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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR PRESIDENTE DO C. ÓRGÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Agravo na Suspensão de Segurança nº 2069336-62.2020.8.26.0000
A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seu Núcleo
Especializado da Infância e Juventude (NEIJ), vem, respeitosamente, à presença de Vossa
Excelência, com fundamento no artigo 4º, §3º, da Lei nº 8437/1992, interpor,
tempestivamente, o presente AGRAVO, em face da r. decisão monocrática de fls. 141/148,
que concedeu a segurança para suspender a eficácia da tutela antecipada deferida na Ação
Civil Pública em trâmite sob o nº 1018713-46.2020.8.26.0053.
Ressalta-se a tempestividade do presente recurso, tendo em vista que a
Defensoria Pública do Estado de São Paulo ainda não foi formalmente intimada da decisão,
e, ademais, segundo dispõe a LC nº 80/94 e o artigo 186 do CPC, a Instituição goza da
prerrogativa do prazo em dobro.
Requer, assim, seja o presente recurso recebido e processado.
São Paulo, 15 de abril de 2020.
ANA CAROLINA O. GOLVIM SCHWANDefensora Pública Coordenadora
Núcleo Especializado da Infância e Juventude
DANIEL PALOTTI SECCODefensor Público Coordenador
Núcleo Especializado da Infância e Juventude
RAZÕES DE AGRAVO1
Agravante: Defensoria Pública do Estado de São Paulo – Núcleo Especializado de Infância e Juventude (NEIJ)
Suspensão de Segurança nº 2069336-62.2020.8.26.0000
Colendo Órgão Especial,
Excelentíssimos Senhores Desembargadores,
I. DO CABIMENTO DO PRESENTE AGRAVO
Trata-se de pedido de suspensão de segurança apresentado pelo Estado
de São Paulo e pelo Município de São Paulo em face de tutela antecipada deferida pelo juízo
da 12ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, nos autos do processo nº 1018713-
46.2020.8.26.0053, que determinou que os entes federativos estendessem as medidas
substitutivas de alimentação escolar a todos os alunos de educação básica das redes
Estadual e Municipal de ensino, no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de multa diária de R$
100.000,00 (cem mil reais).
O Presidente do Tribunal, em decisão monocrática de fls. 141/148,
concedeu a segurança, para suspender a eficácia da tutela antecipada deferida em face do
Poder Público. Contra a r. decisão monocrática interpõe-se o presente agravo, objetivando a
submissão do recurso ao julgamento deste C. Órgão Especial, em homenagem ao princípio
da colegialidade.
Trata-se de agravo interposto com fundamento no art. 4º, §3º, da Lei
8437/1992, que dispõe:
Art. 4º Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
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§ 3º Do despacho que conceder ou negar a suspensão, caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua interposição. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2,180-35, de 2001).
Maneja-se o presente recurso de agravo diante da r. decisão monocrática,
buscando a apreciação da matéria pelo Órgão Especial.
Apresentamos, respeitosamente, nossas razões de insurgência.
II. UMA INTRODUÇÃO: ESCLARECENDO O OBJETO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
O Decreto Estadual nº 64.891/2020, do Governador do Estado de São
Paulo, a Resolução Seduc nº 40, de 4/4/2020, do Secretária Estadual de Educação e a
Instrução Normativa n° 14/SME – DOC 02/04/2020, da Secretaria Municipal de Educação,
determinam que a alimentação escolar (merenda) será concedida durante o período de
suspensão das aulas, em razão da pandemia do Covid-19, através de transferência de
recurso financeiro aos pais e/ou responsáveis pelo núcleo familiar do aluno.
Ocorre que os atos administrativos acima indicados limitam o
fornecimento de alimentação escolar, no âmbito estadual aos alunos cujas famílias estejam
inseridas no Cadastro Único e/ou recebam Bolsa Família, e, no municipal, aos alunos cujas
famílias sejam beneficiárias do Bolsa Família.
De início, necessário deixar claro que a discussão travada na Ação Civil
Pública é sobre a constitucionalidade e legalidade dos atos administrativos que limitaram
um direito garantido pela Constituição Federal e pelas leis ordinárias. Não se trata de
discussão sobre a forma em que o fornecimento de merenda será efetivado, ou seja, se
através de fornecimento de cesta básica, de alimentos in natura, de transferência de
renda, de voucher etc., na qual poderia haver e houve discricionariedade do
administrador. É uma análise exclusiva sobre a não observância das regras constitucionais
e legais nos atos administrativos editados, vez que não há espaço para discricionariedade
no que diz respeito ao atendimento de direitos fundamentais.
Quando se trata de uma política assistencial, como o Bolsa Família, por
exemplo, o Administrador Público tem um âmbito de discricionariedade largo ao determinar
o público destinatário. Agora, no momento que está em jogo um direito constitucionalmente
garantido não há como a discricionariedade do Poder Executivo prevalecer à uma
3
inconstitucionalidade e ilegalidade. Por exemplo, não pode um gestor público editar um ato
determinando que somente terá direito ao SUS pessoas que estejam no Cadastro Único, pois
a Constituição Federal determina que a saúde é um direito universal, assim como a
alimentação escolar, no caso de crianças e adolescentes matriculados na educação básica
das redes públicas.
E na questão em tela o equívoco foi entender o fornecimento de merenda
como uma política assistencial, sendo que se trata de um direito garantido pela Constituição
Federal e por leis ordinárias, tendo como princípio a universalização e o acesso igualitário.
E daí porque não pode haver limitação pelo Governo e pelo Município.
