Upload
katyanne-benevides
View
212
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
wescley rodrigues
Citation preview
1
A CONTRADITÓRIA LEGALIZAÇÃO E RECEPÇÃO DO “REI DO
CANGAÇO” NA MECA NORDESTINA – 1926
Wescley Rodrigues Dutra*
No presente artigo procuramos analisar o processo discursivo de “legalização” do “Rei
do Cangaço” e seu bando, para combater a Coluna Prestes em 1926. A partir da
articulação de tal proposta direcionamos o nosso olhar para os jornais vendo-os como
um campo de embate. Nessa documentação buscamos focar em como a população
recepcionou a notícia da vinda de Lampião a Juazeiro do Norte e qual será a
repercussão nos periódicos escritos. Esse embate de discursos levou a um processo
mutativo representacional que propiciou a oscilação da imagem de Lampião de bandido
sanguinário a um exímio patriota, adepto das armas para extirpar do solo nacional a
“erva daninha” – a Coluna Prestes. Esse episódio da vida do “Rei do Cangaço”, além de
ser um dos mais contraditórios, contribuiu na formação de uma cultura histórica em
torno de Lampião e foi lapidar no processo de exaltação da figura do cangaceiro como
símbolo caracterizador do Nordeste e da nordestinidade.
Palavras-Chave: Cangaço; Identidade; Representação.
______________________________________________________________________
Gostaríamos inicialmente de salientar ao leitor que, as considerações aqui
expostas são fruto de algumas das nossas indagações que impulsionam as nossas
pesquisas de mestrado, não sendo ainda questões fechadas e com respostas coesas.
Trabalhamos nesse artigo com algumas hipóteses, sendo na realidade, que esse trabalho
sintetiza um pouco do que estamos desenvolvendo no segundo capítulo da nossa
dissertação, intitulada: “Nas Trilhas do „Rei do Cangaço‟ e de suas Representações”.
1 - Lampião enquanto notícia
Era madrugada de segunda-feira, dia 26 de junho de 1922, por volta das 4h da
manhã os moradores da “pacata” cidade de Água Branca – AL, são despertados por
gritos ensurdecedores e tiros que rompiam o calmo silêncio da aurora, o cangaceiro
Lampião entrava na cidade, até então segura de que nunca está seria tomada por
bandoleiros devido à sua importância para a região.1
* Graduado em História pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Geopolítica e
História, e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal da Paraíba,
onde desenvolve pesquisa sobre as representações construídas em torno da figura de Virgulino Ferreira da
Silva – Lampião. Bolsista Capes. 1 Assim descreveram os jornais alagoanos o início do ataque à cidade de Água Branca.
2
A casa da baronesa de Água Branca, Joana Vieira de Siqueira Torres, estava
cercada pelo bando. A elite via-se diretamente ameaçada, pobres e ricos misturavam-se
em um grupo só, todos buscando proteger-se e livrar as suas vidas das “garras” daqueles
“bandidos”. Aos poucos passam a se questionar quem era aquele chefe cangaceiro que
tivera a ousadia de tal feito e de atormentar a paz da baronesa octogenária.
Com esse episódio pretendemos abrir a dissertação, com o objetivo de mostrar
que Lampião já aparece no palco sertanejo como um bandido diferenciado, mesmo
estando em início de carreira enquanto chefe de uma “cabroada”. Vale salientarmos que
Lampião havia entrado para o cangaço em meados de 1918, juntando-se ao bando de
Sinhô Pereira, ao qual estava subordinado. Foram praticamente quatro anos na
obscuridade, sendo que o ano de 1922 e esse ataque, especificamente, servem-nos como
marco porque ele será o primeiro registro de Lampião comandando um sub-grupo de
cangaceiros, já como “lugar-tenente”2
O peculiar desse ataque é que Lampião aparecerá não como um “cangaceirinho
simplista” que atacava comboios em beira de estradas, fazendas e pessoas desarmadas
que encontrava no caminho, mas alguém que destacou-se pela ousadia de bater logo de
frente com a elite, ousadia que chega ao ponto de atacar a residência da baronesa, que
mesmo não exercendo mais legalmente o poder político, já que perdera sua importância
com o fim do Império, para a população local era uma pessoa importante, exercendo
forte poder simbólico no imaginário desses indivíduos.
