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1 A CONTRADITÓRIA LEGALIZAÇÃO E RECEPÇÃO DO “REI DO CANGAÇO” NA MECA NORDESTINA – 1926 Wescley Rodrigues Dutra * No presente artigo procuramos analisar o processo discursivo de “legalização” do “Rei do Cangaço” e seu bando, para combater a Coluna Prestes em 1926. A partir da articulação de tal proposta direcionamos o nosso olhar para os jornais vendo-os como um campo de embate. Nessa documentação buscamos focar em como a população recepcionou a notícia da vinda de Lampião a Juazeiro do Norte e qual será a repercussão nos periódicos escritos. Esse embate de discursos levou a um processo mutativo representacional que propiciou a oscilação da imagem de Lampião de bandido sanguinário a um exímio patriota, adepto das armas para extirpar do solo nacional a “erva daninha” – a Coluna Prestes. Esse episódio da vida do “Rei do Cangaço”, além de ser um dos mais contraditórios, contribuiu na formação de uma cultura histórica em torno de Lampião e foi lapidar no processo de exaltação da figura do cangaceiro como símbolo caracterizador do Nordeste e da nordestinidade. Palavras-Chave: Cangaço; Identidade; Representação. ______________________________________________________________________ Gostaríamos inicialmente de salientar ao leitor que, as considerações aqui expostas são fruto de algumas das nossas indagações que impulsionam as nossas pesquisas de mestrado, não sendo ainda questões fechadas e com respostas coesas. Trabalhamos nesse artigo com algumas hipóteses, sendo na realidade, que esse trabalho sintetiza um pouco do que estamos desenvolvendo no segundo capítulo da nossa dissertação, intitulada: “Nas Trilhas do „Rei do Cangaço‟ e de suas Representações” . 1 - Lampião enquanto notícia Era madrugada de segunda-feira, dia 26 de junho de 1922, por volta das 4h da manhã os moradores da “pacata” cidade de Água Branca – AL, são despertados por gritos ensurdecedores e tiros que rompiam o calmo silêncio da aurora, o cangaceiro Lampião entrava na cidade, até então segura de que nunca está seria tomada por bandoleiros devido à sua importância para a região. 1 * Graduado em História pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Geopolítica e História, e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal da Paraíba, onde desenvolve pesquisa sobre as representações construídas em torno da figura de Virgulino Ferreira da Silva Lampião. Bolsista Capes. 1 Assim descreveram os jornais alagoanos o início do ataque à cidade de Água Branca.

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A CONTRADITÓRIA LEGALIZAÇÃO E RECEPÇÃO DO “REI DO

CANGAÇO” NA MECA NORDESTINA – 1926

Wescley Rodrigues Dutra*

No presente artigo procuramos analisar o processo discursivo de “legalização” do “Rei

do Cangaço” e seu bando, para combater a Coluna Prestes em 1926. A partir da

articulação de tal proposta direcionamos o nosso olhar para os jornais vendo-os como

um campo de embate. Nessa documentação buscamos focar em como a população

recepcionou a notícia da vinda de Lampião a Juazeiro do Norte e qual será a

repercussão nos periódicos escritos. Esse embate de discursos levou a um processo

mutativo representacional que propiciou a oscilação da imagem de Lampião de bandido

sanguinário a um exímio patriota, adepto das armas para extirpar do solo nacional a

“erva daninha” – a Coluna Prestes. Esse episódio da vida do “Rei do Cangaço”, além de

ser um dos mais contraditórios, contribuiu na formação de uma cultura histórica em

torno de Lampião e foi lapidar no processo de exaltação da figura do cangaceiro como

símbolo caracterizador do Nordeste e da nordestinidade.

Palavras-Chave: Cangaço; Identidade; Representação.

______________________________________________________________________

Gostaríamos inicialmente de salientar ao leitor que, as considerações aqui

expostas são fruto de algumas das nossas indagações que impulsionam as nossas

pesquisas de mestrado, não sendo ainda questões fechadas e com respostas coesas.

Trabalhamos nesse artigo com algumas hipóteses, sendo na realidade, que esse trabalho

sintetiza um pouco do que estamos desenvolvendo no segundo capítulo da nossa

dissertação, intitulada: “Nas Trilhas do „Rei do Cangaço‟ e de suas Representações”.

