intelectual

(noogen), que pode ser definida como a frustração espiritual, existencial de uma pessoa

que se desespera porque não vive segundo os ditados de sua verdadeira e melhor forma

de ser. Basicamente, para ajudar, a logoterapia convida as pessoas a voltar a serem

realmente pessoas. Um convite a mudar os pontos de partida, fazê-las ver que têm que

deixar de sentir que já passaram por todos os trens que as poderiam levar a alguma

direção.

Filosofia, sabedoria, logoterapia, vida, amor, todas palavras em conjunção para

aprender a viver; matéria-prima para o aprendizado da vida; matéria-prima para uma

universidade sem muros, que é outro modo que emprego como sinônimo de

universidade da vida. Sem esses componentes, a comunicação dialógica, carnavalizada,

será impossível.

Sabedoria é entender que os sonhos se alimentam com amor e imaginação

criativa e não com as ilusões de um homem ideal, perfeito, que se acredita perfeito no

interior da Matrix.

3 - O que aconteceu foi uma mudança radical na concepção lingüística

comunicacional. Do signo como representação passamos à imagem como signo. Trata-

se de uma mudança cultural brutal. O que resta é a busca do caráter abstrato do sistema

de signos, dos conceitos que se convertam em núcleo da linguagem representacional a

imagem abstrata e perfeita da linguagem tecno-cultural. De qualquer forma, continua

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existindo uma relação entre duas séries infinitas de elementos: a da realidade real e da

linguagem. São duas séries oraculares, séries de significantes que podem veicular

infinitos sentidos. A virtualidade sempre foi uma presença cultural, o que mudou é que

antes a virtualidade era da ordem da representação e agora da imagem. Mas, em ambos

os casos, deu-se uma fusão ou uma imbricação com a realidade, que não deixa de ser a

última das virtualidades.

A grande complicação da condição moderna foi a busca do homem ideal, que

teve um impacto sobre todas as buscas. O parceiro ideal no amor, conceitos ideais na

metafísica, as ilusões ideais da mulher ideal no amor, a verdade ideal na ciência, a

democracia ideal, o Direito ideal (tipos e tudo o que se refere a segurança). Agora, a

grande quebra cultural da modernidade tardia prossegue na busca de identidade. Feridas

suficientes, a busca pelo homem ideal transformou-se na questão da busca de uma

realidade ideal, construindo múltiplos ideais através de um tipo especial de imagens

substitutivas.

4 - Universidade sem muros é uma força de expressão que não podemos

engolir sem mastigar, que devemos devorar antropofagicamente antes de engolir. Uma

força de expressão, não me canso do apontar, nunca pode ser interpretada linearmente.

A sociedade sem escola foi uma tendência de moda nos anos 60. Falar de uma

universidade de muros é propor uma transformação radical na concepção educacional,

uma proposta de reinvenção da cultura educacional.

O século XX se postulou como uma esperança triunfadora sobre a ignorância, a

guerra, a violência e a multiplicação de genocídios, esperança alimentada pelos avanços

da ciência dos diferentes saberes e a generalização das ilusões democráticas. Como todo

gênero, tudo o que postulava o fazia como superação em um grau nunca antes

imaginado. Inclusive, muitas das palavras idolatradas pela razão da condição moderna

terminaram o século com uma carga de sangue impensável nas origens do

cartesianismo: ao invés de criar condições ótimas de humanização, otimizaram as

condições de barbárie escamoteada por uma exaltação idolátrica aos Direitos Humanos.

O modelo educacional hegemônico da condição moderna sustenta a

possibilidade de ensinar. Pensa-se, nesse modelo, que ensinar é impor conhecimento.

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Ensinar, para o modelo da modernidade, é impor, invadir, doutrinar, disciplinar,

controlar, inumanizar. Ensinar é um formar o homem unidimensional de que falava

Marcuse. Os que simulam ensinar, escolarizam ao invés de humanizar. A educação nos

tornou inumanos como condição de controle. Os que tem pretensões de ensinar somente

conseguem institucionalizar valores de opressão, que contaminam dependências

emocionais nas relações pessoais e institucionais, e isso começa a nos tornar inumanos.

No sentido mais forte, tornar-nos inumanos significa perder o senso de alteridade e da

estilística da existência, os dois pilares da nossa identidade.

Ninguém educa ninguém. O que educa é a possibilidade de estabelecer uma

comunicação dialógica, estabelecer um diálogo entre educandos e educadores. Educar é

estabelecer a possibilidade de construir um diálogo, fazer circular a palavra que

podemos escutar num entre-nós do diálogo entre educador e do educando (o sentido está

nesse entre-nós da linguagem e da realidade real).