Outra característica importante é que quase todos os jornais alagoanos irão
noticiar esse ataque, tecendo comentários ferrenhos, destacando a ousadia da
“bandidagem”. É a primeira vez que o nome de Lampião sairá em “letras redondas” nas
páginas jornalísticas. Primeira de muitas que proliferarão durante todo o século XX.
Desse momento em diante não se passou pelo menos uma semana ou um mês, em que
não se tivesse algo relatado nos jornais nordestinos sobre o itinerário daquele grupo de
cangaceiros.
O importante também de nos debruçarmos sobre esse episódio é que ele permite-
nos perceber, de forma panorâmica e hipotética, como em início de carreira Lampião
será um “bandido” que ataca a elite e as autoridades locais, fato que mais tarde mudará
2 Lugar-tenente é um “título” hierárquico no cangaço, os homens que ganhavam essa “patente”
geralmente se destacavam pela coragem e valentia, além de serem “cabras” de extrema confiança do
chefe. Eles tinham como função comandar os vários sub-grupos que por ventura o bando maior tivesse.
3
já que ele começa a tecer a sua teia de relações com as autoridades, muitas vezes
subordinando-se aos mandos e desmandos desses.
Os feitos de Lampião e seu bando começavam a se avolumar em proporções
exorbitantes, o povo o temia, os sertões são varridos sob o poder do seu rifle, as
histórias proliferam: homicídios, assaltos, estupros, crueldades. Seu nome simbolizará
medo e, ao mesmo tempo, admiração, eis mais uma contradição. Aterrorizava ao mesmo
tempo em que promovia os seus famosos bailes regados a muito forró, xaxado e
cachaça. Muitas pessoas iam pelo medo, outras eram forçadas, alguns freqüentavam por
curiosidade, mas todos tendo em comum a certeza de não poderem negar nada ao
“Capitão” e não poderem altear a voz ou fazer qualquer gesto que pudesse significar
desafio. Era o medo agindo naqueles “matutos” sem regras de etiqueta estabelecidas, e
nos “letrados” temerosos de serem desmoralizados com os seus diplomas de bacharéis
que davam status social naquele meio.3
Essa será a nossa primeira cena, que dentro da trama nos levará a cena seguinte
que acontecerá no ano de 1926, no cenário da “Meca Nordestina”, Juazeiro do Norte –
CE, terra do “benemérito” e “santo” padre Cícero Romão Batista, o patriarca daquele
“povo devoto e sofredor”, a “Jerusalém celeste na terra”, “terra santa da Mãe de Deus
das Dores”.
Acreditamos que nesse ano teremos uma das primeiras mutações da imagem de
Lampião, pois em uma articulação política ele é convocado a comparecer ao Juazeiro
onde estava sendo organizado o Batalhão Patriótico para combater a Coluna Prestes. Lá,
em um arranjo político estratégico, o “Rei do Cangaço” recebe a patente de “capitão” do
referido Batalhão. Temos aí à legalização de um bandido que “alia-se” ao governo para
combater um inimigo maior (contradição profunda). De perseguido passa a ser
perseguidor.
Frente a uma ameaça maior há uma mutação na representação feita pelo Estado
no referente à Lampião e seu bando no ano de 1926. Quando a Coluna Prestes adentrou
no Nordeste pregando o seu projeto utópico e em busca de arrebanhar adeptos para seu
ideal, Lampião e seus “meninos” são postos na legalidade em um fato que gera
polêmica até os dias de hoje. De um lado, articula-se discursos defensores de que tal
3 Ver: ASSUNÇÃO, Moacir. Os homens que mataram o facínora. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa; FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia
Visual, 1999. SOUZA, Anildomá Willans. Lampião: nem herói nem bandido… a história. Serra
Talhada: GDM Gráfica, 2006.