1 - Lampião enquanto notícia

Era madrugada de segunda-feira, dia 26 de junho de 1922, por volta das 4h da

manhã os moradores da “pacata” cidade de Água Branca – AL, são despertados por

gritos ensurdecedores e tiros que rompiam o calmo silêncio da aurora, o cangaceiro

Lampião entrava na cidade, até então segura de que nunca está seria tomada por

bandoleiros devido à sua importância para a região.1

* Graduado em História pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Geopolítica e

História, e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal da Paraíba,

onde desenvolve pesquisa sobre as representações construídas em torno da figura de Virgulino Ferreira da

Silva – Lampião. Bolsista Capes. 1 Assim descreveram os jornais alagoanos o início do ataque à cidade de Água Branca.

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A casa da baronesa de Água Branca, Joana Vieira de Siqueira Torres, estava

cercada pelo bando. A elite via-se diretamente ameaçada, pobres e ricos misturavam-se

em um grupo só, todos buscando proteger-se e livrar as suas vidas das “garras” daqueles

“bandidos”. Aos poucos passam a se questionar quem era aquele chefe cangaceiro que

tivera a ousadia de tal feito e de atormentar a paz da baronesa octogenária.

Com esse episódio pretendemos abrir a dissertação, com o objetivo de mostrar

que Lampião já aparece no palco sertanejo como um bandido diferenciado, mesmo

estando em início de carreira enquanto chefe de uma “cabroada”. Vale salientarmos que

Lampião havia entrado para o cangaço em meados de 1918, juntando-se ao bando de

Sinhô Pereira, ao qual estava subordinado. Foram praticamente quatro anos na

obscuridade, sendo que o ano de 1922 e esse ataque, especificamente, servem-nos como

marco porque ele será o primeiro registro de Lampião comandando um sub-grupo de

cangaceiros, já como “lugar-tenente”2

O peculiar desse ataque é que Lampião aparecerá não como um “cangaceirinho

simplista” que atacava comboios em beira de estradas, fazendas e pessoas desarmadas

que encontrava no caminho, mas alguém que destacou-se pela ousadia de bater logo de

frente com a elite, ousadia que chega ao ponto de atacar a residência da baronesa, que

mesmo não exercendo mais legalmente o poder político, já que perdera sua importância

com o fim do Império, para a população local era uma pessoa importante, exercendo

forte poder simbólico no imaginário desses indivíduos.

Outra característica importante é que quase todos os jornais alagoanos irão

noticiar esse ataque, tecendo comentários ferrenhos, destacando a ousadia da

“bandidagem”. É a primeira vez que o nome de Lampião sairá em “letras redondas” nas

páginas jornalísticas. Primeira de muitas que proliferarão durante todo o século XX.

Desse momento em diante não se passou pelo menos uma semana ou um mês, em que

não se tivesse algo relatado nos jornais nordestinos sobre o itinerário daquele grupo de

cangaceiros.

O importante também de nos debruçarmos sobre esse episódio é que ele permite-

nos perceber, de forma panorâmica e hipotética, como em início de carreira Lampião

será um “bandido” que ataca a elite e as autoridades locais, fato que mais tarde mudará

2 Lugar-tenente é um “título” hierárquico no cangaço, os homens que ganhavam essa “patente”

geralmente se destacavam pela coragem e valentia, além de serem “cabras” de extrema confiança do

chefe. Eles tinham como função comandar os vários sub-grupos que por ventura o bando maior tivesse.

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já que ele começa a tecer a sua teia de relações com as autoridades, muitas vezes

subordinando-se aos mandos e desmandos desses.