5 - Finalizando e resumindo o que foi até aqui apresentado:

Temos, primeiramente, que nos colocar diante de uma atitude desconstrutiva da

concepção educacional hegemônica. Uma crítica e não o exercício de uma censura, que

é outra forma de barbárie. A crítica como desconstrução exige que formulemos uma

pergunta inicial que funcione como ponto de partida. Para esse caso, escolhi começar

perguntando-me sobre como é possível realizar uma educação desde e para os direitos

humanos. Essa pergunta, imediatamente, a reformulo nos seguintes termos: como

podemos ter uma educação para evitar a exclusão social e ajudar os excluídos a

reinserem-se socialmente? Como educamos para a reinserção social? Tratar-se-ia de

uma pergunta nevrálgica, dado que o ponto critico do modelo educacional predominante

na contemporaneidade é um modelo de barbárie que provoca diferentes modos de

exclusão, discriminação e esquecimento social, que vai se agravando em uma

assustadora espiral crescente.

Tal pergunta obriga-nos a adentrar num terreno de alta complexidade, já que

temos de começar admitindo que a concepção educacional não é um fenômeno isolado

de resposta da razão bárbara, ou melhor dizendo, está inscrita no paradigma da

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modernidade, que provocou, dentre os seus efeitos perniciosos, o de haver generalizado

uma razão bárbara. Se isto for admitido, devemos afirmar, então, que estamos diante de

uma tarefa de desconstrução múltipla, em que temos que atacar ao mostro da barbárie

decapitando todas as suas cabeças, porque se uma permanece intacta, muito

rapidamente provocará a regeneração das outras, reaparecerão todas as cabeças

cortadas. Assim, temos que efetuar o ataque desconstrutivo simultaneamente sobre a

concepção jurídica, científica, ética de Direitos Humanos e de alteridade da condição

moderna. Todas elas são responsáveis simultaneamente, tem uma quota de

responsabilidade sobre todo o sangue derramamento no século XX. Os genocídios e os

semiocídios do século XX são responsabilidade da condição de barbárie do paradigma

moderno. A barbárie interna à razão moderna é, em grande medida, responsável pelo

sangue que manchou as grandes utopias que romperam o paradigma que estou julgando

neste texto. Poderíamos dizer, encerrando o argumento, que a barbárie escondida na

razão abstrata fez metástase em todas as concepções do paradigma moderno.

Dito isso, vou situar-me na Bíblia para fazer uma leitura ideológica que me

permitirá mostrar que no texto sagrado, que é mito fundante do ocidente, encontra-se

uma condenação ao saber. Ali se estabelece que é pecado, e um pecado original, sair da

ignorância. Deus condena o esforço do homem por sair da ignorância. Por esse esforço,

Adão e Eva perderam a possibilidade de continuar no paraíso. Por outro lado, Deus

perdoa Caim pela morte de seu irmão, transmitindo como mensagem sua apreciação de

que o extermínio do outro não é pecado, carece de gravidade. Esta leitura não é

religiosa, mas trata de ver a Bíblia como um mito fundante. Dos antropólogos, aprendi

que fazendo uma interpretação dos mitos fundantes podemos aproximar-nos, em parte,

do núcleo de inacessibilidade da conduta dos homens de uma determinada sociedade

nos momentos ou situações contemporâneas. Os homens estão marcados em suas

condutas e em suas relações com o outro por esses mitos fundantes. Não importa

acessar os desígnios inacessíveis de Deus. Importa acessar, no que as interpretações

permitem, ao inacessível do outro que convive comigo no presente. Esse outro está

condicionado, quase sem defesas, nas convicções secretas do mito fundador.

O mito também me permite construir uma provocativa força de expressão: Deus

foi o primeiro que violou os Direitos Humanos, foi ele que autorizou a sua violação.

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Esta força de expressão me leva também a outra, forte e forçante na argumentação: o

modelo educacional vigente é ele mesmo uma violação aos Direitos Humanos. É um

modelo que nos condena à ignorância e à exclusão. Quando falo aqui de ignorância

refiro-me a uma educação que nos veda o acesso à sabedoria. Não estou me referindo à

ignorância como ausência de saber, refiro-me a ela como uma ausência de sabedoria.

Afirmo aqui àquilo que foi mimicamente concebido como pecado original, ou seja, o

acesso à sabedoria.

Partindo da postulação de que a maior violência aos Direitos Humanos é a

educação que gera nossa barbárie interior, quero brevemente agendar no texto os dois

territórios onde, ao meu ver, surgiu essa barbárie.

Começarei por registrar o território da escolarização, ou seja, a ideologia da

escolarização, que alienou o homem de sua própria existência interior, tornando-o um

corpo minguante. O segundo território a registrar é o tipo de razão que veiculou a escola

como ideologia. Refiro-me à razão abstrata que, condicionada pelos ideais de pureza,

verdade e objetividade, e pelo desejo “melogâmico” de alcançar a universalidade do

conhecimento, conseguiu impor a construção de um conhecimento único como algo

positivo; um pensamento e uma modalidade de saber que terminou convertendo o que

se apresentava como objetivo em um grande aglomerado de narrativas ideológicas. O

corpo do homem minguando um pouco mais. Dois territórios que se uniram para criar a

instância mais glorificada de produção do conhecimento, a universidade, que, como seu

nome conota, é o lugar de produção do pensamento único e universal, o pensamento

mais rigoroso, o lugar que, devido ao um acordo de poderes, se passará a chamar “de

conhecimento de verdades”. Estou falando agora dos dois grandes muros: da

universidade e do saber ideológico que em nome da ciência produz aquele espaço. A