4
idéia tenha vindo da esfera do governo federal, em contra-partida há os que afirmam
categoricamente que essa tenha sido uma jogada política do deputado Floro Bartolomeu
e do Padre Cícero.4
Fato é que aqui encontramos uma contradição latente. De bandido a Capitão do
Batalhão Patriótico, um “exímio” defensor da “pátria mãe gentil”. Essa patente
recebida, mas que oficialmente não tinha validade, passa a ter validade a partir do
momento que Lampião impõe a todos que o cerca a obrigação de o tratarem até o fim da
vida como “Capitão”. Nas inúmeras invasões cometidas por Lampião e seu bando o seu
nome o antecedia, entre os gritos de terror sua chegada era anunciada com o alarme de
algum paisano afirmando que a cidade, vila ou comunidade tinha o capitão à porta.
Ele apropriando-se do código ético sertanejo, fez com que sua palavra tivesse
mais valor que a lei: se não o respeitavam pela coragem, o considerariam pelo medo.
Esse episodia da vida de Lampião quando ele é convocado a ir para o Juazeiro
do Norte – CE, é um dos mais inusitados da sua vida, pois ele possibilita refletirmos e
tirarmos conclusões interessantíssimas sobre a ambigüidade que cerca a sua vida. A
cidade de Juazeiro parou frente àqueles “seres exóticos”; multidões arrastam-se entre as
ruelas da cidade para ver os cangaceiros e, se possível, o próprio Lampião que
hospedado em um sobrado da cidade é tratado como uma estrela.
Acreditamos que apesar do temor muitos querem vê-lo, o medo passa então pela
necessidade de experimentar, de contemplar com os próprios olhos aquele homem
cercado de narrativas tão ferozes, admiração e espanto. É o momento de tirar a prova se
ele existe realmente.5 Poderíamos de forma hipotética dizer que durante a sua estadia
em Juazeiro Lampião e seu bando serão tratados como autoridades, cidadãos ilustres,
sendo respeitados e saindo da cidade sem dispararem um único tiro. Claro, que há
4 Usaremos como referências para essa discussão: ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa; FERREIRA, Vera.
De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A
Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão. 2.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.
BRAGA, Antônio Mendes da Costa. Padre Cícero: sociologia de um Padre, antropologia de um Santo.
Bauru, SP: Edusc, 2008. CHANDLER, B. J. Lampião, O Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1980. MACÊDO, Nertan. Capitão Virgolino Ferreira: Lampião. 4. ed. Rio de Janeiro: Artenova, 1972. MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do
Brasil. 4. ed. São Paulo: A Girafa Editora, 2004. MOTA, Leonardo. No Tempo de Lampião. 3. ed.
Fortaleza: ABC Editora, 2002. Também será de grande valia a obra do memorialista: NEVES, Napoleão
Tavares. Cariri: cangaço, coiteiros e adjacências. Brasília: Thesaurus, 2009. 5 A entrevista feita com Lampião, publicada no Jornal “O Ceará” em 12 de março de 1926, deixa claro
que havia um aglomerado de pessoas diante do prédio onde os cangaceiros estavam hospedados:
“Naquela ocasião, como dissemos anteriormente, Lampião estava hospedado no sobrado de João Mendes
de Oliveira e, durante a entrevista, foi várias vezes à janela, atirando moedas para o povo que se
aglomerava na rua”.
5
pessoas que acharam absurdo um “bandido” ser tratado como estrela, mas essas muitas
vezes são abafadas pelas várias narrativas e histórias que são contadas pela grande
maioria. Lampião sai da “Meca Nordestina” como um herói.