Os feitos de Lampião e seu bando começavam a se avolumar em proporções

exorbitantes, o povo o temia, os sertões são varridos sob o poder do seu rifle, as

histórias proliferam: homicídios, assaltos, estupros, crueldades. Seu nome simbolizará

medo e, ao mesmo tempo, admiração, eis mais uma contradição. Aterrorizava ao mesmo

tempo em que promovia os seus famosos bailes regados a muito forró, xaxado e

cachaça. Muitas pessoas iam pelo medo, outras eram forçadas, alguns freqüentavam por

curiosidade, mas todos tendo em comum a certeza de não poderem negar nada ao

“Capitão” e não poderem altear a voz ou fazer qualquer gesto que pudesse significar

desafio. Era o medo agindo naqueles “matutos” sem regras de etiqueta estabelecidas, e

nos “letrados” temerosos de serem desmoralizados com os seus diplomas de bacharéis

que davam status social naquele meio.3

Essa será a nossa primeira cena, que dentro da trama nos levará a cena seguinte

que acontecerá no ano de 1926, no cenário da “Meca Nordestina”, Juazeiro do Norte –

CE, terra do “benemérito” e “santo” padre Cícero Romão Batista, o patriarca daquele

“povo devoto e sofredor”, a “Jerusalém celeste na terra”, “terra santa da Mãe de Deus

das Dores”.

Acreditamos que nesse ano teremos uma das primeiras mutações da imagem de

Lampião, pois em uma articulação política ele é convocado a comparecer ao Juazeiro

onde estava sendo organizado o Batalhão Patriótico para combater a Coluna Prestes. Lá,

em um arranjo político estratégico, o “Rei do Cangaço” recebe a patente de “capitão” do

referido Batalhão. Temos aí à legalização de um bandido que “alia-se” ao governo para

combater um inimigo maior (contradição profunda). De perseguido passa a ser

perseguidor.

Frente a uma ameaça maior há uma mutação na representação feita pelo Estado

no referente à Lampião e seu bando no ano de 1926. Quando a Coluna Prestes adentrou

no Nordeste pregando o seu projeto utópico e em busca de arrebanhar adeptos para seu

ideal, Lampião e seus “meninos” são postos na legalidade em um fato que gera

polêmica até os dias de hoje. De um lado, articula-se discursos defensores de que tal

3 Ver: ASSUNÇÃO, Moacir. Os homens que mataram o facínora. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.

ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa; FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia

Visual, 1999. SOUZA, Anildomá Willans. Lampião: nem herói nem bandido… a história. Serra

Talhada: GDM Gráfica, 2006.

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idéia tenha vindo da esfera do governo federal, em contra-partida há os que afirmam

categoricamente que essa tenha sido uma jogada política do deputado Floro Bartolomeu

e do Padre Cícero.4

Fato é que aqui encontramos uma contradição latente. De bandido a Capitão do

Batalhão Patriótico, um “exímio” defensor da “pátria mãe gentil”. Essa patente

recebida, mas que oficialmente não tinha validade, passa a ter validade a partir do

momento que Lampião impõe a todos que o cerca a obrigação de o tratarem até o fim da

vida como “Capitão”. Nas inúmeras invasões cometidas por Lampião e seu bando o seu

nome o antecedia, entre os gritos de terror sua chegada era anunciada com o alarme de

algum paisano afirmando que a cidade, vila ou comunidade tinha o capitão à porta.

Ele apropriando-se do código ético sertanejo, fez com que sua palavra tivesse

mais valor que a lei: se não o respeitavam pela coragem, o considerariam pelo medo.

Esse episodia da vida de Lampião quando ele é convocado a ir para o Juazeiro

do Norte – CE, é um dos mais inusitados da sua vida, pois ele possibilita refletirmos e

tirarmos conclusões interessantíssimas sobre a ambigüidade que cerca a sua vida. A

cidade de Juazeiro parou frente àqueles “seres exóticos”; multidões arrastam-se entre as

ruelas da cidade para ver os cangaceiros e, se possível, o próprio Lampião que

hospedado em um sobrado da cidade é tratado como uma estrela.

Acreditamos que apesar do temor muitos querem vê-lo, o medo passa então pela

necessidade de experimentar, de contemplar com os próprios olhos aquele homem

cercado de narrativas tão ferozes, admiração e espanto. É o momento de tirar a prova se

ele existe realmente.5 Poderíamos de forma hipotética dizer que durante a sua estadia

em Juazeiro Lampião e seu bando serão tratados como autoridades, cidadãos ilustres,

sendo respeitados e saindo da cidade sem dispararem um único tiro. Claro, que há

4 Usaremos como referências para essa discussão: ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa; FERREIRA, Vera.

De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A

Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão. 2.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.