Trata-se, como se vê da literalidade do texto Constitucional, de Direito
Educacional e não de política assistencial de caráter facultativo:
“Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a
garantia de:
(...)
VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica,
por meio de programas suplementares de material didáticoescolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde.”
Alimentação Escolar é dever do Estado com a educação, assim como o
são o material didático e o transporte. A Alimentação Escolar está inserida no capítulo do
Direito à Educação e não da assistência social, sendo certo que boa nutrição é condição
para o pleno desenvolvimento da pessoa e para a boa aprendizagem.
Não é diferente, aliás, o que dispõe com clareza a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional:
“Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado
mediante a garantia de:
(...)
VIII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica,
por meio de programas suplementares de material didático-escolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde;”
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A Lei no. 11.947/2009, que disciplina o Programa Nacional de
Alimentação Escolar, também explicita a natureza não assistencial, mas educacional da
alimentação escolar:
“Art. 2º São diretrizes da alimentação escolar:
I - o emprego da alimentação saudável e adequada, compreendendo o uso
de alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os
hábitos alimentares saudáveis, contribuindo para o crescimento e o
desenvolvimento dos alunos e para a melhoria do rendimento escolar, em
conformidade com a sua faixa etária e seu estado de saúde, inclusive dos
que necessitam de atenção específica;
II - a inclusão da educação alimentar e nutricional no processo de ensino e
aprendizagem, que perpassa pelo currículo escolar, abordando o tema
alimentação e nutrição e o desenvolvimento de práticas saudáveis de vida,
na perspectiva da segurança alimentar e nutricional;
III - a universalidade do atendimento aos alunos matriculados na rede
pública de educação básica;
IV - a participação da comunidade no controle social, no acompanhamento
das ações realizadas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios
para garantir a oferta da alimentação escolar saudável e adequada;
V - o apoio ao desenvolvimento sustentável, com incentivos para a
aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos em âmbito
local e preferencialmente pela agricultura familiar e pelos empreendedores
familiares rurais, priorizando as comunidades tradicionais indígenas e de
remanescentes de quilombos;
VI - o direito à alimentação escolar, visando a garantir segurança
alimentar e nutricional dos alunos, com acesso de forma igualitária,
respeitando as diferenças biológicas entre idades e condições de saúde dos
alunos que necessitem de atenção específica e aqueles que se encontram
em vulnerabilidade social.
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Art. 3º A alimentação escolar é direito dos alunos da educação básica
pública e dever do Estado e será promovida e incentivada com vistas no
atendimento das diretrizes estabelecidas nesta Lei.”
Não se trata, pois, de se buscar, pela via judicial, a imposição de política
assistencial que seria de iniciativa do Executivo, mas de garantir o cumprimento de normas
constitucionais e legais do Direito à Educação.
Não se pretende, portanto, que o Poder Judiciário adentre no mérito da
forma como a alimentação escolar será fornecida neste período – já que isto é de
competência do Poder Executivo – mas sim que seja realizado um controle judicial da
constitucionalidade e da legalidade do ato administrativo que previu limitações não
permitidas pela lei e pela Constituição.
Ressalta-se, que como foi demonstrado, o Estado e o Município possuem
verbas vinculadas à alimentação escolar e, inclusive, recebem verbas da União para este
fim. Verbas estas que não estão suspensas e são pagas por aluno.
Vale reafirmar que se muitos alunos, em condições “normais”, dependem e
alimentam-se, EXCLUSIVAMENTE, do que lhes é ofertado no ambiente escolar, cresce em
preocupação a situação de insegurança a que estarão expostos em situação dramática, na
atual crise em que muitos dos responsáveis por seu sustento estão e estarão
impossibilitados de exercer plenamente atividades econômicas, sobretudo as informais,
tornando as famílias ainda mais vulneráveis e hipossuficientes. Muitas famílias não estavam
inscritas no Cadastro Único e não eram beneficiárias do Bolsa Família e passaram a estar em
situação de extrema vulnerabilidade em razão da crise vivida.
Existem famílias que antes mesmo da pandemia do Covid-19 viviam em
situação tão extrema de pobreza que sequer tinham acesso a programas de transferências
de renda.
São casos assim que estão chegando no atendimento da Defensoria
Pública, conforme relatos anexados na peça inicial. Mães em situação de vulnerabilidade
exacerbada, cujos filhos não receberão alimentação escolar, por não serem beneficiários do
Bolsa Família.
6
Além disso, conforme notícias amplamente divulgadas nos sítios
eletrônicos oficiais e em entrevistas concedidas pelos Chefes dos Poderes Executivos e seus
respectivos Secretários, o conteúdo pedagógico durante este período será ministrado à
distância, sob a justificativa de menor prejuízo aos estudantes e cumprimento do calendário
letivo, o que foi até regulamentado na esfera estadual.1
Deste modo, houve uma cuidadosa análise realizada pelo Juízo da 12ª Vara
da Fazenda Pública de São Paulo, que proferiu a acertada decisão em tutela de urgência.
III. DAS RAZÕES DO AGRAVO
Em face da tutela antecipada deferida em primeira instância que
determinou que os Entes Federativos estendessem as medidas substitutivas de alimentação
escolar a todos os alunos de educação básica das redes Estadual e Municipal de ensino, no
prazo de 10 (dez) dias, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais), o Estado e
o Município recorreram ao instituto da Suspensão de Segurança, trazida ao Presidente deste
Tribunal, pleiteando a suspensão daquela tutela de urgência concedida com base em um
suposto periculum in mora reverso, o qual estaria fundamentado em: a) a grave lesão à
ordem pública, já que a aplicação do benefício financeiro para todos os alunos invade
frontalmente as prerrogativas do Governo do Estado de São Paulo e do prefeito do
Município de São Paulo, estabelecidas na forma da lei e dos decretos estaduais que regulam
a questão; e b) a plausibilidade jurídica das razões recursais, uma vez que já há
jurisprudência pacífica do STF, do STJ e do TJSP no sentido de que não compete ao Poder
Judiciário invadir o mérito de decisões administrativas que integram complexas políticas
públicas.