Pelo menos dois pilares documentais nos servirão de alicerce na construção
desse capítulo: a entrevista concedida por Lampião ao médico Otacílio Macedo6 e os
jornais – principalmente O Ceará do referido ano – que encontra-se no Arquivo Público
do Estado do Ceará e na Biblioteca Pública de Fortaleza. A citada entrevista é um
documento de cabal importância porque ela é um dos únicos registros que se tem de
Lampião sendo entrevistado, permitindo-nos identificar uma série de fatores que
contribuem para que percorramos um pouco a forma de pensar do cangaceiro. Assim,
não temos um sujeito “morto”, calado, que nunca manifestou-se, mas alguém que
buscou certas táticas para destacar-se e driblar as estratégias maiores que sobre ele se
impunham.
Os jornais nos permitirão pensar como alguns setores da sociedade encararam a
vinda do “facínora” Lampião ao Juazeiro e qual a repercussão/ligação desse fato à
figura do Padre Cícero. Acreditamos ter, de início, pelo menos dois grupos que usarão
os jornais para difundirem suas concepções: os que apoiaram a idéia de legalizar aquela
“gesta de bandidos”, e os que foram ferrenhos opositores criticando com veemência a
atitude das autoridades em convocar e legalizar os cangaceiros perdoando os seus
crimes.
Confrontando esses dois corpos documentais/discursivos teremos uma
concepção de como o Juazeiro estava um verdadeiro “caldeirão” nesse ano e
perceberemos o desespero das autoridades locais em combater a Coluna Prestes,
chegando a tomar atitudes muitas vezes esdrúxulas do ponto de vista ético. Essa trama
possibilitará enxergarmos qual papel Lampião representará nesse momento e como esse
episódio de “legalização” e do recebimento da “patente de capitão” terá uma forte
ressonância em toda a vida de Lampião até a sua morte.
No roteiro dessa trama nos ancoraremos em alguns teóricos que nos ajudarão a
costurar a trama cênica. Convidaremos a subir ao palco, em uma discussão rápida, Eric
Hobsbawm com as suas duas obras “Rebeldes Primitivos” (1970) e “Bandidos” (1975).
Fazendo uma ligação com as atitudes representadas por Lampião no transcorrer da
6 Publicada no Jornal “O Ceará” em 12 de março de 1926.
6
entrevista concedida a Otacílio Macedo, buscaremos discutir a visão de “bandido
social” tão viva quando se trabalha com o cangaço.
Para Hobsbawm esse tipo de movimento (cangaço) que aconteceu no Nordeste
brasileiro era “arcaico e primitivo”, mas não deixava de ser social, mesmo
diferenciando-se do movimento operário que cresceu na sociedade moderna. Assim, ele
inseriu o cangaço em uma sociedade que tem Estado, distinções de classe e exploração
de latifundiários e comerciantes, vendo nessa sociedade a persistência de laços de
parentesco e solidariedade tribais, o que o levou a pensar esse movimento dotado de
traços da “sociedade primitiva”.
É a partir desse contexto social que surgirá o “bandido social”, aquele que
ambiciona um mundo justo e igualitário. Para chegar a tal sociedade utópica esses
indivíduos se levantam contra a estrutura social exploradora vigente. No entanto,
segundo o autor, esse movimento ao contrário do movimento operário, não tem uma
organização homogênea e uma ideologia de luta. É nesse ponto que a obra de
Hobsbawm se difere da idéia de Movimento Social clássica, pois, segundo alguns
estudiosos, para que um determinado levante seja tratado como movimento social ele
tem que ter objetivo, consciência de classe, organização e uma ideologia em comum.
Tomados em conjunto, representam pouco mais do que sintomas de crise e
tensão na sociedade em que vivem – de fome, peste, guerra ou qualquer outra
coisa que abale essa sociedade. Portanto, o banditismo, em si, não constitui
um programa para a sociedade camponesa, e sim uma forma de auto-ajuda,
visando a escapar dela, em dadas circunstâncias. Exceção feita à sua
disposição ou capacidade de rejeitar a submissão individual, os bandidos não
têm outras idéias senão as do campesinato (ou da parte do campesinato) de
que fazem parte. São ativistas, e não ideólogos ou profetas dos quais se deve
esperar novas visões ou novos planos de organização política. São líderes, na
medida em que homens vigorosos e dotados de autoconfiança, tendem a desempenhar tal papel; mesmo enquanto líderes, porém, cabe-lhes abrir
caminho a facão, e não descobrir a trilha mais conveniente (HOBSBAWM,
1976: 18 – 19).