BRAGA, Antônio Mendes da Costa. Padre Cícero: sociologia de um Padre, antropologia de um Santo.

Bauru, SP: Edusc, 2008. CHANDLER, B. J. Lampião, O Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1980. MACÊDO, Nertan. Capitão Virgolino Ferreira: Lampião. 4. ed. Rio de Janeiro: Artenova, 1972. MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do

Brasil. 4. ed. São Paulo: A Girafa Editora, 2004. MOTA, Leonardo. No Tempo de Lampião. 3. ed.

Fortaleza: ABC Editora, 2002. Também será de grande valia a obra do memorialista: NEVES, Napoleão

Tavares. Cariri: cangaço, coiteiros e adjacências. Brasília: Thesaurus, 2009. 5 A entrevista feita com Lampião, publicada no Jornal “O Ceará” em 12 de março de 1926, deixa claro

que havia um aglomerado de pessoas diante do prédio onde os cangaceiros estavam hospedados:

“Naquela ocasião, como dissemos anteriormente, Lampião estava hospedado no sobrado de João Mendes

de Oliveira e, durante a entrevista, foi várias vezes à janela, atirando moedas para o povo que se

aglomerava na rua”.

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pessoas que acharam absurdo um “bandido” ser tratado como estrela, mas essas muitas

vezes são abafadas pelas várias narrativas e histórias que são contadas pela grande

maioria. Lampião sai da “Meca Nordestina” como um herói.

Pelo menos dois pilares documentais nos servirão de alicerce na construção

desse capítulo: a entrevista concedida por Lampião ao médico Otacílio Macedo6 e os

jornais – principalmente O Ceará do referido ano – que encontra-se no Arquivo Público

do Estado do Ceará e na Biblioteca Pública de Fortaleza. A citada entrevista é um

documento de cabal importância porque ela é um dos únicos registros que se tem de

Lampião sendo entrevistado, permitindo-nos identificar uma série de fatores que

contribuem para que percorramos um pouco a forma de pensar do cangaceiro. Assim,

não temos um sujeito “morto”, calado, que nunca manifestou-se, mas alguém que

buscou certas táticas para destacar-se e driblar as estratégias maiores que sobre ele se

impunham.

Os jornais nos permitirão pensar como alguns setores da sociedade encararam a

vinda do “facínora” Lampião ao Juazeiro e qual a repercussão/ligação desse fato à

figura do Padre Cícero. Acreditamos ter, de início, pelo menos dois grupos que usarão

os jornais para difundirem suas concepções: os que apoiaram a idéia de legalizar aquela

“gesta de bandidos”, e os que foram ferrenhos opositores criticando com veemência a

atitude das autoridades em convocar e legalizar os cangaceiros perdoando os seus

crimes.

Confrontando esses dois corpos documentais/discursivos teremos uma

concepção de como o Juazeiro estava um verdadeiro “caldeirão” nesse ano e

perceberemos o desespero das autoridades locais em combater a Coluna Prestes,

chegando a tomar atitudes muitas vezes esdrúxulas do ponto de vista ético. Essa trama

possibilitará enxergarmos qual papel Lampião representará nesse momento e como esse

episódio de “legalização” e do recebimento da “patente de capitão” terá uma forte

ressonância em toda a vida de Lampião até a sua morte.

No roteiro dessa trama nos ancoraremos em alguns teóricos que nos ajudarão a

costurar a trama cênica. Convidaremos a subir ao palco, em uma discussão rápida, Eric

Hobsbawm com as suas duas obras “Rebeldes Primitivos” (1970) e “Bandidos” (1975).

Fazendo uma ligação com as atitudes representadas por Lampião no transcorrer da

6 Publicada no Jornal “O Ceará” em 12 de março de 1926.

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entrevista concedida a Otacílio Macedo, buscaremos discutir a visão de “bandido

social” tão viva quando se trabalha com o cangaço.