Em sua decisão monocrática, o Presidente do Tribunal de Justiça concedeu
a suspensão por entender que à luz das razões de ordem e economia públicas, ostenta
periculum in mora inverso de densidade manifestamente superior àquele que,
aparentemente, animou o deferimento da medida postulada. 1 Resolução Seduc, de 18/03/2020 e Deliberação CEE 177/2020https://www.educacao.sp.gov.br/destaque-home/educacao-sp-homologa-ensino-distancia-para-alunos-da-rede-estadual-no-periodo-de-suspensao-das-aulas/https://www.educacao.sp.gov.br/destaque-home/educacao-sp-firma-parceria-com-o-amazonas-para-utilizar-aulas-para-o-centro-de-midias-sp/http://www.capital.sp.gov.br/noticia/prefeitura-estuda-medidas-que-serao-adotadas-durante-periodo-de-suspensao-das-aulas
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Conforme entendimento do Excelentíssimo Presidente, a tutela provisória
é capaz de gerar risco de lesão à ordem pública, pois revelaria caráter de irreversibilidade
em tema de competência primordialmente atribuída ao Poder Executivo, além de criar
embaraço e dificuldade ao adequado exercício das funções típicas da Administração pelas
autoridades legalmente constituídas, comprometendo a condução coordenada e
sistematizada das ações necessárias à mitigação dos danos provocados pela Covid-19.
Em síntese, entendeu que o Poder Judiciário estaria entrando no mérito
administrativo, o que não ocorreu, como passaremos a expor.
1) Dos limites da Suspensão de Segurança
A Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1.992, em seu artigo 4º, dispõe:
“Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.”
Trata-se de uma via processual excepcional, uma vez que restrita ao Poder
Público, seja a pedido deste, seja a pedido do Ministério Público, e que visa retirar a eficácia
de decisão proferida pelo Juiz Natural da causa.
Como apontado pelo Ministro Celso de Mello:
“Essa norma de competência, que atribui poder extraordinário ao Presidente do Tribunal para suspender a eficácia da liminar mandamental ou a execução do próprio mandado de segurança concedido, pode gerar consequências radicais, na medida em que se revela apta a neutralizar as virtualidades jurídicas do remédio constitucional e a frustrar a vontade objetiva positivada na Constituição da República, consistente na pronta e eficaz defesa das pessoas em face da ação eventualmente arbitrária do Estado (...)” (PetMC nº 1.343, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 28.08.97)
Assim, essa via, por sua excepcionalidade, não pode ser interpretada como
um direito do Poder Público de pedir a suspensão de uma medida judicial sem que haja
fundamento fático que embase sua pretensão. Não é substitutiva da via recursal adequada.
8
Dessa feita, esse artigo não pode ser interpretado dissociado de princípios
e garantias processuais constantes na Constituição Federal, em especial do contraditório e
da ampla defesa.
Art. 5º. LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes
Sobre o contraditório, necessário que seja um contraditório material.
A garantia da participação é a dimensão formal do princípio do contraditório. Trata-se da garantia de ser ouvido, de participar do processo, de ser comunicado, poder falar no processo. Esse é o conteúdo mínimo do princípio do contraditório e concretiza a visão tradicional a respeito do tema. De acordo com esse pensamento, o órgão jurisdicional efetiva a garantia do contraditório simplesmente ao dar ensejo à ouvida da parte.Há, porém, ainda, a dimensão substancial do princípio do contraditório. Trata-se do ‘poder de influência’. Não adianta permitir que a parte simplesmente participe do processo. Apenas isso não é suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado.Se não for conferida a possibilidade de a parte influenciar a de cisão do órgão jurisdicional – e isso é o poder de influência, de interferir com argumentos, ideais, alegando fatos, a garantia do contraditório estará ferida. É fundamental perceber isso: o contraditório não se efetiva apenas com a ouvida da parte; exige-se a participação com a possibilidade, conferida à parte, de influenciar no conteúdo da decisão.2
Por sinal, a apresentação de documentos decorre do dever de lealdade
processual entre as partes.
Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
Sabe-se que a tutela buscada pela via da suspensão de segurança é uma
tutela de urgência. Nessa hipótese, reconhece-se a possibilidade de um contraditório
mitigado ou postergado. Essa limitação inicial do contraditório, contudo, não pode ser
confundida com a prevalência dos argumentos de uma parte, sem que haja um mínimo de
prova documental sobre as alegações trazidas.
2 DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito Processual Civil. Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. Vol 1. 12ª ed. JusPodium, São Paulo, 2010, p. 52.
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Dessa forma, é necessário que a parte tenha acesso aos documentos que
embasem os argumentos da parte adversa. Sem que haja acesso aos documentos, a
discussão se travará sobre impressões e não haverá a devida qualificação do debate. Sem a
apresentação das provas, não há como se falar em contraditório e ampla defesa.
No presente caso, os entes públicos não trouxeram qualquer dado que
comprovasse suas alegações. Não há sequer demonstração da destinação das verbas do
PNAE, mas apenas um documento do Conselho Estadual de Alimentação Escolar de São
Paulo, que sequer é assinado pelo colegiado, apenas pelo Presidente, sendo os demais
documentos meros demonstrativos dos gastos do Poder Público com a crise do Covid-19 e
da queda na arrecadação.