Problematizando esse conceito de Hobsbawm nos perguntaríamos: Seria
Lampião realmente um bandido social? O que leva Hobsbawm a enxergar elementos na
vida do cangaceiro nordestino que vão de encontro a sua tese lapidar de que esse seria
um Hobim Hood nordestino? Não houve uma má interpretação e leitura na obra
“Bandidos”? Até que ponto seria coerente enquadrar o “Rei do Cangaço” nessa
“categoria conceitual”?
7
Na complexa teia da trama que estamos montando, as vozes discordantes são
necessárias e elementares. Maria Isaura Pereira de Queiroz, que desenvolve suas
pesquisas na década de 1960, será uma ferrenha discordante da concepção de bandido
social pensada por Hobsbawm, acreditando que nem movimento social o cangaço seria
por faltar a consciência de classe, um objetivo em comum para se lutar e uma ideologia.
Interrogada se os bandos independentes e errantes de cangaceiros foram uma
simples resposta à miséria ou se configuraram como movimento social, Queiroz
responderá categoricamente:
Na medida em que os termos “movimentos sociais” pressupõem consciência
dos problemas vividos numa estrutura sócio-econômica e política injusta – a
consciência sendo constituída justamente da percepção e do conhecimento dessa estrutura e de seus efeitos, mesmo que sob um modo de percepção
religioso – não é possível admitir que o “cangaço” se configure como um
movimento social. Foi, realmente, uma resposta à miséria, o que se evidencia
no fato de que desapareciam, quando a chegada das chuvas reinstalava o
modo de vida habitual (QUEIROZ, 1997: 13).
Daí problematizaríamos a questão: “Seria o cangaço um movimento social ou
ele seria um movimento que está inserido no sistema instituído, sendo parte desse, não
buscando uma mudança social como se espera de um movimento social?” A partir dessa
indagação seria necessário distinguir os tipos de cangaço, e por que o “cangaço de
Lampião” se configura como diferenciado dos demais que o antecederam, estando o
grupo de Lampião mais voltado para os interesses particulares do que coletivo.
Na obra “Cangaceiros e Fanáticos” (1983), Rui Facó relaciona esse movimento
nordestino a uma questão agrária e de luta por terra, entendendo o cangaço como um
espaço de resistência, de contraposição à ordem social. Sua obra publicada em 1963
buscou responder a questões que vinham sendo elaboradas desde a década de 1950: “O
que é o Brasil? Qual a origem das diferenças entre o Nordeste e o Sul do país? O que
leva o Nordeste a ser atrasado e socialmente tenso, frente a um Sul “adiantado”? A obra
foi escrita em um momento no qual o país se sensibilizava com a realidade nordestina e
buscava soluções.
Ele vem, através de sua produção, reafirmar a necessidade de mudança na
estrutura da terra, pois aí estavam as raízes da maior parte dos problemas sociais do
Nordeste e a semente de toda a desigualdade social que levava a um aumento
substancial da pobreza, miserabilidade e o agravamento da situação dos camponeses
8
sem terra. Esses fatores seriam os responsáveis pelo florescimento do banditismo e do
fanatismo. Segundo o autor, os bandidos e fanáticos não eram “simples criminosos”,
mas frutos do atraso econômico da região, do latifúndio e do regime de trabalho “semi-
feudal”.
Euclídes da Cunha já compreendera que „o homem do sertão [...] está em
função direta da terra‟. Se a terra é para ele inacessível, ou quando possui
uma nesga de chão vê-se atenazado pelo domínio do latifúndio oceânico, devorador de todas as energias, monopolizador de todos os privilégios, ditador
das piores torpezas, que fazer, senão revoltar-se? Pega em armas, sem
objetivos claros, sem rumos certos, apenas para sobreviver no meio que é o
seu (FACÓ, 1983: 30).