Para Hobsbawm esse tipo de movimento (cangaço) que aconteceu no Nordeste

brasileiro era “arcaico e primitivo”, mas não deixava de ser social, mesmo

diferenciando-se do movimento operário que cresceu na sociedade moderna. Assim, ele

inseriu o cangaço em uma sociedade que tem Estado, distinções de classe e exploração

de latifundiários e comerciantes, vendo nessa sociedade a persistência de laços de

parentesco e solidariedade tribais, o que o levou a pensar esse movimento dotado de

traços da “sociedade primitiva”.

É a partir desse contexto social que surgirá o “bandido social”, aquele que

ambiciona um mundo justo e igualitário. Para chegar a tal sociedade utópica esses

indivíduos se levantam contra a estrutura social exploradora vigente. No entanto,

segundo o autor, esse movimento ao contrário do movimento operário, não tem uma

organização homogênea e uma ideologia de luta. É nesse ponto que a obra de

Hobsbawm se difere da idéia de Movimento Social clássica, pois, segundo alguns

estudiosos, para que um determinado levante seja tratado como movimento social ele

tem que ter objetivo, consciência de classe, organização e uma ideologia em comum.

Tomados em conjunto, representam pouco mais do que sintomas de crise e

tensão na sociedade em que vivem – de fome, peste, guerra ou qualquer outra

coisa que abale essa sociedade. Portanto, o banditismo, em si, não constitui

um programa para a sociedade camponesa, e sim uma forma de auto-ajuda,

visando a escapar dela, em dadas circunstâncias. Exceção feita à sua

disposição ou capacidade de rejeitar a submissão individual, os bandidos não

têm outras idéias senão as do campesinato (ou da parte do campesinato) de

que fazem parte. São ativistas, e não ideólogos ou profetas dos quais se deve

esperar novas visões ou novos planos de organização política. São líderes, na

medida em que homens vigorosos e dotados de autoconfiança, tendem a desempenhar tal papel; mesmo enquanto líderes, porém, cabe-lhes abrir

caminho a facão, e não descobrir a trilha mais conveniente (HOBSBAWM,

1976: 18 – 19).

Problematizando esse conceito de Hobsbawm nos perguntaríamos: Seria

Lampião realmente um bandido social? O que leva Hobsbawm a enxergar elementos na

vida do cangaceiro nordestino que vão de encontro a sua tese lapidar de que esse seria

um Hobim Hood nordestino? Não houve uma má interpretação e leitura na obra

“Bandidos”? Até que ponto seria coerente enquadrar o “Rei do Cangaço” nessa

“categoria conceitual”?

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Na complexa teia da trama que estamos montando, as vozes discordantes são

necessárias e elementares. Maria Isaura Pereira de Queiroz, que desenvolve suas

pesquisas na década de 1960, será uma ferrenha discordante da concepção de bandido

social pensada por Hobsbawm, acreditando que nem movimento social o cangaço seria

por faltar a consciência de classe, um objetivo em comum para se lutar e uma ideologia.

Interrogada se os bandos independentes e errantes de cangaceiros foram uma

simples resposta à miséria ou se configuraram como movimento social, Queiroz

responderá categoricamente:

Na medida em que os termos “movimentos sociais” pressupõem consciência

dos problemas vividos numa estrutura sócio-econômica e política injusta – a

consciência sendo constituída justamente da percepção e do conhecimento dessa estrutura e de seus efeitos, mesmo que sob um modo de percepção

religioso – não é possível admitir que o “cangaço” se configure como um

movimento social. Foi, realmente, uma resposta à miséria, o que se evidencia

no fato de que desapareciam, quando a chegada das chuvas reinstalava o

modo de vida habitual (QUEIROZ, 1997: 13).

Daí problematizaríamos a questão: “Seria o cangaço um movimento social ou

ele seria um movimento que está inserido no sistema instituído, sendo parte desse, não

buscando uma mudança social como se espera de um movimento social?” A partir dessa

indagação seria necessário distinguir os tipos de cangaço, e por que o “cangaço de

Lampião” se configura como diferenciado dos demais que o antecederam, estando o

grupo de Lampião mais voltado para os interesses particulares do que coletivo.