Ora, trata-se de direito constitucional que tem verba discriminada para sua
concretização. Para que haja um mínimo de paridade de armas entre as partes, deveriam as
Fazendas Estadual e Municipal demonstrarem como estão sendo empregados os recursos do
PNAE e a dotação orçamentária para a merenda escolar, a redução dos custos com os
estabelecimentos de ensino fechados, os motivos pelos quais levaram a Administração
Pública a relativizar um direito constitucional e os documentos que fundamentam tal
decisão.
Caberia, ademais, às requeridas e não aos autores a demonstração dos
esforços orçamentários e distribuição dos recursos tendo em conta o princípio da prioridade
absoluta dos direitos de crianças e adolescente.
Ademais, compete também às requeridas o detalhamento dos custos que
se reduziram com o fechamento de milhares de escolas, dispensa de terceirizados – inclusive
na área de preparação de alimentos e limpeza das escolas -, consumo de gás, água, energia
elétrica e utensílios destinados ao preparo e serviço de alimentação escolar, dentre outros.
Ainda que fosse admissível a relativização de direito constitucional à
alimentação escolar, o que se cogita apenas por esforço de argumentação, caberia ao
Executivo cabal e irrefutável demonstração da impossibilidade de cumprimento das normas.
Essa demonstração, contudo, não ocorreu.
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2) Da inexistência de comprovação de risco de lesão à ordem pública: não ofensa ao
Princípio da Separação dos Poderes
Sabidamente, o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, consagra
o denominado princípio da inafastabilidade do acesso ao Poder Judiciário, prevendo que a
lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Uma vez
demonstradas a inconstitucionalidade e a ilegalidade da postura das requeridas e os
prejuízos aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, afigura-se imperiosa a
intervenção judicial, através do processamento da presente ação civil pública e
procedência de seus pedidos.
Em casos tais, não há que se falar em violação ao Princípio da Separação
dos Poderes, uma vez que é justamente em decorrência de ato do Poder Executivo que
está havendo ofensa aos direitos de crianças e adolescentes . No caso em comento, não
se está discutindo a forma como a Administração Pública Estadual e Municipal optou por
fornecer a alimentação escolar de maneira excepcional (crédito direto, oferta de cestas
básicas, etc.). Discute-se exclusivamente a extensão deste fornecimento a todos os alunos
matriculados nas respectivas redes públicas de ensino, pois a limitação estipulada é ilegal.
Como já apontamos, a restrição não é razoável e viola o direito à
proteção integral da criança e ao adolescente, o direito à vida, saúde, educação e
alimentação: em suma, viola o chamado mínimo existencial, o núcleo mínimo de direitos
fundamentais em relação aos quais o Estado está obrigado a atender, a fim de garantir a
dignidade humana.
Diante de tal quadro de violações, não há como não admitir a
intervenção do Judiciário, caso contrário, seu papel de garantidor dos direitos
fundamentais e Guardião da Constituição Federal restaria irremediavelmente prejudicado.
Não se pode perder de vista que, inserida na Teoria da Separação dos
Poderes, inclui-se como ferramenta de controle o chamado sistema de freios e
contrapesos, segundo o qual são dadas aos Poderes certas possibilidades de intervenção
nos demais, justamente com a finalidade de coibir abusos e garantir que a população
colha os benefícios da formação de um Estado Social Democrático. Nesta medida, é
legítima a atuação do Poder Judiciário para garantir que o Executivo cumpra as normas
11
constitucionais e legais, cuja edição remete ao poder do povo, através do exercício do
Poder Legislativo, por meio de seus mandatários eleitos.
Há mais de uma década o Supremo Tribunal Federal se posiciona neste
sentido, expressando diversas vezes com eloquência que o controle dos gastos públicos e
da prestação de serviços básicos por parte do Estado Social tem merecido a atuação
positiva do Judiciário, porquanto os demais Poderes têm se mostrado incompetentes
para garantir o cumprimento dos mandamentos constitucionais. Quanto a isso, merecem
destaque as palavras do Ministro Celso de Mello, na ADPF 45-9:
“ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO). (...) Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional. No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais (...)” (ADPF 45-9, Min. Rel. Celso de Mello, J. 29.04.2004) (g.n.).
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais também ostenta decisões
neste sentido:
“CONSTITUCIONAL. OMISSÃO DO PODER EXECUTIVO NA CONSTRUÇÃO DE ABRIGOS PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. DETERMINAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PARA CUMPRIMENTO DE DEVER CONSTITUCIONAL. INOCORRÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DE SEPARAÇÃO DE PODERES E À CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL. A dignidade da pessoa
12
humana, notadamente a da criança e do adolescente, é tutelada pela Constituição Federal e pela Lei n. 8.069/90. Assim, é dever inafastável dos Municípios de Carangola, de São Francisco Glória, de Faria Lemos e de Fervedouro empreenderem todos os esforços que efetivem o princípio fundamental de proteção integral à criança e ao adolescente, assegurando abrigo, apoio socioeducativo, sociofamiliar e assistência material, moral, médica e psicológica, nos termos do art. 227, da CF, e 4º, 6º, 7º, 15, 70, 86, 87, 88, 90 da Lei n. 8.069/90. O Poder Judiciário, no exercício de sua alta e importante missão constitucional, deve e pode impor ao Poder Executivo Municipal o cumprimento da disposição constitucional que garanta proteção integral à criança e ao adolescente, sob pena de compactuar e legitimar com omissões que maculam direitos fundamentais das crianças e adolescentes, o que é vedado pelo texto constitucional. O posicionamento adotado não macula o princípio constitucional da separação de poderes. O referido princípio não pode ser empregado para justificar a burla à Constituição e para contrariar o interesse público. (...) Falta interesse em resolver o problema. Enquanto nada é feito pelo Poder Executivo, a saúde, a vida, a dignidade, a integridade e a cidadania das crianças e adolescentes ficam ameaçadas e violadas. (...) A última esperança das crianças e adolescentes em situações de risco está no Poder Judiciário, e este poder não deve se furtar a cumprir a sua alta e relevante função de tutelar o texto constitucional e de proteger o cidadão e a sociedade do arbítrio estatal. (...). É “hora de atentar-se que o objetivo maior do Estado é proporcionar vida segura com o mínimo de conforto suficiente a atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem” (Precedente do STF: AGRRE 271.286- 8 - RS). (TGMG, 5ª Câmara Cível, apelação cível n° 1.0133.05.027113-8/001, Relatora Desª. Maria Elza, DO 29/11/2007) (g.n).