Essa seria a sua justificativa para o surgimento dos grupos de cangaceiros. A
questão da terra seria o grande causador da problemática cangaceira no Nordeste; o
sistema seria responsável por não dar condições de sobrevivência digna a esses sujeitos,
empurrando-os para a criminalidade:
Naquela sociedade primitiva, com aspectos quase medievais, semibárbaros, em que o poder do grande proprietário era incontrastável, até mesmo uma
forma de rebelião primária, como era o cangaceirismo, representava um passo
à frente para a emancipação dos pobres do campo. Constituía um exemplo de
insubmissão. Era um estímulo às lutas (FACÓ, 1983: 38) (grifos nossos).
Tentando concluir o ciclo dos principais teóricos a problematizarem o cangaço
nas décadas de 1960 a 1970 nos debruçaremos sobre a obra de Billy J. Chandler,
“Lampião, O Rei dos Cangaceiros” (1980). O olhar de Chandler7 ao trabalhar o
banditismo no Nordeste é o de um americano que olha de cima para baixo, percebendo
– no seu ponto de vista – que na escala evolutiva social, o Brasil estaria em um patamar
de inferioridade se comparado aos Estados Unidos, tanto é que, quando no início dos
seus escritos ele vai situar Lampião ao espaço do qual ele é fruto, ele salienta que o
cangaceiro havia “nascido no sertão decadente e empobrecido do Nordeste brasileiro”
(CHANDLER, 1980: 14).8
7 Chandler desenvolve suas pesquisas para escrever o livro na década de 1970, período onde a discussão
do conceito de Eric Hobsbawm estava começando a ser travada no mundo acadêmico. 8 Para um aprofundamento dessa discussão de ser a região um determinante do surgimento do banditismo,
ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 3. ed. São
Paulo: Cortez, 2006. ANDRADE, Manoel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. Recife: UFPE,
1998. CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. RIBEIRO,
Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
9
No trecho da obra citado acima, podemos perceber três dimensões de
inferioridade ao analisarmos: 1) um bandido que floresce em um país de Terceiro
Mundo (conceito usado na época para caracterizar os países pobres); 2) além de ser
fruto desse país pobre, ainda nasceu na periferia do seu território: o Nordeste, ambiente
propício a despertar no homem toda a sua animalidade primitiva, como por muito tempo
no imaginário social a região foi vista; 3) e por fim, tendo o seu campo de ação nos mais
remotos rincões do sertão, aquele deserto de calmaria e terror, fonte de vida e de morte,
espaço da “barbárie”.
Para Chandler, a sociedade sertaneja do período de 1900 a 1940, estava
passando por uma grave crise econômica, política, cultural e social, possibilitando,
assim, o surgimento do banditismo, do messianismo e do fanatismo religioso, esses
seriam as manifestações mais cabais dessa crise. Para justificar o advento do
messianismo, usando uma carga preconceituosa e pejorativa, e não entendendo esse
fator como um produto cultural de uma sociedade ainda não impregnada pela
modernidade capitalista, e sim, ainda mantenedora das velhas tradições agrárias, ele
afirmará que esse messianismo se baseia na superstição, ignorância e pobreza dos
sertanejos.
Ao trabalhar o conceito de Bandido Social de Hobsbawm, Chandler esclarecerá
que ao lapidar esse termo o autor não estava categoricamente afirmando que os seus
dados sobre Lampião, fossem imagens verdadeiras do personagem histórico, pois, o seu
trabalho se balizou em lendas e mitos para pensar a relação entre Lampião e o
banditismo social. Assim, ele dá um parecer que busca encerrar a discussão iniciada
com a publicação das obras de Hobsbawm nas décadas de 1960 e 1970:
Hobsbawm reconhece que Lampião podia ser terrível, e, por esta razão, o
coloca entre os vingadores. Declara também que Lampião não pode se
classificar como um verdadeiro bandido social haja vista a sua aliança com
proprietários. Acrescenta também – erradamente, acho eu – que o chefe dos
cangaceiros defendia os pobres. Hobsbawm justifica a violência de Lampião,
sob o argumento de que, num certo modo, era involuntária, pois resulta das
severas tensões que marcaram a ruptura social entre o nordeste tradicional e a
nova ordem capitalista, e, portanto, era inevitável (1980: 311).