Na obra “Cangaceiros e Fanáticos” (1983), Rui Facó relaciona esse movimento

nordestino a uma questão agrária e de luta por terra, entendendo o cangaço como um

espaço de resistência, de contraposição à ordem social. Sua obra publicada em 1963

buscou responder a questões que vinham sendo elaboradas desde a década de 1950: “O

que é o Brasil? Qual a origem das diferenças entre o Nordeste e o Sul do país? O que

leva o Nordeste a ser atrasado e socialmente tenso, frente a um Sul “adiantado”? A obra

foi escrita em um momento no qual o país se sensibilizava com a realidade nordestina e

buscava soluções.

Ele vem, através de sua produção, reafirmar a necessidade de mudança na

estrutura da terra, pois aí estavam as raízes da maior parte dos problemas sociais do

Nordeste e a semente de toda a desigualdade social que levava a um aumento

substancial da pobreza, miserabilidade e o agravamento da situação dos camponeses

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sem terra. Esses fatores seriam os responsáveis pelo florescimento do banditismo e do

fanatismo. Segundo o autor, os bandidos e fanáticos não eram “simples criminosos”,

mas frutos do atraso econômico da região, do latifúndio e do regime de trabalho “semi-

feudal”.

Euclídes da Cunha já compreendera que „o homem do sertão [...] está em

função direta da terra‟. Se a terra é para ele inacessível, ou quando possui

uma nesga de chão vê-se atenazado pelo domínio do latifúndio oceânico, devorador de todas as energias, monopolizador de todos os privilégios, ditador

das piores torpezas, que fazer, senão revoltar-se? Pega em armas, sem

objetivos claros, sem rumos certos, apenas para sobreviver no meio que é o

seu (FACÓ, 1983: 30).

Essa seria a sua justificativa para o surgimento dos grupos de cangaceiros. A

questão da terra seria o grande causador da problemática cangaceira no Nordeste; o

sistema seria responsável por não dar condições de sobrevivência digna a esses sujeitos,

empurrando-os para a criminalidade:

Naquela sociedade primitiva, com aspectos quase medievais, semibárbaros, em que o poder do grande proprietário era incontrastável, até mesmo uma

forma de rebelião primária, como era o cangaceirismo, representava um passo

à frente para a emancipação dos pobres do campo. Constituía um exemplo de

insubmissão. Era um estímulo às lutas (FACÓ, 1983: 38) (grifos nossos).

Tentando concluir o ciclo dos principais teóricos a problematizarem o cangaço

nas décadas de 1960 a 1970 nos debruçaremos sobre a obra de Billy J. Chandler,

“Lampião, O Rei dos Cangaceiros” (1980). O olhar de Chandler7 ao trabalhar o

banditismo no Nordeste é o de um americano que olha de cima para baixo, percebendo

– no seu ponto de vista – que na escala evolutiva social, o Brasil estaria em um patamar

de inferioridade se comparado aos Estados Unidos, tanto é que, quando no início dos

seus escritos ele vai situar Lampião ao espaço do qual ele é fruto, ele salienta que o

cangaceiro havia “nascido no sertão decadente e empobrecido do Nordeste brasileiro”

(CHANDLER, 1980: 14).8

7 Chandler desenvolve suas pesquisas para escrever o livro na década de 1970, período onde a discussão

do conceito de Eric Hobsbawm estava começando a ser travada no mundo acadêmico. 8 Para um aprofundamento dessa discussão de ser a região um determinante do surgimento do banditismo,

ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 3. ed. São

Paulo: Cortez, 2006. ANDRADE, Manoel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. Recife: UFPE,

1998. CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. RIBEIRO,

Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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No trecho da obra citado acima, podemos perceber três dimensões de

inferioridade ao analisarmos: 1) um bandido que floresce em um país de Terceiro

Mundo (conceito usado na época para caracterizar os países pobres); 2) além de ser

fruto desse país pobre, ainda nasceu na periferia do seu território: o Nordeste, ambiente

propício a despertar no homem toda a sua animalidade primitiva, como por muito tempo

no imaginário social a região foi vista; 3) e por fim, tendo o seu campo de ação nos mais

remotos rincões do sertão, aquele deserto de calmaria e terror, fonte de vida e de morte,

espaço da “barbárie”.