Portanto, inegável que o Poder Judiciário detém a legitimidade e até
mesmo a obrigação de intervir para que os direitos de crianças e adolescentes sejam
respeitados.
3) Da alimentação escolar enquanto direito
É fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa
humana, artigo 1º., III, da Constituição. São objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, dentre outros, a construção de sociedade solidária, a erradicação da
pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, artigo 3, I
e III da Constituição Federal.
Educação e alimentação, como dito, são direitos sociais
constitucionalmente assegurados, conforme artigo 6º da Lei Maior.
13
O artigo 208 da Constituição Federal dispõe que o dever do Estado com
a educação será efetivado mediante garantia de “atendimento ao educando em todas as
etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-
escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde”, (artigo 208, VII, CF).
O artigo 212 da Constituição prevê fontes de financiamento para os
programas de alimentação escolar e o artigo 227 da mesma norma, além de consignar a
absoluta prioridade na garantia dos direitos de crianças e adolescentes, reafirma, como
seus direitos fundamentais, a alimentação e a educação.
É nesse quadro Constitucional de absoluta prioridade e de estreita
vinculação dos direitos à educação e à alimentação escolar que deve ser analisada a
demanda ora apresentada.
Com efeito, as verbas pecuniárias concedidas pela Municipalidade de
São Paulo e Pela Fazenda Estadual apenas às famílias formalmente cadastradas em
programas assistenciais, são, em realidade, modalidade substitutiva da alimentação
escolar, devida a todos os alunos das redes públicas estadual e municipais de ensino.
Dito de outro modo, a alimentação escolar, que integra, como
programa suplementar, o direito à educação, oferecida diariamente em todas as escolas
da rede pública municipal de ensino e da rede estadual paulista a todos os alunos nelas
matriculados, não pode ser restringida justamente em período de crise sanitária
gravíssima.
Vale acrescentar que, se as próprias requeridas imputam necessária a
continuidade das atividades educacionais à distância, exige-se, também para a garantia
de padrões nutricionais adequados ao processo de aprendizagem, alimentação escolar a
todos os estudantes.
Os próprios entes federativos reconhecem na edição de seus atos e nas
respostas dadas à Defensoria Pública e ao Ministério Público, que os créditos diretos às
famílias correspondem a forma diferente e excepcional de fornecimento da alimentação
das redes públicas de ensino a seus estudantes até que cesse a suspensão das atividades
escolares presenciais. Na rede Estadual, aliás, o nome do programa é “Merenda em
14
Casa”.
Temos, em síntese, o fornecimento de merenda – alimentação escolar -
de forma diferenciada em razão de os alunos estarem durante o período de pandemia e
forçado e necessário isolamento social, impedidos de terem aulas presenciais e a oferta
de alimentação diariamente em suas escolas.
Tais circunstâncias exigem políticas públicas que assegurem a oferta da
alimentação escolar, compatibilizando-a com a impossibilidade de trânsito e
aglomeração de crianças e adolescentes nos espaços escolares. A situação excepcional
não autoriza, contudo, qualquer restrição ao público alvo de tal direito, qual seja, alunos
matriculados nas redes públicas de ensino.
A alimentação escolar é direito constitucional dos alunos das redes
públicas e, como tal, deve ser garantido sem discriminação, não havendo autorização
constitucional e sequer previsão legal – que seria de questionável constitucionalidade –
para quaisquer outras limitações.
É fato que, frequentemente, tais direitos fundamentais são encarados
pelo Administrador Público como mera “diretriz programática”, como se não estivessem
vinculados, pelo poder emanado do povo, a um agir específico no campo da formulação e
execução das políticas públicas.
Tal postura, todavia, há que ser rechaçada pelo Poder Judiciário, pois
não há espaço para discricionariedade no que diz respeito ao atendimento de direitos
fundamentais, sendo certo que, em relação as crianças e adolescentes, e aos direitos
sociais de educação e alimentação, há expressos mandamentos constitucionais quanto
aos deveres estatais e direitos públicos subjetivos assegurados.
Para que não houvesse dúvidas quanto ao cumprimento da
determinação constitucional, ao editar o Estatuto da Criança e do Adolescente, o
Legislador ordinário repetiu e explicitou o Princípio da Prioridade Absoluta, nos artigos
3º e 4º que, por sua importância para a presente causa, merecem ser integralmente
transcritos:
“Art. 3º A criança e ao adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da
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proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.”“Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação , à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. (g.n.).”