universidade é um lugar de poder. É um lugar onde a digna voz da majestade expressa o

saber. A universidade é o campo onde se trava a luta pela produção do conhecimento. A

universidade é o lugar onde se luta pelo poder do saber. É fundamental ter isso muito

claro, sobretudo se nossa preocupação é gerar um conhecimento e uma concepção de

educação posta a serviço da inclusão ou da reinscrição social dos excluídos. Eles devem

lutar para conseguir um espaço no lugar onde se gera o poder do saber. Eles devem lutar

para se tornar parte desse poder de geração do saber. Parece-me que os excluídos

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caminham em direção errada se reduzem a sua luta a quotas para poder estar sentados

recebendo doutrinamento ideológico dos que dominam o poder do saber. Eles devem

lutar por sua quota de poder, devem lutar para que o saber de sua cultura tenha um

espaço de manifestação nas universidades. Assim teremos um campo terciário que não

será mais o da universidade, o da universalização do saber como ideologia. Teremos

assim um caminho de uma Universidade sem muros. Será uma Pluriversidade e não

mais universidades (existem já na Venezuela, Equador e em outros países da América

Latina experiências nessa direção, que se podem registrar atrás de uma ampla gama de

significantes).

Nesta luta pelo poder do conhecimento devem participar todas as culturas

condenadas à exclusão, a dos afrodescendentes, dos povo indígenas, dos gays, da

cultura de gênero. Neste quadro não incluiria as comunidades de excluídos que não

geraram cultura própria, independente da dos dominadores. Aqui, para concluir este

fragmento, gostaria de abrir um parênteses para comentar que o poder de saber é muito

mais visível que o poder político-econômico; o poder do saber tem nomes e apelidos

sendo assim muito mais fácil saber contra quem é preciso lugar.

5.1. - Quando alguém está preocupado com as questões da alteridade, descobre,

muito rapidamente, que o conceito de alteridade da modernidade é, também,

discriminatório. A idéia do outro como o diferente remete a uma dicotomia em que a

noção de igualdade é maniqueísta, diferente de um eu que se pressupõe existente para a

comparação. Nos força a pensar a nossa identidade como algo personalizado e ao

mesmo tempo pensado como coisa, como um ente material no mundo. Certo é que não

tenho uma identidade materializável, essa ideia de sujeito da modernidade acabou sendo

ideológica. Meu eu interior, minha alma, não é um elemento que se encontra de modo

fechado no interior do meu corpo. Propor essa identidade e logo postular a diferença da

identidade dos outros acaba sendo algo discriminatório, ainda que reconheçamos e

recomendemos aceitar os outros na sua diferença, nossa identidade está no conjunto de

relações que me atravessam no cotidiano. Meu corpo é um corpo sucessivo. Um corpo

mestiço. Quando em vez de ser atravessado por corpos sucessivos que deixam suas

marcas, me deixo ser contaminado ideologicamente pelas instituições e pelos outros,

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meu corpo se torna um corpo minguante. Agora bem, se todos deveríamos ser corpos

sucessivos ameaçados a nos tornar minguantes, como podemos falar de igualdade e de

diferenças com o outro, se o outro não é um corpo diferente, é uma sucessividade

composta unicamente de outros atravessamentos? Se é assim, não existe o “um” e o

“outro”. Eu sou o outro. Nós somos o outro. O outro é um sucessivo como eu. O que me

obrigaria a ter que reconhecer que o outro não é diferente, senão um parte de mim.

Razão pela qual eu não devo tolerar nem aceitar o outro, senão reconhecê-lo como uma

necessidade para que possa ser um corpo sucessivo. Se eu não reconheço isso, meu

corpo começa a minguar. Como se vê, estou propondo categorias, figuras de corpos

sucessivos e corpos minguantes para me contrapor às tradições e às modernas categorias

de igualdade e diferença, duas caras da mesma discriminação. A modernidade postula

que existem grupos diferentes, mas acaba apresentando todos os componentes desse

fruto de diferentes como iguais. Essa é a estratégia de homogeneização, que é o modo

de poder adjudicar a todo o grupo características idênticas, características estereotipadas

que permitem engendrar o preconceito.

5.2. - A modernidade nos legou impositivamente uma concepção de Direitos

Humanos que constituiu uma violência com a própria concepção, uma violência a si

mesma. Durante todo o século XX vivemos e atuamos condicionados por uma

concepção ilusória e idolátrica dos Direitos Humanos. Uma concepção que os

proclamava como universais e produto de uma razão abstrata, uma razão divorciada das

contingências históricas. Estivemos condicionados por um discurso dos Direitos

Humanos que não passou de fetichismo (isso sem negar o papel positivo que

desempenharam politicamente). A concepção idolátrica de Direitos Humanos os deixou

prisioneiros, também, da concepção jurídica dominante na modernidade. Os deixou

prisioneiros do normativismo. Essa concepção nos vendeu a idéia de que os Direitos

humanos eram uma dimensão simbólica do jurídico, negando, assim, a possibilidade de

que possamos percebê-los como uma dimensão simbólica da política.