Ele encerra o seu trabalho sendo categórico:
As teorias de Hobsbawm sobre o banditismo, embora extensas e abrangedoras,
não são, nem racionalmente, nem adequadamente, apoiadas em evidências
10
dignas de confiança. A confusão principal resulta do fato de que trata dos bandidos como mito e realidade, sem, em muitos casos, fazer distribuição entre
os dois. Por essas inexatidões, suas idéias não conduzem à análise, e,
portanto, são melhores se tomadas como sugestões empíricas (1980: 311).
Chandler afirma haver a apropriação por parte de Hobsbawm de algumas lendas
sobre Lampião para a legitimação do seu conceito, no entanto, achamos absurda a sua
concepção preconceituosa em tratar as falas populares, que construíram essas lendas e
foram trabalhadas por Hobsbawm, como “ordinárias” por fugirem da “verdade”,
fabricando casos. Ao tratar as narrativas populares como “Elucubrações de um povo
ignorante” (1980, p. 28) há a tentativa, de sua parte, de reforçar o tripé montado por ele
para justificar a constituição da identidade sertaneja: a superstição, a ignorância e a
pobreza; juntos esses fatores contribuem para a formação desse povo e da sua “mente
fantasiosa”.
Considerações Finais
Sabemos como é complexo o caminho percorrido por um pesquisador em busca
das respostas para os seus questionamentos, esse tem que ao longo do percurso se
acercar de toda a documentação possível e tomando a função de um detetive esmiuçar
os fatos, “violar” identidades, interpretar documentos, construir “verdades”, frente a um
passado que não tem mais como ser revivido a não ser pela documentação e vestígios
deixados.
Buscamos ao longo da feitura desse artigo, trazer para o nosso leitor algumas das
trilhas as quais estamos seguindo para construir a nossa pesquisa de mestrado,
acreditando ser esse texto importante não pelas conclusões fechadas sobre os fatos
analisados, mas por possibilitar uma reflexão de como é feito metodologicamente o
oficio do historiador nessa relação Historiador/Passado, Presente/Passado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes.
3. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
ANDRADE, Manoel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. Recife: UFPE,
1998.
11
ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa; FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. São
Paulo: Idéia Visual, 1999.
ASSUNÇÃO, Moacir. Os homens que mataram o facínora. 2. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2007.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos
guerreando no sertão. 2.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.
BRAGA, Antônio Mendes da Costa. Padre Cícero: sociologia de um Padre,
antropologia de um Santo. Bauru, SP: Edusc, 2008.
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
CHANDLER, B. J. Lampião, O Rei dos Cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1983.
HOBSBAWN, E. J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1975.
_______________. Rebeldes Primitivos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
LINS, Daniel. Lampião: O Homem que Amava as Mulheres. São Paulo: Annablume,
1997.
MACÊDO, Nertan. Capitão Virgolino Ferreira: Lampião. 4. ed. Rio de Janeiro:
Artenova, 1972.
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no
Nordeste do Brasil. 4. ed. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.
MOTA, Leonardo. No Tempo de Lampião. 3. ed. Fortaleza: ABC Editora, 2002.
NEVES, Napoleão Tavares. Cariri: cangaço, coiteiros e adjacências. Brasília:
Thesaurus, 2009.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do Cangaço. 5. ed. São Paulo: Global,
1997.
_______________. Os Cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
SOUZA, Anildomá Willans. Lampião: nem herói nem bandido… a história. Serra
Talhada: GDM Gráfica, 2006.