Assim, temos que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, de
todos os fundamentais e inerentes à pessoa humana e, além desses, de todos os direitos
específicos que, como visto, devem ser garantidos com absoluta prioridade, sem
discriminação.
Na ordem internacional, a prioridade absoluta em relação a crianças e
adolescentes já é norma posta há décadas. Dispositivos da Declaração Universal dos
Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas, datada de 1959, já previram esta
proteção especial, merecendo destaque o Princípio IV, segundo o qual “a criança gozará
os benefícios da previdência social. Terá direito a crescer e criar-se com saúde; para isto,
tanto à criança como à mãe, serão proporcionados cuidados e proteção especiais,
inclusive adequados cuidados pré e pós-natais. A criança terá direito a alimentação,
recreação e assistência médica adequadas.
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É preciso considerar ainda que, na realidade brasileira, muitas crianças têm
na alimentação escolar sua principal, quando não a única, fonte de nutrição. A crise
econômica decorrente da pandemia já submete e levará à situação de extrema
vulnerabilidade socioeconômica e de insegurança alimentar muitas outras famílias que até
então não viviam nesta situação e que, portanto, não eram formais beneficiárias de
programas sociais ou estavam inscritas em cadastros para estes fins. Há, ainda, a situação de
tantas outras famílias que, de tão carentes e marginalizadas, sequer buscam formalizar
requerimento para a obtenção de direitos e benefícios assistenciais.
Em momentos de grave crise sanitária e socioeconômica como o
presente, os imperativos constitucionais de solidariedade, erradicação de pobreza,
redução de desigualdades e garantias de direitos sociais – prioritariamente às crianças e
adolescentes – exige ampliação de esforços orçamentários e administrativos, bem como
de concretização de direitos e não a redução decorrente dos atos normativos e
administrativos ora questionados.
Ainda na análise do ordenamento jurídico, cumpre consignar que a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9394/96, positiva o mesmo dever de oferta de
alimentação escolar (artigo 4, VIII).
A Lei 11.947/2009, que traz as normas gerais sobre o Programa Nacional
de Alimentação Escolar, dispõe, em seu artigo 2º., que são diretrizes da alimentação
escolar, dentre outras:
III) a universalidade do atendimento aos alunos matriculados na rede pública de educação básica;(...)VI) o direito À alimentação escolar, visando a garantir a segurança alimentar e nutricional dos alunos, com acesso de forma igualitária, respeitando as diferenças iológicas entre idades e condições de saúde dos alunos que necessitem de atenção específica e aqueles que se encontram em vulnerabilidade social.
O parágrafo 4º, do artigo 5º, da mesma norma, ademais, diz que os
recursos transferidos aos estados e municípios para aquisição de alimentação escolar o
são com base no número de alunos devidamente matriculados na educação básica pública
de cada um dos entes governamentais, conforme os dados oficiais de matrícula obtidos
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no censo escolar realizado pelo Ministério da Educação.
A verba possui caráter suplementar e o repasse ocorre em 10 parcelas
mensais (de fevereiro a novembro) para a cobertura de 200 dias letivos, conforme o
número de matriculados em cada rede de ensino. Em consulta ao site do FNDE verifica-se
que o Estado de São Paulo recebeu as parcelas de fevereiro, março e abril do corrente
ano, não havendo notícias de eventual suspensão do repasse.
Logo, a discriminação na oferta do crédito alimentar escolar, além de
inconstitucional e ilegal, pode gerar grandes injustiças e violar também o princípio da
igualdade, pois crianças e adolescentes na mesma situação de carência ou até em
situação de vulnerabilidade mais acentuada e sem acesso aos cadastros ofíciais de bolsa
família ou de extrema pobreza, podem receber tratamentos diversos (em anexo casos
concretos de alunos que não receberão a alimentação escolar e estão em situação de
vulnerabilidade).
Os entes federativos continuam recebendo as verbas do Plano Nacional
de Alimentação Escolar, que é paga por aluno, conforme legislação acima transcrita e
informações do endereço eletrônico do Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação3.
Assim, se o Estado e o Município recebem verba do Governo Federal
para custear a merenda escolar, verba esta paga por aluno matriculado e não suspensa,
além de terem parte de seus orçamentos próprios para este fim, não há como justificar o
não fornecimento da alimentação para todos os alunos, máxime em período de crise e
maior necessidade de garantia de direitos fundamentais.
É importante destacar que já há decisão do Poder Judiciário do Rio de
Janeiro, assim como parecer do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, a seguir
transcritos, que não apontam qualquer ilegalidade ou irregularidade na oferta de cestas
básicas ou kit alimentação como substitutivos à merenda escolar, neste momento de
calamidade pública sem precedentes na história recente, determinando, inclusive, a não
suspensão da destinação dos recursos do FNDE, especialmente do PNAE.