Para Chandler, a sociedade sertaneja do período de 1900 a 1940, estava

passando por uma grave crise econômica, política, cultural e social, possibilitando,

assim, o surgimento do banditismo, do messianismo e do fanatismo religioso, esses

seriam as manifestações mais cabais dessa crise. Para justificar o advento do

messianismo, usando uma carga preconceituosa e pejorativa, e não entendendo esse

fator como um produto cultural de uma sociedade ainda não impregnada pela

modernidade capitalista, e sim, ainda mantenedora das velhas tradições agrárias, ele

afirmará que esse messianismo se baseia na superstição, ignorância e pobreza dos

sertanejos.

Ao trabalhar o conceito de Bandido Social de Hobsbawm, Chandler esclarecerá

que ao lapidar esse termo o autor não estava categoricamente afirmando que os seus

dados sobre Lampião, fossem imagens verdadeiras do personagem histórico, pois, o seu

trabalho se balizou em lendas e mitos para pensar a relação entre Lampião e o

banditismo social. Assim, ele dá um parecer que busca encerrar a discussão iniciada

com a publicação das obras de Hobsbawm nas décadas de 1960 e 1970:

Hobsbawm reconhece que Lampião podia ser terrível, e, por esta razão, o

coloca entre os vingadores. Declara também que Lampião não pode se

classificar como um verdadeiro bandido social haja vista a sua aliança com

proprietários. Acrescenta também – erradamente, acho eu – que o chefe dos

cangaceiros defendia os pobres. Hobsbawm justifica a violência de Lampião,

sob o argumento de que, num certo modo, era involuntária, pois resulta das

severas tensões que marcaram a ruptura social entre o nordeste tradicional e a

nova ordem capitalista, e, portanto, era inevitável (1980: 311).

Ele encerra o seu trabalho sendo categórico:

As teorias de Hobsbawm sobre o banditismo, embora extensas e abrangedoras,

não são, nem racionalmente, nem adequadamente, apoiadas em evidências

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dignas de confiança. A confusão principal resulta do fato de que trata dos bandidos como mito e realidade, sem, em muitos casos, fazer distribuição entre

os dois. Por essas inexatidões, suas idéias não conduzem à análise, e,

portanto, são melhores se tomadas como sugestões empíricas (1980: 311).

Chandler afirma haver a apropriação por parte de Hobsbawm de algumas lendas

sobre Lampião para a legitimação do seu conceito, no entanto, achamos absurda a sua

concepção preconceituosa em tratar as falas populares, que construíram essas lendas e

foram trabalhadas por Hobsbawm, como “ordinárias” por fugirem da “verdade”,

fabricando casos. Ao tratar as narrativas populares como “Elucubrações de um povo

ignorante” (1980, p. 28) há a tentativa, de sua parte, de reforçar o tripé montado por ele

para justificar a constituição da identidade sertaneja: a superstição, a ignorância e a

pobreza; juntos esses fatores contribuem para a formação desse povo e da sua “mente

fantasiosa”.

Considerações Finais

Sabemos como é complexo o caminho percorrido por um pesquisador em busca

das respostas para os seus questionamentos, esse tem que ao longo do percurso se

acercar de toda a documentação possível e tomando a função de um detetive esmiuçar

os fatos, “violar” identidades, interpretar documentos, construir “verdades”, frente a um

passado que não tem mais como ser revivido a não ser pela documentação e vestígios

deixados.

Buscamos ao longo da feitura desse artigo, trazer para o nosso leitor algumas das

trilhas as quais estamos seguindo para construir a nossa pesquisa de mestrado,

acreditando ser esse texto importante não pelas conclusões fechadas sobre os fatos

analisados, mas por possibilitar uma reflexão de como é feito metodologicamente o

oficio do historiador nessa relação Historiador/Passado, Presente/Passado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes.

3. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

ANDRADE, Manoel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. Recife: UFPE,

1998.

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ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa; FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. São

Paulo: Idéia Visual, 1999.

ASSUNÇÃO, Moacir. Os homens que mataram o facínora. 2. ed. Rio de Janeiro:

Record, 2007.

BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos

guerreando no sertão. 2.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.

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