Sendo assim, mister transcrever excertos da decisão da 1ª Vara Federal 3 https://www.fnde.gov.br/pls/simad/internet_fnde.liberacoes_result_pc
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de Teresópolis ao julgar ação do referido município contra o FNDE, nos seguintes termos:
“A "merenda escolar" (consagrado signo da segurança alimentar em ambiente educacional) representa um direito instrumentalizado por ações estatais positivas. É dever, portanto, do Município executar a política de alimentação, otimizando os recursos decorrentes do PNAE, fazendo com que eles cheguem até as crianças e adolescentes mais necessitadas nesse momento de isolamento forçado pelas políticas de saúde de combate ao COVID-19. É razoável que os demandados mantenham os repasses de verba do PNAE ao Município. É a interpretação do ordenamento de proteção à saúde e à alimentação de crianças e adolescentes para a garantia do mínimo existencial, considerando-se os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, nos termos do artigo 22 da LINDB.É necessário e igualmente razoável, no contexto de adequação às políticas de gestão do estado de necessidade por força do COVID-19 , que a verba federal seja utilizada para, caso necessário, transmudar pratos de merenda escolar em cestas básicas mensais destinadas às crianças e adolescentes da rede municipal.(...)Em face do exposto, DEFIRO EM PARTE O PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA, nos termos do art. 300 do Código de Processo Civil, para: I - determinar ao FNDE e à União Federal a continuidade de repasses de verbas federais para a educação, em especial o PNAE (salvo se por motivo diverso ao da presente demanda) ao Município de Teresópolis; II - permitir que o Município de Teresópolis empregue verbas federais vinculadas à merenda escolar para o pagamento de prestador de serviços com o fim de adquirir, transportar e entregar cestas básicas e alimentos adequados para o consumo a estudantes da rede pública municipal de saúde, em substituição temporária à merenda preparada nas escolas; II.I - a logística de entrega deverá atender aos critérios de segurança inerentes à gestão da pandemia; as escolas poderão ser empregadas como centros de distribuição e de segurança alimentar (atendidos os critérios de segurança relativas ao COVID-19); III - admissão da verba empregada para a execução dessa decisão, de forma excepcional como substitutiva da merenda escolar, para fins do índice constitucional de 25% de gasto com a educação.”
Com o mesmo posicionamento, o Ministério Público do Rio de Janeiro,
através da 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva - Núcleo Campos, em parecer (anexo)
sobre uma consulta acerca da existência de ato de improbidade, aduz que:
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“É quanto basta para acolher a postulação do Município e, em nome da segurança alimentar das crianças, afirmar que a destinação, da forma pretendida, está longe de, na ótica deste órgão ministerial, que detém atribuição privativa para emitir juízo de valor quanto a eventual improbidade administrativa decorrente de tal conduta, não constitui a mínima irregularidade, estando, pois, plenamente justificado pelas circunstâncias excepcionais a não ortodoxia na observância dos fins específicos de tal verba, estipulados pelo legislador mirando numa situação normal, que não é a vivida no momento.
Assim, não só aquiesço com o pretendido como, avançando, recomendo ao Prefeito que o faça, exatamente como descrito no ofício em apreço: utilize as verbas de custeio da educação para aquisição de kits de alimentação, fazendo-as entregar às crianças matriculadas nas escolas da rede municipal. Adianto que não vislumbro qualquer irregularidade na prática, a par de, por motivo plenamente justificado pelas circunstâncias, deixar de observar a destinação específica dessas verbas ou de parte delas.”
Quanto à falta de Instrução normativa por parte do FNDE/MEC, não
deve o executivo estadual ficar à espera de tal regulamentação, haja vista que parcelas
das transferências de recurso já foram realizadas e não há notícias de que serão
interrompidas, conforme consulta realizada no site do referido Fundo (link acima),
demonstram verbas recebidas pelo estado de São Paulo em datas em períodos em que as
aulas já estavam suspensas.
Imperioso mencionar, a publicação da lei nº 13.987/2020 que acresce o
art. 21-A na Lei nº 11.947/1999, in verbis:
“Art. 21-A. Durante o período de suspensão das aulas nas escolas públicas de educação básica em razão de situação de emergência ou calamidade pública, fica autorizada, em todo o território nacional, em caráter excepcional, a distribuição imediata aos pais ou responsáveis dos estudantes nelas matriculados, com acompanhamento pelo CAE, dos gêneros alimentícios adquiridos com recursos financeiros recebidos, nos termos desta Lei, à conta do Pnae.”
O direito à alimentação escolar é fundamental para o desenvolvimento do
aluno, pois, além de garantir condições fisiológicas para o aprendizado, previne
consequências danosas da desnutrição para a vida adulta e novos agravos em termos de
saúde pública.
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É necessário destacar que a pandemia e a necessidade de isolamento
social, diferentemente dos períodos regulares de férias, impediram qualquer programação
prévia das famílias brasileiras para arcar com o aumento dos custos com a alimentação de
seus filhos, crianças e adolescente, em período repentino e excepcional em que
permanecerão em casa.
As famílias, portanto, estão em situação de maior penúria e com maiores
gastos, sendo absolutamente necessário que tenham garantido, ao menos, o direito à
alimentação escolar de seus filhos.
A suspensão das aulas por tempo indeterminado a fim de conter a
disseminação da COVID-19, medida necessária à preservação do direito à saúde, não pode
suprimir o correlato direito à alimentação escolar, sendo esta uma garantia de todo aluno
matriculado na rede de ensino.
Vale reafirmar que se muitos alunos, em condições “normais”,
dependem e alimentam-se, EXCLUSIVAMENTE, do que lhes é ofertado no ambiente
escolar, cresce em preocupação a situação de insegurança a que estarão expostos em
situação dramática, na atual crise em que muitos dos responsáveis por seu sustento estão
e estarão impossibilitados de exercer plenamente atividades econômicas, sobretudo as
informais, tornando as famílias ainda mais vulneráveis e hipossuficientes.
Quando se trata de lesão ou ameaça de lesão a direitos de crianças e
adolescentes, a gravidade desta insuficiência de atendimento do poder público é ainda
mais intensa, considerando-se a condição peculiar destes enquanto pessoas em
desenvolvimento (expressa regra hermenêutica do artigo 6º do ECA, inclusive para efeito
de políticas públicas).
E os argumentos aqui trazidos são reforçados pelo fato de que as
atividades pedagógicas, como difundido pelas Pastas da Educação, serão realizadas de
maneira virtual. Ou seja, está se exigindo de TODOS os dos alunos o esforço intelectual
necessário para o aprendizado sem a contrapartida da alimentação necessária.
Não se trata aqui de política assistencial. A alimentação escolar como
demonstrado é um direito dos alunos e deve ser garantido sem discriminação, não
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havendo espaço para limitações não previstas em lei.
4) Da existência de perigo de dano reverso para os alunos da rede pública
No caso da suspensão de segurança, necessário apontar que há perigo de
dano de difícil reparação para os alunos da rede pública.
É preciso considerar que, na realidade brasileira, muitas crianças têm na
alimentação escolar sua principal, quando não a única, fonte de nutrição. A crise econômica
decorrente da pandemia já submete e levará à situação de extrema vulnerabilidade
socioeconômica e de insegurança alimentar muitas outras famílias que até então não viviam
nesta situação e que, portanto, não eram formais beneficiárias de programas sociais ou
estavam inscritas em cadastros para estes fins. Há, ainda, a situação de tantas outras
famílias que, de tão carentes e marginalizadas, sequer buscam formalizar requerimento para
a obtenção de direitos e benefícios assistenciais.
A Defensoria Pública do Estado já está recebendo diversas demandas de
alunos, cujas famílias estão em situação de extrema vulnerabilidade e, embora regularmente
matriculados, não receberão auxílio alimentação, por não estarem no Cadastro Único ou não
serem beneficiários do Bolsa Família, conforme amplamente demonstrado nos relatos
acostados à inicial.
Frisa-se que a decisão em sede de tutela de urgência beneficiava
aproximadamente 3,5 milhões de crianças e adolescentes, vez que o Estado estava se
propondo a oferecer alimentação escolar apenas para cerca de 700 mil estudantes do total
de 3,5 milhões e o Município para menos de 300 mil alunos dos seus quase 1 milhão.
Assim, inegável o imenso prejuízo que a decisão que suspendeu à tutela de
urgência causará na nutrição, na saúde, no desenvolvimento e até na vida de diversas
crianças e adolescentes.
Retomando, em síntese, as principais razões de inconformismo em
relação aos fundamentos da respeitável decisão ora impugnada, destacamos:
1) O periculum in mora de densidade superior, no caso, é aquele
relacionado não ao risco de suposto prejuízo à saúde financeira do
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Estado e do Município, mas à saúde real e à vida de milhões de
crianças e adolescentes, repentinamente desassistidas em seu
constitucional direito à alimentação escolar. Déficits nutricionais
podem impactar de maneira irreversível o pleno desenvolvimento de
crianças e adolescentes e, consequentemente, suas capacidades de
aprendizagem. Ademais, fragilidades nutricionais afetarão também o
sistema imunológico de milhões de estudantes em época de
pandemia, colocando-os em especial situação de vulnerabilidade;
2) Os autores e a decisão liminar não partiram do pressuposto de oferta
ininterrupta de alimentação escolar em ano letivo normal.
Consignamos na inicial, aliás, que a suspensão se deu de maneira
abrupta e excepcional, impedindo o normal planejamento das famílias
para alimentação de seus filhos em períodos de férias. Ademais, a
Instrução Normativa 154, de 8 de abril de 2020, da Secretaria
Municipal de Educação, determinou a retomada das atividades
escolares de maneira remota em 13 de abril de 2020 e, do mesmo
modo, a Secretaria de Estado da Educação, por força das Resoluções
18 e 385, de 2020, com base ainda na Deliberação 177 do Conselho
Estadual de Educação6, estabeleceu atividades remotas –
consideradas como horas de atividade escolar obrigatória (artigo 2º.
Da referida Deliberação) – a partir do próximo dia 22 de abril de 2020.
Vê-se, pois, que a postulação é de concessão do direito à alimentação
escolar em período de suspensão não programada de aulas
presenciais e de manutenção das horas de atividade escolar
obrigatória – por decisão dos Executivos – de forma remota desde
abril de 2020.
4 http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/instrucao-normativa-secretaria-municipal-de-educacao-sme-15-de-8-de-abril-de-20205 http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/RESOLU%C3%87%C3%83O%20SEDUC-38,%20DE%203-4-2020.HTM?Time=15/04/2020%2017:40:436 https://decentro.educacao.sp.gov.br/resolucao-seduc-de-18-3-2020/
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3) O Direito à alimentação escolar não é faculdade assistencial, mas
dever constitucional expressamente consignado no Capítulo e no
artigo referente aos deveres dos Poderes Públicos para com o Direito
à Educação, direito reafirmado na LDB e na Lei do PNAE, sendo certo
que esta afirma tratar-se de direito universal e igualitário aos
estudantes das redes públicas;
4) Não houve invasão de competência administrativa, mas controle de
constitucionalidade e legalidade de atos administrativos violadores de
direitos fundamentais, expressamente assegurados na Lei Maior e em
Legislação Federal.
IV. DOS PEDIDOS
Em razão do exposto, requer o conhecimento do presente agravo e o seu
provimento pelo C. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para que,
reformada a decisão monocrática que deferiu o pedido de suspensão de segurança, sejam
mantidos os efeitos da tutela de urgência deferida nos autos do processo nº 1018713-
46.2020.8.26.0053, em trâmite na 12ª Vara da Fazenda Pública da Capital.
São Paulo, 15 de abril de 2020.
ANA CAROLINA O. GOLVIM SCHWANDefensora Pública Coordenadora
Núcleo Especializado da Infância e Juventude
DANIEL PALOTTI SECCODefensor Público Coordenador
Núcleo Especializado da Infância e Juventude
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